Relações_internacionais_da_américa_la.pdf

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Relações Internacionais da América Latina Velhos e novos paradigmas

Amado Luiz Cervo

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA VELHOS E NOVOS PARADIGMAS

Diretoria

José Flávio Sombra Saraiva (diretor-geral) Antônio Carlos Lessa Antônio Jorge Ramalho da Rocha Luiz Fernando Ligiéro

COLEÇÃO RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Conselho Editorial

Estevão Chaves de Rezende Martins (presidente) Amado Luiz Cervo Andrew Hurrel Antônio Augusto Cançado Trindade Antônio Carlos Lessa DenisRolland Gladys Lechini Hélio Jaguaribe José Flávio Sombra Saraiva Paulo Fagundes Vizentini Thomas Skidmore

Coleção Relações Internacionais

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AMADO LUIZ CERVO

AMADO LUIZ CERVO

R382 Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas / Amado Luiz Cervo. Brasília: IBRI, 2001. 320 p. ; 23 cm. — (Relações internacionais ; 4) ISBN 85-88270-05-6 (broch.) 1. Relações internacionais. I. Cervo, Amado Luiz. II. Instituto Brasileiro de Relações Internacionais. III. Título. CDD-327.11

Direitos desta edição reservados ao

Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) Universidade de Brasília Caixa postal 4400 70919-970 – Brasília, DF Telefax (61) 307 1655 [email protected] Site: www.ibri-rbpi.org.br Impresso no Brasil 2001 Efetuado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Decreto nº 1.825, de 20.12.1907

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Sumário Prefácio Um continente em desenvolvimento............................................. 9 Apresentação .............................................................................. 13 Introdução ................................................................................. 17

Primeira parte O ciclo dadiplomaciado desenvolvimento na América Latina 1. Abandono do paradigma liberal-conservador e esboço do Estado desenvolvimentista (1930-1947)............................ 23 1.1. A América Latina ao tempo da depressão capitalista e da Segunda Guerra Mundial......................................... 23 1.2. Rumo a novo paradigma de relações internacionais da América Latina .......................................................... 52 2. Relações regionais e mundiais e da América Latina durante a depressão capitalista e a Segunda Guerra Mundial ................... 63 2.1. Políticas exteriores e relações regionais............................. 63 2.2. O enquadramento latino-americano na ordem bipolar .... 81 3. Apogeu do Estado desenvolvimentista, cooperação internacional e Guerra Fria 1947-1979 ................................... 97 3.1. Uma teoria latino-americana do Estado desenvolvimentista ......................................................... 97 3.2. Ainserção internacional da América Latina entre a Guerra Fria e a cooperação............................................ 112

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Segunda parte Argentina, Brasil e Venezuela 4. Adinâmica atlântica entre 1947 e 1959................................ 147 4.1. O sul do continente à época do peronismo ................... 147 4.2. Um balanço das relações interamericanas nos meados dos anos 50, à época de Perón, Vargas e Pérez Jiménez .. 179 a) Estados Unidos ....................................................... 180 b) México, América Central e Caribe ........................... 182 c) Norte do continente sul-americano........................... 184 d) Cone Sul................................................................ 189 4.3. A ascensão de Stroessnere o triângulo Argentina-Paraguai-Brasil.............................................. 197 4.4. O norte da América do Sul à época de Pérez Jiménez.... 203 5. A dinâmica do ângulo atlântico entre 1960 e 1979 ............... 211 5.1. Os primórdios da integração física na década de 1960 ... 211 5.1.1. O Cone Sul: da diplomacia da obstruçãoà cooperação regional .............................................. 211 5.1.2. O norte da América do Sul: o isolacionismo venezuelano ....................................................... 229 Relações 5.2. regionais em compasso de espera na década de 1970 ....................................................................... 236 5.2.1. O sul do continente latino-americano: as águas e a geopolítica. .................................................... 236 5.2.2. O norte da América do Sul: a força do petróleo ..... 247 6. A construção de eixos bilaterais ............................................ 257 6.1. Novos equilíbrios às margens do Atlântico sul (1980-1986) ................................................................ 257 6.2. O eixo Brasil-Venezuela................................................ 260 6.3. O eixo Brasil-Argentina................................................ 269

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Terceira parte O ciclo da diplomacia neoliberal 7. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina na virada do século .................................................... 279 7.1. A transição do Estado desenvolvimentista para o Estado normal.............................................................. 280 Orientações 7.2. externas dos regimes neoliberais ................. 284 Balanço 7.3. das relações internacionais do Estado normal e primeiras reações........................................................ 297 Siglas........................................................................................ 303 Bibliografia .............................................................................. 305

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Prefácio Um continente em desenvolvimento Este livro do historiador Amado Luiz Cervo, professor da Universidade de Brasília, amplia o escopo dos seus estudos de relações internacionais. AHistória da política exterior do Brasil, lançada em 1992 em parceria com Clodoaldo Bueno, ainda permanece seu trabalho de referência mais conhecido. Além de outros livros que organizou ou dos quais participou como colaborador, Cervo publicou duas obras com enfoque bilateral: As relações históricas entre o Brasil e a Itália – O papel da diplomacia (1992) e Depois das Caravelas – As relações entre Portugal e Brasil, 1808-2000 (2000), este último em parceria com o historiador português José Calvet de Magalhães. Ademais, juntamente com o professor Mario Rapoport, da Universidade de Buenos Aires, coordenou um estudo coletivo e transnacional, publicado em 1998 com o título História do Cone Sul. As relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas, o novo estudo individual do autor, envolve os países latinoamericanosde 1930 a nossos dias. Atese de Cervo, ou seja, o argumento central de sua interpretação orgânica da história, é a existência de um destino comum que perseguiram esses países desde os anos da depressão capitalista. De fato, uma vez configurados os espaços nacionais, os governos da região orientaram sua ação interna e externa para a meta do desenvolvimento. O paradigma desenvolvimentista, a invenção política latino-americana, foi esboçado e posto em marcha pelos homens de Estado antes de haver sido teorizado pelos economistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Em sua gênese, o paradigma expressou a aspiração desses povos, inconformados com a condição de infância social em que eram mantidos desde o início do século XIX. A fase desenvolvimentista das políticas exteriores dos países latino-americanos conferiu, pois, nova funcionalidade à diplomacia. 9

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Seu movimento, cujo impulso brotava da vontade soberana dos Estados, era embalado pela esperança de produzir condições favoráveis e de trazer fatores concretos de progresso e melhoria das condições de vida para as nações. O desafio que os países da América Latina tiveram pela frente foi o de administrar esse destino comum. Dividida em múltiplos Estados, a região lidava com os nacionalismos, propensos a alimentar ambições desmesuradas de presença exclusiva ou de influência preponderante nas vizinhanças. A diplomacia da obstrução fez sucesso em alguns casos, convivendo ou precedendo a da cooperação e da integração. Destino comum nem sempre significou concerto político e ação coordenada. A administração do destino comum enfrentou, por outro lado, as contingências da hegemonia norte-americana sobre a região. Findo o período da Segunda Guerra Mundial, em que a América Latina extraiu ganhos concretos da relação com os Estados Unidos, a fase posterior desalinhou as estratégias externas. Até o término da Guerra Fria, o objetivo primeiro da diplomacia norte-americana era o combate ao comunismo e não o desenvolvimento politicamente induzido como queriam os outros governos. Na América Latina, em geral, mesmo em períodos de regime militar, a Guerra Fria foi muitas vezes tomada como uma invenção externa à qual convinha dispensar baixa prioridade nos desígnios nacionais. A menos que pudesse ser utilizada para trazer a potência hegemônica aos fins do desenvolvimento. Segundo o autor, foram precisamente essas distintas visões de mundo e a falta de convergência das políticas exteriores dos países latinos com relação aos Estados Unidos que reforçaram o sentimento de um destino comum a ser realizado mediante ação coletiva coordenada. Perón, Vargas, Pérez Jiménez, Kubitschek e Frondizi entenderam muito cedo que a América Latina deveria falar de uma só voz se quisesse exercer com proveito algum controle sobre a inelutável dependência diante dos Estados Unidos. Esse patamar de evolução das relações interlatino-americanas foi alcançado apenas na década de 1980. Sua face coletiva concretizou

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se nos chamados consensos diplomáticos que então se estabeleciam. Em termos operacionais, contudo, foi mais importante o caminho que se abriu para construção de eixos bilaterais: entre Brasil e Argentina, Brasil e Venezuela, Venezuela e Colômbia. As malogradas iniciativas de integração política, comercial e econômica, como o ABC, a Operação Pan-Americana e a Alalc, foram substituídas por processos realistas, flexíveis e operacionais. Mecanismos inexistentes ou pouco ativos ganharam relevância, e ocuparam espaços importantes: o Grupo do Rio e as questões da democracia; o Mercosul e a integração regional; as negociações do Mercosul com a Comunidade Andina, na Alca e com a União Européia; e assim por diante. Com Sarney e Alfonsín foi possível acelerar o processo de integração Brasil-Argentina, que consagrou quatro princípios basilares para o continente sul-americano: (1) o de que a integração depende essencialmente do interesse dos agentes econômicos, ao qual se soma a vontade política dos Governos; (2) o de que a integração deve partir necessariamente de correntes de comércio já existentes e com um certo grau de abrangência e complexidade; (3) o de que a integração deve ir além da liberalização comercial, para alcançar a área da produção; e (4) o de que a integração continental se fará a partir da escala sub-regional, como um somatório de iniciativas semelhantes à empreendida pelo Brasil e Argentina, ao amparo, porém indo mais além, dos esquemas previstos na Aladi. O Mercosul, o mais bem concebido de todos os mecanismos de integração, alavancou a idéia de América do Sul, região de convergência política e de integração econômica em substituição à América Latina, desde que o México orientou-se para o norte. O livro de Amado Luiz Cervo revela as origens e a evolução das tendências históricas que condicionaram as relações regionais. Chega ao presente, em que se colocam os dilemas da inserção no mundo da interdependência global. Sua análise paradigmática vem carregada de esforço teórico de interpretação do processo histórico, que manipula e organiza significativo estoque de dados empíricos. Os leitores dispõem de um manual básico sobre as relações internacionais da América Latina, fundamentado em extensa pesquisa

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documental nas chancelarias da região, especialmente no Itamaraty. O livro de Cervo é de leitura acessível para iniciados nos estudos de relações internacionais e útil para profissionais que requeiram tal conhecimento no desempenho de suas funções. Luiz Felipe de Seixas Corrêa Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores Brasília, setembro de 2001

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Apresentação

Este livro faz parte da coleção Relações Internacionais, organizada academicamente pelo Instituto Brasileiro de Relações Interncionais (IBRI), com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), sob o alto patrocínio da Petrobras. A coleção, constituída de dez títulos a serem lançados, gradualmente, até 2002, objetiva a formação das novas gerações brasileiras na área, mas também atende à demanda crescente da opinião pública nacional interessada nas novas conformações internacionais e ávida por conhecer, de forma sistemática e organizada, os grandes temas que envolvem a construção de um novo ordenamento internacional na passagem para o novo milênio. Os estudos acerca das relações internacionais têm merecido atenção especial por parte dos grandes editores, não apenas nos centros culturais de tradição na área, como Paris, Londres ou Nova Iorque. Lançamentos de novos títulos e reedições de obras clássicas animam a vida intelectual e política das universidades e editoras em muitas partes do mundo. Livreiros de países latino-americanos, europeus e asiáticos exibem ao público leitor ampla escolha de novos títulos dedicados aos desdobramentos mais recentes da vida internacional. Estudos de caso, investigações teóricas e extensas sínteses históricas são cada vez mais consumidos por numerosas pessoas, ávidas pela compreensão do mundo. A internacionalização das sociedades, a ampliação dos mercados, o impacto dos processos de integração regional e a economia política da globalização são alguns dos fenômenos que despertam atenção crescente. Mas há razões adicionais, como a crise de identidade das nações acentuada pela realidade pós-bipolar e a fragmentação teórica da ciência política ligada aos estudos dos fenômenos internacionais, para explicar a animação editorial que se observa em torno do estudo das relações internacionais. O interesse dos leitores brasileiros tem esbarrado, no entanto, em uma limitada reflexão própria acerca das relações internacionais. 13

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Preferiu-se traduzir novos manuais e adotar teorias da moda a enfrentar o desafio da compreensão e da explicação a partir de circunstâncias vividas. Foi-se buscar nos outros, equivocadamente, as razões das próprias vicissitudes. Confundiu-se, algumas vezes, teoria com ideologia. Absorveu-se e divulgou-se nas salas de aula grande quantidade de textos de qualidade discutível. Produzidos com o objetivo precípuo de doutrinar os desavisados, levando-os a crer que as relações entre os povos, Estados e culturas chegou a seu ápice com a liberalização dos mercados e com a economia política da globalização, esses textos não realizam o desafio intelectual de desvendar as entranhas das relações internacionais contemporâneas. As contingências do Brasil exigiam, assim, uma coleção concebida por estudiosos comprometidos com a renovação do conhecimento a partir de uma perspectiva própria acerca das relações internacionais, como aliás se procede em toda parte. No entanto, por mais objetiva que se pretenda que ela seja, todo esforço nessa área de reflexão está condicionado por motivações, informação, formação e legado cultural. Por conseguinte, a coleção Relações Internacionais vem suprir uma grande lacuna. Preocupado com a percepção inédita, por parte da sociedade brasileira, dos constrangimentos internacionais que impõem ajustes de ordens diversas à formulação e implementação das políticas públicas, do ponto de vista econômico, social e de segurança, o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) resolveu utilizar sua condição de instituição decana nos estudos internacionalistas no Brasil para, com seus parceiros, abrir a avenida da reflexão comprometida com um olhar nacional sobre os grandes fenômenos da vida internacional que envolvem a sociedade brasileira. Estratégia comum alinha autores e livros. Em primeiro lugar, eles pretendem contribuir para a formação da crescente mão-de-obra brasileira interesada em compreender os desafios internacionais e traduzilos adequadamente para os atores sociais com interesses cuja realização sofrem impactos diretos ou indiretos do meio internacional. Em segundo lugar, os autores observam, com apreensão, o crescimento exponenecial da comunidade brasileira de estudantes dos cursos de 14

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graduação em Relações Internacionais a partir da década de 1990 e, como conseqüência, da necessidade de prover base sólida para o desenvolvimento dessas novas formações. Em terceiro lugar, preocupa a cada um dos autores da coleção o plano secundário a que a tarefa de produção de livros paradidáticos foi relegada, no Brasil, diante do rápido surgimento de um público consumidor, ávido por boa bibliografia que cumpra os requisitos formais de apresentação do conteúdo mínimo preconizado pela Comissão de Especialistas de Ensino de Relações Internacionais do Ministério da Educação. José Flávio Sombra Saraiva Organizador da Coleção Relações Internacionais Brasília, outubro de 2001

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Introdução Este livro tem por objeto de estudo o ciclo da diplomacia para o desenvolvimento que constituiu o paradigma de política exterior da maior parte dos Estados latino-americanos, entre 1930 e 1986, mas avança na análise das tendências do ciclo neoliberal posterior. A crise de 1929 e a depressão capitalista dos anos 30 levantaram a questão do paradigma de relações internacionais vigente na América Latina, cujas origens situavam-se no período de independência, no início do século XIX, e cujos parâmetros não serviam mais aos interesses da região. Desde 1986, quando o presidente brasileiro José Sarney dispunha de condições políticas para implementar processos de integração, seja ao norte, com a Venezuela, seja ao sul, com a Argentina – embora somente este tenha vingado – a filosofia do Estado desenvolvimentista, que ainda presidira tais impulsos, pôr-se-ia à deriva. Encerrava-se, para a América Latina um ciclo de relações internacionais e abria-se outro. Decorridos mais de dez anos da mudança, ao iniciar-se o terceiro milênio, convém proceder a uma avaliação do paradigma desenvolvimentista e dos resultados que engendrou em cerca de sessenta anos de história. Por um lado, porque a irrupção do neoliberalismo no pensamento político e econômico levou alguns analistas à condenação acrítica da fase anterior e à apologia da nova ordem internacional que se convencionou chamar de globalização; por outro, porque parece necessário perguntar se a mudança de paradigma de inserção internacional trouxe benefícios sistêmicos para a região, na linha de superação do atraso histórico com relação ao Primeiro Mundo; enfim, porque a lógica do desenvolvimento parecia sugerir, no momento da mudança e como hipótese operacional para a América Latina, não o desmonte do núcleo central robusto das economias nacionais e sua alienação, mas a transformação do Estado interventor, considerado obsoleto no mundo globalizado, naquele tipo de Estado logístico que se verifica como padrão de conduta dos governos nas economias centrais.

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Se alguma base sólida de convergência existiu entre os anos 30 e o fim dos anos 80 na América Latina foi, sem dúvida, a formulação de projetos nacionais de desenvolvimento. Sua viabilidade dependia, contudo, das condições em que se assentassem as relações políticas e econômicas entre os Estados da região. Rivalidades, ambições nacionais desmesuradas, conflitos isolados, ciúmes e imagens do outro propositalmente distorcidas agiram como fatores nocivos para a harmonização das políticas exteriores. Mas aquela base de união sugeria visões de mundo sintonizadas, bem como iniciativas de cooperação e integração regional. O equilíbrio ou desequilíbrio desses dois conjuntos de fatores, com a prevalência seja de forças antagônicas que brotavam de dentro das nações e dos nacionalismos, seja de ação concertada pela comunhão de interesses, animou a vida internacional dos países latinoamericanos. Este estudo pretende desvendar o jogo das relações regionais e internacionais nesse período, dando ênfase à conduta dos três grandes Estados localizados às margens do Atlântico sul. Este livro tem, portanto, como objetivo aprofundar o estudo de um ciclo histórico e introduzir o estudo de outro ciclo. Na primeira parte, tenta estabelecer a gênese e a evolução da teoria desenvolvimentista latino-americana; na segunda, examina o comportamento externo dos três países atlânticos durante o período em que aquela filosofia política informou o processo decisório em matéria de relações exteriores; na terceira, empreende, a título de conclusão, uma análise do paradigma neoliberal de relações internacionais e de seus primeiros impactos sobre as condições internas da América Latina. O conhecimento exposto neste livro resultou da confrontação metódica de conceitos com a base empírica de informação, em constante diálogo entre a teoria e a história das relações internacionais. O texto privilegiou, contudo, para a construção e a crítica do argumento central e dos conceitos, a documentação diplomática do acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty, suficientemente rica para abarcar a complexidade das relações interamericanas sob seus diversos aspectos. Essa base de informação quase exclusiva, se impôs limites à análise, conferiu-lhe a originalidade que a diferencia de outros estudos.

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Durante o período desenvolvimentista, o Estado brasileiro demonstrou maior coerência entre as macropolíticas internas e as diretrizes externas, o argentino maior instabilidade ao longo do tempo e o venezuelano menor determinação. Essas distintas experiências condicionavam as iniciativas dos governos no âmbito bilateral e compeliam-nos a ver o espaço regional sob o prisma dos objetivos estratégicos nacionais. Particular interesse será, portanto, dedicado ao estudo dos entraves psicológicos, culturais e políticos; à cooperação econômica entre as sociedades, por um lado e, por outro, ao estudo dos fatores que uniram os três Estados atlânticos, em 1986, quando o ciclo definhava, na vontade de engendrar moderno processo de integração. Enfim, o estudo levanta a questão da integração latinoamericana de vertente sulina, que deixa de lado o grande potencial posto à consideração dos tomadores de decisão pela Venezuela no conjunto dos países da América do Sul. As experiências neoliberais empreendidas pelos países da América Latina ao termo do ciclo desenvolvimentista serão interpretadas à luz da literatura especializada. Uma extensa bibliografia anexa ao texto encaminha o leitor para o aprofundamento do estudo das relações internacionais da região, entre 1930 e nossos dias.

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Primeira parte O ciclo da diplomacia do desenvolvimento na América Latina

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1. Abandono do paradigma liberal-conservador e esboço do Estado desenvolvimentista (1930-1947) 1.1. A América Latina ao tempo da depressão capitalista e da Segunda Guerra Mundial A crise da economia capitalista desencadeada em 1929 provocou sobre a América Latina efeitos similares àqueles ressentidos por outros mercados, como a diminuição, em 1932, para um quarto de sua capacidade de importação. Os impostos de exportação, que alimentavam o tesouro dos Estados, converteram-se em impostos de importação, mesmo porque a industrialização já vinha sendo promovida de longa data, embora a ritmo lento e sem continuidade1. Entretanto, o que nos países capitalistas avançados configurou-se como fechamento dos mercados e reforço do protecionismo, na América latina tomou o rumo de um processo de modernização econômica, procurada com determinação crescente por grupos dirigentes, que agregaram à diplomacia o senso de conflito de interesses nas relações internacionais. Até então, os Estados na América Latina serviam exclusivamente a interesses dos grupos sociais hegemônicos – plantadores e exportadores de produtos agrícolas ou produtores e exportadores de minerais – deixando satisfeitas aquelas elites que se haviam apropriado do aparato público. Importando os manufaturados, em um modelo de mercado aberto, estes Estados contentavam, por outro lado, os interesses dos países centrais exportadores de produtos da indústria moderna. O entendimento entre elites sociais latino-americanas e países avançados do capitalismo não era, contudo, um conluio de beneficiados para manter estruturas de dominação aqui e lá, porém uma imposição que se explica pela compulsão das estruturas hegemônicas do poder García, Rigoberto et al. Economia y geografia del desarollo en América Latina. México: Fondo de Cultura, 1987.

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internacional. Adependência sempre foi objeto de críticas e insatisfações por parte das elites latino-americanas, que lutavam por seus próprios interesses contrariados, por exemplo, pelo colonialismo europeu epelo protecionismo dos países centrais. Ademais, alguns dirigentes da região, mais esclarecidos, sempre sonharam com o desenvolvimento moderno, a exemplo do que observavam nos Estados Unidos. Nos anos 30, contudo, novas demandas sociais eram perceptíveis na América Latina, provenientes do crescimento da população urbana, de uma burguesia nacional ávida por negócios e das forças armadas que viam a segurança e a defesa em estado precário. A crise do capitalismo e a redução das exportações primárias da América Latina não foram a determinação principal, mas contribuíram para o reajuste das estruturas de poder2. Mediante eleições, revoluções ou golpes de Estado, os velhos donos do poder e da ordem conservadora cederam espaço para dirigentes com visão mais ajustada às necessidades sociais e ao desenvolvimento econômico. O estudo deve buscar explicações para a nova inserção internacional da América Latina não nos Estados, agentes inertes desde a época da independência, mas nas idéias, lutas e propósitos das novas elites. Elas encarnavam então novos interesses sociais e a esses novos interesses haveriam de voltar-se os Estados nacionais. O regime unilateral de portas abertas e o laissez-faire que vinham do século XIX cederam, pois, a novos projetos nacionais que modificaram as políticas exteriores dos países latino-americanos. Não apenas políticas exteriores defensivas, mas condutas ousadas e autocompensatórias que sacrificavam o político ao econômico eram ensaiadas em toda parte, em uma demonstração de que, finalmente, os latino-americanos assimilavam um pouco do egoísmo dos grandes3. A disputa pelo mercado latino-americano por parte de europeus, norte-americanos, japoneses e soviéticos, como a penetração de seus empreendimentos, passaram a ser percebidas como fenômenos a dominar com vistas à superação de desequilíbrios estruturais dos Moniz Bandeira, Luís Alberto. De Martí a Fidel; a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p.22. 3 Paradiso, José. Debates y trajectoria dela política exterior argentina; orden, progresoy organización nacional. Buenos Aires: Planeta, 1997. p. 81-95. 2

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intercâmbios econômicos. A divisão do mundo em blocos antagônicos, que precedeu a deflagração da Segunda Guerra Mundial, propiciou à América Latina um acréscimo de poder de negociação, do qual alguns países souberam tirar proveito. A adesão da região à aliança contra os impérios centrais não foi cedida sem barganha aos Estados Unidos, que ensaiavam, desde 1933, uma política de boa vizinhança para alcançar o comando do forte movimento pan-americano com o fim de assegurar a solidariedade continental. O Brasil e o México contam entre os países que com maiores ganhos exerceram esse poder de barganha, inaugurando a diplomacia cooperativa responsável por resultados concretos em favor de seu desenvolvimento. Paradoxalmente, um elevado grau de autonomia pôde ser exercido por meio da ação diplomática desses países, nos anos que precederam a guerra, ao ensejo da opção a fazer pelo lado das democracias, e durante a mesma, em razão da importância estratégica que essas nações representavam. O México pôde, assim, nacionalizar seu petróleo em 1938 e domar interesses privados norte-americanos, mesmo porque, ao acenar com negócios importantes do lado da Alemanha, provocava a cooperação do grande vizinho. O Brasil pôde desempenhar com maior desenvoltura esse duplo jogo com a Alemanha e a Itália, por um lado, e os Estados Unidos, por outro, tirando enormes benefícios com o objetivo de promover sua segurança, seu comércio exterior eo seu processo de industrialização, cujas bases se consolidaram com a implantação da grande usina siderúrgica de Volta Redonda em 1943. Entre os grandes, apenas a Argentina permanecia alheia à diplomacia da barganha, embora obtivesse da Grã-Bretanha, rival dos Estados Unidos no terreno dos negócios, o importante tratado de comércio de 19334. A depressão e a Segunda Guerra Mundial comportam para os fins desse estudo três curtas fases: a primeira metade da década de 1930 Moura, Gerson. Sucessos e ilusões; relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991. p.7-39; Ojeda, Mario. Alcances y limites de la política exterior de México. México: Colégio de México, 1984.p.26-31; Jalabe, Silvia. La política exterior argentina y sus protagonistas, 1880-1995. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1996. p. 39-54.

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caracteriza-se pelos esforços de superação dos efeitos da depressão sobre uma economia latino-americana que havia sido escancaradamente aberta ao livre fluxo do comércio internacional; durante a segunda metade da década, além desse cuidado, os dirigentes passaram a lidar com os desafios da opção estratégica que haveriam de fazer diante do conflito mundial e, enfim, desde 1939, o desafio consistia em administrar as relações exteriores em contexto de guerra. A América Latina transitava então, em suas relações internacionais, de mercado aberto, exportadora de produtos primários e zeladora por prestígio político, para um esquema em que à política exterior conferiu-se a tarefa de trazer insumos concretos de desenvolvimento nacional. Em maio de 1930, ao ser entrevistado por um jornalista de La Prensa de Buenos Aires, o estadista francês Eduard Herriot reconheceu a importância da América Latina para as relações econômicas internacionais da Europa: em razão de seu crescimento econômico e da industrialização recente, era vista como campo de inversões européias na indústria e fonte de suprimentos básicos, à condição que se substituíssem os controles do câmbio pela competição aberta entre as potências européias e entre a Europa e os Estados Unidos, ambos de importância similar para apoiar “o assombroso desenvolvimento industrial e comercial da América Latina”5. O presidente do Comitê França-América da Academia Francesa de Letras, Gabriel Hanotaux, apelava então à amizade entre Europa e América para viabilizar as relações úteis nos tempos de crise que o mundo enfrentava6. A expectativa, portanto, dos países capitalistas era de que o modelo de portas abertas do mercado interno que causara o atraso secular da região fosse reconvertido em modelo de sistema produtivo aberto, em que o desenvolvimento fosse tocado pelo empreendimento, pelo capital e pela tecnologia exógenos. Restava saber se as elites latino-americanas que chegaram ao poder iriam se conformar com a transição de um para outro esquema de dependência. José de Paula Rodrigues Alves a Octávio Mangabeira, ofício, Buenos Aires, 14 maio 1930, AHI, lata 731, maço 10461. 6 Luís de Souza Dantas a Afrânio de Melo Franco, ofício, Paris, 18 jun. 1931, AHI, lata 1198l, maço 25929. 5

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O mercado europeu criava dificuldades para importação de produtos primários latino-americanos em 1930, de acordo com o observador Peixoto de Magalhães, diplomata brasileiro servindo em Buenos Aires, de três maneiras: primeiramente, pelo fato de os lucros comerciais serem absorvidos pelas companhias internacionais que se beneficiavam das oscilações do câmbio e não pelos produtores locais; em segundo lugar, pelos excedentes de oferta que afetavam particularmente as exportações argentinas (carne, trigo); em terceiro lugar, em razão da preferência que vinha sendo dada à produção colonial européia. Em outros termos, o liberalismo, quando vigia, beneficiava a Europa, quando não, era abatido por mecanismos europeus de defesa7. Malcolm Robertson, ex-embaixador britânico na Argentina, denunciou esta incongruência do liberalismo e propôs que à Argentina fossem estendidos os privilégios que auferiam os domínios do império britânico8. Esse modo de fazer face aos desafios da depressão capitalista não tinha apoio na opinião nacional, como registrava The Times em 1932: “a política de comércio exterior britânico buscaria arranjos recíprocos privilegiados com os domínios, e somente depois com a Argentina e outras repúblicas latino-americanas que se dispusessem a comerciar a seu modo”9. As dificuldades para o incremento do comércio com a América do Sul, entre 1930-1933, segundo periódico especializado, eram os baixos preços das mercadorias e as restrições cambiais que bloqueavam na região fundos de exportadores estrangeiros. Além do livre comércio, os ingleses exigiam o câmbio livre para estimular o comércio10. Os dirigentes da América Latina, para fazer face à estagnação do comércio exterior, adotaram como estratégia os tratados com cláusula de nação mais favorecida, na suposição de que se desse respeito ao princípio da liberdade de comércio apregoado pela Liga das Nações. Entre 1930 e 1933, o Brasil firmou mais de três dezenas desses tratados. 7 N. Peixoto de Magalhães a Octávio Mangabeira, ofício, Buenos Aires, 12 out. 1930, AHI, lata 732, maço 10463. 8 LaNación, Buenos Aires, 17 nov. 1930. AHI, lata 732, maço 10463. 9 TheTimes, 19 jan. 1932, AHI, lata 731, maço 10461. 10 Birmingham Gazette, 31 jan. 1933. AHI, lata 731, maço 10461.

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Ao perceberem, contudo, que as nações recorriam a medidas indiretas de controle das importações, outra estratégia foi posta em execução, a dos tratados de reciprocidade e, logo depois, a de comércio compensado. Sacrificava-se o princípio da liberdade de comércio pelo do benefício compartido, com vantagem para América Latina, que passou a intercambiar seus produtos primários por máquinas e equipamentos com que tocar a indústria interna11. Ademais, a margem de manobra para lidar com a concorrência internacional acentuou-se, já que uma política liberal poderia ser mantida do lado dos Estados Unidos, em troca de créditos de exportação e de investimentos, e outra de compensação, do lado da Europa, em troca de armas e equipamentos industriais. Após o golpe de Estado que, em setembro de 1930, derrubou o governo constitucional da Argentina, restabelecendo, ao contrário do que sucederia no mês seguinte com a revolução de Getúlio Vargas no Brasil, o poder da oligarquia conservadora, George Lloyd Courthope, prestigioso banqueiro inglês, escreveu ao ex-presidente Marcello T. de Alvear que a city de Londres aguardava apenas a normalização institucional para assegurar ao país o apoio financeiro necessário para manter a preeminência dos negócios britânicos diante da concorrência norte-americana12. Com efeito, os acordos de maio de 1933 que limitaram as restrições ao comércio, como a imposição de quotas e os entraves ao pagamento, consolidaram a posição econômica da Grã-Bretanha na Argentina. Mesmo assim, os ingleses prosseguiam insistindo na liberalização de fundos congelados para estimular o comércio bilateral, enquanto os argentinos entendiam que este estímulo apenas favoreceria as importações provenientes do Reino Unido e que a via correta de promover o intercâmbio era o aumento de fluxos equilibrados de comércio de lado a lado13. Prosseguia, aliás, em vigência a norma antiliberal da política comercial britânica, que 11 Cervo, Amado, Bueno, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p. 214-239. 12 N. Peixoto de Magalhães a Afrânio de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 8 jun. 1931, AHI, lata 732, maço 10463. 13 LaNación, 15 set. 1934, AHI, lata 732, maço, 10463.

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concedia privilégios aos domínios em detrimento de aliados especiais como a Argentina, conforme registrava La Prensa em 1935: “A GrãBretanha ignorou o direito que tem a República Argentina de exigir que seus produtos recebam o mesmo tratamento aduaneiro que aqueles dos domínios, com base em um tratado que contém a cláusula de nação mais favorecida”14. A queixa argentina era antes uma defesa. Com efeito, as estatísticas das importações inglesas de trigo, outros cereais e carne, indicam que a Argentina permanecia, entre 1933 e 1935, o fornecedor quase exclusivo, com cerca de 80% dos fornecimentos externos15. Em outros termos, os conservadores argentinos andavam já sensíveis com as novas pressões sócio-econômicas internas e buscavam, como o governo brasileiro, resultados recíprocos e desenvolvimentistas do comércio internacional. Apesar de dirigir seu comércio de exportação sobretudo para o mercado inglês, os argentinos não se descuidavam de outros países europeus. AHolandaerao segundo comprador argentino na Europa em 1931, quando esse país comprava da América Latina um montante cinco vezes superior a suas exportações para a região. Já na época, contudo, a imprensa mostrava que esse desequilíbrio do comércio era ilusório, visto que a balança de pagamentos, conceito que agrega os lucros do capital investido, os fretes da marinha mercante e outras variáveis, era favorável ao país europeu16. Entre as decisões a que lançaram mão os países sul-americanos para atenuar os efeitos da depressão no início dos anos 30 e evitar a deterioração de seus fluxos financeiros e econômicos externos, o controle do câmbio e das remessas para o exterior impedia ou criava dificuldades, por exemplo, para a expatriação de lucros de empreendimentos industriais e de empresas exportadoras estrangeiros sediados na região. Convinha estar atento para o conjunto e a complexidade das relações internacionais, caso o projeto de desenvolvimento nacional comandasse o processo decisório em política externa. La Prensa, 4 dez. 1935, AHI, lata 732, maço 10463. Idem. 2 maio 1935, AHI, lata 732, maço 10463. 16 Ibidem. 31 jan. 1933, AHI, lata 732, maço 10463. 14 15

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Foram de pouca valia, no contexto dos anos 30 e da transição de seu paradigma de relações internacionais, as relações da América Latina com a União Soviética. Mas não foram irrelevantes. A União Soviética dirigia então suas energias políticas para a Europa e para a promoção de seus interesses comerciais, em uma demonstração de realismo que deixara para trás a fase da exportação da revolução como prioridade externa. Na América Latina, interessava-se pela consolidação dos partidos comunistas nos diferentes países, mas não descurava a possibilidade de fazer negócios17. A sociedade anônima Iuyamtorg era o instrumento com que a União Soviética movia-se na América Latina com o intuito de fomentar seu comércio. O presidente dessa empresa, Alexander Mikin, apresentou em maio de 1931 ao ministro da Fazenda do Brasil, José Maria Whitaker, uma proposta minuciosa de intercâmbio bilateral, nos moldes com que a empresa já operava nos Estados Unidos (onde se denominava Amtorg), Argentina, Chile e Uruguai. Os dois obstáculos que o executivo soviético via para o desenvolvimento das relações comerciais com o Brasil eram as dificuldades de créditos bancários e a ausência de uma sucursal da Iuyamtorg no Rio de Janeiro. No mês seguinte, Mikin entreteve-secom o ministro brasileiro em Montevidéu, A.G. de Araújo Jorge, após haver obtido a recomendação da embaixada brasileira em Buenos Aires. AURSS pretendia iniciar compras de café, cacau, borracha e couros do Brasil. Araújo Jorge ponderava ao Itamaraty as vantagens dessa aproximação oportuna que já produzia frutos concretos e importantes nos países do continente naquele momento de crise internacional. Perguntava se o governo brasileiro estaria em condições de sobrepor esses interesses econômicos às razões de ordem política que até o momento explicavam o distanciamento18. Contudo, de Buenos Aires, Lafayette de Carvalho e Silva descrevia problemas de relacionamento com autoridades e partidos políticos, que induziram o governo a cassar a autorização para a empresa soviética funcionar na Rapoport, Mario. Política y diplomacia en la Argentina; las relaciones com E.E.U.U. y la URSS. Buenos Aires: Tesis, 1987. p.11-15. 18 A. G. de Araújo Jorge a Afrânio de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 29 set. 1931, AHI, lata 1034, maço 17837. 17

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Argentina, onde se instalara em 192719. As autoridades chilenas não haviam autorizado a instalação formal da empresa no país e a legação brasileira em Santiago desaconselhava ao governo de Vargas atender à sugestão vinda de Montevidéu no sentido de estabelecer relações comerciais com a URSS20. Getúlio Vargas consultou seu ministro das Relações Exteriores, Afrânio de Melo Franco, acerca da conveniência de autorizar o funcionamento no país daquela agência soviética de comércio. Ante parecer contrário de sua assessoria de comércio exterior, aconselhou Vargas a negar essa autorização em razão de desconfianças acerca da atuação política que a Iuyamtorg poderia vir a exercer21. Na Argentina, apesar da representação dos advogados da empresa a fim de que o poder Executivo tornasse sem efeito o decreto que suspendera a autorização da Iuyamtorg, a imprensa acusava-a de propaganda comunista e se opunha ao restabelecimento do comércio pela via da representação formal22. Em 1934, a empresa somente conservava sua sede de Montevidéu, onde, aliás, seu presidente, Alexander Mikin, fora acreditado como ministro soviético, sendo o Uruguai o único país sulamericano a reconhecer oficialmente o regime de Moscou e a estabelecer com ele relações diplomáticas (a Colômbia o faria em 1935, após haver o México rompido essas relações). Mas a opinião dos representantes brasileiros no Uruguai tornou-se contrária àquela expressa por Araújo Jorge em 1931. Em maio de 1934, o Serviço de Passaportes do Itamaraty informava ao secretário-geral que o consulado em Montevidéu negara um pedido de visto para que um diretor viesse ao Brasil e aconselhava terminantemente impedir a vinda de qualquer representante da empresa ao país, levando em conta a imensa documentação proveniente das legações na Argentina e no Uruguai que comprovavam “que a referida Lafayette de Carvalho e Silva a Afrânio de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 24 nov. 1931, AHI, lata 731, maço 10461. 20 Legação do Brasil a Afrânio de Melo Franco, ofício, Santiago, 22 out. 1931, AHI, lata 1034, maço 17837. 21 Afrânio de Melo Franco a Getúlio Dornelles Vargas, despacho, Rio de Janeiro, 19 nov. 1931, AHI, lata 1034, maço 17837. 22 LaNación, 2 dez. 1931, AHI, lata 731, maço 10461. La Prensa, 19 jun. 1932, AHI, lata 731, maço 10461. 19

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sociedade russo-uruguaia tem como pretexto o intercâmbio comercial e como finalidade a expansão das idéias subversivas comunistas, onde quer que ela consiga estender os seus tentáculos”23. As reações da diplomacia latino-americana, diante da tentativa soviética de penetração comercial na região por meio da agência Iuyamtorg, comprovaram que, na primeira metade dos anos 30, ainda longe dos tempos da Guerra Fria, aos países da região repugnava a contaminação comunista ao ponto de contra ela estarem dispostos a sacrificar interesses comerciais, mesmo nas adversas condições com que a depressão capitalista limitava os negócios. Também pode-se conjecturar acerca da determinação dos dirigentes latino-americanos em manter as rédeas do novo processo de desenvolvimento como explicação para sua atitude de fechar as portas à penetração soviética. Havia repugnância mesmo de movimentos de esquerda latinoamericanos pelos métodos de aliciamento de camponeses e operários fomentados desde Moscou e pela pregação de assalto ao capital privado. Por essa razão, a União Soviética viu-se na necessidade de repensar sua ação na América Latina e, desde 1935, optou pela composição de alianças de libertação nacional, embriões das frentes populares que vingaram em alguns países24. Adepressão capitalista parecia, aliás, não afetar certos mercados que demandavam os produtos latino-americanos. Ao lado da União Soviética, era o Japão que buscava a região no início da década de 1930, por meio da companhia de navegação Osaka Shosen Kaisha, despertando interesses e ciúmes entre Argentina, Uruguai e Brasil pelo fornecimento de produtos agrícolas25. O desequilíbrio do comércio com a Austrália e o interesse em diversificar as parcerias motivaram, em 1933, a viagem de comissários japoneses de comércio para a 23 Lucillo Bueno a Félix de B. Cavalcanti de Lacerda, ofício, Montevidéu, 25 fev. 1934, AHI, lata 301, maço 4452. Serviço de Passaportes ao secretário-geral, memorandum, Rio de Janeiro, 8 maio 1934, AHI, lata 731, maço 10461. 24 Varas, Augusto (org). América Latina y la Unión Soviética; unanueva relación. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano,1987. p.10-11. 25 N. Peixoto de Magalhães a Afrânio de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 14 fev. 1933, AHI, lata 732, maço 10463.

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América do Sul, onde pretendiam obter fornecimentos de lã, algodão, couros, trigo, carnes e outros produtos26. O esforço japonês alarmava os círculos de negócios americanos, em 1935. Oswaldo Aranha, embaixador brasileiro em Washington, escreveu ao ministro das Relações Exteriores, Macedo Soares, relatando a “invasão comercial japonesa na América do Sul”. Após haverem despertado a simpatia dos produtores locais com as aquisições de produtos agrícolas, os comerciantes japoneses começaram a repassar aos consumidores da região a preços baixos variada gama de bens que incluíam medicamentos, munições, alimentos, tecidos, vidraçarias, calçados, papel, celulose, roupas e brinquedos. Ao avaliar essa estratégia de penetração, Aranha alertava para o propósito japonês de competir abertamente pela conquista dos mercados sul-americanos, como tentara Herbert Hoover com a finalidade de alijar a Grã-Bretanha e a Alemanha e garantir a preponderância americana sobre os mercados vizinhos. Segundo a imprensa norte-americana, osjaponeses estariam concorrendo em condições favoráveis em razão dos baixos salários pagos a sua mãode-obra, da flexibilidade de sua produção a gostos diferentes, da habilidade em vencer os obstáculos monetários e tarifários criados pela crise do capitalismo, do engajamento agressivo de sua diplomacia, do envio de missões comerciais representando interesses de meia centena de empresas, do uso pragmático de uma diplomacia cultural e, ainda, em razão de núcleos de imigrantes radicadosnospaíses da região. Poderia haver exagero nessa avaliação da opinião americana, segundo Aranha. Convinha, contudo, ter em mente os dois princípios da política norteamericana a tal respeito: evitar o imperialismo japonês no Pacífico por meio de um sistema coletivo, de que eram exemplo os tratados de Washington, e conter qualquer penetração política no hemisfério por parte de uma potência européia ou asiática27. Por seu lado, a imprensa latino-americana denunciou a campanha antinipônica na América do Sul fomentada por homens de LaMañana, Montevidéu, 3 set. 1933, AHI, lata 731, maço 10461. Oswaldo Aranha a José Carlos Macedo Soares, ofício, Washington, 28 mar. 1935, AHI, lata 731 maço 10461. 26 27

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negócios americanos que pressionavam os governos a romper com os acordos de comércio que serviam de instrumento, desde antes da Primeira Guerra, à penetração japonesa28. Em 1937, o Japão exportou mercadorias para a América Latina no valor de 164 milhões de ienes, mas uma queda verificar-se-ia no ano seguinte, não em razão da campanha norte-americana, mas, segundo o representante brasileiro naquele país, N. Tabajara, em razão das restrições cambiais latinas e dos fornecimentos requeridos pelo exército do Japão engajado na China29. Como reagiram os norte-americanos ante as perspectivas de negócios dos países da América do Sul com a Europa, a URSS e o Japão? Para os latinos, obviamente, essas oportunidades deveriam ser exploradas sem prejudicar a colocação de seus produtos no mercado do norte. Para os americanos, elas representavam ameaças a seus interesses comerciais e políticos, motivo por que não somente procuravam a elas contrapor-se como haveriam de amenizar sua tradicional prepotência ao longo da década30. Já em 1933, o secretário de Estado CordellHull visitou a Argentina com a finalidade de recompor de modo franco e despretensioso o estrago nas relações bilaterais causado pelo secretário de Estado assistente, Francis White, que tivera até há pouco, a seu cargo, os negócios com a América Latina31. A literatura disponível não explora suficientemente este contexto de barganha que se abriu à América Latina nos anos da depressão capitalista e da divisão do mundo em blocos antagônicos. Não pôde assim determinar com objetividade o desempenho e os limites da nova diplomacia de cooperação destinada a apoiar os projetos 28 ElTiempo, Bogotá, 14abr. 1934;JornaldoCommércio,RiodeJaneiro, 17jun. 1935, AHI, lata 731, maço 10461. Octávio de Abreu Botelho a Agamemnon de Magalhães, ofício, Buenos Aires, 12 fev. 1936. AHI, lata 732, maço 10463. 29 N. Tabajara a Oswaldo Aranha, ofício, Yokoama, 15 nov. 1938, AHI, lata 731, maço 10461. 30 Dessa prepotência, os norte-americanos deram provas ainda no início da década por meio de tratamento insultuoso e do assassinato brutal cometido por autoridades policiais de três estudantes mexicanos que regressavam a seu país. Legação do Brasil a Afrânio de Melo Franco, ofícios, México, 15 jul. e 27 nov. 1931, AHI, lata 1626, maço 34994. 31 EveningStar, Washington, 28 dez. 1933, AHI, lata 301, maço 4416.

