Psiquiatria E Sociedade (1980)

  • June 2020
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PSIQUIATRIA E SOCIEDADE, por Luiz Salvador de Miranda Sá Jr.

INTRODUÇÃO Atualmente não há quem conteste a afirmativa de que existe uma relação de absoluta interdependência entre as condições sociais e a situação sanitária. O conceito positivo de saúde, uma vez entendida como expressão de bem-estar, determinou o alargamento do objeto, a ampliação das funções da medicina. O entendimento de que a saúde, muito mais que um bem individual, é um patrimônio coletivo, transformou todas as atividades médicas em tarefas sociais. A consciência de que a saúde das comunidades e das pessoas, como contrapartida necessária do direito do cidadão, é um dever do Estado, obrigou a um planejamento integrado de todas as práticas sanitárias e tornou superada a atuação solitária do médico como agente de saúde. A prática sanitária implica na atuação interdisciplinar e multiprofissional. A transformação da Psiquiatria em grande agência institucional de bem-estar decorreu desta metamorfose sofrida pela medicina. A Psiquiatria tem sido descrita e reconhecida como o ramo da medicina que se incumbe do diagnóstico e tratamento das doenças mentais. Implícitos nesse entendimento podem ser identificados três significados complementares: a) a Psiquiatria como profissão; b) a Psiquiatria como atividade cientificamente embasada; c) a Psiquiatria como instituição social.

A PSIQUIATRIA COMO PROFISSÃO Enquanto profissão, forma de ganhar sustento e integrar-se no sistema instituído de produção, a Psiquiatria, como de resto toda a medicina, está transitando de atividade liberal-artesanal para uma condição francamente assalariada. Esse fato que pode ser percebido por qualquer um, mesmo de forma espontânea, coloca alguns problemas interessantes, cuja discussão seria inoportuna nessa ocasião. Contudo, chama a atenção a ênfase iracunda com a qual alguns dirigentes de grêmios médicos, quem sabe se revelando ecmnésia ou deslumbrados com o lusco-fusco de passadas lembranças, resistem ao uso de expressões como trabalhador de saúde e outras que marcaram esta característica de inegável proletarização.

A PSIQUIATRIA COMO ATIVIDADE CIENTIFICAMENTE EMBASADAS A rigor, não se pode chamar a Psiquiatria nem a Medicina de ciências. De fato, não são, embora se constituam em atividades fundamentadas em grande parte em diversas disciplinas científicas, não preenchem os requisitos que devem caracterizar a ciência. No que diz respeito à Psiquiatria, além da contribuição implícita das Ciências Biológicas e Sociais,

sua ciência de apoio imediato tem sido tradicionalmente a Psicopatologia, ramo da Psicologia. E quando se trata de referir a Psicopatologia como disciplina científica, importa que se defina claramente seu objeto. Isso porque o estudo científico de qualquer área do campo do conhecimento exige a delimitação, tão precisa quanto possível, do segmento da natureza que se pretende abordar. Essa delimitação que é um requisito imperativo e indispensável de qualquer ciência, consiste exatamente na definição de seu objeto. O próprio senso-comum nos deixa saber que o objeto da investigação psicológica é o psiquismo e que a Psicopatologia se dirige para o estudo das variações mórbidas do seu desenvolvimento ou funcionamento. A atividade psicológica, normal ou mórbida, revelada nos fenômenos psíquicos e que se exteriorizam na conduta, reúne o conteúdo interno da vida da pessoa e, mesmo ingenuamente, ninguém tem dificuldade de distingui-la dos demais aspectos da natureza. Aceita, em princípio, a afirmativa de que a Psicopatologia é um ramo da Psicologia que estuda as variações anômalas e mórbidas do psiquismo, impõem-se algumas considerações acerca da natureza dos processos psíquicos. Acompanhando a opinião de Rubinstein(6), podem ser destacadas as seguintes características essenciais dos fenômenos psíquicos: a) Os fenômenos psíquicos que se manifestam em uma pessoa real; b) Existe uma relação objetiva entre a pessoa (o sujeito) e sua atividade psicológica normal ou patológica (o objeto); c) O psiquismo é o traço de ligação entre o objetivo e o subjetivo; d) O psiquismo humano traduz a relação dinâmica entre o consciente e o inconsciente; e) A função psicológica do organismo humano enfeixa a unidade entre o imediato e o mediato; f) Os fatores biológicos e sociais são determinantes concretos da vida psíquica. Estas seis características podem ser consideradas como essenciais à compreensão científica do psiquismo, tanto em suas manifestações normais, quanto as mórbidas, e alicerçam a prática cientificamente orientada. A primeira peculiaridade que ressalta do estudo das manifestações psicológicas é sua indissolúvel vinculação a um indivíduo concreto, uma pessoa real. O fato psicológico é sempre uma manifestação de uma pessoa viva que pertence a uma família, tem uma soma de experiências passadas, um determinado tipo de regime alimentar, um metabolismo característico,

