Trab. Direito1

  • October 2019
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Atentados contra a liberdade A preocupação com a liberdade não é de hoje, e, apesar de todas as conquistas entretanto verificadas, é fácil identificar muitos atropelos a um dos principais pilares da condição humana. Entre nós, começam a surgir evidências ou, no mínimo, suspeitas de controlo da liberdade de imprensa. O que é certo é que as pessoas encolhem-se cada vez mais, sempre que desejam exprimir os seus pensamentos, com receio de virem a ser objecto de vários tipos de represálias. Até a própria justiça entra neste fandagar, ao dar razão a certas queixas, facto que não deixa de nos espantar, porque acabar nas mãos da justiça – mesmo que sejamos absolvidos - pode ser um tormento capaz de provocar úlceras de stress e muito mais! Mas, apesar de tudo, nada se compara com as notícias que vêm lá de fora. Vejam-se certas proibições tradutoras de verdadeiras formas de terrorismo, impensável no mundo moderno. O presidente iraniano deu um beijo na mão, ou melhor, na luva, de uma senhora de idade, encasacada, e foi logo criticado pelo beijo “indecente”! A senhora tinha sido a sua professora primária e o acto em si revela respeito e ternura por quem lhe ensinou as primeiras letras. A crítica chegou ao ponto de ser considerada uma “acção contrária à lei islâmica (sharia). Os teólogos daquelas bandas, que permitem que um homem possa casar com várias mulheres, e que chegam a oferecer um batalhão de virgens no paraíso a quem mostrar pressa em lá chegar, por exemplo, através de suicídios religiosos, são mentores de formas de terrorismo que cerceiam a liberdade humana. Mas esta forma de atentado à liberdade, sob a capa de princípios religiosos, não é apanágio daquelas bandas, porque na Irlanda, a uma jovem de 17 anos, grávida e portadora de um feto com graves anomalias, anencefalia, malformação cem por cento fatal nas primeiras 48 horas após o parto, foi-lhe negada a possibilidade de ir ao Reino Unido para abortar. Como é sabido, na República da Irlanda, é proibido o aborto, mesmo nestas circunstâncias! De acordo com a notícia, a adolescente está à guarda do serviço de saúde irlandês!, melhor seria dizer que está “detida” por um serviço que deveria respeitar a saúde dos cidadãos e não castigá-la de forma a perigar a sua saúde. Em qualquer pais civilizado (não esquecer que mesmo entre nós, antes da actual alteração à legislação da lei do aborto, já era permitida a solução deste grave problema) esta situação já teria sido resolvida. Afinal, o direito à liberdade e ao respeito pela dignidade humana carecem de muitas lutas e combates, de modo a eliminar certos “princípios” que se revelam perniciosos, traduzindo fortes interesses capazes de controlar as leis ou comportando-se como tal. Parece que o assunto foi parar ao Supremo Tribunal de Dublin. Esperemos que a decisão de conceder o direito à jovem de viajar livremente para fora do território irlandês seja dada o mais rapidamente possível.

Sobretudo nas sociedades do norte de áfrica e médio oriente, totalmente dependentes dos preceitos religiosos fundamentalistas e radicais, encontram-se atitudes que vistas à luz da cultura social europeia, parecem completamente desajustadas, sobretudo porque limitam as liberdades e os direitos humanos. Caro Prof. Massano Cardoso, sou totalmente cúmplice das opiniões que tão humanisticamente nos apresenta. Não vejo porem, modo de este panorama se alterar, menos ainda de um dia

se chegar a aproximar dos padrões europeus. Sabemos perfeitamente que cada sociedade possui características próprias, muitas delas ancestrais e inalteráveis. O unico modo que eu imagino pudesse alterar esta realidade, teria de passar forçosamente pela renovação completa das pessoas e respectivas mentalidades. Para que essa alteração fosse possível, seria necessário que toda a gente morresse, fosse reprogramada e renascesse. Isso seria utopico, absolutamente irreal. Resta-nos, salvo melhor opinião, entender, aceitar e respeitar a determinação daquelas pessoas que decidem seguir as leis da sociedade em que nasceram e com que se identificam, cultural, social e religiosamente.

CNA não reconhece casos de trabalho escravo apontados pelo Ministério do Trabalho (27/08/2008) Agência CNA

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) não reconhece os casos apontados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) como de trabalho escravo, bem como não tem conhecimento de qualquer condenação definitiva da prática desse crime hediondo no País. A afirmação é do presidente da Comissão Nacional de Relações do Trabalho e Previdência Social da entidade, Rodolfo Tavares, que discorda da afirmação de que exista trabalho escravo no Brasil. Ao se referir à dignidade nas relações de trabalho, Tavares diz que a busca por padrões éticos elevados deve ser um objetivo permanente de toda a sociedade. Para alcançar essa meta, sugere a realização de programas de qualificação profissional e capacitação de técnicos, trabalhadores e empregadores para o cumprimento da legislação trabalhista rural e a prevenção de acidentes e doenças laborais, “trabalho já intensamente desenvolvido pelo SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural). Quanto ao conceito de trabalho escravo, o presidente da Comissão da CNA informa que é ditado pela Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que alterou o artº 149 do Código Penal, cujo texto estabelece que “reduzir alguém à condição análoga a de escravo, quer submetendoo a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Embora recente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) vem exigindo que na conduta descrita estejam presentes os seguintes elementos: existência de dolo; violência e grave ameaça. Estas condutas, segundo Tavares, são exigidas em todo o capítulo do Código Penal que trata dos Crimes Contra a Organização do Trabalho (Art. 197/207 do C.P.). Assim, se houver crime, deve ser tratado pelo Estado - polícia e justiça - com respeito ao devido processo legal e aos demais direitos e deveres constitucionais. Para Rodolfo Tavares, a falta de informação é uma das principais razões que levam ao descumprimento da legislação trabalhista no campo. Segundo ele, o empregador rural convive com relações de trabalho muito mais complexas que as urbanas, pois em muitos casos essas relações iniciam com a contratação em regiões distantes do local da prestação do serviço, envolvendo a contratação prévia, transporte, alojamento, alimentação, lazer/convivência, utilização de máquinas, ferramentas, instalações, insumos, lida com animais de grande porte e atividades agrícolas sazonais. Tais atividades implicam na contratação por curta duração, que envolve a mesma burocracia dos contratos de prazo indeterminado. Ao falar sobre a história da escravidão no Brasil, Tavares diz que é semelhante a de tantos outros países do Ocidente e do Oriente. Para ele, no entanto, “no Brasil, apesar de tudo, o negro e o índio irrigaram com seu sangue a raça brasileira criando um só povo, miscigenado e forte”. Afirma, também, que o País é herdeiro de um patrimônio jurídico, consolidado na Constituição Federal, que condena a discriminação e o preconceito racial.

Quanto às denúncias montadas contra o setor do agronegócio, o presidente da Comissão Nacional da CNA diz que faz parte de um movimento ideológico, “que pretende realizar a distribuição de terras e de renda através de leis encontradas na rua e não nos códigos, bem como desqualificar o direito de propriedade pelo suposto descumprimento da função social”. Para ele, as Organizações Não Governamentais (ONG’S) que lutam contra o trabalho escravo são, na maioria, “chapa branca”, pois recebem dinheiro do próprio Governo. “Outras servem a interesses econômicos de multinacionais e países competidores do Brasil no mercado exportador de alimentos”, diz Tavares, que identifica, ainda, organizações ideológicas. “Desta forma é muito difícil encontrar alguma que tenha legitimidade para tratar do assunto, conclui o presidente. Crimes contra a organização do trabalho – A Comissão Nacional de Relações do Trabalho e Previdência Social da CNA elaborou nota técnica sobre a questão do trabalho escravo ou análogo a escravo. Segue a íntegra do trabalho: “É certo que o combate a qualquer exploração da pessoa humana, em qualquer das suas formas, é um dever de toda a sociedade, principalmente do poder público, tutor do estado democrático de direito. Deve-se combater o trabalho escravo ou análogo a escravo com todo rigor que o crime merece, bem como suprimi-lo sob todas as suas formas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) entende que a existência do trabalho forçado no Brasil se dá não porque a miríade de exigências trabalhistas não esteja sendo atendida, mas porque o trabalhador estaria tendo sua mobilidade cerceada, por motivos ilícitos, principalmente devido à servidão por dívida e à necessidade de pagá-la com o próprio trabalho, residindo aí a configuração do trabalho forçado ou obrigatório. Assim, cabe uma reflexão sobre o crime de redução à condição análoga a de escravo, previsto no Art. 149 do Código Penal (CP) e o crime de atentado contra a liberdade do trabalho, Art. 197, do CP, bem como a forma como as autoridades administrativas esboçam a situação, que muitas vezes não condiz com a realidade e a tipificação penal adequada. Cabe, portanto, analisarmos os referidos tipos penais e a forma como os crimes estão sendo classificados. O art. 149 do CP sofreu alterações operadas pela Lei n.º 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que ampliou a descrição típica, incluiu figuras equiparadas e estabeleceu causas de aumento de pena. A lei penal visa proteger a liberdade no conjunto de suas manifestações, o que trouxe subjetividade e insegurança jurídica. Nota-se que o elemento subjetivo do tipo é o dolo, conforme entendimento do Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), no Inquérito 2.054/2008-DF. (...) A conduta descrita no art. 149 do CP consiste em submeter alguém à sujeição absoluta, reduzindo-o à condição análoga a de escravo. Este delito não é punível a título de culpa, devendo estar presente o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de submeter a vítima à sujeição de escravo. (...)