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nacionais de desenvolvimento. É necessário estimular o estudo dos documentos das chancelarias, indispensável para a compreensão desse momento de transição das políticas exteriores do continente. Não eram apenas confrontos de interesse entre Estados Unidos e Alemanha que estavam em jogo, como amiúde se vê escrito. Outras oportunidades existiam, que acirravam a competição sobre o terreno dos negócios e da política internacional, com a presença de velhos e a irrupção de novos atores, Grã-Bretanha, Itália, Espanha, União Soviética, Japão e outros. A potência hegemônica da área, os Estados Unidos, foi encurralada pelos governos latinos, os quais acabaram por ceder-lhe a solidariedade continental e a cooperação de guerra por preço compensador. De modo muito experto, o governo de Roosevelt convocou a delegação de alguns países, dentre os quais o Brasil, para uma conferência preliminar que se realizou em Washington, em maio de 1933, em preparação à grande Conferência Monetária e Econômica Mundial de Londres. A delegação brasileira, composta por uma dezena de peritos, foi recebida pelo presidente e negociou com autoridades do Departamento de Estado, na presença de Cordell Hull, por quatro dias, um vasto programa que não só se destinava a alinhar as posições a serem mantidas em Londres, como ainda a debelar obstáculos ao intercâmbio bilateral. Na dimensão mundial, como na bilateral, buscavam os Estados Unidos apoio ao comércio livre e desembaraçado de entraves cambiais, de direitos alfandegários, de quotas e de outros obstáculos, como também medidas que viessem estabilizar as moedas. Propunham a generalização de acordos comerciais com cláusula de nação mais favorecida como fórmula para debelar os entraves ao livre comércio, mas não concordavam com limites aos direitos alfandegários, visto que as tarifas norte-americanas eram muito elevadas. Buscavam, pois, o liberalismo dos outros mercados, preservando os instrumentos de proteção do próprio. No que tangia ao principal produto brasileiro de exportação, o café, os negociadores americanos ameaçaram com um imposto aduaneiro, caso o Brasil não liberalizasse fundos americanos retidos por controles cambiais, e alcançaram o que queriam. A Conferência, de cunho preliminar, de Washington acabou com uma 35

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declaração em que ambos os governos anunciavam que havia “forte identidade de propósito e de política entre os dois governos” acerca de atitudes a tomar na Conferência de Londres32. Estava-se, ainda, na época do alinhamento servil da diplomacia brasileira ao interesse norteamericano que havia caracterizado a conduta do Itamaraty durante a República Velha. Na segunda metade dos anos 30, o comércio exterior da América Latina esteve de forma crescente relacionado com a divisão do mundo em blocos antagônicos que antecederam a conflagração mundial. O Japão encontrava dificuldades para colocar seus produtos na América Central e do Sul. Um relatório do conselheiro do Ministério dos Negócios Exteriores, Yasundo Sudo, de regresso de uma viagem de estudo em 1935, revelou que as exportações totais para a área representaram, em 1934, 5% das exportações japonesas (104 milhões sobre 2,1 milhões de ienes). Restrições crescentes, entre as quais figuravam os direitos de importação e denúncias de tratados de comércio, eram impostas pelos países da região à entrada de produtos japoneses. O relatório de Sudo não registrou o antiniponismo como uma das causas para esse declínio, mas assim mesmo previa atitudes de repulsão aos produtos japoneses na América do Sul. Três razões explicavam o declínio da exportação japonesa: os constrangimentos de balanças de pagamento que operavam nos limites do suportável e forçavam restrições às importações; aumento de importações feitas recentemente na expectativa de mais restrições a serem adotadas pelos governos; as pressões de Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha que perdiam mercados para os bens japoneses na América Central e do Sul. Sudo concluiu com uma crítica à política de comércio exterior do próprio Japão, voltada para exportações sem o necessário equilíbrio de importações para ajudar a harmonizar as contas externas da América Latina33. Poderia ir mais longe na proposta de meios com que viabilizar os negócios japoneses, sugerindo à potência do Oriente os mecanismos Delegação do Brasil à Conferência Monetária e Econômica Mundial e a Afrânio de Melo Franco, relatórios e ofícios vários, 1933, AHI, lata 1019, maço 17262. 33 The Japan Advertiser, Tóquio, 7 fev. 1935, AHI, lata 1016, maço 17163. 32

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que logo se implantariam no comércio entre a América Latina e os dois maiores contendores externos: os créditos que os Estados Unidos cederiam para financiar seu comércio e o esquema das listas de compensação que provocariam o incremento espetacular do comércio alemão. Sem uma boa política, o Japão não somente deixava de fortalecer sua presença na região, como ainda perdia terreno. Norteamericanos e locais uniam-se para combater os produtos japoneses, alegando os primeiros que eles competiam deslealmente com os produtos americanos e os segundos com as indústrias nacionais, em razão dos baixos preços. Foi o motivo invocado pelo governo do Peru para denunciar em 1935 o tratado de comércio com o Japão34. Nesse mesmo ano, um decreto chileno se sobrepôs ao tratado com o Japão firmado em 25 de setembro de 1897, impondo uma sorte de comércio compensado com o intuito de aumentar as exportações de nitrato e estabelecer o equilíbrio das trocas que fora desfeito com a invasão dos manufaturados de baixo preço. Uma missão chilena ao Japão obteria em 1937 da Federação dos Exportadores Japoneses para a América Latina um acordo geral dispondo sobre meios e mecanismos para solver as dificuldades e incrementar o comércio a contento de ambas as partes35. Por essa época, o comércio do Japão com a Colômbia era incipiente, mas o desequilíbrio tão acentuado que o governo colombiano viu-se na contingência de denunciar o tratado de comércio bilateral, firmado em 1905, mesmo porque a indústria nacional, cujas fábricas fechavam em razão da concorrência, o pressionava nesse sentido. Mas havia perspectivas de compra de volume importante de café para forçar a penetração de manufaturados japoneses no mercado do país. Isso inquietava o Brasil, obviamente36. A imprensa colombiana, acuada pela La Prensa, 16 abr. 1935, AHI, lata 1016, maço 17163. Rodrigues Alves a José C. de Macedo Soares, ofício, Santiago, 1 fev. 1935; P. Leão Veloso a José C. Macedo Soares, ofício, Tóquio, 26 ago. 1936; Consulado do Brasil a Mário de Pimentel Brandão, ofício, Kobe, 10 maio 1937, AHI, lata 1034, maço 17837. 36 Manoel Coelho Rodrigues a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Bogotá, 26 nov. 1934; Legação do Brasil a José Carlos de Macedo Soares, Bogotá, ofício, 2 mar. 1935, AHI, lata 1037, maço 17949. 34 35

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indústria nacional que perdia mercado, não apoiava a guerra comercial que movia o Japão contra americanos e ingleses dentro do território37. Mas os importadores de tecidos e vestuário exigiam, com o intuito de retomar as compras, uma nova regulamentação, que foi alcançada por troca de notas em maio de 1935, estabelecendo um modus vivendi com mecanismos de comércio compensado. Segundo a legação brasileira, o Brasil não deveria preocupar-se com esse comércio, visto que o principal produto brasileiro importado pelo Japão, que a Colômbia não produzia, era o algodão, já que o consumo de café no império do Oriente era ínfimo38. O governo japonês discordava, todavia, do argumento dos preços baixos, contando, aliás, com parte da opinião latina que via neles uma vantagem prática contra a elevação do custo de vida, e trabalhava com a hipótese da campanha antinipônica dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. O próprio Peru, ao denunciar o tratado de comércio com o Japão, firmou outro com a Grã-Bretanha, em que lhe concedia redução alfandegária de 25% sobre os manufaturados em troca apenas de açúcar de sua produção, infringindo a norma de nação mais favorecida. O acordo em negociação entre o Japão e a Colômbia foi suspenso em razão da conclusão de outro com Washington. A Argentina mantinha suas quotas para a entrada de produtos japoneses em razão de seu grande comércio com a Grã-Bretanha. Esses e outros fatos levaram o governo japonês à conclusão de que as dificuldades de seu comércio na América do Sul provinham de Washington e Londres39. Aofensivajaponesa, não esmorecia, contudo. O consulado brasileiro em Guayaramerin relatou em 1938 o incremento do consumo deprodutosjaponesesno mercado boliviano, por ocasião da visita de uma missão comercial e industrial do Japão. Tecidos de seda já dominavam o mercado. Industriais japoneses 37 ElEspectador, Bogotá 18 e 25 mar. 1935; El Pais, Bogotá, 25 mar. 1925, AHI, lata 1037, maço 17949. 38 Manoel Coelho Rodrigues a José Carlos de Macedo Soares, Bogotá, ofícios de 10 abr., 20 maio, 27 jun., 8 jul., 9 ago., e 30 ago. 1935, AHI, lata 1037, maço 17949. 39 Oscar Corrêa a José Carlos de Macedo Soares, exposição, Kobe, 29 fev. 1936, AHI, lata 1016, maço 17163.

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acompanharam a missão com o fim de obter condições para instalar fábricas de manufaturados como tecidos, porcelanas, cristais, etc. O consulado advertiu a chancelaria brasileira que o plano japonês colocaria em risco propósitos de industriais paulistas que também pretendiam investir na Bolívia, montando lá diversas fábricas. O risco que todos os estrangeiros haveriam de enfrentar vinha, contudo, do nacionalismo boliviano, que era adverso a esses negócios e comprometia a estabilidade futura dos contratos40. Outro exemplo da ofensiva japonesa verificavase na Argentina, cujas quotas de importação de produtos japoneses eram fixadas em função do volume das exportações para aquele país. Encontrando dificuldades para prosseguir abastecendo-se com a lã australiana, oscomerciantesjaponeses propuseram em 1939 o aumento da quota argentina em troca de tecidos e outros manufaturados41. Percebem-se, pois, diversos problemas enfrentados pelo comércio deexportação japonêsparaa América do Sul: guerra comercial americana, restrições cambiais, baixa capacidade de importação japonesa, reação do nacionalismo econômico latino. Quatro fortes condicionamentos pesavam sobre suas possibilidades: a disposição dos governos latinos de barganhar seu mercado por vantagens recíprocas a investir no processo de desenvolvimento; o aumento da autonomia decisória latina no contexto da depressão capitalista e da divisão do mundo em bloco; o acirramento da competição internacional com o aparecimento de novos centros produtores no mundo; e a aliança a ceder aos Estados Unidos em troca de ganhos econômicos e estratégicos. Para tudo, a solução parecia passar pelo sistema de comércio compensado, feito de quotas equilibradas quanto ao valor total do intercâmbio, exatamente como procedia o Brasil com o conjunto de suas trocas com a Alemanha e a Itália. O Brasil abrigava em 1938 a maior colônia de japoneses em um país estrangeiro, cerca de duzentos mil. O comércio bilateral

J. de Mendonça Lima a Mário de Pimentel Brandão, ofício, Guayaramerin, 5 fev. 1938, AHI, lata 1034, maço 17838. 41 José Rodrigues Alves a Oswaldo Aranha, ofício, Buenos Aires, 24 ago. 1939, AHI, lata 732, maço 10463. 40

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ascendeu de um milhão de ienes em 1921 para seis milhões em 1935, saltando para 75 milhões em 1937. As expectativas eram de chegar a um bilhão em poucos anos. Esse incremento era explicado pela troca de missões comerciais em 1935 (Missão Hirao) e 1936 (Missão Salgado Filho), pelo esforço do embaixador brasileiro Leão Veloso, acreditado em Tóquio desde 1935, e por uma ativa diplomacia cultural42. Iniciada a guerra, a imprensa japonesa alarmou-se com o projeto norteamericano de constituir uma corporação exportadora interamericana dispondo de um capital de dois bilhões de dólares, destinada a financiar toda a circulação de riqueza no continente, excluindo europeus e asiáticos do envolvimento com o comércio regional. As autoridades japonesas apelavam aos interesses argentinos e brasileiros realizados com seu comércio com a Inglaterra e o Japão para opor-se ao empreendimento monopolista americano43. Em termos comparativos, se malogrou, durante a depressão capitalista, a tentativa soviética de penetração comercial na América Latina por razões políticas e ideológicas, o esforço japonês esbarrou em outros obstáculos, como a resistência do nacionalismo econômico local, a reação diplomática e política norte-americana e a baixa capacidade japonesa de consumo de produtos primários latino-americanos. O comércio com a Grã-Bretanha prosseguia sendo o eixo principal dos negócios externos da Argentina na segunda metade dos anos 30. As trocas foram novamente reguladas pelo acordo de comércio de 1º de dezembro de 1936. No quinquênio 1935-1939, um quinto das importações da Argentina provinha do Reino Unido, enquanto esse absorvia um terço das exportações totais. Computados dividendos, juros bancários, fretes e outras variáveis, era equilibrada a balança de pagamentos bilateral segundo observava TheTimes44. ParaLaNación, as dificuldades desse comércio prosseguiam sendo as mesmas dos anos anteriores: baixa rentabilidade das empresas ferroviárias britânicas na Japan News-Week, Tóquio, 3 dez. 1938, AHI, lata 1198, maço 25946. 43 Consulado do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Kobe, 25jun. 1940, AHI lata 1016, maço 17163. 44 TheTimes, Londres, 6 jan. 1940, AHI, lata 732, maço 10463. 42

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Argentina; taxação britânica sobre a carne argentina superior àquela imposta à carne proveniente dos domínios; subsídios aos produtores de carne do Reino; pressão dos domínios pelo abastecimento do mercado inglês com seus produtos agrícolas45. Em 1938 verificou-se um decréscimo de 25 milhões de pesos na entrada de produtos ingleses na Argentina. O início da guerra abriu novas perspectivas para os negócios bilaterais segundo o Financial News de 30 de outubro de 1939, já que as importações de carnes haveriam de aumentar e a retirada da Alemanha do mercado local – 10% das importações totais argentinas – representaria novas oportunidades para outros fornecedores externos46. Com relação aos anos 20, o comércio da Argentina com a chegou França a cair 40% nos anos 30. O princípio “comprar de quem nos compra” embaraçava os negócios, sobretudo porque as duas economiasnão eram complementares. Em 4 demarço de 1936 firmouse um acordo por troca de notas, cuja finalidade era a de superar as dificuldades, mas, assim mesmo, esse comércio não apresentava um desempenho promissor. A Argentina buscou então outros países, mormente a Holanda, com a qual firmou um tratado de comércio que ofereceu facilidades para a imigração holandesa e elevou as trocas bilaterais acima daquelas registradas entre o Brasil e a Holanda47. Na segunda metade dos anos 30, o Brasil reformulou com senso muito pragmático sua política de comércio exterior, que passou a fundar-se em três princípios: primeiro, aproveitar as rivalidades dos blocos antagônicos em formação para provocar a competição interna e elevar o poder de barganha nas negociações externas; segundo, manter a política de comércio liberal do lado dos Estados Unidos, forçandoos, contudo, a agir em razão das condições de competição provocadas; terceiro, incrementar o intercâmbio com a Alemanha (e a Itália) por La Nación, 4 mar. 1936, AHI, lata 732, maço 10463. Régis de Oliveira a Oswaldo Aranha, ofício, Londres, 30out. 1939, AHI, lata 732, maço 10463. 47 João P. da Silva a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Paris, 7 abr. 1936; Rui Ribeiro Couto a Oswaldo Aranha, ofício, Haia, 27 out. 1938, AHI, lata 732, maço 10463. 45 46

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meio de mecanismos de comércio compensado. Em 1938, Renato de Azevedo, membro do Comitê Misto de Negociação Comercial BrasilEstados Unidos com sede em Nova Iorque, fez um balanço da reação dos homens de negócio e do governo americanos a essa política. Os norte-americanos opuseram-se, desde o tratado bilateral de comércio de 2 de fevereiro de 1935 que firmaram com o Brasil, à utilização por este país dos marcos compensados no comércio com a Alemanha, convertendo-os no “cavalo de batalha” das negociações. A seu turno, os negociadores brasileiros se negavam a entrar em discussões com os norte-americanos sobre as relações comerciais de seu país com outras nações. Tanto é verdade que o Brasil haveria de firmar em 6 de junho do ano seguinte o ajuste de compensação com a Alemanha. Sem limitar a liberdade de movimento da diplomacia econômica do Brasil, o tratado com os Estados Unidos e o comitê de negociação que dele resultara destinavam-se exclusivamente, no modo brasileiro de ver e de operar, a remover obstáculos que porventura viessem a dificultar o desenvolvimento do comércio entre os dois países. E esses eram quatro, segundo os brasileiros: (a) restrições cambiais; (b) escassez de créditos para o comércio; (c) inexistência no Brasil de indústrias com capacidade de produção em escala para atender o mercado norte-americano; (d) deficiência dos transportes marítimos. As restrições cambiais a que o governo brasileiro fora forçado a recorrer em razão do desequilíbrio de suas contas externas representavam o obstáculo mais determinante, responsável pela quase paralisia do comércio com osEstadosUnidos. Por outro lado, o importador brasileiro buscava de preferência a Alemanha (alçada em 1938 à condição de primeiro fornecedor do Brasil) em razão das facilidades do comércio compensado, a França e a Inglaterra, em razão dos créditos que ofereciam. Faltava aos norte-americanos experiência em comércio exterior, enquanto abundavam em filosofia política. Por certo, se o Brasil desenvolvesse em escala as indústrias cujos produtos tinham mercado garantido nos Estados Unidos (óleos vegetais, madeiras, manganês e outros minérios), o equilíbrio do comércio bilateral poderia estabelecer-se, estimulando seu crescimento. Enfim, as taxas dos fretes marítimos elevaram-se precisamente em razão da queda do volume do comércio e da grande 42

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oferta de serviços, que forçaram as companhias a estabelecer uma conferência de fretes48. As soluções viriam para essas dificuldades, não pelo efeito de negociações entre americanos e latinos, mas pelo das pressões oriundas da Europa que afetavam a segurança e os interesses da potência hemisférica. Com efeito, logo após a Conferência de Munique, Arthur Krock expôs no New York Timesosplanospráticos em prol da unidade hemisférica preparados por uma comissão interministerial presidida pelo subsecretário de Estado Summer Welles e aprovados pelo presidente Roosevelt. As iniciativas preventivas diante de ameaças européias haveriam de produzir resultados em variadas frentes de ação. Asconferênciaspan-americanasdestinar-se-iam ao intercâmbio de idéias culturais, diplomáticas e políticas; a Marinha e o Exército dos EUA seriam modernizados; a rodovia pan-americana estender-se-ia do México ao Panamá e à América do Sul; seria estimulada a produção agrícola na América Latina de produtos a serem adquiridos pelos Estados Unidos, como madeiras, plantas medicinais einseticidas, borracha etc.49. O contexto histórico da guerra modificou profundamente o movimento das relações internacionais na primeira metade dos anos 40 para a América Latina como um todo. O periódico londrino The Financial News previa desde 1940 uma melhora sensível do comércio de exportação da região, com o aparecimento de saldos favoráveis, em razão da alta dos preços e do aumento da demanda, mas ainda em razão de deslocamentos para os Estados Unidos e a Europa atlântica dos eixos comerciais que antes existiam entre a América Latina e a Europa central50. Novas companhias britânicas foram criadas para administrar o comércio em tempo de guerra e a tonelagem marítima então empregada no comércio entre o Reino Unido e a América do Sul elevou-se a 1 milhão de toneladas. Cogitavam os ingleses em substituir a Alemanha, a Itália e os países ocupados pelos exércitos alemães, tanto como fornecedores quanto como compradores de 48 Renato de Azevedo a J.G. Moniz, considerações, Nova Iorque, 19 abr. 1938, AHI, lata 1028, maço17597. Cf. ofício do mesmo dia. 49 The New York Times, 26 out. 1938, AHI, lata 1239, maço 27636. 50 The Financial News, London, 22 abr. 1940, AHI lata 731, maço 10761.

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mercadorias da América do Sul51. Havia, entretanto, dificuldades nas relações com a Grã-Bretanha. As medidas adotadas pelo governo britânico para fiscalização do comércio dos neutros em 1939 sofreram sérias reservas do governo brasileiro que reclamava de prejuízos diretos e indiretos. Alista negra de empresas não foi reconhecida, os confiscos de encomendas feitas à Alemanha e a censura da correspondência diplomática, com a destruição de parte dela realizada pelos ingleses em Gibraltar, eram inaceitáveis. Mas a decisão brasileira de estabelecer relações diplomáticas com o Canadá, domínio imperial britânico, recebeu acolhida muito favorável52. Novas perspectivas se abriam para o comércio com a URSS. A Câmara dos Deputados da Argentina tomou a iniciativa de propor em 1942 o estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais, estas últimas suspensas em 1930 com a cassação da licença de funcionamento da empresa soviética Iuyamtorg. Aimprensa tendia a apoiar tal iniciativa nos países latinos, como, por outro lado, hostilizava o regime de Franco na Espanha, por suas ligações com Hitler e Mussolini. Para os Estados Unidos voltavam-se as atenções dos latinoamericanos com o início da guerra. Mesmo porque o governo e a diplomacia de Roosevelt mostravam-se extremamente ativos, alçando a América Latina a um grau de importância que nunca tivera nas considerações econômicas, políticas e estratégicas. A estratégia de Roosevelt compreendia uma série de planos concretos: (a) estabelecer um gigantesco monopólio do comércio intra e extrazonal; (b) fornecer créditos às importações e exportações dos Estados Unidos na região; (c) usar fundos americanos para estabilizar as moedas dos países latinos e desencorajar o comércio compensado53. A grande corporação comercial das Américas não foi instalada, mesmo porque muitas dificuldades foram percebidas para seu funcionamento, mas o Moniz de Aragão a Oswaldo Aranha, ofício, Londres, 11 set. 1940, AHI, lata 731, maço 10461. 52 Meira Penna à Divisão Política e Diplomática, memorando, Rio de Janeiro, 17 jan. 1940, AHI, lata 1198, maço 25947. 53 Embaixada do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Washington, 18 jun. 1940, AHI, lata 1130, maço 22565. 51

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fornecimento de abundantes créditos americanos para o comércio regional constituiu fator decisivo para seu incremento de acordo com as necessidades americanas e os interesses dos países do sul. À frente do Comitê Econômico-Financeiro Interamericano, Summer Welles levantava as potencialidades e as necessidades dos países hemisféricos quanto ao comércio exterior e propunha aprovação de leis que convertessem o Export-Import Bank no grande financiador das trocas54. O subsecretário de Estado Summer Welles recebeu em janeiro de 1940 um extenso relatório apresentado por E. P. Thomas, membro do Comitê Comercial Brasil-Estados Unidos com sede em Nova Iorque. O documento incorporava dados de uma visita ao Rio de Janeiro levada a efeito em janeiro de 1939, ocasião em que Thomas encontrara-se com os membros do comitê que tinha sede no Rio e com o chanceler Oswaldo Aranha. As reclamações americanas até então diziam respeito aos atrasados comerciais e às restrições cambiais que emperravam o comércio bilateral. Daí a importância que se deu nas negociações à abertura de linhas de crédito. O comitê recomendava ao governo americano créditos e investimentos para desenvolver extensa gama de produtos que seriam requeridos pelo mercado americano (bauxita, cromo, carvão, cacau, ferro, níquel, manganês, borracha, carnaúba, peles, seda, amêndoas, babaçu, tabaco, fibras vegetais). O Brasil deveria substituir outros fornecedores e converter-se em fornecedor principal ao mercado americano. Para tanto, os investimentos americanos no Brasil seriam estimulados (eram de 194 milhões de dólares em 1936, segundo o relatório), particularmente os investimentos privados paraaprodução mineral, ostransporteseos serviçospúblicos. Aconselhava para o Brasil a redução da burocracia na concessão de passaportes e no registro de empresas, bem como o fortalecimento da estrutura bancária, o incremento do turismo, tratamento igualitário ao capital nacional e americano, estímulo e não apenas permissão à entrada de capitais. O relatório apontava enfim cinco fatores que impediam a ampliação dos investimentos estrangeiros no Brasil: (a) restrições legais para a exploração mineira e do potencial hidráulico; (b) restrições legais para 54

Idem, ofício, Washington, 12 jul. 1940, AHI, lata 1130, maço 22565.

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exploração e refinamento do petróleo; (c) uma constituição outorgada pelo Executivo, em conflito com o Judiciário; (d) restrições legais à imigração e à liberdade de movimento de estrangeiros; (e) entraves da lei de sociedades anônimas à colaboração entre capital nacional e estrangeiro55. A proteção às indústrias locais enumerada no relatório de Thomas como uma das dificuldade nas relações econômicas do Brasil com os Estados Unidos também era denunciada pelo periódico portenho La Prensa, no caso argentino56. Com efeito, nas percepções de lideranças dos dois países, essa proteção era indispensável ao fortalecimento das economias nacionais e à diversificação de suas estruturas rumo ao capitalismo moderno. O desafio em harmonizar interesses antagônicos norte-americanos e latino-americanos a esse respeito, voltados os primeiros ao liberalismo doutrinário cuja aplicação manteria as estruturas vigentes, foi em boa medida vencido pela disposição comum de unir os esforços de guerra. A assertiva aplica-se sobretudo nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos. A imprensa latino-americana noticiava no início de 1942 a estreita cooperação e o perfeito entendimento entre Estados Unidos e Brasil na defesa hemisférica contra eventuais ameaças das potências do Eixo57. Essa avaliação reforçou-se com o encontro entre os presidentes Roosevelt e Vargas em Natal, emjaneiro de 1943, destinado aexaminar a segurança das Américas. A imprensa norte-americana salientou sua importância, vendo nele o reconhecimento do papel de liderança latinoamericana por parte do Brasil nos esforços continentais de guerra e a demonstração das relações especiais e da perfeita amizade existente entre ambos os países. Não repercutiram no continente as interpretações da imprensanazista alemã, segundo a qual Roosevelt viajara com a intenção de implorar por uma expedição de cinqüenta mil brasileiros para Dacar e ameaçara Vargas de apoiar a produção de borracha na Libéria caso E. P. Thomas a Summer Welles, relatório, Nova Iorque, 22 jan. 1940, AHI, lata 1028, maço 17597. 56 José de Paula Rodrigues Alves a Oswaldo Aranha, ofício, Buenos Aires, 14 dez. 1940, AHI, lata 2090, maço 37712. 57 Cf. ofícios das legações no México, Lima e Santiago, AHI, lata 1628, maço 34999. 55

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não obtivesse o consentimento58. A repercussão na imprensa inglesa deu destaque ao papel da aviação e da Marinha do Brasil para combater a ameaça submarina no mar das Antilhas e no Atlântico sul e tornar mais segura a própria navegação do Atlântico norte59. A abertura de uma legação brasileira no Canadá durante a guerra também contribuiu para evidenciar o papel do Brasil no esforço de guerra dos aliados, além de servir de ponto de partida de um relacionamento que era, do lado canadense, apreciado tanto pela cooperação de guerra quanto pelas perspectivas de negócios bilaterais60. Enquanto crescia o prestígio do Brasil na opinião latina e no conceito dos aliados em razão de seu intenso envolvimento nos esforços de guerra e enquanto advinham benefícios econômicos e estratégicos de sua aliança estreita com os Estados Unidos, a Argentina orientava-se por um movimento de introspecção. Alarmavam-se os produtores de cereais desse país, em 1940, pelo fato de disporem de grandes estoques, cuja compra não convinha à Inglaterra, tanto pela falta de necessidade desses excedentes quanto pela escassez de crédito61. Quando a Argentina declarou a neutralidade, o Foreign Office veio a público lamentar tal decisão política que julgava comprometer as relações do país com os Estados Unidos e os demais países americanos que haviam declarado a guerra ou rompido as relações com o Eixo. No início de janeiro de 1943, o embaixador argentino Carcano procurou o ministro inglês Eden para manifestar-lhe o desagrado argentino diante da manifestação inglesa, mas não obteve qualquer retificação62. O Financial News de

58 Cf. correspondência diplomática (ofícios, circulares, telegramas), AHI, lata 1628, maço 34999. 59 Ministro das Relações Exteriores ao ministro da Aeronáutica, despacho, Rio de Janeiro, 24 fev. 1943. 60 Department of External Affairs a Canadian legation, telegrama, Ottawa, 28 out. 1943; Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Ottawa, 23 nov. 1942, AHI, lata1198, maço 25937. 61 Moniz de Aragão a Oswaldo Aranha, ofício, Londres, 19 set. 1940, AHI, lata 732, maço 10463. 62 Idem, ofício, Londres, 7 jan. 1943, AHI, armário, maço 45496. Rodrigues Alves à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, telegrama, Buenos Aires, 1 jan. 1943, AHI, armário, maço 45496.

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26 de janeiro de 1943 descreveu um quadro sombrio para as relações econômicas entre a Grã-Bretanha e a Argentina. Os acionistas britânicos das estradas de ferro estariam sendo lesados como resultado de uma taxa cambial desfavorável criada pelas autoridades para as remessas de juros, uma reclamação que vinha de anos anteriores. Insinuavam que essa política tinha por objetivo preparar a nacionalização dessas estradas em condições favoráveis. O jornal também aludia ao comércio de carnes, sendo ainda a Argentina o principal fornecedor aos ingleses, mas sem perspectiva de encontrar outros consumidores externos. A balança de comércio bilateral era muito favorável aos argentinos que, nos nove primeiros meses de 1942, venderam 440 milhões de pesos e compraram apenas 184 milhões aos ingleses. Esses dados, concluía o periódico londrino, estavam a exigir uma postura mais firme por parte das autoridades britânicas em defesa dos interesses nacionais63. As necessidades se sobrepunham todavia à política. Em meados de setembro de 1943, ao assinar dois acordos pelos quais a Grã-Bretanha adquiriria os excedentes argentinos de carne e de ovos, o Foreign Office frisou que não deveriam ser tomados como gesto de simpatia pela política internacional do país platino e ainda reclamou nessa ocasião pelo tratamento que os interesses britânicos aí recebiam64. Um ano mais tarde, certa imprensa britânica alardeava a sintonia entre a classe rica argentina e o nazismo, denunciando que se preparava no país, via Espanha e Áustria ou diretamente, um asilo a ser concedido a importantes lideranças nazistas alemãs para depois da derrota65. Se os argentinos encontravam dificuldades nas suas relações com a Inglaterra em razão de sua neutralidade na guerra, maiores obstáculos haveriam de se prever nas relações com os Estados Unidos. O New York Times de 1º de abril de 1942, logo após a Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, noticiou o melancólico regresso a Buenos Aires de mãos vazias de uma missão aos Estados Unidos, cujo Ibidem, ofício, Londres, 26 jan. 1943, AHI, lata 2090, maço 37712. La Prensa, 27 set. 1943; La Nación, 28 set. 1943, AHI, armário, maço 45496. 65 Moniz de Aragão a Pedro Leão Veloso, ofício, Londres, 20 set. 1944, AHI, armário, maço 45496. 63 64

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fim era adquirir armas para a defesa nacional. A embaixada do Brasil em Washington interpretou a recusa de venda de armas à Argentina a preferências por países que ou estavam ameaçadosou haviam se engajado no esforço de defesa continental66. Levantou-se a hipótese segundo a qual os dirigentes argentinos não consideravam a neutralidade um ato hostil aos Estados Unidos, mas uma decisão da qual se esperava o incremento dos negócios com aGrã-Bretanha, que necessitava aumentar suas exportações procedentes do país platino e, portanto, haveria de compensá-lo economicamente. A documentação diplomática não respalda com clareza esta hipótese, mas evidencia, isto sim, o quanto tal neutralidade desagradava ao Departamento de Estado norteamericano. A América Latina passou a adquirir grande destaque na opinião pública e nas esferas políticas dos norte-americanos em meados de 1942, quando as vitórias de Rommel na África do Norte despertaram o temor de um ataque aos Estados Unidos através da penetração na costa atlântica sul-americana67. Nesse contexto, a neutralidade argentina repugnava ao sentimento nacional americano. Em janeiro de 1943, a embaixada brasileira em Washington confirmou a suposição de que a declaração britânica de condenação da política de neutralidade argentina foi na verdade inspiração americana. O objetivo dessa condenação seria de apressar a ruptura do Chile com os países do Eixo, que era então objeto de cogitação, de tal sorte que a Argentina permanecesse isolada dos países do continente68. Em abril de 1943, após a esperada ruptura chilena com o Eixo, lamentava o subsecretário Summer Welles o isolamento argentino no concerto pan-americano e tinha na atitude portenha não apenas um obstáculo, mas uma oposição, com todos os ressentimentos de uma derrota diplomática de Washington, segundo relatou o chefe da missão brasileira em Washington69. A mudança de governo por um golpe de Estado militar na Argentina em 1943, sem Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Washington, 2 abr. 1942, AHI, lata 1626, maço 34993. 67 Idem, ofício, Washington, 30 jul. 1942, AHI, lata 1626, maço 34993. 68 Ibidem, ofício, Washington, 2 jan. 1943, AHI, lata 1626, maço 34993. 69 Ibidem, ofício, Washington, 20 abr. 1943, AHI, lata 1626, maço 34993 66

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que houvesse mudança nas relações com o Eixo e na política de cooperação continental, deixou o governo dos Estados Unidos ainda mais revoltado, visto que parecia a política argentina situar-se acima de uma eventual mudança de governo. Em setembro desse ano, uma troca de notas entre o ministro argentino das Relações Exteriores, Segundo Storni, e o secretário de Estado, Cordell Hull, expressou com muita acidez essa revolta e a reação argentina. O incidente repercutiu nas capitais latino-americanas, geralmente de modo desfavorável à imagem do país platino. Oswaldo Aranha assegurou, contudo, por ocasião desse agravamento das relações bilaterais, que a aliança do Brasil com os Estados Unidos, que seria levada com lealdade até o fim, não significava acompanhar a potência hemisférica em sua hostilidade para com a Argentina, com a qual o Brasil prosseguiria mantendo relações cooperativas e amigáveis. Ofereceu seus bons ofícios com o objetivo de buscar um entendimento70. Ao lado de Vargas e de seu chanceler Oswaldo Aranha, outras lideranças americanas também não apoiavam a política de força e as ameaçasdo Departamento de Estado contra a Argentina. Ainstabilidade do governo militar argentino desde 1943 contribuía ora para despertar esperanças de melhora, ora para exacerbar ainda mais os ânimos nos Estados Unidos. A ascensão de Juan Domingo Perón era mal vista. Uma corrente de opinião, que expressava talvez as vistas de Cordell Hull, reclamava por uma forte pressão política e econômica dos Estados Unidos e de seus aliados para demover a Argentina de sua atitude de isolamento no continente. A corrente discordante era encabeçada por Summer Welles que não perdia oportunidade de condenar em artigos de imprensa a irredutibilidade do Departamento de Estado diante da Argentina e a inabilidade em lidar com os assuntos latino-americanos. Em livro então publicado, The time for decision, o ex-subsecretário revela-se profundo conhecedor da realidade latino-americana e analisa com objetividade as causas do ressentimento contra os Estados Unidos. Tempos melhores nas relações interamericanas dependeriam, segundo Cf. telegramas e ofícios de Washington e das capitais sul-americanas à chancelaria brasileira de setembro de 1943, AHI, lata 1626, maço 34993.

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Welles, da compreensão recíproca e da disposição de, por meio delas, compartilhar benefícios71. O Ministério das Relações Exteriores argentino respondeu com firmeza aos ataques do Departamento de Estado, divulgando nos Estados Unidos e na América Latina uma outra versão de sua política exterior. Na visão da inteligência política argentina, a neutralidade correspondia a um ato de soberania alicerçado nos interesses nacionais que em nada obstava ao relacionamento harmonioso do país com a comunidade pan-americana. A imprensa norte-americana, após a instalação do governo Farell na Argentina, já não lhe era tão hostil quanto esperava a corrente de política animada por Cordell Hull no Departamento de Estado. Nem por isso extinguia-se a animosidade entre os dois países72. As relações dos Estados Unidos com os países latinos dependeram, no contexto da Segunda Guerra, do grau de adesão desses àpolítica de guerra e de envolvimento no conflito. Assim, foram muito densas com o Brasil, desde que Vargas lançou-se francamente à cooperação com os aliados, e com o México, um dos primeiros a declarar guerra ao Eixo, havendo os presidentes Roosevelt e Camacho se encontrado a 20 de abril de 1943 para discutir a cooperação conjunta, a exemplo do que sucedera com Vargas, do Brasil73. Em outros países essa colaboração era menos perceptível, quando não irrelevante, como na Colômbia, onde o embaixador americano Spruille Braden mostrou-se muito ativo na promoção dos interesses norte-americanos, mas não colheu a adesão de toda opinião política a uma aproximação estreita com os Estados Unidos74.

Carlos Martins Pereira e Souza a Oswaldo Aranha, ofício, Washington, 29 jan. 1944; idem, 27 jun 1944; ibidem, 18 jul. 1944, AHI, lata 1626, maço 34993. 72 Legação do Brasil à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, ofício, Buenos Aires, 26 jul 1944; Legação do Brasil a Pedro Leão Veloso, ofício, Washington, 10 out. 1944, AHI, lata 1626, maço 34993. 73 Cf. diversos ofícios das legações brasileiras em Washington e no México, 1942-43, AHI, lata 1626, maço 34994. 74 Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Bogotá, 6 jun. 1941, AHI, lata301, maço 4415. 71

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1.2. Rumo a novo paradigma de relações internacionais da América Latina O movimento das diplomacias latino-americanas, durante a depressão dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, fornece indícios de que os governos da região traçavam objetivos a serem alcançados externamente, que traduziam novas percepções dos interesses da região. Emergiam, ao lado dos tradicionais interesses da economia agrícola e mineira, segmentos sociais novos, cujas pressões repercutiam sobre os governos em forma de necessidades sociais e ideais a perseguir. Era uma incipiente burguesia industrial desejosa de ampliar seus negócios; eram as massas urbanas à procura de trabalho e de salário; intelectuais a reclamar da exacerbada dependência nacional do exterior e militares preocupados com a vulnerabilidade de seus países. Os parâmetros da diplomacia da agroexportação não respondiam a essas novas necessidades. Haviam sido engendrados no século XIX, quando as sociedades encontravam-se em sua infância, limitadas à produção de açúcar, café, carnes, couros, minérios e outros bens primários. O paradigma liberal-conservador do século XIX estendera até os anos 30 seu entendimento das relações internacionais, concebendo como um bem a perpetuação das trocas entre essas sociedades infantes e os países industrializados e confiando aos governos, que as representavam, a incumbência de zelar pelo seu bom funcionamento. Nos anos 30, aliás antes disso em alguns países, a contestação de tal inserção foi levada ao debate público e os movimentos políticos deram respaldo às novas forças oriundas das transformações sociais. Um desconhecido diplomata brasileiro assim expressava em 1930 o ambiente mental em que aflorava essa nova visão latinoamericana das relações internacionais Tenho visto dois grandes países exercer a hegemonia comercial no continente americano. Tenho visto a marcha triunfal... do dólar e da libra esterlina e o que é mais estranho, tenho observado como uma nação, toda espírito, França, organizar seus formidáveis e misteriosos exércitos espirituais e conquistar a cultura e a alma americana, com milhares e milhares de volumes.

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Se umas nações nos arrebataram a matéria e outra o espírito, dizei-me, que nos resta na América? Muito. Que nos resta para fazer? Tudo75.

Na Argentina, em 1932, a viabilidade das mudanças era vista, como testemunha La Prensa, com boas perspectivas, em razão do abandono por parte dos Estados Unidos de sua política imperialista, marcada por intervenções prepotentes sobretudo no Caribe e na América Central e da disposição de respeitar as independências e os interesses locais76. Poderia a política de boa vizinhança preparar o terreno para relações de interesse compartilhado, sem perpetuar as estruturas hegemônicas de dominação e dependência? A mudança de paradigma das políticas exteriores toma forma de um movimento quase coincidente nos diferentes países da América Latina, entre 1930 e 1945. Apresenta características comuns, embora com intensidade nacional variada. A linguagem diplomática expressa com pouca objetividade e débil formulação conceitual a inflexão política, que se torna mais perceptível no processo de tomada de decisão dosgovernos. Em sua mensagem à Assembléia Constituinte de 1933, o chefe do governo brasileiro, Getúlio Vargas, referiu-se ao contexto internacional de acentuada introspecção que refletia “a ânsia de bastarse cada povo a si mesmo e a tendência para o isolamento”77. As políticas exteriores exibiam caráter funcional e eram acionadas para realizar necessidades internas. Fazer o mesmo, significava para o Brasil promover seus interesses comerciais, mas, sobretudo, promover a indústria nacional, o bem superior que perseguia o projeto nacional de modernização do país. A industrialização converteu-se, assim, no objetivo síntese da política exterior, porque das indústrias se esperavam o aumento da riqueza, o provimento de meios de segurança, a abertura de negócios para a burguesia nacional, a expansão do emprego para as 75 Discurso pronunciado por Auxílio Berdien, vice-cônsul do Brasil em Madri, anexo a ofício de Álvaro da Cunha a Octávio Mangabeira, Madri, 19 jun. 1930, AHI, lata 1198, maço 25929. 76 La Prensa, 7 jan. 1932, AHI, lata 300, maço 4410. 77 Brasil, MRE, Relatório, 1933, Anexo A, p. 3.

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massas urbanas e a modernização da sociedade como um todo, no entendimento da elite esclarecida. A indústria era tida como bem em si, algo a conquistar, e não como conserto de situação incômoda. Portanto, na origem do paradigma desenvolvimentista latinoamericano, o Estado não inventou nem implementou o modelo substitutivo de importações, conceito equivocadamente aplicado nos anos 50 às relações econômicas internacionais da América Latina pelos economistas na Cepal. O projeto nacional não tinha por fim a substituição de importações mas a promoção do desenvolvimento econômico, do qual a substituição constituía mera variável dependente. Os países mais populosos da região, Brasil, México e Argentina, aplicaram com maior coerência e com efeitos de maior impacto estrutural os parâmetros do paradigma desenvolvimentista de inserção internacional, que também era perceptível nos outros países. A experiência brasileira foi a mais temperada, a argentina a mais radical. Essas experiências moldaram, aos poucos, o discurso político e diplomático, que expressava crescente grau de autonomia das políticas exteriores, entendida esta autonomia como conformação das decisões externas, em primeiro lugar, à percepção de interesses próprios. Todas respondiam à conjuntura de fechamento dos mercados decorrente da crise do capitalismo e das dificuldades conjunturais do comércio liberal, fechamento que precedeu, portanto, as iniciativas de desenvolvimento latino-americanas. J. de Mendonça Lima, cônsul do Brasil postado no centro da América do Sul, observando o que se passava a seu redor, assim registrou, em 1935, os efeitos políticos e econômicos da adoção do novo paradigma A Bolívia, como um agregado social, não escapando às leis gerais de evolução, procura por todos os meios libertar-se, tanto quanto possível, da influência econômica de outras potências, e, mui particularmente, da das que a cercam, dedicando-se à grande industrialização, com o direto aproveitamento das variadas matérias-primas produzidas em seu próprio território78.

