Rodrigues Lobo Corte Na Aldeia.pdf

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  • Pages: 30
FRANCISCO RODRIGUES LOBO

CORTE NA ALDEIA Introdução, Notas e Fixação do texto de

José Adriano de Carvalho

EDITORIAL

PRESENÇA

C O R T E

NA NOITES

ALDEÃ. E DE

INVERNO

F R A N C I S C O K O D E I C) V L C) B O OFl-ERECIDO

AQ

SENHOR

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Em Li sboa.porPcdi-o Cra^bcccJcAnnoiói?

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LICENÇAS

V i este livro intitulado. Corte na Aldeia, e Noites de Inverno, composto por o Licenciado Francisco Rodrigues Lobo, e não contem cousa que encontre ,nossa Santa Fé, e bons custumes; antes me parece que será de grande entretenimento para os curiosos dos estilos da Corte, por onde se lhe pode dar licença para se imprimir. Em S. Domingos de Lisboa, em 1 de Setembro de 617. Fr. Tomás de S. Domingos. Visto a informação pode imprimir-se este livro, e depois de impresso tome a este Conselho para se conferir com o original, e se dar licença para poder correr, e sem ela não correrá. Lisboa, a 6 de Setembro de 617. António Dias Cardoso. Fr. Manuel Coelho. Gaspar Pereira. Bragança. Pode-se imprimir, e impresso tome para se ver. Aos 7 de Fevereiro de 618. Damião Viegas. Que se possa imprimir este livro, vista a licença do Santo Oficio, e Ordinário; e depois de impresso torne para se taixar, e sem isto não correrá; a 8 de Fevereiro de 618. Gama. Moniz. Está conforme este livro com o seu original, e se lhe pode dar licença para correr. Em S. Domingos de Lisboa a 8 de Abril de 619. Facsimile do rosto da l . * edição.

Fr. Tomás de S. Domingos. 49

Taxão este livro intitulado, Corte na Aldeia em noites de Inverno, em cento e oitenta reis em papel: a 23 de Maio de 619. Fr. Pinto. Gama. Livros que são impressos do autor: A Primavera O Pastor Peregrino O Denganado As Églogas Os Romances O Condestabre As Elegias de devação A Corte na Aldeia

AO S R . D. D U A R T E , M A R Q U Ê S D E F R E C H I L H A E D E MALAGÃO'

Depois que faltou a Portugal a corte dos Sereníssimos Reis, ascendentes de V. Excelência (da qual as nações estrangeiras tinham tão grande satisfação e as vezinhas tão igual inveja), retirados os títulos polas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e cortesãos por suas quintas e casais, vieram a fazer corte nas aldeias, renovando as saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos portugueses. E até V. Excelência, que, na Espanha, podia aventajar de todos sua grandeza, escolheu para morada essa cidade de Évora, que já el-rei D. João, com o ifante D. Duarte, avô de V. Excelência, e os mais príncipes, seus irmãos, habitaram, cujos caídos muros e edifícios, desamparados paços e incultos jardins parece que, agradecidos à assistência

' A própria dedicatória de F. Rodrigues Lobo contém elementos para a identificação familiar desta personagem: descendente dos reis portugueses..., bisneto de D. João III..., neto do infante D. Duarte..., facilmente o reconheceremos como um membro da Casa de Bragança, irmão de D.Teodósio I I (7," desse título) a quem F. Rodrigues Lobo dedicara (1609) O Condestabre. Nascido em 2LIX.1569 e falecido em 28.V.1627, dentro dos condicionalismos sociais do tempo que enquadravam os não primogénitos da grande e média nobreza, uma personagem com algum relevo na vida cortesã do primeiro quartel do século xvii peninsular. A sua situação hierárquica pessoal derivada das suas origens realengas (relíquia do sangue real deste reino, o diz R, Lobo) e às honrarias (marquês de Hechilla) e às benesses (senhorio da Vila de Ramiel) com que o cumulou Filipe I I , haverá que juntar tanto os seus casamentos na corte castelhana, primeiro com a herdeira dos condes de Oropesa (1596) e depois com a marquesa de Malagón, como outras honras que foi disfrutando sob os Filipes — Alferez-Mayor de la Caballeria de Alcântara..., comendador de Castel-Novo..., Grande de Espanha... São estes aspectos bem documentados nos relatos sobre a vida social da corte nos últimos tempos de Filipe III e dos começos de Filipe IV. Vejam-se, por exemplo, as Canas... Novedades de esta corte y avisos recibidos de otras partes..., Madrid, 1886, de A. Almansa y Mendoza para os anos de 162Í-1623, em que se assinala a sua participação nas festas de entrada de Filipe IV em Madrid (p. 31); nas da entrada do conde Astorga nessa corte (p. 56); a entrega da chave do palácio real sin asistencia de servir pero para poder entrar a hablar a su Magestad en cualquier momento; dicen le dieron cinco mil ducados da renta en Portugal:

SO

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e favores de V . Excelência, ressuscitam agora ^. E não somente os mosteiros antiguos, a que faltava aquela grandeza que os enobrecia, se reedificaram à sua sombra, mas ainda, encostados ao amparo dela, se fabricaram outros de novo, com maior perfeição. Com a mesma confiança busca a V. Excelência esta Corte na Aldeia, composta dos riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antiguos e tradições suas, para que V. Excelência a ampare como protector da língua e nação portuguesa, honre como relíquia do sangue real deste Reino e a acredite como espelho e exemplo da virtude e partes soberanas dos príncipes passados. Aqui ofereço a V. Excelência uma conversação de amigos bem acostumados, uas noites de Inverno melhor gastadas que as que se passam em outros exercícios prejudiciais à vida e consciência; fmalmente ua corte que, como bonina do mato, a que falta o cheiro e a brandura das dos jardins, ainda que na aparência e cores a queira contrafazer, é contudo diferente. Se os ditos destes aldeãos cheirarem a corte, acreditarão o tímio do livro, e se souberem ao monte, também nele se confessa por corte de aldeia, e, com muito maior razão, o será quando chegar à vista de V . Excelência em que se podem refor-

ha sido merced bien merecida, porque dejando a parte sus merecimientos. es en efecto biznieto dei Rey D. Manuel de Portugal y pariente en 4." grado dei rey nuestro senor... (p. 142); por fimrecorda-sea sua luzida partÍcipaç5o em alguma cerimónia religiosa {p. 229). F. Rodrigues Lobo já exaltara em O Condestabre (canto XI) a sua prosápia, os seus casamentos e a sua descendência, alargando-se agora nesta dedicatória na celebração do seu papel na reanimação da vida cortesã e cultural do seu tempo em Portugal. Tal papel poderia, de certo modo, ver-se confumado pelas múltiplas obras que, de um lado e doutro da fronteira, buscando o seu patrocínio, lhe foram dedicadas, como por exemplo o Breve tratado de las virtudes de D. Juan Garcia Alvarez de Toledo y Monroy y Deleitosa. V." Conde de Oropesa (Madrid, 1621), de Fr. Bartolome de Molina. O. F. M.; a Plaza Universal de Todas Ciências y Artes. isto é, a tradução da Piazza Universale di tutte le Professioni dei Mondo (Veneza, 1585), de T. Garzoni por Cristobal Suarez de Figueroa (Madrid. 1615); e na Laura de An/riso (Lisboa 1627), Manuel Veiga Tagarro dedica-lhe, como membro dessa Casa de Bragança que tào presente está nessa obra. a IV Écloga (Sileno). De qualquer modo, estas referências como que justificam, para além dos tópicos, os tradicionais elogios que ao amor às letras, por parte da Casa de Bragança, se iam tecendo desde os fins do século xvi (conf,. por exemplo, a dedicatória de Fr, Heitor Pinto da Imagem da Vida Cristã [1563. 1572] ao duque D. Teodósio...). = Não é fácil datar com precisão este renascimento (1618/1619?) de todos os modos fugaz, da vida áulica em Évora à volta da corte do marquês de Flechilla — facto igualmente recordado na IV Écloga. Sileno, de M. Veiga Tagarro —, mas é possível confirmar «literariamente» o abandono a que os cortesãos, depois de 1580, votaram a cidade e a consequente ruína que invadiu as suas casas e palácios. Com efeito, o P. Francisco de Mendonça, s. j . em 1626, num sermão pregado em Évora, considerava:... Recolhei-vos a esta cidade de Évora, segunda corte antigamente de Portugal e perguntai por aqueles tão lustrosos cortesãos e senhores que com tanto gosto a esta cidade vinham. Que é de tantos príncipes? Que é de tantos infantes? Que é de tantas pessoas titulares, cujas casas vemos hoje meias arruinadas, mais para memória triste do passado que para consolação do presente?... {Primeira Parte dos Sermões..., Lisboa, Mathias Rodrigues, 1632, p. 199).

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mar de polícia as que são na Espanha mais apuradas. V. Excelência a ampare com a sua humanidade, lembrando-se que, como não pode haver corte sem príncipe, que esta o não podia parecer sem que tivesse por si a V . Excelência, e que, como em noites de Inverno, ficará muito às escuras este livro sem a luz e graça que espera comunicar de sua clareça. E se alguém me julgar por atrevido em tratar de cousas de corte nascendo em idade em que já a de Portugal era acabada ^ sabendo que na de V. Excelência fui muitas vezes favorecido de mercês suas e honrado com elas na do Excelentíssimo Senhor Duque D. Teodósio", irmão de V. Excelência, não condenará minha ousadia com justa razão e achará alguas com que dê a estes diálogos merecimento, que posto que lhes faltem muitos para serem ofertas digna de tão grande Príncipe, neste pouco que pode dar por fruito o meu engenho pago com a vontade o em que para outras obras faltaram a natureza, a arte e a ventura. E ante quem, em tudo, é tão grande, nada o pode parecer senão esta confiança, fundada na benignidade com que V. Excelência sempre autorizou minhas obras, que me assegura que assim aceitará agora este piqueno serviço, pois não é menor grandeza obrigar-se dos humildes que fazer a todos grandes mercês. Nosso Senhor guarde a V. Excelência muitos anos. De Lenia, o 1 de Dezembro de 1618.

FRANCISCO RODRIGUES L O B O

' Esta é a última das múltiplas notas traduzindo a nostalgia da antiga corte portuguesa que percorrem, desde o começo a Dedicatória e que, depois, virão elaboradas em diferentes momentos dos Diálogos. Dentre os inúmeros testemunhos desse sentimento, escolhemos, de novo, pela sua sintonia com F. Rodrigues Lobo, as palavras de Francisco de Mendonça, s. j . , num sermão da Anunciação pregado no Colégio da Companhia de Jesus em Évora em 1615: Pergunto: a formosura da corte donde nasce senão do rei. que nela reside? Bem no viste antigamente nesta vossa cidade de É vora. Quando rujquele bom tempo, que Deus quis que acabasse (tudo acaba nesta vida), quaruio naquele bom tempo os reis de Portugal tinham sua corte em Évora. oh.', que fermosura! Que casas tão nobres! Que paços tão reais! Que famílias tão ilustres! Que cidadãos ião ricos! Que serãos tão alegres! Que festas tão solenes! Que jogos tão aparatosos! Que provimento do necessário tão abundante! Fermosura real! Tudo vinha do Rei. que aqui residia... (Segunda Parte dos Sermões..., Lisboa, Lourenço de Anvers, 1649, p. 51). E sobre a presença do autor da Corte na Aldeia na órbita da Casa de Bragança (Vila Viçosa..., Évora...) serão sempre de consultar Ricardo Jorge, Francisco Rodrigues Lobo. Estudo Biográfico e Crítico, Coimbra. Imprensa da Universidade. 1920 (pp. 79-103); Luís de Matos, A Corte Literária dos Duques de Bragança no Renascimento, Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1956. * Para a verificação e alcance desta referência poderão consultar-se o registo das Mercês de D. Teodósio //. Duque de Bragança, Lisboa; Fundação da Casa de Bragança. 1967 (p, 181. refs. aos anos de 1597 e 1610). A mercê de 1610 deverá ser atença com que D. Teodósio recompensou o poeta pelo seu Condestabre (1609) — conf. Carlos Alberto Ferreira, Francisco Rodrigues Lobo. Fontes Inéditas para o Estudo da Sua Obra, Coimbra, 1943. pp. 33-34.

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I

DIÁLOGO I

Argumento de toda a obra Perto da cidade principal da Lusitânia está ua graciosa aldeia' que, com igual distância, fica situada à vista do mar Oceano, fresca no Verão, com muitos favores da natureza, e rica no Estio e Inverno com os fruitos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente, porque, com a vizinhança dos portos do mar, por ua parte, e, da outra, com a comunicação de ua ribeira que enche os seus vales e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do ano o que em diferentes lugares costuma buscar a necessidade dos homens. E por este respeito foi sempre o sítio escolhido para desvio da corte e voluntário desterro do tráfego dela, dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos ou heranças, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da cidade. Um Inverno em que a aldeia estava feita corte com homens de tanto preço que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior deles em casa de um antiguo morador daquele lugar, que também o fora em outra idade da casa dos reis, donde, com a mudança e experiência dos anos, fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida. Grande

' A localização da «aldeia» obedece às coordenadas dum locus amoenus..., grato para atrair, por diferentes razões, moradores e, assim, criar o fundo paisagístico do quadro dialógico. No entanto, a tentação de identificar essa «aldeia»... das cercanias de Lisboa, assumou, pela primeira vez (que saibamos), nas páginas de R. Jorge, Francisco Rodrigues Lobo..., ed. cit., p. 325, que, prudentemente, aí insinua a sua identificação com Sintra... Depois, tal questão, através da introdução que A. Lopes Vieira apôs à mais divulgada das edições de Corte na Aldeia (Lisboa, Clássicos Sá da Costa, s. d.), passou a certeza... (conf, por exemplo, Diogo Ramada Curto, O Discurso do Poder Político em Portugal, 1600-1650, Lisboa, Projecto Universidade Aberta, 1988, p. 46. obra, aliás, de esclarecida erudição ao serviço de uma aliciante interpretação).

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acerto de quem colhe este fruito maduro entre desenganos. A l i , ora em conversação aprazível, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de Novembro e se amparavam contra os frios rigorosos de Janeiro. Entre outros homens que naquela companhia se achavam eram nela mais custumados, em anoitecendo, um Letrado que ali tinha um casal e que fá tivera hom-ados cargos de governo da justiça na cidade, homem prudente, concertado na vida, doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade; um fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria, em cujas histórias estava bem visto; um estudante de bom engenho, que, entre os seus estudos, se empregava alguas vezes nos da poesia; um velho não muito rico, que tinha servido a um dos Grandes da corte, em cujo galardão se reparara naquele lugar, homem de boa criação, e, além de bem entendido, notavehnente engraçado no que dizia e muito natural, de ua murmuração que ficasse entre o couro e a came, sem dar ferida j)enetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao doutor, Lívio, ao fidalgo, D. Júlio, ao estudante, Píndaro, ao velho, Solino. Fora estes havia outros de quem em seus lugares se fará menção, que, assim como os mais, não eram para__enjeitar em ua conversação de poucas perfias. Ua noite de Novembro ^ em a qual já o frio não dava lugar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno, estancjo ainda Leonardo à mesa, porém no fim das iguarias, bateram à porta Píndaro e Solino, aos quais o velho mandou abrir com grande alvoroço e festa, porque a de o buscarem era a que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortesia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da casa: — Pesa-me que não viésseis mais cedo, que me pudéreis acompanhar neste trabalho tão necessário da velhice. Mas se ainda virdes na mesa algua cousa de vosso gosto, lançai mão dela. que de mistura achareis a minha boa vontade.

^ Para além da alusão ao tempo-estaçào (Inverno), notado através de outros sinais — o fogo que reúne e aconchega..., há, ainda, um tempo-simação referido ao dia-a-dia: os trabalhos do campo que Leonardo acompanha, os convites que reciprocamente se fazem os amigos para jantar..., para caçar..., as refeições... São apontamentos que traduzem, literariamente, sublinhando-a. essa adaptação da vida quotidiana ao lempor^stação do ano. Os diálogos — estes diálogos — começam precisamente uma noite depois da ceia... É o tempo de sobremesa.... momentos e ambiente em que, com outra sumptuosidade, também se iniciam os Asolani (1504) de P. Bembo..., que. depois, se tomaram um momento tópico ideal para enquadrar o diálogo ou o colóquio... Pedro Mexia, assinalava a D. Parafán de Ribera, marquês de Tarifa, que os seus Colóquios (Sevilha, 1'547-) que lhe dedicava eram fruto dei tiempo en las largas noches dei Invierno posado... e. M:i1^aria e Sousa, numa obra injustamente esquecida, talvez, porque escrita em castelhano, (Noches Claras. (Divinas e Humanas Flores], Madrid. 1624)repeteque esse meditado exercício dei palestra há-de ter lugar en estas diUaadas noches dei brumozo Deziembre (Palestra I, ed. Lisboa. 1674, p. 10).

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— Eu sei (disse Píndaro) a que tendes de me fazer mercê, mas venho ceado e também Solino, a quem tive hóspede, cuja conversação me dobrou o ^ s t o das iguarias. — Eram elas tão boas (respondeu Solino) que a mim me davam graça. Porém, o serdes vós tão miúdo nas cortesias me deu muita pena. E já que sois tão discreto, e tão meu amigo, daqui adiante emendai-vos nas cerimónias da mesa e adverti ao vosso moço que não acompanhe com os olhos os bocados dos hóspedes té o estâmago, porque apostarei que me contou todos os da ceia, e anda tão destro no apartar das brigas que ainda bem não desvio um prato do outro quando me dá xaque em ambos e me deixa em casa branca. E não vos pareça que é isto dizer que venho faminto, que, se assim fora, pode ser que o comprimento do senhor Leonardo não ficara solto e hvre. Antes é fazer-vos lembrança que, pois dais tão bem de comer, não tenhais um moço harpia, que descomponha o sabor dos manjares. — Bem sei (respondeu Píndaro) que, ainda farto, não haveis de deixar de roer. O meu moço é de ua destas aldeias vezinhas. Há pouco que me serve; por isso, e por ser criado de estudante, lhe devíeis perdoar o erro e a mim o remoque. Porém, a vossa condição não se sujeita a respeito, nem a disculpas. — É tão saborosa a murmuração de Solino (disse Leonardo) que também na mesa se pode estimar como boa iguaria \. se a eu tivera muitas vezes, dera vida ao apetite que para as outras me falta. Se o ela fora (tomou Solino) em mais ocasiões me valera das em que a vós podeis desejar. Mas, não tratando de vo-la oferecer, nem de a disculpar com meu amigo, como ceastes hoje tão tarde e não vieram mais cedo o Doutor e D. Júlio? — Antes (disse o velho) me mandaram já recado e não devem tardar. Eu o" fiz com a ceia, porque os homens de serviço me não deram lugar senão a esta hora; mas ouço que batem à porta e devem ser eles.

' Há aqui, de certo modo, a enunciação de um tema — os limiles e modos da conversação entre amigos bem acostumados que percorre toda a Corte na Aldeia... (conf. pp. 52, 180, 182). Conf. Cervantes, Colóquio que pasó entre «Cipiòn^ y «Berganza», perros dei hospital de la Resurrección... de Valladolid: Por haber oido decir que dijo un gran poeta de los antiguos que era difícil cosa el no escribir sátiras, consentirá que murmures un poco de luz y no de sangre; quiero decir que senales y no hieras ni des mate a ninguno en cosa sehalada; que no es buena la murmuración. aunque haga reir a muchos, si mata a uno; y si puedes agradar sin ella. te tendré por muy discreto {Obras Completas, Madrid, Aguilar, pág. 1000b). R. Lobo, mais tarde. {Diálogo VIU, p. 179) ocupar-se-á mais precisamente desta murmuração engraçada. * O pronome refere-se a tarde e a tardar (eu tardei com a ceia, isto é, «ceei tarde» porque os homens de serviço não deram lugar senão a esta hora).