Observa-se que inúmeras são as denúncias de que as práticas empregadas para apuração do crime capitulado no referido artigo têm atacado frontalmente princípios constitucionais basilares do nosso ordenamento jurídico, onde autoridades administrativas fiscalizadoras, Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego, condenam previamente o fiscalizado, deturpando o princípio que decorre a obrigação de aplicar fielmente a lei escrita e de interpretála de acordo com o seu significado evidente, sem referência a desejos pessoais ou a concepções individuais de justiça. Contudo, essa prática encontra guarida na imprecisão e subjetividade emprestada à definição legal do que seja redução à condição análoga a de escravo. Conforme se depreende do Recurso Extraordinário 466.508-5/MA, julgado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que, com sabedoria, faz distinção entre trabalho escravo e descumprimento de legislação trabalhista, decidiu-se que, para configuração do trabalho escravo, deve estar presente o cerceamento à liberdade de ir e vir do trabalhador. Soma-se a isso o fato de existirem no Código Penal tipificações específicas para delitos contra a organização do trabalho.

No entanto, percebe-se nitidamente a intenção de classificar qualquer problema trabalhista como redução à condição análoga a de escravo. A adequação típica da conduta deve se mostrar suficientemente fundamentada e baseada nas provas e depoimentos. Organização do Trabalho - Ao analisar os crimes elencados nos artigos 197 e 198 do Código Penal, observa-se o desuso quando da aplicação dos crimes descritos. Vale dizer que os crimes de atentado contra a liberdade do trabalho e atentado contra a liberdade de contrato de trabalho são as adequações típicas mais corretas para a grande maioria dos crimes classificados como redução à condição análoga a de escravo. A Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, XIII, que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Assim, o art. 197, CP, visa à tutela da liberdade da pessoa no que concerne ao trabalho, isto é, o direito de livremente exercer uma atividade ou profissão, consoante assegurado pela própria Carta Magna. Ressalta-se que, para configurar esses crimes, também é exigido o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de constranger a vítima, mediante o emprego de violência ou grave ameaça. Portanto, verifica-se que tais crimes não trazem consigo qualquer subjetividade. Adequação da Lei - Não se pode perder de vista, ainda, a ratificação pelo Brasil das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tratam da abolição do trabalho forçado, terminologia que vem sendo utilizada em substituição ao trabalho escravo. Tais convenções tratam da mesma matéria de forma diferente, o que levou alguns países, como os Estados Unidos, a ratificarem apenas a Convenção 105, pois esta não conta com o mesmo grau de subjetividade da Convenção 29, sendo mais específica e clara no que concerne à abolição e prevenção do trabalho forçado. Pelo exposto, faz-se necessária a adequação do Código Penal, tendo em vista a subjetividade do crime de redução à condição análoga a de escravo, previsto no artigo 149, além das distorções causadas. Também cabe ressaltar o desuso dos crimes de atentado contra a liberdade de trabalho e atentado contra a liberdade de contrato de trabalho, previstos nos artigos 197 e 198. A Lei está sendo tratada de modo ideológico e não de acordo com os ditames previstos em seu texto e em sua hermenêutica. Não se pode criminalizar setores da economia brasileira, como o setor rural. Os auditores fiscais estão aplicando a Lei e julgando previamente, sem que antes haja uma condenação de um Tribunal Competente, o que leva a uma grande insegurança jurídica. O Brasil está em um patamar mais aprimorado na economia, merecendo, portanto, modificar o atual cenário para um desenvolvimento mais seguro do País”.

Art. 201 - Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. 1. INTRODUÇÃO A greve pode ser concebida como uma das mais importantes e complexas manifestações coletivas produzidas pela sociedade contemporânea. O vocábulo greve foi utilizado pela primeira vez no final do século XVIII, precisamente numa praça em Paris, chamada de Place de Grève, onde se reuniam tanto desempregados quanto trabalhadores que, insatisfeitos geralmente com os baixos salários e com as jornadas excessivas, paralisavam suas atividades laborativas e reivindicavam melhores condições de trabalho. Na referida praça, acumulavam-se gravetos trazidos pelas enchentes do rio Sena. Daí o termo grève, originário de graveto. A história da greve surge a partir do regime de trabalho assalariado, fruto da Revolução Industrial. Pode-se, assim, atribuir aos movimentos sindicais dos ingleses o marco inicial da história da greve(23).

Com o evolver das relações entre o Estado e seus funcionários, a greve passou a ser permitida legalmente em alguns países, como Canadá, Espanha, Finlândia, França, México e Portugal, cujos ordenamentos jurídicos exigem, no geral, alguns procedimentos prévios, como consultas, negociações coletivas etc. para que o movimento possa ser deflagrado. A Constituição cidadã de 1988 reconhece expressamente a greve como direito fundamental, tanto para os trabalhadores em geral (art. 9º), quanto para os servidores públicos civis (art. 37, VI e VII), sendo que estes foram também contemplados com o direito à livre sindicalização. Ao militar, no entanto, continuam proibidas a sindicalização e a greve. Disciplinando a greve para os trabalhadores do setor privado, abrangendo os "servidores empregados" das sociedades de economia mista e empresas públicas, a Lei n. 7.783/89 (LG): a)conceitua a greve como "suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviço a empregador" (art. 2º); b)arrola os serviços considerados essenciais; c)fixa os requisitos para o exercício do direito; d)obriga os sindicatos, os trabalhadores e os empregadores a garantir, durante a greve, a prestação de serviços indispensáveis ao atendimento das atividades inadiáveis da comunidade, que são aquelas que, não atendidas, coloquem em risco iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população; caso isso não seja observado, o Poder Público assegurará a prestação dos serviços indispensáveis; e)estabelece as sanções para os casos de abuso do direito etc. Quanto ao servidor público civil da Administração direta, autárquica e fundacional, o art. 16 da LG dispõe expressamente que: "Para os fins previstos no art. 37, VII, da Constituição, lei complementar definirá os termos e os limites em que o direito de greve poderá ser exercido".

O STF, em diversas oportunidades, considerou que o inciso VII do art. 37 da CF, em sua redação original, encerraria norma de eficácia limitada, sendo certo que a exigência da lei complementar para o exercício do direito de greve pelos servidores públicos civis impediria a aplicação analógica da Lei n. 7783/89, mormente em virtude da expressa determinação impeditiva nela contida (art. 16). Além disso, forte na literalidade do art. 37, VII, da Constituição e do art. 16 da LG, o STF, no julgamento do MI 20-DF, realizado em 1º de maio de 1994, considerou a existência de lacuna técnica decorrente da mora do Congresso Nacional em regulamentar o direito de greve do servidor público civil. Lamentavelmente, porém, a Corte Suprema, ao invés de criar uma norma específica para o caso concreto, o que seria da própria essência do mandado de injunção, limitou-se simplesmente a comunicar a decisão ao Congresso para que este tomasse as providências necessárias à edição de lei complementar indispensável ao exercício do direito de greve pelos servidores públicos civis. Até hoje, o Congresso Nacional não deu a mínima importância à decisão injuntiva do STF. Não obstante, a 4 de junho de 1998, o mesmo Congresso promulgou a Emenda Constitucional n. 19, que deu nova redação ao art. 37, inciso VII, da CF, não mais exigindo a edição de uma lei complementar para regular o exercício do direito de greve pelo servidor público civil, mas, tão-somente, de uma "lei específica".