J. de Mendonça Lima a Macedo Soares, ofício, Guayaramerin, 8 maio 1935, AHI, lata 1034, maço 17838. 78

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A chancelaria brasileira, no início dos anos 30, após a revolução de Vargas, ainda ocupava-se principalmente com questões tradicionais, como a demarcação das fronteiras e pequenos incidentes, ou com conflitos de fronteira entre países vizinhos, entre Bolívia e Paraguai, Colômbia e Peru, a cuja solução oferecia bons ofícios ou mediação. A mensagem lida por Vargas perante a Assembléia Constituinte, em 1933, media as conseqüências da depressão no mundo (queda dos preços, introspecção eprotecionismo, desemprego, desequilíbrios orçamentários) e tirava lições práticas. A reação do governo veio com a nova política de comércio exterior, cujo objetivo era o de promover as exportações mediante revisão tarifária com base no tratamento universal de nação mais favorecida, com o qual se esperava animar as trocas e estabelecer a reciprocidade79. Mas a política liberal de comércio exterior não produziu resultados satisfatórios para o país. Em 1935, apesar de fortes pressões norte-americanas, a política brasileira de comércio exterior foi radicalmente transformada para atender aos interesses do comércio de exportação, do qual dependia a capacidade importadora e a aquisição de meios para promover a indústria nacional. Não se cogitava em substituir importações mas em promover o aumento da riqueza nacional, bens e rendas, pela via da industrialização. Um memorando do embaixador do Brasil nos Estados Unidos, entregue no Departamento de Estado a 14 de dezembro de 1934, expressou a nova política brasileira, marcada tanto pela vontade de conciliar quanto pela determinação de realizar com autonomia o interesse nacional. O memorando afirmava que a política liberal apregoada pelos Estados Unidos não convinha nas circunstâncias dos anos 30, tanto é que 142 acordos de compensação entre as nações européias e algumas americanas estavam em vigor. Os acordos estabeleciam um regime de trocas capaz de equilibrar balanças comerciais, mesmo de pagamentos, e de impulsionar os intercâmbios. Combinavam-se com políticas dirigistas dos Estados para relançar as atividades produtivas. “Os Estados Unidos da América ( escreveu o embaixador brasileiro ), sempre protecionistas, fizeram atarifade 1930, 79

Brasil, MRE, Relatório 1933, anexo A, p.3-6.

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abaixado dólar, a intervenção agrícola e a regulamentação industrial”. Todas essas políticas de emergência combinadas vieram, contudo, agravar a situação universal, reduzindo o volume e o valor do comércio entre os povos. Observando isso, os EstadosUnidosesforçaram-se então para restabelecer a chamada política liberal. Pretendiam contar com o Brasil, sem perceber que o Brasil era um país em formação ao passo que os Estados Unidos haviam chegado à saturação do progresso. A adoção de uma política liberal inflexível nos tratados de comércio importaria, praticamente, na suspensão do comércio com aqueles países que só compravam para vender, como a Itália, a Alemanha e muitos outros. O Brasil mantinha com esses países 57% de seu comércio global. Assim, embora a política liberal fosse condizente com a tradição brasileira e o interesse universal, concluía o embaixador, o Brasil desenvolveria uma política agressiva de vendas com normas flexíveis, sob controle e orientação técnica do Conselho Federal de Comércio Exterior, durante um período de transição, a fim de evitar que a simples adoção doutrinária viesse prejudicar os objetivos nacionais80. Em sua mensagem ao Congresso Nacional em 1935, dando prosseguimento a esta linha de pensamento desenvolvimentista com elevado grau de autonomia política, o presidente Vargas reconheceu a desigualdade do desenvolvimento industrial do continente em favor dos Estados Unidos. A formação do bloco de nações americanas correspondia por certo à linha de solidariedade continental da política exterior brasileira, porém o Brasil condicionava seu consentimento a que comportasse uma proposta de cooperação construtiva que contemplasse as aspirações de todos81. O pan-americanismo, como se observou na Conferência de Consolidação da Paz em Buenos Aires (dezembro de 1936), que inaugurou a política de boa vizinhança dos Estados Unidos, não deveria atender somente aos ideais vazios da solidariedade continental, mas converter-se em instrumento tanto de garantia da paz quanto da promoção eficaz dos interesses dos povos82. Embaixador do Brasil ao Departamento de Estado, memorando, Washington, 14 dez. 1934, AHI, lata 1019, maço 17262. 81 Brasil, MRE, Relatório, 1935, anexo A, p.3-5. 82 Brasil, MRE, Relatório, 1936, p. XIII-XIV. 80

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As boas relações com os Estados Unidos haveriam de tornar-se pragmáticas: destinavam-se a obter mercados externos, tão escassos na época, e investimentos para o setor produtivo e de serviços83. O novo paradigma ia agregando, dessa forma, componentes teóricos à sua formulação: percepção de interesses em jogo a alimentar o processo decisório, negociação de ganhos recíprocos nas relações internacionais, determinação de superar desigualdades entre as nações, visão cooperativa e não-confrontacionista. Iniciada a guerra na Europa, grandes mercados foram fechados aos produtos latino-americanos, mas outros abriram-se, com a surpresa de aproveitamento de oportunidades pelas nações que houvessem, com espírito progressista, desenvolvido suas indústrias. As resoluções adotadas na Conferência Pan-Americana do Panamá contemplavam os interesses econômicos em face do conflito europeu e vieram facilitar as transações comerciais das nações americanas. Em janeiro de 1945, a imprensa em Buenos Aires informava que no ano anterior o Brasil tornara-se o principal fornecedor ao país vizinho, vindo os Estados Unidos em segundo lugar e a Grã-Bretanha em terceiro. A ordem era exatamente inversa entre os três maiores compradores da Argentina84. O Latin American Trade Centre Inc., que havia sido criado em Nova Iorque em 1940, expediu circular às chancelarias latino-americanas, solicitando informações acerca do desenvolvimento local de indústrias que pudessem suprir o mercado norte-americano. O Departamento de Estado requisitou estudos na ocasião sobre a maneira de aumentar o comércio de importação da América Latina85. O Conselho Federal de Comércio Exterior recomendou e o presidente Vargas aprovou duas diretrizes pelas quais o Itamaraty haveria de nortear as relações econômicas com os Estados Unidos: (a) possibilitar maiores aquisições de produtos brasileiros pelos Estados Unidos, onde o Brasil deveria substituir os produtos oriundos das colônias, cujas metrópoles estavam Pimentel Brandão a MRE, telegrama, Washington, 25 abr. 1938. AHI, lata 1019, maço 17262. 84 La Prensa, 31 jan. 1945, AHI, lata 2090, maço 37712. 85 A. George Nathanson a Oswaldo Aranha, ofício, Nova Iorque, 5 jul. 1939, AHI, lata 1019, maço 17262. 83

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em guerra; (b) promover e facilitar a vinda de capitais e técnicos americanos destinados à criação de novas indústrias86. Desde 1943, tomou vulto um eixo de relacionamento desenvolvimentista entre o Chile e a Argentina. Durante a visita do chanceler Joaquín Fernández à Argentina, firmou-se um acordo revolucionário à margem do pan-americanismo de defesa e cooperação continental promovido pelas conferências continentais. Chile e Argentina preparavam uma união aduaneira, germe de futuro bloco econômico sul-americano, destinado a promover sob moderna forma cooperativa o desenvolvimento do comércio intrabloco, os investimentos produtivos e a ampliação do parque industrial. Estudos de comissões mistas deveriam propor as modalidades e as etapas desse processo de integração econômica. A imprensa registrou esses fatos com visível entusiasmo. Em janeiro de 1944, um novo convênio deu continuidade e forma ao projeto de união aduaneira, que era acompanhado com interesse pelos governos regionais. Consoante o cônsul brasileiro: ... procura-se entrosar as duas economias de modo a criar, nessa região, um bloco capaz de enfrentar os problemas que marcarão o período imediato à conclusão da guerra... Resta saber se a comunidade de interesses de um e outro país é de molde a consentir na fusão de suas energias econômicas.

Com efeito, a política econômica crescentemente nacionalista do governo Perón na Argentina não agradava aos meios de negócios chilenos. Mesmo assim, concluíram-seem Buenos Aires, em dezembro de 1946, as negociações com vistas a um amplo entendimento comercial, financeiro e alfandegário. Seus pontos culminantes foram: união alfandegária, inversão de capitais argentinos no Chile, empréstimos argentinos ao Chile, desenvolvimento da indústria mineira chilena e melhoramento dos transportes. A Argentina abria um crédito de cem milhões de pesos ao comércio para financiar o comércio bilateral, investia trezentos milhões na expansão do parque industrial chileno e emprestava Raul Bopp a José Roberto de Macedo Soares, ofício, Rio de Janeiro, 3 ago. 1940, AHI, lata 1019, maço 17262.

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outros trezentos milhões para obras públicas. O acordo foi bem recebido pela opinião pública de ambos os países, mesmo porque representava uma forma inteligente de aproveitamento das reservas que a Argentina havia acumulado durante a guerra87. O audacioso projeto de cooperação econômica entre Argentina esboçado ao término da Segunda Guerra Mundial, tropeçou Chile, e em dificuldades que o tornaram inviável, por ocasião dessa tentativa, como também em sua versão de pacto ABC, durante a primeira metade dos anos 50. Ele é, contudo, relevantepara a construção do paradigma desenvolvimentista das políticas exteriores latino-americanas. Veio reforçar, com efeito, o tempero das motivações econômicas nas relações interamericanas, modificando a visão do pan-americanismo, de estratégico e político que havia sido no século XIX e ao tempo do Barão do Rio Branco, no início do século XX, em econômico e cooperativo, caráter que se lhe pretendia imprimir desde os anos da depressão capitalista e da guerra. Um novo paradigma de relações internacionais estava, portanto, em construção, entre 1930 e 1945, na América Latina, quando o desenvolvimento das nações convertia-se em vetor das decisões de governo em matéria de políticas exteriores. Três elementos foram aos poucos definindo o perfil que viria a adquirir: a consciência de estar-se em uma fase de transição, provocada internamente pela emergência de novas necessidades sociais e, externamente, pela crise do capitalismo e pelo contexto de guerra; o caráter funcional que se confere às diplomacias da região para obtenção de insumos de desenvolvimento mediante a ação externa e a identificação de condições de êxito do movimento diplomático. O primeiro elemento, a fase de transição, carrega em sua gênese uma crítica ao paradigma liberal-conservador que vinha do século XIX. Em razão da abertura dos mercados latinos, a função primário Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Santiago, 30 ago. e 9 nov. 1943; Carlos da Silveira Martins Ramos a Oswaldo Aranha, oficio, Valparaíso, 29 jan. 1944; Legação do Brasil a Samuel de Souza Leão Gracie, ofício, Santiago, 4 out. 1946; João Baptista Luzardo a Samuel de Souza Leão Gracie, ofício, Buenos Aires, 9 dez. 1946, AHI, lata 2090, maço 37712. 87

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exportadora e industrial-importadora da economia regional engendrara a dependência e bloqueara a modernização. Com o tempo, a evolução social fez nascer novos interesses derivados de necessidades de uma sociedade que se tornara mais complexa. Os estados, propriedade dos grupos agroexportadores hegemônicos, realizavam externamente interesses que não contemplavam os segmentos emergentes. Esta percepção de novos interesses a serem veiculados pela política exterior constitui a essência da fase de transição. O segundo elemento que se agrega ao perfil do novo paradigma de relações internacionais da América Latina não é, propriamente, a determinação de realizar novos interesses por meio da ação externa, mas, antes, o caráter funcional e supletivo que adquire a política exterior, da qual se requer que proveja fatores ou insumos de desenvolvimento interno. Está claro que o conceito de desenvolvimento passa então a abranger os interesses das massas urbanas que demandam emprego e renda; da burguesia nacional que demanda espaço para seus negócios; das forças armadas que requerem meios com que assegurar minimamente sua responsabilidade em matéria de segurança e defesa e dos intelectuais e críticos do atraso que postulam a superação da dependência externa. O objetivo síntese consiste na modernização, que então se confundia em boa medida com a industrialização. Àpolítica exterior cabia prover o processo de meios que dependiam do exterior: mercados de exportação com que elevar a capacidade de importação de máquinas e equipamentos, recursos para deslanchar grandes empreendimentos e tecnologias para viabilizá-los rapidamente. Não se tratava de substituir importações, mas de promover o desenvolvimento pela via da indústria. A substituição de importações não entrava como componente do paradigma ou como fim da política, mas como variável dependente do processo de desenvolvimento. O terceiro componente do paradigma desenvolvimentista em gestação era a avaliação que se fazia entre 1930-1945 das condições de eficiência do movimento da diplomacia. Para ser benéfica ao desenvolvimento, requeria-se da política exterior: (a) autonomia decisória, para responder aos interesses nacionais; (b) caráter cooperativo enão conflituoso com as grandes potências, sobretudo para promover 60

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o impulso inicial do moderno sistema produtivo a implantar; (c) uma política de comércio exterior nem liberal nem protecionista, porém flexível e pragmática, a exemplo das nações avançadas que assim promoviam o volume e a diversificação dos negócios; (d) a associação da segurança, da formação de parcerias estratégicas e das grandes questões da política internacional com resultados econômicos concretos da ação diplomática; (e) a concomitância entre as negociações com as grandes potências e as iniciativas bilaterais e coletivas com os países vizinhos. Esses padrões de conduta, embora de forma diversificada e a ritmos variados, foram se incorporando às políticas exteriores dos países da América Latina entre 1930 e 1945, transformando sua visão de mundo. Os traços coincidentes permitem ao analista concluir que as idéias-forças de novo paradigma de política exterior que tomaria o desenvolvimento como vetor pelas décadas a seguir foram inventadas.

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2. Relações regionais e mundiais e da América Latina durante a depressão capitalista e a Segunda Guerra Mundial 2.1. Políticas exteriores e relações regionais Entre 1930 e 1945, as políticas exteriores e a agenda diplomática das chancelarias latino-americanas reagiam diante da crise do capitalismo e da formação de blocos antagônicos que dividiam o mundo, como também diante de pressões oriundas de transformações sociais e com essareação, como ficou evidenciado no capítulo anterior, desenhava-se um esboço de novo paradigma de relações internacionais. Contudo, outros assuntos mais imediatos e corriqueiros também faziam parte das ocupações diplomáticas dos governos. Eram questões de fronteira, que por vezes chegavam ao conflito aberto, questões de prestígio político, comércio bilateral, pan-americanismo etc. As chancelarias passavam por reformas em sua organização para atender melhor às exigências que lhes eram feitas. Duas reformas, na década de 1930, aparelharam a brasileira com o intuito de torná-la mais eficiente na gestão dos interesses econômicos que haveria de proteger. A chilena criou um moderno departamento de comércio exterior, de que resultou formulação mais adequada da política comercial. Seus técnicos preparavam os tratados de comércio e saíam a conquistar mercados, como o de Cuba, por meio de um tratado de 1930, que recebia o salitre e os feijões chilenos. Pensavam fazer de Cuba um entreposto para distribuição de produtos chilenos no Caribe, complementando o comércio brasileiro de charque e café que para lá seguiam pela linha direta de navegação recentemente estabelecida1. A chancelaria brasileira preparava seus técnicos para os tempos de uma diplomacia econômica e pragmática. Seus integrantes eram instruídos para realizar quatro objetivos permanentes, assim definidos pelo ministro brasileiro de Relações Exteriores, Oswaldo Aranha: “observar, 1

F. Clark a Octávio Mangabeira, ofício, Havana, 7 jul. 1930, AHI, lata 1034, maço 17837.

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representar, negociar e zelar pelos interesses brasileiros”. Aprodução de documentos que hoje estão disponíveis no Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI) demonstra que esses objetivos converteram-se, efetivamente, em rotinas2. Os bons ofícios oferecidos em 1930 pelo chanceler brasileiro, Afrânio de Melo Franco, levaram ao restabelecimento das relações diplomáticas entre o Peru e o Uruguai, rompidas em razão de um incidente3. O prestígio do chanceler brasileiro como conciliador estava em alta. Sua atuação foi também importante para o restabelecimento das relações diplomáticas entre a Venezuela e o México. Antes mesmo de ser acreditado por La Paz, o chefe da missão brasileira junto à Bolívia foi procurado em 1931 pelo ministro das Relações Exteriores do país, que lhe confessou preferir o Brasil aos Estados Unidos como interlocutor no conflito do Chaco com o Paraguai, por uma questão de confiança. Solicitou nessa ocasião que o Brasil influísse, caso e na forma com que fosse solicitado, junto ao governo americano nesse sentido4. As relações entre o Uruguai e a Argentina foram abaladas após o golpe do general José F. Uriburu que derrubou em 1930 o presidente Hipólito Yrigoyen, pelo fato de o Uruguai ter concedido asilo político ao ex-chanceler H. Oyhanarte e se negado a atender ao pedido de extradição. Uma guerra de imprensa e outra comercial opunham Montevidéu e Buenos Aires em 19315. As desavenças que perturbavam as relações entre Argentina e Uruguai, denegrindo o discurso de uma decantada fraternidade platina, eram profundas e por tais razões refluíam amiúde: a jurisdição das águas do estuário, o caso da ilha de Martín Garcia, os direitos aduaneiros, a concessão de asilo político, a empáfia portenha. Mas a admiração dos uruguaios pela 2 Oswaldo Aranha a Carlos de Lima Cavalcanti, instruções, Rio de Janeiro, 23 jan. 1939, AHI, lata 1198, maço 25941. 3 Rangel de Castro a Afrânio de Melo Franco, ofício, Lima, 28 fev. 1931, AHI, lata 301, maço 4445. 4 Gracie à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, telegrama, La Paz, 15 st. 1931, AHI, lata 301, maço 4442. 5 Legação do Brasil a Afrânio de Melo Franco, ofício, 11 jan. 1931, AHI lata 301, maço 4435.

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esplendorosa metrópole do outro lado das águas do rio da Prata não se extinguia6. A diplomacia brasileira não ignorava, porém desprezava as manifestações irresponsáveis da imprensa e de políticos de pequenos países do Cone Sul, Uruguai, Paraguai e Bolívia, freqüentemente propensos a profetizar que episódios quaisquer acenderiam as rivalidades entre Argentina e Brasil, mesmo após a bem sucedida visita do presidente argentino Augustín P. Justo ao Rio de Janeiro em 1933. A visita foi uma demonstração de quão artificiais eram essas prevenções. Para elas (escreveu Lucillo Bueno, chefe da missão em Montevidéu, referindo-se a essas pequenas potências ) “o ideal seria a desavença entre brasileiros e argentinos, de modo a que viessem a lucrar na exploração desses atritos fazendo inclinar um ou outro para a balança de seus interesses”. Assim, tanto Paraguai quanto Bolívia, durante a Guerra do Chaco, iniciada em 1932, viveram na crença de intervenção a favor da própria tese nacional, por modo a exportar o conflito para as duas grandes potências do sul, quando elas, ao contrário, obraram sempre e até o fim no sentido de alcançar a paz definitiva7. A contracurso dessa diplomacia da intriga a fomentar pelas pequenas potências do Cone Sul, o entendimento entre Brasil e Argentina na primeira metade da década de 1930 e a determinação desses dois países de mediar, juntamente com os vizinhos Chile e Peru, a longa e extenuante disputa entre Paraguai e Bolívia pelo território do Chaco criaram ambiente favorável para iniciativas de estreitamento político, superação de choques de interesses e incremento de relações comerciais entre os países da América do Sul. O mesmo pode-se dizer da mediação exercida pelo Brasil entre Colômbia e Peru no conflito pela posse de Leticia, território fronteiriço por ambos disputado. O governo de Vargas usava com habilidade sua política pan-americana para expandir uma imagem de país conciliador e confiável, enquanto 6 Lucillo Bueno a Afrânio de Melo Franco, ofício, Montevidéu, 11 jan. 1931, AHI, lata 301, maço 4435. 7 Idem, 8 nov. 1933, AHI, lata 301, maço 4446. Moniz Bandeira, L. A. AGuerrado Chaco. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v.41. n.1, p.161-200, 1998.

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negociava duro com os Estados Unidos e lhes opunha uma inclinação de jogo duplo com a Alemanha nazista. Toda estratégia externa tinha por fim tirar vantagens das circunstâncias de então para o desenvolvimento nacional. Por ocasião da referida visita do presidente Justo ao Brasil, em 1933, firmou-se no Rio de Janeiro, em demonstração da liderança e do ativismo pan-americanista tanto de Vargas quanto do renomado chanceler argentino Saavedra Lamas, o Tratado Antibélico de não-Agressão e de Conciliação, ao qual aderiram logo Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai e Uruguai. Inúmeros tratados de comércio foram firmados entre países da América Latina com o intuito de abrir mercados aos países vizinhos, em oportuna política de contrapeso ao fechamento econômico observado no mundo em conseqüência da crise do capitalismo8. O periódico portenho La Razón deu em 1933 grande destaque à decidida atuação do chanceler brasileiro Afrânio de Melo Franco e de seu colega argentino, Saavedra Lamas, para a aproximação entre os povos do continente, afirmando nunca haver o Brasil olhado para a Argentina com tamanho espírito de entendimento político como então9. Obviamente, em diplomacia, oferecer algo sem troca não consta entre as regras da boa conduta. Contudo, tais disposições expressas pelas altas autoridades de ambos os países, nessa como em tantas outras ocasiões, por vezes longos períodos, despem de fundamento histórico a tese da tradicional e constante rivalidade entre o Brasil e a Argentina, que alguns autores insistem em repetir. Precisamente nos anos 30, durante a política norte-americana de boa vizinhança, cujo objetivo era o consenso regional para alinhamento estratégico, e durante a Segunda Guerra, o governo brasileiro soube com arte política separar suas relações especiais com os Estados Unidos da determinação desse país de castigar a Argentina pela sua neutralidade10. 8 La Razón, Buenos Aires, 25 jun. 1932; La Prensa, 9 dez. 1935 e 13 maio 1936, AHI, lata 732, maço 10463. El Dia, Quito, 14 set. 1933; El Comercio, Quito, 13 set. 1933, AHI, lata 301, maço 4444. El Mercurio, Santiago, 16 nov. 1934; La Opinión, Santiago 9 jan. 1936, AHI, lata 301, maço 4432. 9 La Razón, Buenos Aires, 21 jun. 1933, AHI, lata301, maço 4446. 10 Moreno, Isidoro Ruiz. La neutralidad argentina en la Segunda Guerra. Buenos Aires: Emecé, 1997.

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A Argentina de então havia imposto sua preeminência sobre países vizinhos, particularmente o Uruguai e o Paraguai, monopolizando neste último o comércio, os transportes e a influência política. Essa expansão da presença argentina foi facilitada pela retirada proposital do Brasil dos países da bacia do Prata, desde os anos 1870, ao termo da Guerra do Paraguai. Os relatórios que chegavam de Montevidéu e particularmente de Assunção à chancelaria brasileira alertavam para o descuido do Itamaraty com esses países e para o equívoco de pensar que ainda estendia por aí seu prestígio. Somente uma ação positiva com a finalidade de restabelecer o equilíbrio das presenças e dos pesos políticos e econômicos afastaria essa “ilusão brasileira no Paraguai”, segundo escrevia Lucillo Bueno11. Com o intuito de aperfeiçoar sua imagem e abrir caminho para a cooperação com os países do hemisfério, efetivamente, o Itamaraty havia se traçado uma estratégia que manteve invariável durante o longo governo de Vargas (1930-1945). O objetivo era o de associar, nas relações com o continente, o pan-americanismo e a estreita cooperação com os Estados Unidos. Resposta e versão brasileiras à política de boa vizinhança, que assim haveria de envolver o continente como um todo e não apenas o eixo de um determinado país aos Estados Unidos: “Política de solidariedade continental e fraternidade americana ( pregava o Itamaraty ), ela está baseada numa colaboração afetiva com todos os povos da América e entendimento mais íntimo com os Estados Unidos, aos quais estamos ligados por velha amizade...”12. Em 1935, Vargas viajou ao Prata, visitando Montevidéu e Buenos Aires. Retribuiu, desse modo, a visita de Justo ao Rio de Janeiro em 1933. Tamanha importância dava à imagem de país pacifista e conciliador que queria propalar do Brasil, que tomou como pretexto para esta ida a Buenos Aires a inauguração da Conferência de Paz sobre a Guerra do Chaco. Precedeu, assim, o presidente Roosevelt, que no ano seguinte viajaria a Buenos Aires para inaugurar a Conferência Lucillo Bueno a Afrânio de Melo Franco, ofício, Assunção, 3 jul. 1931; Antônio de São Clemente a Afrânio de Melo Franco, ofício, Assunção, 1934, AHI, lata 302, maço 4447. 12 Brasil, MRE, Relatório, 1935, p. XIII. 11

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Interamericana de Consolidação da Paz. Os anos de 1935 e 1936 fizeram de Buenos Aires o centro das atenções do pan-americanismo, em razão dessas duas conferências aí sediadas13. Durante as negociações de paz acerca da Guerra do Chaco que de resultou o Protocolo de Paz, os especialistas do Itamaraty aconselhavam aos negociadores brasileiros apoiar a reivindicação boliviana de um porto sobre o rio Paraguai, possivelmente na cidade de Cáceres, situada na cabeceira da região do Pantanal mato-grossense. Dois resultados eram previstos desse apoio ao interesse boliviano: futuros e vantajosos acordos entre Brasil e Bolívia para fornecimento de petróleo e afastamento da Bolívia da esfera de influência argentina e chilena, atraindo-aparao lado brasileiro14. Aimprensa paraguaia nesse mesmo ano reconhecia efeitos benéficos da diretriz que, especialmente com relação ao Paraguai, vinha o Itamaraty imprimindo à política brasileira de cordialidade sul-americana15. Apolítica de aproximação entre o Brasil e o Paraguai, após décadas de afastamento, teve no então deputado Neves da Fontoura, líder da bancada do Rio Grande do Sul na Câmara dos Deputados, um defensor convicto. Para alegria dos diplomatas e políticos paraguaios, propôs Fontoura, futuro chanceler, que se fizesse em cerimônia solene a devolução dos troféus nacionais seqüestrados durante a guerra, ao mesmo tempo em que se perdoaria oficialmente a dívida pública da Guerra do Paraguai, em um gesto de generosidade e esquecimento do passado16. Aopinião e o governo do Paraguai viam com interesse e julgavam adequada a nova diretriz brasileira. O presidente paraguaio, Ausebio Ayala, expressou seu desejo ampliar os contatos educação, já em missões,concretos de se importantes na área de com o Brasil militar e para tanto e técnica, trocavam193617. Implementava-se, pois, a estratégia continental de Vargas e dava-se, ao mesmo tempo, ouvidos ao conselho de Lucillo Bueno. Brasil, MRE, Relatório, 1936, v. 1, p. 3-38. N. Accioly, memorando, Rio de Janeiro 1º ago. 1935, AHI, lata 1198, maço 25943. 15 El Diário, Assunção, 13 out. 1935, AHI, lata 1198, maço 25943. 16 Ministro do Paraguai à chancelaria brasileira, telegrama, 18 nov. 1935, AHI, lata 1198, maço 25943. 17 Cícero Peregrino, notas de viagem, 9 mar. 1936; Legação do Paraguai ao MRE, memorando, Rio de Janeiro 10 set. 1936, AHI, lata 1198, maço 25943. 13 14

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O estreitamento com o Paraguai empreendido pelos chanceleres Macedo Soares e Riart, ao tempo do presidente Ayala, não sofreu modificação com o golpe do coronel Rafael Franco que o derrubou em 1936. Ao contrário, o programa de cooperação permaneceu em andamento, com o intuito de estabelecer a união ferroviária entre ambos os países e prosseguir no treinamento militar aos oficiais do Paraguai. Mas o novo governo do Paraguai também se dispunha a intensificar suas relações com a Argentina, negociando um tratado de comércio e, por outro lado, Macedo Soares, o artífice dessa aproximação, não era mais ministro das Relações Exteriores. O chefe da missão em Assunção, nessas circunstâncias, solicitou esclarecimentos sobre a política brasileira no Paraguai18. As instruções, em resposta, reforçaram as disposições do Brasil de manter “uma política do mais franco e íntimo estreitamento de relações de toda espécie”, incluindo o prosseguimento da ligação ferroviária e a criação de comissão mista bilateral que estudaria as modalidades de cooperação nas áreas de comércio, petróleo, instrução militar, educação, cultura e outras19. Duas correntes de opinião preocupavam vivamente as chancelarias dos dois países, ambas à contracorrente dos esforços bilaterais de aproximação. Por um lado, o lopismo primitivo, aquele que fez as glórias pessoais do escritor Juan O’Leary e que esteve na origem da aproximação entre o Paraguai e a Argentina em detrimento das relações entre o Brasil e o Paraguai. Esse lopismo arcaico, porém, já não seria mais um obstáculo de natureza a comprometer a recente aproximação, visto que havia evoluído para um sentimento nacional, símbolo apenas da soberania e da independência do Paraguai. De outro lado, as idéias do historiador integralista brasileiro Gustavo Barroso, um geopolítico da discórdia, diametralmente opostas ao pensamento e à prática diplomáticos do chanceler Macedo Soares e de seu ministro em Assunção, Lafayette de Carvalho e Silva, os artífices, com Lucillo Bueno, Carvalho e Silva a Mário de Pimentel Brandão, ofício, Assunção, 5 fev. 1937, AHI, lata 1198, maço 25943. 19 Macedo Soares a Lafayette de Carvalho e Silva, despacho, Rio de Janeiro, 19 fev. 1937, AHI, lata 1198, maço 25943. 18 Lafayette de

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da nova relação de cooperação bilateral20. Essas correntes de pensamento, em razão de seu impacto sobre a imprensa, haveriam, contudo, de influir sobre certas interpretações das relações bilaterais, distorcendo fatos e corrompendo a realidade a seu favor. Amadureciam, apesar disso, as condições para uma nova fase de cooperação entre o Brasil e o Paraguai durante o governo de Vargas, que visitou Assunção em 1941. A Argentina era o centro das atenções brasileiras na América do Sul. Um relatório da embaixada em Buenos Aires afirmava em 1937 que a República Argentina atingia “a fase culminante de sua prosperidade, espelhada... nos balanços bancários, nas iniciativas do poder Executivo, no bem-estar do comércio interno e na atividade sem precedente do comércio exterior”. Após a Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, realizada em Buenos Aires em dezembro de 1936, ocasião em que o presidente Roosevelt visitou o país, as relações políticas e o comércio com os Estados Unidos melhoravam e as críticas da imprensa àquele país, de La Prensa em especial, tornaram-se mais discretas21. A autoconfiança dos argentinos impressionava a legação brasileira em Buenos Aires. Segundo observavam os diplomatas brasileiros, os dirigentes platinos fundavam sua autoconfiança na capacidade de atração de indústrias estrangeiras para satisfazer o poder aquisitivo interno, na produtividade agrícola, nas iniciativas de caráter social, educativo e artístico, na solução fácil e imediata de todos os problemas financeiros, no aumento das exportações, no excelente serviço de comunicação com o exterior e na exaltação do sentimento nacional. O comércio bilateral era tradicionalmente deficitário para o Brasil, o que significava perda de oportunidade de negócios com um vizinho de tão elevado valor, relatava a legação brasileira22. O Brasil exportava 20 Legação do

Brasil a Mário de Pimentel Brandão, ofício. Assunção 27 mar. 1937; Lafayette de Carvalho e Silva a Mário de Pimentel Brandão, ofício Assunção, 29 mar. 1937, AHI, lata 1198, maço 25943. 21 José Bonifácio de Andrada e Silva a Mário de Pimentel Brandão, relatório, Buenos Aires, 31 maio 1937, AHI, lata 590, maço 9337. 22 Idem, relatório, Buenos Aires, 31 jul. 1937, AHI, lata 590, maço 9337.

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para a Argentina, pela ordem decrescente de valores: erva mate, café, madeiras, tabaco, laranjas, bananas, arroz e outros. Importava, pela mesma ordem de valores, trigo (90% das importações), farinha de trigo, linho e outros23. Após a euforia de 1937, o ano seguinte não apresentou o mesmo desempenho e o governo argentino alvoroçou-se com a idéia de aplicar rigorosos controles para manter favorável seu saldo comercial com o exterior. Procurava, como fazia o Brasil, novos parceiros, elevando seu intercâmbio com a Alemanha ao nível do brasileiro24. À medida que melhoravam as relações entre Argentina e Estados Unidos, a chancelaria brasileira ostentava ainda maior empenho em construir o pan-americanismo a partir do perfeito entendimento com os Estados Unidos e da responsabilidade coletiva pela preservação da paz, na suposição de que daquele eixo proviriam os melhores insumos ao desenvolvimento econômico e à segurança do continente25. O Conselho Federal de Comércio Exterior assessorava a chancelaria na condução da política de comércio exterior, instrumento essencial de que dependia o esforço interno de industrialização, já que das exportações decorria a possibilidade de fazer chegar máquinas e equipamentos26. O paradigma desenvolvimentista buscava a auto-suficiência nacional. Quando aplicado pelos Estados sul-americanos a suas macropolíticas criava dificuldades ao comércio regional, que eram sentidas já nos meados dos anos 30. A Bolívia aumentava seu intercâmbio com o Peru e o Chile, inquietando a chancelaria brasileira que sobre aquele país vizinho cogitava reforçar apresença, naexpectativa de fazer importantes acordos futuros para importação de petróleo27. João Alberto Lins de Barros a Pimentel Brandão, relatórios, 30 nov. 1937 e 8 jan. 1938, AHI, lata 590, maço 9337. 24 Legação do Brasil ao MRE, relatórios de 9 maio 1938, 3 de nov. e 28 dez. 1939, AHI, lata 590, maço 9337. 25 TheWashington Post, 25 set 1938, AHI, lata 1198, maço 25938. 26 Relatório, 1936, p. XVIII. 27 J. de Mendonça Lima a Macedo Soares, relatórios de 8 maio e 9 abr. 1935, Guayaramerin, AHI, lata 301, maço 4442. 23

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As instruções do chanceler Macedo Soares ao ministro brasileiro enviado para La Paz, em 1936, Cyro de Freitas-Valle, davam continuidade ao esforço de aproximação estratégica com os pequenos países do Cone Sul. Com o intuito de “garantir a influência econômica e política que estamos no direito de pretender nesse país”, três objetivos foram definidos para a ação do novo representante brasileiro: a ligação ferroviária, o transporte do petróleo e a tranqüilidade das fronteiras. Para a ligação ferroviária entre os dois países, o Brasil havia posto à disposição da Bolívia um milhão de libras, em virtude do tratado de 25 de dezembro de 1928, mas mesmo assim não confiava que o governo do país vizinho tivesse condições de levar a termo o trecho interno e por isso sugeria que o empreendimento fosse confiado a uma empresa dotada de recursos próprios e que o empréstimo fosse destinado à construção apesar dado oposição para petróleodaconverteuStandard do se em uma prioridade entre os dois oleoduto países. o Brasil, O transporte Oil Company, possuidora de enormes concessões petrolíferas na Bolívia28. Solenes tratados bilaterais foram concluídos em 1938, estabelecendo soluções adequadas para as duas questões que eram de interesse de ambos os países, a ligação ferroviária e o transporte do petróleo. Esses tratados foram utilizados em larga escala pela diplomacia brasileira para patentear sua determinação e sua capacidade de manter a cooperação de benefícios compartidos com os países da América do Sul29. A implantação de um regime autoritário conhecido por Estado Novo, em fins de 1937, criou dificuldades para o Brasil em alguns países da região, levando-o, nos anos seguintes, a exibir com maior determinação sua política de boa vizinhança, segundo os firmes princípios aprovados na Conferência de Consolidação da Paz em Buenos Aires, em dezembro de 1936. Feito chanceler, Oswaldo Aranha elevou essa “política de boa vizinhança” à primeira linha na ordem de suas preocupações externas30. Assim mesmo, as amistosas relações que o 28 José Carlos de Macedo Soares a Cyro de Freitas-Valle, instruções, Rio de Janeiro, AHI, lata 301, maço 4442. 29 Mário de Pimentel Brandão a Alberto Ostria Gutierrez, despacho, Rio de Janeiro, 25 fev. 1938, AHI, lata 301, maço 4442. 30 Brasil, MRE, Relatório, 1938, v. 1, p. 5.

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Brasil mantinha com o governo chileno foram afetadas e o fato contribuiu, além da semelhança dos regimes, para maior aproximação entreChileeArgentina31. O intercâmbio comercial entre Brasil e Peru era minguado em razão de serem os dois produtos peruanos de exportação, algodão e açúcar, concorrentes com idênticos produtos de outros países, inclusive o Brasil32. Já o comércio entre o Chile e a Colômbia parecia animado pelo grau de complementaridade entre as duas economias. O Chile procurava colocar no mercado colombiano salitre, vinhos e produtos manufaturadose adquirir café, cacau e fumo33. A questão de Leticia, um litígio de fronteira entre Peru e Colômbia, depois de resolvido pelo protocolo do Rio de Janeiro de 1934, ainda mantinha um ambiente adverso para as boas relações entre ambos os países, em parte devido ao fato de haverem os partidos políticos convertido o episódio em bandeira eleitoral34. Do lado da Venezuela, a Colômbia procurava, em 1936, obter resultados positivos, fixando tecnicamente a fronteira, firmando novo acordo comercial e promovendo a visita presidencial, mas a imprensa dava conta de tensões na fronteira35. Essas tensões abalavam a relação com a Santa Sé, desde que o presidente Alfonso López do Partido Liberal decidiu reformar a Constituição e pôr termo aos privilégios da Igreja36. Em 1937, o Brasil resolveu abandonar apolítica de valorização do café, à sombra da qual prosperara a produção e a exportação da Colômbia, provocando grave crise social, econômica e financeira neste país, resultante daperda de receita de exportação. Desorientado, cogitava o governo colombiano em elevar a política protecionista para fazer face ao inesperado desequilíbrio de suas contas externas37. A elevação 31 L. T. Leite Filho a Pimentel Brandão, ofício, Santiago, 13 abr. 1937; V. F. da Cunha a Oswaldo Aranha, ofício, Valparaíso, 30 maio 1939, AHI, lata 1198, maço 25940. 32 G. do Amaral ao MRE, relatório, Lima, 11 out. 1939, AHI, lata 695. maço 10174. 33 Manoel Coelho Rodrigues a Macedo Soares, ofícios, Bogotá, 17 jul. 1935 e 5 fev. 1937, AHI, lata 1034, maço 17837. 34 Legação do Brasil a Macedo Soares, ofício, Bogotá, 8 abr. e 30 de jun. 1936, AHI, lata 1198, maço 25935. 35Idem, 23 abr. e 29 ago. 1936, AHI, lata 1198, maço 25935. 36 Ibidem, 20 out. 1936, AHI, lata 1198, maço 25935 37 Octávio Fialho a Pimentel Brandão, relatórios de 5 jun. e 23 dez. 1937, AHI, lata 690, maço 10108.

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dos preços do café no mercado internacional no ano seguinte devolveria o otimismo dos negócios ao país38. Ao dar ao embaixador designado para Bogotá suas instruções em janeiro de 1939, Oswaldo Aranha assinalava o contraste entre os dois países, uma Colômbia de arraigadas e apaixonadas disputas políticas e doutrinais, um Brasil que visava tãosomente o desenvolvimento nacional sem o desperdício das energias em especulações daquela natureza. Assim mesmo, o novo embaixador haveria de buscar o assentimento da Colômbia ao consenso continental diante dos antagonismos europeus. Sendo a Colômbia o grande concorrente do Brasil no mercado internacional do café, todas as informações acerca desse negócio eram requeridas. Não estava o Brasil interessado no momento em acordo para transporte de petróleo colombiano, tanto pelo elevado custo que teria quanto pelo fato de lançar sombra sobre o importante tratado com a Bolívia firmado em 25 de janeiro de 193839. No exercício de sua função, o novo embaixador encontraria dificuldades em estimular o comércio bilateral, em razão da falta de complementaridade das economias40. O comércio entre o Brasil e a Venezuela, embora crescente, ainda se fazia na primeira metade dos anos 30 por transbordo na ilha deTrinidad41. A nacionalização, em 1938, das empresas petrolíferas que atuavam no México, por um decreto de 18 de março do presidente Lázaro Cárdenas, suscitou forte interesse no continente americano. O Departamento de Estado interferira no caso, com o intuito de mediar o acerto para indenização das empresas americanas expropriadas, mas, diante das dificuldades, retirou-se para não ferir sua política de boa vizinhança. Na realidade, os Estados Unidos pretendiam estabelecer um forte fluxo de comércio continental a seu benefício, que viesse Legação do Brasil ao MRE, relatório, Bogotá, 12nov. 1938, AHI, lata 690, maço 10108. Oswaldo Aranha a Carlos Lima Cavalcanti, instruções, Rio de Janeiro, 23 jan. 1939, AHI, lata 1198, maço 25941. 40 Carlos de Lima Cavalcanti ao MRE, relatórios, Bogotá, 9 mar. e 18 jul. 1939. AHI, lata 690, maço 10108. 41 J. de A. F. de Melo a Macedo Soares, ofício, Caracas, 13 out. 1934, AHI, lata 1029, maço 17614. 38 39

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competir com a presença européia e, sobretudo, pôr termo ao comércio da América Latina com a Alemanha que crescia a passos de gigante em conseqüência dos acordos de compensação. Muito lhe desgostou, precisamente, o acordo de compensação para exportação de petróleo mexicano à Alemanha, visto que dele resultaria um aumento sensível das importações mexicanas de produtos daquele país já tido por inimigo. As boas disposições do governo americano no continente seriam correspondidas com a vontade mexicana de superar o trauma da nacionalização e alcançar logo o regular comércio de exportação de petróleo com o vizinho do norte. Em março de 1939, amissão Donald R. Richberg, representante das companhias americanas, negociou em clima de cordialidade com o governo de Cárdenas, sem contudo alcançar uma solução a contento. O espírito nacionalista dessa expropriação transparecia nas declarações de então acerca da autonomia econômica que dela resultava e espraiava-se pelo continente, vindo logo depois a Bolívia a nacionalizar a Standard Oil. Manifestações de simpatia à política econômica de Vargas, tido por condutor firme e bem sucedido dos interesses nacionais em política externa, eram externadas por dirigentes mexicanos. As dificuldades, contudo, para implementar o comércio do México com o Brasil eram apontadas pelo chefe da missão naquele país: falta de política comercial do Brasil com relação ao México, deficiência da representação, ausência de organização comercial e bancária, ineficiência da navegação42. O início da guerra provocou dois efeitos sobre as relações interamericanas: o primeiro, na esfera política, correspondeu ao revigoramento das relações diplomáticas regionais e do panamericanismo; o segundo, na esfera do comércio regional, acentuou o interesse da América Latina pelo comércio com os Estados Unidos e entre os próprios países latinos. AII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores instalada em Havana entre 21 e 30 de julho de 1940, dando continuidade às anteriores conferências pan-americanas de Buenos Aires, Lima e Panamá, produziu novos acordos coletivos A. Paços a Oswaldo Aranha, relatórios, México, 20 mar., 21 jun., 15 jul. e 30 nov. 1939, AHI, lata 701, maço 10247. 42

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com os objetivos de prover a organização de um sistema de defesa das Américas e de agilizar o intercâmbio político, econômico e militar. Mesmo a Argentina neutralista desenvolvia essas duas linhas de força por meio de sua política exterior43. Auscultando o pensamento de Vargas, Oswaldo Aranha tinha extremo cuidado em manter excelentes relações com as duas potências continentais das quais dependia o êxito do pan-americanismo e da política exterior brasileira, Estados Unidos e Argentina. As declarações de intenção distribuíam-se pelos dois lados. Em novembro de 1941, regressando Oswaldo Aranha de uma visita a Buenos Aires, marcada por inúmeros encontros com seu colega Enrique Ruiz Guinazu, as duas chancelarias levaram simultaneamente a público um comunicado em que os dois ministros concordaram “... desde logo na necessidade imprescindível de que ambas as chancelarias mantenham em todos os momentos o mais íntimo e estreito contato, observando uma atitude solidária, de acordo com os compromissos pan-americanos assumidos...”. Dispunham-se, além disso, a acionar os mecanismos de negociação diplomática para auxiliar Peru e Equador a superar seu conflito de fronteira44. A imprensa esforçava-se então para contraarrestar opiniões que lançassem sombras de desconfianças entre os dois países e o chanceler Oswaldo Aranha muito apreciava a manifestação dessa imprensa cordial, que expressava ao mesmo tempo a aceitação da política de neutralidade e dos esforços de aproximação da Argentina com todos os demais países do continente45. Por ocasião da visita de Oswaldo Aranha a Buenos Aires nesse ano de 1941, a demonstrar que a perspectiva de união entre Chile e Argentina nada tinha de hostil a qualquer outro país, os dois grandes do Atlântico sul também firmaram um tratado de comércio cujo espírito era o de induzir uma união aduaneira aberta à adesão dos vizinhos.

