O Salvador Estava exausto. A noite já tinha caído, e há horas corria de um perigo que não conseguia ver. Mas sabia que se parasse para descansar, não sobreviveria para continuar correndo. Apenas continuava. Rua após rua, a paisagem mudava de casas, depois lojas, vendo coisas que nunca tinha reparado antes. Talvez por sua vida estar passando diante dos olhos. Mas não havia tempo para pensar, apenas devia continuar a correr. Aquilo estava chegando mais perto. O cansaço finalmente vencia sua vontade, e o implacável perseguidor vinha sempre com a mesma velocidade. Resolveu então parar. Não havia escapatória. Se ele tivesse que ser pego, iria brigar ao menos. Parou na frente de uma casa abandonada, entrou sem pensar duas vezes, e agarrou qualquer pedaço de pau que estivesse disponível. Mas não ouvia mais passos. Gabriel... Gabriel... Quantas vezes sua mãe lhe disse para não enfiar o nariz onde não é chamado? – uma voz rouca vinha do andar de cima, e descendo. O que você quer de mim? – a voz falhou ao sair da garganta ofegante. Tudo... Seu coração, sua vida, sua alma... E antes que pudesse pensar, de olhos fechados, girou o bastão improvisado com toda força que sua exaustão permitia, e sentiu acertar alguma coisa. Algo mais sólido que aquela casa velha, e sólido demais para ser humano. Abriu os olhos e lá estava, o perseguidor, com várias costelas aparentes e farpas de madeira presas aqui e ali em seu tórax nu. Vocês humanos sempre me surpreendem – disse enquanto com as próprias mãos arrumava os ossos no lugar. O que é você! – e com o espanto, deixou cair o toco de madeira que ainda segurava. Lembra das histórias que sua avó contava? São todas verdadeiras... Não queria ficar ali nem mais um minuto, e logo suas pernas o guiavam para fora. Para correr outra vez. Mas não conseguiu dar mais do que três passos. Sentiu como se estivesse sendo empurrado por quatro homens, e caiu no chão. Indefeso. Resolveu olhar seu perseguidor. Desejou não ter feito isso, pois o que viu não era com sua avó tinha lhe contado. Um homem, branco demais, e liso demais, como uma estátua. Suas mãos eram como garras, agudas e vermelhas, e seus olhos brilhavam com um fogo sobrenatural. Os cabelos eram cor de ouro, e se mexiam como se estivesse vivo. Vestia apenas uma caça em trapos. Agora venha, não quero mais ficar correndo atrás de crianças... – disse enquanto agarrava-o pelos cabelos e o arrastava para fora. Gemia com um medo irracional. Não conseguia se mexer, e os pensamentos não traziam luz nenhuma. Estava sem saída. O que quer que o sujeito queira, iria conseguir, e essa idéia apenas fez aumentar-lhe o pânico. Olhou em volta e estava no meio da rua. Nenhuma alma estava ali pra lhe prestar socorro. Com o ultimo suspiro, fez uma prece antiga que sua avó lhe ensinou. Shema, Israel, Adonai Eloheno Adonai Echad! Alguma coisa mudou. Ele ainda não via nada, mas ouviu um grito com a mesma voz do seu perseguidor. Uma canção como um coro de igreja penetrou seu cérebro vindo de lugar nenhum. Não via nada, e não ouvia nada. “Estou morto” pensou. Mas não estava.
Forçou os olhos para abri-los e viu uma maravilhosa figura angelical, tão clara e luminosa que seus traços se confundiam. Estava segurando uma espada brilhante, e golpeava sem piedade o que o tinha perseguido, o sombrio alvo, tentava em vão rasgar-lhe a carne, golpeando o ar ao invés. Antes que pudesse fazer uma analise mais profunda, a luta já havia terminado. Seu salvador estava glorioso, sem tocar o chão, segurando a cabeça inanimada do perseguidor. Sem poder se segurar, Gabriel vomitou ali mesmo. O salvador largou a cabeça, e veio em sua direção para consolar-lhe. Colocou-o de pé, e soprou em seu rosto. Não precisa mais ter medo, Gabriel. Você lutou com suas forças, mas falhou. Mas a força de Yahweh é contigo, e vim ao seu socorro em Teu nome. Agora descanse. Não há mais com o que se preocupar. Está a salvo. Sem dizer nada, deixou-se ser conduzido pelas ruas por onde outrora fugia. As lojas, as ruas, as pessoas, tudo agora era visível à luz do sol que nascia. Andando lentamente, já estava novamente em casa, onde a perseguição começara. Olhando pela janela, viu que estava tudo revirado, do mesmo jeito que encontrou quando chegou do trabalho. Mas agora não tinha medo, pois seu salvador estava ali. Entraram pela porta dos fundos e sentaram-se à pequena mesa da cozinha branca bagunçada. Estava tão tranqüilo que não percebeu as outras presenças que estavam ali com eles. Todos como seu salvador, com uma luz intensa que não permitia definir traços. Contou sete, mas não tinha certeza. Todos conversavam numa voz serena, quase uníssona. Gabriel, você não tem idéia do porque foi perseguido? Não... –respondeu, ainda sem acreditar no que via. Vou lhe explicar... Você é especial. Não é como os outros homens, e você sabe disso. Você sabe do que eu estou falando. Sobre aquele sentimento de urgência, o mesmo que o fez sair do banco antes que fosse assaltado. Que o fez tomar um caminho diferente para casa no dia do tiroteio. Que o fez sair correndo antes mesmo de abrir a porta para comprovar que sua casa estava revirada. Por isso você foi perseguido. Porque você não é normal. E os sonhos? Também. Você é para aquele o que ele chama de “chave-mística”. E ele estava disposto a sacrificá-lo em nome do que quer que seja o que ele queria... E pra vocês, o que sou? A mesma coisa! E nesse momento, a luz que envolvia a todos naquela humilde cozinha foi transformada em plena escuridão, e o “salvador”, sem piedade, cortou-lhe a garganta antes que pudesse fazer qualquer coisa.
Ciro Cardoso Chiarelli