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A este tempo mandou juntamente alçar a mesa e levar a luz à escada. Subiram o Doutor e D. Júlio; saudaram-se com muita alegria e, sentados perto do fogo. disse o velho: — Muito deveis ambos a Solino, porque, vindo a esta casa com Píndaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha em estado que se podia aproveitar de algua coisa dela, vos achou menos e preguntou a causa da tardança. Sinal é este de amor e da pouca razão com que o temos por desobrigado de toda a afeição dos amigos. — Não é Solino tão descuidado do que lhe eu mereço (tomou D. Júlio) que se esqueça de mim e de quanto sentirei perder horas suas. E polo interesse das da conversação do Doutor o tivera em menos conta se as não desejara. E, além disto, posso afirmar que está pago da lembrança que teve com a dihgência que fizemos polo trazer connosco, que voltámos pola sua porta e eu tirei ua pedra à janela, donde me disseram que ceava com Píndaro; e cada um dos dous me fez inveja. — Ah! senhor D. Júlio (respondeu ele) tão grande trovoada de cumprimentos secos não podia deixar de lançar pedra. Eu tenho feita a conta e sei que não posso pagar o que vos devo, além dessa honra e mercê, senão com a humildade com que a todas reconheço por vpssas. Dai-vos por satisfeito de meus desejos e de pôr aqui ponto nos comprimentos, porque não tenho pólvora mais que para a primeira salva. — Já eu me quisera meter em meio (disse o Doutor) porque, se vos ateardes em cortesias, não haverá quem as p a g u e s e não for Píndaro, que tem ua corrente tão arrebatada que não dá vau a nenhuma retórica do mundo. — Agora (arguiu Leonardo) levastes três de um tiro. Não me dou por seguro neste lugar, inda que é de minha casa. Porém, não tendes razão contra Píndaro, que, cada vez que o ouço, me parece um livro de cavalarias Se ele ^ Aplacar, abrandar. * Inicia-se aqui um longo debate sobre «livros de cavalaria», cujos principais tftulos são lembrados por Leonardo — o anónimo Amadis de Gaula..., o Palmeirim de Inglaterra (Évora, 1567), de Francisco de Morais, e a Crónica do Imperador Clarimundo (Lisboa, 1520), de João de Barros. Poderia ler recordado ainda o Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda (Coimbra, 1567J de Jorge Ferreira de Vasconcelos. O debate, já muiio antigo — pensemos no que dele traduzem as críticas que se faz o chanceler Pero Lopez de Ayada en su Rimado de Palácio (163) — teve momentos álgidos em tempos humanísticos que, em nome da moral e da inverosimilhança, condenaram as suas «altas» aventuras e os seus amores..., ponto em que coincidiam humanistas, pregadores e moralistas... (conf. M. Bataillon, Erasmo y Espana, México, F. C. E., 1966, pp. 615-616, e José Adriano de F. Carvalho, Gertrudes de Helfia e Espana, Porto, INIC, 1980, pp. 333-334). A seu modo, e com uma amplidão c alcance que ultrapassam, obviamente, essas tomadas de posição «por princípio», La Vida dei Ingenioso Hidalgo D. Quijote de la Mancha (!.' p., Madrid, 1605, 2." p., Madrid, 1615), de Miguel de Cervantes, prolonga e como que compendia todo esse debate. Haverá, contudo, que fazer notar que nestas páginas de R. Lobo tal debate não se inscreve de um modo preciso nessa longa tradição crítica — nelas, de verdade, não surgem explícitas referências aos múltiplos proble-

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tivera encantamentos escuros, castelos rocheiros\s namorados, gigantes soberbos, escudeiros discretos e donzelas vagabundas, como tem palavras sonoras, razões concertadas, trocados galantes e períodos que levam

todo o fôlego, pudera pôr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo e ainda o mais pintado de todos os que nesta matéria escreveram. E já estive em o persuadir que se metesse em ua empresa semelhante, porém receio que se me ensoberbeça com a altiveza de seu estilo e despreze aos amigos.

mas morais que a sua leitura, então, suscitava, sem que tais críticas se revelassem capazes de eficazmenie deter a procura desse íipo (nem de outro) de novela. Com efeito, Rodrigues Lobo coloca-se perante a realidade de um «género literário», para, fazendo o seu elogio mesmo à custa de levantar alguns ecos dos argumentos dos seus críticos, determinar as suas leis e, logo, propor literariamente a sua legitimidade e roborar esse seu elogio. Num primeiro momento, em que situa, com precisão, o seu ponto de vista sobre a base de legitimidade do género — a criação poética e a sua boa linguagem — contrapõe alguns argumentos da crítica que nada têm a ver com a defesa que estabelece: a qualidade da ficção (patranhas.... históriasfingidas...,trapaças...) ou o comportamento de quem a escreve ou de quem a lê (ociosos). E, desde este ponto de vista, não deixa de ser curioso que seja um Doutor em Direito o seu mais severo crítico... A conclusão deste primeiro momento é, obviamente, uma enunciação das ciências e disciplinas necessárias para criar uma novela de cavalaria que, no fundo, mais não é de que uma glosa dum passo de Genealogia Deorum (XIV, 7), de G. Boccaccio (conf. também Vila di Dante, Firenze, 1576, segundo reimpressão anastática de J. V. de Pina Martins, Lisboa, O Mundo do Livro, 1965, pp. 50-56) sobre a ciência necessária ao Poeta..., isto é, sobre as fontes da inventio — questão que preocupou, igualmente, muita da tratadística de retórica e poética ao longo dos séculos xv-xvi (conf., por exemplo, A. Leonardi, Dialoghi dela Invenzione Poética [1554], in B. Weinberg, Trattati de Poética e Retórica dei 500. Bari Laterza, 1970, II, pp. 213-392, esp. pp. 228-229, 252. 288) como fundamento da imitado e, logo, da fictio. Por outro lado, deve notar-se que. desde uma perspectiva social, tal enunciado de ciências e disciplinas visava apresentar, promovendo-o. o poeta como um homem culto, empenho que perseguiam, igualmente, os artistas. Conf. R. e M. Wittkower, Nati solto Saturno. La figura deli'Artista delVAutiçhità alia Rivoluzione Francesa. Torino, G. Einaudi Ed., s. a., (1%8), pp. 11, 19. 25.

— Não merecia eu, senhor Leonardo, a vós, nem ao Doutor (disse Píndaro) que tomásseis meus defeitos por matéria de vossa galantaria. Falo como sei, e cada um se estende conforme a roupa com que se cobre. Não sou tão filósofo como o Doutor, tão cortesão como vós. nem tão engraçado como Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola. Porém, se abrisse as asas para compor livros, não houveram de ser de patranhas. Por isso, fiai mais de meus pensamentos.

O segundo momento que, por sugestão apaziguadora de D. Júlio, se debruçara sobre os livros que mais contentam (a cada um) e das razões que tem para os aprovar, arrancando, naturalmente, das conclusões anteriores, coloca, através do confronto sempre polémico da «história fingida» e da «história verdadeira», a clássica questão da Poesia e da História — das suas relações e de legitimidade da primeira. O assunto preocupou, com matizes e incidências diversas, todos os que se ocuparam do que pode dizer-se a questão da verdade poética e que, desde que a Poético arisiotélica foi «descoberta» nos fins do século XV, não deixou de assumar aos tratados que desta matéria se foram organizando. F. Rodrigues Lobo, vindo depois de Tas,so c, na Península Ibérica, de Lopez Pinciano, Philosophia Aniigua Poética — (Madrid, 1596) e de A. de Carballo — (Cisne de Apolo. Medina dei Campo. 1602) não podia deixar de ter presente o célebre texto de Aristóteles (Poética. 145!a-36-38; 1451 b-1-11). cuja solução teórica perfilha (no livro fingido contam-se as coisas como era bem que fosse e não como sucederam e, assim, são mais aperfeiçoadas, p. 62), apenas matizando, precisão óbvia, que não tenha excessos. Só obedecendo a este princípio será bem fingido e, logo, literariamente legítimo. De passo, através dos elogios que da história verdadeira vão fazendo os opositores de Leonardo e de Solino, de um Solino leitor de Ariosto (conf. M. Chevalier, Arioste en Espagne 11530-1660). Bordeaux, 1966, pp. 191-192. 309) não deixa F. Rodrigues Lobo de lançar como que as bases do que poderia dizer-se a orientação geral de uma «biblioteca selecla», digna de cortesãos, como esses que. dialogando na Corte na Aldeia, podiam ser espelhos para outros,.. E sem esquecer que a História (registadora da Glória e da Fama) devia constituir, para muitos, os fundamentos da educação da nobreza. ' Rocheiro. Fr. Domingos Vieira (Thesouro da Língua Portuguesa, Porto, 1874 sub voce) regista rocheiro como o mesmo que roqueiro (castelo roqueiro - castelo fundado em monte, rocha).

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— Nunca o tive de vos ofender (respondeu o Velho) nem me parece com razão a vossa desconfiança, nem podeis fazer tão pouca conta dos livros de cavalarias e dos famosos autores que os escreveram e que mostraram neles a sua boa linguagem com toda a perfeição: a graça de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza e galantaria das tenções, o pintar as armas, o betar as cores, o encaminhar e desencontrar os sucessos, o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns ciúmes, a firmeza em ua ausência, e outras muitas coisas que recreiam o ânimo e afeiçoam e apuram o entendimento. Se vós tendes por desprezo compor livros de cavalarias, eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom autor deles que a um dos letrados, filósofos ou juristas com que desejais de vos parecer, porquf'lhe importa saber a geografia dos reinos e províncias do mundo, para encaminhar por elas a sua história; ter notícia dos nomes e coisas que usam naquelas partes donde faz naturais os cavaleiros; saber estilo de corte para as mesuras, gasalhados e cortesias, conforme as pessoas introduzidas; conhecer da justiça, do torneio e do serão, a ordem, as leis e as gentilezas; entender da bastarda e da gineta o que convém para pintar o encontro, a queda, o acerto, o desar, o brio ou descuido de um cavaleiro, debuxar o cavalo nas cores, concertá-lo nas rédeas, no pisar, no arremesso, na fúria, na destreza, nas carreiras, chaças ^ e rodeios; e, sobre o conhecimento de todas as ciências e disciplinas, também há-de ter algua notícia dos nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bordão e valhacouto aos historiadores. — Tenho por mal empregado (disse então o Doutor) tanto cabedal em cousa de tão pouco interesse e não sou de voto que o autor, que tiver as partes que vós dizeis que são necessárias para essa composição, se ocupe nela. De que servem livros de cavalarias fingidas? E se há ociosos que os leiam, porque há-de haver algum que os escreva, ou que espera algum fruito de trabalho tão vão?

* Aqui, como se vê pelo contexto, termo de manejo do cavalo e não do jogo da péla. Píndaro (Diálogo V, p. 134) utilizará a palavra em sentido figurado.

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— Mas que certeza tão grande (tomou Leonardo) que cada um aprova o que segue, sendo assim que ninguém se contenta do que tem. Desejáveis agora que todos os livros e todos os homens tratassem somente da vossa profissão e fossem juristas e filósofos? Pois, ainda que eu sou bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opinião adquerida em latim: porque para recreação, polícia e bom estilo se não deve menor lugar a estes que aos vossos de trapaças e opiniões, e outros a que chamais conselhos, que o dão às vezes bem ruim a quem se fia de sua leitura. — (a) Eu era de parecer (disse D. Júlio) que poupássemos esta matéria para gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E, se a todos parece assim, cada um diga a sua opinião nos livros que mais lhe contentam e das razões que tem para os aprovar; e deste modo, ou afeiçoados ou convencidos, saberemos os que são de maior gosto e utilidade. — A isto (respondeu Solino) atègora estive calado contra minha natureza, porque me houve por incapaz de fazer terço com o Doutor e Leonardo; mas, pois o voto é que se jogue com Ioda a baralha, digo que é esta a melhor matéria que se podia escolher para passar o tempo. E já pode ser que algum dos que aqui estão, que deseja deixar no mundo memória de seu engenho, saiba nesta ocasião o em que o pode empregar melhor. — Polo que a mim toca (disse o Doutor) comecemos logo. E a vós, senhor D. Júlio, é bem que demos a mão a troco do alvitre; e, não tratando dos Livros Divinos, nem dos necessários ^, dos de recreação nos podeis dizer quais e por que razões vos contentam. — A minha inclinação em matéria de livros (disse ele), de todos os que estão presentes é bem conhecida; somente poderei dar agora de novo a razão dela. Sou particularmente afeiçoado a livros de história verda(a) Da escolha dos livros de recreação. ' Será de algum interesse anotar não só os géneros e lemas que ficam excluídos pelo Doutor Lívio, mas também o que laís limites ajudam a precisar acerca da orientação geral da conversação e leituras da sociedade cortesã peninsular nos fíns do século xvi e nos começos do século X V I I . Com efeito, além de tal intervenção ser de bom auxílio para caracterizar o seu «autor» (Lívio), a exclusão diz respeito aos Livros Divinos — a Bíblia e, certamente, todos os que dela directamente dependam como glosa ou comentário — e os necessários..., termo vago, mas imperioso, que bem poderá indicar os utilizados no estudo e na prática profissional, como um pouco adiante, precisa o mesmo Doutor — das artes liberais e mecânicas, das ciências e disciplinas necessárias, das profissões particulares... Deste modo, e por uma indicação explícita preocupada pelo decoro de uma conversação informal entre amigos e de extracto social diverso, só haverá a tratar dos de recreação... Note-se, então, que entre estes se incluem não só os de ficção, mas ainda os de História..., o que mais do que fazer realçar o que ficou sugerido sobre tais obras como base de educação da nobreza iv, D. Júlio), coloca algumas questões sobre a orientação geral da leitura neste século xvii. A sugestão, aceite sem reticências, de excluir os Livros Diviruys. não devera remeter apenas a precisos condicionamentos ideológicos do tempo, mas também ser. como sugerimos, um princípio desse decoro de conversação informal, recebido, ahls, de // lÀbro dei Cortegiano. de B. Castiglione.

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deira (a), e, mais que às outras, às do Reino em que vivo e da terra onde nasci; dos reis e princípes que leve; das mudanças que nele fez o tempo e a fortuna; das guerras, batalhas e ocasiões que nele houve; dos homens insignes, que, polo discurso dos anos, floreceram; das nobrezas e brasões que por armas, letras, ou privança se adqueriram. O que me inclinou à escolha desta lição foi que tive algua de um homem muito douto em o que o deve desejar de ser e parecer que é bem nascido; ao qual ele dizia que o que mais convinha que soubesse era o apelido que tinha, donde lhe veio, quem foram seus passados, que armas lhe deixaram, a significação e fundamento da figura delas, como se adqueriram ou acrecentaram, os reis que reinaram na sua pátria, as crónicas deles, os princípios, as conquistas, as empresas e o esforço de seus naturais; porque, falando deles nas terras estranhas ou na sua com estrangeiros, saiba dar verdadeira informação de suas cousas. E, alcançadas estas, lhe estará bem tudo o que mais puder saber das alheias. E, na verdade, nenhua lição pode haver que mais recreie e aproveite que a que sei que é verdadeira, e, por natural, ao desejo dos homens deleitosa. — Não é essa a minha opinião (disse Solino) porque contra o gosto me assombram muito cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E, no que toca à verdade, certo que à conta dos enterrados se escrevem alguas vezes tão grandes mentiras que lhes não levam ventagem os fingimentos de histórias imaginadas. E havendo um homem de ler o que não é, ou o que sai tão caldeado e tão batido da forja dos autores que mudado traz o metal, a cor e a natureza, estou melhor com os livros de cavalarias e histórias fingidas (b), que, se não são verdadeiros, não os vendem por esses; e são tão bem inventados que levam após si os olhos e os desejos dos que os lêem. E não estima um autor matar mais dous mil homens com a pena para fazer valente o seu cavaleiro com a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha, que por iguais respeitos pende cada ua para seu cabo. Pois, se é caso em que um historiador queira passar adiante, como Ariosto, não matou mais gente a peste grande em Lisboa que Rodamonte nos muros de Paris. — Essa é ua das razões por que eu os reprovo, (tomou o Doutor), porque a fábula é úa cousa falsa, que podia, contudo, ser verdadeira e acontecer assim como se fingiu. Porém, a isto não dão lugar os livros de cavalarias com esses excessos e outros encantamentos, fazendo casas e torres de cristal, edifícios, lagos e colunas impossíveis, pirâmides de alabastro e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a Fortuna. E em nossos tempos, na índia Oriental, sabemos que o rei Mogor andou muitos anos fabricando ua casa de esmeraldas, por cujo respeito se passavam deste Reino à nossa índia

(a) Dos livros de históna verdadeira, (bj Dos livros de cavalarias fingidos.

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as da Ocidental. E, enfim, morreu sem a acabar. E não há livro de cavalarias em que quaiquer cavaleiro de um castelo não acabe cousas maiores. E, deixando isto, é graça e galantaria comparar histórias verdadeiras com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem nelas se ocupa, quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembrança para engrandecer e de recreação para divertir. A quem não anima ler as histórias de seus passados? A quem não move o desejo de igualar a fama que lê de suas obras? O governo da paz, a ordem da guerra, o trato dos homens, o comércio das províncias, donde se conserva, alcança e sabe senão polas histórias verdadeiras? Porque nelas sabe cada um felicemente poios sucessos alheios o que deve seguir. Donde Marco Túlio chamou à História mestra da vida. — Vós, senhor Doutor (disse Solino) achareis isso nos vossos cartapácios, mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas histórias a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo lhe convém, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir; porque se não forem estas tintas, é tudo tão mesturado que não há pano sem nódoa, nem légua sem mau caminho. No livro fmgido contam-se as cousas como era bem que fossem e não sucederam, e, assim, são mais aperfeiçoadas. Descreve-se o cavaleiro como era bem que os houvesse, as damas quão castas, os reis quão justos, os amores quão verdadeiros, os extremos quão grandes, as leis, as cortesias, o trato tão conforme com a razão. E, assim, não lereis livro em o qual se não destruam soberbos, favoreçam humildes, amparem fracos, sirvam donzelas, se cum' pram palavras, guardem juramentos e satisfaçam boas obras. Vereis que as damas andam polas estradas sem haver quem as ofenda, seguras na sua virtude própria e na cortesia dos cavaleiros andantes. E, quanto ao retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento traçou e seguiu com muito tempo de estudo que no sucesso que, às vezes, se alcançou por mão da ventura, sem a diligência e engenho meterem nenhum cabedal. Não digo que os livros tenham excessos desatinados que não sejam semelhantes à verdade, nem os encantamentos tão escuros e disconformes que não tenham algua maneira de enganar o juízo. Porém, os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso em Itália (segundo um autor de crédito conta) estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto sentimento que lhe acudiu a vizinhança a saber o que era. E, no que toca ao exemplo, um capitão vaieroso houve em Portugal que o não teve melhor o Império Romano, que, com

Este «capitão vaieroso» é, seguramente. D. Nuno Alvares Pereira, antepassado da Casa de Bragança e, logo, de D. Duarte de Bragança a quem o livro é dedicado. Rodrigues L^bo que o já em O Condestabre (Lisboa. 1610) tinha escrito; Ua neste exercício cosíumadol Húa história na língua portuguesa/ Do casto Dom Galaaz claro esforçado/ Honra e valor da antigua corte inglesa/ Vitorioso sempre e celebrado/ Polias prerogativas da pureza/ Tanto à virtude santa mais se inclina/ Que até à morte ser casto determina (11, p. 25 v), saberia que

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a imitação de um cavaleiro fmgido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que dele se escreveram. Muitas donzelas guardaram extremos de firmeza e fidelidade costumadas a ler outros semelhantes nos livros de cavalarias. Na milícia da índia, tendo um Capitão nosso cercado úa cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que alvergavam juntos, traziam entre as armas um livro de cavalarias, com que passavam o tempo. Um deles, que sabia menos que os mais daquela leitura, tinha tudo o que ouvia ler por verdadeiro (e assim há alguns inocentes que cuidam que se não pode mentir em letra redonda); os outros, ajudando a sua simpreza, lhe diziam que assim era. Veio ocasião de um assalto em que o bom soldado, invejoso e animado do que ouvia ler, lhe pareceu ensejo de mostrar seu valor e fazer ua cavalaria de que ficasse memória; e, assim, se meteu entre os contrários com tanta fúria e os começou a ferir tão rijamente com a espada que em pouco espaço se empenhou de sorte que, com muito trabalho e perigo dos companheiros e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida, recolhendo-o com muita honra e não poucas feridas. E reprendendo-o os amigos daquela temeridade, respondeu: Ah! deixai-me, que não fiz a metade do que cada noite ledes de qualquer cavaleiro do nosso livro. E ele dali adiante o foi mui vaieroso ". Muito festejaram todos o conto, e logo prosseguiu o Doutor: — Tão bem fingidas podem ser as histórias que merecem mais louvor que as verdadeiras; mas há poucas que o sejam; que a fábula bem escrita (como diz Santo Ambrósio), ainda que não tenha força de verdade, tem ua ordem de razão, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras. Xenofonte, querendo pintar ua república perfeita e regimento político, por modo de história, fingiu o govemo de Ciro, rei dos persas; D. António de Guevara, em nome de um emperador romano, escreveu o que ele queria dizer em Espanha; e outros que ainda em modo mais estranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fábulas e Lúcio Apuleio no seu Asno de Ouro; e todos os livros que em seu género são bons se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve história seja verdadeiro e não terá Solino de que o reprender nela. O que compõe fábulas seja verosímil, e não terei eu razão de o reprovar. O que trata de ciência, alegue razões. O que faia de artes, experiência. E o que quer ensinar princípios, mostre autoridade. E posto que eu tinha

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na Crónica do Condestabre~{i,isboà, 1526) se escreve que Nuno Álvares Pereira havia grã sabor e usava muito de ouvir e ler livros de cavalarias, especialmente usava mais ler a história de Galaaz. em que se continha a soma da Távola Redonda... (ob. cit., cap. IV. s. p.). " Tudo o que Solino diz aqui em defesa dos livros de cavalarias tinha já R. Lobo ponderado, mais resumidamente, em o Condestabre (1610): A que honrado não move hUa lembrança/ Dos valerosos feitos dos passados?/ Que não conceba em si nova esperançai De os seus serem no mundo celebrados/ A quem não envergonha e faz mudança/ inveja honrosa a vellos recontados/ Se inda hua história váa, mas bem fingida/ Move hum animo illusíre à santa vida. (U, pág. 26 r.)