Rodrigues Alves a Oswaldo Aranha, ofício. Buenos Aires, 11 set. 1940, AHI, lata 732, maço 10463. 44 Idem, telegrama, Buenos Aires, 25 nov. 1941, AHI, lata 1198, maço 25942. 45La Prensa, 20 ago. 1942, AHI lata 1198, maço 25942; Oswaldo Aranha a Rolando J. Aguirre, nota, Rio de Janeiro, 16 abr. 1943, AHI, lata 1198, maço 25942. 43

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Mas Oswaldo Aranha mantinha invariável sua diretriz de combinar o pan-americanismo, ou seja, a solidariedade com os países latinos, com o americanismo, ou seja, a fiel e estreita cooperação com os Estados Unidos. Era embaixador em Washington, quando foi feito chanceler em 1938. Em missão aos Estados Unidos, no ano seguinte, obteve importantes acordos bilaterais de crédito e cooperação econômica. Em 1940 alcançarao sonho de Vargas, o acordo com os Estados Unidos para construção da usina de Volta Redonda, um passo de gigante rumo à procurada industrialização. Empenhar-se-ia, resolutamente, para alcançar não somente a solidariedade da América Latina com os Estados Unidos no enfrentamento que este preparava contra a Alemanha nazista, mas a cooperação efetiva de guerra, caso necessária. Na Conferência de Buenos Aires de 1936 aprovara-se o princípio de que a agressão a um país americano atingia a todos os demais. Na III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, após desfechado o ataquejaponês a Pearl Harbor, Aranha esforçou-se, discordando de seu colega argentino, para que todos os países rompessem as relações diplomáticas e comerciais com as potências do Eixo, conforme recomendação da conferência46. O Brasil recebeu com respeito, contudo, a política neutralista da Argentina diante da guerra mundial e, em aberta demonstração de autonomia de sua política exterior, soube dissociar, nesse particular, sua estreita cooperação com os Estados Unidos, dos esforços desse país em isolar e castigar a Argentina. Estendeu-lhe a mão, em nome da solidariedade latina. O projeto de união absoluta, política e econômica, entre o Chile e a Argentina, continuava na segunda metade dos anos 40 a ocupar a imprensa e a diplomacia. De modo geral, a opinião nos dois países manifestava entusiasmo. A correspondência diplomática brasileira relatava, sem crer, todavia, no realismo da proposta, a menos que se ampliasse às outras repúblicas, sob a forma de uma união aduaneira ou de medidas que viessem facilitar o comércio regional47. Quando se Relatório, 1942, p. XIII-XIV. Consulado do Brasil ao MRE, ofício, Valparaíso, 22 abr. 1942, AHI, maço 39871; Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Buenos Aires, 8 jul. 1942, lata 2090, maço 37712. 46 47

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preparava a paz, em 1944-1945, esse entusiasmo não fazia mais a unanimidade da opinião chilena, que era afetada em sua visão da união com a Argentina por pressões de refugiados políticos daquele país e dos governos inglês enorte-americano48. Aliás, sempre restara alguma desconfiança diante das intenções argentinas, quando um ministro de país vizinho visitava a Argentina, o boliviano sobretudo49. Mas a Argentina não se contentava em sonhar com a união aduaneira com o Chile. Durante a guerra, desenvolveu intenso esforço para aumentar suas exportações para a Colômbia e a Venezuela, países com os quais o Brasil mantinha baixo nível de comércio bilateral, seja pela falta de complementaridade das economias seja pela falta absoluta de meios de transporte50. Essas iniciativas argentinas não tinham apenas fins comerciais, porquanto destinavam-se, como outras, no México, por exemplo, a explicar e fazer respeitar na América Latina a posição de neutralidade, que importantes setores da opinião tinham facilidade em hostilizar51. Embora estendesse seus olhares para o outro lado dos Andes, em direção à possível união aduaneira com a Argentina, como esta, a república do Pacífico não permanecia inativa em outros quadrantes. Uma nova relação tomou impulso entre o Chile e o México, durante a guerra, em razão da afinidade política dos regimes. As trocas de missões importantes, com evidente caráter político-cultural, além de negociações comerciais, para intercâmbio de salitre, vinhos, lãs e madeiras por petróleo, açúcar, tabaco e algodão assentavam as novas relações em base realista52. As estatísticas do comércio exterior chileno MRE, memorando, Rio de Janeiro 21 março 1944, AHI, armário, maço 39871; El Mercurio, Santiago, 5 jun. 1944, AHI, maço 39871. Souza Leão Gracie ao MRE, telegrama, Santiago, 8 jun 1945, AHI, maço 39871. 49 Souza Leão Gracie ao MRE, telegrama, Santiago, 7 out. 1941, AHI, armário, maço 45497. 50 Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofícios, Bogotá, 21 jan., 25 mar. e 24 set. 1943; Caracas, 27 abr., 28 ago. e 2 dez. 1943, AHI, lata 2090, maço 37712. 51 Carlos de Lima Cavalcanti a Oswaldo Aranha, ofício, México, 17 maio 1943, AHI, armário, maço 45497. 52 Souza Leão Gracie a Oswaldo Aranha, ofícios, Santiago, 27 mar. e 4 abr. 1940. AHI, lata 1198, maço 25934. 48

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revelavam que a união aduaneira com a Argentina estava muito distante da realidade. Em pesos chilenos, as exportações elevaram-se, no primeiro semestre de 1940, a 274 milhões para os Estados Unidos, 31 milhões para a Grã-Bretanha, 20 milhões para a Itália, 11 milhões para o Japão e 10 milhões para a Argentina, que ocupava o quinto lugar como fornecedor externo do Chile, atrás de Estados Unidos, Inglaterra, Peru e Japão. Apesar da melhora dos índices– em 1943, a Argentina vinha em terceiro lugar como fornecedor e em segundo como comprador – ainda assim a projetada união econômica parecia artificial53. Aprópria união política mais se assemelhava a um sonho, a crer nas confidências do ministro chileno das Relações Exteriores ao embaixador dos Estados Unidos, segundo as quais, para a tradição diplomática chilena, a parceria estratégica com o Brasil seria a mais importante de todas54. Nessas circunstâncias, a percepção de Oswaldo Aranha segundo qual a o projeto de união política e econômica entre Argentina e Chile carecia de realismo, confirmava-se. Aruptura chilena com os países do Eixo em 1943 eliminou uma diferença da política exterior vis-à-vis do Brasil, na atitude dos dois governos diante da guerra mundial. Imediatamente após, as relações bilaterais tomaram novo impulso com a perspectiva de negociação de importantes acordos e a visita do chanceler chileno ao Rio de Janeiro. Um memorando de entendimento, semelhante a outros que o Chile firmara com seus vizinhos, também estava em cogitação, com o parecer contrário do chefe da missão brasileira em Santiago, que via nele um risco de difusão precipitada de decisões diplomáticas brasileiras na América do Sul55. O presidente Amézaga do Uruguai esperava do Brasil maiores facilidades para a circulação de seus cidadãos na fronteira e a construção Orlando Leite Ribeiro ao MRE, relatório, Santiago, 25 nov 1940, AHI, lata 1563, maço 34057. Souza Leão Gracie a Oswaldo Aranha, relatório, Santiago, 9 dez. 1943, AHI, lata 1563, maço 34057. 54 Souza Leão Gracie ao MRE, telegrama, Santiago, 8 mar. 1942, AHI, lata 1198, maço 25940. Fermandois, Joaquín. Abismo y cimiento; Gustavo Ross y las relaciones entre Chile y Estados Unidos. 1932-1938. Santiago: Universidad Católica, 1997. 55 Joaquim Fernandes ao embaixador do Chile no Brasil, despacho, Santiago, 29 abr. 1943; Acyr Paes ao MRE, ofício, Santiago, 4 jun. 1943, AHI, lata 1198, maço 25940. 53

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de uma ponte internacional unindo Artigas a Quaraí. Ao Uruguai e à Bolívia, causavam expectativas os acordos firmados com o Paraguai em 1942, objetivando a construção ferroviária, o intercâmbio comercial, o porto franco na cidade de Santos, o crédito do Banco do Brasil, decisões com que se removera grande parte dos problemas derivados da situação mediterrânea do país56. As intrigas acerca das relações entre países do Cone Sul eram freqüentemente suscitadas por jornais da época, exigindo constantes desmentidos de autoridades e representantes diplomáticos. Aimprensa promovia a intriga e a diplomacia se esforçava por desmenti-la. Isso ocorria sobretudo em pequenos países como Uruguai, Paraguai e Bolívia, onde, obviamente, as chancelarias de outros países zelavam por manter influência, enquanto os governos locais buscavam iniciativas concretas de cooperação que lhes dessem respaldo. Os arquivos guardam documentos que retratam essas manifestações que não afetavam seriamente o clima de entendimento estabelecido pela união dos países ao lado de Brasil e Estados Unidos contra as potências totalitárias, mas que despertavam a emulação entre os grandes, elevando o poder de pressão dos pequenos em política internacional57. Os relatórios de Bogotá à chancelaria brasileira revelavam que, iniciada a guerra, as relações entre os dois países giravam unicamente em torno do café, que ambos tinham como primeiro produto de exportação. Não convinha, segundo os governos, alimentar uma ruinosa guerra de preços, mas pensar nos mecanismos de quotas de exportação para os Estados Unidos e de limitação da produção como alternativas adequadas. Depois do café, era a disposição colombiana de estimular a produção do algodão, outro produto brasileiro de exportação, que levantava novas dificuldades para as relações bilaterais58.

Legação do Brasil a Oswaldo Aranha, ofício, Assunção, 25 fev. e 24 nov. 1943, AHI, lata 1198, maço 25943. Baptista Luzardo a Oswaldo Aranha, ofício, Montevidéu, 9 jul. 1943, AHI, lata 1198, maço 25944. 57 Cf. AHI, lata 1198. 58 Cf. relatórios, AHI, lata 1028, maço 17565 e lata 1564, maço 34063. 56

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2.2. O enquadramento latino-americano na ordem bipolar O pan-americanismo havia assegurado, enfim, a união do continente ao lado dos Estados Unidos, para reforçar a campanha de guerra dos aliados. Na expressão de Oswaldo Aranha, deixara de ser uma doutrina para se transformar em uma ação política das nações do hemisfério59. A construção da ordem bipolar, engendrada pela inteligência norte-americana durante a guerra, e a montagem dos sistemas de aliança para reger o mundo do pós-guerra teriam na América Latina uma reserva estratégica, com função semelhante à que ela desempenhara durante a guerra. Em ambos os momentos, durante e logo após o conflito, a política exterior do Brasil foi instrumento decisivo para a realização dos objetivos hemisféricos norte-americanos, que foram, sucessivamente, a cooperação de guerra e o apoio à montagem da ordem internacional no pós-guerra60. A 14 de julho de 1944, antes da Conferência de Dumbarton Oaks entre seus representantes e os de Inglaterra, Rússia e China, os Estados Unidos consultaram o governo brasileiro sobre as relações especiais que cogitavam estabelecer com a América Latina, findo o esforço de guerra. A resposta foi além da expectativa. Pelo memorando de 16 de agosto, concordou o governo brasileiro com a criação de um organismo internacional regional destinado a garantir a ordem e a paz à luz da filosofia aliada61. Abriam-se, assim, aos Estados Unidos as portas do continente para moldar a futura Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), no quadro de sua estratégia global, epara obter o consentimento dos governos do continente.

Brasil, MRE, Relatório, 1942, v. 1, p. XV. Talonsoftheeagle. Dynamics ofU.S- Latin American relations. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 117-216. Moniz Bandeira, L. A. Estadonacionalepolíticainternacional na América Latina; o continente nas relações Argentina-Brasil (1930-1992). Brasília: Edunb, 1993. p. 43-56. Rapoport (1987); Moura, Gerson. A segurança coletiva continental: o sistema interamericano, o Tiar e a Guerra Fria. In: Albuquerque, José Augusto Guilhon (org). Sessenta anos de política externa brasileira. São Paulo: Edusp, 1996. 2 v. v.1,p. 161-172. 61 Relatório, 1944, v. I, p. 21-23.

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60 Smith, Peter.

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Contudo, o consentimento dos latinos ao enquadramento que os Estados Unidos pretendiam lhes aplicar na ordem do pós-guerra não foi unânime e gratuito. Enquanto se planejava nos Estados Unidos o mundo do pós-guerra, havia nos meios políticos latinos quem pensasse o futuro do subcontinente, levando em consideração a força que assumira sobre a área a potência hegemônica regional e a possibilidade de uma influência avassaladora após a guerra. A Argentina, ao contrário do que já se afirmou, não foi o único país a manifestar essas preocupações. Em agosto de 1943, o chanceler colombiano Turbay enviou um memorando aos países latino-americanos que haviam rompido as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo, sem contudo haver declarado a guerra, a fim de realizar uma consulta sobre a atitude a tomar após o término do conflito. O fato de alguns haverem declarado guerra e outros apenas rompido relações denotava não existir perfeita sintonia dos países do continente a tal respeito. Esse desentendimento, segundo Turbay, criava dificuldades para o estabelecimento de sólida união latina. A chancelaria colombiana sugeria, por conseguinte, esforços regionais como forma concreta, a exemplo dos acordos de união regional entre Venezuela, Colômbia e Equador com vistas à formação daGrã-Colômbia. O embaixador brasileiro em Quito, João Carlos Moniz, fez uma exaustiva análise dospossíveis desentendimentos regionais e de seus efeitos sobre o sistema interamericano. Identificou dois condicionamentos capazes de afetar essas relações internacionais e de dar-lhes um curso que não considerava adequado: a influência desagregadora espanhola a despertar o sentimento de raça inerente à cultura da hispanidad e a necessidade de provocar a união das nações hispânicas para conter a influência americana. O regionalismo, segundo Moniz, agrupando Estados que cultivassem afinidades históricas como força de coesão, poderia degenerar em força de desagregação do pan-americanismo, ao contrapor-seou excluir as grandes potênciasnão espanholasdo continente. Quanto ao Brasil, a desunião das nações espanholas favorecera, no passado, a ação da diplomacia, que alcançara importantes conquistas como a fixação das fronteiras. A criação de um bloco de países hispânicos poderia modificar a seu favor a balança do poder e comprometer a 82

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influência e o prestígio do Brasil na América do Sul. Tanto mais que o movimento haveria de ser conduzido pela Argentina, cuja ascendência econômica e espiritual exerceria um fascínio sobre o mundo hispanoamericano. O ofício de João Carlos Moniz ao chanceler Oswaldo Aranha concluía propondo ao Brasil uma política de aproximação íntima com os países hispano-americanos, “tendente a anular, neles, o natural sentimento de despeito provocado pelo nosso engrandecimento e progresso e a criar, ao invés, um sentimento de admiração e de respeito pela nossa força, o que acabaria por despertar-lhes a consciência da nossa pacífica supremacia e amistosa liderança”62. A percepção de que a Espanha de Franco ensaiava uma forte influência sobre os destinos da América hispana estava correta. Seu governo tinha o propósito de reforçar a liderança da Argentina, neutralista como a Espanha, no mundo do pós-guerra63. O reatamento das relações com a União Soviética e o fato de a Argentina ser o único país americano a ter um embaixador junto a Franco confirmava essa disposição de liderança64. Em meio a um mundo apreensivo, que era aquele do pós-guerra, repercutiu enormemente na imprensa espanhola a missão Estanislao López enviada por Perón a Madri para conferir a Franco o colar da Ordem do Libertador. Do lado da França, Perón não perdia igualmente a ocasião de projetar a imagem de uma Argentina progressista e elo de ligação entre os povos do mundo inteiro65. Além de haver estabelecido relações com a União Soviética, a Argentina reforçou no imediato pós-guerra sua presença na África do Sul e no Canadá, de onde chegou o primeiro embaixador acreditado

62 João Carlos

Moniz a Oswaldo Aranha, ofício, Quito, 27 ago. 1943, AHI, lata 1198, maço

25935. 63 Legação do Brasil a José Roberto de Macedo Soares, ofício, Madri, 16 mar. 1945; Lunes, Madri, 26 fev. 1945, AHI, armário, maço 45496. 64 Vasco Leitão da Cunha ao MRE, telegrama, Madri, 9 jun. 1946, armário, maço 45496. 65 Legação do Brasil a Samuel de Souza Leão Gracie, ofício, Madri, 19 out. 1946; João Emílio Ribeiro a Hildebrando Accioly, ofício, Buenos Aires, 16 nov. 1946; LeFigaro, Paris, 19 dez. 1946, AHI, armário, maço 45496. Rein, Raanan. Spanish-Argentine relations and the changing place of the Hispanic heritage in peronist nationalism, 1946-1955. In: Cervo, Amado, Döpcke, Wolfang (orgs). Relações internacionais dos países americanos; vertentes da História. Brasília: Linha Gráfica, 1994, p. 132-139.

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no país. Em janeiro de 1946, o ministro das Relações Exteriores, Juan I. Cooke, expôs publicamente a orientação da política exterior argentina: adesão à política de boa vizinhança na América e à amizade com os Estados Unidos, rejeição a qualquer política intervencionista no continente66. O governo norte-americano não apreciava esse prestígio argentino e suspeitava das intenções da chancelaria portenha. A 12 de fevereiro de 1946, o subsecretário de Estado Dean Acheson presidiu uma reunião a que compareceram Spruille Braden e todos os chefes de missões latino-americanas acreditados nos Estados Unidos, exceto o da Argentina. Informou-lhes que documentos alemães caídos nas mãos dos americanos comprovaram a conexão da Argentina com o Eixo e a disposição de derrubar governos de países vizinhos, como o do Brasil. Essa séria impugnação, que adiante será objeto de análise, parecia sugerir que o governo dos Estados Unidos pretendesse excluir a Argentina do Tratado de Assistência e Defesa Mútua que as repúblicas do continente tencionavam firmar na Conferência do Rio de Janeiro. Os documentos seriam brevemente tornados públicos67. Nesses primeiros meses de 1946, a imprensa norte-americana refletia as interpretações do Departamento de Estado acerca da hostilidade argentina para com os Estados Unidos. Segundo a opinião dominante na imprensa norteamericana, Perón visava obstruir a Conferência do Rio de Janeiro, que somente se faria sem a presença da Argentina, e assumir a liderança antiamericanano continente. Para tanto, o restabelecimento de relações com a União Soviética contribuiria, trazendo para o continente o conflito ideológico existente na Ásia e na Europa68. Embora as articulações do Departamento de Estado, como a reunião que a excluíra, correspondessem a uma estratégia para fulminar Décio Coimbra a Pedro Leão Veloso, ofício, Buenos Aires, 21 jan. 1946, AHI, lata 940, maço 14723. 67 Fernando Lobo ao MRE, telegrama, Washington, 12 dez. 1946, AHI, lata 940, maço 14723. 68 João Carlos Moniz ao MRE, telegrama, AHI, armário, maço 45496. Rapoport, Mario, Spiguel, Claudio. Estados Unidosy el peronismo; lapolítica norteamericana en la Argentina: 1949-1955. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1994. 66

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a indocilidade e o prestígio da Argentina no pós-guerra, acusando-a, por exemplo, de golpismo – que ela, sim, tramara contra o governo de Vargas no Brasil – a posição da Argentina no continente e no mundo era, no mínimo, controversa. A substituição do argentinófilo Ernesto Barros Jarpa por Joaquín Fernandez na chancelaria chilena esfriou o entusiasmo que antes era explícito de uma união íntima entre os dois países. Era então embaixador brasileiro em Buenos Aires João Baptista Luzardo, ironicamente, o grande admirador da obra e da política peronista, simpático mais que o chileno à causa argentina69. Para compensar esse esfriamento do lado do Pacífico, preparou Perón com muito esmero sua viagem à Bolívia, levada a efeito com grande pompa e comitiva em outubro de 1947. A imprensa, o rádio, como também o presidente Enrique Hertzog corresponderam às expectativas apoteóticas do estilo peronista, afirmando este último que a Bolívia “está com a Argentina, hoje, como no passado e como sempre”. Enalteceu-se a coesão da comunidade hispânica do continente, não sem reconhecer-se que esse ideal vinha sendo obstruído por alguns e que a política peronista enfrentava oposição dentro da própria Argentina. Ratificou-se, na ocasião, o Tratado Econômico, Financeiro e Cultural Argentino-Boliviano70. Mas a liderança que Perón projetava sobre os países vizinhos era de molde ousado, a ponto de provocar reações que ele mesmo reconheceu a 1º de maio de 1948, em sua mensagem ao Congresso Nacional: “os esforços para ajudar a Bolívia e o Chile sofreram interferência de forças exteriores não identificadas”, afirmação essa que provocou uma repulsa enérgica por parte de seu entusiasta de antes, o presidente Enrique Hertzog71. Os governos do Brasil e da Grã-Bretanha procuravam conter a agressividade norte-americana contra a Argentina. Em outubro de 1944, 69 Legação do Brasil a Samuel de Souza Leão Gracie, ofício, Santiago, 24 out. 1946, AHI, armário, maço 39871. 70 Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofícios, Buenos Aires, 24 out., 27 out., 30 out. 31 out. e 20 nov. 1947, AHI, armário, maço 45497. 71 Legação do Brasil ao MRE, telegrama, La Paz, 12 maio 1948, AHI, armário, maço 45497.

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a imprensa e os meios de negócios londrinos fizeram grande pressão sobre o Foreign Office para que não seguisse o governo de Roosevelt em sua decisão de suspender o tráfico marítimo com a Argentina. Lembravam que, se os Estados Unidos adotassem tais medidas, seria porque seus parcos interesses na Argentina o permitiam, não ocorrendo o mesmo com os vultosos interesses comerciais, empresariais e financeiros ingleses72. Arevogação da lei britânica de empréstimos e arrendamentos em 1945 abriu perspectivas de fornecimento de material pesado para as ferrovias argentinas. O professor de economia Torcuato Di Tella foi a Londres fazer encomendas. O Tratado Bilateral de Comércio, de 1º de dezembro de 1936, expirava então, mas foi revigorado por seis meses, enquanto se fariam as negociações. Em junho de 1946 chegou a Buenos Aires a missão especial Percival Liesching com o intuito de regular por novo acordo o futuro das relações comerciais. Grande conturbação nessas relações econômicas, comerciais e financeiras adviriam com a inesperada suspensão da conversibilidade da libra em meados de 1947. As negociações tornaram-se muito difíceis, em razão de inúmeros problemas que derivavam da inconversibilidade da libra esterlina, havendo a Argentina, por precaução, suspendido temporariamente a exportação de suas carnes. Havia, com efeito, grandes saldos argentinos retidos na Inglaterra durante a guerra, que se tornaram inconversíveis, e cuja utilização não contava mais com as garantias anteriores. No início de 1948, nova missão inglesa chefiada por Olive Baillieu deslocou-se para a Argentina com o intuito de dar continuidade às negociações com o condutor da economia argentina, Miranda. Percebe-se, pois, quão elevados eram os interesses bilaterais. As negociações e os fluxos não esmoreceram no pós-guerra. Discretamente, os britânicos iam superando dificuldades, prosseguiam importando as carnes, os cereais e outros gêneros e, em meio a muita conversa e a ataques e contra-ataques das imprensas de ambos os lados, continuavam 72 Moniz de Aragão ao MRE, telegrama, Londres, 9 out. 1944, AHI, lata 940, maço 14723.

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pagando as compras em libras inconversíveis. Acima de tudo, baixavam o déficit das transações comerciais73. A inserção da América Latina na ordem do pós-guerra teve na Argentina seu nó górdio a desatar e o ano de 1946 o momento decisivo. Duas forças, radicais e intransigentes, confrontavam seus pontos de vista e, enquanto não chegassem a harmonizar-se o suficiente, o indispensável consenso continental não seria alcançado. Por um lado, o governo norte-americano supunha que a união continental dependesse do aniquilamento de Perón e do peronismo argentino e, por outro, esse movimento crescia, organizava-se e triunfava democraticamente com a consagração das urnas. A raiz do problema residia em erros crassos de avaliação política que se situaram em sua quase totalidade do lado americano, como veio a reconhecer Morgenthau, o pai do realismo na teoria das relações internacionais. A imprensa norte-americana deliciava-se em jogar lenha na intriga: mutilava declarações de autoridades, traduzia-as capciosamente, intercalava considerações alheias ao texto e chegava onde queria, influindo na tomada de posições do Departamento de Estado74. Mais objetiva e racional era a imprensa inglesa. The Times interpretou moderadamente e com objetividade política, em agosto de 1945, a nomeação de Spruille Braden, ex-embaixador na Argentina e feroz adversário de Perón, para o cargo de subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos. Como era de se supor, o periódico inglês, embora reconhecendo os grandes interesses envolvidos bilateralmente, considerou aqueles da reorganização do mundo do pós-guerra superiores, afirmando que a Argentina não deveria esperar apoio político no confronto com os EstadosUnidos que se prenunciava tenebroso75. Baptista Luzardo a Pedro Leão Veloso, ofício, Buenos Aires, 25 ago. 1945; Moniz de Aragão a Pedro Leão Veloso, ofício, Londres, 22 dez. 1945; Legação do Brasil a João Neves da Fontoura, ofícios, Buenos Aires, 5 fev. e 12 mar. 1946; Baptista Luzardo a João Neves da Fontoura, ofício, Buenos Aires, 22jun. 1946; Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 19 set. e 2 out. 1947; Oswaldo Furst a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 15 jan. 1948, AHI, lata 2090, maço 37712. Rapoport, Mário. El laberinto argentino. Política internacional en un mundo conflictivo. Buenos Aires: Eudeba, 1997, p. 193-264. 74 Paulo Demoro ao MRE, telegrama, Buenos Aires, 4 jul. 1944, AHI, armário, maço 45497. 75 Moniz de Aragão a Pedro Leão Veloso, ofício, Londres, 28 ago. 1945, AHI, armário, maço 45496. 73

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Ao tempo em que fora embaixador dos Estados Unidos em Buenos Aires, Spruille Braden preparou uma documentação com o intuito de causar profunda impressão na opinião argentina e de todo o continente, cujo resultado, ao que esperava, seria a repulsa generalizada à pessoa de Perón. Publicou-a em fevereiro de 1946, sob a forma de memorando do Departamento de Estado, que logo se denominou “Livro Azul”. Eram revelações fartas, complexas e abundantemente documentadas que vinculavam o nacionalismo argentino ao nazismo por meio de intensos contatos entre personalidades e autoridades do país com a Alemanha de Hitler. A imprensa argentina, que logo divulgou o documento, reagiu estupefata, mas percebeu de pronto que o Departamento de Estado agia em função das eleições marcadas para dias depois, 24 de fevereiro. O efeito desmoralizante do documento, para Perón e para a nação argentina, foi, portanto, associado a finalidades políticas, estando a mão do Departamento de Estado por trás da possível derrota de Perón, como estivera, em 1945, agindo na queda de Vargas, os dois líderes nacionalistas das grandes potências latinas do continente. Além de ferir a imagem e a ética política do peronismo, Braden qualificava o nacionalismo argentino de pernicioso. Primeiro, porque tinha o caráter antilatino-americano, ao objetivar a reconstrução do antigo vice-reino do Rio da Prata e a hegemonia argentina sobre a América do Sul; segundo, porque essa hegemonia seria imposta por meio de uma estratégia gradual, a começar pelos arredores, com união aduaneira com o Chile, infiltração na Bolívia, expansão financeira no Paraguai e política de atropelo ao Uruguai76. Essa injeção de pérfido fim ao esforço peronista de cooperação com os vizinhos que impregnava a visão bradeniana da política exterior argentina faria grande sucesso no Brasil, ao converter-se na visão de uma seqüência de titulares do Itamaraty, entre 1946e 1955, chanceleres João Neves da Fontoura, Vicente Rao e Raul Fernandes. A imprensa argentina reagiu com grande indignação ao requisitório de Braden contra o peronismo e as pessoas citadas no 76 Álvaro Teixeira Soares a João Neves da Fontoura, ofício, Montevidéu, 13 fev. 1946, AHI, lata 940, maço 14723.

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documento vieram a público explicar-se. De início, julgou-se que o desprestígio causado a Perón comprometera fatalmente sua candidatura. Não o fez. As eleições se processaram com calma e foram ilesas. O novo partido peronista, criado com base em idéias sociais avançadas, surpreendeu aos oposicionistas, reunidos nos tradicionais partidos democráticos, que quiseram, sem conseguir, adiar as eleições e foram vencidos. O “Livro Azul”, que prontamente foi rebatido por Perón, o centro das acusações, com seu “Livro AzuleBranco”, as cores da Argentina, produziu efeitos eleitorais contrários ao que pretendia o Departamento de Estado, vertendo para o peronismo votos de muitos que não o teriam sufragado77. A vitória de Perón em eleições democráticas abrandou a imprensa dos Estados Unidos. Ao comentar os resultados, o New York Times se perguntava como a Argentina poderia readquirir sua posição na família americana e propunha iniciativas para alcançar rapidamente um entendimento, convertendo aquele país, há pouco tido por “endemoninhado”, em parceiro leal e seguro no empreendimento de construir a aliança regional e firmar o tratado de defesa hemisférica ocidental. Estava, pois, em marcha na imprensa norte-americana uma autocrítica que reconhecia o malogro político de Braden e aconselhava ao Departamento de Estado outra conduta com relação à Argentina. Ademais, chegavam das chancelarias dos países latino-americanos ao Departamento de Estado inúmeras manifestações contrárias ao “Livro Azul”, para decepção do subsecretário de Estado que lhes dirigira esperançoso inquérito. Os documentos que o Itamaraty remeteu a Braden respondendo às notas sobre o “Livro Azul”coincidiam com a generalizada repulsa dos outros países, mas carregavam o prestígio do aliado fiel à causa da aliança continental, durante o governo Vargas, e da hegemonia regional norte-americana, que o novo governo de Eurico Gaspar Dutra ajudava a consolidar. Pouco antes de transmitir o cargo a Perón, o presidente Farrel confidenciou ao chefe da missão brasileira 77 Décio Martins Coimbra ao MRE, telegrama, Buenos Aires, 15 fev. 1946, AHI, armário, maço 45497. Oswaldo Furst a João Neves da Fontoura, relatório, Buenos Aires, 7 mar. 1946, AHI, lata 2122, maço 37966.

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em Buenos Aires que a compreensão feliz existente entre brasileiros e argentinos era a melhor garantia de paz e tranqüilidade regional78. Em poucos meses esvaiu-se, portanto, a hostilidade do memorando contraproducente de Braden, com a repulsa das chancelarias latinas, a classificação de absurdos atribuída por Morgenthau aostemores de criação de um bloco de nações antiamericanas liderado pela Argentina e o apoio que as legações especiais conferiram à posse de Perón. Estava aberto o caminho para a Conferência do Rio de Janeiro que aprovaria o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, que a própria Argentina subscreveu, não sem argumentar em favor de outros projetos de defesa mútua que não fossem uma rendição aos objetivos estratégicos dos EstadosUnidos no continente, consentida sem contrapartida alguma pelos países latinos79. Desprestigiado, o Departamento de Estado, segundo o chanceler argentino Juan Isaac Cooke, esteve alheio à importante missão do general Carlos von Der Becke aos Estados Unidos, a convite das autoridades militares. Outros caminhos mais desembaraçados eram, pois, trilhados para colocar os dois países em cadência de marcha. Esperto, o governo de Perón, a exemplo do procedimento pragmático de Vargas, iria negociar a adesão ao Tiar pelo desbloqueamento do dinheiro-ouro argentino nos Estados Unidos (equivalente a dois bilhões e meio de pesos), acenando aos fornecedores americanos com sua utilização para compras de equipamentos à indústria. Mas a imprensa, mais uma vez, aproveitou a ocasião para semear a intriga acerca da missão, afirmando que o general iria advogar uma “situação privilegiada” para a Argentina, a de ponto principal da estratégia de defesa continental. Mais uma vez, Perón comunicou-se com o embaixador do Brasil, João Baptista Luzardo, desmentindo pretensão de tal natureza, que colheria indignação no continente80. À diplomacia brasileira repugnava no imediato pós-guerra acompanhar os Estados Unidos em sua tentativa de isolamento da Carlos Martins Pereira e Souza ao MRE, telegrama, Washington, 9 abr. 1946, AHI, lata 940, maço 14723. Oswaldo Furst a João Neves da Fontoura, relatório, Buenos Aires, 30 abr. 1946, AHI, lata 2122, maço 37966. 79 Idem, ofício, Buenos Aires, 17 maio 1946, AHI, lata 940, maço 14723. 80 João Baptista Luzardo a João Neves da Fontoura, ofício, Buenos Aires, 19 jun. 1946, AHI, armário, maço 45497. 78

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Argentina no continente, apesar de reconhecer que o país irmão incorria em freqüentes fracassos e maladresses devido ao descuido em manejar a arte diplomática. Entre os manejos inconvenientes apontados pela documentação brasileira, enumeravam-se fatos tais como obstruir a recomendação da Conferência dos Chanceleres no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1942, de romper relações diplomáticas e comerciais com o Eixo e dar-lhe, depois, um cumprimento tardio, em fevereiro de 1944; não tomar medidas para coibir ou fiscalizar a propaganda do Eixo, como fizera Vargas com osdecretosde 1938, que lhe asseguraram o controle do nacionalismo; embarcar sem custos na generosidade brasileira que fez com que a ata final da Conferência de Chapultepec em 1945 (Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, da qual a Argentina fora excluída por exigência norteamericana) ficasse aberta à adesão da Argentina, levando-a gratuitamente a São Francisco; fomentar a altercação com o embaixador Braden, no momento em que os Estados Unidos emergiam como a grande potência vencedora da conflagração e líder da nova ordem internacional. As interpretações favoráveis da diplomacia brasileira decorriam em boa medida da simpatia que pelo país vizinho alimentava seu representante em Buenos Aires, Baptista Luzardo. “Aconclusão a que se chega ( afirmava um memorando do Itamaraty em junho de 1946) à vista dos fatos é de que a Argentina logrou uma vitória indiscutível na luta que sustentou contra os Estados Unidos”. No momento em que o governo de Dutra se dispunha a ceder aos Estados Unidos em todos os quadrantes, apoiando suas decisões no delineamento da ordem internacional do pós-guerra de modo a “queimar” um poder de barganha repleto de sucessos concretos construído com duras penas por Vargas, é curioso observar que a diplomacia brasileira reconhecia na Argentina a continuidade daquele estilo calculista e pragmático. O estabelecimento de relações diplomáticas com a União Soviética e o tratado de comércio que se preparava eram vistos como exemplo destinado a robustecer o poder de barganha argentino face à supremacia norte-americana81. Garcia de Sousa ao chefe da Divisão Política, memorando, Rio de Janeiro, 24jun. 1946, AHI, lata 940, maço 14723. 81

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As relações entre a Argentina e os Estados Unidos atingiram seu ponto mais crítico em fevereiro de 1946, com a divulgação do “Livro Azul”, mas já entre maio e junho recuperavam um ponto de equilíbrio. O novo embaixador americano em Buenos Aires, George Messersmith, levou consigo um espírito de conciliação. As negociações sobre o desbloqueio do ouro argentino retido pela reserva de Nova Iorque, bem como a liberação dos depósitos de bancos argentinos, chegaram a bom termo, já no mês de julho, aliviando a agenda bilateral de penosos entulhos82. Em agosto, a Câmara dos Deputados aprovou a adesão argentina à Ata de Chapultepec e à Carta de São Francisco, mandando-as à ratificação. No mês seguinte, o governo nomeou o general Carlos von der Becke, um peronista moderado e simpático ao próprio Braden, seu representante no Conselho Pan-Americano de Defesa Continental e José Arce para as Nações Unidas. Aderindo a tais atos internacionais e fazendo-se, desse modo, representar nos dois órgãos multilaterais mais importantes da política continental e mundial, a Argentina encaminhava-se para a normalização de sua política exterior com a conjuntura da nova ordem bipolar. A chave para compreender o alinhamento argentino àpolítica pan-americana e à ordem do pós-guerra, com o sacrifício dos pruridos nacionalistas do regime de Perón, era fornecida então pela análise do representante brasileiro em Buenos Aires, Oswaldo Furst: Todas as atividades da política internacional argentina, ou de outras nações, em relação a ela, nesta cidade de Buenos Aires, repousam em interesses comerciais: (1) Com o Brasil, abastecimento das praças brasileiras com trigo, fornecimento de tecidos e borracha do Brasil aos centros de consumo argentinos. (2) Com a Grã-Bretanha, venda de carnes, a melhor preço; descongelamento de 140 milhões de libras esterlinas, de propriedade do Banco Central da República Argentina, retidos no banco de Londres; administração das estradas de ferro de propriedade inglesa em território argentino. (3) Com a Índia, Baptista Luzardo a João Neves da Fontoura, relatório, Buenos Aires, 4 jul. 1946, AHI, lata 2122, maço 37966. 82

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fornecimento de milho contra o de aniagem e juta. (4) Com o Peru e o Equador, intercâmbio de produtos tropicais, como borracha, de petróleo e minerais, contra trigo argentino. (5) Com o Chile, idem. (6) Com várias nações européias, inclusive a Espanha, negociações comerciais de vários aspectos, mantidas sempre em maior reserva do que as demais.

Embora ausentes dessa lista, as relações com a União Soviética e com os Estados Unidos também revelavam muito mais interesses econômicos que políticos, segundo as avaliações da época, e acabaram esses últimos por entrar no ritmo da normalidade que os primeiros exigiam para expandir-se83. Assim interpretou-se a nomeação do embaixador George Messersmith como corretora da desastrosa atuação deBraden: “... veio aBuenos Aires ( escreveu o representante brasileiro) com carta branca para defender os interesses de seu país, suavizando em tudo que lhe fosse possível as asperezas que se haviam criado nas relações com os Estados Unidos”. O ano de 1946 encerrou-se, por um lado, com o prestígio internacionalmente elevado de Perón, que repôs seu país, com habilidade política, na comunhão continental e mundial; e, por outro, com o malogro de duas intrigaspoderosamente articuladas contra a Argentina, uma pelo ex-embaixador norte-americano Braden, já conhecida, e outra pela agência United Press, que bafejava a imprensa com insinuações de divergências internacionais, maldades e intenções que não estavam na orientação de governantes e homens de Estado, mas alojavam-se na inconsciência profissional dejornalistas, no dizer de Baptista Luzardo84. As duas orientações contraditórias da política norte-americana para a Argentina, sugeridas respectivamente pelos embaixadores Braden e Messersmith, estariam ainda dividindo opiniões e explicando iniciativas aparentemente ilógicas do governo dos Estados Unidos, nos anosa seguir. Na primeira metade de 1947, Braden estava em alta, já 83 João Baptista Luzardo a Samuel de Souza Leão Gracie, ofício, Buenos Aires, 2 set. 1946, AHI, lata 940, maço 14723. Oswaldo Furst a Samuel de Souza Leão Gracie, relatório, Buenos Aires, 2 out. 1946, AHI, lata 2122, maço 37966. 84 João Baptista Luzardo a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 27 dez. 1946, AHI, lata 940, maço 14723; relatório, Buenos Aires, 30 dez. 1946, AHI, lata 2122, maço 37966.

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que contava com o apoio do secretário de Estado Byrnes, e seu objetivo era obstruir a entrada da Argentina na família das nações americanas, mesmo que necessário fosse recorrer a um tratamento de força para domá-la. Sem dar ouvidos ao prepotente representante da diplomacia norte-americana, comerciantes, técnicos, industriais e intermediários demandavam a Argentina, tida por um dos países mais ricos do mundo, atrás de negócios: automóveis, jipes, caminhões, máquinas, motores de avião e outros manufaturados de peso, que chegavam aos milhares aosportos argentinos, além das aquisições agenciadas pelo general norteamericano, Royal B. Lord, conselheiro-técnico contratado pelo governo argentino para assessorar a execução do plano qüinqüenal 85. Não convinha, pois, alimentar essa divisão interna no governo dos Estados Unidos, parecendo mais sensato erradicar as duas tendências, afastando os respectivos protagonistas de políticas distintas com relação à Argentina. Braden foi removido do posto de assistente da Secretaria de Estado e Messersmith do posto de embaixador em Buenos Aires. Para lá fora este com a finalidade de restabelecer a normalidade das relações com a Argentina e não resta dúvida que a logrou. Trabalhou na Argentina em condições muito especiais, posto que visado por Braden e sem apoio do Departamento de Estado. Em viagem a Washington, durante sua missão assegurou-se, contudo, da opinião favorável de membros influentes do Congresso e do próprio presidente Truman. Acabou por vencer, deixando Buenos Aires a 21 de junho de 1947 como herói e amigo da Argentina, contrariamente ao que sucedera com a saída de Braden. Comentando o comportamento afetado de ambos, assim expressou-se o novo embaixador do Brasil em Buenos Aires, Freitas-Valle: “... O fato é que, em um caso como em outro, para um diplomata da escola clássica, deveria parecer que tanto o senhor Braden como o senhor Messersmith embandeiraramse sem medida e que isto não é o papel de um grande embaixador” 86. Carlos Martins Pereira e Souza ao MRE, telegrama, Washington, 4 jan. 1947, AHI armário, maço 45497. Oswaldo Furst a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 24 mar. 1947, AHI, lata 940, maço 14723. Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 10 out. 1947, AHI, lata 940, maço 14723. 86 Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 21 jun. 1947, AHIBR, caixa 21. 85

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Nesse mesmo ano de 1947, agitou-se novamente a hipótese de constituição de um bloco de nações do Cone Sul (incluindo Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia) sob liderança argentina. Ocorria, com efeito, que a força das finanças e da produção argentina estava-se derramando sobre esses países menos avançados, estabelecendo-seuma tutela econômica espontânea e natural. O assunto avivou-se com o livro do diplomata argentino Lucio M. Moreno Quintana, Misiones en Londresy Ginebra, que advogava a reconstituição, apenas econômica, do antigo vice-reino do Rio da Prata, já que, logo depois de sua publicação, o publicista também passou a defender a reconstituição política do mesmo, sob adesão livre à República Argentina e conseqüente extinção da personalidade política dos antigos territórios, que incluíam aliás parte do Brasil meridional. A chancelaria veio a público, embora sem resguardar-se da típica empáfia do discurso portenho de então, para negar esses propósitos de ascendência política e reafirmar seu espírito americanista87.

Oswaldo Fruet a Raul Fernandes, ofícios, Buenos Aires 13 e 18 mar. 1947; Freitas-Valle a Raul Fernandes, Buenos Aires, 23 jun 1947, AHI, lata 940, maço 14723. Legação do Brasil ao MRE, documentos, Buenos Aires, 7 jul. 1947, AHI, lata 940, maço 14723.