No presente estudo, portanto, procuraremos enfrentar as seguintes indagações: o que se entende por lei específica? Existe esta espécie normativa no processo legislativo previsto na Constituição? O art. 16 da LG foi recepcionado pelo novo texto constitucional? A decisão do STF proferida no MI 20-DF continua válida? O objeto específico da pesquisa repousa, portanto, na seguinte problematização: até que seja editada a "lei específica" constante do novel inciso VII do art. 37 da CF pode o juiz aplicar, analogicamente, os princípios e as normas da Lei n. 7783/89? 2. ESCORÇO HISTÓRICO DA GREVE NO BRASIL O Código Penal (1890), proibia a greve, e até o advento do Decreto n. 1.162, de 12.12.1890, essa orientação foi mantida. A Lei n° 38, de 4-4-1932, que dispunha sobre segurança nacional, conceituou a greve como delito. As Constituições brasileiras de 1891 e de 1934 foram omissas a respeito da greve. De tal arte, esta caracterizou-se, praticamente, como um fato, de natureza social, tolerado pelo Estado. A Constituição de 1937 prescrevia a greve e o lockout como recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional (art. 139, 2ª parte). O Decreto-lei n° 431, de 18-5-1938, que também versava sobre segurança nacional, tipificou a greve como crime, no que diz respeito a incitamento dos funcionários públicos à paralisação coletiva dos serviços; induzimento de empregados à cessação ou suspensão do trabalho e a paralisação coletiva por parte dos funcionários públicos. O Decreto-lei n° 1.237, de 2-5-1939, que instituiu a Justiça do Trabalho, previa punições em caso de greve, desde a suspensão e a despedida por justa causa até a pena de detenção. O Código Penal, de 7.12.1940 (arts. 200 e 201), considerava crime a paralisação do trabalho, na hipótese de perturbação da ordem pública ou se o movimento fosse contrário aos interesses públicos. Em 1943, ao ser promulgada a CLT, lembra Sergio Pinto Martins: "estabelecia-se pena de suspensão ou dispensa do emprego, perda do cargo do representante profissional que estivesse em gozo de mandato sindical, suspensão pelo prazo de dois a cinco anos do direito de ser eleito como representante sindical, nos casos de suspensão coletiva do trabalho sem prévia autorização do tribunal trabalhista (art. 723). O art. 724 da CLT ainda estabelecia multa para o sindicato que ordenasse a suspensão do serviço, além de cancelamento do registro da associação ou perda do cargo, se o ato fosse exclusivo dos administradores do sindicato"(1).

O Decreto-lei n° 9.070, de 15-3-46, passou a tolerar a greve nas atividades acessórias, não obstante a proibição prevista na Constituição de 1937. Nas atividades fundamentais, contudo, permanecia a vedação. Com a Carta de 1946 a greve passa a ser reconhecida como direito dos trabalhadores, embora condicionando o seu exercício à edição de lei posterior (art. 158). É importante assinalar, com Sergio Pinto Martins, que "o STF entendeu que não havia sido revogado o Decreto-lei n° 9.070/46, pois não era incompatível com a Lei Fundamental de 1946, que determinava que a greve deveria ser regulada por lei ordinária, inclusive quanto a suas restrições"(2).

Somente em 1º de junho de 1964, entrou em vigor a Lei de Greve ( Lei n° 4.330), que prescrevia a ilegalidade da greve:

a) se não fossem observados os prazos e condições estabelecidos na referida lei; b) que tivesse por objeto reivindicações julgadas improcedentes pela Justiça do Trabalho, em decisão definitiva, há menos de um ano; c) por motivos políticos, partidários, religiosos, morais, de solidariedade ou quaisquer outros que não tivessem relação com a própria categoria diretamente interessada; d) cujo fim residisse na revisão de norma coletiva, salvo se as condições pactuadas tivessem sido substancialmente modificadas (rebus sic stantibus). Adite-se que o art. 20, parágrafo único, da Lei n° 4.330/64, dispunha que a greve lícita suspendia o contrato de trabalho, sendo certo que o pagamento dos dias de paralisação ficava a cargo do empregador ou da Justiça do Trabalho, desde que deferidas, total ou parcialmente, as reivindicações formuladas pela categoria profissional respectiva. Cumpre sublinhar a correta observação de Francisco Osani de Lavor: "A Lei 4.330/64 regulamentou, por muito tempo, o exercício do direito de greve, impondo tantas limitações e criando tantas dificuldades, a ponto de ter sido denominada por muitos juslaboristas como a Lei do delito da greve e não a Lei do direito da greve"(3).

A Constituição de 1967, em seu artigo 158, XXI, combinado com o art. 157, § 7º, assegurou a greve aos trabalhadores do setor privado, proibindo-a, contudo, em relação aos serviços públicos e às atividades essenciais. A Emenda Constitucional nº 01, de 17.10.69, manteve a mesma orientação (artigos 165, XX, e 162). 3. A GREVE NO ORDENAMENTO JURÍDICO DE ALGUNS PAÍSES a)Alemanha A Constituição alemã é omissa a respeito da greve, mas assegura o direito de associação. O Estado mantém-se neutro, porém os próprios sindicatos fixam regras específicas a respeito, no que tange às atividades essenciais. À Justiça Federal do Trabalho compete definir as condições de licitude da greve, que somente pode ser deflagrada após esgotados todos os procedimentos imprescindíveis à autocomposição do conflito. A greve é exercida com moderação e de forma responsável, sendo raros os movimentos de paralisação, mesmo porque o sistema trabalhista alemão caracteriza-se mais pela colaboração do que pelo conflito. b)Argentina A Constituição argentina garante apenas o direito de greve aos sindicatos, sendo a matéria regulada pelo Decreto n° 2.184/90, que limita o exercício do direito de greve nas chamadas atividades essenciais. Há necessidade de comunicação do início da paralisação à autoridade do Ministério do Trabalho, com antecedência de cinco dias. As partes devem estipular em convenção coletiva a respeito da prestação de serviços mínimos à comunidade. c) Chile No Chile, a greve é permitida (art. 19 da Constituição). Todavia, há proibição nos serviços públicos e nas atividades essenciais. d) Espanha Na Espanha, a Constituição (art. 28) define a greve como direito fundamental dos trabalhadores, nos seguintes termos:

"Se reconece el derecho a la huelga de los trabajadores para la defensa de sus intereses. La ley que regule el ejercicio de este derecho estabelecerá las garantías precisas para asegurar el mantenimiento de los servicio essenciales de la comunidad."

O direito de greve no ordenamento espanhol é assegurado aos funcionários públicos, mas há proibição em relação aos membros das Forças Armadas e dos corpos de segurança, por força da Lei n° 2, de 13-3-86. É importante assinalar que a redação da norma constitucional espanhola é, na essência, idêntica à insculpida no art. 9º da Constituição brasileira de 1988. e) Estados Unidos Nos Estados Unidos, a Constituição não trata de greve, nem de nenhum direito dos trabalhadores. Os funcionários públicos são proibidos de fazer greve, pois caso contrário serão dispensados. O Wagner Act e a Lei n. Taft-Hartley (1947) traçam os contornos gerais da greve, sendo que a última define as responsabilidades dos sindicatos, inclusive em greve em atividades essenciais. A greve é exercitada pelo sindicato que congregar o maior número de trabalhadores da empresa ou de sua atividade. Foram criadas as injunctions, que são ordens proibitivas de greves, por meio de pronunciamentos judiciais. f) França O preâmbulo da Constituição francesa de 1946 faz menção ao direito de greve, cujo exercício é regulado nos termos das leis e seus regulamentos. Cabe à jurisprudência fixar os seus contornos. É assegurado o direito de greve ao servidor público civil, ao pessoal das empresas públicas e das empresas encarregadas do serviço público. Exige-se aviso prévio de cinco dias. O governo pode requisitar trabalhadores para prestar serviços durante a greve, inclusive designando-os nominalmente. É proibida a greve nas Forças Armadas, na magistratura e na polícia. g) Itália Na Itália, a Constituição de 1948 estabelece o direito de greve, nos termos da legislação ordinária, permitindo-a, com moderação, no serviço público. A Lei n° 146, de 14-6-90, trata da greve nos serviços públicos essenciais, cujo rol é considerado por alguns contrários à deliberações do Comitê de Liberdade Sindical da OIT. O aviso prévio é, de no mínimo, 10 dias. h) México O art. 123 da Constituição de Querétaro, de 1917, assegura tanto o direito de greve e como o lockout, embora o exercício deste último dependa de autorização prévia do Estado. É assegurado o exercício do direito de greve no serviço público, desde que haja aviso prévio de 10 dias à Junta de Conciliação e Arbitragem. i) Portugal O art. 58 da Constituição portuguesa reconhece o direito de greve, competindo aos trabalhadores definir os interesses que serão defendidos e seu âmbito. Não é permitido o lockout. A Lei n. 65, de 26-8-77, não define a greve, nem a restringe, com o que não se vislumbra ilegalidade nas chamadas greves políticas ou de solidariedade. É assegurado o direito de greve aos exercentes de funções públicas (art. 12), com ressalva quanto aos integrantes "de forças militares e militarizadas" (art. 13).