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muitas que alegar em favor da vossa opinião, senhor D. Júlio, vós estais no caso, e todos os mais, que a história verdadeira apascenta os doutos, adelgaça os grosseiros, encaminha os moços, insina os mancebos, recreia os velhos, anima aos baixos, sustenta os bons, castiga os maus, ressuscita aos mortos, e a todos dá fruito a sua lição. E por que esta não seja mais comprida, diga Píndaro agora a sua opinião. — (a) Apostarei eu (disse Solino), que, se a Píndaro lhe armarem com poesia levantada sobre os bons conceitos e versos, que, com serem amorosos, sejam arrogantes, que o tomarão como pássaro emr-visco. — Para isso (disse o Doutor) arredar-lhe as ocasiões, e vá com declaração que não tratamos de poesia. — Essa condição (acudiu Píndaro) logo ao princípio ficou declarada; que, como exceptuastes Livros Divinos, nesse número devem estar os dos poetas que mereceram este nome '^; e o que eles antigamente tiveram, e ainda agora lhe dão os latinos, assim o deixa entender. E Platão, quando deles escreve, lhes chama divinos intérpretes dos deuses, possuídos de espíritos celestes, donde Marco Túlio tirou os louvores com que os trata. Ongenes afuma que a poesia é úa virtude espiritual, que inspira em os poetas e lhes enche o ânimo e o entendimento de úa divina força. Santo Augostinho lhes chama teólogos para cantarem os louvores divmos. Diziam os filósofos antigos que, se os deuses falassem, seria em verso, trazendo exemplo do oráculo de Apolo e das Sibilas. Cassiodoro diz que a poesia tomou princípio da Divina Escritura. De mancha que, por autoridade de tão grandes varões, nunca os livros de poesia podem vir em competência com os de que atègora tratastes, que doutro modo já estivera concluída a diferença.

(a) Dos livros de poesia. Píndaro, segundo Leonardo já o definira, é poeta e de corrente tão arrebatada que não dá vau a nenhuma retórica do mundo... Nada admira, por isso, que quem usa (nas suas «obras» inéditas, mas conhecidas, pelo menos, de Leonardo), palavras sonoras, razões concertadas, trocados galantes e períodos que levam lodo o fôlego (pp. 57-58) teça. desde já, este elogio da Poesia, cuja fonte erudita (teoria e citações) é a Piazza Universale di tutte le Professioni dei Mondo (Veneza, 1585). Disc. ClIIl. De' Poeti in Generale.... ed. cit. p. 921, e tenha, mais tarde {Diálogo V), alto protagonismo na valorização dos encarecimentos poéticos, isto é, de um dos aspectos da linguagem poética que, então, se abordará. Note-se, desde agora, que, apesar de R. Lobo não tratar dos livros dos poetas (livros divinos, segundo Píndaro). a Corte na Aldeia, embora em tom menor, contém precisas observações sobre «ane poética» — veja-se, por exemplo, a concepção de poesia que enunciara, pouco antes, Solino... —, naturalmente perspectivada por uma concepção cortesã da poesia, arte «nobilíssima», tida em alta opinião pelos principais senhores de Espanha {Diálogo XVl). Independentemente de tal realidade e de Ia! afirmação. R. Lobo elabora, aplicando-a também à Península Ibérica, através de T, Garzoni, {Piazza Universale... Disc. XXVI — De Filosofi in genere... ed. cit. p. 215), uma consUtaçâo que já F. Petrarca fizera (Fam., XIII. 6) acerca do interesse com que os «antigos senhores do mundo» cultivaram a Poesia por entre as pesadíssimas cargas da governação.

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— O que eu vejo (tomou D. Júlio) que, ainda que o Doutor vos cerrava a porta, que metido de ilharga dissestes tudo o que cumpria ao vosso intento por junto, e, quanto para mim. estais declarado; e com o desejo de ouvir a opinião do Doutor, não digo o mais que me parece. — Ora, (respondeu ele) não quero que a essa conta fique o meu voto às escuras; e digo, não falando em poesia, que não escolho lição de historiadores verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos, porque uns servem de conservar a memória, os outros, de enganar o entendimento. E serão melhores os livros.que deleitem a memória e a vontade e apurem e levantem o entendimento, como os de recreação que, com algua engenhosa novidade, tratam de matérias políticas e engraçadas: de corte, de aldeia e de qualquer sujeito aprazível. Há destes muitos bem recebidos, aprovados e proveitosos na república, cuja variedade e doutrina é para mim úa lição mui saborosa — Não estou mal com essa opinião (disse o Doutor) e quasi que vós e eu estamos em um mesmo pensamento, senão que deixastes de declarar o que agora me fica para dizer: porque atèqui falámos do modo de compor e escrever livros e não das matérias que, escritas, serão agradáveis. E, deixando em dúvida o vosso parecer para se conferir com atenção, o meu é que o melhor modo de escrever são os diálogos (a) escritos em prosa, com figuras introduzidas que disputem e tratem matérias proveitosas, políticas, engraçadas e cheias de galantaria, sendo a primeira figura da obra o autor dela; e esse que vá guiando e introduzindo as mais, que sejam apropriadas àquelas matérias de que hão-de tratar entre si. E, além de ser este estilo mais claro, mais mais vulgar, mais excelente, inclui em si a lição de todos os ouU^os modos de escrever, como o são os da história verdadeira e fingida, das artes liberais e mecânicas, das ciências e disciplmas necessárias, das profissões particulares, da razão, do govemo da vida política ou privada. E quando este modo de escrever não tivera por si mais que a autoridade dos que nele escreveram, como foi Platão, Xenofonte, Túlio e outros infinitos, essa bastara para acreditar os diálogos. Além disto, eu tenho para mim que aquela é melhor escritura que, com mais perfeição e viveza, imita a prática e conversação dos homens, porque assim como a melhor pintura é a que mais se parece com a obra da natureza a que quer contrafazer, assim a melhor escritura é a que

(a) Dos diálogos historiados. " A resposta é ainda uma réplica explicitadora que Píndaro, a quem quis atalhar D. Júlio, dá sobre as suas preferências (assuntos) de leitura e conversação e, curiosamente, apresentando uma rápida síntese da própria obra em que intervém e ajuda a criar {Corte na Aldeia) e os princípios (conversação e leitura) que lhes devem presidir: aprazível.... com graça..., variedade..., doutrina — toda uma tradição humanística que se prolonga, entre outros, através de // Cortegiano. Note-se já que, explicitando, por sua vez, tais princípios, o que o Doutor Lívio pondera a seguir, apenas perfila, jutificandr as eruditamente, as leis formais do Diálogo como género literário cortesão.

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retrata com mais semelhança a fala e conversação dentre os amigos '^ Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais levantado era a tragédia por a imitação natural da prática com introdução de figuras, junto com a gravidade, peso e tristeza dos sucessos trágicos. E, porque também a variedade é a que mais costuma entreter e deleitar o ânimo dos homens e esta é mais certa e mais própria nos diálogos, me parece que no gosto deles serão melhor recebidos. — Pois, asim é (disse D. Júlio) que a principal razão por que aprovais os diálogos é, porque mais familiarmente se parecem com a prática, desejo saber qual é mais nobre cousa: se a prática, se a escritura (a), porque a mim me parece que à escritura se deve o melhor lugar, e que antes merecia a prática por se parecer com ela, o que agora encontra a vossa opinião. — Nenhua dúvida há (respondeu o Doutor) que a prática seja mais nobre, mais antigua e mais excelente, porque, além de o falar ser operação natural dos homens, e acto em que eles fazem ventagem e diferença a todos os animais '^ a escritura.não é mais que úa escrava e servente das palavras, e (a) Da excelência da prática e da escritura. Reafirmando o grau e o âmbito de «imitação» a que obedece e por que se deve aferir a Coríe na Aldeia — uma conversação de amigos bem acostumados (p. 52), princípio estruturador da obra inclusivamente ao nível do seu estilo e linguagem — o Doutor Lívio levanta, como logo percebe Solino, uma das mais complexas questões de todo o livro e que esteve na base de tanta bibliografia que nos séculos xvi e xvii se ocupou das «questões da língua». No fundo, porém, esse seu desejo Ide] saber qual é a mais nobre cousa: se a prática, se a escritura, não é senão a aplicação dos princípios e limites da imitatio à oposição prática/escrita, ou seja, oralidade/escrita. Leonardo, louvando a galantaria e agudeza com que o Doutor e D. Júlio trataram tão espinhoso assunto, acabou não só por declarar duvidosa a melhoria, mas por fazer uma bela síntese dos princípios em confronto. Para além do mais, R. Lobo, que alude ao princípio, de amplas consequências, tão valorizado pelo Humanismo, de que a fala é o que separa aferitas da humanitas, pode ler recebido sugestões para o modo e lugar de abordagem do assunto (e não propriamente para a opção valorativa da língua falada como modelo da escrita), de B. Castiglione (// Libro dei Cortegiano, l, 29). " Independentemente da solução final, será interessante notar que as duas posições — a de Doutor Lívio, letrado, sobre as excelências da prática e a de D. Júlio, fidalgo cortesão, sobre as «vantagens» da escrita'—, não só remetem para teorias discutidas em pleno Renascimento (através de B. Castiglione, poderão ressoar nestas páginas da Coríe na Aldeia alguns ecos do debate a que Platão, Fedro, 275b-276d, submete o problema), mas também traem a formação e situação social de cada um. o que é, para além do mais, um resultado do modo r preciso como R. Lobo observa o decorum das suas personagens. Se, com efeito, é importante ver que Lívio, um Doutor em Direito, baseia a sua argumentação sobre a excelência da fala, porque é ela o que distingue a feritas da humanitas (princípio, como se sabe. basilar do Humanismo renascimental), não deixa de ser curioso ver D. Júlio, um fidalgo, insistir nos méritos da «arte», da escrita..., isto é, do mais artificial e igualmente mais conservador..., mesmo sabendo nós acabará por aceitar que a prática e escrita sejam postas no mesmo pé de igualdade, solução que Leonardo deixa, de momento, no ar... Sob este ponto, R. Lobo, se a tiver conhecido, terá encontrado algum apoio para a elaboração destas páginas na obra de Pedro Albrel, Diálogos de la Diferencia dei Hablar al Escrivir (Tolosa, I. Colomerio. ca. 1560).

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o escrever não é outra cousa mais que suprir com um instmmento, por meio da arte e das mãos, o que com a voz não se pode exprimh e alcançar com os ouvidos, ou por distância de lugar, como quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve para os vindouros. E, porque nunca a escrava é tão nobre como a senhora a quem serve enquanto escrava, nem o que substitui em lugar doutrem se lhe pode preferir no mesmo lugar, assim nunca a escritura pode igualar a nobreza e perfeição da prática. — O contrário me parece a mi, (replicou o Fidalgo) porque nem por a prática ser mais antigua e primeira que a escritura, é mais perfeita, antes ela foi a perfeição da prática. E, posto que seja própria operação do homem o falar, não é nele menos nobre o acidente de escrever, antes me parece mais digno o que ele alcançou por arte que o que adquúiu por uso. E quase que ousaria a dizer que é operação sua o falar, dada a respeito de haver de escrever, pois esse é o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos presentes e na lembrança dos futuros a memória das cousas passadas. Assim que nem por a primeira razão merece a prática melhor lugar, nem a escritura, por servente e ministra sua, é menos nobre. Porque o sol serve de mostrar as cousas criadas, que lhe são muito mferiores e de dar luz e nutrimento a outras de menor calidade, e nem por isso elas se lhe podem antepor. E quanto a substituir a escritura em lugar da voz, ela o faz por tão excelente maneira que lhe tem muita ventagem, pois o que a voz não pode exprimir juntamente em diferentes lugares e a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escritura com grande perfeição, podendo muitas pessoas, em diferentes lugares, ler em um mesmo tempo a própria cousa. Polo que me parece que, ainda que a vossa escolha fosse boa, não fundastes bem a razão dela. — Certo (disse Leonardo) que de ambas as partes destes tão boas razões que fica duvidosa a melhoria. Porém, concedendo à prática a excelência, a acção, o modo e a graça de falar, que é úa viveza a que se não iguala outra nenhua semelhança, a escritura tem tantas grandezas que parece igualmente necessária para a vida, pois ficava o mundo às escuras sem a luz da lição escrita, e só na tradição dos homens se salvaria a memória das cousas, e, nas principais, dominaria a ignorância com mero império. Porém, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza está tocado o que baste, quero que passemos adiante e, por me fazerdes mercê, que me ensineis se na prática, em voz, e na escritura considerada, tem bom lugar a nossa língua portuguesa, porque ouço de má vontade a alguns naturais que tratam mal dela e a condenam por grosseira e limitada

Em pleno tempo de tirar consequências quer de outra tradição humanística (o interesse por de vulgari eloquentia) à volta das «questões de língua» quer de uma situação concreta da língua portuguesa politicamente (e não só culturalmente como até 1580) envolvida pelo império do castelhano, R. Lobo, na esteira, dentre outros, do Diálogo em louvor da Nossa

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— Ua cousa vos confessarei eu. senhor Leonardo, (disse a isto D. JúHo) que os portugueses são homens de roim h'ngua e que também o mostram em dizerem mal da sua, que, assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras, é língua excelente (a). Mas há alguns néscios que não basta que a falam mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela. E o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falem bem desacreditam a ela e a eles. — Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) polas cousas da nossa pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa. Antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e

(a) Dos louvores da língua ponuguesa. Linguagem (Lisboa, 1540), de João de Barros, e do Diálogo em Defensão da Língua Portuguesa (Lisboa, 1574), de P. Magalhães Gândavo, empreende, por sua vez, a «defesa e ilustração» da língua nacional. Partindo, em tom crítico, dessa constatação de que alguns ruiturais [...] tratam mal dela e a condenam por grosseira que já J. Ferreira de Vasconcelos {Comédia Eitfrosina — 1555. ed. E. Ansensio Madrid, C. S. 1. C , 1951. p. 7) e P. Magalhães Gândavo. este até pela boca de um castelhano, tinham verificado e de que, por isso, jogo de palavras à parte, os portugueses são homens de ruim língua (opinião que Fr. Luís de Sousa também insinuará nos Aruiis de D. João III, \, 4), R. Lobo, resumindo posições, visa directamente a alguns néscios que não hasta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela. E o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião e os que falam bem desacreditam a ela e a eles... Ora, tal crítica que, entre outros, já tinham empreendido, para os italianos. P. Bembo (Prose delia Volgar Língua. I , 5) e S. Speroni (Diálogo delle Lingue — Dialoghi, Venesa — 1542, ed. Lanciano, 1912, pp. 42-43) e para os castelhanos, B. Alderete. (Del Origen y Principio de la Lengua Castellana — Roma. 1606, 1, 1) e A. de Morales (Discurso sobre la Lengua Castellarm, Córdoba, 1586), talvez haja de colocar-se. como seu vector linguístico, no quadro mais amplo desse amor á pátria a que se alude (apaixonado... pelas cousas da nossa pátria) logo depois em Corte rui Aldeia e que, como fenómeno do «individualismo» nacional, se irá transformando no «Moderno» sentimento de patriotismo. Para um rastreio mais preciso deste «nacionalismo linguístico» (e não só) seria interessante ter em conta um texio do De Educatione. de António de Ferraris, dito Galateo (E. Garin, UEducaiione Umanistica in Itália, Bari, Laierza, 1959. pp. 170-171) e reler, como ponto de chegada, tanto o Discurso de B. Feijoo — Paralelo de las lenguas castelhana y francesa (Obras escogidas. Madrid, BAE. 1952, pp. 45-49) como os comentários ao tema. de A. J. Maravall em. Estado Moderno y Mentalidad Social, Madrid. Revista Occidente, 1972, I , pp. 479, 491). " A expressão (ruim língua) e as considerações subjacentes encontram-se já no Diálogo em Defensão da Língua Portuguesa de que P. Magalhães Gândavo fez seguir as suas Regras que ensinavam a maneira de escrever e a Ortografia da Língua Portuguesa. Lisboa, 1574, no momento em que o ponugués Peirónio à pergunta se terão os portugueses tào ruim língua e tão grosseira como dizem recebe por resposta do castelhano Falencio que los mismos portugueses siendo ella suya la desdenan, y por sua boca confiessan ser ella la más tosca y bárbara dei mundo. 68

acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada com um modo senhoril, para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música, para pregar é sustanciosa, com úa gravidade que autoriza as razões e as sentenças, para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite, para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa, a elegância da italiana. Tem mais adajos e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua hebreia, pola honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, polo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte ' ^

" A este merecidamente conhecido «louvor» da língua portuguesa poderão buscar-se facilmente antecedentes e, possivelmente, fontes: as páginas do Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, já citado, em que J. de Barros repassa a majestade, a musicalidade, a gravidade, a humildade e honestidade, o deleite e a cópia verhorum da língua portuguesa, e o Diálogo em Defensão da Língua Portuguesa (Lisboa. 1574) de Pero Magalhães Gândavo. Em qualquer caso, essa «ilustração» — desde a sua fonética e das suas virtualidades expressivas (retóricas e estilísticas) até à sua cópia verborum et sentenliarum — procura não só reforçar, por comparação explícita com outras línguas, a venente do «nacionalismo linguístico» já referido, mas ainda exaltar a sua propriedade e equilibrada abundância para todos os géneros literários e para todos os modos e circunstâncias da conversação e escrita, E de uns e de outros, agora dentro dos limites impostos da conversação e da escrita por c para cortesãos, ocupa-se precisamente a Corte na Aldeia. Dentro desta ordem de ideias, R. Lx)bo não deixa de lembrar um ideal que obsidiará muitos — se não todos — os que abordam, do Renascimento às Luzes.^ a «questão da língua»: escreve-se da maneira que se lê e assim se fala. J. de Valdês, teólogo e gramático, no seu Diálogo de la Lengua, anterior a 1541 (ca, 1535), mas só publicado em 1737 (ed. de A. Quilis Morales, Plaza y Janes, pp. 126, 140) e L. A. Vemey no Verdadeiro Método de Estudar (1746), Carta l (ed. A. Salgado Júnior. Lisboa. Sá da Costa. I , p. 45) poderão demonstrar esse ideal e a sua permanência. • Quanto, porém, à escrita — entendamos por ela também a literatura — coerentemente, R. lx>bo, se alude ã acomodação da língua portuguesa às matérias mais importantes da prática e da escrita, só aborda com alguma especificidade, talvez, porque «géneros» mais marcadamente conesãos, a Epistolografia e a História. Curiosamente, nem R. Lobo nem J. de Banos se detêm na verificação dessas qualidades, na Poesia, a menos que nela se inclua a alusão de Barros ao «Cómico» Gil Vicente. R, l^bo, porém, aludirá, obliquamente é certo, ao assunto na sua Primavera (Floresta V) lugar onde. afirmando-se afeiçoado à nossa língua portuguesa, reivindica ter sido o primeiro que nela (cantou) romances. De qualquer modo, parece dever-se a um castelhano, Lope de Vega (La Dorotéa, Madrid. 1632) o mais rasgado elogio da língua portuguesa como língua essencialmente poética: Ella (a língua portuguesa) es dulcíssima y para los versos la más suave (conf. La Dorotéa, ed. E. S. Morby, Madrid, Castália, 1968, p. 141).