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3. Apogeu do Estado desenvolvimentista, cooperação internacional e Guerra .ria 1947-1979 3.1. Uma teoria latino-americana do Estado desenvolvimentista Como ficou evidenciado no capítulo primeiro, o desenho do Estado desenvolvimentista foi esboçado no período 1930-1945. Desde então, até o final dos anos 70 este paradigma conheceu o apogeu. A América Latina sustentou uma fase de modernização generalizada, responsável pelos avanços econômicos que tornaram alguns países proeminentes no mundo de então. Convém questionar a idéia de que o paradigma promovesse nesse período o isolamento da região, a não ser que se trate de um isolamento apenas relativo, porquanto a expansão do setor de transformação da indústria latino-americana, embora originalmente concebida como responsabilidade de empresas locais autônomas, foi confiada ao empreendimento estrangeiro. Os setores estratégicos– cimento, siderurgia, comunicação, petróleo e petroquímica, energia elétrica, nuclear, indústria aeronáutica, espacial e naval – foram impulsionados por empreendimentos estatais, não por requisição original do modelo, que os preferia privados, mas porque neles a iniciativa privada se recusava a penetrar. As políticas exteriores foram incumbidas de três responsabilidades com que haveriam de subsidiar os esforços de desenvolvimento empreendidos pelo Estado e pela sociedade: a) abrir mercados para os produtos de exportação, em uma primeira fase ainda os tradicionais produtos primários, mas, logo a seguir – para o Brasil, desde 1960, ao termo do governo de Juscelino Kubitschek – os produtos da indústria e, mais tarde, os serviços de engenharia; b) obter recursos que viessem complementar o volume interno de investimentos para sustentar o desejado ritmo de crescimento; 97

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c) obter ciência e tecnologias, mormente por meio de empreendimentos estrangeiros a instalar-se no país, em quantidade igualmente adequada. Essas incumbências das políticas exteriores, caso se acentuassem, poderiam orientar o modelo de desenvolvimento para um nível tão elevado de dependência externa que não se percebe onde estaria o aludido isolamento. Em condições extremas, o paíslatino-americano poderia converter-se em “grande esmoleiro”, como se o desenvolvimento dependesse necessariamente de fatores exógenos. Essa dimensão de “grande esmoleiro” contaminou o modelo do passado como um desvio, por certo, e haveria de ser recuperada, com evidência mais explícita, nos anos 90, pela ideologia que passou a impregnar as políticas neoliberais dos Estados latino-americanos. Adependência exógena tornou-se um valor na medida em que fez sucesso o equivocado conceito de modelo substitutivo de importações, conceito que chegou a esterilizar o pensamento econômico latino-americano. Ao fazer-se a crítica ao passado de isolamento, responsável pela decadência nacional, segundo uma comunidade epistêmica argentina, e pelos desequilíbrios estruturais, segundo economistas brasileiros, regrediu-se, em termos ideológicos, ao paradigma liberal-conservador do século XIX, quando as elites se contentavam em controlar uma sociedade primária e concebiam o desenvolvimento como responsabilidade alheia. Como já se observou, não houve historicamente um modelo de desenvolvimento substitutivo de importações, uma vez que essa substituição constituiu variável dependente do modelo de desenvolvimento em si. Aliás, a política de comércio exterior dos grandes países latino-americanos não operou com o fator substitutivo de importações. Pelo contrário, desde o final dos anos 60, colocou seu empenho precisamente em substituir as exportações primárias por exportações de manufaturados e serviços com maior valor agregado. Esse foi o significado do esforço diplomático em prol do desenvolvimento, em todas as esferas, a bilateral, a regional e a multilateral. Nesse sentido, em uma tentativa de identificar seus acertos e distorções, procuramos acompanhar a seguir o movimento das 98

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chancelarias latino-americanas, à época do apogeu do Estado desenvolvimentista1. O Departamento de Estado preparou, em 1949, cinco documentos para instruir as delegações dos Estados Unidos a diversas conferências econômicas interamericanas de conformidade com a política econômica que o governo norte-americano desejava implementar nas relações com a América Latina. Esses mesmos documentos foram obtidos por influência pessoal e confiados pelo cônsul-geral do Brasil em Nova Iorque ao chefe da delegação brasileira à 2ª sessão da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), Carlos Alves de Souza, que os remeteu à chancelaria em junho de 1949. Durante a sessão, Alves de Souza observou as atitudes e percebeu a extrema vigilância com que a delegação americana agiu, sempre na defensiva, para modificar as intervenções dos delegados latinos, quando esses apresentassem resoluções conflitantes com as orientações do Departamento de Estado. A política norte-americana com relação à América Latina, segundo os documentos, haveria de basear-se no pressuposto da continuação da Guerra Fria a exigir que os Estados Unidos se mantivessem no futuro “numa situação muito forte tanto do ponto de vista industrial, agrícola, social como militar”. A grandeza dos Estados Unidos fundara-se em seu sistema político representativo e no empreendimento privado baseado na concorrência. A América Latina deveria constituir-se em área de expansão desse sistema para garantia de maior poderio na paz ou na guerra. Era a doutrina da reserva estratégica com que se definia a função da América Latina para com a zona de influência global dos Estados Unidos no pós-guerra. Vizentini, Paulo F. G. Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a Política Externa Independente. Petrópolis : Vozes, 1995; Vizentini, Paulo F. G. A política externa do regime militar brasileiro; multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre: UFRGS, 1998; Almeida, Paulo Roberto de. O Brasil e o multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 1999; Albuquerque, (1996); Cervo (1994); Moniz Bandeira (1998); Rapoport, Mario. Crisis y liberalismo en la Argentina. Buenos Aires: Editores de América Latina, 1998. Jalabe (1996); Paradiso (1993); BernalMeza, Raúl. América Latina en la economía política mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1994. 1

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Nessa época, registrava-se um declínio das exportações norteamericanas para a América Latina, mas o Departamento de Estado não estava preocupado com isso. Seus objetivos eram, primeiro, o de ampliar as exportações para a Europa em reconstrução e para a área do dólar e, segundo, o de promover os investimentos privados para a América Latina. Para lá, os empréstimos de governo a governo seriam mantidos, para cá, paulatinamente extintos e substituídos pelos investimentos privados. A tarefa das delegações norte-americanas às diversas conferências econômicas interamericanas consistia em encontrar meios e modos para acelerar o afluxo de capital de desenvolvimento para a América Latina pela via dos investimentos das empresas privadas como a fonte de capital a longo prazo e bloquear, assim, as iniciativas que visavam os empréstimos de governo a governo. Mesmo quando fossem empréstimos governamentais, no futuro, far-se-iam por meio de canais privados e controlados por entidades de propriedade privada. Os meios e modos que buscavam os norte-americanos para implementar essa política econômica regional compreendiam ações do Estado para alcançar, na esfera multilateral das conferências, a desobstrução política e jurídica, e, na esfera bilateral, as condições favoráveis às negociações concretas. O governo norte-americano comprometia-se a promover um fluxo de longo prazo de capitais aos países que adaptassem sua legislação e, por acordos bilaterais, dessem firmes garantias de segurança aos investimentos, franqueassem a remessa de lucros e de amortização, eliminassem ou modificassem a cláusula de agressão econômica (artigo 16 da Carta da OEA) e abrissem as atividades, mesmo nos setores básicos, à participação das companhias estrangeiras. Os delegados e negociadores norte-americanos, sempre que a ocasião se apresentasse, haveriam de falar “francamente sobre os maus resultados do programa resultante da pressão dos industrialistas no sentido da proteção a indústrias antieconômicas na América Latina...”. Preocupado com as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, em razão do que descobrira lendo esses documentos, Carlos Alves de Souza concluía seu ofício ao ministro interino das Relações Exteriores, Cyro de Freitas-Valle: 100

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A análise da documentação que estou transmitindo a Vossa Excelência revelará que se abre para as relações entre o Brasil e os Estados Unidos da América uma fase nova, e que talvez se revele extremamente árdua e delicada, pois o Departamento de Estado procura, visivelmente, manter a América Latina numa posição de inferioridade, condicionando o seu desenvolvimento à capacidade exclusiva dos investimentos privados2.

Travava-se, assim, antes de findar a década de 1940, aprimeira grande batalha entre o modelo autonomista de desenvolvimento latino e a hegemonia dominadora da economia norte-americana. Essa luta de concepções econômicas não opunha tão-somente os Estados Unidos à América Latina como se fossem defensores estanques de doutrinas antagônicas. No interior das sociedades latino-americanas, esses modos distintos de fazer política e organizar a economia dividiam profundamente a opinião pública e o pensamento das lideranças sociais. A tese norte-americana da liberdade econômica ilimitada e irrestrita recolhia o apoio dos segmentos socialmente hegemônicos tradicionais e de seus ideólogos, cujos interesses consistiam em manter as vantagens que desfrutavam ao tempo da economia primária exportadora e do mercado aberto. A bandeira do desenvolvimento autônomo era desfraldada por tecnocratas, burguesias nacionais, massas urbanas, bem como por seus ideólogos, cujos interesses centravam-se na expansão do emprego, da renda e do consumo, ou seja, na conversão da economia em uma moderna economia industrial e de serviços3. A Câmara Argentina de Comércio, refúgio de conservadores oriundos da velha oligarquia agrária, em nota enviada ao Conselho Econômico Nacional em maio de 1950, descreveu e criticou o modelo argentino de desenvolvimento e sugeriu-lhe mudanças, na linha das Carlos Alves de Souza a Cyro de Freitas-Valle, ofício, Havana, 14 jun. 1949, AHIBR caixa 1. 3 Smith (1996); Rapoport, Spiguel (1994); Vianna, Sérgio Besserman. Apolítica econômica no segundo governo Vargas (1951-1954). Rio de Janeiro : BNDES, 1987. Hirst, Mônica. O pragmatismo impossível: a política externa do segundo governo Vargas (1951-1954). Rio de Janeiro: FGV, 1990. Silva, Alexandra de Mello e. A política externa de JK: Operação PanAmericana. Rio de Janeiro: FGV, 1992. 2

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concepções enunciadas pelos documentos do Departamento de Estado. A nota constitui uma apologia da liberdade econômica e uma condenação do dirigismo estatal. Segundo esses comerciantes argentinos, a onda dirigista que se generalizou no século XX teria provocado distorções nocivas ao desempenho da economia e nela caiu a Argentina, cujos dirigentes foram afastando o país dos princípios do comércio livre. Os passos dessa evolução foram o controle do câmbio e, depois, o controle dos preços de mercado. O esforço voltou-se para a manutenção dos preços, afastando-se do aumento da produção e do intercâmbio. Indústrias tornaram-se obsoletas, como as usinas de açúcar deTucumán, determinando o recurso aos subsídios, uma solução instantânea, porém antieconômica. Acorreção de rumos do modelo de desenvolvimento comportaria o abandono da mentalidade estatista, cuja origem remonta ao socialismo e ao marxismo, e a recuperação dos princípios da liberdade econômica. Concretamente, para a Argentina de 1950, convinha abolir todos os controles do câmbio e dos preços no mercado interno, como também conter as despesas públicas4. Quase nada separava esses pensadores argentinos de 1950 dos políticos que, em 1989, ascenderiam ao poder para aplicar medidas liberais de desnacionalização e de desmonte industrial, ou seja, de regresso à infância de uma sociedade pastoril e mais uma vez sob o influxo de doutrinas engendradas nos centros do pensamento liberal para serem aplicadas na periferia. Mas conservadores havia em toda parte, não apenas na Argentina. Vargas haveria de enfrentá-los com dificuldades, ao regressar ao governo em 1951. Retomou então as diretrizes de sua política exterior, muito próximas daquelas cultivadas pela Argentina de Perón. Seu principal objetivo era o aparelhamento econômico e industrial do país, mas não descurava, obviamente, a defesa nacional e continental. Em março de 1951 convocou-se para Washington a IV Reunião dos Chanceleres Americanos, em virtude do conflito na Coréia. Os resultados da reunião foram decepcionantes, em razão da contraditória política norte-americana de descaso pelo desenvolvimento latino-americano e 4

La Prensa, Buenos Aires, 23 maio 1950, AHI, lata 2050, maço 37712.

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de cooptação dos países da região para a guerra contra o comunismo. Se os norte-americanos obtiveram uma declaração de solidariedade, não lograram mais do que isso, porquanto a América Latina apenas se dispunha a endossar a ação da ONU para reprimir a investida soviética na Coréia ou em outras partes. Os resultados da IV Reunião dos Chanceleres Americanos e a subseqüente reunião da Comissão Econômica para a América Latina deram ensejo, em meados de 1951, a manifestações em torno do modelo de desenvolvimento latino-americano. Vargas e Perón concordavam em que, para fazer face aos problemas de segurança, convinha robustecer a estrutura econômica do país de tal modo que pudesse suportar as anomalias do período e prover-se de meios de segurança5. O governo argentino sentiu-se fortalecido e seguro em sua estratégia que buscava lograr a autonomia econômica e eliminar a dependência externa, reduzindo as inversões estrangeiras, produzindo insumos básicos como petróleo e carvão, apoiando a produção agrícola de exportação, estabelecendo uma indústria de transformação capaz de cobrir as necessidades de bens manufaturados, ampliando a marinha mercante e promovendo pesquisas em setores avançados como a física nuclear. Em síntese, a reação diante do desinteresse norte-americano em investir na América Latina estaria na busca da auto-suficiência econômica nos setores fundamentais da produção e dos serviços. Pretendia-se mais: o peronismo alçava a bandeira da luta contra o predomínio de Wall Street e o imperialismo do dólar6. A documentação de política internacional revela que o conceito de modelo substitutivo de importações com que os economistas latinoamericanos definiram o pensamento da Cepal e as políticas de desenvolvimento dos Estados latinos desde a Segunda Guerra corresponde a uma formulação da teoria econômica que não encontra respaldo empírico na História. O que se pretendia realizar nos anos 50 e nas décadas a seguir não equivalia a uma decisão negativa de substituir Relatório, 1951, v. I, p. 7-13. Legação do Brasil a João Neves da Fontoura, ofício, Buenos Aires, 7 jun. 1951, AHIBR, caixa 30. 5 6

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alguma coisa, mas a um projeto positivo de construir outra economia e outra sociedade, moderna e desenvolvida. Se houvesse sido submetido à crítica e ao desmonte pelo pensamento econômico, o conceito de modelo substitutivo de importações não haveria de servir, como ocorreu nos anos 90, de arma de combate aos avanços de meio século, que os governos neoliberais consideraram obstrução ao progresso, ignorando que, durante o século e meio que antecedeu o Estado desenvolvimentista, a aplicação ortodoxa de doutrinas liberais impostas pelas matrizes capitalistas à periferia fez com que a América Latina permanecesse estagnada. No final de 1957, a imprensa venezuelana veiculava rumores de um movimento de integração econômica da América Latina. El Universal publicou matéria de H. Perez Dupuy em estilo arrogante, com críticas severas à criação de um mercado comum regional, visto que a Venezuela, cujo desenvolvimento e nível de vida eram incomparavelmente superiores aos demaispaíses, somente teria a perder, associando-se de uma forma ou de outra a países em bancarrota7. O governo venezuelano, com efeito, surpreendeu-secom a iniciativa do presidente brasileiro, Juscelino Kubitschek, que escreveu ao presidente em 1958, Consultou de revelar sua Eisenhower,inúmeros propondo, governos e especialistas, a Operação antes Pan-Americana. posição. Após firmar uma declaração conjunta com a Colômbia e o Equador, a chancelaria venezuelana voltou atrás em sua disposição de apoiar o estabelecimento de um mercado comum latino-americano. Aimprensado paíspartiu em guerra contra a proposta, que considerava a ruína da nascente indústria nacional8. Atitudes desencontradas cruzavam os ares da América do Sul diante de questões como a integração e a formação do mercado comum, sejapelo risco que tais iniciativas trariam ao nível de vida, pretensamente desigual entre os países, seja porque não se coadunavam com o modelo fechado e de busca de auto-suficiência econômica que se espalhava. A 7 Oscar Pires do Rio a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Caracas, 11 dez. 1957, AHIBR, caixa 40. 8 Oscar Pires do Rio a Francisco Negrão de Lima, ofícios, Caracas, 12 jul. e 31 out. 1958, AHIBR, caixa 40.

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abertura do mercado de consumo à importação, mesmo regulada pela integração regional, era por vezes, vista como fator nocivo ao desenvolvimento. A Venezuela parecia substituir, ao findar adécadade 1950, a empáfia argentina da época do peronismo. Contava entre os países que alimentavam desprezo pelas iniciativas de outros países e, sobretudo, combatia a idéia da integração. Seu ministro das Relações Exteriores, Ignacio Luis Arcaya, atribuiu a si e ao presidente Fidel Castro o mérito da conversão do pan-americanismo em um movimento de articulação dos interesses latinos, por trás da retórica tradicional, denotando visível desprezo pela iniciativa de Kubitschek. Quanto ao mercado comum latino-americano, idêntico tratamento recebeu do chanceler: uma iniciativa sem criatividade que andava na esteira dos europeus, por falta de pensamento próprio. Destilava-se, de seu discurso, o despeito que sentia pela projeção de outros países em âmbito regional, e este era mais um obstáculo concreto que se acrescentava à possível união de esforços dos diversos países para implementar o modelo regional de desenvolvimento9. O desenvolvimento latino produziu distorções desde a origem, primeiro porque não foi capaz de articular-se adequadamente com as forças econômicas do Ocidente liberal, ao acentuar a auto-suficiência horizontal das unidades nacionais; segundo porque recusou-se à integração de esforços das mesmas unidades que teria robustecido sua estratégia pela ampliação do mercado. Ao sul do continente, a instabilidade das nações evidenciava outras perspectivas de união e desagregação, distintas das visões venezuelanas. A neutralidade argentina durante a Segunda Guerra foi precursora da 3ª Posição, a política exterior do peronismo, que não significava eqüidistância dos pólos americano e soviético, mesmo porque a Argentina inseriu-se no mundo ocidental, mas prenúncio do movimento dos países não-alinhados. A experiência peronista de desenvolvimento haveria de malograr em razão do impasse causado pelo desequilíbrio estrutural entre boa infra-estrutura agrícola disponível e ausência de bases sólidas para a superestrutura industrial moderna. 9

Idem, ofício, Caracas, 12 maio 1959, AHIBR, caixa 40.

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Por tal razão, governos posteriores a 1955, queda do primeiro peronismo, entenderam que havia veleidade isolacionista e autárquica no modo como se conduzia o processo de industrialização do país e quiseram voltar ao mercado aberto e intensificar suas relações com o resto do mundo, em particular com o continente. A recuperação do realismo político por Arturo Frondizi inclinou a Argentina ao alinhamento de posições com o Brasil, país de tradição desenvolvimentista, porém aberta à cooperação estrangeira. Mas foi a filosofia política que vinculou ambos os países: a política exterior passou a centrar-se nos imperativos do desenvolvimento como condição para realização do projeto nacional. O corolário de tal filosofia implicava o descomprometimento na Guerra Fria, ou seja, uma eqüidistância relativa e crítica diante do conflito ideológico e militar entre as duas superpotências mundiais e a solidariedade com o resto do mundo subdesenvolvido. Implicava a convicção de que a superação do atraso era o caminho para a eliminação dos focos de tensão internacional. Uma política exterior feita com cautela, movendo-se entre a contraposta e dupla solidariedade com o mundo ocidental e com o mundo subdesenvolvido. Essas premissas explicam a convergência de visões de mundo que inspirou, em 1958, a aliança entre Brasil e Argentina, consubstanciada na Operação Pan-Americana e nos acordos de Uruguaiana. A solidariedade com o Ocidente correspondia então à expectativa de cooperação como preço da reciprocidade e a solidariedade com o mundo subdesenvolvido tinha como premissa a construção da comunidade latino-americana. Brasil e Argentina compartilhavam, pois, à época de Kubitschek e Frondizi, a visão de mundo da solidariedade ocidental conjugada às necessidades de desenvolvimento, cuja expressão realista era a superação do antiamericanismo e a inauguração do diálogo construtivo com os Estados Unidos. O neutralismo potencial implícito nesse pensamento político significava a possibilidade de a América Latina desviar-se para o terceirismo neutralista do movimento dos países nãoalinhados, caso o Ocidente se recusasse aos apelos de cooperação para o desenvolvimento. A OPA agregava de revolucionário ao pensamento latino aplicado à política exterior as idéias de solidariedade aos Estados Unidos, 106

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condicionada à cooperação para o desenvolvimento econômico e de repulsa à intervenção no contexto da Guerra Fria, como remédio aos males do subdesenvolvimento. A viabilidade dessa política exterior dependia da união dos latinos em torno a esses princípios e de seu reconhecimento pelos Estados Unidos, o que parecia utópico. Brasil e Argentina haviam chegado a essa encruzilhada comum por caminhos diversos, que lançavam raízes nas heranças de Vargas e Perón. Não conviria, para erradicar o caráter utópico da OPA, pensar na união do Cone Sul para desviar a atenção dos Estados Unidos, que se concentrava no Caribe? Uruguaiana representou a pedra angular da nova política e a virada cubana para o comunismo seu teste. A comunhão de pontos de vista e de interesses argentino-brasileiros, alicerçada em sólidas e crescentes relações bilaterais, à qual se achegariam paulatinamente Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia, representaria, no plano internacional, um incremento à capacidade de negociação e uma contra-ação à política norte-americana de balcanização da América Latina. A derrocada do governo de Frondizi, em meados de 1962, interrompeu a política coincidente que vinham adotando Brasil e Argentina nos planos interamericanos, com a Operação Pan-Americana, e mundial, com o neutralismo potencial. Enquanto para Frondizi o ocidentalismo era, antes de tudo, um poder de barganha a utilizar de forma pragmática em favor do desenvolvimento nacional, para o regime militar de José María Guido, que o substituiu, esse ocidentalismo implicava um ingresso ativo e resoluto no campo da Guerra Fria. Ressurgiam, pois, forças retrógradas que bloqueavam o movimento de união latina e o concerto para o desenvolvimento, reorientando a política para a consecução de dois objetivos: o combate às esquerdas no plano interno e externo e a obtenção de alguns ganhos da Aliança para o Progresso ou de investimentos privados estrangeiros. O atentado contra a política desenvolvimentista de Frondizi e contra seu governo foi orquestrado, segundo a legação brasileira em Buenos Aires, por interesses nacionais e estrangeiros que se sentiam lesados com a conversão da estrutura agropecuária em uma economia agroindustrial, com crescimento autônomo. Com relação ao Brasil, a inflexão provocou o desmoronamento do espírito de Uruguaiana e a 107

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volta da política de suspicácia e emulação; com relação ao continente, a desvinculação argentina das causas latinas e sua submissão servil à ação norte-americana. Volta ao passado liberal-conservador e obstrução do modelo de desenvolvimento autônomo eram apregoados com vigor pelo novo ministro de Relações Exteriores, Bonifácio del Carril. A chancelaria brasileira via então esvair-se em sonho seu ideal de convergência das posições dos países da região e digeria o conselho de seu representante em Buenos Aires: Nada esperar deste governo, mas de modo algum hostilizá-lo, porquanto a manutenção de, pelo menos, relações diplomáticas boas entre Brasil e Argentina, constitui imperativo estratégico elementar não só para os dois países em particular, como para o resto da América Latina, em conjunto10.

A 10ª reunião da Cepal realizada em Mar del Plata e encerrada a 17 de maio de 1963 preparou as chancelarias latino-americanas para instruir suas delegações à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento convocada para o ano seguinte em Genebra. AAmérica Latina tinha mais uma vez a ocasião, enão a perderia, de unir seu pensamento e franquear ao órgão multilateral universal suas concepções de uma ordem internacional que pretendia desvinculada do conflito geopolítico e aberta ao diálogo e à cooperação para o desenvolvimento. Mas a natureza dos regimes políticos, uns democráticos ou esquerdistas, outros militares ou direitistas, causava dificuldades à união, alcançada apenas e por vezes nos foros multilaterais regionais. Acriação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), pelo Tratado de Montevidéu de 1960, surpreendeu o governo e o setor privado da Venezuela, que procederam, como em outras ocasiões, a consultas multidirigidas junto a outros países com o intuito de averiguar a possibilidade de adesão ao mesmo11. O bom funcionamento da Alalc, desde seus primeiros anos, esteve comprometido pela natureza fechada e protecionista do modelo de desenvolvimento 10

Legação do Brasil a San Tiago Dantas, ofício, Buenos Aires, 16 jun. 1962, AHIBR, caixa 4. Corrêa do Lago a Hermes Lima, ofício. Caracas, 10 abr. 1963, AHIBR, caixa41.

11 Antônio

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adotado isoladamente pelos seus membros, pela competição por pequenas áreas de preeminência entre os grandes países da América do Sul e pela dificuldade de compartilhar interesses. Em 1966, a imprensa argentina, comentando pronunciamentos das autoridades e das lideranças empresariais, atribuiu grande importância à necessidade de converter o Tratado de Montevidéu em instrumento suficientemente flexível para que os Estados membros exercessem a liberdade de concertar ajustes e acordos necessários à realização de seus interesses. Reconhecia-se, assim, que o estatuto rígido e utópico da Associação era também obstáculo a seu funcionamento. O chefe da delegação argentina ao VI período de sessões da Alalc afirmou, em 1966, que antes de defender a associação era mister defender a Argentina. Supunha-se, então, que a liberalização comercial seguida na Associação Latino-Americana de Livre Comércio representava uma ameaça à sobrevivência de muitas indústrias argentinas, daí a necessidade de “defender a Argentina”12. Uma guerra comercial estava se iniciando dentro da Alalc, segundo essa mesma imprensa argentina, decorrente da intenção brasileira de utilizar o Tratado de Montevidéu como instrumento para solapar uma suposta hegemonia argentina no Cone Sul do continente13. Argumentava-se, contudo, em favor da expansão do comércio bilateral, sem atinar-se que ele era, além de favorável ao Brasil, um comércio não competitivo. Com efeito, os três principais produtos argentinos de exportação para o Brasil em ordem decrescente de valor eram o trigo (83% do total), a maçã e o azeite de oliva, e de importação provinda do Brasil, na mesma ordem, as madeiras (69% do total), osprodutos siderúrgicos e o café14. Os governos latino-americanos, até o início dos anos 70, haviam dedicado pouca atenção à ciência e à tecnologia como variáveis agregadas ao modelo de desenvolvimento. Em maio de 1972, realizouse, em Brasília, a Conferência Interamericana Especializada sobre a Aplicação de Ciência e Tecnologia ao Desenvolvimento da América Décio de Moura a Juracy Magalhães, ofício, Buenos Aires, 11 nov. 1966, AHIBR, caixa 33. 13 El Cronista Comercial, Buenos Aires, 23 nov. 1966. AHIBR, caixa 33. 14 Legação do Brasil ao MRE, relatório, Buenos Aires, 24 nov. 1966, AHIBR, caixa 33. 12

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Latina, que teve origem nas negociações do Consenso de Viña del Mar. O seu objetivo consistiu em identificar elementos e ações regionais e nacionais que possibilitassem a aceleração do desenvolvimento latinoamericano através da efetiva produção, adaptação e utilização da ciência e da tecnologia. O maior interessado era então o próprio Brasil, que atravessava um período de acelerado crescimento econômico, cuja sustentação dependia da apropriação e da aplicação da ciência e da tecnologia ao processo de desenvolvimento. Contudo, manifestando ainda aquele matiz dependentista do modelo de desenvolvimento, a América Latina confiava ao estrangeiro a responsabilidade de produzir ciência e tecnologia e requeria, como se fosse um direito, sua transferência15. Essa característica de dependência do modelo somente seria enfrentada anos depois, com o envolvimento de alguns países na geração de tecnologias próprias. O agregado científico ao modelo latino-americano de desenvolvimento acentuou seu estatismo. Não por exigência filosófica ou política mas por contingência histórica. As empresas privadas nacionais eram de pequeno porte e atuavam em áreas subsidiárias, sobretudo da indústria de transformação, constituída praticamente toda de empresas estrangeiras sediadas nos países. Foram, pois, as empresas estatais de grande porte, que operavam no setor da energia elétrica, do petróleo, da siderurgia, da produção de meios de defesa e, mais tarde, das comunicações, da aeronáutica e espacial que se voltaram para a geração de tecnologias. Ao lado delas, universidades, institutos e fundações, também públicas, iriam promover a pesquisa pura ou a pesquisa aplicada a médio prazo, como a pesquisa agrícola. O risco sempre existiu, como aquele sentido pela Venezuela, em 1975, por ocasião da nacionalização definitiva do petróleo, de malograr na apropriação do conhecimento e da tecnologia requeridos por empresas de grande porte, mas não havia outro caminho que fortalecesse o modelo de desenvolvimento, conferindo-lhe a progressiva autonomia sistêmica. Aidéia de associar empresas nacionais de diferentes países, a 15 Secretaria de Estado das Relações Exteriores à embaixada em Buenos Aires, despacho, Brasília, 26 abr. 1972, AHIBR, caixa 13.

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Petroven com a Petrobrás, por exemplo, inaugurando uma cooperação no setor avançado, era aventada a cada ocasião em que grandes projetos vinham a público, antes que a ideologia neoliberal contaminasse a inteligência política dos governos dos anos 9016. De modo geral, os países que se desenvolveram no quadro do capitalismo liberal, tanto na Europa, com exceção da Inglaterra, como no Oriente e nos Estados Unidos, passaram por idêntica fase de introspecção econômica, que muitos apelidaram de economia de isolamento ou, no caso latino-americano, modelo substitutivo de importações. Essa fase foi sempre considerada indispensável para o reforço da economia nacional e precedeu a fase de abertura para conquista dos mercados externos. A diferença que houve entre a América Latina e as outras três regiões dinâmicas do capitalismo esteve na incapacidade do desenvolvimentismo de promover o surgimento de grandes empresas com tecnologias próprias. A grande exceção foram as empresas estatais brasileiras. Ao iniciar-se o processo de privatizações nos anos 90, essas empresas poderiam ter servido de apoio para alguns empreendimentos nacionais ou regionais se projetarem globalmente, alcançando a envergadura e a competitividade sistêmica. Foram, contudo, as autoridades econômicas responsáveis pelo comando das decisões estratégicas no Brasil e em outros países latino-americanos que, ao se submeterem à ideologia do neoliberalismo divulgada desde as matrizes do capitalismo, como aquela das portas abertas, no início do século XIX, para reger as economias periféricas, que, ao final do século XX, deitaram a perder a oportunidade. Aprosseguir tal política, a América Latina haverá de esperar, talvez por mais um século, para erguer novamente algum empreendimento de caráter local, com capacidade produtiva de escala, tecnologia própria e condições de competitividade sistêmica, se quiser galgar o último estágio do desenvolvimento. Depois de quinhentos anos de periferia, a falência do desenvolvimentismo no final do século XX parecia sugerir que a América Latina não tinha outra opção senão regredir a sua infância 16

Lucillo Haddock Lobo ao MRE, ofício, Caracas, 29 ago. 1975, AHIBR, caixa 51.

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social e econômica e essa era a sorte que lhe reservava a onda devastadora do neoliberalismo17.

3.2. A inserção internacional da América Latina entre a Guerra .ria e a cooperação Em 1947, ano em que se anunciava o Plano Marshall de ajuda norte-americana para a reconstrução da Europa, a América Latina cedia, durante a Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz e da Segurança no Continente, realizada em Petrópolis, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), possibilitando o passo inicial do sistema norte-americano de alianças do pós-guerra para contenção do comunismo. Nesse mesmo ano, o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com a União Soviética e cassou o Partido Comunista Brasileiro. Apresentou-se, ademais, como sócio fundador do Gatt e emprestou ao governo norte-americano incondicional apoio na determinação da nova ordem internacional do pós-guerra, pautada pelo liberalismo ilimitado sob o aspecto econômico e político e pelas fronteiras ideológicas sob o aspecto estratégico. No ano seguinte, em decorrência da Conferência de Petrópolis – dita também do Rio de Janeiro – aprovou-se, na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA). Estava, pois, o continente americano enquadrado estrategica mente na esfera de influência dos Estados Unidos, sem haver para tanto tirado vantagem econômica alguma, a não ser que se considere a criação, em 1948, no âmbito do sistema das Nações Unidas, da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), um ganho concreto. Quando se preparava, em 1947, a Conferência do Rio de Janeiro para enquadrar a América Latina no sistema norte-americano de alianças do pós-guerra, a Argentina peronista era o único país disposto a barganhar com a potência hegemônica da área algo em troca da adesão da região a uma frente comum de países do continente face à ameaça Guimarães, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia; uma contribuição ao estudo da política internacional. Porto Alegre: UFRGS, 1999.

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comunista. Não havendo então disposição coletiva para tal, pleiteou, individualmente, a supremacia naval na distribuição de forças entre os países da América do Sul e o afastamento do princípio da uniformização dos armamentos a depender da ajuda e fornecimento dos Estados Unidos18. As pretensões argentinas não se assentavam, todavia, no realismo do pós-guerra. Com efeito, apenas os Estados Unidos estavam em condições de fornecer ao país platino não somente armamentos, como os outros meios com que implementar o audacioso plano econômico qüinqüenal. Com esse intuito, fora contratado, como conselheiro técnico, o general norte-americano Lord, um verdadeiro representantevendedor da indústria norte-americana de tratores, caminhões, vagões, dragas, carros-tanques, máquinas para construção e armas. Inúmeros homens de negócios de ambos os lados relacionados com os governos, incluindo diplomatas e autoridades aposentados, acorriam a Buenos Aires e aos Estados Unidos, depois que o embaixador George S. Messersmith removera os entulhos antepostos ao caminho dos negócios pelo radicalismo político do subsecretário de Estado SpruilleBraden19. Sendo a presença norte-americana tão avassaladora sobre a América Latina no pós-guerra, as relações entre as partes tenderiam a evidenciar não mais a interdependência que existiu durante a guerra, mas a dominação econômica e ideológica. Seria, contudo, um erro atribuir à ação norte-americana o anticomunismo latino, visto que à tradicional opinião liberal e cristã repugnava a ideologia marxista. Ademais, a diplomacia fazia circular pelos países um grande volume de informações acerca de planos ou supostos planos de infiltração comunista sob orientação de Moscou, o que levantava preocupações legítimas por parte dos governos. Exemplo de informação a respeito da infiltração comunista é fornecido por José Roberto de Macedo Soares, embaixador brasileiro em Montevidéu. Em 1948, comunicou esse diplomata ao Itamaraty a existência de um plano de ação oriundo da legação soviética em Montevidéu, que instruía os comunistas 18 19

Legação do Brasil ao MRE, ofícios, Buenos Aires, 23 jun. e 2 jul. 1947, AHIBR, caixa 1 Oswaldo Fruet a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 23 dez. 1947, AHIBR, caixa 21.

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brasileiros a promoverem apreparação de um golpe de Estado destinado à tomada do poder e à execução sumária dos chefes de governo derrubados, à semelhança da malograda intentona comunista de 1935. Qualquer encontro entre autoridades argentinas e soviéticas levantava suspeita de alianças que a imprensa alardeava com especulações alarmistas, como fazia o periódico uruguaio El Pais, em outubro de 1949, após um jantar oferecido pelo chanceler soviético ao delegado argentino nas Nações Unidas: uma entente entre o comunismo staliniano e o justicialismo peronista não seria capaz de neutralizar o Plano Marshall ou o Pacto Atlântico, questionava?20. Em meio a essas pressões externas oriundas de Moscou e de Washington, entre o liberalismo e o comunismo, a América Latina inclinava-separao lado ocidental, dando provas disso e amiúde o regime mais autonomista que era o peronismo. No início de 1949, Perón condecorou o general Harry Vaughan, assessor do presidente Truman. Assim mesmo, o Washington Post, que ainda refletia a alergia da imprensa norte-americana pelo peronismo, serviu-se do fato para denegrir a imagem da Argentina, que qualificava como sendo a nação mais antidemocrática e antiamericana do continente21. Nas percepções da opinião americana, tão natural era vista a adesão da América Latina à causa ocidental, sob condução dos Estados Unidos, que qualquer dissensão de qualquer natureza causava espécie nos meios de comunicação. Quando se gestava, após o Tiar, o pacto de segurança do Atlântico norte, firmado em abril de 1949, em Washington, Maurício Nabuco sugeria ao Brasil buscar a adesão à futura Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Argumentava o representante brasileiro que essa adesão lhe convinha tanto em termos globais como regionais sob todos os ângulos: estratégico, financeiro e político. Ela reforçaria, ademais, os vínculos de cooperação historicamente mantidos com os Estados Unidos. Mas o próprio diplomata brasileiro reconhecia a inviabilidade da inclusão do Brasil na Otan, primeiro porque seria José Roberto de Macedo Soares a Raul Fernandes, ofícios, Montevidéu, 22 abr. 1948 e 10 out. 1949, AHIBR, caixa 1. 21 Maurício Nabuco ao MRE, telegrama, Washington, 16 fev. 1949, AHI, lata 2122, maço 37966. 20

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recusada pelo Departamento de Estado, estando o Brasil, como Estado americano, garantido contra uma agressão soviética pelo Tratado do Rio de Janeiro, o Tiar, e, segundo, porque sua adesão poderia provocar reações em outros países do continente22. Assim mesmo, estava correta a interpretação de Maurício Nabuco: ao invés de um lugar privilegiado no Conselho de Segurança da ONU, melhor teria convindo aos interesses do Brasil à época ter sido aceito como membro da aliança atlântica, condição à qual sua participação na guerra lhe dava certo direito. Contudo, a diplomacia submissa do governo de Eurico Gaspar Dutra facilmente concordava com as decisões norte-americanas que diziam respeito à criação das instituições da ordem bipolar e do mundo liberal. Diluiu-se, pois, na segunda metade dos anos 40, a capacidade latina de barganhar algum ganho concreto em troca da aliança anticomunista no contexto da Guerra Fria e conformavam-se os países da região com a hegemonia norte-americana, aceita, quando não considerada natural. O país mais servil, o Brasil, amargou profundas frustrações por não alcançar recompensa econômica nem pela cooperação de guerra nem pelo concurso que prestou à implantação da nova ordem internacional. Amalograda viagem de Dutra aos Estados Unidos, em 1949, firmou essa consciência, que logo depois se traduziu na vitória eleitoral de Getúlio Vargas, o líder capaz de negociar interesses nacionais com mais firmeza23. Um dos fatores que acentuou a incapacidade de negociar, evidenciada pelas chancelarias da região quando se engendrou o enquadramento latino-americano na ordem do pós-guerra, adveio da ausência de visão comum e de percepção de interesses coletivos. O movimento das diplomacias latino-americanas entre os blocos ideológicos e suas pressões, embora se inclinasse para o lado da hegemonia norte-americana, denotava nos anos imediatos do pós-guerra mais emulação em busca de vantagens nacionais do que coesão que pudesse reforçar o poder de negociação da região, em busca de alguma vantagem coletiva, como aconteceu com a adesão da Europa à Otan. 22 23

Maurício Nabuco a Raul Fernandes, ofício, Washington, 17 fev. 1949, AHIBR, caixa 1. Moura ( 1991); Moniz Bandeira ( 1998).

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O peronismo era a referência constante das chancelarias, mas estas viam nele o espantalho da possível união dos países e não uma força comum. A imprensa de vários países refletia essa visão das chancelarias amesquinhada pelo temor da dominação política e da expansão econômica da Argentina peronista. Os latinos não se davam conta de que o comprometimento da unidade era o que mais os prejudicava e o que mais convinha, por outro lado, aos interesses norte-americanos, econômicos e estratégicos, que assim lograram converter sem custos o subcontinente em reserva de potência. Se os objetivos de Perón na América Latina eram concretos, fora da área visavam sobretudo realçar o prestígio político. Assim devese entender a visita de Eva Perón à Europa em 1947. Seu maior sucesso alcançou-se na Espanha, com a qual nesse ano Perón firmou tratados financeiros e econômicos, vendo reconhecido o caráter flexível e realista de sua política econômica com o exterior. Em outubro de 1948, o ministro espanhol das Relações Exteriores foi a Buenos Aires retribuir a visita da primeira dama e assinou outros quatro convênios que reforçavam as relações culturais e políticas bilaterais. Para Cyro de Freitas-Valle, embaixador brasileiro em Buenos Aires, a intensificação das relações bilaterais tinha por objetivo imediato realçar o prestígio de ambos os governos e fortalecer a situação interna de cada um em proveito das instituições que advogavam e defendiam. Tanto é verdade que toda essa movimentação diplomática não produzia efeitos sobre a grande reivindicação argentina que era a liberação de recursos congelados por Franco, que a Argentina procurava recuperar para ultimar a liquidação de interesses britânicos no país. Em meados dos anos 50, estando ainda pendentes de pagamentos essas somas, a pretexto de uma aproximação entre a Espanha e os Estados Unidos, a cordialidade cedeu e o clima das relações bilaterais tornou-se hostil24. Perón era abertamente hostilizado pela imprensa suíça, durante seu primeiro mandato. A balança do comércio registrava belos Cyro de Freitas-Valle a Hildebrando Accioly, ofício, Buenos Aires, 28 out. 1948, AHI, armário, maço 45496; Rubens Ferreira de Mello a Raul Fernandes, ofício, Madri, 16 ago. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712; Rubens Ferreira de Mello ao MRE, telegrama, Madri, 19 out. 1954, AHI, armário, maço 45496. 24

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excedentes de francos em favor da Argentina, que se negava a autorizar a transferência de fundos aplicados no país pelos credores helvéticos, preferindo transformá-los em dólares a serem empregados em aquisições nos Estados Unidos. Em outros termos, a liberação de fundos bloqueados que a Argentina cobrava de outros países, como Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, negava-se ela mesma a conceder. Nos meados dos anos 50, ridicularizava-se, na Suíça, a ambição da Argentina em substituir o Brasil como aliado especial dos Estados Unidos, em um momento em que, diante da liberdade de ação dos capitais internacionais, Vargas acentuava os controles e Perón relaxava, com o intuito de desviar seu curso para si25. As dificuldades nas relações da Argentina com a França eram similares, porque viciadas pela busca de prestígio e pela incoerência diplomática. Com efeito, a Argentina quase nada comprava à França, cuja reconstrução econômica aumentava a capacidade exportadora de sua indústria. Apesar disso, Perón convidou o presidente do Partido Trabalhista Francês e com ele firmou um contrato por meio do qual se comprometeu a fornecer um subsídio mensal, com o intuito de vê-lo galgar o poder e instaurar na França um regime similar ao justicialismo. Quando soube, logo depois, que aquele partido era irrelevante, deixou de cumprir o acordado. Em outubro de 1950, Le Mondepublicou extensa matéria esclarecendo aos franceses o significado da 3ª Posição em política internacional. A Câmara de Comércio Francesa de Buenos Aires denunciou por essa época o descumprimento de estipulações firmadas pela Argentina nos acordos econômicos com a França. Os fundos franceses eram arbitrariamente bloqueados e a balança comercial desfavorável. Essas reclamações de descumprimento de obrigações contratuais eram comuns e afetavam negativamente a imagem da Argentina em grande número de países26. 25 Gazette de Lausanne, 22 maio 1948 e 9 dez. 1949; José Roberto de Macedo Soares ao MRE, telegrama, Montevidéu, 4, dez. 1948, AHI, lata 2090, maço 37712. Francisco d’Alamo Lousada ao MRE, telegrama, Berna, 15 fev. 1954, AHI, armário, maço 45497. 26 Cyro de Freitas-Valle a Hildebrando Accioly, ofício, Buenos Aires, 22 out. 1948, AHI, lata 2090, maço 37712.Carlos Martins Ferreira de Sousa ao MRE, telegrama, Paris, 26 jun. 1949, AHI, armário, maço 45496. Milton de F. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 4 abr. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. LeMonde, 20 out. 1950, AHI, lata 2122, maço 37966.

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Em 1947, com efeito, Perón adotara uma medida de caráter geral, unilateral e arbitrária, bloqueando no Banco Central de Buenos Aires os fundos estrangeiros, a despeito de acordos anteriormente concluídos. Em represália, a Bélgica suspendeu os créditos às exportações para a Argentina e essa veio a impor restrições às importações provenientes da Bélgica. O regime de Perón sofria reveses em sua imagem. AHolanda protelou a elevação de sua legação em Buenos Aires ao nível de embaixada, não permitindo que os argentinos fizessem o mesmo em Haia, em razão de “certos aspectos da política peronista, aqui considerados de perigoso caráter fascista”, na interpretação da embaixada brasileira na Holanda. Somente em 1954 elevou-se a representação diplomática ao nível máximo da hierarquia27. O tratado de comércio entre a Argentina e a Itália, concluído em 1947, enfrentava, em sua aplicação, o problema do congelamento dos fundos, além da escassez de dólares para o pagamento das importações. Essas dificuldades reduziram a quase nada o intercâmbio comercial, embora a Argentina continuasse aceitando imigrantes italianos, cuja corrente atingiu 150 mil durante o biênio 1947-1948. Os efeitos de novas leis fiscais que restringiam ainda mais as remessas e taxavam as importações eram sentidos na Itália como um obstáculo novo à série de medidas que comprimiam as relações econômicas da Argentina com o exterior28. Sem manifestar preocupações diante das reclamações de seus parceiros, escolhidos sem estratégia, a Argentina de Perón nutria uma auto-imagem desmesurada e parecia poder abarcar o mundo com seu prestígio e negócios. Foi o primeiro país sul-americano com o qual o Japão estabeleceu uma linha regular de navegação no pós-guerra. A Argentina passou a alimentar um importante comércio bilateral e a empolgar os japoneses, que lhe vendiam grandes quantidades de ferro e aço, destinados à construção de fábricas e de usinas de fabricação de armas e de energia elétrica, e adquiriam o trigo, as peles, os couros e 27 Consulado do Brasil a Hildebrando P.P. Accioly, ofício, Antuérpia, 26 out. 1948; Ribeiro Guimarães a Raul Fernandes, ofício Antuérpia 18jan. 1950, AHI , lata 2090, maço 37712. Legação do Brasil a Vicente Rao, ofício, Haia, 18 jun. 1954, AHI, armário, maço 45496. 28 Il Giornale d’Itália, Roma, 14jun. 1949; Corriere del Popolo, Gênova, 16fev. 1950;Il Sole, Milão, 23 ago. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712.