Nas atividades essenciais, o art. 8º da Lei n. 65 determina o funcionamento dos serviços mínimos, sendo possível, caso não haja voluntariedade dos grevistas para assegurar o atendimento mínimo à população, a requisição civil de trabalhadores, mediante Portaria, editada pelo Conselho de Ministros, na qual é indicada a duração do movimento, a autoridade responsável pela sua execução e o regime de trabalho. j) Uruguai No ordenamento jurídico uruguaio a greve é entendida como direito sindical, sendo que a Lei n. 13.720 delega ao Ministério do Trabalho a competência para disciplinar os serviços essenciais que deverão ser assegurados durante a greve. 4. A GREVE NA TEORIA DOS DIREITOS HUMANOS Situar a greve na dimensão dos direitos humanos requer uma investigação de fôlego, o que não é a nossa pretensão neste singelo ensaio. Mas é possível afirmar que a greve, a partir do momento em que passa a ter sede nas Constituições dos países ocidentais, tal como ocorre nos ordenamentos brasileiro, espanhol e português, passa a ser considerada um direito fundamental dos trabalhadores. Trata-se, pois, de um direito fundamental da pessoa humana que se insere na moldura das chamadas dimensões dos direitos humanos. Nesse sentido é o magistério de Julio Cesar do Prado Leite, para quem "A greve é um direito fundamental que se arrima na Declaração dos Direitos do Homem (...) Com efeito, o ato internacional em causa, de modo explícito, cuida de assegurar condições justas e favoráveis de trabalho. Para obtê-las ou confirmá-las todo trabalhador tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para a proteção de seus interesses. Não há greve sem sindicato. O sindicato tornar-se-ia uma mera associação corporativa assistencial se não dispuser do direito de fazer greve".(4)

Vale dizer, a greve constitui, a um só tempo, direito de primeira, de segunda e de terceira dimensão, na medida em que enquadra-se simultaneamente como: a) direito de liberdade ou de primeira dimensão, pois implica um non facere por parte do Estado, ou seja, um status negativus estatal que reconhece as liberdades públicas e o direito subjetivo de reunião entre pessoas para fins pacíficos; b) direito de igualdade, ou de segunda dimensão, porque é pelo exercício do direito de greve que os trabalhadores pressionam os respectivos tomadores de seus serviços, visando à melhoria de suas condições sociais e corrigindo, dessa forma, a desigualdade econômica produzida pela concentração de riquezas inerente ao regime capitalista, mormente numa economia globalizada. Tanto é assim que a Constituição brasileira de 1988 (art. 9º) considera a greve um direito social fundamental dos trabalhadores; c) direito de fraternidade ou de terceira dimensão, na medida em que a greve representa inequivocamente uma manifestação de solidariedade entre pessoas, o que reflete, em última análise, a ideologia da paz, do progresso, do desenvolvimento sustentado, da comunicação e da própria preservação da família humana. Além disso, a greve, por ser um direito coletivo social dos trabalhadores, pode ser tipificada como uma espécie de direito ou interesse metaindividual ou, na linguagem do Código de Defesa do Consumidor (art. 81, par. único, II), um direito ou interesse coletivo. Ora, se a greve tem por escopo básico a melhoria das condições sociais do homem trabalhador, implica a inferência de que ela constitui um direito fundamental do trabalhador enquanto pessoa humana.

Nesse sentido, parece-nos adequado afirmar que a greve constitui um instrumento democrático a serviço da cidadania, na medida em que seu objetivo maior consiste na reação pacífica e ordenada dos trabalhadores contra os atos que impliquem direta ou indiretamente desrespeito à dignidade da pessoa humana. E como se trata de direito humano fundamental, não pode haver distinção entre o trabalhador do setor privado e o do setor público, salvo quando o próprio ordenamento jurídico dispuser em contrário, tal como ocorre, no nosso sistema, com o servidor público militar (CF, art. 142, § 3º, IV). Frustração de Direito Assegurado por Lei Trabalhista Frustrar tem a significação de iludir, lograr, privar. Os meios executivos de tal ação são indicados: "mediante fraude ou violência". Fraude é o ardil, engodo, artifício que leva o enganado à aparência falsa da realidade. A violência a que a lei se refere é apenas a física, exercida contra pessoa; a ameaça, ainda que grave, não se inclui no tipo, Assim, é essencial à caracterização do delito o emprego de fraude ou de violência contra pessoa. O que o agente frustra, mediante fraude ou violência, é direito assegurado pela legislação do trabalho. Trata-se, pois, de norma penal em branco, porquanto os direitos que ela protege devem ser encontrados nas leis do trabalho (CLT e leis trabalhistas complementares). A propósito, assevera HUNGRIA: "A fraude tanto pode ser empregada pelo patrão contra operário e vice-versa, quanto por ambos, conluiados, para iludir o texto legal, devendo notar-se que o titular do direito assegurado por lei trabalhista não pode renunciá-lo quando correspondente a um dever imperativamente determinado pela mesma lei que é de ordem pública" (Comentários ao Código Penal, 1959, vol. VIII, pág. 49). Crime que se apura mediante ação penal pública incondicionada Caro Hetan,

Preliminarmente, é uma pena que você, que me pareceu sempre tão afeito à dialética jurídica, já firme, aprioristicamente, entendimento de não mudar jamais de posicionamento... De qualquer forma, a sua conclusão, "data maxima venia", não é seguida pelos doutrinadores, sejam os tradicionais ou modernos. A propósito disso, você leu as obras que citei? Ademais, é de se ver, caro Hetan, que os verbetes, em seu sentido léxico, às vezes (como é exatamente a hipótese que me vem à baila), dizem muito mais do que quer a razão teleológica das normas penais. Acresça-se que, ainda que você tivesse razão quanto ao sentido das palavras, pergunto: Onde ficaria o primado do princípio da especialidade? Essas são, humildemente, as minhas conclusões, que, entretanto, parece não poderem surtir qualquer efeito sobre seu pensar, haja

vista que você, a priori, já descartou a mínima possibilidade que fosse de mudar de opinião, não é mesmo? De qualquer forma, como já digo aos meus alunos, "o conhecimento aprofundado do Direito Penal pode operar verdadeiras 'devassas' no modo de pensar de cada um de nós", donde porque tenho esperança de que meu tão respeitável colega possa (quem sabe um dia?) refletir melhormente sobre seu posicionamento... Aguardo seus relevantes apontamentos. Um grande abraço, e que a paz esteja com você!

Guilherme Seus ensinamentos sobre a interpretação do art. 209 do CP são crisólitos, parabéns. Vamos agora nos escorar no artigo 210 do CP. Segundo o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Urna - "recipiente é destinado a encerrar alguma coisa". Urna Funerária é o mesmo que caixão, Segundo o Aurélio : " Verbete: caixão Caixa comprida, geralmente de tampa abaulada, para depositar o corpo dos mortos e conduzi-los à sepultura; caixão de defunto, féretro, ataúde, esquife, urna funerária". O art. 210 do CP não prevê em seu tipo a necessidade de cerimônia fala tão somente em violar Violar significa segundo o bom Aurélio: "Verbete: violar 1. Ofender com violência. 2. Infringir, transgredir: 3. Estuprar, violentar. 4. Profanar, poluir: 5. Devassar ou divulgar abusivamente; revelar:" Deseja que eu conclua que o agente disparando sua arma sobre o corpo, que naturalmente no velório está num caixão, com sua conduta tomada de dolo diretíssimo, está ação nefanda não consiste numa violação da urna funerária, supondo está somente quando em curso cerimônia columbária, onde nem de longe o tipo da art. 210 prevê tal condicionante, ou melhor, não impõe qualquer outra condicionante?