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— Folguei estranhamente de vos ouvir (disse Solino) por não ficar tão covarde, como atègora estava, em ouvindo murmurar da língua portuguesa. E não ousava ou não sabia dizer a minha opinião, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem às suas cousas como o corvo aos filhos, e Píndaro às suas trovas. Porém, quando um homem tão bem fundado na razão como o Doutor e tão autorizado em seu parecer, sustenta esta parte, nenhua haverá já tão rija que me tire o atrevimento. — Nem a língua (disse Píndaro), pois não há amizade que vos faça perder o costume. — Perdoai-me (tomou ele) que vos feri por não perder o golpe. E, tornando ao que aqui se tratou para recordar o que começamos, averiguou o Doutor que a melhor maneira de escrever eram os diálogos (ficando meu direito reservado nos livros de cavalarias), locaram-se louvores da prática e escrituras com muito engenho, declarou-se como a língua portuguesa não desmerece lugar entre as melhores para nela se escreverem matérias levantadas, aprazíveis, proveitosas e necessárias. Que falta entre vós para que destas noites bem gastadas, destas dúvidas bem movidas e destas razões melhor praticadas, se faça um ou muitos diálogos que, sem vergonha do mundo, possam aparecer nas praças dele à vista dos curiosos e ainda dos murmuradores?^"

— Acompanhemos ao Doutor (disse o Fidalgo). E levantando-se ele, se despediram todos com muita cortesia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que'dela perde. ^'

— Tem Solino muita razão (disse D. Júlio) e se assim forem os diálogos como se podem formar com a prática de alguns que estão presentes, bem se autorizará a opinião do Doutor, posto que a minha fique de vencida, com a ventagem que aqui tem a prática das escrituras alheias. E, pois, se aproveitam tão bem as noites neste lugar, razão é que por meio deles se comuniquem a quem se aproveite da doutrina e interesse delas. — Se eu não dormira tão poucas horas da passada (disse o Doutor) ainda houvera de prosseguir adiante e responder a isso, mas, com vossa licença, me vou recolher e amanhã acudirei mais cedo.

Fora do comum; maravilhosamente. É um advérbio muito do gosto de Solino que o voltará a utilizar {Diálogo V, p. 132). Conf. ainda p. 245. ™ Depois de ter enumerado os assuntos mais próprios do diálogo cortesão, anuncia agora R. Lobo a «moldura» da sua própria obra e do que poderia dizer-se a sua dinâmica. Logo abaixo sugere como esse género dialógico será um instrumento da própria aceitação e divulgação da obra. Martim Afonso de Miranda, também ele autor de uma obra de diálogos — e que merecia um pouco mais de atenção do que à que se lhe tem prestado —, Tempo de Agora (Lisboa, 1622, 1 .* p.), antes de caracterizar o género como grave e o seu estilo como levantado e cortesão, recorre igualmente ao mesmo tipo de justificação...: com as duas (razões) que aponto satisfarei a vossa proposta: é a primeira ser este género de escrever agradável e gostoso, pela variedade dos que falam, claro e proveitoso pelas dúvidas que se levantam e pela solução que .^e lhes dá (pág. VI). Para os antecedentes género dialógico em Portugal, v. Jorge. A. Osório, o Diálogo no Humanismo Português, in o Humanismo Português — 1500-1600, Lisboa, Academia das Ciências, 1988, pp. 383-412.

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Quase todos os 16 diálogos da Corte na Aldeia terminam, tal como algumas das obras pastoris do seu autor, por uma espécie de «sentença», que, além de transmitir como que a gravidade moral do capítulo que encerra, prepara, de certo modo. o diálogo seguinte Neste momento, porém, a «sentença» tem um alcance mais vasto, pois não só justifica toda a obra - uma arte de conversação entre amigos - , mas. cumprindo mais particularmente a sua função, anuncia, depois de uma anierior alusão ao tema (p. 69) o diálogo sobre a carta missiva f(pp.' ^ «sy, o ' £yo). ÍÍ •

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I

DIÁLOGO n Da polícia e estilo das cartas missivas Ficaram os amigos tão afeiçoados à conversação daquela noite, que, por fazerem a do outro dia mais comprida, acudiram a se ajuntar logo depois de se pôr o Sol, porém, cada um com pejo de ser o primeiro. Passeavam em dois postos, o Doutor com D. Júlio, e Píndaro com Solino, à vista da casa de Leonardo, até que ele chegou à janela e, mostrando o mesmo desejo que os quatro traziam, facilitou o receio e aprovou as horas. Subiram todos, e disse o Doutor: — Pareceu-me este dia tão comprido, na esperança da noite, como aos trabalhadores que devem já o jornal. — E a mim (tomou Leonardo) a noite, depois que me deixastes, tão importuna como quem espera a manhã para cousa de seu gosto. E, assim, não é muito que vós viésseis tão cedo e que a mim me pareça que já era tarde. — Todas as cousas que se desejam muito (tomou D. Júlio), por pouco que se dilatem, tardam mais. — E as que se temem, (prosseguiu Solino) por muito que tardem, parece que se antecipam. Donde um disse maravilhosamente que o que queria que a Quaresma lhe parecesse breve, devesse pagamentos para a Páscoa. Enfim, chegou mais cedo este prazo que todos desejávamos. E se o senhor da casa dormiu pouco, eu apostarei que há algum na companhia que se desvelou mais. — Não era ocasião para descuidos (disse o Doutor) e nos mancebos era demasiada desconfiança entrar nesta batalha desapercebidos. — Os apercebimentos (tomou o Fidalgo) podem fundir muito pouco, porque como atègora é incerta a matéria de que se deve tratar, serão sem fruito as diligências. — É engano (replicou Solino) que nunca falta ua carta em que prender; como um homem tem as suas apuradas e há cousas que se levam a rastro

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como corpo morto, e, quando sejam bem cuidadas, nunca são mal ouvidas. E se não, digam-no as olheiras com que esta manhã vi a meu amigo Píndaro. — Já sei (disse Píndaro) que vedes mal, mas contra mim ainda é pior a vossa tenção, que à vista não me pagais bem o que vos mereço, mas é na moeda que tendes. —E na que corre, (tomou ele) que o rifão de agora diz que fazer e dizer mal nunca se perde. Não vos escandalizeis, que tudo há nos homens e nas cartas. — Essas (disse, então, D. Júlio) hei-de eu partir, porque desejava muito alçar por elas. E, pois o Doutor falou ontem em cartas missivas, e aprovou para elas a língua portuguesa, nos há-de declarar o que há-de ter Úa carta para ser cortesã e bem escrita. — Esse cargo (tomou o Doutor) convém mais ao senhor da casa, porque ainda que a carta consta de letras, não é profissão de letrados o fazê-las cortesãs e quem sabe tanto do estilo da corte ', como Leonardo, pode dar lei para elas. — Vós (respondeu ele) sois doutor em tudo, e meu superior em todas as matérias, e como tal me podeis dar o grau de cortesão ^. Eu o quisera parecer ' Apesar do esúlo da corte, aplicado à epistolografia, ser a preocupação que desencadeia e organiza este diálogo, não será, porém, o único sobre que se ditarão regras ao longo deste (e do seguinte) diálogo que, no seu conjunto, constituem um dos raros tratados portugueses sobre epistolografia nos séculos xvi e xvii, época em que predomina, largamenie, a preceptíslica italiana. Amedeo Quondam e seus colaboradores em Le «Cane Messaggiere». Retórica e Modeli di Comunicazione Epistolarei per un índice dei Libri di Leltere dei Cinquecento, Roma, Bulzoni, 1981, não só elancaram e estudaram a tratadística italiana, mas apontando-lhe pautas ilustres nacionais e estrangeiras — entre elas o De Conscribendis Epistolis Opus de Erasmo —, chamaram a atenção para as transformações a que eram submetidos os textos epistolográficos ao serem compendiados e publicados, quer do ponto de vista da relação do autor/destinatário, quer do assunto, quer ainda de regras a cumprir. Para a Península Ibérica o Manual de Escribientes, de António de Torquemada (anterior a 1562 e quase inédito até 1970), tão devedor de Erasmo e, modelo entre modelos cortesãos, as Epistolas Familiares (Valladolid, 1542), de Fr. António de Guevara, O. F. M., poderiam exemplificar as duas vertentes a que R. Lobo com estes diálogos e com a sua colecção de Cartas dos Grandes do Mundo (ed. de R. Jorge Coimbra, 1934) deu igualmente grande atenção. Domingo Yndurán, Las cartas en Prosa (in Literatura en la Época dei Emperador, ed. de V. Garcia de la Concha, Salamanca, 1988, pp. 53-79) e J. N. H. Lawrance, Nuevos lectores y nuevos géneros: apuntes y observacionei sobre la epistolografia en el primer Renascimento espanol (in Literatura en la Época dei Emperador, ed. cit., pp. 81-99) permitem, agora, melhor situar peninsularmenie estas páginas. ^ Como Lívio era doutor não só em Leis, mas, como gentilmente dizia Leonardo, em tudo, podia conferir esse grau de cortesão ao senhor da casa. E, curiosamente, este acena logo a duas características que, em geral, não são tidas em conta à hora de lhe definir o tipo: a confiança e a obediência, não tanto para com os hierárquica ou socialmente «superiores», mas para com os que se situam no mesmo nível e, dentre estes, os amigos. Será de notar que um eixo que organiza toda a obra é, precisamente, a amizade, questão a que, aliás, R. Lobo dedicará alguma atenção, já que só entre amigos pode ter lugar a «verdadeira» conversação, quer dizer, diálogo.

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na confiança e em obedecer ao gosto destes amigos, mas para eu prosseguir com autoridade é bem que vós comeceis a principar a matéria, dizendo que nome é carta e o seu princípio, pois me dais o cargo antes de estar apercebido para ele. — Bem sei (lhe respondeu o Doutor) que por me hotu^ardes a mim tomais tudo à vossa conta. Folgarei de a dar boa do que me encomendais. Este nome, carta (a), é genérico, e teve origem de ua cidade do mesmo nome, donde foi natural a rainha Dido, que, por o amor que tinha à sua pátria, pôs à que edificou por nome Cartago \, porque em Carta se inventou primeiramente a matéria em que se escrevia (ou fosse papel, ou outra cousa semelhante a ele), tomou dela o nome, como de Pérgamo o pergaminho. E para saber que nos primeiros tempos, quando se inventaram as letras, escreviam os homens nas folhas das árvores, como ainda hoje nas de palmeiras escrevem os gentios de alguas partes do Oriente. As Sibilas nelas escreveram suas profecias, e, assim, se chamaram a seus escritos folhas sibilinas e ainda na linguagem portuguesa se conserva algua cousa desta antiguidade, pois dizemos folhas de papel sem o papel ter folhas, mas é em lembrança das primeiras que se usaram na escritura. Depois se escreveu em ua casca tenra de árvores que é o entreforro da cortiça. E, porque a esta chamavam livro, conservam ainda agora eles o nome; e a divisão que agora fazem os escritores de livro primeiro, segundo, e daí adiante, é o número por que então deviam contar aquelas cascas. Também se escreveu em o miolo de úa maneira de juncos a que chamaram papiros, donde aos latinos ficou o nome para o papel. Depois se escreveu em tábuas, nas quais, sobre cera, com um instrumento de ferro ou de latão, a que chamavam estilo, se assinavam as letras, e do ferro com que se escreveram se veio a derivar o que agora dizemos hom ou mau, humilde ou altivo estilo de escrever, passando-se por translação a perfeição do instrumento ao concerto e polícia das palavras. Deste próprio modo se usa o nome de carta, que alcança em género a todo o nome de papel escrito e ainda pintado. Os portugueses fazemos este nome particular tomando carta missiva por a principal de todas, e, assim, basta dizermos carta,

(a) Donde naceu o nome de carta e a maneira em que os antigos escreviam. ' A fonte mais imediata de todas as generalidades em cadeia que o Doutor traz sobre o nome e os princípios da cana, isto é, sobre a sua etimologia e formas primitivas, é, seguramente a Si7va de Varia Lección (Sevilha, 1540), mas com numerosas reedições de Pedro Mexia (conf. Terc. Parte, cap. II), informação que preferiu à que um pouco mais elaboradamente fornece T. Garzoni {Piazza Universale, Disc. XXVlll — De'Scrilori, o Scrivani e Cartari... ed. cit., p. 239). No entanto, como será fácil de supor, trata-se de um lugar comum obrigatório em todos os que escrevem e publicam cartas ou ditam regras de ratione conscribendi epistolas. S, Jerónimo no século IV {Carias, ed. bilingue, Madrid, B. A. C, VI, 2 e VIII) e Fr. António de Guevara, nos meados do século xv[ {Epistolas Familiares, I I , 16) poderiam ser dois grandes exemplos dessa aplicação u^dicional.

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sem mais declaração, para se entender que é esta. Porém, nas espécies delas usam o nome com seus atributos. E nos instrumentos judiciais, que tístimunham antiguidade, se diz carta precatória, demissória, citatória, de liberdade e de venda, e outras muitas, e ainda as de jogar, sem terem letras, se chamam comqmmente cartas. E a gente aldeã, conservando algua cousa da antiguidade, a qualquer estampa ou pintura em papel chamam carta. Os latinos puseram nome às cartas missivas epístola, do verbo grego que quer dizer mandar e letras, porque a carta consta delas. Os italianos deram singular e plurar'' a este nome segundo. E na nossa língua, a que chamam limitada, não faltou nenhua destas diferenças, antes houve maior perfeição, porque a úas chamaram cartas mandadeira.s; às que tinham menos de papel, escritos; e às cartas de Itália letras, que são as de Roma e às de câmbio, porque deviam ter o mesmo princípio; porque logo nos de Portugal mandavam os Reis dele, por letras, copiosas doações à Sé Apostólica do que conquistavam. De maneira que o nome de carta, quanto à sua origem, é geral e comum e, entre nós, particular das cartas missivas. E, pois, lhe descobri o nome, é necessário, senhor Leonardo, que lhe deis agora o ser. — Parece-me (respondeu ele) que estou já no meio da minha obrigação (conforme ao dito do poeta): que quem começou, também tem feita a maior parte. E passando do nome da carta aos exteriores dela', digo que há-de ter (a): cortesia comua, regras direitas, letras juntas, razões apartadas, papel limpo, dobras iguais, chancela sutil e selo claro. E com estas condições será carta de homem de corte*.

(a) Das cortesias das cartas. * Plurar, forma utilizada no século xvi para Plural: «... E ao número de um chamam os gramáticos singular; e aos muitos plurar...» (J. de Barros, Gramática da Língua Portuguesa, ed. de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Publics. da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, 1971, p. 309. ' Leonardo vai ocupar-se dos exteriores, aspectos «físicos» e formais importantíssimos, da cana cortesã em que tudo, da direcção (Sobrescrito) à data e assinatura estava regulado não só por normas mais ou menos consuetudinárias apoiadas na hierarquização social, mas ainda, no caso das fórmulas de tratamento, em disposições legais que, dela relevando, a confumavam. Deverá, porém, notar-se que Leonardo apenas assinalará regras para a carta cortesã e não para a epístola de tom humanístico e, multo menos, para a correspondência de chancelarias, isto é, oficial. Em linhas gerais, anotando exageros e dislates, o velho cortesão ocupa-se da carta familiar cujo modelo, reforçado pela aura do Humanismo (Erasmus dixit) eram os «bilhetes» de Cícero. De toda a exposição de Leonardo parece resultar evidente que não quer ditar regras para um breve manual de «escreventes» ou secretários, mas, sim, para o cortesão que escrevia ou ditava as suas próprias cartas. ' Os preceitos para os exteriores propõem-se, sobre tudo, lograr a clareza, a ordem, a limpeza e a facilidade de leitura pela legibilidade da caligrafia. A este último aspecto é R. Lobo muito sensível, como se prova pelo facto de. logo depois, Solino se rir de uma letra tão miúda e embaraçada que por nenhuma via (pôde) ver o que dizia, e de mais adiante (p. 82)

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— E, falando da cortesia, (disse Solino) que entendeis nela? — A cortesia, (lhe respondeu ele) não falando na leitura da carta, é o sobrescrito, o apartado da cruz té à primeira regra, e do primeiro do papel té o começo de todas; e o sinal e nome de quem escreve, abaixo da data da carta. E, porque nisto há diferentes custumes e erros, me parece bem fazer de tudo lembrança. — Nos sobrescritos (a) temos pouco que tratar (tomou Solino) que, depois que com a premática os cercearam, não há prezados, magníficos, honrados e ilustríssimos, nem os senhores^. Ainda fica-

(a) Dos sobrescritos. Leonardo criticar os cortesãos que por afermoserarem a letra e facilitarem melhor os rasgos da pena, vão encadeando as leiras polas cabeças como sardinhas de Galiza e de maneira confundem a escritura que não há tirar dela o sentido verdadeiro do seu dono... Refere-se, obviamente, a um tipo de caligrafia conhecido, tecnicamente, por «Letra encadeada». ' Independentemente das disposições legais [Pragmática) a que se refere Solino. convirá aludir a toda uma tradição literária que, com alguma implicação social, vai reagindo contra estes «abusos» nas fórmulas de tratamento. Petrarca, como de tantos outros temas, poderia bem dela ser a matriz quando no De Remediis Utriusque Foriunae (cit. pela trad. de Francisco de Madrid, Sevilha, 1516), criticando todo aquele que acredita nos que o publicam por sábio, explicita: mas, ya te entiendo; en los sobrescritos de las cartas hazes tu fundamento, que en ninguna cosa se usa de más libertad. En los quales no basta hazer sábios los que no lo son, mas nobles. insignes, reverendos, sereníssimos y aun iliustres, tanto que el título de sábio assi senzillo es ya ávido por vergongozo...» (I. Diálogo XII). E no Cancioneiro Geral (Lisboa, 1516) de Garcia de Resende, Duarte da Gama nas Trovas aas desordSes que aguora se costuma em Portugal, além de criticar outras «novidades» no uso de títulos, lembra A maneyra descrever! que costumam nos ditados! he chamarem já preçadosi a myl homeens sem o ser.1 E quando na baixa jenle! o costume for jerall hade vyr a principal, a excelente (ed. A. Costa Pimpão e Aida F. Dias, Coimbra, 1973, I I , n.° 542). E, por fim, recorde-se a diatribe do «Entendimento» na Rôpica Pnefma (Lisboa. 1542) contra o modo da corte no falar e no escrever.... a ponto de que se achariam enleados Demóstenes e Túlio, se lhe dessem ua carta de um homem destes 'especiais' da corte..., pois, quando viesse ao sobrescrito, por mais copiosas que a língua grega e latina fossem (não), achariam vocábulos conformes a sua calidade... Mas segundo contou um correo do Tempo que poucos dias há veo da corte, punha•se taixa à porta dos alfaiates, inventores dos tais ditados, apreçando logo que por Ha Ilustre Senhoria levassem tanto. Manífica singela, sem soberba de vassalos, e Revenderíssima. com tauxia mourisca, fossem ambas de um preço, Estimada e prezada Mercê levando nove lições, com sua ladainha e ofícios inteiros, que lhe tirassem um dozao da Senhoria... Tal negócio (está) por determinar, té que o saiba ElRei... (ed. I . S. Révah, Lisboa, I . A. C . 1955, pp. 51. 53). Páginas severas dedica A. de Torquemada a tais fórmulas e cortesias na Segunda Parte dei Colóquio de la Honra que trata de las salutaciones antiguas y de los títulos y cortesias que se usaban en el escribir... {Colóquios Satíricos, Mondonedo, 1553; conf. M. Menendez Pelayo, Origens de la Novela, N. B. A. E., 1931, II, pp. 649-654). Daí, essa Pragmática en que se dá la orden y forma de que se ha de tener en los iralamienios y cortesias de palabra e. por escrito y en traer coroneles y ponellos en qualquier parte y lugares, decretada por Filipe I I em S. Lorenzo de El Escoriai em 8.X.1586 e nesse ano também impressa por Manuel de Lyra (Lisboa). Tal lei em que vêm apontadas, de maneira pormenorizada, todas as regras a observar, foi, porém, sempre eludida, pois como explicavam, entre outros, M. Leitão de Andrade