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outras matérias-primas. Apropaganda argentina no Japão desencadeou uma pequena corrente migratória, com cerca de 200 japoneses emigrados em 195029. As maiores correntes de negócios que a Argentina do pós-guerra mantinha eram a inglesa, em declínio, e a americana em ascensão. O país platino dispunha de grandes estoques de fundos retidos em Londres. Cogitava-se, em 1948, na utilização de parte desses esterlinos para nacionalizar as estradas de ferro que pertenciam a investidores britânicos. Percebia-se, ademais, que a Grã-Bretanha não tinha condições de atender além de 40% da demanda argentina de máquinas, geradores elétricos, locomotivas, produtos químicos e outros bens. A essa dificuldade de fornecimento somavam-se outras duas: a escassez argentina de dólares e as limitações impostas pelos ingleses às importações de carnes e cereais. Um acordo firmado em maio de 1949 para superar tais impasses resultou paradoxalmente em seu agravamento. A Argentina exigia a conversão em dólares de seus saldos, preços adequados para suas exportações agropecuárias e tratamento paritário com os fornecedores dos domínios britânicos. Não obtinha o que queria e tratava de reconverter a economia agrícola em industrial, estabelecendo controles de câmbio e listas de licenciamento de importações, o que vinha a contrariar os interesses ingleses. Além disso, deslocava seus negócios para os Estados Unidos, de onde provinham créditos e equipamentos. Os negócios britânicos entravam em declínio, com relação à presença que a Grã-Bretanha mantivera na Argentina no passado, prevendo-se para o futuro o minguado papel de compradora de carnes e produtos agrícolas e fornecedora de carvão e combustíveis30. As relações da Argentina com os Estados Unidos, por outro lado, pareciam entrar em nova fase no início de 1950. Após apassagem Gastão P. do Rio Branco a Raul Fernandes, ofício, Tóquio, 23 dez. 1949 e telegrama de 8 set. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. 30 Moniz de Aragão ao MRE, telegramas, Londres, 3jan. 1948, AHI, armário maço 45496. Moniz de Aragão ao MRE, telegrama, Londres, 6 out. 1948, AHI, lata 2090, maço 377712. Milton de F. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 8 mar. 1959, AHIBR caixa 22. Alfredo Polzin a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 12 jan. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. Moniz de Aragão a Raul Fernandes, ofício, Londres, 1º jun. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. LaNación, 24 out. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. 29

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por Buenos Aires do subsecretário de Estado Edward G. Miller, preparava-se a visita do ministro da Fazenda argentino, Ramón A. Cereijo, aos Estados Unidos, com a finalidade de empreender negociações globais sobre as questões pendentes e as modalidades de intensificar rapidamente as relações bilaterais. O necessário aumento das importações argentinas dependia precisamente da disponibilidade de dólares e esta disponibilidade aumentaria unicamente com um aumento das exportações argentinas para o mercado norte-americano. Esperava-se da Comissão Mista Bilateral, cujos trabalhos haviam-se iniciado em Washington em fins de 1949, o encaminhamento dessas negociações gerais que resultariam em um tratado de comércio e amizade. Cereijo previa “uma mais estreita colaboração econômica, o que pressupunha crescente cordialidade política entre as duas nações”31. Essas constataçõesdemonstram que o regime peronista desde sua origem em 1945, com a partida do embaixador Spruille Braden, apesar da retórica antiamericana exibida para fins de prestígio internacional, buscava concretamente e por todos os modos o aumento das relações políticas e econômicas com a potência hegemônica regional, capaz de fornecer créditos e equipamentos com que compensar os baixos fluxos de outras origens e levar em frente seu plano de reconversão econômica. Paraosnorte-americanos, napercepção de Mario Rapoport, “a Argentina de Perón era um enigma e por isso sua política com relação a ela foi contraditória, inicialmente, e de aproximação calculada, quando se consolidou o poder justicialista”. Por outro lado, a documentação diplomática revela o equívoco de se pensar que a Argentina de Perón não tinha consciência do declínio britânico e do necessário reforço da cooperação com os EstadosUnidospara tocar o processo de modernização do país. Havia muito mais interesses de ambos os lados em fomentar essa relação bilateral do que em fomentar intrigas. Braden era o equívoco, Messersmith o bom senso e foi seu pensamento que acabou por triunfar nas decisões políticas e nos fluxos dos negócios32.

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Milton de F. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 21 mar. 1950, AHIBR caixa 25. Rapoport, Spiguel (1994).

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Perón não deixava perplexa apenas a potência hegemônica da área. Nos pequenos países vizinhos à Argentina, associava-se ou confundia-se a propaganda peronista com as agitações comunistas. Em setembro de 1949, Perón convocou o embaixador do Brasil em Buenos Aires, Milton de F. Almeida, ao qual, em longa entrevista, afirmou estarem os comunistas na origem das perturbações que ameaçavam a ordem legal no Chile e na Bolívia e que também causariam proximamente cuidados aos governos do Paraguai e do Uruguai. Desmentiu com convicção as insinuações segundo as quais tais ocorrências deviam-se à iniciativa de seu governo. O presidente chileno, Gonzales Videla, estava equivocado ao apresentar a Argentina como uma ameaça à ordem legal dos pequenos países sul-americanos. Tendo em vista dissociar o peronismo do comunismo, Perón insistiu em três pontos na conversa que teve com o chefe da missão brasileira em Buenos Aires: a completa abstenção de seu governo nas perturbações intestinas ocorridas nospaíses vizinhos; a responsabilidade do Chile pela intriga que apontava o governo argentino como uma ameaça à democracia dos pequenos países; e a eficiência dos serviços argentinos de informação para acompanhar o itinerário de quaisquer iniciativas de governos. Colocou seu ministro das Relações Exteriores à disposição da embaixada brasileira para transmitir-lhe toda informação que necessitasse a tal respeito33. A dezenas de estudantes estrangeiros bolsistas do governo argentino, Perón dizia, dias depois, “que seu regime era qualificado por uns de fascista, por outros de 3ª Posição ou 3ª Força, por outros ainda de comunista, mas que isso pouco importava, ante o fato de estar-se em presença de um regime popular e democrático”34. Entre o Ocidente e o mundo comunista, o governo de Perón fizera clara opção ideológica pelo primeiro. O embaixador brasileiro em Assunção confirmou as informações de Perón acerca das atividades comunistas no Paraguai. Descreveu seu movimento em duas frentes: por um lado, pequenas manifestações Milton de F. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 8 set. 1949, AHIBR caixa 23. 34 Idem, ofício, Buenos Aires, 15 out. 1949, AHI, lata 2122, maço 37966. 33

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relâmpagos para provocar o choque na opinião e, por outro, insidiosas intrigas opondo quer oposicionistas ao governo, quer governos vizinhos contra o Paraguai, ao aventar pretensões de uns contra outros ou contra os interesses do país. O governo paraguaio estava empenhado em adotar medidas de defesa contra as atividades comunistas e buscava para tanto reunir informações sobre providências porventura tomadas a esse respeito por outros países americanos35. Aidéia de articular uma estratégia entre os governos, para fazer face às ameaças de perturbação da ordem por parte da ação de comunistas, tomava corpo. Em abril de 1950, Milton F. de Almeida, embaixador brasileiro em Buenos Aires, manteve longo colóquio com o chefe da Polícia Federal argentina, Arturo Bertollo. Acreditava essa autoridade que, consoante informações de que dispunha, “oscomunistas sul-americanos não esmorecem em seu afã de derrocar as instituições legais e tendem mesmo a redobrar esforços e recorrer à violência para realizar tais propósitos”. Para a polícia argentina, os principais centros orientadores das atividades comunistas na América do Sul situavam-se na França, no México e no Uruguai. Com o intuito de fazer-lhes face, propôs Bertollo uma coordenação de esforços de todos os países, a ser exercida através de um órgão centralizador de informações técnicopoliciais36. A constatação de atividades comunistas, pondo em risco a estabilidade dos governos da América Latina, perpassava a correspon dência diplomática no início dos anos 50. Ela explica o apoio político à guerra que os Estados Unidos faziam na Coréia, mas não induziu a decisão de envolvimento concreto na mesma, que a América Latina pretendia eventualmente negociar em troca de algum ganho econômico. O governo dos Estados Unidos mais de uma vez confundiu esse apoio político com a disposição de enviar tropas ou ceder generosamente materiais estratégicos, levando os governos a desmentir tais intenções37. Júlio Augusto Barboza Carneiro a Raul Fernandes, ofício, Assunção, 23 set. 1949, AHIBR caixa 1. 36 Milton F. de Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 5 abr. 1950, AHIBR caixa 25 37 Idem, ofícios, Buenos Aires, 12e27jul. 1950, AHIBR caixa 26. Huggins, Martha. Polícia e política: relações Estados Unidos/ América Latina. São Paulo: Cortez 1998. 35

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Apenas a Colômbia dispôs-se a colaborar com seus soldados, mesmo assim com base em cálculo de interesse nacional. Outra esfera de contradições da América Latina, ao mover-se entre os termos da ordem bipolar, correspondia, à época, à organização sindical. Em janeiro de 1951, reuniu-se na cidade do México a Conferência de Sindicatos Livres, de caráter anticomunista, com a finalidade de criar um organismo interamericano, filiado à Confederação Internacional de Sindicatos Livres, com sede em Londres. Dominada pelas Confederações americana e canadense, com apoio de organizações de mesmo matiz ideológico de outros países do continente, a Conferência do México obstruiu a participação da CGT argentina, sob pretexto de que aquela organização não correspondia ao tipo de sindicalismo livre, e provocou, em reação, a retirada da conferência da maior organização sindical do México. Assim mesmo, a conferência cumpriu sua agenda, mas deixou clara a divisão do sindicalismo continental. Dois meses depois, grande delegação de sindicalistas mexicanos visitou a Argentina em desagravo. Nessa ocasião, percebeuse a intenção da CGT em coordenar o movimento sindical no continente com o inequívoco intuito de fazer a propaganda do regime peronista, da qual era o braço forte oficial38. A visita de Perón ao Chile em fevereiro de 1953, com a ostensiva divulgação de um plano para realizar a integração econômica e a união aduaneira entre os dois países, foi interpretada com certa frieza pela imprensa e chancelarias dos Estados Unidos e de outros países do continente. Enquanto os governos dos dois países confessavam propósitos grandiosos e revolucionários para o futuro da união sulamericana, a opinião continental manifestava-se com cautela, preferindo reduzir aqueles propósitos a simples estudos tendentes à simplificação de procedimentos e formalidades alfandegárias e fiscais. Ademais, opunha-se ao que interpretava como uma espécie de conquista da hegemonia continental ou de interferência em outros Estados soberanos e com isso concordava a maioria do senado chileno, dominado pela oposição ao presidente Carlos Ibañez del Campo. Na realidade, a Legação do Brasil a Raul Fernandes, ofícios, Buenos Aires, 31 jan., 7 e 22 mar. 1951, AHIBR caixa 28.

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iniciativa correspondia à disposição de Perón de aliar-se com os vizinhos para reforçar a política exterior da 3ª Força, um meio termo entre as vias do comunismo e do capitalismo, que supunha ser mais conveniente para o desenvolvimento dos povos e que reivindicava certa autonomia econômica e politicamente vis-à-vis daqueles modelos clássicos. The Washington Daily News de 9 de março expressou, contudo, outra interpretação do pensamento peronista acerca da iniciativa de seu formulador, vendo nela o propósito da Argentina em criar seu próprio bloco continental para confrontar a presença dos Estados Unidos39. Esta visão confrontante da inteligência norte-americana converteu-se em obstáculo concreto ao triunfo da filosofia de integração que impregnava o pensamento político e as iniciativas do peronismo, uma vez que, àquela época, a capacidade de convencimento e de influência dos Estados Unidos sobre as decisões dos governos latino-americanos suplantava de muito a capacidade argentina. O caráter hostil com que a imprensa norte-americana julgava tradicionalmente o regime de Perón repercutia de duas formas: primeiro, sobre o próprio governo, junto ao qual causavam preocupação suas iniciativas de aproximação com ospaíses vizinhos do Cone Sul; segundo, sobre as chancelarias latinas que recebiam de rotina recortes e resenhas daquela imprensae moldavam por eles suas apreciações. Abrasileira, em especial, criou ojeriza pela idéia peronista de formação de bloco, interpretando-a na linha do aludido TheWashington Daily News. Sabia-se que Vargas tinha fortes simpatias pela idéia integracionista de Perón, mas que não agia por estar preso, por um lado, ao exercício da democracia representativa, que envolvia então o respeito por uma oposição radicalmente antiperonista e, por outro, à necessidade de não hostilizar os Estados Unidos, de onde advinham empréstimos e investimentos destinados à modernização do país. A imprensa norte-americana aludia precisamente ao empréstimo de 39 MRE à embaixada em Santiago, telegrama, Rio de Janeiro, 6 mar. 1953, AHI, armário, maço 39870. Freitas-Valle ao MRE, telegrama, Santiago, 11 mar. 1953, AHI, armário, maço 39870. Baptista Luzardo ao MRE, ofício, Buenos Aires, 22 mar. 1953, AHI armário, maço 39870. Baptista Luzardo ao MRE, telegrama, Buenos Aires, 8 maio 1953, AHI, armário, maço 39870. The Washington Daily News, 9 mar. 1953, AHI, armário, maço 45497.

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trezentos milhões de dólares do Export-Import Bank ao Brasil e aos inúmeros acordos militares firmados pelos Estados Unidos, com países da América do Sul, como instrumentos de contenção da formação do bloco antiamericano sob liderança argentina. Esses e outros equívocos de interpretação, já que obviamente o governo norte-americano não tomava decisões continentais em função do perigo argentino, sempre produziam algum efeito concreto e esse era sem dúvida um dos nefastos resultados de manipulação dos fatos por uma imprensa não comprometida com a verdade. Nos últimos meses de 1953, The New York Times registrou com alívio uma mudança de atitude por parte de Perón no sentido de romper com sua recente política e de buscar a aproximação com os Estados Unidos. Reproduzia “meia verdade”, visto que a Argentina de Perón vinhabuscando os Estados Unidos desde 1945. As explicações do órgão norte-americano de imprensa para a inflexão da política exterior estavam, contudo, corretas, diante das circunstâncias: a resistência de Brasil, Peru e Uruguai às tendências regionalistas do peronismo e o malogro da política econômica que arruinara a agricultura, sem modernizar a indústria, e esvaziara as reservas, obrigando o país a recorrer a investimentos estrangeiros. Após a subida dos republicanos ao poder, manifestações de afeto ao presidente Eisenhower resultaram no envio de seu irmão, Milton Eisenhower, a Buenos Aires, como também em uma missão parlamentar chefiada pelo senador Capehart. Ao ser conhecido o relatório de Milton Eisenhower ao presidente ao termo de sua viagem à América do Sul, TheWashington Daily Newsperguntou se os Estados Unidos não estariam negligenciando a região, sendo em parte responsável, ao frustrar-lhe expectativas, pelas dificuldades de relacionamento. De qualquer forma, em fins de 1953, Perón avançara pelo caminho do entendimento com os Estados Unidos, cuja cooperação buscava com a finalidade de superar desequilíbrios internos provocados pelo seu modelo de desenvolvimento40. João Carlos Moniz ao MRE, telegrama, Washington 12 out. 1953; Legação do Brasil ao MRE, ofícios, Washington, 10 nov., 7 e 8 dez. 1953; Washington Daily News, 7 dez. 1953, AHI, armário, maço 45497.

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À medida que iam melhorando as relações com os Estados Unidos, Perón via sua situação interna agravar-se com o malogro de sua política, a ascensão das oposições e um surpreendente conflito com a Igreja. Esse último sublevou a opinião italiana. Com exceção do periódico L’Unità e de outros pequenos periódicos de esquerda, a imprensa italiana era unânime em condenar os métodos de combate à Igreja empregados pelo presidente Perón. Sendo então, em 1955, Amintore Fanfani, secretário-geral da Democracia Cristã, as relações entre a Itália e o Vaticano estreitaram-se ao ponto de esta exercer grande influência sobre a vida política e a diplomacia. Perón não era, pois, um problema somente para o Vaticano, mas também para o governo italiano, cuja diplomacia não poderia permanecer inerte diante do conflito em curso na Argentina41. A deposição de Perón em 1955 deixou seqüelas nas relações com os Estados Unidos. Nas eleições presidenciais norte-americanas de 1956, o candidato democrata Adlai Stevenson converteu apolítica do republicano Eisenhower para a Argentina em tema de campanha. Nos dois países, a imprensa tomou partido, produzindo relatórios muito circunstanciados que, ao final, tanto denegriam a imagem da Argentina quanto deprimiam a credibilidade do governo dos Estados Unidos. Tão longe andou-se nessa polêmica que veio a público uma mordaz crítica à política de aproximação e apaziguamento levada a efeito pelo Departamento de Estado, seja sob o governo democrata deTruman, seja sob o republicano de Eisenhower. No fundo, o debate pouco dignificante despertou sentimentos antinorte-americanos e induziu apreciações em outros países, segundo as quais, democratas e republicanos não diferiam no modo de tratar a América Latina, podendo tanto uns quanto outros dar continuidade às duas vertentes históricas da política exterior dos Estados Unidos para a região: a diplomacia do “porrete” e a da boa vizinhança42.

Fernando Ramos de Alencar ao MRE, telegrama, Roma, 22 jun. 1955, AHI, armário, maço 45496. 42 La Razón, Buenos Aires, 26 set. 1956; Mário Gibson Barbosa a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Buenos Aires, 8 out. 1956, AHI, armário, maço 45497. 41

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Com os condicionamentos desse dualismo de interpretações acerca da política norte-americana, a opinião latino-americana manifestava-se por vezes ruidosa, nos últimos anos da década de 1950, diante das ideologias antagônicas que impregnavam a Guerra Fria e seus atores. Agitações de rua e protestos diante de embaixadas soviéticas verificaram-se em 1956, em razão da invasão da Hungria43. Nada, todavia, haveria de comparar-se com as manifestações ocorridas na Venezuela, em maio de 1958, por ocasião da visita do vice-presidente RichardNixon. Em Lima, de onde chegara no dia 13, a autoridade norteamericana experimentara o clima adverso à visita criado pelos estudantes da Universidade de São Marcos. Apesar dapreocupação com a segurança deNixon na embaixada norte-americana em Caracas, ajunta venezuelana de governo recém-empossada não tomou providências adequadas. Verificaram-se reações populares “impiedosas, incontroláveis e desenfreadas”, na avaliação do embaixador brasileiro, Oscar Pires do Rio. Pedradas, vidros do cortejo quebrados, cuspidas no rosto, baldes de água suja suportaram os hóspedes do governo, que acabaram por refugiar-se na embaixada americana, onde “asilaram-se”, segundo o jornal El Universal, sem haver visitado o país. Nixon deixou a Venezuela no dia seguinte, antes da hora prevista e sem haver cumprido sua agenda. Circulou então a notícia segundo a qual tropas de fuzileiros e páraquedistas americanos haviam sido enviados às pressas para bases no Caribe, para a eventualidade de ter que assegurar a integridade do mandatário. Essa atitude, considerada impulsiva e antidiplomática pela imprensa venezuelana, provocou novos protestos, quando os ânimos já se haviam acalmado. Quais as razões da hostilidade latino-americana diante dos Estados Unidos? Em grande medida, as causas eram extraídas pela imprensa e pela correspondência diplomática dos apelos que brotavam das profundezas da Guerra Fria. Nessa linha de explicações, vinculavamse os comunistas aos operários e estudantes. Essa avaliação ideológica Mário Gibson Barbosa ao MRE, telegrama, Buenos Aires, 13 nov. 1956, AHI, armário, maço 45496.

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adquiria, contudo, acréscimo de peso porque a ela se somavam então os motivos de ordem política e econômica. No caso venezuelano, irritação diante das restrições americanas às importações de petróleo. Mas o apoio norte-americano a ditaduras era outro fator perturbador. Estavam em jogo, portanto, a política econômica do governo e o comportamento do Departamento de Estado diante das questões da América Latina44. Ademais, a ação indireta dos Estados Unidos por meio dos organismos internacionais que controlava também era objeto de controvérsia, quando não motivo de franca divergência. No momento em que o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek rompia com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1959, devido à oposição que o órgão movia a seu plano de desenvolvimento, um relatório do embaixador brasileiro em Assunção, Euclydes Zenóbio da Costa, evidenciava até que ponto a instituição, com apoio norte-americano, ingeria-senaspolíticas econômicas internas do Paraguai. Como fazia em toda parte, o FMI sugeriu um Plano de Estabilização Econômica e, para vigiar sua implementação, designou Kemal Kurdas como representante junto à diretoria do Banco Central, com a incumbência de opinar sobre “todas as medidas de natureza econômica e financeira que o governo é chamado a adotar”. Era uma intervenção monetária, sob vigilância da embaixada dos EstadosUnidos em Assunção, com o consentimento do presidente Alfredo Stroessner, que assim contava obter créditos diretamente do governo dos Estados Unidos ou mediante instituições que este controlava. “A aplicação do Plano de Estabilização Econômica tem resultado em pesados sacrifícios para a economia nacional”, afirmava da Costa: salários congelados, restrições aos investimentos, repressão social, controle sobre os bancos privados, alienação da agroindústria paraguaia aos investidores americanos pela via dos créditos condicionados, descumprimento da cláusula de nação mais favorecida inerente ao Tratado Geral de Comércio e Investimentos de 1956 com o Brasil. Em suma, ainvestida do FMI com a retaguarda dos interesses americanos comprometia a Oscar Pires do Rio a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Caracas, 16 maio 1958, AHIBR, caixa 40.

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argentina disputa com Estados da América no Paraguai presençaUnidos (concluía e a própria o embaixador) adquirirão o Brasil. aqui “Os uma preponderância que no futuro previsível ninguém poderá arrebatarlhe”45. Desde o triunfo do movimento revolucionário em Cuba, com a ascensão de Fidel Castro ao poder, em 1959, o país caribenho arrebatou o interesse das diplomacias latino-americanas que se movimentavam sob pressão das ideologias em pugna durante a Guerra Fria. É bem verdade que diplomatas cubanos desde logo começaram a ingerir-se em assuntos internos de países nos quais serviam, provocando reações muito previsíveis. Assim, o embaixador cubano em Caracas, Luís Orlando Rodriguez, que se havia intrometido na política interna venezuelana, retirou-se a seu país em junho desse ano, seguindo-o o chefe da missão diplomática, Francisco Pividal, declarado personanon grata pelo mesmo motivo. O substituto de Rodrigues, León Antich, incorreu na mesma impropriedade de conduta, participando pessoalmente de manifestações de rua. Essas atitudes da diplomacia cubana contribuíam para criar um clima de mal-estar diplomático na América Latina, forçando a opinião a radicalizar posições, a favor ou contra a diplomacia cubana e a ideologia revolucionária, com repercussões sobre a vida política dos países. O mesmo ocorria na Venezuela, onde o presidente Betancourt discordava de seu chanceler Arcaya, por demostrar apoio público aos objetivos de Fidel Castro. Prensa Latina, uma agência de notícias criada em Havana, em princípios de 1959, com um corpo de funcionários formados por ex-empregados da soviética Tass, para divulgar para a América Latina os ideais revolucionários, contava, em agosto do ano seguinte, com escritórios em funcionamento em Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque, Washington e Caracas. Seu objetivo era o de agregar à informação que veiculava um feroz antiamericanismo e elogios sistemáticos aos regimes cubano e soviético. Derramava-se sobre a América Latina, portanto, com maior impetuosidade, a 45 Euclydes Zenóbio da Costa a Horácio Lafer, ofício, Assunção, 1º set. 1959, AHIBR, caixa 3.

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informação contaminada pelos apelos liberais e comunistas em confronto na Guerra Fria46. Cuba e os Estados Unidos arremeteram, simultaneamente, sobre os países da América latina, como demonstrou Moniz Bandeira, “a primeira com sua diplomacia e sua ação insurrecional, os segundos com sua diplomacia e seus órgãos de coerção (Pentágono eCIA), pretendendo ao termo implantar regimes socialistas ou ditaduras que os combatessem”47. Ao verem-se confrontados com a divisão do mundo bipolar, que obviamente não lhes interessava, os países da América Latina, mesmo aqueles que aparentemente desviaram-se para a ditadura de direita, reforçaram seu nacionalismo, cujas raízes se localizam em interpretações negativas dapresença e da ação norte-americana na região. Nos últimos meses de 1961, as chancelarias do continente converteram a questão cubana em centro das preocupações e do movimento diplomático, desde que o governo colombiano, em outubro, tomara a iniciativa de propor a todas as repúblicas a convocação do órgão de consulta prevista no artigo VI do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca. Ocupava então o posto em Bogotá o embaixador brasileiro Álvaro Teixeira Soares, diplomata de carreira e escritor ilustrado. Com a experiência e o conhecimento que lhe eram próprios, assim condensou a filosofia inerente à iniciativa colombiana, em ofício que endereçou ao ministro brasileiro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas (1º) é necessário impedir que o sistema interamericano sofra fraturas de tal natureza que representem eventualmente o seu completo malogro; (2º) o caso de Cuba pôs em cheque a eficácia do sistema interamericano; (3º) a revolução cubana despertou ressonância em setores distintos dos países latino-americanos, constituindo por isso mesmo um fator de perturbação; (4º) a desorientação reinante quanto a uma exata apreciação do problema cubano constitui motivo para que as chancelarias 46

Oscar Pires do Rio a Fernando Ramos de Alencar, ofício, Caracas, 19 ago. 1960, AHIBR, caixa 41. 47 Moniz Bandeira (1998); Huggins (1998).

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americanas dêem ao assunto redobrada atenção com vistas a uma fidedigna formalização destinada a estabelecer uma unidade de vistas quanto ao problema em si e quanto às conseqüências continentais ou internacionais desse mesmo problema48.

Por trás dessas legítimas preocupações já estava em curso uma cisão continental, que se agravaria nos meses a seguir e durante a própria VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores Americanos em Punta del Este, em 1962. Havia divisões que tendiam a se tornar radicais em toda parte, como a manifestação de quatro ex-chanceleres brasileiros, que por nota apoiaram publicamente a exclusão de Cuba da OEA. Mas o Departamento de Estado, ao haver feito da convocação uma frente de batalha a travar contra Cuba e o comunismo, ao invés de nela captar a mensagem colombiana de promover por esforço conjunto a unidade política pan-americana que se esfacelava, foi o maior responsável pela cisão e pelo reforço dos nacionalismos. Animado com a favorável acolhida de sua proposta, o governo colombiano encaminhou para exame, em novembro, às 21 chancelarias dos governos americanos cinco anteprojetos de resolução que preparara para instruir os debates e orientar as decisões da futura reunião dos chanceleres em Punta del Este. A se considerar a generalizada opção latino-americana pelo ocidentalismo, a atitude colombiana adquiria caráter objetivo e isento. Com efeito, os documentos refletiam o desejo de não ver a América Latina penetrada pelos meios de guerra externos e evoluir da Guerra Fria para o confronto militar entre os dois lados do mundo bipolar. A Colômbia propôs, com base nos tratados multilaterais regionais em vigor, erradicar a neutralidade diante de ameaças externas, considerar ameaças o estabelecimento de bases militares e o fornecimento de armas atômicas sino-soviéticas, como ainda o apoio militar, político ou econômico à subversão dos governos estabelecidos. Propôs que se cobrasse de Cuba o cumprimento das cláusulas de segurança dos tratados e das resoluções da conferência, 48

Álvaro Teixeira Soares a San Tiago Dantas, ofício, Bogotá, 13out. 1961, AHIBR, caixa 4.

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cuja execução seria acompanhada por uma comissão de vigilância e informação a ser criada. A convocação da reunião de consulta evidenciava, dessa forma, tanto o desejo de preservar a América Latina distante da Guerra Fria quanto de mantê-la coesa em torno da unidade panamericana sob a égide dos Estados Unidos.49. A deterioração de suas relações com Cuba levou o governo venezuelano de Betancourt a romper as relações diplomáticas a 11 de novembro de 1961. Os simpatizantes do regime cubano, além de personalidades políticas como o ex-chanceler Ignacio Luís Arcaya, eram numerosos nos meios estudantis e em organizações políticas como o Partido Comunista, a totalidade do Movimiento de Izquierda Revolucionaria, a maioria da Unión Republicana Democrática. Acrise que culminou com a ruptura foi desencadeada por ataques públicos de governo a governo e por distúrbios de rua, mas, sob inspiração dos partidos que compunham a coalizão governamental, os argumentos invocados pelo presidente Betancourt foram o desrespeito aos direitos humanos e a violação do princípio da autodeterminação dos povos pelo regime cubano50. O governo argentino cogitava à época na mesma decisão. Em meio a esse clima, preparava-se a Reunião de Punta del Este. O Departamento de Estado americano acolheu a convocação colombiana e preparou, com base nos anteprojetos de resolução que a consubstanciavam, seu próprio, cuja tônica era reforçar as medidas contra o regime cubano e provocar uma condenação geral, com a ruptura de relações diplomáticas caso Cuba não viesse a cumprir as decisões coletivas51. Pequenos países articulavam, provavelmente sob pressão norte-americana, uma resolução favorável à ruptura coletiva de relações diplomáticas e comerciais com Cuba. Nessas circunstâncias, era de extrema importância conhecer a atitude esperada dos grandes países da América do Sul, Brasil e Argentina, uma vez que a do México era conhecida.

49

Idem, ofício, Bogotá, 16 nov. 1961, AHIBR, caixa 4.

50 Antônio Corrêa do Lago a San Tiago Dantas, ofício, Caracas, 7 dez. 1961, AHIBR, caixa 41 51

Álvaro Teixeira Soares a San Tiago Dantas, ofício, Bogotá, 22 dez. 1961, AHIBR, caixa 4.

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O presidente colombiano, Alberto Lleras Camargo, jogou seu próprio prestígio no caso, procurando angariar adeptos para os anteprojetos de resolução que a chancelaria dera a conhecer. Convidou o embaixador do Brasil, o ilustrado e experiente Álvaro Teixeira Soares, para uma conversa em que lhe solicitou expor francamente seu próprio entendimento, do governo de João Goulart e do chanceler San Tiago Dantas, acerca da Reunião de Punta del Este. Soares confidenciou-lhe pessoalmente que julgava exagerada a importância que se estava atribuindo a Fidel Castro e que sua revolução com o tempo tenderia a temperar-se, diante das dificuldades econômicas que enfrentava e da reação interna ao desrespeito dos direitos humanos. Como embaixador, disse-lhe que o governo do Brasil: (1) julgava dever-se jogar com o tempo; (2) acreditava que o bom senso haveria de trazer ao convívio americano o regime de Fidel Castro; (3) considerava a proposta colombiana prematura; (4) entendia que não preenchia os requisitos jurídicos para invocar o Tratado do Rio de Janeiro; (5) comunicava que o Brasil compareceria a Punta del Este, mas não apoiaria as sanções contra Cuba.

Ante essa ducha fria sobre o ânimo do presidente colombiano, argumentou a favor de seu pensamento, lamentou a frieza com que fora acolhido por Brasil, Argentina e Chile e criticou a intransigência do México. Justificou-o, a reverso, afirmando que suas propostas conteriam uma intervenção unilateral dos Estados Unidos contra Cuba, que ninguém apoiaria, e dariam ânimo à Aliança para o Progresso como estratégia de cooperação continental para o desenvolvimento. Soares percebeu nos conceitos de Lleras Camargo uma preocupação pela displicência dos países do Cone Sul ante o problema cubano, que “feria na carne” os povos da área caribenha e do norte da América do Sul52. Na percepção do embaixador do Brasil em Bogotá, a chancelaria colombiana nutria apreensões pelo êxito de Punta del Este, em razão

52

Idem, ofício, Bogotá, 27 dez. 1961, AHIBR, caixa 4.

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das posições reticentes dos grandes países da América Latina, México, Argentina, Brasil e Chile. Por isso, redobrou seus esforços, enviando seu ministro de Relações Exteriores, Caicedo Castilla, aos países do Cone Sul, desde que a visita do presidente Kennedy à Colômbia reforçara sua posição no continente, tanto mais que este acenara com os recursos da Aliança para o Progresso aos países que tomassem posições afinadas com a Colômbia e os Estados Unidos. Era o caso da Bolívia e de outros, dispostos a compor a maioria anticubana na Reunião de Punta del Este, ao preço da ajuda americana53. AConferência de Punta del Este de janeiro de 1962, dado este cenário complexo, em que até mesmo mesquinhos interesses nacionais foram trazidos à baila, teve como grande resultado o agravamento da desunião latino-americana: por 14 votos expulsou Cuba da OEA, mas entre esses votos não estavam os de Brasil, Argentina, México, Chile, Bolívia e Equador, mais de 80% da região. O chanceler brasileiro, San Tiago Dantas, mentor da chamada Política Externa Independente que então o país implementava, invocou na reunião o princípio de não intervenção e a incumbência da política exterior em prover meios de desenvolvimento, alçando-se por sobre a divisão ideológica do mundo. Em agosto de 1962, após os golpes militares que derrubaram os governos civis na Argentina e no Peru, o embaixador brasileiro em Buenos Aires traçou para Afonso Arinos de Melo Franco, titular do Itamaraty, um quadro sombrio para o futuro político da América Latina, em decorrência das contradições que a seu juízo existiam entre o Pentágono e o Departamento de Estado, o primeiro a apoiar abertamente a ação insurrecional da extrema direita civil e militar contra os regimes democráticos, o segundo esforçando-se por emprestar o apoio da diplomacia à sobrevivência democrática, porém, aceitando aposteriori a ação degradante dos militares norte-americanos. Essa dupla orientação vinha incorporada à própria Aliança para o Progresso de Kennedy, uma resposta política de conformidade com os nobres ideais daOperação Pan-Americana lançada por Kubitschek em 1958, que se desmoralizara ao estabelecer como estratégia, por influência da direita 53

Ibidem, ofícios, Bogotá, 30 dez. 1961 e 13 jan. 1962, AHIBR, caixa 4.

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norte-americana, “buscar fazer com que as novas ditaduras fossem aceitas como democracias, ou pelo menos, como embriões de democracias”. Aos poucos, o governo de Kennedy deixava de lado suas eloqüentes pregações democráticas, aplicando apenas um critério para suas relações com a América Latina: “tal regime, seja qual for sua natureza, nos favorece? Então, ajudemo-lo, a despeito de quaisquer críticas que isso provoque”. Essa política pragmática e imediatista correspondia, no conceito do diplomata brasileiro, à melhor tradição norte-americana, que sustentava ditadores como Trujillo, Castillo, Somoza, enquanto alardeava a democracia, excluindo Cuba com esse argumento. “De contradições como essas surgem, acadapasso, na política norte-americana atual, com respeito à América Latina, essa ambivalência, essa duplicidade entre o dito e o feito...”. Assim, a Aliança para o Progresso corrompeuse em suas motivações de origem para tornar-se uma provocação que levava as lideranças de direita a fazer proliferar ditaduras no continente. O pragmatismo da política norte-americana eliminou a distinção entre democracia e ditadura e substituiu-a pela de regimes pró-americanos, geralmente de força, e democráticos, tidos por esquerdistas e perigosos. Em 4 de agosto de 1962, o senador norteamericano Wayne Morse denunciou essa contradição entre a ação do Pentágono e as intenções do Departamento de Estado. Fê-lo, contudo, com preocupações puramente administrativas, temendo haver corrupção das forças armadas na utilização de recursos empregados para apoiar golpes de Estado militares na América Latina. Tão impregnado estava o mundo de então com as ideologias de direita e esquerda que dividiam o mundo e esterilizavam o pensamento político que ao senador escapava o verdadeiro problema dessa contradição, a sobrevivência da democracia nos países latinos. A decadência moral da Aliança para o Progresso e as contradições entre Pentágono e Departamento de Estado, afinal a submissão do último ao primeiro, demonstravam o grau de degenerescência em que se assentavam as relações interamericanas no início dos anos 6054. Demonstravam, 54 Embaixada do Brasil a

Afonso Arinos de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 27 ago. 1962,

AHIBR, caixa 32.

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concretamente, que a Guerra Fria, enquanto investida norte-americana na América Latina, em nada correspondeu aos ideais de defesa da liberdade e da democracia que os Estados Unidos alardeavam pelo mundo em sua luta para conter a expansão do comunismo. Nessa região, a Guerra Fria norte-americana contribuiu para emergência de coerções sociais que atentavam contra as liberdades e os direitos humanos, da mesma forma, em regimes comunistas ou em ditaduras militares. Cuba havia criado um problema praticamente insolúvel para a inteligência política da América, incluindo os Estados Unidos e países democráticos como o Brasil de João Goulart. Em setembro de 1962, o embaixador brasileiro em Havana remeteu a Brasília uma descrição completa do estado das forças armadas de Fidel Castro e do apoio político-militar da URSS a Cuba, denotando a preocupação de Goulart com a segurança do continente, já que seu governo solicitara aquele estudo sobre as forças cubanas. Quando Castro mudou osrumosde sua política exterior, novas fontes de suprimento de armas apareceram, ao tempo em que seu país saía da órbita interamericana. O marco dessa inflexão pode ser fixado a 9 de julho de 1960, quando Kruschev admitiu a possibilidade de apoiar Cuba com seus foguetes, em caso de intervenção norte-americana na ilha. Armamentos soviéticos desde então chegavam e boatos havia de que incluíam projéteis teleguiados. Segundo a embaixada brasileira em Havana, entre junho de 1960 e abril de 1961, mais de 30 mil toneladas de material bélico procedente de países socialistas (URSS, Checoslováquia e China) foram desembarcados, no montante de mais de 100 milhões de dólares. Preocupados, os americanos preparavam a invasão, levada a cabo em abril de 1961, na praia Girón. Apesar daquela chegada de armamentos, a invasão evidenciou as fraquezas do sistema defensivo. Uma reforma das forças armadas cubanas adveio em razão da vulnerabilidade percebida, com a criação de três exércitos, o treinamento de uma milícia de 300 mil homens, o melhoramento da qualidade técnica da oficialidade, o aperfeiçoamento dos serviços de inteligência, a instalação de missões militares permanentes, checas, russas e chinesas, e, não menos importante, a aquisição de novos equipamentos. 136

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Um ano depois de praia Girón, a qualidade das forças armadas cubanas era superior, em todos os sentidos, mas conservava ainda seus propósitos defensivos. Intensa doutrinação marxista dava às tropas o adequado tempero político: “ Todo esse enorme progresso militar que estamos relatando (concluía o chefe da missão brasileira em Havana) transformou as forças armadas cubanas, sem sombra de dúvida, no contingente melhor treinado e preparado da América Latina”. Estimava-se em mais de 350 milhões de dólares a importação de armas atéjulho de 1962, que incluíam aviões MIG, tanques, lanchas contratorpedeiras e canhões, equipamentos já em desuso na URSS, mas o que de mais moderno havia na Checoslováquia. O embaixador brasileiro, às vésperas do bloqueio naval de Cuba ordenado por Kennedy, que aliás contou com o apoio do próprio Goulart, não estava convencido da instalação de bases próprias da Rússia, mas afirmava que, no caso de uma guerra mundial, os soviéticos teriam na ilha uma base natural, afinada com seu exército em termos ideológicos, de treinamento e de equipamento55. A opinião das massas, a intelectualidade e os meios artísticos latino-americanos continuavam impregnados de simpatia pela Cuba de Fidel, em razão de seus ideais revolucionários, de seus heróis libertários, como Che Guevara, mas sobretudo pelo fato de ser o único país da América Latina, em um século, a confrontar abertamente a prepotência norte-americana. Cuba suplantara de muito, nesses círculos sociais, o poder de sedução do peronismo como força de propulsão da autonomia latino-americana diante dos Estados Unidos. Já o pensamento dos diplomatas, dos militares e dos governos girava em torno do conflito potencial. Não convinha, por certo, raciocinavam todos, “esquentar” a Guerra Fria no continente. Mas o dilema colocavase apenas em teoria. Sobre o terreno, expandia-se a guerrilha, que dilacerava as sociedades. As poucas democracias latinas, ainda não derrocadas por golpes militares, estavam perplexas e divergiam entre si sobre o caminho a seguir. 55 Legação do Brasil a Carlos Alfredo Bernardes, ofício, Havana, 15 set. 1962, AHIBR, caixa 4.

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Era o que se observava, por exemplo, entre o Brasil de Goulart e a Venezuela de Betancourt. O primeiro, reticente diante de toda condenação de Cuba e simpático a sua causa, em nome das liberdades de escolha dos povos. O segundo, intransigente diante de Cuba, como também diante das ditaduras, com todas as quais rompia as relações diplomáticas, consoante a “doutrina Betancourt” de somente reconhecer governos constituídos por eleições democráticas e respeitadores dos direitos humanos. No início de 1963, o seqüestro do navio-motor venezuelano Anzoátegui por guerrilheiros pró-cubanose o subseqüente asilo político concedido pelo Brasil aos seqüestradores trouxeram à luz do dia a perplexidade que envolvia as democracias na tomada de decisões em assuntos que diziam respeito a Cuba56. A derrocada do governo de Goulart e a implantação da ditadura militar no Brasil, em 31 de março de 1964, acentuaram o desequilíbrio de forças no conflito ideológico da Guerra Fria que dividia a América Latina, restando, entre os grandes países, o México, quase isolado, em sua postura diante de Cuba. Era a vitória do Pentágono sobre o Departamento de Estado, do dólar sobre a ética política, da ideologia sobre o ser. A diplomacia brasileira que, com sua acentuada formação profissional, antes executava instruções do regime democrático, viu-se de chofre colocada diante das pressões da chancelaria acerca do modo como enfrentar o problema dos refugiados políticos brasileiros que se espalhavam por alguns países do continente, Uruguai, Peru, Chile e México. O ex-presidente João Goulart, acompanhado de seu fiel companheiro político Leonel Brizola e de outros colaboradores do governo derrocado, refugiou-seno Uruguai, tendo alegação brasileira em Montevidéu que esforçar-se logo para restringir a liberdade de movimento do grupo57. Não se entendiam, entretanto, os dois governos, no sentido de conter a ação dos refugiados. Três reclamações do governo militar brasileiro fundadas em suposto descumprimento por parte do Antônio Corrêa do Lago a Hermes Lima, ofício, Caracas, 15 mar. 1963, AHIBR, caixa 6. Legação do Brasil a Vasco Leitão da Cunha, ofício, Montevidéu, 10 abr. 1964, AHIBR, caixa 7.

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Uruguai de normas internacionais de asilo chegaram à embaixada em Montevidéu: (a) as atividades de asilados configuravam ameaça à segurança interna do Brasil; (b) declarações políticas de asilados violavam o estatuto de asilo; (c) a acolhida por parte do Uruguai de brasileiros asilados em terceiros países feriam-no do mesmo modo. Com efeito, Goulart e Brizola não eram vigiados suficientemente o tempo todo. Sobre alguns de seus próximos colaboradores não havia vigilância alguma. Dispunha esse grupo principal de asilados políticos brasileiros de cinco aviões com os quais se deslocavam dentre e fora do país. Ademais, esses refugiados faziam amiúde declarações políticas à imprensa internacional, limitando-se o governo uruguaio a advertências que não impediam a reincidência. Ante tais liberdades, inúmeros asilados em outros países demandavam o Uruguai, tolerando-se sua presença ilegal no país. Duas avaliações fazia dessa situação a embaixada do Brasil em Montevidéu: incorriam em omissão as autoridades uruguaias no tocante à garantia de respeito ao estatuto de asilo, resultando do fato uma ameaça positiva à segurança interna do Brasil pela via da incitação à subversão. A embaixada tentava remediar a falta de vigilância, fazendoa por conta própria, mas exigia, em fins de 1964, uma atitude resoluta do governo brasileiro: “A repetição ad infinitum (oficiava) de reclamações não produzirá outra coisa, é evidente, senão um desgaste político que cedo equivalerá a um desprestígio total para o Brasil”. Urgia obter do governo uruguaio a expulsão dos asilados ilegais, a apreensão das aeronaves, a vigilância dos movimentos, o controle dos paradeiros, a proibição de se aproximarem da fronteira e sanções para transgressões do estatuto do asilo. Por pouco a embaixada brasileira no Uruguai não sugeria uma intervenção58. Assim mudava, em razão de golpe de Estado, a diplomacia de um país democrático para a de um país ditatorial. Outro exemplo de indisfarçada e incômoda pressão da chancelaria brasileira sobre congêneres de países que concediam asilo a brasileiros registrou-se em Lima. Os asilados Abelardo Jurema e Clidenor Freitas dos Santos desejavam fazer uma viagem à Argentina 58

Idem, ofício, Montevidéu, 21 nov. 1964, AHIBR, caixa 7.