Desculpe caro colega, mas acho que nem Sólon, soerguido de seu cafofo, faria mudar o meu a entendimento. Tenho que o enquadramento se dá no art. 210 do CP. Cordialmente Nobre Colega Hetan,

Fico deveras lisonjeado com a sua associação ideológica à minha opinião! Creio, no entanto, que, na hipótese por você ventilada, não cabe a incidência do art. 210 do Código Penal ("violação de sepultura"), mas a do art. 209 do mesmo estatuto, senão vejamos, meu caro colega. O art. 210 do CP prevê, in litteris, o seguinte: "Art. 210. Violar ou profanar sepultura ou urna funerária: Pena -- reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa." Tem-se, pois, como elementar, a existência de sepultura ou de urna funerária, conforme o caso concreto. Acho que, quanto a isso, não restam dúvidas. "Sepultura" é o local onde se acha imunado o cadáver (ou partes suas), incluindo-se nesse conceito os sepulcros, mausoléus, tumbas, túmulos, covas e lápides. "Urna funerária", em seu turno, são os ossários, caixas, cofres e vasos com os restos mortais, e o columbário. Acredito que, como o agente atirou em sua vítima durante um velório, não sendo caso de violação ou profanação de sepultura ou de urna funerária, o caso deve ser enquadrado no art. 209 do CP, que assim dispõe, ad litteram: "Art. 209. Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária: Pena -- detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa. Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correpondente à violência." Elementar "sine qua non" à existência do crime é, alternativamente, o enterro ou a cerimônia funerária, sobre os quais deve recair a conduta delituosa. "Enterro", bem como o ato em si (ação de colocar um corpo em seu túmulo ou cova), é a trasladação do corpo, sua remoção ou transporte ao lugar onde deve ser enterrado, havendo ou não acompanhamento ou cotejo. Já "cerimônia funerária" é o ato pelo qual

se presta homenagem ao falecido, como o velório, o amortalhamento, a câmara ardente e a cremação. Ao contrário do que se exije presente nos arts. 211 e 212 do CP, não é preciso que haja, na hipótese, um cadáver, mas apenas um enterro ou uma cerimônia fúnebre. Donde porque, meu digno Hetan, como o agente, na hipótese de que falei em meu primeiro comentário, invadiu um velório (e não, como deixei bem evidenciado, dirigiu-se a uma sepultura ou urna funerária), o delito é o do art. 209 do CP, e não 210. Como houve emprego de violência, aparece inconteste a figura do parágrafo único do art. 209 (repare-se que, ao contrário do que pleiteam outros tipos penais, a violência aqui tratada não precisa ser dirigida necessariamente contra pessoa, pois quanto a isso o artigo silencia). Ora, a conduta do agente deu-se durante um velório, e este é espécie do gênero "cerimônia funerária", não se confundindo, nem de longe, com a urna funerária ou com a sepultura. Se o corpo estivesse sendo levado, transportado, ao túmulo/à cova, haveria enterro, e não cerimônia funerária, mas não se libertaria, ainda assim, a conduta do agente da abrangência do art. 209 do CP. Ao que me parece, amigo Hetan, apenas a partir do momento em que o corpo se encontrasse em um sepulcro, mausoléu, tumba, túmulo, cova, columbário, ossário, caixa, cofre ou vaso com os seus restos mortais, e nunca antes (velório, simplesmente), é que, então sim, apareceria a figura do art. 210 do CP. A propósito dos meus argumentos, leia as obras de Damásio de Jesus (vol. 3), Mirabete (vol. 2), Magalhães Noronha (vol. 3), Nelson Hungria (vol. VII), Manzini e Maggiore. O que acham, meu respeitável colega Hetan e demais debatedores?

Guilherme Tecnicamente é perfeita a sua colocação. A boa lógica jurídica ensina que todos os elementos do tipo devem estar presentes no ilícito penal, não podendo esquecer do resultado alcançado, a sombra da teoria finalista aplicável ao nosso CP, Art. 14, I. Vilipendiar Cadáver, Cadáver é pessoa sem vida, e portanto, caso a pessoa encontra-se viva, a ação é atípica, . Matar, mas devido as circunstâncias, que é o caso, não se poderia supor que a pessoa estivesse viva, não é homicídio, erro de tipo invencível.

É complicado para um operador do Direito deixar uma ação execrável como está sair impune, mesmo porque houve um bem juridicamente tutelado pelo direito penal maculado, como foi esclarecido. O quê vc acha, juntamente com os demais listeiros, que, à propósito, "venia permissa", muito nos alegraria suscitar suas opiniões nesta sede, enquadrar a conduta do agente no art. 210 - "vilipêndio de urna funerária", que não se diferencia quanto a punibilidade do 212? Cordialmente Caro Colega Hetan,

É simplesmente impossível que se firme entendimento no sentido de que houve crime de vilipêndio a cadáver "mesmo que não haja cadáver" (palavras suas). Tudo é uma questão de tipicidade, e para haver tipicidade é necessário que o fato sub examen mostre-se com todas as suas elementares, sem qualquer exceção, perfectibilizadas, para, então sim, incidir o tipo penal incriminador correspondente. Assim, quando no art. 121 do CP diz-se "alguém", significa isso dizer que a vítima tem de ser um ser humano de vida extra-uterina. Como "cadáver" é elementar do tipo penal do art. 212 do CP (e, repare-se, elementar objetiva, não havendo, portanto, o que se discutir a respeito da existência de algo tão fático), em não havendo cadáver, e sim pessoa viva, como foi exatamente esta hipótese de que tratei, não se pode falar em vilipêndio a algo que não existe, não é mesmo? Vilipendiar cadáver é, sim, crime vago, e nem sequer ousei dizer o contrário, ou mesmo afirmar que o cadáver é o sujeito passivo dos crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos. No entanto, para se vilipendiar um cadáver faz-se prementemente mister, como me parece cristalino e insofismável, que haja um cadáver, i. e., um corpo humano desprovido de vida. Não é preciso você ir muito longe, atrás de jurisprudência, para encontrar o respaldo de meus argumentos, nobre colega. Basta, tãosomente, você atentar que a unanimidade dos doutrinadores (inclusive Mirabete, quem você citou) afirma categoricamente que uma das elementares do tipo do art. 212 do CP é a existência de um "cadáver". E, veja-se bem: nenhum deles (pode conferir!) assevera uma só e única hipótese de crime de vilipêndio a cadáver sem que haja um cadáver...

No mais, fico muito grato com a sua atenção ao problema que suscitei, e aguardo singelamente comentários seus e dos demais debatedores. Um abraço cordial a todos, Caro Guilerme Não há reparo a fazer, sendo perfeita e pacífica a dedução dos fatos quando da conclusão de Erro de tipo, afastando a hipótese de homicídio. Contudo, entendo que, segundo ensinamento de Mirabette o Crime de Vilipêndio de Cadáver é crime vago. Busca defender uma comunidade sem personalidade jurídica, parentes e amigos do finado, estes são os sujeitos passivos, não ao cadáver. Assim sendo, como o bem penal protegido foi maculdo, entendo que houve vilipêndio, mesmo não havendo cadáver. Não encontrei jurisprudências que firmassem este entendimento, sob censura. Necessário portanto o enquadramento por crime de vilipêndio - art.212 CP. Cordialmente

Nobres Colegas,

Gostaria de que observassem com atenção esse problema que, cesta vez, veio-me a questionamento: "O agente, com dolo de vilipendiar cadaver, encaminha-se ao velório e desfere três tiros no corpo. Ocorre que, sem o autor dos disparos ter ciência, o suposto corpo não estava morto, pois a vítima sofria de catalepsia, e, no momento dos disparos, estava viva, vindo a falecer em decorrência dos tiros. Como enquadrar este ilícito cometido pelo agente?" Opinei a respeito, dando a seguinte resposta: No crime de vilipêndio a cadáver, não basta o dolo de vilipendiar cadáver ou suas cinzas (elemento subjetivo implícito do tipo), pois mister se fará que, objetivamente, tenha havido um cadáver ou suas cinzas. "Cadáver" é "pessoa morta", sem vida, e, como elementar objetiva que é, não