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ram * alguns de rodeio que são muito para ver, e assim o dizem eles, a cujo propósito vos hei-de contar íia história. Eu, como todos sabeis, vejo com óculos e, conforme a opinião de alguns, com eles muito menos. Os dias atrás, sendo eu ainda inocente deste custume, me deram íia carta de um amigo que dizia: Para ver o senhor Solino. Aberta ela, era a letra tal, tão mitída e embaraçada que desmentia o sobrescrito e por nenhua via pude ver o que dizia. Mas respondi noutra letra muito peor e pus no sobrescrito: Para cegar o senhor Fuão, ao que ele depois me respondeu que estava polo custume dos presentes. — Nem todos se hão-de seguir (disse o Doutor) que, como escreve o filósofo Favorino, cada um deve usar de palavras presentes e custumes antigos

na sua Miscelânea (Lisboa, 1629, pp. 93. 94) e M. Faria e Sousa na Europa Portuguesa (Lisboa, 1678-1680, 11, 1. 2, p. 114) houve necessidade, em 1594. com nova severidade e ameaças de procedimento Judicial, de publicar, com alguma adição, essa Pragmática (de novo em 1598. 1600, 1610) e, em 1597. de uma Provisam de como se ha-de falar e escrever... e, anos depois (1612) de um Alvará para se publicar de novo e executar as penas da Lei da Pragmática sobre cortesias e modo de falar e escrever. A própria lei, como todas, admitiu esclarecimentos e derrogações, como esse Alvará para se poder falar por excelência ao Duque de Aveiro dado em Madrid em 30.VI.I606... e o Alvará por que el Rey (Filipe IV) concede que ao barão de Alvito se lhe possa falar por Senhoria (Lisboa, 28.X.1609). Para uma época um pouco anterior terá interesse verificar o que praticavam os infantes (filhos de D. João I) quando escreviam ao duque de Bragança e o que observava o duque de Bragança quaruio escrevia (in D. António Caetano de Sousa, História Genealógica da Casa Real, IV, 1, pp. 282-283). mas também a premência de tal questão na cone de D. João III, tanio nas páginas que nos Anais (I, 14) lhe dedica Fr, Luís de Sousa, como naquelas em que P. Alcáçova Carneiro (Relações, ed. E. Campos de Andrade, Lisboa. Imp. Nacional, 1937, pp. 259-261) recorda a vinda para Lisboa do Senhor D. Duane, filho natural do rei Piedoso. Sobre o assunto, pode consultar-se, A. Heredia Herrera, La Pragmática de los tratamieníos y cortesias: fonte legal para el estúdio de la diplomática moderna, ARCH. Hisp., LVII (1974) e A. Dominguez Oniz, La Sociedade Espanola en el Sigla XVII, Madrid. C. S. I . C , 1963, pp. 42-44. * A edição original (1619) traz aqui novamente (tornou Solino), indicação que, a estar o texto completo, será um descuido ou erro tipográfico. E em qualquer caso, hoje, é notação escusada, pois, como se vê pela continuação, é Solino que segue falando. ' É a tradução de uma sentença — verhis praesentibus utendum et moríhus praeteritis vivendum — atribuída por Aulo Gélio a Favorino numa página (Noct. Attic. liv. II, 7) contra afectação do uso de arcaísmos e gozou de variadíssima transcrição e de amplíssima divulgação. Para além dos autores que, com maior ou menor precisão, citam a página de A. Gélio, tal sentença era acessível através da Praefatio dessa notável enciclopédia de vária erudição que é o Catalogus Gloriae Mundi de Barthélemy de Chasseneux (B. Chasseneus), no lugar em que o autor justifica o seu estilo. Entre nós, além de R. Lobo, Duarte Nunes do Lião (Origem da Língua Portuguesa, Lisboa, 1606, Cap. XXVI), André Rodrigues de Évora (Setentia et Exempla Ex Probatissimis quibusque Scriptoribus colleta et per locos communes digesta, Coimbra, 1554, 1567... sub voce «Sermo»), Fr. Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã (Coimbra, 1563. [I] Diálogo da Justiça, cap. VII) podem atestar alguns dos diversos modos dessa divulgação e aplicação.

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E, mais quando o uso é abusão, que no primeiro, por ser tal, o defenderam as leis, e no segundo o repreendem os mesmos que o usam. Contudo, Leonardo dirá o que lhe parece. — A mim (respondeu ele) que a lei é boa e a cautela, escusada. Porém, o sobrescrito tem mais partes de cortesia que essa que dissestes, ainda que à primeira vista pareça cousa tão limitada. E, para que comecemos em ordem, sobrescrito é ua notícia vulgar da pessoa a quem se escreve e do lugar aonde lhe mandam a carta, expremindo-se nele o nome e a dinidade por onde é mais conhecida, e o do lugar aonde naquele tempo assiste. Nesta regra geral há ua limitação, e é que às pessoas de grande título e cargo se pode calar ou usar de outro modo diferente esta segunda notícia, porque, além dos cargos declararem muitas vezes a assistência das pessoas, parece cortesia que às que são mui conhecidas por seu título e dignidade, basta essa e o nome para serem buscadas. O primeiro modo é como se escrevêssemos: a N., Viso-rei da índia; a N., General de Portugal. O segundo, como: a A'., Embaixador de El-Rei de Espanha em a corte de Roma. E, posto que estes assistam a tal tempo em vilas ou cidades particulares, não é necessária outra leitura no sobrescrito. Não trato aqui das cartas enviadas aos reis, de seus vassalos, porque não entram nesta regra as que vêm dirigidas a seus conselhos particulares. — Bem podereis (disse o Doutor) meter nesse lugar a história de um letrado da minha profissão, que, mandando ua informação à Mesa do Paço, pôs no sobrescrito: A El-Rei nosso Senhor nos seus Paços da Ribeira, junto de Luís César — Doutro soldado ouvi eu contar (disse Solino) que escreveu à índia: A. N. Viso-Rei da índia, nos Paços de Goa, defronte de um lanceiro torto — Para gente tão néscia (disse Leonardo) não servem preceitos, mas em outra vejo muitas vezes sobrescritos tão miúdos e sobejos que pessoas mui

Conselheiro de Estado, procurador-geral das Armadas de Portugal e personagem marcanie do reinado do cardeal D. Heruique e do de Filipe I de Portugal, como.assinala P. Roiz Soares no seu Memorial (ed. M. Lopes de Almeida, Coimbra, 1967, p. 167). " O anedotário acerca dos sobrescritos mal ouridiculamenteendereçados é frequente nas colecções de ditos, apotegmas, factos memoráveis em que abundou certo tipo de erudição dos séculos XVI e xvn, consagrada peninsularmenie em «florestas» (M. de Santa Cruz, Floresta EspaHola de Apoftegmas, Zaragoza, 1574; J. Rufo, Las Seiscientas Apotegmas, Toledo, 1596) e em «colecções» (Pedro J, Supico de Morais, Colecção Moral de Vários Apoftegmas. Lisboa. 1720). Tal erudição teve ecos nos manuais da cortesania desde os grandes tratados (B. Castiglione), até à obra de G. delia Casa e, naturalmente, às suas adaptações na Península (Lucas Gracián Danlisco) e descendências (R. Lobo...). Um exemplo mais pode ser o que vem nessa vastíssima colecção que são os Ditos Portugueses Dignos de Memória (ms. do século xvi, ed. por J. H. Saraiva, Lisboa, Public. Europa-América, S. A., p. 104, n." 249): Trazendo-lhe [ao Conde de Redondo] urrui carta com o sobrescrito «para o Vizo-Rei» e em baixo, ao pé «De São Sabastião de Pagim«, porque isto eram sempre cartas de importunações, disse: — «Ele é o S. Sebastião, e eu sou o asseteado.»

particulares se podiam dar por afrontadas deles, como é: a Fuão, em tal terra, em tal ma, detrás de tal parte, defronte de tal casa e junto a N . E, às vezes, é a pessoa tal que deve ser mais conhecida por si que polas confrontações. — Dos sobejos (atalhou Solino) não posso eu calar um, que vi há poucos dias, de um frade que escreveu ao seu provincial, que tinha cinco Padres-Nossos como conta benta e dizia: Ao muito Reverendo Padre nosso, o nosso Padre N., nosso Padre Provincial, no Convento de nosso Padre S. N., Padre nosso. — Por isso digo (prosseguiu Leonardo) que a notícia deve ser vulgar, que nem afronte, nem lisonjeie, nem sobeje, nem falte. — Mais provável é (disse D. Júlio) que se peque nos sobrescritos por demasia que por falta, porque todos dizem o nome da pessoa e a terra para que escrevem. — Não já um (respondeu Píndaro) que escreveu: A meu fUho, o Lecenceado em Salamanca, que Deus guarde, parecendo-lhe que bastava o grau em lugar do nome. Mas que lugar dareis vós aos títulos dos sobrescritos? Que há alguns mais compridos que as cartas, que rezam o nome, o título, o senhorio, o cargo, a comenda e ainda as pretensões da pessoa a quem se escreve. — A mim me parece (tomou Leonardo) que os títulos é cousa conveniente e necessária, usados, porém, com moderação conforme ao que tenho dito. que notícia vulgar é ser um homem conhecido por o senhorio e cargo que tem. E, assim, se há-de escrever de cada um o cargo que tem, e por onde é mais conhecido Do senhorio como: A. N., senhor de tal vila. E estando em ela: A. N., na sua vila N. O que também se usa nos lugares e quintas em que cada um assiste. Do cargo: A Fuão, do Conselho de El-Rei e seu Presidente da Fazenda, da Consciência, etc. A Fuão Desembargador de El-Rei nosso Senhor e seu Ouvidor dos Agravos, etc. Tudo isto com a brevidade necessária, porque o sobrescrito, como dixe '^ serve de notícia e não já de adulação. E, na carta, não se permite no sobrescrito o que se não consente no interior. Como se algum escrevesse a este fidalgo e lhe quisesse pôr os títulos, que ele merece, no sobrescrito, convém a saber: A D. Júlio, coluna da nobreza de seus passados e glória das esperanças de sua pátria. Ou: Ao Doutor Lívio, honra e luz do Direito Civil, exemplo da filosofia e tesouro da humanidade. Cousas eram estas que deles se podiam dizer, porém, não já no lugar do sobrescrito.

Sobre a dificuldade de precisar tais circunstâncias e cargos à hora de intitular os sobrescritos, poderão ver-se as Trovas dos da chancelaria para saberem como o aviam de intitolar enviadas a Anrique de Almeida que, comendador de Cristo, servia de Vedor ao Duque de Viseu D. Diogo (G. de Resende, Cancioneiro Geral. ed. cit., I I , n." 6(X)). " Mantivemos esta conservadora grafia por fidelidade à edição de 1619, embora conscientes de que se pronunciava (ou deveria pronunciar-se) disse, como se pode ver no Diálogo IX (p. 190) em que dixe é, precisamente, apontado como um arcaísmo a desterrar.

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E passando deles adiante, (a) a segunda cortesia é no papel, da cruz té à primeira regra, que há alguns que lhe põem os olhos muito junto com as sobrancelhas, outros, que lhe deixam polo meio ua estrada de coches. E, pola desconformidade que há entre uns e outros, veio a ser a regra entre os iguais que fique em branco a quarta parte do papel, que vem a ser no alto a primeira dobra, e na ilharga um espaço razoado que dá lugar à mão para ter a carta sem cobrir as letras, e para se cortar ou passar chancela sem as ofender. — E de que nasce (perguntou Píndaro) que muitos deixam mais de meio papel em branco da ilharga e vão cerzir a letra com a cortadura da tesoura? — Esse erro e outros muitos (respondeu ele) nascem de mudarem alguns os serviços às cousas, porque a invenção não estava mal no seu lugar, se a não fizeram servir nos alheios. Em cartas de negócios, feitas a pessoas ocupadas, que se fazem por capímlos e apartados, ou perguntas sobre matérias dos mesmos negócios, se deixa igual parte do papel para responder à margem em ordem a cada ua das cousas, e assim fica servindo para duas ua mesma carta. Mas estas não guardam a regra, nem a cortesia das missivas. O mesmo erro há no que Solino primeiro apontou dos sobrescritos: Para ver o senhor Fuão, que nasceu de alguns papéis emaçados que se passavam de menistro a menistro com somente aquele sobrescrito sem outra carta e sem terem mais de carta que o irem cerrados e selados deram ocasião aos que usam o mesmo termo nos sobrescritos delas. — Muitos erros há (disse D. Júlio) nascidos da mesma ocasião. E posto que seja sair um pouco fora do propósito, é tão grande bugia da virtude e da honra a vaidade, que, somente por a seguir em as aparências, tropeça a cada passo em desatinos. Este escreveu: Para ver, porque N . , menistro, ou privado, escreveu assim; e veste de tal pano, porque N . , de maior calidade, o trazia; e o que este fez (pode ser por remediar o seu frio) faz outro à imitação e se abrasa de quennira. À Espanha se passou o uso de vestir dos soldados de Flandres per bizarria, e razão tinham de i m i t a r e m outras cousas aos práticos que militam em ua praça tão enobrecida das nações da Europa, mas

(a) Da cortesia no apartado do papel. D. Júlio assinala aqui um princfpio fundamental da cortesania: a imitação, sobretudo, do rei, baseando (e limitando), porém, tal princípio na discrição... Demonstra-o, pela negativa, cdm alguns casos ridículos que constam de uma larga tradição anedotária, pondo, ao mesmo tempo, a questão da moda como resultado do mesmo princípio. Mais tarde {Diálogo X/V), desde uma perspectiva de Poder e Política, acenwará que o que entra nesta pretensão (de ser valido), que é a dos que andam mais perto do serviço do príncipe, o primeiro que estuda é - a sua natureza, inclinação, costume, para se ajustar ou avezinhar com seu gosto e se fingir aquele que lhe convém ser para o contentar (p. 262). Note-se, aliás, que já André de Resende na Vida do Infante D. Duane (1515-1540). pôs a questão da moda-imitação em relação a uma cortesania sem fumo de vaidade e sem pendão de hipocresia (conf. Obras Portuguesas, ed. J. Pereira Tavares, Lisboa, Sá da Costa. S. A., pp. 84-92).

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o que eles faziam obrigados do clima e sítio da terra, usavam os cortesãos por gala, levados do engano da vaidade. Os chapéus de aba grande contra a neve, os ferragoulos, abotoados e com descansos, para o frio, as meias de escarlata debaixo de botas altas contra a humidade, as solas levantadas por detrás para não resvalarem nos caramelos, as roupetas abertas sobre as armas, tudo isto, e outras muitas cousas, sendo inventadas pela necessidade, se passaram à galantaria. Deixo as cores de Rei e da Ifante, e a história do mercador com el-rei D. João o Terceiro, que lhe pediu que se quisesse vestir de um pano que tinha muito rico, o qual lhe daria de graça: que, com este ardil, em el-rei o vestindo, vendeu ele à mor valia úa quantidade de peças daquela cor que lhe haviam entrado nua partida. — Não é isso somente nas cartas e nos trajos (disse o Doutor), que ainda passa adiante o engano. Em corte do emperador Carlos V, andando ele indisposto, lhe mandavam os médicos comer borragens, por ser erva medicinal para a sua infirmidade e porque os fidalgos e titulares a viam de ordmário na mesa imperial, sem advertirem a ocasião por que se fazia, veio a valer entre eles muito e a fazerem mil iguarias daquela erva. de sorte que se sameavam tantas nas terras aonde a corte assistia que não havia agros doutro fruito. Usam-se, enfim, as cousas mal, e às vezes são nascidas de bom custume. — Assim é (disse Solino) que até óculos que se inventaram para remediar defeitos da natureza, vi eu já trazer a alguns por galantaria. — Dessa maneira (seguiu D. Júlio) se devia mudar para as cartas o estilo dos papéis, que o não eram, por imitarem aos validos. E, tomando à cortesia, que cousas tem mais de que tratar? — A terceira (tomou ele), é o nome e sinal (a) do que escreveu a carta, que nem há-de estar tão junto das letras que pareça sôfrego delas, nem no meio do papel como quem escolheu o melhor lugar, nem tão apartado que fique ausente das regras, nem tanto na ponta do fim que pareça que se amuou àquele canto; mas com um meio ordinário, como é assinar-se um pouco abaixo das regras, mais inclinado à parte dereita que à esquerda, que é úa certa modéstia e humildade de quem escreve. — E que dizeis (preguntou o Doutor) do acompanhamento do sinal? Porque há uns que se nomeiam servidor de vossa mercê N., outros, vassalos; outros, cativo; outros, seu N., e há rusto muita variedade e ignorância. — Primeiramente (continuou Leonardo) servidor já se passou das cartas para os retretes; servo, para os matos, e cativo, para os comprimentos refinados em a prática; criado, era termo bem criado, e seu é descortesia: e por fugir desta, e de alguns extremos, o mais seguro é escrever cada um o seu nome sem mais leitura.

(a) Da firma e sinal das cartas.

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— Não sejais tão estreito nas licenças (disse Solino) que deitais a perder cartas que só poios encarecimentos do sinal merecem fama. Um homem, escrevendo a sua própria mulher, se assmou vosso servo N., e ela o fazia tal na mesma ausência. O outro, de que contam vulgarmente, porque corria nos sinais o menor criado de vossa mercê N., escrevendo a sua mulher se assinou o menor marido vosso N., e a senhora devia de ter mais varões que a Samaritana. — De ua gentil dama sei eu (disse Píndaro) que, escrevendo a um seu galante, se assinou sua N., e ele, lendo a carta, voltou para um amigo com que estava, e disse: Sempre temi esta nova; e perguntando-lhe o outro que eral, respondeu: Sua N., e é principio de Verão. Outro, em Coimbra, querendo-se humilhar muito aos pés de um amigo a que escrevia, se assinou Antípoda de vossa mercê N. — Quanto mais galantes são essas histórias (tomou Leonardo) tanto mais de estimar é a moderação e bom termo de não sah daquele limite da cortesia comíía. E, passando dela, há-de ter a carta regras direitas, que há alguns que escrevem em escadas como figuras de solfa; letras juntas e razões apartadas, com a distinção dos pontos, vírgulas e acentos necessários, para fazerem perfeito sentido das razões, porque há cortesãos que, por afermosearem a letra e facilitarem melhor os rasgos da pena, vão encadeando as letras polas cabeças como sardinhas de Galiza e de maneira confundem a escritura que não há tirar dela o sentido verdadeiro de seu dono. E há cartas bem notadas que, por mal escritas, perdem reputação. O papel seja limpo para nele empregar sem fastio a vista o que há-de ler, e porque pareçam melhor as letras bem ordenadas; a chancela, sutil, porque ao abrir da carta a não ofenda, que alguns a fazem parecer a carta rota antes de lida; dobras iguais, porque o concerto autoriza as cousas e as faz parecer melhor; o selo, claro, assim para lustro da carta como para guarda dela, pois é o cadeado que a defende dos curiosos de saber segredos alheios. — Não corrais com tanta pressa (disse D. Júlio) por essas particularidades e meudezas, que em alguas delas tmha preguntas que fazer, mas contentar-me-ei com as que se me oferecem de novo sobre a matéria das armas e tenções " com que se costumam selar as cartas. E, assim, estimarei que nos digais disto algúa cousa.