um certo funcionamento endócrino , um passado mórbido peculiar, determinados condicionamentos genéticos, pertence a uma classe social, tem uma tal vinculação ao sistema vigente de produção, um certo nível de consciência social, uma qualquer disponibilidade financeira, reside numa certa habitação, possui um grau de instrução e informações, vive um tipo de sistema político, experimenta papéis sociais mais ou menos definidos, comunga atitudes e opiniões culturais, advoga certos valores éticos e, entre muitas outras qualidades, alimenta suas esperanças e aspirações, acalenta sonhos e fantasias, suporta suas frustrações, desesperanças e desenganos. O segundo traço característico mostra que o psiquismo, além de uma propriedade da pessoa, é também sua premissa. Manifesta-se em uma pessoa e, de certa forma, faz a pessoa. O fato psíquico é objetivo na medida em que independe do conhecimento, da vontade ou do entendimento de quem o experimenta. A terceira das características atribuídas aos fenômenos psíquicos destaca o fato de que o psiquismo não separa o homem da realidade exterior. Ao contrário. Ao refletir a realidade, o psiquismo se situa como dispositivo integrador que garante a unidade dialética, e por isso mesmo dinâmica, entre a vida interior e a realidade externa. O quarto atributo essencial do psiquismo humano pretende traduzir a unidade existente entre o consciente e o inconsciente em permanente interação dialética. A Psiquiatria atual serve de campo de batalha a duas tendências opostas. Uma que pretende negar significado ao inconsciente; outra, pretende situar no inconsciente a gênese de toda conduta humana. Um dos grandes desafios da Psiquiatria de nossa época consiste justamente em desvendar as leis que regem as relações entre consciente e inconsciente. A quinta característica referida pretende que a atividade psíquica, tanto quanto qualquer outra manifestação da vida, há de ser considerada como um devenir, um processo em contínuo desenvolvimento. A atividade psíquica é um processo essencialmente temporal. O conteúdo psíquico de um instante não pode se desvinculado do restante da experiência pessoal ou alheado de sua expectativa do futuro. O ato de isolar um instante, por mais significativo que seja, se constitui em uma mutilação. A última das qualidades essenciais que se pode apontar no psiquismo humano traduz o fato de que ele deve ser considerado como um processo em evolução, estando sua gênese e sua atividade subordinada ao funcionamento do organismo e às condições de vida da pessoa. O psiquismo é o reflexo do social no biológico. O funcionamento do psiquismo humano é o resultado de interação dialética entre o indivíduo e a sociedade. A doença psíquica pode resultar de disfunção orgânica como pode ser determinada por perturbações do sistema de relações sociais. Não é demais repetir que os condicionamentos sociais da enfermidade são tão

importantes quanto os somáticos, quer se trate da gênese, da forma de evoluir ou do destino das doenças mentais. “A realidade da prática psiquiátrica nos ensina a fatuidade de tentar separar os fatores orgânicos dos sociais na inteireza da pessoa de nossos pacientes”.(4) Constitui-se em requisito prévio de qualquer atividade psiquiátrica que pretenda ser cientificamente orientada, atribuir valor de princípios a estas características que devem nortear sua aplicação e investigação.