deixa de ser cadáver mesmo quando o agente pensa se tratar de pessoa viva e, vice-versa, não deixa de ser pessoa humana viva aquela que o agente pensa estar morta. As elementares objetivas independem, pois, para subsistirem, do elemento subjetivo encontrado no agente. Veja-se bem: estou afirmando que as elementares objetivas não deixam de subsistir, e não que deixa de subsistir um crime, repare-se bem. Ora, como se trata, portanto, de pessoa humana viva, afastada, de plano, fica a hipótese de crime definido no art. 212 do Código Penal (CP). Não houve delito de vilipêndio a cadáver, pois. Como o agente pensou tratar-se de cadáver, agiu incidindo em erro. Este erro é de tipo, e não de proibição, pois diz respeito não à falsa suposição de ilicitude, mas de errônea percepção quanto à realidade de fato. O erro de tipo é, ademais, essencial, visto que o agente não errou quanto a um dado acidental do fato, mas mesmo sobre a presença de uma elementar objetiva do delito de homicídio: "alguém" (pessoa humana viva). Vimos que o caso é de erro de tipo essencial. Basta, agora, fazer a seguinte indagação: esse erro é vencível ou invencível? Se vencível ou inescusável, exclui-se o dolo da conduta do agente, respondendo ele a título de homicídio culposo. Se invencível ou escusável, excluem-se dolo e culpa, não passando o agente a responder por qualquer crime, até porque um delito ou é doloso, ou é culposo, ou preterdoloso. A vítima sofria de catalepsia. Em geral (repiso: em geral, mas não necessariamente e sempre), a pessoa que sofre de catalepsia é dada como morta até mesmo pelo "homo medius", tendo em mira que tal anormalidade dos sistemas vitais da pessoa tornam-na, mesmo frente a médicos especialistas, morta (salvo, é claro, quando se conclui pelo estabelecimento da atividade cerebral, mas, anátomopatognomonicamente, a "morte" é inegável). Não bastasse isso, o corpo se encontrava em seu próprio velório, o que mais reforça a tese de que o "homo medius" também teria, no lugar do agente, incidido no mesmo erro. Em sendo assim, pugno pelo erro de tipo essencial escusável (inevitável, invencível, inculpável) do agente, afastando-se, mutatis mutandis, o delito de homicídio, aplicando-se a regra insculpida no art. 20, caput, do CP.

Assim é que, parece-me, em princípio, que o caso ora ventilado levará a crer pela impunidade do agente, por ausência absoluta de tipicidade. Qual a opinião dos colegas deste fórum? Comércio da morte Morrer faz parte de viver. A última parte. Biologicamente, nada há após a morte. Ou não deveria haver. Infelizmente, não é o que se descobriu estar ocorrendo em Porto Alegre. O descanso eterno está sendo negado aos sepultados no Campo Santo da Santa Casa de Misericórdia, na Capital. Ossos e dentes humanos de quem, em seu último momento, só teve direito a um palmo de terra do local são negociados à luz do dia. Por R$ 80, dois coveiros do cemitério se propõem a desrespeitar a última etapa da vida. A reportagem do Diário Gaúcho foi ao local e flagrou a prática ilegal, comprando parte de uma ossada. Foi a prova de que, no mundo dos vivos, até a consideração pelos mortos parece estar acabando. Conhecido por enterrar corpos de indigentes e pessoas sem condições de pagar por sepultamento, o Campo Santo, no Bairro Medianeira, na Capital, está localizado nos fundos do cemitério da Santa Casa e oferece as sepulturas por três anos. Depois deste período, os túmulos são abertos e os restos mortais vão para uma vala comum. É no momento desta troca que os dois funcionários retiram os fragmentos. Mais tarde, os restos são repassados, conforme disseram os coveiros, a estudantes universitários, principalmente dos cursos de Medicina e de Odontologia - um esqueleto sintético custa cerca de R$ 1,6 mil. Os dois coveiros confirmam a prática, bastando uma rápida negociação antes da entrega das ossadas. Investigando uma denúncia, dois repórteres do Diário Gaúcho, passando-se por estudantes, negociaram a compra dos ossos com um funcionário identificado como Sandro - , na tarde de quinta-feira passada. Venda aparenta ser comum O coveiro, apesar de demonstrar temor pela situação, afirmou que é comum vender dentes ou mandíbulas completas por até R$ 30. - A gente costuma conseguir dentes, porque é mais fácil de tirar - explicou.

Em conversa rápida, falando baixo, Sandro se comprometeu a conseguir o material no próximo dia útil: segunda-feira. No dia 10, à tarde, a dupla de repórteres retornou ao Campo Santo. Depois de esperarem cerca de dez minutos - observados pelos coveiros, um deles encostado em um muro e o outro dentro da casa da administração do Campo Santo - , a compra foi concluída. Não sem que outra visita fosse marcada, dando a entender que o comércio estava aberto: "Qualquer dia da semana" - Qual é o melhor dia se quisermos voltar - questionou um dos repórteres? - Qualquer dia da semana - respondeu o coveiro. - E o teu colega? A gente acabou não perguntando o nome. - É Isaac. Falei pra ele - concluiu Sandro. **Santa Casa promete investigar o caso Informado sobre a venda de ossos no Campo Santo, o administrador do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Roque Inhaquites, ficou surpreso. Não deu os nomes completos dos funcionários, mas disse que Sandro trabalha no local há cinco anos e Isaac, há três. A administração da Santa Casa informou que abrirá sindicância administrativa para apurar eventuais responsabilidades sobre as denúncias e, após apurar os fatos, divulgará que medidas legais tomará. **Ossada entregue à polícia No final da tarde de ontem, orientado pelo subprocurador-geral de Justiça, Eduardo Veiga, o editor-chefe do jornal, Alexandre Bach, procurou a titular da 2ª Delegacia da Polícia Civil, Adriana Regina da Costa. A delegacia é a responsável pela área do cemitério. Foi feito um registro de ocorrência e um laudo de apreensão dos ossos, que ficam, agora, sob responsabilidade da Polícia Civil. A delegada considerou que houve violação de sepultura e abriu inquérito policial para investigar o fato. Os dois coveiros da Santa Casa serão chamados para depor ainda hoje.

O crime

O que é violação de sepultura

- É crime contra o respeito aos mortos (artigo 210 do Código Penal). - Pena prevista em lei: prisão, de um a três anos, além de multa. Fonte: Código Penal Brasileiro A negociação - Quinta-feira, dia 6, 15h30min REPÓRTER 1 - Viemos por recomendação. SANDRO - Mas no que estão pensando? REPÓRTER 1 - Um crânio, basicamente. Queria um crânio completo. Mas se tiveres só a mandíbula, já me serve. SANDRO - Posso arrumar, mas só segunda. REPÓRTER 2 - Mas na segunda tem mesmo, se a gente vier? É tranqüilo? SANDRO - Tranqüilo não é, né? (ele ri). REPÓRTER 1 - Recomenda alguma coisa para quando a gente voltar? Saco plástico? SANDRO - (...) Uma mochila seria o ideal. E no caso, entraria por aqui e subiria esta rua (aponta a entrada dos fundos do cemitério). SANDRO - Semana passada, veio um pessoal. Só que vieram de branco e quase não deu. Bah! Já deu muito furo. Então, um crânio? REPÓRTER 2 - Dentes e, se tiver, um fêmur. SANDRO - Este tipo de coisa não é o normal. A gente costuma conseguir dentes, é mais fácil de tirar (...), podia fazer por R$ 20, R$ 10 (...). REPÓRTER 1 - Mais de R$ 100 tu achas que não, né? SANDRO - Faço por R$ 80. Tem que cuidar porque qualquer coisa que dá, vai me prejudicar... E vou ter que catar latinha. A compra - Segunda-feira, 15h30min ISAAC - Vamos fazer um enterro agora. Se quiserem esperar perto das taquareiras, é melhor (desconfiado, fala com a cabeça baixa). REPÓRTER 1 - Sandro te falou o que conseguiu? ISAAC - Tá ali. Separou tudo. REPÓRTER 1 - Chegou a ver o material? ISAAC - É, abrimos hoje. REPÓRTER 1 - Se precisar mais (...) como faz? Abrem (as covas) todos os dias? ISAAC - Todos os dias. Isaac se afasta. Minutos depois, Sandro se aproxima, com sorriso discreto. SANDRO - (...) Deixei ali em cima (treme, apontando para onde estão os ossos). Podem olhar para ver se é o que vocês querem. REPÓRTER 1 - O que tu conseguiu? SANDRO - (Pensativo) Vocês olham lá e vê se interessa. REPÓRTER 2 - Se a gente precisasse de outras peças, tipo pélvis (...). SANDRO - (Põe a mão no rosto) A gente vê. É que este negócio de ossos, assim, é complicado. REPÓRTER 1 - Ficamos com medo de tu achares que é para algum trabalho (macumba). SANDRO - Não. Problema é se vem algum repórter (...), pode chamar atenção, né? REPÓRTER 2 - (...) Quanto vai dar tudo? R$ 70, né?

SANDRO - R$ 80. Se quiser, deixa embaixo dos tijolos (o dinheiro). Repórter 1 volta e pergunta por quanto tempo os ossos permanecem enterrados. SANDRO - (...) Ficam no chão e têm três anos.