" Leonardo aflora, em apertada síntese (pois, como dirá, é discurso mui comprido [que] não tem lugar em noite tão breve) as complexas teorias e práticas da «Empresa». Matéria eminentemente cavaleiresca e cortesã, como, na sequência de B. Croce, mostrou um dos seus mais notáveis estudiosos, M. Praz, ao intitular de La Filosofia dei Cavaliere um dos capítulos dos seus Studi sul Concettismo, Florença. 1946 (a tradução inglesa — Studies in Seventheenthcentury Imaginery, Roma, 1964, contém em apêndice, uma completíssima bibliografia da literatura emblemática europeia), recebeu em Itália a sua mais acabada elaboração numa vasU tratadística de que um dos maiores, se não o maior, representante é Paolo Giovio. No seu Diálogo delle Imprese Mildari e Amorose, Roma, 1555 e, depois no Ragionamento sulle

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— (a) As armas (prosseguiu ele) é a insígnia que cada um tem de sua nobreza, conforme ao apelido com que se nomeia. E com o sinete delas sela as cartas de importância, ou com elmo e folhagens sobre o paquife do escudo, ou com ele em tarja, como tenção, que estas, como são pensamentos e dessenho particular, se abrem às vezes em redondo, ovado ou quadrângulo, e outras figuras, sem respeitar a do escudo. Em Portugal é cousa muito antigua nos príncipes trazerem tenções e empresas (b) com letras, e ainda as usavam mesturadas nas armas reais, que, posto que naquele tempo não estavam tão apuradas como agora, nem eram sujeitas à arte que delas e para elas fizeram os modernos, não lhes faltava entendimento e galantaria. El-rei D, João, o Primeiro, trazia na oria das armas ua letra que dizia: Por bem (a) Dos sinetes e escudos de armas. (b) Tenções dos reis e príncipes portugueses. Imprese overo Dialogo sopra motli e disegni d'arme e d'amore che comunemente chiamano Imprese, Veneza, 1556, define empresa como um conjunto harmonioso formado por um desenho (corpo) e um lema (alma) que i grartdi signori e nobilissimi Cavalieri a nostri tempi sogliono portare nella soprovesti, arme e bandiere per significare parte de'loro generosi pensiere... De todos os modos, é importante anotar que Leonardo parece fundir ou identificar a empresa (facto histórico, transitório e efémero) com a «insignia-ienção» (empresa) que a perpetua, posição que era, em certa medida, a que defendia G. Ruscelli no Discorso intorno air Inventioni delle Imprese. delle Insegne. de' Motti e delle Libree, Milão, 1559 e, mais tarde, no seu Le Imprese Illusiri, Veneza. 1566. Apesar de Leonardo coincidir aqui e em outros pontos da mesma matéria a que alude mais adiante, com G. Ruscelli e. por vezes, à letra, com um seu discípulo, ainda que critico, S. Guazzo (Dialoghi Piacevoli, Veneza. 1580. Diálogo II — Delle Imprese). a sua fonte mais directa é, para este como para os outros aspectos de re aulica, a Piazza Universale de T. Garzoni (Disc. IV — De' Professori d'lmprese). Obviamente, não cabe aqui aludir sequer à evolução do conceito da "Empresa" cavaleiresca até à sua fusão e confusão, nem sempre pacífica, com o Emblema consagrado por A. Alciato. Leonardo, a propósito de tenções e empresas de carácter heráldico, tal como, adiante, acerca das armas dereinose cidades, aproveita, como quase sempre, para apresentar a vertente nacional do assunto com base na História de Portugal. É aliás, uma valorização do passado histórico bem comum a esse filão importante do Humanismorenascimentala que já fizemos referência. Por outro lado, Leonardo não parece encarar as leiras (empresas) que senhores e cavaleiros tomavam em circunstâncias de justa e torneio e de que podiarecordar,entre outras, as que traz O. Resende no Cancioneiro Geral (ed. cit., n." 614), usadas por D. João I I e outros fidalgos intervenientes nas juntas reais celebradas aquando do casamento do príncipe D. Afonso com D. Isabel de Castela (1490) ou as Letras y Çimeras que sacaron ciertos justadores en la qual justa el rey nuestro senor jurtô y sacó una sede de carcel que decia... in Brian Dutton, El Cancionero dei Siglo XV. C. 1360-1520, Salamanca, Universidad de Salamanca, 1990, I , pp. 222-227. Sobre as divisas, em francês, dos príncipes de Avis pode consultar-se D. Carolina Michàelis de Vasconcelos na sua Introdução a Tragedia de la Insigne Reyna Dona Isabel do condesiável D. Pedro de Portugal (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, p. 58, n." 1); e para uma perspectiva generosamente integradora dessas empresas na visão séria que da sua missão histórica teve a Geração de Avis, podem ler-se as páginas (14-16) que Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Lisboa, 1891, dedica ao assunto.

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E a rainha D. Filipa de Alencastre, sua mulher, outra que respondia a esta em ingrês que dizia: Me contenta. O ifante D. Fernando, seu filho, o Santo, trazia ua capela de hera com seus cachinhos, e no meio dela a Cmz de Avis, de cuja Cavalaria era Mestre. O ifante D. Pedro, ua capela de carvalho com suas bolotas, e no meio uas balanças, e nas armas reais, no banco de pinchar, em cada pé, de alto abaixo, três mãos, e por cima uas letras escritas muitas vezes, que diziam: Desir, e entre cada palavra destas um ramo de carvalho com bolotas. O ifante D. João, que foi Mestre de Santiago, casado com a neta do condestabre D. Nuno Alvares Pereira, trazia ua capela de ramos de silva com cachos de amoras, com as bolsas de Santiago no meio e três concheias, em cada ua com ua letra em ingrês, que dizia; Com muita razão. O ifante D. Henrique, Mestre de Christus, trazia as armas do Mestrado, e as antigas de Portugal, e ao redor um cinto largo de correia que abrochava no cabo de baixo, e ua fivela que fazia volta com a correia, e em ingrês a letra dos cavaleiros da Garroteia, que ele também era, e dezia: Contra si faz quem mal cuida; e ua capela de carrasco, e no banco de pinchar três flores de lírio em cada pé. El-rei D. Afonso, o Quinto, trazia pintado um mundo com esta letra: Conheço que não te conheài. El-rei D. João, o Segundo, seu filho, trazia um rodízio com esta letra: Sete e, e na outra, trazia um pelicano ferindo o peito, e dezia a letra: Pola lei e pola grei. A rainha D. Leonor, sua mulher, trazia ua rede de pescar, a que chamam rastro. El-rei D. Manuel, ua esfera com ua cmz. A Excelente Senhora uns alforges, e nas cevadeiras pintadas as arm^ de Castela com esta letra: Memoria de mi derecho. O marquês de Valença, neto do conde D . Nuno Álvares, trazia dous guindastes, que levantavam um título de pedra, com quatro letras, cada ua por parte. E, além destas, há memória de outras muitas que dão testemunho do uso que delas havia neste Reino. — Por certo (disse D. Júlio), que estou assas contente do fmito que colhi da minha pergunta, por saber coriosidade tão notável dos nossos príncipes antiguos, que para a minha natural inclinação é a cousa de maior gosto e mteresse. E não fora menor, pois falamos de armas e tenções, e vós sois visto nelas, fazer que saibamos mais algúa cousa atrás desta matéria, principalmente donde nasceu e teve princípio o uso dos escudos de armas e das tenções. — Quanto à minha opinião, (respondeu Leonardo) é que armas e empresas ou tenções não tiveram no seu princípio a diferença que agora lhes assi" Título por que era oficialmente conhecida a princesa Joana de Castela (filha de D. Henrique IV e de Joana de Portugal) depois que, apesar do apoio de muita da alta nobreza castelhana e de D. Afonso V de Portugal, derrotada nas suas pretensões ao trono castelhano pelos Reis Católicos, foi destituída de todos os seus títulos e privilégios e obrigada a professar no convento de Santa Clara de Santarém. Viveu depois em Paço de Alcáçova do Castelo de Lisboa e faleceu em 1530.

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nam os que delas escrevem, de letras e corpos, e corpos sem letras, com limitações e regras mui apertadas. Antes me parece que as armas eram as msígnias que os reis e emperadores davam aos seus para ser conhecida sua nobreza, conformando-se na figura delas com a qualidade dos sucessos por onde as mereceram ou com a antiguidade do sangue donde descendiam os a que as davam, e as que os mesmos reis tomavam para si em memória de semelhantes feitos, ou derivadas dos seus antecessores. Empresas ou tenções são as que os mesmos reis, príncipes ou particulares tomam, conformando as figuras e letras com o desenho e pensamento que cada um tem para empreender cousas altas. E daqui adiante entram as regras que depois lhe acrçcentaram, que, por ser um discurso mui comprido, não tem lugar em noite tão breve. Além destas, há outras armas dos reinos, províncias, repúblicas e cidades, que se devem chamar divisas, que tiveram princípio ou das cousas de que são mais abundantes ou da maneu'a em que foram povoadas ou adqueridas. E no que toca ao princípio das armas (a), Hérculos foi o primeiro que trouxe por armas a pele do leão que matou na selva Nemeia despois da vitória que dele teve, e antes desta vitória trazia a mesma insígnia do porco de Erimanto que matou em Arcádia. Jason trouxe por armas o Velocino de ouro que conquistou, Teseu, o Minotauro, Ulisses o Paladion, e Eneias o escudo que ganhou de Ulisses na guerra de Tróia. Estas eram verdadeiras armas, em memória de valerosos feitos. E, quanto ao princípio das empresas, escreve Pausânias que Agamenon trazia no escudo a cabeça de um leão de ouro, com ua letra que dizia: Este é terror dos homens e o que o traz é Agamenon. Antíoco trazia por armas outro leão. Hector, dous leões de ouro em campo vermelho. Seleuco, um touro. Alexandre, um rei de ouro em seu trono em campo azul. Alcibíades, um Cupido. Lúcio Papírio, o Pégaso. César ua águia preta. Pompeio, um leão com ua espada empunhada. Judas Macabeu, um drago vermelho em campo de prata. Átila, um açor coroado. E cada um destes, posto que pudera tomar a figura das armas em significação de feitos celebrados e vitórias adquiridas, só quiseram dar-Ihe as figuras conforme ao seu pensamento; e César, ao agouro que da águia teve. E, descendo às armas particulares dos reis (b), que sabemos: as do Emperador é úa águia preta de duas cabeças em campo de ouro, em memória da de Júlio César e da união do Império Oriental e Ocideptal. Armas de el-rei de França são três flores de lírio de ouro em campo azul, que foram milagrosamente dadas a el-rei Clodoveu. Armas de el-rei de Portugal, os cinco escudos de azul ehi cruz, em sinal do vencimento que o primeiro rei D. Afonso teve dos cinco reis mouros no campo de Ourique, e neles e com eles, os trinta dinheiros de prata, por que Nosso Senhor foi vendido, em memória da sua Paixão e do apare-

(a) As primeiras armas. (b) Armas dos reis cristãos.

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cimenlo que o mesmo rei viu antes da batalha; por orla das armas sete castelos de ouro em campo vermelho, e, por timbre, um drago coroado. Armas de el-rei de Inglaterra: três leopardos de ouro em campo vermelho, posto que dantes tinha el-rei Artur por armas três coroas de ouro em campo azul. Armas de el-rei de Espanha: os castelos e leões, tão conhecidos no mundo. Armas de el-rei de Frízia: um escudo de prata, riscado de linhas vermelhas e atravessado com ua banda azul. Armas de el-rei de Jemsalém: ua cmz de ouro nos extremos com cruzetas do mesmo metal, e outras poios vãos dos ângulos. Armas de el-rei de Polónia: duas águias de prata e um homem em cima de um cavalo do mesmo metal. Armas de el-rei de Irlanda: ua harpa e ua mão que a está tocando. Armas do Preste João da índia: um crucifixo negro, com dous azorragues em campo de ouro. Deixo outros muitos, como as bastões de Aragão, as cadeias de Navarra, a romã de Granada, as bandas de ouro e vermelho de Marlhorca, e outras que querer contar fora infinito. Têm do mesmo modo as províncias (a) suas armas. Primeiramente, as quatro partes em que o mundo se divide: Ásia, três serpentes; África, um elefante; Europa, um cavalo; América, um crocodilo; Itália tinha por armas antigamente o cavalo; Trácia, um Marte; Pérsia, um arco; Scítia, um raio; Arménia, um bode; Fenícia, um Hérculos; Cicflia, ua cabeça armada; Albânia, um cágado; Frízia, ua porca; Espanha, um castelo; Lusitânia, ua cidade. As Repúblicas (b) têm também suas armas particulares: a de Veneza, um leão com um livro nas unhas; a de Sena, úa loba; a de Génova, um S. Jorge; a de Florença um leão com um livro de ouro. As cidades (c), da mesma maneira: Atenas, a comja; Roma, a águia; Lisboa, úa nau com os corvos, em memória do corpo do glorioso mártir S. Vicente, seu padroeiro; Coimbra, o drago e a donzela coroada; Évora, as cabeças das vigias; o Porto, a imagem de Nossa Senhora entre duas torres; Leiria, ua torre entre dois púiheiros e neles dous corvos. E assim todas as outras. Porém, isto é já muito tarde, e gastámos nesta matéria mais tempo do que convinha à das cartas, em que começámos (d). E por que nas armas e tenções não nos fique por saber alguas significações e figuras de armas dos particulares senhores e fidalgos de Portugal, que todas foram merecidas com louvor de gloriosos feitos, deixando os animais significadores de força, braveza e velocidade e os planetas de poder, antiguidade e clareza, e outras figuras semelhantes: banda significa postura de tábua; escada, o engenho por onde se cometeu algúa obra de valor ou dificultosa entrada, com risco da vida; faxa ou barra representa vitória de batalha singular de cavaleiro a cavaleiro, e quantas forem tantos diremos que

(a) (b) (c) (d)

são os vencimentos com que se ganharam as armas; parte de muro, torre ou castelo significa ser ganhado, entrado ou socorrido com esforço e perigo da vida; escadas, hásteas ou pedaços de lanças denotam subida trabalH6sa ou defensão arriscada na mesma subida. Assim que a variedade dos corpos ou formas que vedes nas armas, todas nasceram de ilustres façanhas e valerosos feitos. E todas as das empresas e tenções dão sinal claro do ânimo e pensamento de seus donos; e com úas e outras se devem selar as cartas, de maneira que se divisem as figuras e letras delas, como tenho dito. — Vejo (disse Solino) que temos a carta cerrada, selada e com sobrescrito, sem ainda sabermos nada do principal dela. — Não vos enfadeis (respondeu ele) que na noite de amanhã a abriremos e leremos muito devagar a estes senhores, se não ficarem de agora cansados do sobrescrito. — Antes (disseram eles) que só o dia seguinte lhes parecia comprido e vagaroso. E dando fim à conversação daquele noite, deram o que dela ficava ao repouso, que, com a moderada recreação de horas bem gastadas, é mais aprazível.

Annas das províncias. Armas das repúblicas. Armas das cidades. Significação das figuras das anuas.

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DIÁLOGO I I I

Da maneira de escrever e da diferença das cartas missivas Mui satisfeito ficou D. Júlio de ouvir a Leonardo aquela noite na matéria das armas e quasi a escolhera antes que a das cartas. Por alguns particulares, que desejava saber, quis com mão alheia, por não parecer importuno perguntar alguas cousas a Solino, que achou junto à sua porta e, depois de o saudar, lhe disse: — Como estais depois da noite de ontem? — Como o dado (respondeu ele), que está de qualquer ilharga. — Devíeis de ficar do azar, (tomou D. Júlio) pois tendes tão poucos pontos que faltais aos da cortesia. — Fiquei (tomou ele) tão cansado das da carta de Leonardo que lhe tomei aborrecimento, e nem estou para vos servir, nem para o dizer, e perdoai-me. — Logo (disse o Fidalgo) não quereis continuar na conversação desta noite? — Se a carta (lhe tomou Solino) há-de ser tão comprida como o sobrescrito, assim o imagino. — Pois a minha tenção (prosseguiu ele) era pedir-vos que na matéria das armas, que ele tocou, fizésseis alguas perguntas à minha conta sobre alguns particulares das famílias deste Reino. — Vós deveis buscar armas para me matar, (disse Solino) porque das de ontem saí eu tão escalavrado que determinava fugir delas; e sei que tem Leonardo tantos livros de armas e gerações que, se o tirar a terreiro, havemos mister todo o Inverno para o ouvir. — Eu me contento (respondeu D. Júlio) com saber que ele tem os livros, e, assi, vos escuso do trabalho, porque neles lerei alguns feitos particulares dos portugueses merecedores dos brazões que seus sucessores possuem. 88

— Bom seria (disse Solino) acabar as cartas antes de entrar por esses feitos, e para isso vos irei acompanhando té a casa de Leonardo, posto que tinha outra determinação. — Por que vós não falteis (respondeu D. Júlio) quero ir mais cedo. E com esta prática, e outras que ocorriam, foram passeando e entretendo o que ficava do dia, té que a sombra da noite e úa chuva meúda os fez recolher a casa de Leonardo, aonde os amigos esperavam já que eles chegassem. E, com' Píndaro, outro estudante seu companheiro por nome Feliciano, que vindo-o a visitar, se aproveitou da ocasião em sua companhia. Festejaram todos a Solino e ele, vendo o hóspede, de novo se lhe inclinou com mais autoridade, e disse para os outros: — Tenho inveja à dita do senhor Lecenceado, que veio ao abrir da carta que cerrámos sem ele e com não pequeno trabalho. — Não o tivera eu por tal, (respondeu o Estudante) antes por grande ventura, se do passado me coubera algúa parte; e esta, que alcanço agora com o consentimento destes senhores por meio de meu companheiro, tenho por muito grande favor e mercê de todos. — Essa humildade (disse Solino) está acreditando mil esperanças do vosso entendimento e bem sei eu que o de Píndaro sabe fazer esta eleição dos amigos também' como em tudo o mais é discreto e acertado. E, para que entendais o lugar em que vos fico, sabei que eu sou o mais certo criado que ele tem entre os senhores presentes. A esta cortesia respondeu Píndaro, e o Estudante com as suas, té que o Doutor os despartiu, e disse a Leonardo: — Bem gastado era o tempo em comprimentos tão cortesãos, e tão devidos, se o desejo que temos de continuar a matéria da noite passada o não quisera poupar todo para ela. E, assim, vos peço que me façais mercê, e a todos, de ir por diante. — Tendes razão (tomou ele) de me aliviardes mais depressa do cuidado em que me metestes. E, tomando atrás, por me aproveitar dos vossos princípios, dissestes que cousa era carta na origem do seu nome, os primeiros modos de escrever e o como entre nós se conservou; tratei do sobrescrito, da cortesia, das letras, do sinal, das dobras e selo da carta, o que bastou para todos ficardes mais enfadados que saudosos. Agora, começando a entrar na leitura das regras, saibamos que cousa é carta missiva ou mandadeira, e o para que foi inventada (a), que pola definição de Marco Túlio, a quem todos seguem, é ua mensageira fiel que interpreta o nosso ânimo aos ausentes, em (a) Definição da carta. ' Também ou tão bem? Todas as edições trazem também, mas desde 1619 a pwntuação da frase não é de molde a clarificar precisamente o sentido. Pensamos, apesar de também poder ser aceitável, «tào bem» estaria mais de acordo com o carácter do cumprimento de Solino a Píndaro.