A PSIQUIATRIA COMO INSTITUIÇÃO SOCIAL Toda organização social se compõe sobre uma base concreta, as relações econômico-sociais. A natureza do sistema de relações econômicas que se estabelecem entre as pessoas, determina a fisionomia da sociedade em seu conjunto. A natureza das relações de produção, a interação entre os que produzem e os que consomem, constituem o alicerce sobre o qual se edifica o sistema social. Sobre essa base concreta, são erigidas as instituições, os sistemas de idéias e mesmo as teorias científicas. Pode-se denominar de infra-estrutura à base material, econômica da sociedade e de superestrutura às instituições e doutrinas que elas fazem surgir. Sob esse enfoque, a Psiquiatria é inequivocadamente uma instituição superestrutural da sociedade. Kisnerman(3) define instituição como “uma estrutura formal de relações e serviços, que se nos apresenta como um nível de complexidade determinado pelas relações de papéis que a integram, os quais correspondem ao número de tarefas diversificadas que compõe sua atividade global e o grau de desenvolvimento alcançado por essas tarefas”. As instituições sociais são instrumentos normativos ou operativos destinados a suprir as necessidades da sociedade. Numa sociedade de classes, caracterizada pelo domínio de um grupo por outro, as instituições tendem a auxiliar a manter este domínio. O objetivo de sustentar os privilégios e satisfazer os interesses da classe dominante quase nunca está claramente explicitado, mas está sempre presente na natureza mesma de duas tarefas e no modo de desempenhá-las. Dessa maneira, verifica-se que a Psiquiatria, como qualquer outra instituição social, reflete os conflitos da sociedade como um todo. Um aspecto da natureza particular da tarefa da Psiquiatria, enquanto instituição, é sua função como instrumento de controle social. A Psiquiatria tem servido como mecanismo regulador da sociedade, atuando, em geral, no interesse do sistema vigente e das classes dominantes. Como instituição operativa, a Psiquiatria tem sido freqüentemente utilizada não apenas como instrumento de identificação, prevenção, tratamento e reabilitação de doentes mentais, mas também como sustentáculo do sistema de exploração para oprimir e seguir explorando; para garantir o

sistema de privilégios. A tarefa de exercer um certo controle sobre a sociedade parece ser facilitada pelo caráter impessoal das instituições. Nas instituições, os papéis e as relações são muito mais importantes que as pessoas; isto é tão mais verdadeiro e evidente quanto mais elaborada e complexa é a sociedade e quanto mais sofisticadas e importantes são suas instituições. Outra faceta da utilização da Psiquiatria (e da Psicologia) como instrumento de controle social é o seu emprego como gerador, difusor e cristalizador de normas e valores que influenciam a conduta dos indivíduos e dos grupos. Esse emprego da Psiquiatria como instituição normativa não pode ser minimizado pois as idéias, crenças, opiniões, atitudes e regras de convívio que ela gera e difunde são constantemente assimilados pela sociedade. A esse conjunto de idéias denomina-se ideologia. Por isto, da Psiquiatria como instituição normativa, se diz que é um instrumento produtor de ideologia. Alguns destes conceitos que a Psiquiatria tem gerado e ou implantado como “conduta normal”, “conduta patológica”, “neurose”, “adaptaçãoinadaptação”, “psicopatia” têm influído muito no comportamento das pessoas em sociedade. A Psiquiatria como instituição, embora tenda a garantir os privilégios da classe dominante, de fato reflete os conflitos e contradições da sociedade que a erigiu. Por isso, pode-se dizer que a crise da Psiquiatria institucional que vivemos hoje, na verdade é o reflexo na Psiquiatria da crise social.

SOCIEDADE E SAÚDE MENTAL A discussão de temas de saúde mental ocupa uma posição muito destacada em nossa sociedade. A universalização do conceito de saúde como “completo bem-estar físico, mental e social”, como vem sendo preconizado pela Organização Mundial da Saúde, parece ter sepultado todos os reducionismos estéreis que infestam a Psiquiatria e destacado a concepção integral do homem na inseparável unidades de suas dimensões biológica, psicológica e social. Se bem que superada conceitualmente, a compreensão fragmentária do homem, exteriorizada em descaminhos reducionistas, influi ainda muito poderosamente na Psiquiatria que todos praticamos. O distanciamento da Psiquiatria do restante da atividade sanitária vem ao longo do tempo sendo amparado por atitudes intelectuais reducionistas de cada um destes fatores. Importa saber que isso não acontece por acaso. Como foi visto, a sociedade deve ser entendida muito mais como um sistema estruturado de papéis e relações que como um sistema garantidor do encontro interpessoal. Também se verificou que tais papéis e relações são elaborados a partir da natureza do sistema de relações sócioeconômicas implícitas no processo de produzir e distribuir os meios de subsistência.