Comércio da morte Morrer faz parte de viver. A última parte. Biologicamente, nada há após a morte. Ou não deveria haver. Infelizmente, não é o que se descobriu estar ocorrendo em Porto Alegre. O descanso eterno está sendo negado aos sepultados no Campo Santo da Santa Casa de Misericórdia, na Capital. Ossos e dentes humanos de quem, em seu último momento, só teve direito a um palmo de terra do local são negociados à luz do dia. Por R$ 80, dois coveiros do cemitério se propõem a desrespeitar a última etapa da vida. A reportagem do Diário Gaúcho foi ao local e flagrou a prática ilegal, comprando parte de uma ossada. Foi a prova de que, no mundo dos vivos, até a consideração pelos mortos parece estar acabando. Conhecido por enterrar corpos de indigentes e pessoas sem condições de pagar por sepultamento, o Campo Santo, no Bairro Medianeira, na Capital, está localizado nos fundos do cemitério da Santa Casa e oferece as sepulturas por três anos. Depois deste período, os túmulos são abertos e os restos mortais vão para uma vala comum. É no momento desta troca que os dois funcionários retiram os fragmentos. Mais tarde, os restos são repassados, conforme disseram os coveiros, a estudantes universitários, principalmente dos cursos de Medicina e de Odontologia - um esqueleto sintético custa cerca de R$ 1,6 mil. Os dois coveiros confirmam a prática, bastando uma rápida negociação antes da entrega das ossadas. Investigando uma denúncia, dois repórteres do Diário Gaúcho, passando-se por estudantes, negociaram a compra dos ossos com um funcionário - identificado como Sandro - , na tarde de quinta-feira passada. Venda aparenta ser comum O coveiro, apesar de demonstrar temor pela situação, afirmou que é comum vender dentes ou mandíbulas completas por até R$ 30. - A gente costuma conseguir dentes, porque é mais fácil de tirar - explicou. Em conversa rápida, falando baixo, Sandro se comprometeu a conseguir o material no próximo dia útil: segunda-feira. No dia 10, à tarde, a dupla de repórteres retornou ao Campo Santo. Depois de esperarem cerca de dez minutos - observados pelos coveiros, um deles

encostado em um muro e o outro dentro da casa da administração do Campo Santo - , a compra foi concluída. Não sem que outra visita fosse marcada, dando a entender que o comércio estava aberto: "Qualquer dia da semana" - Qual é o melhor dia se quisermos voltar - questionou um dos repórteres? - Qualquer dia da semana - respondeu o coveiro. - E o teu colega? A gente acabou não perguntando o nome. - É Isaac. Falei pra ele - concluiu Sandro. **Santa Casa promete investigar o caso Informado sobre a venda de ossos no Campo Santo, o administrador do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Roque Inhaquites, ficou surpreso. Não deu os nomes completos dos funcionários, mas disse que Sandro trabalha no local há cinco anos e Isaac, há três. A administração da Santa Casa informou que abrirá sindicância administrativa para apurar eventuais responsabilidades sobre as denúncias e, após apurar os fatos, divulgará que medidas legais tomará. **Ossada entregue à polícia No final da tarde de ontem, orientado pelo subprocurador-geral de Justiça, Eduardo Veiga, o editor-chefe do jornal, Alexandre Bach, procurou a titular da 2ª Delegacia da Polícia Civil, Adriana Regina da Costa. A delegacia é a responsável pela área do cemitério. Foi feito um registro de ocorrência e um laudo de apreensão dos ossos, que ficam, agora, sob responsabilidade da Polícia Civil. A delegada considerou que houve violação de sepultura e abriu inquérito policial para investigar o fato. Os dois coveiros da Santa Casa serão chamados para depor ainda hoje.

destruição 1. INTRODUÇÃO Tem por meta o presente artigo a análise dos aspectos gerais do delito de Destruição, subtração ou ocultação de cadáver, previsto no Art. 211 do Código Penal, bem como dos dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências; realizando, afinal, uma comparação entre os referidos diplomas, tendo em vista respostas à pergunta inicialmente formulada (e que constitui o título deste texto) e nossa opinião sobre ela, sempre baseando-se na mais abalizada doutrina. Pelo exposto, vê-se logo que não é tema de exposição a questão da constitucionalidade ou não de referida lei quanto à liberdade de disposição de seu próprio corpo. Discute a doutrina nacional – discussão que perdeu a atualidade com as modificações introduzidas

pela Lei nº 10.211/2001 – quanto à legitimidade da presunção de autorização para retirada de órgãos e tecidos, afirmando uma corrente que esta afrontaria a liberdade do ser humano, constitucionalmente consagrada e outros, de opinião contrária, que a livre disposição do próprio corpo é devidamente abarcada pelo texto legislativo, já que as pessoas não desejosas de doarem seus restos mortais poderão isto expressamente consignar em seus documentos de identificação. Com o devido respeito aos Doutores que tratam do tema, tal discussão, hoje, não traz qualquer utilidade prática, pois as novas redações determinadas pela Lei nº 10.211/2001 acabaram com tal presunção, o que pode ser conferido com a análise do "novo" Art. 4º, da lei nº 9.434/97: Art. 4º. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá de autorização do cônjuge, ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

Pois bem, após esse breve apanhado, passemos à discussão do real tema de estudo. 2. ASPECTOS GERAIS SOBRE O ART. 211 DO CÓDIGO PENAL Proíbe o Art. 211, CP, a destruição, subtração ou ocultação de cadáver ou parte dele, cominando a esta conduta típica a pena privativa de liberdade na modalidade de reclusão, de 1 (um) a 3 (anos), cumulada com a multa. O bem jurídico aqui tutelado é o sentimento de respeito aos mortos, principalmente por parte de seus familiares e amigos. Concorda-se com o que diz Bitencourt (2003, p. 514): Na verdade, a definição de quem pode ser sujeito passivo desse crime deve estar intimamente vinculada ao bem jurídico tutelado, e, na medida em que se admite que esse bem jurídico é o sentimento dos parentes e amigos do morto e não o próprio de cujus, sujeitos passivos diretos só podem ser os parentes e amigos. Sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, tratando-se, portanto, de crime comum, por não exigir qualquer qualidade especial do agente. As condutas incriminadas consistem em destruir (destroçar, fazer desaparecer, isto é, levá-lo a deixar de ser considerado como tal); subtrair (retirar do local em que se encontra sob vigilância de alguém) ou ocultar (esconder temporariamente, somente podendo ocorrer antes do sepultamento) cadáver ou parte dele. Cadáver, elemento normativo do tipo, é o corpo do ser humano sem vida, conquanto preserve tal aparência. São considerados cadáveres o natimorto e o feto após 6 (seis) meses de gestação; não o sendo, porém, o esqueleto, a múmia, nem as cinzas do de cujus. Já ao falar em "parte dele", refere-se a lei, obrigatoriamente, à parte destacada do corpo humano sem vida, não caracterizando o delito a prática de qualquer das figuras típicas em relação a partes do corpo – com vida – amputadas. Quanto ao elemento subjetivo, é constituído pelo dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele, não sendo exigido o elemento subjetivo especial do tipo. Adiante, quando da comparação dos dois diplomas, falaremos mais sobre este elemento, bem como do dolo nos crimes tipificados na Lei nº 9.434/97. 3. ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI Nº 9.434/97 Diz a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 199, § 4º:

A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

Portanto, percebe-se que já era anseio do povo a edição de diploma legislativo que viesse a dispor sobre remoção e transplante de órgãos, de forma a tentar diminuir ou até mesmo cessar o sofrimento de pessoas em estágio de frágil saúde, que apenas poderiam recuperar-se com a "implantação" de novo órgão sadio em lugar do originário, em detrimento de "pessoas" que serviriam, apenas, de alimento para os vermes subterrâneos. Aplicação clara, de conseguinte, do Princípio da Ponderação de Interesses, sobrelevando-se o interesse público na saúde e manutenção de várias vidas humanas, em detrimento do sentimento privado dos próximos ao falecido. Obedecendo à disposição constitucional, foram editadas leis várias tratando do assunto, sendo que hodiernamente vigora a Lei º 9.434/97, com as alterações introduzidas pela de número 10.211/2001. Dispõe este diploma legislativo, em seu Art. 2º, que os procedimentos tendentes à remoção de órgãos para transplantes só poderão ser realizados por estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, e por equipes médico-cirurgicas de remoção e transplante autorizadas pelo órgão de gestão nacional do SUS, devendo antecedê-los os devidos testes para diagnóstico de infecções ou infestações. Questão importante e que não deve ser esquecida é a de que estas retiradas só serão possíveis após a regular declaração de morte encefálica do doador, sendo admitida a presença do médico de confiança da família deste no ato da comprovação do falecimento. E o anteriormente mencionado, de que o procedimento referido depende de expressa autorização dos parentes próximos, acabando-se com a atualidade da discussão doutrinária supra comentada. Caso o doador seja incapaz, é possível a remoção post mortem do material a ser doado, com a ressalva de que deverá ser expressamente permitida por ambos os pais ou responsáveis, sendo terminantemente proibida caso se trate de pessoas não identificadas. Mas não é só sobre o doador que dispõe a lei sob análise, consignando esta em seu texto várias normas a respeito do receptor do material orgânico objeto de transplante. Diz o Art. 10 da Lei nº 9.434/97 que este só se fará com o consentimento expresso do receptor e, sendo este incapaz ou com condições de saúde que impeçam ou comprometam sua manifestação válida de vontade, o consentimento referido neste artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis (Art. 10, § 1º). 3.1 CONDUTAS INCRIMINADAS PELA LEI Nº 9.434/97 Após a análise dos aspectos gerais ditados pela Lei de Transplante de Órgãos, deve-se dar uma atenção aos delitos previstos nessa norma. Porém, tendo em vista a finalidade deste trabalho, só serão comentados os crimes que possam ter alguma correlação com o Art. 211, CP. Comece-se por dizer que, tendo em vista o Princípio da Intervenção Mínima, "o Direito Penal só deve atuar na defesa de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa" (PRADO, 2001, p. 84). Já o Princípio da Fragmentariedade tem como significado a não absolutização da proteção atribuída à lei penal, ou seja, "apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização" (PRADO, 2001, p. 84).