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para encontrar-se com familiares e a embaixada do Brasil recebeu ordens de impedir que as autoridades do país concedessem a autorização de saída. O embaixador Javier Perez de Cuellar, então diretor de Assuntos Políticos e Diplomáticos do ministério peruano, não querendo desagradar ao Brasil e tampouco negar a autorização, deixou transparecer seu desconforto e pouco entusiasmo diante da pressão do Brasil. Agindo por trás, alcançou o governo brasileiro do argentino a recusa de concessão de visto de entrada para a viagem59. O presidente LópezMateos do México retardou o reconhecimento do governo militar de Castelo Branco, querendo significar com a demora, segundo a embaixada brasileira naquele país, uma sanção moral ao novo regime. Somente normalizou as relações depois da concessão de 48 salvo-condutos a asilados que se haviam abrigado na embaixada mexicana no Rio de Janeiro. Nesse caso, como em outros, as explicações provindas das legações brasileiras na América Latina, para as atitudes dos governos no sentido de dificultar o reconhecimento do regime militar brasileiro e de dar cobertura aos pedidos de asilo, faziam referência às tendências esquerdistas dos governos ou ao necessário equilíbrio interno para não provocar a oposição. No caso do México, a irritação tinha uma razão especial, já que aquele governo sentiu-se isolado no continente, após a queda de Goulart, nas simpatias que manifestava a Fidel Castro. Mesmo sendo o único, prosseguiu resoluto em sua atitude, para desgosto das ditaduras e em dissonância com a doutrina Betancourt, informando que não daria cumprimento às resoluções da IX Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores Americanos, que decidiu aplicar sanções contra Cuba, inclusive a ruptura de relações diplomáticas e comerciais. No México, o numeroso grupo de asilados brasileiros acomodou-se bem, sendo tratado de forma condizente tanto pelas autoridades do país quanto pela embaixada do Brasil, onde estavam aos cuidados do encarregado de negócios, O. L. de Berenguer Cessar. Alguns tinham tanta confiança que haviam solicitado passaporte 59

Ibidem, ofícios, Lima, 12 e 19 jun. 1964, AHIBR, caixa 7.

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brasileiro para viajar a outros países, o que obviamente lhes foi negado pela embaixada, mas não os documentos de outros países dispostos a recebê-los. O grupo do México, por ser expressivo, espelhava bem o perfil e as aspirações do brasileiro no exílio. Com base em contatos e informações colhidas junto a esse grupo, a embaixada informou que havia entre os asilados: (a) membros do Partido Comunista Brasileiro, ideologizados e radicais que preferiam transladar-se para países do bloco socialista; (b) sindicalistas que auferiam os benefícios de colegas mexicanos, pouco ideologizados e mais preocupados com reivindicações classistas; (c) marinheiros e sargentos sem grandes convicções políticas, dispostos a viajar a Cuba onde, por sua habilidade técnica, poderiam encontrar emprego; (d) intelectuais, equilibrados e moderados, desejosos de regressar ao Brasil, serem reabilitados e atuar como nacionalistas de esquerda; (e) arrependidos, sobretudo da Marinha, envolvidos fortuitamente, que pediram asilo por temores injustificados e que desejavam regressar logo. Já que inúmeros casos de repatriamento potencial se colocavam à chancelaria brasileira, essa veio a regulamentar o procedimento das legações brasileiras no exterior pela Circular nº 5285, secreta, de 24 de agosto de 1964. O primeiro beneficiado foi o sargento da Marinha, Abelardo José de Sant’Ana, que renunciou formalmente ao asilo que lhe fora concedido pelo México, recebeu da embaixada brasileira o passaporte comum e o bilhete da Varig, e embarcou de volta ao país em 26 de setembro, no vôo 811. Os asilados no México recebiam hospedagem e alimentação do governo. Fundaram um pequeno jornal, o Correio Braziliense, que lançou nove números. Criaram a Associação dos Asilados, que também teve vida efêmera60. Cuba prosseguia sendo uma das ocupações principais das diplomacias americanas durante a década de 1960. Após a implantação do regime militar no Brasil em 1964, também as legações do país receberam ordens de fornecer, e o faziam com profusão, informações sobre movimentos de guerrilha e atitudes, diante de Cuba, manifestas 60 O.L. de Berenguer César a Vasco Leitão da Cunha, ofícios, México, 16 jun., 22 jul., 18 ago., 25 set., 27 out., 20 nov. e 11 dez. 1964, AHIBR, caixa 7.

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pelos diversos segmentos sociais dos países em que atuavam61. Não havia, contudo, uniformidade de ação e de pensamento entre as chancelarias do continente para enfrentar o desafio das esquerdas. A intromissão desenfreada da Guerra Fria no continente levantava ciúmes e suspeitas entre os países, grandemente governados por militares, que buscavam o tratamento privilegiado dos Estados Unidos em troca de envolvimento político contra a guerrilha e Fidel Castro. No Cone Sul, essas circunstâncias acenderam as rivalidades entre Argentina e Brasil, mesmo porque esse país irrompeu como campeão do anticomunismo pan-americano, ao ponto de pretender influir sobre a conduta da OEA e comandar forças de paz interamericanas, como ocorreu de fato na República Dominicana. Em 1966, uma forte campanha contra o governo civil de Arturo Illia na Argentina, em preparação ao golpe militar que adviria a 28 de junho, foi interpretada pelo embaixador brasileiro em Buenos Aires, Décio de Moura, como resultado da emulação pelas vantagens a auferir com o envolvimento na Guerra Fria Tenho a honra de submeter a Vossa Excelência algumas considerações sobre as críticas que, com intensidade crescente, vêm sendo feitas à política exterior argentina sob o fundamento principal de que a chancelaria de Buenos Aires tem aceito, por incúria ou inconfessáveis interesses, a suposta orientação do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América no sentido de conferir ao Brasil liderança efetiva na parte meridional do continente, transformando-o em grande potência industrial, e mantendo, correlativamente, a Argentina, no papel de país agrícola fornecedor de produtos pecuários... Critica-se principalmente a administração do ministro Zavala Ortiz, nos últimos meses, por sua suposta omissão em face dos problemas que mais de perto dizem respeito aos interesses argentinos, provocando um vazio de influência na bacia do Prata, em favor do Brasil... Essas críticas

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Expedito de Freitas Resende a Vasco Leitão da Cunha, ofícios, Buenos Aires, 16 fev. e 30 mar. 1965, AHIBR, caixa 33.

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têm servido de pretexto para justificar um possível golpe de Estado62.

O novo governo militar instalado na Argentina em 1966, zeloso por influências regionais, passou a prestar ajuda à Bolívia para o combate à guerrilha, com a intenção de “demonstrar publicamente a solidariedade efetiva da Argentina sempre e quando um país do continente for ameaçado por atividades daquela natureza”63. O serviço secreto do Exército argentino fornecia às missões estrangeiras que solicitassem informações sobre a infiltração comunista nas instituições do respectivo país. Quando uma circular do Itamaraty solicitou das missões sediadas na América Latina uma descrição da frente estudantil de esquerda nas universidades, a de Buenos Aires produziu um informe extenso e detalhado, com dados fornecidos por aquele serviço secreto. Segundo esse informe, a pregação ideológica levada a cabo pelos esquerdistas teria se intensificado a partir de 1955, após a queda de Perón. A Federação Universitária Argentina, fortemente infiltrada por comunistas, fora dissolvida pelos militares, porém a ação prosseguia clandestina e articulada pelo Partido Comunista Argentino, vinculando as agremiações estudantis com os sindicatos de trabalhadores. Os estudantes comunistas estavam divididos em dois grupos: os reformistas, que obedeciam às diretrizes de Moscou e buscavam fomentar a luta de classe dentro do quadro institucional regular das universidades onde marcavam presença, e os de linha chinesa, partidários da mudança total dos métodos de ação e apologistas da revolução violenta e da guerrilha. Os principais centros de atividade comunista eram, segundo o informe, a Universidade de Buenos Aires, cuja Faculdade de Filosofia e Letras contava com 40% de seus professores e 77% de seus alunos infiltrados, a Universidade de La Plata e a de Tucumán64.

62 Décio de Moura a Juracy Magalhães, ofício, Buenos Aires 22 jun.

1966, AHIBR, caixa 10. Legação do Brasil ao MRE, ofício, Buenos Aires, 2 nov. 1967, AHIBR, caixa 12. 64 Décio de Moura a Juracy Magalhães, ofício, Buenos Aires, 1º mar. 1967, AHIBR, caixa 34. 63

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Durante os anos 60 e 70, portanto, a expansão de regimes militares pela América Latina deixou o governo dos Estados Unidos em posição confortável diante do combate ao comunismo. Podia darse ao luxo de distribuir pouca ajuda militar e de dirigi-la ideologicamente para os países, quase como se sorteio fizesse, dando ânimo à corrida que os movia em troca da cooperação na Guerra Fria. Podia ainda alardear nessa ajuda a questão dos direitos humanos que sua ação de apoio aos golpes militares contribuíra para sepultar. Essa indisfarçável hipocrisia política não escapava aos olhos de quase ninguém, da opinião pública esclarecida e até de regimes militares, como o de Ernesto Geisel o qual, em 1977, tomou grande distância com relação àpolítica de dominação desenfreada e sem reciprocidade que os Estados Unidos implementavam na América Latina. As táticas norte-americanas de combate ao comunismo na América Latina no contexto da Guerra Fria, impregnadas de coerção e desrespeito às liberdades e aos direitos humanos, não isenta de responsabilidade os grupos associados latino-americanos. Inúmeros estudos revelam as modalidades e a intensidade das conexões entre as elites orgânicas do norte e do sul do continente, entre a polícia e a política, o empresariado e os militares, a intelectualidade de direita e o poder. A internacional capitalista, na expressão de Dreifuss65.

65 Cf. Moniz Bandeira (1993) ; Dreifuss, René. A internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional (1918-1986). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987; Smith (1996); Black, Jan Knippers. Sentinels of empire. The United States and Latin American militarism. New York: Greenwood Press, 1986; Lebow, Richard, Stein, Janice. Weall lost the ColdWar. Princeton: Princeton University, 1993.

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Segunda parte Argentina, Brasil e Venezuela

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4. A dinâmica atlântica entre 1947 e 1959 4.1. O sul do continente à época do peronismo O regime peronista, embora consagrado pelas urnasnas eleições democráticas de 1945, não recolhia as simpatias de todo o meio político brasileiro. Simpatizantes e desafetos manifestavam-se publicamente de tal sorte que suas atitudes tornar-se-iam um dos primeiros desafios que as diplomacias de ambos os países haveriam de enfrentar1. Desde janeiro de 1947, as chancelarias brasileira e argentina preparavam o encontro entre os presidentes Eurico Gaspar Dutra e Juan Domingo Perón, que se realizou a 21 de maio, em Paso de los Libres e Uruguaiana, na fronteira, onde se inaugurou a ponte internacional sobre o rio Uruguai, ligando os dois países. Dutra fora o candidato de Vargas à presidência, mas não tinha a habilidade política de seu predecessor, tanto é que cedeu aos Estados Unidos, no pós-guerra, o apoio incondicional brasileiro à montagem da ordem internacional gestada pela inteligência norte-americana, sem nadabarganhar em compensação. Manteve contudo a diretriz externa de não hostilizar a Argentina, por maiores que fossem as pressões da diplomacia americana e a disposição de próximos auxiliares seus, que ouviam os impropérios da oposição, a União Democrática Nacional (UDN), contra o regime peronista. Havia, efetivamente, no Brasil, quem nutrisse muita admiração pelo presidente argentino e quem por ele externasse sentimentos hostis, bombardeando-o com qualificativos políticos pejorativos. Essa divisão da opinião acerca do regime de Perón existia também entre os diplomatas brasileiros que se manifestavam a seu respeito. O chanceler brasileiro Raul Fernandes contava entre os que não alimentavam simpatias por Perón. De Buenos Aires, o embaixador 1 Lladós, José María, Guimarães, Samuel Pinheiro (orgs). Perspectivas; Brasil y Argentina. Buenos Aires: Cari,1999; Jalabe (1996); Moniz Bandeira (1993); Lanús, Juan Archibaldo. Un mundo sin orillas; nación, Estado e globalización. Buenos Aires: Emecé, 1984. 2 v; Cervo, Bueno (1992).

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João Baptista Luzardo, um admirador confesso e amigo íntimo de Perón, esforçava-se para concluir a agenda e concertar a data do encontro de Uruguaiana. Para esse diplomata, a ocasião se revestia de máxima importância, uma vez que haveriam de encontrar-se, além dos presidentes, os ministros de Relações Exteriores, Raul Fernandes e Juan Atilio Bramuglia, os responsáveis pelas economias nacionais, Corrêa e Castro, ministro brasileiro da Fazenda, e Miguel Miranda, presidente do Banco Central e do Instituto Argentino de Promoção do Intercâmbio. Esperava Luzardo que a chancelaria brasileira correspondesse às intenções de Perón de ajustar os entendimentos sobre todos os pontos de interesse comum, incluindo o trânsito de fronteira, o comércio bilateral, o aproveitamento hidrelétrico conjunto das quedas do Iguaçu e a convergência de posições a serem tomadas na próxima Conferência Interamericana do Rio de Janeiro. O otimista Luzardo dava a entender que o Brasil de Dutra conservava as mesmas disposições de entendimento e cooperação positiva com a Argentina que decorriam das visões políticas de Vargas2. Antevia resultados que somente seriam alcançados 14 anos depois, em 1961, no mesmo local, ondeencontrarse-iam novamente os dois presidentes, então Jânio Quadros e Arturo Frondizi. Por que se equivocou Luzardo a respeito do primeiro encontro presidencial de Uruguaiana acerca das possibilidades da cooperação regional? Enquanto ele se empenhava em obter resultados concretos do encontro, Oswaldo Furst, também da embaixada brasileira em Buenos Aires, remeteu a Raul Fernandes um relatório depreciativo sobre a Argentina de Perón. Segundo esse desafeto, o recém-formado Partido Peronista não diferia em sua doutrina e orientação daqueles existentes nos Estados totalitários. O regime era um amálgama de falangismo, fascismo enacional-socialismo, sob aparência de trabalhismo, mas com doutrina socialista, próxima do comunismo. O comportamento de Perón, em suas reuniões públicas, reproduzia as concentrações fascistas de Mussolini. Adiplomacia argentina decidira propagar o regime por meio de seus adidos trabalhistas e culturais. Utilizando ainda o termo 2

Baptista Luzardo a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 20jan. 1947, AHIBR, caixa 21.

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“peronismo” e não “justicialismo”, Furst citou uma definição do Ministério das Relações Exteriores da Argentina para designar a doutrina político-social do regime uma síntese das ideologias em disputa, pois tomou de cada uma delas aquilo que melhor pode servir à felicidade do homem e a seu melhor deslocamento no sentido da justiça e da liberdade (e comentou). Nessa fraseologia se condensam as expressões a que venho me referindo em vários relatórios: pensa-se numa doutrina nova e em sua propagação, se bem que de nova nada possa ter quando recopilada nas de ordem totalitária que o mundo acaba de combater e continua combatendo.

O consenso nacional que o peronismo alcançou era tal, segundo Furst, que os oposicionistas, paradoxalmente, acabavam por robustecer o governo, como sucedeu com os casos Braden e Avalos. O Partido Radical, vencido nas urnas, silenciou ante o triunfo do governo, que se apoiava nas massas obreiras, nas forças armadas e no Partido Peronista. Nessas condições, o Estado não encontrava freios e limites à intervenção econômica, que desejava e realizava, sob o comando do poderoso Miguel Miranda. Além de enormes recursos nacionais, dispunha esse Estado de capitais e técnicos norte-americanos para implementar o plano qüinqüenal, desde que o novo embaixador, George Messersmith, concertara as relações com os Estados Unidos. Concluía Furst seu relatório ao chanceler brasileiro com duas visões prospectivas: se mantiver o bom senso político, a Argentina terá um futuro grandioso, mas “o afã de se industrializar não impressionaria, na Argentina, se não visasse diretamente princípios de hegemonia política e predomínio militar”3. Gostassem ou não do peronismo, diante de relatórios contraditórios que lhes chegavam de Luzardo e Furst, Raul Fernandes e Dutra não haveriam de ignorar a Argentina. Tomaram o caminho de Uruguaiana, não sem antes colocar em Buenos Aires novo embaixador, Cyro de Freitas-Valle, homem competente e de confiança. A mudança 3

Oswaldo Furst a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 24 fev. 1947, AHIBR, caixa 21.

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traía os sentimentos do governo de Dutra, e particularmente a força de seu ministro das Relações Exteriores no trato da questão argentina. Com efeito, Freitas-Valle foi enviado a Buenos Aires em substituição a Luzardo, porém em substituição à orientação de entendimento e cordialidade “excessiva” a manter nas relações com Perón. No primeiro encontro pessoal de Freitas-Valle com o presidente argentino, a 8 de maio de 1947, após recebido suas credenciais, Perón esquivou-se de todo assunto e somente falou com o embaixador brasileiro, como se o sondasse, do combate ao comunismo, um assunto tão caro ao governo Dutra4. O encontro dos presidentes realizou-se no dia21 de maio para a inauguração da ponte internacional. Ao relatá-lo, afirmou FreitasValle que a realização do encontro não agradou a Raul Fernandes nem ao ministro interino, Hildebrando Accioly, a quem escreveu, nem a ele mesmo. Foi apenas inevitável, “coisa acertada, de que nem um de nós três deve arrepender-se”. O Itamaratynão estava disposto, portanto, a endossar apolítica cooperativa de iniciativa argentina, para satisfação dos desafetos de Perón entrincheirados na UDN, a agremiação política que abrigava em termos ideológicos e de representatividade social as velhas elites conservadoras, como ocorria com o Partido Radical argentino. O fato relevante para a política exterior era a cisão da opinião brasileira diante do peronismo, cisão tão profunda que se pode comparar àprópria cisão danação argentina diante do mesmo fenômeno político. Assim mesmo, o encontro de Uruguaiana foi útil para as relações regionais. Fez descer, para o governo brasileiro, o peronismo da mitologia à realidade e comprovou que Brasil e Argentina tinham interesses a concertar que transcendiam a governos e regimes políticos. Seus resultados envolveram questões variadas e de grande interesse para os dois países e para a região. Segundo avaliação de Freitas-Valle, os resultados mais relevantes foram: (a) melhora da imagem do outro, em sentido realista, condição indispensável à manutenção de relações bilaterais cooperativas; (b) demonstração da necessidade de perpetuação 4

Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 12 maio 1947, AHIBR, caixa 21.

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da amizade argentino-brasileira; (c) entendimento para aproveitamento conjunto do potencial elétrico do Salto Grande do rio Uruguai; (d) cooperação para solução do contencioso de fronteira entre Equador e Peru, mediante convocação no Rio de Janeiro dos representantes dos quatro Estados garantes; (e) esforços conjuntos pela mediação na luta civil paraguaia; (f) posterior negociação por via diplomática de outros assuntos como o tráfico de fronteira, o aproveitamento conjunto do potencial hidrelétrico das quedas do Iguaçu e o intercâmbio comercial; (g) convergência de posições na Conferência do Rio de Janeiro. No âmbito da política internacional, este último ponto revelou-se de maior importância para a Argentina, que buscava o apoio do Brasil para converter em fato a opinião do embaixador norte-americano Messersmith, favorável à readmissão da Argentina, sem limitações, na comunidade pan-americana5. Freitas-Valle transmitia ao governo brasileiro informações bastante isentas e objetivas sobre o governo de Perón, de sorte a instruílo para a tomada das grandes decisões concernentes às relações com a América Latina. Seus relatórios atenuavam a carga doutrinal e ideológica que contaminavam as visões de Furst. O peronismo deveria entenderse como uma mística “usada para conservar ao lado do presidente as massas que o levaram ao poder”. Enfraquecidas, as oposições não alcançavam articular-se nem sequer com uma opinião mundial arregimentada contra o presidente Perón, incluindo aquela que se espalhava pela imprensa brasileira. Por outro lado, Miranda exigia pelo trigo argentino, de que necessitavam tantos países, preços exorbitantes, no dizer do embaixador. A situação de desconforto político e econômico da Argentina explicava demonstrações espetaculares de apreço a pessoas e fatos, como as manifestações na despedida do embaixador Messersmith, o encontro com o presidente brasileiro em Uruguaiana e com o presidente chileno em Tucumán. Explicava, outrossim, a grandiloqüência sem base, que mais evidenciava “o quanto há de oco no regime imperante na Argentina”, como sua proclamada Freitas-Valle a Hildebrando Accioly, ofício, Buenos Aires, 24 maio 1947, AHIBR, caixa 21.

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independência econômica, nas comemorações de 9 de julho de 19476. Sabendo que Raul Fernandes iria dirigir a Conferência do Rio de Janeiro, Freitas-Valle deu-lhe, por conveniência política, dois bons conselhos: que o ministro solicitasse aos diretores dos diários brasileiros um armistício em seus ataques ao peronismo durante a conferência e que ficasse atento para não haver manobra alguma por algum país do continente, pondo em risco a presença argentina na comunhão interamericana7. Coincidia, portanto, Freitas-Valle com a linha de ação cooperativa com a Argentina, que tão valorizada fora pelo presidente Vargas entre 1930 e 1945, a despeito de pressões em contrário por parte da diplomacia norte-americana. Essa linha de força da política exterior brasileira encontrava idêntica expressão na visão política de longo prazo na Argentina, de tal sorte que os tropeços de caminho, nas décadas seguintes, mais corresponderiam a imprevistos do que a uma estratégia. Se desejava o convívio argentino no continente, como seu predecessor em Buenos Aires, Baptista Luzardo, o embaixador FreitasValle não alimentava entusiasmo pela natureza do regime peronista e nisso dele diferia. Chegou a sugerir a Raul Fernandes uma ação com a finalidade de torpedear no Brasil a filial da agência de notícias argentina Andi, voltada à propaganda política do peronismo8. Em encontro mantido com Freitas-Valle em novembro de 1947, Perón, após repetir ser sua política a de manter com o Brasil as melhores e mais estreitas relações, queixou-se da tendência oposta da política brasileira que se manifestava seja por uma imprensa hostil, seja pela ação do Itamaraty, no sentido de dificultar a negociação argentina de acordos comerciais com o Chile e a Bolívia. Retrucou-lhe o embaixador haver no Brasil certa crítica em razão de se pagar pelo trigo argentino preço superior aos preços internacionais do produto. Miguel Miranda, presente ao encontro, rebateu duramente, dizendo que comprar tecidos, ferro-gusa Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 16 jul. 1947, AHIBR, caixa 21. Idem, ofício, Buenos Aires, 21 jun. 1947, AHIBR, caixa 21. 8 Ibidem, ofício, Buenos Aires, 25 out. 1947, AHIBR, caixa 21.

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e açúcar do Brasil, cujos preços também estavam acima do mercado, era um favor que a Argentina lhe fazia9. Esses atritos acerca dos negócios bilaterais escondiam potenciais disputas de grande envergadura que haveriam de aflorar, caso sobre eles se derramassem as antipatias das correntes de opinião. Após a assinatura, em Petrópolis, do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), os relatórios expedidos de Buenos Aires evidenciavam, em finsde 1947, uma melhora na posição internacional da Argentina, grandemente beneficiada com a acolhida que tivera na conferência pan-americana. O comandante americano de defesa do Caribe, general Willis D. Krittemberg, visitou Buenos Aires, por cortesia, mas igualmente para sondar a possibilidade de padronizar o mercado argentino de armas, estações meteorológicas, aviões de guerra e outros materiais, pela via dos fornecimentos americanos. O New York Timespublicou elogiosas referências a Perón e a sua capacidade de dirigir o país para um umbral de grandeza, com a política de recuperação econômica e de combate ao comunismo. Na realidade, observava Oswaldo Furst, a política exterior argentina orientava-se pelo neutralismo da 3ª Posição e buscava a aproximação com os Estados Unidos porque neles viam os grandes provedores na hipótese de guerra com a URSS, guerra na qual aliás o modelo econômico e político argentino apostava como se fosse sua grande esperança10. Em balanço que fez a Raul Fernandes e ao presidente Dutra de seu primeiro ano como embaixador em Buenos Aires, findo em maio de 1948, Freitas-Valle revelou-se perplexo, não com a Argentina de Perón, que paradoxalmente passou a admirar com antipatia, mas com a ausência de uma política objetiva com relação à Argentina e aos interesses bilaterais por parte do governo Dutra. Responsabilizou o temor brasileiro em desagradar aos Estados Unidos pela linha de afastamento ou reticência diante da Argentina que lhe foi recomendada e percebeu-a irrealista e obsoleta. Foi forçado a conter suas iniciativas de ação e suas palavras de cordialidade, interpretando ser a vontade de 9

Ibidem, ofício, Buenos Aires, 4 nov. 1947, AHIBR, caixa 21. Furst a Raul Fernandes, relatório, Buenos Aires, 27 dez. 1947, AHIBR, caixa 21

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Raul Fernandes e de Eurico Gaspar Dutra, os quais, com essa finalidade, haviam removido Luzardo, quando a diplomacia americana seguirao caminho contrário, de Braden a Messersmith, e deste ao novo embaixador James Bruce, que chegou rasgando elogios à pessoa de Perón. A Luzardo e a estes abriram-se todas as portas, a Freitas-Valle, frestas. No início de 1948, era maior a intimidade do Departamento de Estado do que a do Itamaraty com o Palácio San Martín. Concluía o embaixador sentir-se frustrado e desorientado na Argentina, “pois não temos uma política determinada em relação a ela”11. Mais azedo tornou-se dias depois Freitas-Valle ao acompanhar o chanceler Bramuglia em visita ao Rio de Janeiro e ser colocado depois de Luzardo, então deputado federal, no banquete oferecido pelo próprio Itamaraty12. O desabafo de Freitas-Valle se explica pela ambigüidade do Brasil, que tinha na presidência um homem fraco ena chancelaria um homem de têmpera, o primeiro desorientado e o segundo disposto a emperrar a cooperação com a Argentina peronista e também suas iniciativas regionais, seja por indisposição sentimental, seja por convicção de que agindo assim poderia angariar algum ganho do lado dos Estados Unidos. A ação diplomática brasileira na Argentina não primava, portanto, por investir inteligência na promoção de interesses brasileiros. Ingressara, com Freitas-Valle, em 1947, em fase de contenção de iniciativas, que prenunciava o pior, a diplomacia de obstrução dos interesses argentinos, a prevalecer nos anos 50. Parece mais plausível supor que essa linha de conduta derivava da prevalência entre os dirigentes do governo de Dutra de prevenções contra o regime de Perón, ao invés de fluir do cálculo segundo o qual marchar com a Argentina comportaria como custo a perda de benefícios advindos das relações especiais com os Estados Unidos. Freitas-Valle deixou claro para o governo brasileiro que a diplomacia norte-americana, desde o início do regime de Perón, esmerava-se em implementar interesses concretos norte-americanos e não lhe aborreceria ver o Brasil agindo nesse mesmo 11 12

Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 15 abr. 1948, AHIBR, caixa 21. Idem, ofício, Buenos Aires, 8 maio 1948, AHIBR, caixa 21.

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sentido. Por isso se queixava, como profissional responsável que era, vendo-se condenado à inércia ao lado de quem recolhia resultados concretos. Sentia-se um diplomata contido por ordens superiores e frustrado como profissional. Apesar da antipatia do presidente, do chanceler e do próprio embaixador do Brasil pelo regime peronista, a propaganda desse se fazia em toda a América com eficiência e pompa. Caravanas de estudantes, professores, jornalistas, operários e letrados brasileiros e de outros países eram levados a Buenos Aires em aviões fretados pelo governo argentino13. Freitas-Valle chamava de realismo político o modo como a economia nacional era controlada pela administração pública através do Instituto de Promoção do Intercâmbio e do Conselho Econômico Nacional, ambos dirigidos pelo ministro Miguel Miranda que se havia amparado inclusive da responsabilidade de firmar tratados e acordos econômicos com outras nações, esvaziando o papel do Palácio San Martín e tornando as negociações mais técnicas que políticas. Segundo ele, a Argentina havia levado o princípio da economia dirigida a extremos nunca alcançados. Ridicularizava a proclamada independência econômica, ao observar quanto corriam os argentinos atrás dos dólares americanos, sem os quais seria impossível implementar o plano qüinqüenal. Admirava as contradições de um discurso político que tinha destino duplo: o prestígio e a eficiência. Eram reclamações serenas pela não destinação à Argentina dos recursos do Plano Marshall, eram agressões políticas contra o imperialismo americano, eram missões de negociação aos Estados Unidos que se sucediam para obtenção de recursos14. As prevenções que era forçado a carregar no exercício da função diplomática induziam Freitas-Valle a concluir que nada se haveria de levar a sério na linguagem diplomática argentina, em razão de suas contradições, cabendo, ao revés, levantar suspeitas sobre qualquer 13 Carlos Alves de Sousa a Raul Fernandes, ofício, Havana, 12 maio 1948, AHI, armário, maço 45497. 14 Freitas-Valle a Raul Fernandes, relatórios, Buenos Aires, 14 e 31 jul., 11 out. e 3 nov. 1948, AHIBR, caixa 21.

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declaração ou afirmação do líder argentino. Desse modo, despiu de todo sentido positivo a surpreendente declaração feita por Perón ao jornalista brasileiro Luís de Medeiros, em outubro de 1948, ao aludir à forma como entrava trigo argentino no Rio Grande do Sul, qualificada pela imprensa de “contrabando oficial”. O presidente argentino sugeriu a supressão da fronteira entre o Brasil e a Argentina: “Tomemos uma borracha, passemo-la sobre o mapa e resolvamos que não existem mais alfândegas entre os dois países. Reformemos isso de uma vez, para que argentinos e brasileiros passemos de um lado a outro como irmãos vizinhos que se visitam sem necessidade de bater à porta”. Qual teria sido o pensamento de Perón ao lançar essa idéia no campo das relações argentino-brasileiras, perguntou o observador brasileiro em Buenos Aires, embaixador Freitas-Valle? Seria mais uma manifestação de sua estratégia de angariar simpatias no exterior ou estaria Perón propondo realmente a união aduaneira e a livre circulação de pessoas entre os dois países com a finalidade de fortalecer um regime autoritário?15. Tão retrógrado em suas idéias políticas e econômicas andava Freitas-Valle, talvez por nutrir pessoalmente prevenções e por carregar aquelas que lhe despejava a correspondência do Itamaraty, que não só vislumbrava nessa idéia integracionista, a concretizar-se cinqüenta anos depois, uma maquinação urdida pelo peronismo contra os interesses do Brasil, como ainda considerava lesivos aos interesses do Brasil os empreendimentos brasileiros que se aproveitavam do crescimento econômico argentino para investir seus capitais no país vizinho, os grupos Matarazzo, Eduardo Guinle Filho e Seabra16. Ao despedir-se de Perón, ao término de sua curta permanência de 18 meses em Buenos Aires à frente da missão brasileira, o embaixador Freitas-Valle, em rápido colóquio que manteve, admirou uma última Idem, ofício, Buenos Aires, 18 out. 1948, AHIBR, caixa 21. Declaração de Perón, transcrita nesse ofício: “Vamos a tomar una goma, pasarla sobre el mapa y resolver que no existem más aduanas entre los dos países. Vamos a reformar esto de una vez, para que argentinos y brasileños pasemos de un lado a otro como hermanos vecinos que se visitan sin necesidad de golpear a la puerta”. 16 Ibidem, relatório, Buenos Aires, 31 jul. 1948, AHIBR, caixa 21. 15

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vez o espírito fértil, a informação controlada e a opinião ágil do líder argentino. Em poucos minutos, o presidente lhe falou do atraso nos planos de aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios Uruguai e Iguaçu, dos problemas no comércio bilateral, da acusação que lhe faziam de imperialista, das relações que não haviam sido normais nem profícuas entre o Brasil e a Argentina nos últimos tempos. Ao retrucar-lhe, o embaixador concordou e atribuiu o fato aos ataques da imprensa brasileira e ao preço do trigo. Despediu-se dele Perón, recomendandolhe, com extrema afabilidade, quando assumisse funções no Brasil, “facilitar as relações argentino-brasileiras” e promover um encontro entre os dois presidentes17. Apesar da esperança de uma relação cooperativa com o Brasil que Perón manifestara a Freitas-Valle, os ofícios e relatórios dos representantes brasileiros nas capitais do Cone Sul, que chegavam à chancelaria nos dois primeiros anos de governo eleito de Perón, eram alarmistas, denunciando constantemente objetivos expansionistas. Fundavam-se esses diplomatas brasileiros em uma percepção da degradação do regime e de sua marcha para o nacionalismo. A diplomacia brasileira de então não era ativa, porém atenta. Feita de cautela em Buenos Aires e de vigilância nos arredores. A documentação diplomática permite concluir que a política exterior do governo de Dutra com relação à Argentina de Perón orientava-se pelos seguintes parâmetros de pensamento e ação: repulsa à idéia de integração regional, minguado esforço para contrabalançar a presença argentina nos países do Cone Sul e apoio à boa inserção da Argentina na comunidade pan-americana, sem melindrar o governo dos Estados Unidos. Com o tempo, essa política exterior tenderia ao confronto, por meio do que convencionamos chamar de diplomacia da obstrução. Por seu lado, Perón buscava decididamente a cooperação bilateral e regional de modo, se possível, a criar um bloco de países que promovesse coletivamente o desenvolvimento e resistisse, na medida do necessário, à dominação econômica e política dos Estados Unidos sobre a América Latina. 17

Ibidem, ofício, Buenos Aires, 5 nov. 1948, AHIBR, caixa 21.

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A 27 de fevereiro de 1948, os presidentes Perón e Luís Battle Berres do Uruguai passaram em revista as relações entre os dois países, em encontro que simbolicamente realizou-se na praia Agraciada, onde haviam desembarcados os 33 orientais para a luta pela independência do Uruguai. Trataram do combate ao comunismo, das relações panamericanas, do aproveitamento de Salto Grande, dos investimentos argentinos no Uruguai. Procurava Perón angariar apoio à reafirmação dos direitos argentinos sobre as Malvinas e sobre grande parte do território da Antártica, temas que queria levar às conferências interamericanas, com o firme propósito de projetar imagem para fins externos e internos18. Em Montevidéu, o embaixador José Roberto de Macedo Soares mantinha freqüentes encontros com o presidente, Battle Berres, nos quais ambos avaliavam as intenções do poderoso Perón e ajustavam atitudes a tomar. Uruguai, Brasil e Estados Unidos opunham-se a que as questões das Malvinas e da Antártica, como também a de Belize, fossem levadas à IX Conferência Internacional Americana de Bogotá, marcada para março de 1948, com intuito de servir de instrumento de propaganda para a Argentina. Mas Perón tinha apoios de outros países e as diplomacias do Brasil e do Uruguai, que concertaram previamente asposições a serem defendidas em Bogotá, onde se criaria a Organização dos Estados Americanos (OEA), agiriam no sentido de desmontar o circo propagandístico a ser armado pela delegação argentina19. Os anos de 1947 e 1948 foram instáveis no Paraguai, onde rebelião uma que tomou as dimensões de guerra civil tentou derrocar regular do presidente Higínio Morínigo. Brasil e Argentina o governo sustentaram o governo contra os sediciosos, que foram derrotados. A intervenção argentina fora firme e a brasileira hesitante. Perón engrandeceu-se até mesmo aos olhos da oposição derrotada, por implementar uma política forte, em contraposição ao abandono do Paraguai por parte do Brasil, na avaliação do presidente Berres do vizinho Uruguai.

Ibidem, relatório, Buenos Aires, 29 fev. 1948, AHI, lata 2122, maço 37966. José Roberto de Macedo Soares a Raul Fernandes, ofícios, Montevidéu, 12-13 mar. 1948, AHIBR, caixa 1. 18 19

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Por ocasião de uma viagem a Bogotá, em contatos com autoridades brasileiras e argentinas, o ministro paraguaio das Relações Exteriores, César Vasconcelos, reclamaria de seus respectivos países maior atenção ao Paraguai. Esperava a conclusão pelo Brasil da estrada de ferro para Ponta Porã e da estrada de rodagem para Foz do Iguaçu. Esperava investimentos argentinos. Lembrou-lhe o chefe da missão brasileira em Assunção que o Brasil esperava do Paraguai necessária estabilidade política em que assentar as iniciativas de cooperação com países vizinhos20. Cauteloso como convinha, mas de ouvidos estendidos à oposição argentina ao regime de Perón, Freitas-Valle, então embaixador em Buenos Aires, embora com repugnância, ouvia dessa oposição o plano diabólico que o peronismo arquitetava, de fomentar a instabilidade paraguaia ao extremo, para justificar uma intervenção salvadora e a posterior espontânea anexação. As tramas urdidas pelas oposições aos regimes fortes do Paraguai e da Argentina, “verdadeira onda de intrigas com que os adversários do governo procuram dificultar-lhe a tarefa”, no dizer do representante brasileiro em Assunção, Julio Augusto Barboza Carneiro, derramavam-se constantemente sobre a correspondência diplomática e chegavam aos respectivos governos com extrema facilidade. Não fosse um permanente destilamento dessas intrigas e uma atitude de prudência a seu respeito, no momento em que eram digeridas pelas máquinas burocráticas dos negócios estrangeiros, as relações entre os países tenderiam forçosamente à deterioração21. A competição entre Brasil e Argentina por influência na América do Sul não era, contudo, armação das oposições. A Conferência de Bogotá permitiu ao chanceler argentino Juan Atilio Bramuglia contatos com autoridades de países do Pacífico, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia e Venezuela, que logo após demandavam Buenos Aires com o objetivo de firmar acordos e intensificar o comércio de minerais em troca de cereais. Freitas-Valle, alarmado como sempre, denunciava essa

Idem, ofício, Montevidéu, 13 de mar. 1948, AHIBR, caixa 1. Barboza Carneiro a Raul Fernandes, ofício, Assunção, 19 de mar. 1948, AHIBR, caixa 1. 21 Freitas-Valle a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires. 22 maio 1948, AHIBR, caixa 1. Barboza Carneiro a Freitas-Valle, ofício, Assunção, 3 jun. 1949, AHIBR, caixa 1.

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“gravitação argentina no Pacífico”22. Oswaldo Furst em Buenos Aires e Álvaro Teixeira Soares em Montevidéu reforçavam as desconfianças. Denunciava o primeiro a exigência de Perón no sentido de cobrar maior empenho de sua diplomacia na orientação da “política expansionista argentina”. Teixeira Soares, que seria um renomado historiador da diplomacia brasileira, analisou, com preocupação, o movimento no sentido de reconstituir o vice-reino do Prata, sob a égide do general Perón: Quando uma ditadura demagógica, como a do general Perón, conta com um pugilo de publicistas, empenhados em justificar sua programação interna e internacional, há necessariamente que atentar para a circunstância de que essa campanha de proselitismo pode aprofundar-se no espírito das massas, facilmente conduzidas por um chefe que tenha elã.

O sistema ideológico do peronismo, assessorado por publicistas e historiadores, segundo Soares, destinava-se a provar aos países americanos que o país estava fadado à grande missão histórica de reconstituir a antiga unidade administrativa colonial. Condições favoráveis à realização do ambicioso projeto eram fornecidas pelas vizinhanças, onde somente Brasil e Uruguai apresentavam consistência capaz de resistir. O Chile havia-se enfraquecido pela crise econômica e andava longe da força que ostentara no século XIX. A Bolívia, atormentada por crises políticas e econômicas, estava à mercê de quem fosse mais rápido em suas iniciativas, Brasil ou Argentina. O Paraguai não passava de uma expressão nominal de soberania, na realidade um quintal da Argentina. Pequena democracia bem organizada, o Uruguai fazia exceção mas também sobre ele se derramava a pressão argentina. Em suma, a penetração econômica e comercial da Argentina sobre os países do Cone Sul estava a respaldar o projeto expansionista, que a assessoria intelectual de Perón desejava anexacionista23. Freitas-Valle a Raul Fernandes, relatório, Buenos Aires, 17 jul. 1948, AHIBR, caixa 21. 23 Oswaldo Furst a Hildebrando Accioly, relatório, Buenos Aires, 9 set. 1948, AHIBR, caixa 21. Álvaro Teixeira Soares a Hildebrando Accioly, ofício, Montevidéu, 15 set. 1948, AHIBR, caixa 1. 22

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As apreciações alarmistas dos diplomatas brasileiros quanto ao suposto expansionismo argentino veiculavam interpretações distorcidas de inúmeros fenômenos contemporâneos. Assim, o chamado armamentismo argentino era complemento acessório de tal política. Por outro lado, também não hesitavam esses diplomatas em atribuir à mão argentina os golpes de Estado ou a instabilidade política que se verificavam em diversos países: Chile, Uruguai, Peru, Venezuela, Paraguai e Bolívia. Comprovou-se, apenas, o envolvimento de dois funcionários argentinos em uma tentativa de golpe para derrubar o presidente chileno Gonzalez Videla, em fins de 1948, mas as lentes da desconfiança diplomática brasileira, durante o governo de Dutra, tendiam a identificar a ação peronista com toda instabilidade política, já que refletiam um suposto plano de instalar governos ou regimes fascistas na América do Sul24. A diplomacia da intriga, provavelmente instigadapela chancelaria brasileira, prenunciava a diplomacia da obstrução. A legação brasileira em Buenos Aires definiu no início de 1949 essa orientação que os diplomatas brasileiros acreditavam corresponder à estratégia expansionista da política argentina na América do Sul: O conjunto dos fatos acima expostos, além de muitos outros sucedidos nos últimos tempos, inclusive aqueles relacionados diretamente com o Brasil, parecem indicar ter o governo do general Perón uma política externa própria em relação à América do Sul. Fundamentada por certo em velhas aspirações e persistentes sonhos, que desde sempre, com maior ou menor intensidade, envolveram Buenos Aires, haveria tomado agora nova e mais ousada amplitude, muito embora sem se afastar do terreno das realidades. Dá mostras de ser uma política ativa, expansionista, que procura, inicialmente, ganhar posições chaves, por etapas previamente estudadas. Sente-se um plano e a mão que o dirige. O objetivo mediato: a hegemonia continental. Buenos Aires, de imaginação fértil, ambiciona o bastão do comando25. Álvaro Teixeira Soares a Hildebrando Accioly, ofício, Montevidéu, 8 out. 1948, AHIBR, caixa 1. Legação do Brasil a Hildebrando Accioly, relatório, 7 dez. 1948; ofícios, 8 e 18 dez. 1948, Buenos Aires, AHIBR, caixa 21. 25 Legação do Brasil ao MRE, relatório, Buenos Aires, 11 jan. 1949, AHIBR, caixa 22. 24

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Torna-se evidente, portanto, que as prevenções inerentes às interpretações veiculadas nos documentos diplomáticos produzidos por representantes brasileiros no Cone Sul, um fato capaz de induzir per seefeitos concretos, também deturpavam a realidade, outro fato a contaminar a política exterior, deteriorando-a e desviando-a de suas funções naturais, de promover os interesses e o bem-estar dos povos. Em janeiro de 1949, designado embaixador do Brasil, chegou a Buenos Aires o general Milton de F. Almeida. O novo representante do general Dutrajunto ao general Perón, paradoxalmente, contribuiria para aliviar as tensões que os pesados ofícios e relatórios com que os diplomatas de carreira do Itamaraty inundavam a chancelaria, descrevendo o sombrio horizonte das relações regionais, alimentavam. Convidado por Perón, antes mesmo de apresentar suas credenciais, com ele conversou por mais de uma hora, no dia 31 de janeiro, ficando encantado com a “extrema cordialidade” com que foi recebido. Confessou-lhe o líder argentino sua satisfação em contar em Buenos Aires com um colega de armas e homem de confiança do presidente Dutra. Os assuntos tratados durante o encontro foram: o combate ao comunismo na América Latina, para o qual Perón esperava a cooperação entre os dois países; a crítica dos jornais brasileiros ao regime argentino, que irritava Perón, pessoalmente responsável pelo silêncio da imprensa argentina, proibida de revidar por ordem do presidente; o armamentismo argentino, que Perón afirmou ser um instrumento de campanha política das oposições para perturbar as relações bilaterais, tanto é que abria ao embaixador brasileiro o acesso a todos os quartéis e fábricas de armas do país26. Com bom senso e visão política de qualidade superior à dos diplomatas, tratou logo Milton F. de Almeida de desativar os alarmas acerca dapolítica expansionista argentina, interpretando como benévola e benéfica a cooperação regional que o país levava a efeito mediante a promoção do comércio, a ajuda para obras públicas e os investimentos nos países vizinhos27. As numerosas caravanas de estudantes (nove 26 27

Milton deF. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 3 fev. 1949, AHIBR, caixa 22. Idem, ofícios, Buenos Aires, 3 fev., 6, 21 e 28 jun. 1949, AHIBR, caixa 22.