Ora, os reducionismos organicistas, psicologicistas e sociologicistas, cada um à sua maneira, vêm satisfazendo as necessidades do sistema de exploração. Atualmente, não é comum que se encontre alguém que ignore a interação entre os níveis de saúde e o sistema de relações sociais. Mas, nem sempre foi assim. O conhecimento generalizado da indeslindável interação entre os níveis sanitários e as condições sociais é relativamente recente e somente ocorreu porque atendia aos interesses dos proprietários de fábricas à época da revolução industrial. O surgimento do operário fabril tornou lucrativa a intervenção para proteger e fomentar a saúde. A necessidade da economia impôs a atuação sanitária, transformou as concepções científicas e fez surgir uma nova consciência de saúde. Mas, se bem que a elevação das condições econômicas costume proporcionar uma melhoria dos índices de bem-estar físico, pode corresponder à piora dos indicadores de bem-estar psicológico, como foi verificado por Halliday(2) estudando as condições sanitárias de adultos e crianças na Inglaterra de 1870 a 1930. Desde então se fortalece a evidência que aponta para a correlação existente entre a satisfação das necessidades primárias e bem-estar físico, enquanto bemestar psicológico está estreitamente relacionado com a satisfação das necessidades superiores. Muitos países com índices satisfatórios de crescimento econômico, nos quais a sociedade tem condições de garantir à grande maioria das pessoas condições mínimas de saneamento ambiental, controle das doenças transmissíveis, nutrição adequada e assistência médica de padrão razoável, servem de caldo de cultura ao incremento de perturbações psicológicas. As perversões do sistema de relações sociais são os geradores naturais das perturbações da saúde mental. Toda e qualquer organização social humana somente pode ser fundamentada sobre dois tipos de sistema: de cooperação ou de exploração. Nas organizações sociais fundadas na exploração, todas instituições sociais, inclusive as sanitárias, estão voltadas para a tarefa de garantir a manutenção daquele sistema. Comumente este desempenho se contrapõe às necessidades sentidas pela comunidade. A difusão dos programas de saúde mental deve corresponder à difusão da consciência da necessidade de se atuar não apenas sobre o indivíduo, mas sobre a sociedade, no esforço de reformular o que ela tem de inumino e patógeno. As diretrizes da política sanitária, a delimitação dos objetivos, a seleção das prioridades e a escolha das técnicas dos programas de saúde mental resultam de dois processos distintos em interação: a decisão burocrática e a pressão da sociedade. Em ambos os vetores deste sistema de forças, destaca-se a importância do nível de competência, do grau de consciência e do tipo de ação dos planejadores e trabalhadores da saúde. Além dos fatores objetivos, a consciência de que a saúde é um direito do cidadão e sua contrapartida necessária no reconhecimento do dever da

sociedade prover a satisfação deste direito, vem impondo a exigência da implantação de programas de saúde mental dirigidos a um número cada vez mais amplo de usuários e que busquem uma atuação sempre mais diversificada. Impõe-se a necessidade de superar a política sanitária voltada para a hospitalização do doente como única providência (ou como recurso dominante). Coloca-se como indispensável a providência de se atuar da prevenção da ocorrência, na prevenção da evolução, na reabilitação da invalidez, além de uma atuação positiva no sentido de incrementar os níveis de bem-estar.

SAÚDE MENTAL E DESENVOLVIMENTO SOCIAL Dentre as condições objetivas, as que importam em influência maior no desempenho dos programas de saúde mental são aquelas relacionadas com o desenvolvimento social. A sociedade se desenvolve como organismo vivo; sujeita a leis tão poderosas como aquelas que regem os fenômenos da natureza. Os níveis de bem-estar e a eficiência dos serviços sanitários são premissa e resultado do grau de desenvolvimento social. É preciso destacar que o mero crescimento econômico, traduzido pelo balanço positivo da contabilidade nacional, não pode ser considerado como sinônimo de desenvolvimento. Para que a sociedade possa ser considerada em desenvolvimento, importa que esteja em um processo de transformação qualitativa de sua economia; importa que o resultado do trabalho dos homens se destine a uma justa distribuição. A justa distribuição do produto do trabalho é um axioma indispensável do conceito de igualdade, implícito no reconhecimento da dignidade humana. O humanismo, neste sentido de reconhecimento da dignidade da condição humana, não pode ser reduzido a comportamentos estereotipados e formais, nem pode ser reconhecido apenas na expressão de conteúdos verbais desvinculados, ou em oposição, com a atividade pessoal. O sistema capitalista, pela sua natureza de exploração e opressão, impede o livre desenvolvimento da sociedade, uma vez que uma parte significativa do fruto do trabalho da maioria se destina a prover a ociosidade, a fartura e o desperdício de uma minoria insignificante. Não é possível negar que o fomento da saúde mental depende também do processo de transformação da sociedade, sobretudo da transformação que resulte na distribuição mais justa e mais equânime do fruto do trabalho social. O sistema de exploração e opressão com o seu projeto permanente de miséria, desnutrição, promiscuidade, infecção, intoxicação, ignorância e violência se constitui na realidade concreta na qual atuam os que trabalham