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que lhes manifesta o que queremos que eles saibam de nossas cousas, ou das que a eles lhes relevam (a). Três géneros de cartas missivas assina o mesmo Túlio, aos quais alguns costumam reduzir muitas espécies delas. O primeiro é das cartas de negócio e das cousas que tocam à vida, fazenda e estado de cada um, que é o que para as cartas primeiro foram inventadas, que, por tratarem de cousas familiares, se chamaram assim. O segundo, de cartas dentre amigos uns aos outros, de novas e cumprimentos de galantarias, que servem de recreação para o entendimento e de alívio e consolação para a vida. O terceiro, de matérias mais graves e de peso, como são de govemo da República e de matérias divinas, de advertências a príncipes e senhores e outras semelhantes. O primeiro género se divide em cartas domésticas, civis e mercantis, O segundo, em carta^ de novas, de recomendação, de agradecimento, de queixumes, de desculpa e de graça. O terceiro, que é mais grave e levantado, contém cartas reais em matérias de Estado, cartas públicas, invectivas, consolatórias, laudativas, persuasórias e outras, que se pegam a cada I ua das que nomeei em todos os três géneros. — E aonde deixais (disse D. Júlio) as cartas amatórias ou namoradas? que se na vossa idade não têm lugar, parece que o mereciam neste discurso. — Bem sei eu (tomou Solino) quem as tomara no primeiro, mas o senhor Leonardo já não joga com essas cartas. — Não me esquecia de todo delas (tomou ele), mas deixo-as para que no fim das mais sejam melhor recebidas, e para prosseguh a matéria quem agora as puder apurar. — As do primeiro género (disse o Doutor) me parecem cartas muito secas, que é matéria estéril para que empregueis nela sem fmito o vosso entendimento. Antes (disse Leonardo), como essas foram as primeiras, e delas nasceram as leis e as regras para outras, será razão que debaixo deste género tratemos das mais, repartindo o pouco que eu soube dizer por os lugares de cada úa. E, assim, me parece que, como a carta que escrevemos ao amigo sobre seu negócio, ao criado sobre as cousas da casa, e o mercador ao outro sobre seus tratos e mercancia, é um aviso e ua relação que lhe não podemos fazer em presença, fazendo-o por meio de úa carta, devemos usar nela o que na prática costumamos ^ que é brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios e propriedade sem metáforas nem translações (b).

(a) Três géneros de cartas missivas. (b) Brevidade, clareza e propriedade do escrever nas cartas. ^ Leonardo enuncia aqui a regra de oiro da ars dictaminis cortesã e que será largamente desenvolvida, sob outros pontos de vista, ao longo da obra, sobretudo aquando dos diálogos dedicados à arte da comum e civil conversação dos cortesãos (Diál. XVI, p. 291-292), A base de tal regra — usar nela (escrita) o que na prática costumamos.... devemos escrever comofa-

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— E quando (disse o Doutor) seremos breves em úa carta? — Quando (respondeu ele) de tal maneira, e com tal artifício a escrevermos, que se entendam dela mais cousas do que tem de palavras. — E como pode ser? (tomou ele). — Por meio dos relativos e subsequentes (disse Leonardo) que, sem nomear as palavras, as repetem; e por ordem das sentenças e adajos, que, sem entender as cousas, as declaram; e nisto se adiantam muito as cartas da prática familiar \e se escrevem de cuidado, e têm mais tempo de se furtarem palavras para se subentenderem razões. — E que cousa é enfeite ou afeitação? (perguntou Solino). — E (disse ele) o cuidado sobejo de enfeitar as palavras por elegância, ou por via de epítetos, ou de escolha de lugar para as sílabas fazerem melhor som aos ouvidos. E, em favor desta opinião, dezia um homem insigne deste Reino e que teve nele os melhores lugares da república eclesiástica e secular, que a carta e a mulher muito enfeitadas, em certo modo eram desonestas; e eu antes seguira este voto que o de alguns retóricos que deram à carta missiva cinco partes de oração, convém a saber: saudação, exórdio, narração, petição e conclusão; e, se houvéssemos de seguir o seu estilo, mudaríamos de todo o das cartas ^ íamos... — se decorre, em extensa medida, da opção, então decididamente assumida por Leonardo, pelas excelências da prática sobre a escrita.... é também uma consequência da opinião de muito Humanismo. Juan de Valdês ( t 1541) no Diálogo de la Lengua, obra escrita em anos italianos do seu autor (Roma, Nápoles), mas que, em princípio, R. Lobo não deveria ter conhecido, pois, só será publicada, recordemo-lo, em 1737, tinha já ditado a lei — escriba como hablo (ed. cit., p. 189). Tal posição que, por sua vez, pretende afastar qualquer sombra de afectação na escrita, pois será também rejeitada para a «prática», aparta-se, conirariando-os, quer do que defende B. Castiglione (// Cortegiano, I . 29) quer de P. Bembo {Prose delia Vulgare Lingua, I , 16-19). Este último, apesar de algum matiz, parece defender limin^ente. quase como conclusão de um cuidadoso exame da questão, que, porque migliore e piu lodato è il parlare nelle scriture de passaii uomini. che quello che è o in bocca o nelle scriture de' vivi, se deve con lo stile delle passate stagione scrivere {Prose, I , in Opere in Volgare, Firenze, Sansoni, S. A., p. 302). A imitação dos grandes autores é, logo, a pauta do classicismo linguístico e literário... E mesmo um autor tão equilibrado como Stefano Guazzo em La Civil Conversatione (Brescia, 1574), obra que R. Lobo seguramente conheceria, não deixava de insistir que se deve scrivere como si dee e di parlare come si suole... (ed. Veneza, 1628, p. 148). Ora este tipo de imitação clássica não estava na mira da Corte na Aldeia que não pretendia formar nem um gramático, nem um «literato», nem um secretário, mas, sim, um cortesão que sabendo supejar a prática familiar, saiba igualmente evitar os escolhos, antes de mais, da afectação. ' Se Leonardo defende que na carta devemos usar o que na prática costumamos, tal não significa que nela se use a prática familiar, que, dentre outros recursos, se serve, como explicará depois, de «metáforas e translações» humildes, populares ou inovadas..., princípio que voltará a afirmar mais adiante, acrescentando, então, o dever de fugir do laiinismo e do estrangeirismo. * Leonardo manifesta-se contrário à aplicação da ars dictaminis medieval à carta missiva cortesã, cujo modelo poderiam ser as «epístolas» familiares de Cícero. De qualquer modo, será

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— Nunca retóricos (disse o Estudante) souberam escrever cartas, se as sujeitaram às leis da oração. Mas parece que o senhor Leonardo dá a entender que na carta se não devem usar epítetos ou adjectivos por evitar o enfeite e sobeja elegância dela, e eu tenho que sem eles se não pode escrever. — Os epítetos (a) (prosseguiu Leonardo) ou servem para descrição e declaração das cousas, ou para propriedade, ou para omamento e enfeite delas. Os primeiros são necessários nas cartas como em tudo; os segundos, menos; os terceiros, escusados. Para dizer ou escrever um homem douto, ua mulher fermosa, um cavalo ligeiro, úa árvore alta, um caminho comprido, um peito forte, são atributos necessários para declarar o que queremos dizer; porque há homem que não é douto, mulher que é feia, e os mais. Os de propriedade como ferro frio, relva verde, sol claro, calma ardente, areia seca, pedra dura, estes são pouco necessários nas cartas e somente por comparação ou em adajos se devem usar nelas, como dizendo, é duro como pedra, ou é dar em pedra dura ou é malhar em ferro frio. Os de elegância e omamento tenho eu que se hão-de degradar das cartas missivas para fora do termo delas, como agora firme sofrimento, incansável deligênda. solícito desejo, cuidadoso receio, importuna lembrança, desusada brandura e outros que têm juiz de seu foro. Assim que não digo que faltem nas cartas epítetos necessários, mas que se escusem os sobejos, nem se andem granjeando as palavras para fazerem assento em o cabo da sentença, que será ir contra a brevidade, sem enfeite ou afeitação. — Parecia-me a mim (disse Solino) que a carta breve seria a de menos regras e que não estava a cousa nos epítetos serem próprios ou necessários. — Ua carta (prosseguiu ele) pode ser breve e levar escritas muitas páginas de papel, porque pode tratar de tantos negóceos ou cousas que as ocupem, mas estarão relatadas de modo que seja a leitura comprida e a carta breve. — O segundo ponto (perguntou Píndaro), que é clareza (b) sem rodeios, me parece a mim que fica declarado nessa primeira parte, pois sendo breve a carta, e não tendo enfeite nas palavras, será clara e sem rodeios? — Não estais no caso (tomou ele), que posto que a clareza é parte da brevidade, a clareza é das razões e a brevidade das palavras. E, assim, pode a carta ser breve, mas confusa, e clara sendo comprida, que muitos, para (a) Dos epítetos e enfeite da carta. (b) Da clareza das cartas. interessante anotar que, pelos mesmos anos, Luís Afonso de Carballo em Cisne de Apolo (Diál. m, ed. cit., p. 51) acentuava a importância de tais princípios retóricos para as canas que os poetas usam na comédia e nas histórias..,, adomando-as ainda, contrariamente ao modelo ciceroniano, com figuras e sentencias graves como faz Ovídio. Do contraste das duas posições (que não se situam ao mesmo nível) resulta sublinhada a superação equilibrada da Retórica como meio de lograr o que poderia dizer-se uma «retórica cortesã».

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dizerem cousas que têm estrada coimbrã' e caminho direito, buscam rodeios e atalhos em que se perdem, confundindo o que querem dizer. Em ua minha doença me escr^eu um amigo e dizia: Disseram-me que a saúde de vossa mercê corria perigo na inconveniência de médicos discrepantes no remédio dos males dessa doença. E fez estas trocas aonde podia dizer: Soube que os médicos não se conformavam na cura dos vosso males, que na dúvida deles corria risco a vossa saúde. Outro me escreveu há muitos dias: Se vossa mercê não está ausente das lembranças que suas promessas me asseguravam de haver de ter muitas deste seu cativo. Havendo de dizer: Se vos não esquece que me prometestes de ter lembrança de mim. E, porque ainda temos lugar de tomar aos particulares das disposições das razões, passando ao terceiro ponto, que é propriedade (a) sem metáforas ou translações. — A propriedade (disse o Doutor) era matéria da noite passada quando falastes das letras e razões em seu lugar, .sem barbaria nem impropriedade no escrever, e, como isto é parte do exterior da carta, já hoje não tem dia. — A propriedade que vós dizeis (acudiu Leonardo) é exterior, mas muito diferente a de que eu trato e não pouco importante ao falar e escrever, que é a propriedade das palavras na sua própria significação, sem serem emprestadas por via de translações para outros lugares, que é termo que argúi pobreza de linguagem. E, por que fique mais declarado, sabei que dizemos em português, falando propriamente dos nomes: Bando de aves, cardume de peixes, rebanho de ovelhas, fato de cabras, vara de porcos, alcateia de lobos, tropel de cavalos, cáfila de camelos, recua de cavalgaduras, manga de arcabuzeiros, mó ou roda de homens; e se, trocando isto, disséramos: Um cardume de aves. ou ua alcateia de ovelhas, ou um fato de porcos, seria impropriedade e desconcerto. Dizemos também nos verbos: Chiar de aves, balar de gado, grunhir de porcos, ladrar de cães, rinchar de cavalos, bramir de leões, empolar de mares, encapelar de ondas, assoprar de ventos, etc. E se disséssemos chiar de porcos, rinchar de leões e grunhir de cavalos, seria o mesmo erro. E. porque há metáforas e ffanslações tão usadas e próprias que parecem nascidas com a mesma língua, que como adajos andam pegadas a ela, se devem trazer, quando forem tais, nas cartas missivas do mesmo modo que na prática se costumam. Dizemos dos nomes: folha de espada, lume de espelho, veia de água, braço de mar, língua de fogo, lanço de muro, faixa de ferro, e outras semelhantes; e nos verbos: lançar o cavalo, fazer á capa, quebrar a palavra, cospir o pelouro, arrepiar a carreira, e outras muitas. E, além destas, tão usadas e naturais que servem de propriedade à

(a) Da propriedade das palavras no escrever. * Caminho comum, fácil (Conf. Martin Afonso de Miranda, Tempo de Agora. Lisboa. 1622 (1.° P); 1624 (2.° P); Oh intemperança, largueza, devassidão, mãy de tudos os vicios e estrada coimbrã para o inferno... (cit. ed. 1785, tU, p. 159).

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língua portuguesa, há outras nascidas de provérbios ou adajos, que têm o mesmo lugar e antiguidade, como são furtar o corpo, ir vento em popa, nadar contra a água, ficar em seco, repicar em salvo, tirar barro à parede, etc. E quanto a carta tiver mais destas, será mais breve e cortesã, pois, como primeiro disse, por este modo se entendem da carta mais cousas do que tem escrito de palavras. Pelo contrário usando, em lugar destas, outras humildes, populares ou inovadas, será vício na propriedade da carta; como se nos nomes disséssemos (a): um feixe de cuidados, um mar de encomendas, um moio de queixumes, um golpe de razões; e nos verbos, como: enfeitar o desejo, tropeçar em cuidados, navegar em desconfiança, e outras muitas. Esta é a propriedade de que trato e a que me parece que se deve usar no escrever das cartas missivas, porque não sofre o estilo delas o que em a prática, ou em outro género de escritura, não somente se permite, mas muitas vezes se deseja. — Espero (disse D. Júlio) que deis algua limitação, ou declareis a linguagem que se deve usar neste estilo das cartas; porque encontro muitas muito mal escritas, cujos erros, a meu ver, nascem de os homens se cansarem muito em quererem parecer singulares. — Posto que isso pertence primeiro ao falar que ao escrever (respondeu Leonardo), pois, como já disse, devemos escrever como praticamos, as palavras da carta hão-de ser vulgares, e não já populares (b), nem esquisitas: vulgares de modo que todos as entendam, e, ao menos, que a quem se escrevem não sejam perigrinas; e não já populares, que sejam termos humildes, palavras baixas que a cortesia não recebe, e que tão pouco, em lugar dos adajos e sentenças, tenham anexins. Também se deve fugir ao termo esquisito de palavras alatinadas, ou acarretadas de outras línguas estranhas, que sempre têm o sabor da sua origem. — Assim na linguagem, como em tudo (acudiu Feliciano), ficávamos satisfeitos se de aqueles três géneros, em que o senhor Leonardo dividiu as cartas, dera alguns exemplos que nos alumiaram; porque nem as regras sem eles ensinam de todo, nem se pode perder a lição de tão bom estilo. O que eu não pedira se foram dos vinte géneros de cartas em que um retórico as dividiu ^, que, por querer dar leis e partes a cada úa, as confundiu todas.

(a) Modos de falar errados. (b) Nomes populares. * Determinar dentre o grande número de tratadistas, sobretudo italianos, o «retórico» a que alude Feliciano, não parece tarefa fácil. Lembremos, a título de simples exemplos que caberiam na crítica do estudante, esquecido já, talvez, das quinze divisões que Leonardo deu dos géneros «clássicos» das cartas, que Erasmo, no De Conscribendis Epistolis Opus, ao tratar dos ires omnium generum fontes aponta 4 géneros com as respectivas subdivisões — só para o género suasório apresenta onze — que, somadas, bem pxxleriam chegar a vinte...; Rodrigo de Espinosa na Arte Retórica (Madrid. 1578) apresenta irês géneros e vinte e uma subdivisões;

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— Em tudo (tomou ele) vos quisera satisfazer. Porém, cartas mais se hão-de escrever em ocasião do que trazerem-se por exemplo', que é o porque eu lhe não dera regra certa, nem das muitas que há bem escritas se pode tirar; que esse autor que vós dizeis, lhe assinou vinte géneros, achará fora deles infinitas cartas bem melhor escritas que as com que os ele quer autorizar. Porém, com o pressuposto de não dar preceitos: as cartas do primeiro género, familiares, domésticas, civis e mercantis, respeitam tanto a brevidade que não podem os retóricos dividi-las em partes, se não forem nas da oração. E bastava para exemplo aquela de Cícero a Cornélio, que dizia somente: (a) «Alegrai-vos de eu não estar mal; pois terei o mesmo contentamento de saber que estais bem.»* E muito é mais para notar úa carta de Octávio Emperador para Caio Druso, seu sobrinho, que contém bem mais cousas e avisos que palavras, e dezia: (b) «Pois estais no Ilírico, lembrai-vos que sois dos Césares, que vos mandou o Senado, que sois moço, meu sobrinho e cidadão romano.» E estas, e outras semelhantes, nem têm regra, nem deixam de ser cartas. Mas, por que não só nos ajudemos das antiguas, mas também com as nossas, façamos postoleta. Esta é breve e doméstica, que um cortesão escreveu a seu amigo a quem nua ausência deixara sua casa, e diz: (c) «Estou tão confiado no que vos mereço, e tão seguro no que de vosso ânimo tenho conhecido, que me não dá cuidado a família que deixei ã vossa (a) Carta de Cícero a Cornélio. (b) Carta de Octávio a Druso. (c) Carta moderna a um amigo. F. Sansovino no Del Secretário (Veneza, 1564), obra divulgadíssima, apresenta dezanove; Bartolomeu Zucchi em L'idea dei Secretario (Veneza, 1600), sem preocupação de géneros, classifica dezassete espécies; recordemos que também T. Garzoni na Piazza Universale (Disc. XXVIIÍ — De 'Scriiori. o Scrivani e Cartari, ed. cit. p. 241 apresenta vinte e um géneros... ^ Leonardo procura fundamentar, resumindo e ordenando práticas retóricas em vulgar de base ciceroniana, os três principais géneros (L" Cartas familiares, domésticas, civis e mercantis; 2." Cartas de novas; 3.° cartas de Estado e de Govemo) em que a carta deve manifesiar-se «cortesã», fornecendo, ao mesmo tempo uma série de orientações (não preceitos, como era corrente na tralatística epistolográfica) e de exemplos para tal fim. De lodos os modos, Leonardo, mesmo que, tudo ponderado, acabe também por elaborar um «formulário», ficará sempre longe da rigidez de que se revestiam os que. atravessando a Idade Média, logo foram consagrados e divulgados pela imprensa. Para os tempos de Rodrigues Lobo recordemos quer a Arte de Escribir Cartas ~Familiares (Madrid, 1589) de Tomás Gracián Danlisco (irmão do adaptador de // Galateo ao castelhano), quer o difundidíssimo Formulário y Estilo Curioso de Escribir Cartas Missivas segun el Orden que al presente se guarda (Madrid, 1599. mas com 16 edições, pelo menos, até 1627) de Juan Vicente Pelligero, quer ainda o Formulário de Cartas Familiares, segun el govierno de Prelados y Senores temporales (Madrid. 1600) de Geronimo Paulo Manzanares. ^ * A maioria dos exemplos do primeiro género «cortesão» que se caracteriza, antes de mais. pela brevidade, está muito próxima, quando não seja mesmo idêntica, dos Concetti (Veneza, 1552) de G. Garimberto.

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conta, senão o trabalho que vos dará o sustentá-la; não procuro saber dela mais que novas de vossa saúde; que. em quanto a tiverdes, estará sem sobressalto a minha vida. A qual o amigo respondeu com brevidade, e dezia desta maneira: (a) «Nesta casa só vós fazeis falta, mas como sois o tudo dela, ainda que sobeja a minha diligência, lhe falta tudo. No que é servir-vos, a todos satisfaço, senão o meu desejo, que é igual ás obrigações que vos tenho. Vivei seguro e gozai saúde, que, em quanto a tiver, porei por vossas cousas a vida.» — Não estão as cartas para desprezar (disse Solino) e para me assegurar se a vossa memória é arquivo delas, ou se as ides fingindo de repente (ainda que isto é menos curiosidade que tenção), hei-de pedir por parte destes senhores que de algua nos deis semelhantes exemplos. — Não quero (disse ele) que acrediteis tanto o meu entendimento com mostrardes desconfiança da memória, mas a troco do louvor vos hei-de obedecer nas que me lembrarem. E, prosseguindo nas da segunda espécie deste género, me parece carta civil e breve esta que um amigo escreveu a outro que mudava sua casa para a terra aonde ele vivia; e diz: (b) «Espero com grande alvoroço que venhais para esta cidade, para que com vossa companhia viva nela contente e vós desenganado de quão pouco em si tem que me possa alegrar, senão depois que vos possuir.» A quem o amigo brevemente respondeu em outra que dezia:, (c) «Assim como o desterro em o melhor lugar é penoso, nenhum pode haver tão estéril que, tendo a tal amigo, não seja desejado. Vóis sois a quem busco; é força que me contente a parte onde vos achar, que as pedras não fazem a cidade, senão os homens, nem as comodidades da vida a sustentam, senão os amigos.» As mercantis, posto que são segundo os tratos e negócios e acodem mais a eles que ao bom termo dos comprimentos, não deixa de haver muitas tão bem escritas que podem ter lugar entre as melhores. E ainda que não é delas ua que eu vi há poucos dias, a direi por ser tão breve, e era esta: (d) «Há nova de cossários no mar, e, por esse respeito, grande risco nas fazendas dessa terra. Porém, a valia delas será muito aventajada se chegarem a este porto a salvamento. Se a cobiça do interesse vence o perigo das encomendas, ponde-as em ventura, que eu a terei para mim por muito boa o vosso bom sucesso.»