Traz-se estas explicações sobre os princípios gerais do Direito Penal para defesa do ponto de vista da proporcionalidade das sanções consignadas. Explica-se: não se quer dizer com isto que se tratam de reprimendas pouco severas; muito pelo contrário. A maioria das penas consignadas é privativa de liberdade na modalidade de reclusão, contendo limites máximo e mínimo abstratamente definidos em margens elevadas. Porém, tendo em vista os bens jurídicos objeto de proteção, que são, sem sombra de dúvida, de elevado valor, e observando-se os princípios da moderna ciência criminal, conclui-se que as penas instituídas são absolutamente proporcionais à gravidade das lesões praticadas, que têm como objeto mediato a vida e saúde humanas. Pois bem, passemos a comentar as figuras típicas. Reza o Art. 14: Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. Tratando tal norma do ponto central deste texto, deixaremos para analisá-la apenas no item seguinte, que trata da comparação entre os respectivos diplomas legais. Art. 14, § 1º: Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, de 100 (cem) a 150 (cento e cinqüenta) dias-multa. Tem-se, aqui, uma qualificadora para o crime previsto no Caput do Art. 14, que leva em conta um maior desvalor da ação, atuando na medida da culpabilidade. Art. 15: Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, de 200 (duzentos) a 360 (trezentos e sessenta) dias multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. A finalidade é coibir o tráfico, seja nacional ou internacional, de órgãos, atividade bastante lucrativa e que possui infra-estrutura de elevada sofisticação, contando com representantes de localidades várias e que incluem até mesmo médicos. Quanto à compra efetuada por parentes de pessoas em estado terminal e que só poderão salvar-se com o devido transplante, apesar de continuar a ser uma conduta reprovável, não se pode deixar de levar em conta os motivos que determinaram tal ação quando da fixação da pena base pelos critérios do Art. 59, CP. Esta previsão legal é aplicada em relação ao presente diploma não codificado por expressa disposição do Art. 12, CP: As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso. Art. 19: Deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares ou interessados: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. O objeto jurídico do presente dispositivo é o sentimento de respeito aos mortos, seja través de seu aspecto físico, pois em virtude dos procedimentos cirúrgicos sua aparência pode vir a ficar extremamente chocante; seja por seus familiares, que objetivam ter o cadáver de entes queridos próximos de si para as últimas despedidas e realização das cerimônias religiosas competentes, o que revela a proximidade entre a tipicidade objetiva aqui enfocada e a dos crimes previstos no Capítulo II, do Título V, da Parte Especial do Código Penal. 4. POSSÍVEIS CORRELAÇÕES ENTRE O ART. 211 DO CÓDIGO PENAL E O CAPUT DO ART. 14 DA LEI Nº 9.434/97. COMPARAÇÕES Chega-se, afinal, ao ponto culminante do texto, onde, após todas as observações e comentários tecidos, tentar-se-á correlacionar os elementos objetivos e subjetivos tanto

da figura típica prevista no Art. 211, CP, quanto do Caput do Art. 14 da Lei supra mencionada, com vistas à resposta inicialmente formulada sobre a possibilidade de configuração do crime previsto na Parte Especial do Estatuto Criminal através da desobediência aos preceitos da lei especial sob análise. Não será preciso, neste ponto, comentar-se sobre os aspectos do Art. 211, CP, pois tal já fora realizado no item 2 supra, ao qual se remete o leitor. Passa-se, portanto, ao estudo detalhado do Art. 14, Caput, que prescreve: Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. Sob o ponto de vista objetivo, pode-se facilmente verificar que são idênticas as condutas previstas nos dois dispositivos. Se, por exemplo, João vai até o local onde está sendo "guardado" o corpo de José e, aí chegando, retira todos os órgãos internos deste cadáver, a simples análise do que fora narrado não é suficiente para a definição concreta de qual delito foi cometido. Assim, deve-se ir em direção ao animus do agente, seu elemento subjetivo, a força de vontade que o impulsiona à prática desta ação. Pois bem. Caso a vontade livre e consciente de João (atendidos todos os elementos da culpabilidade: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa) seja dirigida ao fim de vingança contra a família do morto, sendo sua ação direcionada à destruição do cadáver - sua desconfiguração humana - como forma de chocar seus próximos, então teremos por configurado o delito do Art. 211, CP. Porém, se com a mesma conduta comissiva tal criminoso visa comercializar os órgãos ou dar qualquer outra destinação correlacionada com o tema regulado por esta lei especial, como, por exemplo, transplante para favorecer um parente próximo, sua atitude exteriorizada estará subsumida à norma do Art. 14 da lei nº 9.434/97. Quando fala em desacordo com as disposições desta Lei, quer referir-se ao fim comercial, à falta de autorização dos familiares do de cujus, ao consentimento do receptor ou à não identificação do cadáver. É o desrespeito às referidas exigências que tem o condão de configurar este crime, podendo-se considerar a finalidade comercial (intuito de lucro) como elemento subjetivo especial do tipo. Não se queira aqui dizer que as prescrições ditadas pela lei não codificada, ao serem violadas, por si só fazem a ação exterior configurar-se diversa daquela do crime de Destruição, subtração ou ocultação de cadáver; longe disso. Apesar de tais mandados terem cunho objetivo, a ação continua a ser idêntica em ambas as hipóteses. O que vem a diferenciá-las , como dito anteriormente, vem a ser o dolo, que no caso do Art. 14 da Lei de Transplante de Órgãos abarca o necessário conhecimento do agente acerca da existência destes mandados e a vontade livre de não acatá-los. CONCLUSÃO Diante de tudo o que fora exposto, tem-se por plenamente impossível a configuração do crime inscrito no tipo do Art. 211, CP, através da não observância dos requisitos exigidos pela Lei nº 9.434/97 para a realização dos procedimentos cirúrgicos tendentes à remoção de órgãos. Apesar de ter este artigo a finalidade de responder à pergunta inicialmente feita, para os que possuem conhecimento suficiente sobre a Teoria Geral do Delito, a conclusão é lógica e de fácil constatação, o que, de per se, não retira o seu valor. Como dito, tal impossibilidade absoluta tem por base o elemento subjetivo do tipo (dolo), onde condutas fisicamente iguais configuram delitos diferentes tendo em vista

unicamente o fim visado pelo agente (1). Querer afirmar o contrário é pôr abaixo toda a evolução do Direito Penal no que tange ao elemento volitivo integrante da descrição típica. NOTAS (1) Para maiores elucidações, pode-se tecer o seguinte exemplo: A, armado com um revólver calibre 38, efetua um disparo em direção a B, causando-lhe a morte. Só se saberá qual o delito perpetrado, com a análise do dolo de A: se ele tem a intenção de matar, configurado estará o delito do Art. 121, CP; se ele apenas tem a intenção de ferir, poderá subsistir o delito de Lesões Corporais seguidas de Morte; se há intenção de assegurar a consumação do delito de Roubo, poderá ser configurado o Latrocínio (Art. 157, § 3º, segunda parte, CP). Podendo esta conduta, ainda, não ser criminosa, caso se trate de alguma causa justificante (ex.: Legítima Defesa - Art. 25, CP).

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