como nós na busca do incremento de níveis sanitários nos países subdesenvolvidos. O fato de atuar num país subdesenvolvido, coloca o trabalhador de saúde mental diante de um sem número de obstáculos que não podem ser subestimados. Dentre esses, podemos destacar a dependência, a alienação (inclusive tecno-científica), o autoritarismo, a parvoíce burocráitica (entre nós batizada de tecnocracia), o desconhecimento das condições de nossa realidade particular, o primado da injustiça, a reificação do homem e o individualismo. O individualismo entendido como conduta egocêntrica, egoísta e associal e como idéia geral que busca centrar no indivíduo isolado a explicação do fato social. Quando se tenta deslocar a responsabilidade do fato histórico-social, das necessidades objetivas dos grandes grupos humanos, para ação individual isolada e subjetivamente motivada, promove-se uma distorção no entendimento da realidade e gera-se uma conduta equivocada desde sua origem. A visão individualista da sociedade, seja qual for a roupagem de que se revista, mesmo quando utiliza uma linguagem revolucionária e se propõe objetivos aparentemente radicais, é sempre reacionária na medida em que serve aos interesses que aparenta combater. Não é sem razão que as correntes psicológicas e psiquiátricas que pretendem uma explicação individualizada do comportamento dos grupos humanos recebem o maior prestígio das instituições mais conservadoras e retrógradas. Principalmente no campo da pesquisa e da aplicação em Psicologia Social, a concepção individualista vem assumindo um papel anestesiante do progresso social. Um outro aspecto da investigação e operacionalização em Psiquiatria Social que merece uma revisão crítica cuidadosa é a utilização indevida da linguagem médica e a extensão da explicação dos mecanismos patológicos da metodologia médica ao campo social. É verdade que a moderna saúde pública introduziu na Psiquiatria alguns conceitos valiosos que permitem adequada operacionalização, tais com “população em risco”, os níveis de prevenção, além dos indicadores de saúde e conceitos da nomenclatura epidemológica; no entanto, deve-see contestar as designações que buscam atribuir a condição de “doenças” a fenômenos sociais. Expressões como “sociedade doente”, “patologia social” e outras semelhantes procuram encobrir manifestações naturais do sistema de exploração como se fossem anomalias cujas causas reais nada teriam a ver com o sistema, mas com deformações de sua aplicação.

ALGUNS PRINCÍPIOS DE ATUAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

Para concluir, seguem-se alguns conceitos gerais que em virtude de sua importância, merecem ser designados como princípios para atuação em Psiquiatria Social. a) O princípio da legitimidade do direito à saúde e à assistência; b) Da absoluta interação dos fatores biológicos, psicológicos e sociais na unidade do ser humano sadio ou enfermo; c) O respeito que merece toda pessoa, sã ou doente, em função do reconhecimento da dignidade inerente à condição humana; d) Da atenção individualizada; e) Da integração dos programas sanitários; f) Da atuação interdisciplinar; g) Da ação positiva (da identificação da população em risco, ao invés da espera passiva da demanda espontânea) e da conduta preventiva (em termos de incremento do bem-estar, da prevenção da ocorrência, da invalidez e reabilitação; h) Da necessidade da adequação da atuação sanitária à realidade particular da população; i) De que todo programa de saúde mental deva se constituir em instrumento de crescimento individual e de progresso social; j) E, por fim, o principio de democratização que implica na participação efetiva de todos no projeto inteiro

NOTAS 1. BERMANN, G. Nuestra Psiquiatria. Buenos Aires, El Ateneo, 1960. 2. HALLIDAY, J. L. Psychosocial Medicine: a Study of the Sick Society (cit. Bermann). New York, 1948. 3. KISNERMAN, N. Serviço Social Pueblo. Buenos Aires, Humanitas, 1974. 4. Miranda Sá, L.S., Jr. Psiquiatria e Sociedade. Relatório ao V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, 1978. 5. PAZ, J. G. & GALENDE, E. Psiquiatria e Sociedade. Buenos Aires, Granica, 1975. 6. RUBINSTEIN, L. J. Princípios de Psicologia General. Mexico, Grijalbo, 1967.

Artigo publicado no número 27 da coleção ENCONTROS COM A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA no ano de 1980

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