(aj (b) {O (d)

Reposta. Carta a um amigo. Reposta. Carta mercantil.

E assim não me desagradou outra, que dezia desta maneira: (a) «Com os tempos contrários à navegação o foram as ocasiões ao nosso trato, que, como as mercadorias não foram requestadas de estrangeiros, estão ao presente abatidas. Enviai-me menos delas para que, faltando, mais as procurem os mercadores da terra. E nessa vos não descuideis de fazer emprego, mandando-me o de muito boas novas vossas.» — Não me pareceu (disse o Doutor) que tirásseis tão boa doutrina de matéria tão limitada, porque esse primeiro género de cartas tinha eu que não saía de uns termos e princípios que andam escritos no pano da serpe, como são: À feitura desta. Esta não é para mais. Ua de v. m. me deram. Pola de V. m. de tantos do passado. Depois de me encomendar em v. m. E daqui correndo por seus capítulos de quanto a isto e quanto a estoutro, até topar no a quem Deus guarde. — Esses princípios, (disse Solino) estão já mui bolorentos, mas ainda para cartas de mais ponto tenho outros granjeados de alguas secretarias velhas como impressão de Fortes ^, de que me valho nas pressas de ua boa nota, que não são tão corriqueiros. — Não me atreverei eu sem esses (disse Leonardo) a ir pror diante, polo que vos hei por notificado. — Pois assim é, (disse Solino) quero obedecer, ainda que perco grande valhacouto em os descobrir, porque sabei que é comer feito para os ronceiros desta mecânica e o mor trabalho dela é desencalhar a pena com a primeira palavra. E são quatro (b): Como quer que. Tanto que. Depois que, e Antes que. E sabei que não há propósito que saia das unhas destes bilhafres. E nos capítulos de quando isto, etc, se mete em lugar do quanto, no que toca a tal, e no que toca a qual, que, a meu ver, era melhor o item, que tínhamos tomado aos latinos. Mas os notadores de espada solta esgrimem já agora sem estes bordões maravilhosamente. — Bons estão os princípios (disse D. Júlio), porém haveis de meter a letra em todos eles, para que nos não passem por alto. — Antes por muito rasteiros (respondeu ele) vos ficarão entre os peis. Porém, tende tento, e vereis que são princípios de perafuso e que se encaixam e viram para todas as partes como grimpa: «Como quer que os meus serviços montem ante vós tão pouco, e a vontade por minha seja de menos preço, etc. (a) Carta mercantil, (b) Termos de escrever antigos reprovados. ' Assim, com mailiscula, na primeira edição; em outras, como, por exemplo, na de 1774 (Lisboa, J, Rodrigues) vem Torres. Em qualquer caso, e na suposição de que o nome está correctamente grafado, não parece fácil determinar se Solino se refere a um impressor ou a um lugar de impressão, mas é possível perceber que alude a algo ou a alguém antigo e de rotineira e incorrecta «impressão», como os bordões com que exemplifica depois.

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«Como quer o ânimo, com que sou vosso, me não deixa perder ocasião em que vos sirva. etc. «Tanto que soube que era cousa de vosso gosto deixar esta empresa, etc. «Tanto que me vi desfavorecido de vossas lembranças, lancei mão do meu atrevimento, etc. «Depois que me apartei de vós. não soube mais de mi que para sentir saudades vossas, etc. «Depois que meus males me deram lugar para tomar esta pena na mão, a empreguei em procurar novas vossas., etc. «Antes que me disculpe de meus descuidos, etc. «Antes que vos dê larga conta dos meus sucessos, etc.» De modo que são como matéria-prima em que moldareis tudo o que quiserdes. Porém, não quero ir adiante e tomar o tempo ao senhor Leonardo, que o vejo entrar já por ouu-as cartas missivas. — Antes (lhe disse ele) tomei fôlego enquanto vos ouvia falar nessas. E tratando das do segundo género, que são cartas de novas, a que chamam narrativas, de comprimento, que se dividem em cartas de agradecimento, recomendação, disculpa, queixume, e outras muitas, cartas de galantaria ou jocosas, como chamam os latinos. Para as narrativas nos podia servir de exemplo aquela em que o emperador Tibério César dava novas de Itália a seu umão Germânico, que dezia: (a) «Os templos se guardam: os deuses se servem; o senado está pacífico; a república, próspera; Roma, sã; a Fortuna, mansa; o ano, fértil: e isto, que há aqui em Itália, desejo que da mesma maneira gozeis em Asia.» Deixo a que César escreveu a Roma das novas de Pérsia, que continha só três palavras: Cheguei, vi. venci. E a de Gneo Silvio, escrevendo as novas da Farsália, que dezia: (b) «César venceu; Pompeio morreu; Rufo fugiu; Catão se matou; acabou a ditadura e perdeu-se a liberdade.» E, chegando a algua que com menos aperto faça sua relação, me não pareceu enjeitar a que Marcelo escreveu ao Senado Romano, dando-lhe novas da derrota de Fúlvio, que dezia: (c) «Bem sei que a nova, que vos mando, é de sentimento. Fúlvio Procônsul, com treze mil homens, foi desbaratado e ferido. Porém, não vos cause temor este sucesso, que eu sou o mesmo que. depois da batalha de Canas, mortifiquei a soberba de Aníbal, vencedor dela. Contra ele caminho brevemente com o meu exército para lhe fazer mais breve a alegria deste triunfo, e em vós desejo muito o mesmo ânimo que levo.»

(a) Cana de Tibério César a Germânico. (b) Carta de Gneo Sílvio. (c) Carta de Marcelo ao ^Senado.

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— Ua carta (acudiu o Doutor) me escreveu os dias atrás um amigo, de novas de Lisboa, que certo, pola brevidade, me pareceu digna desta alembrança, e dezia: (a) «Esta cidade está abastada, mas descontente; o mar, cheio de cossários; os portos, de receios; o Paço, de requerentes, e eles, de queixumes: para os validos tudo é pouco: aos desemparados não cabe nada, do remédio de tantos males não há boas novas; e as minhas são que entre todos eles me falta a vossa companhia.» — Essa (disse Leonardo) se pode ajuntar por exemplo às antiguas que relatei. E por não me empregar em outras, que seria demasiado trabalho a Iodos ouvi-las e a mim recitá-las, passo às de recomendação de algua pessoa ou de algum negóceo em as quais tem mais lugar a disposição e omamento dos retóricos, encarecendo os merecimentos da pessoa ou a importância da causa que encomendais, facilitando-a na condição e vontade a quem a pedis, concluindo com a petição e oferecimento de vossa parte. E todas estas, e amda um exórdio de sentença que hei por escusado, se vêem em úa carta que há pouco l i . que um rei de Portugal antiguo escreveu ao de França, encomendando-Ihe um fidalgo que ia estudar a P a r i s E dezia, tirada de latim, em que estava num livro estrangeiro: (b) «Entre as virtudes e excelência dos príncipes me pareceu muito dina de louvor a de terem particular cuidado e lembrança dos vassalos beneméritos em seu serviço, para com favores e mercês os ajudarem. E por esta razão me pareceu que devia encomendar a Vossa Majestade D. Pedro de Almeida, que por ocasião de seus estudos vai a essa corte de Paris, posto que claramente conheço eu, sem recomendação minha, vai assas encomendado pola liberalidade e brandura com que Vossa Majestade honra e recebe os homens tão ilustres como ele é. Além do que, tem ele tantas partes e entendimentos que não achará melhor terceiro que a si mesmo. Deixo seu pai. D. João de Almeida, conde de Abrantes, que, com suas singulares virtudes e claros feitos, adquiriu e conservou até à morte muito estreita privança e amizade com meus antecessores e comigo; de sorte que ponho em dúvida se importe mais a seu filho a minha carta, se a fama e lembrança de seu pai. De qualquer modo o encomendo muito a Vossa Majestade. E de

(a) Carta moderna. (b) Carta de el-rei de Portugal ao de França. "* Este exemplo, o seguinte e o da carta de Beda a Carlos Martelo, rei de França, que Leonardo citará, foram transcritos de uma colecção de epístolas do terceiro género (cartas de Reis, de Estado e de Govemo) que o próprio R. Lobo organizou: Carias dos Grandes do Mundo, ms. da British Libraiy de que Ricardo Jorge, eminente estudioso do autor da Corte na Aldeia, publicou a primeira parte — Carias de reis, senhores e homens insignes por estes expedidas ou recebidas (F. Rodrigues Lobo, Cartas dos Grandes do Mundo. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934).

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minhas cousas não ofereço de novo nada. pois, pola irmandade de meus antepassados e minha, em toda a ocasião deve Vossa Majestade usar delas como se foram comuas a amhos.»^^ Outra achei, no mesmo lugar, del-rei D. Manuel, mais breve que a passada, que era de seu antecessor, a qual ele escreveu ao Mestre de Rodes, encomendando-lhe um noviço português que ia servir a religião, que será para exemplo das menos enfeitadas. O Grão-Mestre era o Cardeal Pedro de Buson, e dezia: (a) «Aires Gonçalves, fdho de Henrique de Figueiredo, vai a tomar o hábito dessa religião. Não pareceu fora de propósito, nem de humanidade, encomendá-lo a V. P. assim por sua nobreza e ser criado a minha casa, como poios serviços e merecimento de seus passados com os reis meus antecessores e, finalmente, por seu bom esforço e virtude. Rogo a V. P. que com sua costumada brandura o favoreça de sorte que nele se acrecente o valor e a devação que leva, e não porei esta obrigação no menor lugar das muitas que tenho a V. P.» As cartas de agradecimento têm o campo mais largo para nelas se espalhar a pena e o entendimento, pois quem mais se obriga e encarece o que recebe, escreverá com melhor termo, não saindo dos da carta missiva. E já os antigos não desconheciam esta galantaria, pois Libânio, respondendo a Demétrio, que o obrigava a que ihe pedisse, escreveu assim: (b) «Não dais lugar a que eu vos peça. porque me mandais tudo. Ainda bem as árvores não dão seu fruto, quando vossos criados mo trazem. E do que até nos agros se sente a falta, eu a não tenho. Como me haverei nisto? Que o lavrador, quando o tempo lhe nega a água, então a pede; porém, .se chove, contenta-se de ver que favorece o céu suas esperanças.» O queixume por cartas se deve fazer com toda a moderação que a urbanidade requer, e pode nestas servir para exemplo e lembrança a que Olímpias, mãe de Alexandre, respondeu a seu filho, a ua em que ele se assinava por filho de Júpiter, que dezia: (c) «Muito me alegro com a vitória que alcançastes da cidade de Tiro e com todas vossas venturas e façanhas. Porém, tive por grande afronta minha ver que vos nomeais por filho de Júpiter na carta que desta nova me escrevestes. Estimarei muito, meu filho, que aquieteis nisso o pensamento e me não leveis a juízo ante a deusa Juno, que algum grande mal me há-de ordenar, sabendo que por letra vossa me chamais manceba de seu marido.»

(a) Carta de el-rei D. Manuel ao Grão Mestre de Rodes. (b) Carta de Libânio a Demétrio. (c) Carta de Olímpia a Alexandre. " F. Rodrigues Lobo Ciinus dos Grandes do Mundo, ed. cit., pp. 27-28. " F. Rodrigues Lobo, Carias dos Grandes do Mundo, ed. ciL, p. 55. 100

E, se me não parecera um pouco enfeitada úa carta que Ângelo Policiano escreveu ao grande Lourenço de Médices. a pudera pôr em exemplo da moderação de queixume, porque dezia: (a) «O poeta é semelhante ao cisne na brancura e suavidade, em ser afeiçoado a correntes de água e amado de Apolo. Contudo, dizem que o cisne não canta senão quando o vento Zéfiro respira. Não é logo muito que eu seja mudo tantos dias, sendo poeta vosso, se vós, que sois meu Zéfiro, neles me faltais.» As cartas jocosas, ou de galantaria, têm mais campo e liberdade para se poderem usar nelas alguns termos fora das limitações das nossas regras, porque, assim em se estenderem mais como em se sujeitarem menos, ficam desobrigadas das primeiras leis, que são brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios, propriedade sem metáforas, pois o termo da graça e galantaria nisso se diferença do sesudoe pontual, não negando que há alguns que não perdem a graça nem o siso. como é úa que Libânio escreveu a Aristeneto, que dezia: (b) «Aonde vos achais sei que dizeis sempre mal de mim. Eu. polo contrário, não perco ocasião de dizer louvores vossos. Porém, quem a ambos nos conhecer, a nenhum de nós há-de dar crédito.» Das mais há tantos e tão diferentes exemplos que seria agravo a cada ua das outras trazer aqui alguas bem escritas. Só direi que úa espécie delas é narrativa, motejando do mesmo que contam ou das novas que dão, que não são por esse respeito pouco engraçadas. Há outra das de disparates, que, parecendo que se desviam nas palavras do propósito que tomam, dão a entender, como em enima o pensamento de quem as escreve, e são estas graciosas com sutileza. Outra é das de murmuração em matérias leves, como sátiras menores. E úas e outras têm a galantaria no pintar e descrever as pessoas e as cousas, com apodaduras graciosas, encarecimentos desusados, palavras facetas, frasi humilde, acomodada sempre ao sujeito. E certo que nisto tiveram mão particular os portugueses que escreveram ao gracioso, que nem os italianos na frasi burlesca, nem os espanhóis no estilo picaresco os igualaram. — Não vos houvera eu de consentir esse salto (disse Solino) deixando tantos exemplos em aberto, se não tivera pensamento de cobrar a demasia noutra ocasião. E. assim, por isso. como por ser já passada tanla parle da noite, vos peço que façais a vontade ao senhor D. Júlio com essas canas reais, de Estado e govemo, que as está desejando como a vida, pois a sua é nadar na altura de cousas semelhantes.

(a) Cana de Ângelo Policiano ao duque de Florença. (b) Carta de Libânio a Aristoneto. " Enigma, figura enigmática.

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— Eu vos mereço (respondeu o Fidalgo) a boa opinião em que me tendes. Porém, igualmente me contentam todas as cousas em que fala o senhor Leonardo, e, porque sempre as últimas me ficam parecendo melhor que as primeiras, posso desejar esse terceho género de cartas, e, se dele tomar ao primeiro, farão o mesmo efeito na minha satisfação. — Para responder a esse favor (tomou Leonardo) havia mister o tempo que hei-de gastar nas cartas que me ficam, e asshn ou úa ou outra cousa me havei por perdoada. Não deixou o Doutor ir os comprimentos por diante, dizendo que eram em perjuizo de terceiros. E prosseguindo, Leonardo disse: — As cartas do terceiro género, que, polas matérias importantes e diferença das pessoas, são mais graves e levantadas, não deixam de seguir a regra e preceitos das humildes, posto que se mclinem algíías delas à oratória, aproveitando-se da elegância e razões para persuadir, consolar, dar louvores ou reprender, e posto que destas estão cheias as crónicas e anais de todos os reinos, recitarei alguas que pareçam menos vulgares e mais breves para exemplo, como é ua que os cônsules C. Fabrício e C. Emflio escreveram a el-rei Pirro sobre úa consideração em matéria de Estado, que dezia: (a) «Poios agravos que de vós temos recebido, o maior cuidado nosso é fazer-vos guerra com ânimo inimigo e braço esforçado. Porém, para exemplo comum de fidelidade, nos pareceu conservar-vos a vida, por que com a perda dela nos não faltasse um contrário vaieroso a quem vencer. Nícias, vosso particular, veio ter connosco, pedindo-nos preço certo por vos dar morte oculta, em que nós não consentimos, fazendo-lhe perder a esperança de tirar fruito de sua maldade. Juntamente assentámos dar-vos este aviso, porque, se alguma cousa acontecer, se não presuma, que saiu do nosso conselho; e, não sendo o intento dele pelejar por preço, prémio ou enganos, vós, à falta de cautela, percais a vida.» Também me não parece indigna de lembrança ua com que Rodoge, mãe de el-rei Dario, o reprendia e aconselhava na segunda expedição contra Alexandre, que foi a que se segue: (b) «Deram-me novas que ajuntáveis poderosos exércitos de todas vossas gentes e das alheias, para de novo oferecerdes batalhas a Alexandre. Não sei a que feito, pois o poder de toda a redondeza não basta para pelejar com os deuses imortais que a ele o favorecem. Deixai esses pensamentos altivos, apartai-vos da vanglória deles, concedendo à grandeza de Alexandre algua cousa, que melhor é deixar o que não podeis ter, para gozar livremente o que possuís, que, querendo dominar tudo, ficar sem nada.» Cada um dos presentes gabou estas cartas com tanto extremo que não deixaram que com eles acabasse Leonardo sua obrigação. (a) Carta de Fabrício Emílio ao rei Pirro. (b) Carta de Redogb a el-rei Dario, seu filho.

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— Porque (disse D. Júlio) já polo voto de Solino estas são as cartas que entram na jurisdição de minha curiosidade, não consinto que nos exemplos seja este género mais limitado, mormente que deste se tira outra doutrina mais que a das cartas, que é a variedade das histórias e ocasiões delas. — Eu (respondeu Leonardo) ainda tinha cabedal para ir adiante, se as horas tomaram atrás; mas partirei (como dizem) a contento polo meio, recitando úa carta que o grão-senhor dos turcos escreveu aos amazónios, e a valerosa reposta que eles lhe mandaram. E dezia a primeira: (a) «Se por defensão de vossa liberdade sustentáveis guerra contra meu poder, não vos tivera tanto por imigos, como por valerosos cidadãos que pola pátria, filhos, parentes e amigos, púnheis as vidas. Porém, com nenhua razão me persuado que os que deixaram tantos anos governar o reino a mulheres (como tenho ouvido) recusem agora o império e governo de homens valerosos.» E a esta carta responderam eles outra, que dezia: (b) «Este Reino das Amazonas, que, como por afronta nossa, nomeais, com o seu mesmo exemplo nos aconselha não obedecer a outrem, porque temos por infâmia e torpeza que o esforço varonil seja vencido do espírito e braço feminino. Polo que devíeis julgar por invencíveis em armas e dinos do governo e principado do mundo homens entre os quais até as mulheres aprenderam a reinar.» E, porque com exemplos gentílicos e bárbaros não dê fim à conversação desta noite, direi por remate úa carta que o venerável sacerdote Beda escreveu a Carlo Martelo, rei de França, e aos mais potentados daquele Reino sobre a entrada dos mouros em Espanha, que dezia: (c) «Enquanto se move perigosa e cruel guerra na cristandade, se aparelha notável roína de toda a Europa, porque os sarracenos, ocupada a África e Líbia, começando de Ceita, têm conquistado toda a terra de Espanha, tirando a das Astúrias e Cantábria. África, que o capitão Belisário cobrou aos Romanos, e que cento e setenta anos obedeceu a seu Império, juntamente com a Espanha Bélica, têm tomado os mouros, fazendo-a obedecer a seus falsos ritos, com grande ignomínia e afronta do nome cristão. Que cousa pode haver mais excelente, valerosa e pia, que contra estes inimigos de Deus tomar as armas? Que fizeram os suevos, os alemães e os mais varões do nome cristão, que com tão grandes destruições tendes perseguidos? Perto estão e sobre vossas cabeças os sarracenos, que com soberbo jugo ameaçam a toda a redondeza da terra. Neles tendes fermosíssimos reinos, grossas cidades, ricos despojos, e vos esperam grandes triunfos da

(a) Carta do turco aos amazónios. (b) Reposta dos amazónios. (c) Carta do Venerável Beda a Carlos Martelo, rei de França.

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