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somente nas férias de fim de ano de 1948) e intelectuais brasileiros que demandavam a Argentina, vistas pelo seu predecessor e diplomata de carreira Freitas-Valle como veículo danoso de propaganda do regime no Brasil, eram consideradas convenientes para o relacionamento bilateral pelo general embaixador, que solicitou o empenho do Itamaraty em informá-lo para que colocasse os serviços da embaixada à disposição desses turistas admiradores do peronismo28. Embora reconhecendo o caráter pouco democrático do exercício do poder, o controle de imprensa e a imposição do Partido Peronista por meios coercitivos, o novo embaixador eliminou da correspondência diplomática os adjetivos pejorativos acerca do regime que enfeitavam os textos anteriores29. Comentando uma troca de correspondência entre ospresidentes Perón e Gonzales Videla, do Chile, em novembro de 1949, em uma tentativa de restabelecer o bom entendimento após a intervenção de dois funcionários argentinos, em um complô levado a efeito um ano antes com o intuito de derrubar o governo Videla, Almeida não considerou que a iniciativa viesse apaziguar os ânimos em definitivo. Em caso de agravamento futuro das relações argentino-chilenas, pensava que a ação do Itamaraty ou do Departamento de Estado seriam as únicas capazes de mediar o conflito30. Com a nomeação de Almeida para o posto de Buenos Aires, o governo brasileiro parecia que recuperava, portanto, a orientação cooperativa com relação à Argentina de Perón. O clima de cordialidade, restabelecido pelo embaixador Almeida em 1949, permitiu aos dois países atualizar os instrumentos que regularizavam o comércio bilateral, aliviando mais este setor de constrangimentos que obstruíam o intercâmbio, com sérios prejuízos para os consumidores de ambos os lados. O comércio bilateral regia-se por um acordo de 1941, que o Brasil denunciara em 1947, mas que fora prorrogado depois até 31 dedezembrode 1948. Quando Almeida chegou a Buenos Aires, o comércio bilateral carecia de qualquer instrumento regulador, havendo caído no regime geral dos inconvenientes Ibidem, ofícios Buenos Aires, 16 fev. e 18 jul., 23 set. 1949, AHIBR, caixa 22. Ibidem, ofício, Buenos Aires, 3 ago. 1949, AHIBR, caixa 23. 30 Ibidem, ofício, Buenos Aires, 22 nov. 1949, AHIBR, caixa 24. 28 29

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que constituía o sistema de controles de câmbio, de listas de importação e de quotas próprios de Estados intervencionistas. A 16 de maio de 1949, quando já era extrema a necessidade de produtos argentinos no Brasil e brasileiros na Argentina, firmou-se, enfim, o novo convênio. Em razão de seus dispositivos, o Brasil adquiria 600 mil toneladas de trigo a 36 pesos o quintal e mais 300 mil na forma e condições a serem fixadas posteriormente. Para os demais produtos do comércio tradicional entre os dois países criavam-se facilidades e estabelecia-se que seu preço deveria situar-se na média do triênio 1946-1948. A Argentina importava madeiras, fios e tecidos, frutas, erva-mate, cacau, tabaco, café, ferro e aço e seus manufaturados, metais não ferrosos e seus manufaturados, fibras, chá, ceras, drogas e produtos medicinais e veterinários. O Brasil importava, além do trigo, frutas frescas e secas, alho, manteiga, queijos, aves congeladas, couro e lãs, artigos de couro, medicamentos, sêmola e alpiste. O comércio argentino-brasileiro era de grande importância mas decaiu muito nos anos 1947 e 1948, ao tempo da diplomacia das prevenções, em razão de restrições impostas de lado a lado pelos governos, tais como o regime de licença prévia, a fixação de quotas e as proibições de importação de certos produtos. O Brasil jáfora o principal comprador do trigo argentino e voltaria a ser pelos próximos doze meses, em razão do convênio de 16 de maio31. O ano de 1950, ao adentrar outra década, registrou novos condicionamentos nas relações entre os países do Cone Sul. Era nítida a nova maneira com que o presidente Truman mirava para a América do Sul, ante a perspectiva de que a Guerra da Coréia se alastrasse em conflito mundial entre as duas superpotências que haviam estabelecido a rígida divisão do mundo em fronteiras ideológicas. Ante tal perspectiva, uma das prioridades da política exterior norte-americana consistia em restabelecer a solidariedade continental que se alcançara durante a Segunda Guerra Mundial. Para realizar este objetivo, percebia o governo de Truman a necessidade de melhorar as relações com a Argentina de Perón, o único país importante a poder criar dificuldades com sua 31

La Prensa, Buenos Aires, 19 maio 1949, AHIBR, caixa 22.

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política neutralista inerente à 3ª Posição. Os esforços americanos foram coroados de êxito do lado argentino, visto que envolveram créditos com que interromper a queima de reservas para fazer face às necessidades de importação. O bom entendimento entre Argentina e Estados Unidos refletiu-se, na ocasião, em melhora das próprias relações da Argentina com seus vizinhos, em termos políticos e econômicos. Animado com a desobstrução de entraves à ação externa regional, Perón parece haver-se excedido, como era bem de seu estilo, jogando sobre a arena da política regional, e de forma espetacular, nesse ano de 1950, a idéia de retomar o projeto do barão do Rio Branco de constituir o bloco ABC, entre Argentina, Brasil e Chile. Diante da campanha eleitoral para apresidência da República no Brasil, a imprensa argentina, que até então vinha sendo contida por ordens pessoais de Perón e proibida de revidar à sistemática crítica da imprensa brasileira ao peronismo, foi liberada. Mesmo porque Vargas apresentou sua candidatura e contava com as simpatias da opinião peronista. O governo de Dutra passou a ser, enfim, hostilizado pelos editoriais e por notícias sombrias estampados nos jornais de Buenos Aires. Sobrou ao presidente Berres do Uruguai a qualificação de subserviente e lacaio de Dutra. Se com esse fato Perón cogitava influir sobre os resultados da eleição no Brasil ou, quiçá, criar condições para um alinhamento que sempre buscara com o país vizinho, é certo que, pela culatra, sua mudança de atitude excitaria a UDN e o próprio meio diplomático, que contra ele logo se voltariam com redobrado denodo, com a vitória de Vargas e a recondução de João Neves da Fontoura à chancelaria. Noiníciode 1950, aAssociação Brasileira de Imprensa(ABI) votou uma moção de solidariedade com a imprensa argentina, cuja ação era cerceada pelo peronismo. Esse foi o ponto de partida de violenta reação dos jornais portenhos vinculados ao regime, a quase totalidade da imprensa, acusando ser a brasileira, em especial Folha da Manhã, O Jornal, Diário da Noite e revista O Cruzeiro, comprada pelas forças do imperialismo americano, cujo braço na América Latina era precisamente o governo de Dutra32. Mas a campanha de sistemático Milton de F. Almeida ao MRE, relatório, Buenos Aires, 7 fev. 1950 e ofício 19 abr. AHIBR, caixa 25.

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combate a esse governo seria animada logo depois pelo envolvimento da imprensa argentina nas eleições presidenciais que se avizinhavam no Brasil. O Uruguai esforçava-se por manter sua autonomia diante do peronismo. Isso significava evitar o confronto, manter boas relações comerciais e políticas, mas sobretudo significava estar conectado com o Brasil de Dutra. Esses objetivos correspondiam à visão do novo embaixador designado para Montevidéu no início de 1950, Mateo Marques Castro, que mantinha contato permanente com a embaixada do Brasil em Buenos Aires para concertar atitudes diante da Casa Rosada33. A tendência de aproximação da Argentina com os Estados Unidos acentuou-se no mês de março desse ano de 1950 com a viagem a Washington do ministro argentino da Fazenda, Ramón Antonio Cereijo, à procura de entendimentos referentes aos vários aspectos das relações econômico-financeiras entre os dois países34. A viagem fora precedida pela passagem por Buenos Aires do secretário assistente do Departamento de Estado, Edward Miller, considerada auspiciosa para as negociações de Cereijo. O clima de mais íntima eefetiva cooperação entre os Estados Unidos e as repúblicas do hemisfério estava instalado. Urgia à Argentina superar o grave problema da escassez de dólares que estrangulava seu comércio de importação. Embora Perón e seu ministro Miguel Miranda sempre houvessem desprezado a idéia de empréstimos norte-americanos para resolver esse desequilíbrio das contas externas, a eles acabaram por recorrer, pondo em risco a denominada independência econômica com relação aos capitais usurários. Essa aproximação com os Estados Unidos vinha acompanhada de gradual afastamento da Argentina do Reino Unido, uma vez que não se obtinha solução para o problema do preço das carnes e da importação de carvão. O ambiente de “cordialidade e mútua compreensão”, no dizer do embaixador Almeida, estabelecido para as negociações em Washington frutificou em maio com os acertos firmados nos domínios comercial e financeiro. 33 34

Idem, ofício, Buenos Aires, 28 fev. 1950, AHIBR, caixa 25. Rapoport, Spiguel ( 1994).

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Consolidou-se, assim, a tendência de aproximação entre os dois países. Para tanto concorriam como determinações objetivas a pressão de industriais e comerciantes norte-americanos que tinham interesses na Argentina, o pessimismo do governo de Truman diante do cenário internacional, a necessidade de uma sólida harmonia continental, o envio de sucessivas missões militares à Argentina, a virada da opinião norte-americana com relação à Argentina manifesta pela imprensa e pelo Congresso e, enfim, o desempenho dos embaixadores enviados a Buenos Aires depois de SpruilleBraden: George S. Messersmith, James Bruce e Stanton Griffis, entusiastas, por convicção ou conveniência, pelas realizações do regime de Perón em termos trabalhistas, sociais, culturais e econômicos. Nova demonstração das excelentes relações que mantinham então Estados Unidos e Argentina foi a surpreendente aprovação pela Câmara dos Deputados e a ratificação em julho do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, trâmites esses que foram utilizados por Perón para alardear a solidariedade continental e o combate coletivo ao comunismo, tão a gosto norte-americano35. Em agosto desse ano, evidenciando novamente a melhora de suas relações exteriores, a Argentina recebeu a visita oficial do novo presidente do Paraguai, Frederico Chaves, outro entusiasta, que foi a Buenos Aires com a finalidade de “impregnar-se com a doutrina e com a prática peronista”36. Contudo, a aproximação política requeria redobrados esforços para manter os fluxos do comércio entre os países do Cone Sul, que era contido pela escassez de divisas e pelos entraves criados à livre circulação das mercadorias. Em 1949, as exportações argentinas para o Chile caíram em 38% de seu valor, asdo Brasil para a Argentina em 24%, enquanto as exportações argentinas para o Brasil aumentaram 45%. Inúmeras negociações eram mantidas entre os países para se chegar a novos acordos que viessem estimular os negócios37. Milton de F. Almeida ao MRE, relatórios, Buenos Aires, 4 abr., 8 maio, 14 jun. e 25 jul. 1950, AHIBR, caixa 26. 36 Idem, ofício, Buenos Aires, 14 set. 1950, AHIBR, caixa 27. 37Alfredo Polzin a Raul Fernandes, ofícios, Buenos Aires 24 maio e 24 ago. 1950, AHI, lata 2090, maço 37712. 35

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Não perdeu ocasião o governo argentino de externar, em 1950, um ponto de vista acerca do item quarto do Plano Truman que lhe serviu de positiva propaganda no continente. Em virtude desse plano, os Estados Unidos se propunham fornecer auxílio tecnológico e financeiro para os países menos desenvolvidos, mas solicitavam aos mais avançados da América Latina que se incorporassem ao empreendimento em favor de vizinhos menos favorecidos. Brasil e Chile opuseram reservas a esta sugestão, alegando que necessitavam do plano e não de oferecer-lhe alguma coisa. Bem ao estilo do pensamento liberal da UDN e do governo Dutra, que relegava ao exterior a responsabilidade do desenvolvimento, a reação do Brasil ao apelo de Truman foi mesquinha, ao externar frustraçõespela falta de ajuda norteamericana e contribuir para a construção da figura de um país grande esmoleiro internacional, no dizer de Clodoaldo Bueno. A diplomacia argentina reagiu com altivez e patriotismo diante da proposta dos Estados Unidos, afirmando ser já tradicional apolítica de exportar o avanço tecnológico nacional aos países vizinhos com a finalidade de permitir-lhes o incremento da produção. Com efeito, a Argentina contribuía, na medida do possível, para solução de problemas junto aos países vizinhos mediante cooperação técnica, econômica e cultural. Acordos vigentes haviam criado comissões técnicas para realização de obras públicas que indiretamente promoviam a produção e a produtividade econômica. Eram exemplos os acordos com o Chile, a Bolívia, o Uruguai, o Paraguai e outros. Afirmava o embaixador argentino Jeronimo Remorino, referindo-se ao item quarto. “Os problemas do continente são os problemas argentinos e é por esse motivo que qualquer iniciativa, como a que está sob consideração, para melhorar o nível de vida dos povos terá sempre uma cálida acolhida na Argentina”. O embaixador brasileiro em Buenos Aires, Milton de F. Almeida, percebeu, como já se observou anteriormente, agafe política em que incorreu a diplomacia de prevenções e de contenção do governo de Dutra acerca da política de cooperação regional e escreveu ao chanceler Raul Fernandes:

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Como vossa excelência perceberá, o embaixador Remorino fez em seu discurso praça de gestos que não são evidentemente exclusivos da Argentina, pois vêm sendo praticados igualmente por quase todos os países deste continente, entre eles o Brasil. Todavia essa declaração indica uma mudança na conhecida atitude argentina de que resulta o seu isolamento na política continental, assim enveredando, quiçá obrigada pelas prementes circunstâncias de sua atual situação financeira, pelo caminho largo da desejável cooperação internacional38.

Em junho de 1950, dois decretos criaram na Argentina a Comissão Nacional de Energia Atômica e a Junta de Investigações Científicas das Forças Armadas. Destinava-se a primeira a coordenar e estimular as investigações que se realizavam no país e propor medidas tendentes a assegurar o bom uso da energia atômica na atividade econômica do país. Ajunta haveria de assessorar os ministérios militares sobre as possibilidades das investigações que interessassem às forças armadas39. Nada teve, em 1950, tanta repercussão sobre a opinião quanto a proposta de Perón de compor o bloco dos países do ABC, dando conteúdo ao pensamento do barão do Rio Branco. Expôs pela primeira vez essa idéia em fins de abril, em encontro que manteve com o embaixador do Brasil, Milton de F. Almeida. Segundo Perón, as nações fracas deveriam desde logo agrupar-se para formar unidades econômicas, com a finalidade de enfrentar a dominação do mundo por parte das duas superpotências. Brasil, Argentina e Chile, com suas economias complementares, se unidos, multiplicariam sua importância e seu peso nas relações internacionais40. Dirigindo-se, no início de maio, a uma caravana de rotarianos (associados do RotaryClub) que visitaram Buenos Aires, Perón iniciou a série de elogios ostensivos ao barão do Rio Branco. O sentido do acordo ABC tirava inspiração da visão política daquele chanceler 38 Milton deF. Almeida a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires,24 abr. 1950, AHIBR, caixa 25. 39 40

Idem, ofício, Buenos Aires, 20 jun. 1950, AHIBR, caixa 26. Ibidem, ofício, Buenos Aires, 4 maio. 1950, AHIBR, caixa 26.

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brasileiro41. Posteriormente, dirigindo-se a uma caravana de estudantes brasileiros em julho, o presidente Perón voltou a referir-se à obra de Rio Branco, afirmando que seus sucessores não tiveram a grandeza de lhe dar forma e consistência: “Devemospensar o seguinte... disse-lhes: no futuro do mundo somente subsistirão os conglomerados políticos, sociais e econômicos que constituam uma unidade econômica, porque a luta do futuro será essencialmente econômica”42. Nessa ocasião, o jornal de oposição La Nación, a 22 de julho, tomou a liberdade de retificar as palavras do presidente, afirmando que o ABC não havia sido inspirado por Rio Branco. Os jornais peronistas, que constituíam a massa da imprensa argentina, entraram logo a escrever sobre o assunto, demonstrando com documentos que publicavam que o inspirador do ABC fora efetivamente o chanceler brasileiro e que sua filosofia era a do entendimento e cooperação mútua dos três países, cuja integração teria influência benéfica dentro e fora de suas fronteiras. Abria-se assim um verdadeiro precedente na história do periodismo argentino que até então guardava memória do duelo jurídico que Rio Branco tivera com Estanislao Zeballos e da derrota desse em Washington, na questão fronteiriça da zona de Palmas43. A recuperação do pensamento de Rio Branco feriu de morte o chamado revisionismo histórico, outra corrente de pensamento político dedicada ao enaltecimento das idéias e da imagem do ditador Rosas que até então vinha tendo admiradores e cultores entre os nacionalistas argentinos44. Liberada a imprensa peronista para escrever sobre o Brasil por ocasião do enaltecimento de Rio Branco, partiu ela em guerra contra a brasileira, cuja campanha antiperonista ficara sem resposta desde 1947. O objetivo imediato era denegrir o governo e a pessoa do general Dutra, responsabilizado-os pela conduta da imprensa brasileira. Ibidem, ofício, Buenos Aires, 2 jun.. 1950, AHIBR, caixa 26. Ibidem, ofício, Buenos Aires, 31 jul. 1950, AHIBR, caixa 26 43 Ibidem, ofício, Buenos Aires, 9 ago. 1950, relatório 14 ago. AHIBR, caixa 27. Conduru, Guilherme Frazão. O subsistema americano; Rio Branco e o ABC. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v.41, n.2, p. 59-83, 1998. 44 Milton F. de Almeida a Raul Fernandes, ofício, 12 jun. 1950, AHIBR, caixa 26. 41 42

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A verdadeira finalidade era apoiar a candidatura de Getúlio Vargas à presidência, visto que os argentinos esperavam dela o triunfo dos valores dojusticialismo: independência econômica, soberania política e justiça social45. Os fatos que vieram condicionar as relações regionais em 1951 foram, fundamentalmente, o retorno de Vargas ao poder no Brasil e a reeleição de Perón para mais um mandato de seis anos. Reconduzido a seu posto de embaixador em Buenos Aires, João Baptista Luzardo encontrou novamente todas as portas abertas a sua ação. Mas a chancelaria brasileira, a cargo de João Neves da Fontoura, não apreciava o novo clima propício ao entendimento bilateral, preferindo dar continuidade ao ranço diplomático mantido no exercício anterior por Raul Fernandes. Com Fontoura, recuperava a diplomacia brasileira a obsoleta idéia de que o entendimento com a Argentina era prejudicial ao manejo das boas relações com os Estados Unidos. Enfim, 1951 foi o ano do blefe atômico argentino que consistiu em um anúncio sensacionalista no estilo do peronismo demagógico, logo desmascarado. A missão especial que compareceu àposse do presidente Vargas em janeiro de 1951, chefiada pelo chanceler Hipólito Jesús Paz, compunha-se de cinco ministros de Estado, dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados e dos altos chefes das forças armadas. Evidenciava a satisfação do governo argentino com a vitória de Vargas nas urnas e ante a perspectiva de uma nova fase nas relações bilaterais46. A atmosfera política iria contudo transformar-se, sensivelmente, em Buenos Aires, com a chegada, em agosto, do novo embaixador brasileiro, João Baptista Luzardo, um admirador explícito do peronismo e amigo pessoal de ambos os presidentes. A Casa Rosada, o Congresso e a imprensa interpretaram sua designação como o início de uma nova era nas relações entre os dois países, com a possibilidade de se chegar à realização do sonho do ABC. Buenos Aires reservou-lhe uma acolhida apoteótica, nunca vista para o caso de um embaixador e apenas comparável à recepção do mais renomado chefe de Estado. 45 46

Idem, relatórios, 14 ago., 13 set. e 9 out. 1950, AHIBR, caixa 27. Legação do Brasil ao MRE, relatório, Buenos Aires, 15 fev. 1951, AHIBR, caixa 28.

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Acorreram ao aeroporto o presidente Perón e sua esposa Eva Perón, todos os ministros de Estado, generais, almirantes e brigadeiros do ar, os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, todas as altas autoridades do ministério das Relações Exteriores e Culto, uma companhia de infantaria com bandeira e fanfarra para saudá-lo com as continências militares. Acerimônia de entrega das credenciais constituiu, dias depois, outro acontecimento incomum47. Desde osprimeiros relatórios do novo embaixador, o Itamaraty dispunha de uma versão das iniciativas de Perón nos arredores que contrariava os relatórios provenientes do Cone Sul e aprofundava a interpretação do último embaixador em Buenos Aires. Luzardo depurou os textos do cunho negativo e imprimiu-lhes caráter marcado por juízos resolutamente construtivos da ação diplomática do peronismo junto aos países vizinhos. O acordo de 16 de agosto com a Bolívia, escrevia, “revela um notável poder de expansão da economia argentina e um planejamento de política econômica de largo alcance”, como os anteriores concluídos com o Chile e o Peru. Dado o vulto dos interesses brasileiros nesses países, convinha frisar a importância de tais acordos para o movimento da diplomacia brasileira, caso pretendesse esta, como se supunha, manter nesses países sua presença48. Desde sua chegada, Luzardo empenhou-se em regular por longo prazo o conturbado comércio entre o Brasil e a Argentina, mediante um tratado negociado com todo o cuidado. Encontrou boas disposições por parte das autoridades argentinas, o que lhe permitiu fazer avançar as negociações prévias, mas esbarrou na má vontade da chancelaria dirigida no Rio de Janeiro por João Neves da Fontoura, que Vargas convidara para chanceler, com o intuito de acalmar a oposição encantonada na União Democrática Nacional (UDN ). O fato demonstra que Vargas tinha a intenção de reproduzir em seu segundo governo o mesmo esquema do primeiro: trazer para dentro da máquina do poder as correntes da opinião e dos interesses Idem, relatório, Buenos Aires, 14 set. 1951, AHIBR, caixa 30. Baptista Luzardo a João Neves da Fontoura, ofícios, Buenos Aires, 11 set.e31 out. 1951, AHIBR, caixa 30. 47 48

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expressas socialmente. Fê-lo com extraordinário êxito durante seu primeiro mandato, legitimando, desse modo, em certa medida, até mesmo o período ditatorial de 1937 a 1945, quando, do alto, administrava a intriga, em uma demonstração de arte política, e realizava seu projeto nacional. Durante o segundo mandato, em pleno regime democrático, mas não por isso, seu esquema não reproduziu o êxito anterior; ao contrário, encaminhou-oparaum impasse governamental. Desde o início, o desempenho de Luzardo em Buenos Aires eratorpedeado pelo Itamaraty49. Ao comentar o resultado das eleições de 11 de novembro de 1951 que reconduziram Perón à presidência com aprovação de 66% do eleitorado, prevendo a reação do ministro, quis Luzardo preveni-lo e mesmo dar-lhe um lição de engenharia política, em relatório que lhe enviou: É importante que se dê às eleições do dia 11 de novembro (escreveu-lhe) o seu justo valor e significação. Apreciá-las, com intransigência, à luz de princípios diferentes ou de tendências opostas (que, por exemplo, levassem a crer ou a desejar que houvessem sido o produto de uma mistificação) poderia conduzir a atitudes ou orientações, no campo das relações internacionais, que não fossem as mais verdadeiras ou convenientes50.

Ao que parece, Perón tentou remediar ao impacto muito negativo à imagem de seu país nos demais países do continente, particularmente nos Estados Unidos, provocado pelo fechamento do jornal de oposição La Prensa, com o anúncio de uma espetacular descoberta científica no domínio da energia atômica, que colocaria a Argentina à frente das pesquisas e das possibilidades de aproveitamento econômico e militar dessa forma de energia no mundo todo. Esse anúncio, feito no dia 24 de maio, às vésperas da IV Conferência dos Chanceleres Americanos em Washington, haveria de polarizar em torno da Argentina os debates que se desenvolveriam e esta era uma tática propagandística do peronismo para angariar apoio de chancelarias latino 49 50

Idem, ofício, Buenos Aires, 20 dez. 1951, AHIBR, caixa 30. Ibidem, relatório, Buenos Aires, 22 dez. 1951, AHIBR, caixa 30.

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americanas a resoluções que desejava ver aprovadas. A engenhosa descoberta teria resultado das pesquisas do físico austríaco Ronald Richter na ilha Huemul do lago Nahuel Huapi, perto de San Carlos de Bariloche, onde logo seria criada a Usina Nacional de Energia Atômica. Seu impacto seria enorme, tendo em vista a aplicação que preparara da energia atômica, não só ao domínio militar, mas sobretudo ao industrial, que passaria por uma revolução nos setores siderúrgico, em turbinas e caldeiras. Passado o impacto, embora não houvesse desmentido oficial, percebeu-se tratar-se de manobra política característica da inabilidade da diplomacia peronista. Apesar de se saber que a Argentina desenvolvia pesquisas atômicas desde 1946, os meios científicos mundiais receberam o anúncio com ceticismo inicial, para depois desacreditá-lo por impossível. A imprensa, sobretudo a americana, usou-o para lançar o ridículo sobre o peronismo. Alegação brasileira em Buenos Aires reagiu com cautela, aventando as graves conseqüências do fato, caso sua veracidade fosse comprovada, e menosprezando-o, caso fosse mais uma manobra de prestígio da propaganda peronista. Nos Estados Unidos, entretanto, os dois fatos conjugados, o fechamento de La Prensa e o anúncio sensacionalista com a finalidade de influir sobre os resultados da IV Conferência, colocaram o Departamento de Estado em situação crítica, acusado que era de haver favorecido a Argentina em detrimento de outros países confiáveis da América Latina, em uma tendência inadequada para as relações hemisféricas, inaugurada e mantida pelos embaixadores que sucederam Braden em Buenos Aires e recentemente reafirmada pelo secretário adjunto para Assuntos Latino-americanos, Edward Miller. O favoritismo argentino nos Estados Unidos estava em risco51. Convém, pois, frisar o fato de se haverem revertido as simpatias de Washington para a Argentina, em detrimento do aliado especial, o Brasil, fato confirmado pela documentação diplomática e ignorado pela literatura especializada que não a compulsa. Maior significado Legação do Brasil ao MRE, ofício, Washington, 28 mar. 1951, AHI, armário, maço 45497; Buenos Aires, ofícios, 3 e 12 abr. 1951, AHIBR, caixa 29; relatórios, 6 abr. 1951, AHIBR, caixa 1; relatório 11 e 16 jun. e 10jul. 1951, AHIBR, caixa 30.

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adquire esse deslocamento das simpatias americanas, se se considera que ocorreu precisamente durante o governo de Dutra, subserviente aos interesses norte-americanos, os quais respaldava internamente e sobre o cenário internacional, e durante o governo de Perón, que os confrontava, se julgados contrários aos interesses nacionais. Estaria a grande potência disposta a apreciar a quem a enfrenta de igual para igual e a desprezar a pusilanimidade política? As negociações para o tratado de comércio com o Brasil, iniciadas desde a chegada do novo embaixador brasileiro a Buenos Aires, não evoluíram satisfatoriamente. Em janeiro de 1952, Luzardo encaminhou ao Itamaraty as boas sugestões da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira, que sempre se empenhara no sentido do entendimento comercial entre osdoispaíses. Demonstrava-se, por um lado, a capacidade argentina de importar produtos brasileiros, mas, por outro, a situação de inferioridade do Brasil, devida a sua condição de comprador de trigo. Os embaraços vinham, segundo Luzardo, cujo entendimento coincidia com o parecer da Câmara, sobretudo da parte do governo argentino, que deixava os importadores em situação de desânimo com os entraves burocráticos e políticos de toda ordem que transformavam o comércio “numa aventura incerta e nem sempre límpida e clara”. Do tratado esperavam-se, portanto, dois efeitos: primeiro, o de afastar os entulhos administrativos que emperravam os negócios e, segundo, a possibilidade de planejar as operações pelo menos para dois ou três anos à frente52. Neves da Fontoura não esmorecia em seus esforços para torpedear a ação peronista nos países vizinhos. A 29 de dezembro de 1952, despachou uma circular secreta a todas as missões diplomáticas da América com um estudo das atividades da diplomacia peronista em alguns países, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, em especial. Em seu posto privilegiado de observador, Buenos Aires, Luzardo respondeu ao Itamaraty, em longo ofício que foi seu testamento diplomático, discordando essencialmente da visão que o Ministério das Relações Exteriores brasileiro divulgava acerca do expansionismo argentino, 52 Baptista Luzardo a João Neves da Fontoura, ofício, Buenos Aires, 17 jan. 1952, AHIBR, caixa 31.

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refutando seus argumentos e interpretando de outro modo a presença peronista na América do Sul. Explicava a expansão, não com base no rosismo ou no peronismo, como fazia o chanceler brasileiro, mas por condições e necessidades econômicas decorrentes da configuração econômica argentina, superior a de seus vizinhos. Essa base econômica impulsionava todo imperialismo, segundo Luzardo, e não a doutrina política, que apenas ocasionalmente vinha-lhe servir de acréscimo. Assim, a Argentina tinha motivos para buscar fora de suas fronteiras a complementação econômica que lhe faltava para robustecer sua potência. O peronismo ou o justicialismo apareciam como o processo político de se avançar nesse destino, e não como sua causa, mesmo porque se tratava de país “satisfeito de suas condições econômicas, transbordando de humanidade e avesso a imperialismos”. Tanto é que a expansão argentina vinha acompanhada de generosa filosofia integracionista dos países da América Latina com a finalidade de remediar a sua sorte e eliminar a exploração norte-americana. Não havia projeto algum de reconstituição do vice-reino do Rio da Prata. O Brasil poderia prosseguir opondo-se à formação de blocos de países na América do Sul, concedia Luzardo, tendo em vista suas especiais e frutíferas relações com os Estados Unidos, mas lhe convinha por certo abandonar a política de obstruir sistematicamente “tudo o que sejam ligações perpétuas ou duradouras entre tais países”. O modo com que o Brasil deveria enfrentar o expansionismo argentino era o de cooperar concretamente e por empreendimentos duradouros com o desenvolvimento dos povos vizinhos, aliando-se à filosofia cooperativa do peronismo e cooptando a ação dos Estados Unidos53. De nada serviram ao Itamaraty a visão moderna das relações regionais e o conselho do embaixador Luzardo. Neves da Fontoura, o Braden brasileiro, ao invés de ser demovido de sua diplomacia de obstrução da cooperação regional argentina, firmou-se ainda mais nessa linha de conduta e transformou o ano de 1953 no da ruptura radical com a diplomacia integracionista argentina, a pretexto da projetada união aduaneira entre o Chile e a Argentina, ante a qual Vargas hesitou. 53

Idem, ofício, Buenos Aires, 28 jan. 1953, AHIBR, caixa 1.

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A reeleição de Perón e a recondução de Carlos Ibañez del Campo ao governo pela vitória da oposição chilena criaram condições favoráveis à aproximação entre os dois países. Os dois presidentes firmaram em Santiago, a 21 de fevereiro de 1953, a Ata de Santiago, uma declaração de intenções de constituir a união econômica entre o Chile e a Argentina, com a possibilidade de adesão de outros países para a formação do bloco regional. O entusiasmo do governo chileno diante das possibilidades desse processo de integração pela via do regionalismo aberto era tão forte que a ministra da Educação, Maria de la Cruz, talvez pensando em reproduzir em seu país o fenômeno Evita Perón, afirmava ter-se chegado com a invenção do justicialismo ao fim e à superação da época do cristianismo. Como em outros casos de anúncios espetaculares da diplomacia peronista, este também revelar-se-ia inábil e contraproducente. Passado como sempre o impacto da surpresa, a opinião em todo o mundo logo tomaria a declaração por palavras vazias, menos Neves da Fontoura, que manifestou sua irritação em público, devendo ser exonerado por Vargas. O periódico Tribune de Genebra considerou o projeto um fogo de artifício; La Prensa escrevia de Lima que nenhum povo na América renunciaria a sua autonomia para fazer parte de outro Estado; Le Monde de Paris considerava tudo uma manobra com apoio dos comunistas para criar na América do Sul um bloco antiamericano; já La Nación de Buenos Aires mostrava-se esperançoso tanto em relação aos dois países que firmaram a Ata de Santiago quanto em relação às adesões de toda a América Latina; El Tiempo de Bogotá confessava ser impossível realizar o anseio de Perón; a imprensa norte-americana revelava ceticismo, interpretando a Ata como um malogro da visita de Perón ao Chile já que produzira apenas vagas intenções ao invés de resultados concretos54. À semelhança e convergindo com o pensamento de Luzardo em Buenos Aires, o encarregado de negócios W. Pimenta Bueno, desde 54 Francisco d’Alamo Lousada ao MRE, telegrama, Berna, 14 jan.; Legação do Brasil a João Neves da Fontoura, ofício, Lima, 21 fev.; Carlos Celso de Ouro Preto ao MRE, telegramas, Paris, 26 fev.; Baptista Luzardo ao MRE, ofício, Buenos Aires, 27 fev.; Legação do Brasil ao MRE, ofício, Bogotá, 22 fev.; João Carlos Muniz ao MRE, telegrama, Washington, 2 mar. 1953, AHI, armário, maço 39871.

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Assunção, fez uma apreciação sobre a política brasileira no Paraguai, sua orientação, seus órgãos e seus resultados, encaminhando-a a Neves da Fontoura com uma crítica mais sutil à ação da diplomacia brasileira no Cone Sul que, durante o governo de Dutra e, depois, durante a gestão de Neves da Fontoura, Luzardo qualificara de apenas obstrutora da presença argentina. Reconhecia Pimenta Bueno a grandiosidade do aparato brasileiro em Assunção, somente inferior ao dosEstadosUnidos. Compreendia essa presença brasileiro, em solo guarani, a missão diplomática, a militar, a cultural, o Instituto Paraguai-Brasil, o consulado, o escritório comercial, o Correio Aéreo Nacional, a agência do Banco do Brasil e o Serviço de Navegação da Bacia do Prata. Esse dispositivo custava aos cofres públicos 100 mil dólares mensais. Embora se pudesse aparentemente justificar, em razão dos interesses do Brasil, esse dispêndio elevado, a ação desses órgãos era quase nula, porque orientada para influenciar pessoas de comando em um país de extrema instabilidade política e mudanças bruscas de dirigentes. Conveniente seria mudar essa política e orientá-la para obtenção de resultados em dois domínios: prover o Paraguai de comunicações duráveis que lhe abrissem as portas do Brasil e do Atlântico, concluindo a rodovia entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero e a ferrovia com terminais em Santos e Porto Esperança; sobre essa base física, firmar entendimentos para cooperação econômica e intercâmbio comercial e cultural55. Apreciações como essas de Luzardo e Pimenta Bueno eram raras, visto que os representantes brasileiros nos países da América do Sul tendiam a acompanhar o pensamento do Itamaraty, que correspondia à visão retrógrada da União Democrática Nacional, partido político avesso à cooperação regional e servil diante dos interesses norte-americanos no continente. Enquanto esteve sob a direção de Raul Fernandes, João Neves da Fontoura e Vicente Rao, o Itamaraty fazia na América do Sul o trabalho que a própria diplomacia americana se negou a executar, de torpedear a ação da Argentina de Perón, pensando assim agradar ao Departamento de Estado, quando lhe convinha, por W. Pimenta Bueno a João Neves da Fontoura, ofício, Assunção, 6 mar. 1953, AHIBR, caixa 1. 55

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todos os títulos, acompanhar a ação integracionista proposta por Perón, depurando-a – o que estava em condições de alcançar – de seu caráter hostil à potência hegemônica do hemisfério. O sucessor de Luzardo em Buenos Aires, Orlando Leite Ribeiro, também percebeu o rumo inconveniente da política brasileira para a América Latina e não via razão para “hostilizar a idéia argentina” da integração econômica. Pelo contrário, propunha também esse diplomata outra atitude diante dos países da América do Sul: “aceitar em tese o princípio da integração econômica” e concorrer para tornar-se o Brasil o centro desse movimento com base na força de sua indústria e na criação da infra-estrutura de comunicação rodoviária, ferroviária e fluvial entre os países da região. Desse modo se faria face ao descaso dos Estados Unidos pela América Latina, que vinha desde o término da Segunda Guerra e que se perpetuava no propósito exclusivo de combate ao comunismo56. O pensamento político brasileiro aplicado às relações regionais dividiu-se, portanto, nos anos 50, entre a corrente obstrutora da integração regional, que prevalecia na cúpula da chancelaria e que contribuiu para o malogro da diplomacia peronista, e a que respaldava essa linha de ação, representada por diplomatas de segundo escalão, que triunfaria ao final da década, com a Operação Pan-Americana.

4.2. Um balanço das relações interamericanas nos meados dos anos 50, à época de Perón, Vargas e Pérez Jiménez A 19 de novembro de 1953, o Itamaraty enviou uma circular a todas as missões diplomáticas brasileiras no continente, solicitando um relatório pormenorizado acerca da situação interna e da política exterior de cada país, bem como sugestões para compor a agenda da X Conferência Internacional Americana, prevista para realizar-se em Caracas em março de 1954. Atingia-se então o clímax da primeira Guerra Fria. Os Estados Unidos obtiveram dos países americanos, nessa 56

Orlando Leite Ribeiro a Vicente Rao, ofício, Buenos Aires, 22 dez. 1953, AHIBR, caixa 31.

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conferência, a aprovação de resoluções anticomunistas. Os relatórios que chegaram ao Itamaraty compõem um volume de informações abundantes sobre os países americanos e as relações interamericanas, de cuja análise se pode traçar um perfil estático do continente naquele ano de 1953, consoante a visão dos representantes diplomáticos brasileiros que chefiavam as embaixadas junto às repúblicas americanas. a) Estados Unidos O embaixador João Carlos Muniz, em Washington, fez uma apreciação sobre a capacidade do novo governo republicano, inaugurado com a eleição de Dwight D. Eisenhower, de implementar uma nova política para com a América Latina. O pessimismo era natural, entretanto, diante dessa possibilidade, visto que a tensão da Guerra Fria obscurecia nos Estados Unidos os espíritos e deprimia a moral pública, até mesmo a ética política, envolvendo-se todos os órgãos de governo, inclusive o Congresso, convertido em órgão de investigação, com as preocupações em torno da segurança e do combate ao comunismo. Para Muniz, a América Latina tinha uma visão de mundo e alimentava uma perspectiva de relações internacionais alheias às preocupações dos tomadores norte-americanos de decisão. Até julho de 1951, quando a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, criada em dezembro de 1950, iniciou seus trabalhos, o Banco de Exportação e Importação concedera ao Brasil empréstimos no montante de 169 milhões de dólares e o Banco Mundial, outros 105 milhões. Após essa data, o primeiro emprestara mais 495 eo segundo 48, totalizando, no total dos empréstimos americanos desde 1939, 817 milhões de dólares. Desses, 300 milhões foram aplicados à liquidação de atrasados comerciais, o que vale dizer que apenas 517 destinaram-se a investimentos em projetos de desenvolvimento econômico. Avaliando as obrigações do serviço dessa dívida nos próximos anos, Muniz considerava praticamente esgotado o crédito brasileiro nos Estados Unidos, a menos que uma mudança importante ocorresse na política norte-americana para a América Latina. Essa possibilidade foi, contudo, descartada pelo secretário Maury Gurgel Valente, que redigiu a segunda parte do relatório de Washington, acerca 180

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da posição do governo dos Estados Unidos quanto aos problemas interamericanos. Na primeira parte de sua análise, Valente expôs os pronun ciamentos do governo republicano, da campanha eleitoral de 1952 ao momento presente. Uma das teses alardeadas pelos republicanos era justamente a negligência dos anteriores governos democratas pelas legítimas aspirações dos países da América Latina. Eisenhower, como candidato, criticara diversas vezes a falta de um programa mútuo destinado a resolver os problemas econômicos continentais a longo prazo. Foster Dulles disse ao Senado, antes de assumir o cargo de secretário de Estado, que a posição dos Estados Unidos na América Latina se havia deteriorado em razão daquela negligência e que, em caso de necessidade, não era certa sua solidariedade. A infiltração comunista e o nacionalismo exagerado eram, a seu ver, os dois fenômenos mais graves observados. Noventa dias após o início do governo, Eisenhower decidiu mandar seu irmão Milton Eisenhower a dez países da América Latina com a finalidade de corrigir aquela aludida negligência dos democratas. A 23 de junho de 1953 iniciou sua viagem, ao termo da qual apresentou um relatório, que veio a público a 22 de novembro. O Relatório Eisenhower, segundo Valente, nada continha de original, porquanto todo seu conteúdo poderia ser retirado das informações diplomáticas e jornalísticas. Constituía um repositório das teses sustentadas pelos representantes latino-americanos em negociações multilaterais e bilaterais com os Estados Unidos. Amissão, portanto, era vazia de propósitos e seu significado não ia além de um gesto de boa vontade. As nove recomendações que vinham à cauda do relatório não faziam prever nada relevante, suscetível de equacionar a conjuntura interamericana. O único efeito imediato da missão Eisenhower foi a distensão obtida nas relações com a Argentina. Afora este benefício, podia-se compará-la com asmanifestaçõespropagandísticas do peronismo. Fez-se, com efeito, um bom diagnóstico, sem terapia. Outra missão à América Latina teve desempenho similar na época para a formulação da política continental dos Estados Unidos. Foi a do senador Homer Capehart, cujas conclusões evidenciavam certo 181

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paralelismo com o Relatório Eisenhower, porém ainda mais impregnadas da ideologia da Guerra Fria. Valente previa para os próximos anos o prosseguimento da negligência dos Estados Unidos e a concentração de seus esforços em uma meta única, o combate ao comunismo. A delegação americana à Conferencia de Caracas seria instruída nesse sentido, porém não seria autorizada a aprovar qualquer ajuda oficial do governo americano para as tarefas da repressão, que haveria de ser custeada com recursos próprios dos países latino-americanos. Como Moscou dava pouca importância à América Latina, os Estados Unidos também lhe dariam, concluía Valente. O relatório da embaixada brasileira em Washington confirmou, portanto, a retórica republicana, que criticava a negligência da política dos democratas com relação à América Latina, mas que aprofundou a mesma atitude, afunilando as preocupações dos Estados Unidos na exclusiva direção da segurança continental, no contexto da Guerra Fria, convertida em valor, fim e movimento prioritário de sua diplomacia. Frustravam-se os latinos, cada vez mais, e eram por isso culpados pelos intérpretes políticos e estratégicos dos Estados Unidos, que os qualificavam, pejorativamente de nacionalistas. Como se a América Latina, não tendo a Guerra Fria como escopo político, fosse antiamericana. Particular decepção recolheu o governo de Vargas que viu exaurir-se a cooperação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, cujos trabalhos encerraram-se em 1953, sem nada haver trazido de concreto para o desenvolvimento. b) México, América Central e Caribe Adolfo Cardoso de Alencastro Guimarães, embaixador no México, indicou os dois eixos da política exterior do país, as relações com os Estados Unidos, em primeiro lugar, e com os países da América Central, em segundo. Distante da América do Sul, o México pretenderia apenas exercer nas relações latino-americanas um papel moderador. Opunha-se à formação de blocos, por isso não manifestava intenção de estender um olhar ativo para o lado do Brasil e da Argentina. Esperava pelo malogro da Conferência de Caracas.

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Décio Martins Coimbra, embaixador em San Salvador, apresentou um balanço econômico positivo da América Central, que havia acumulado divisas durante a Guerra Mundial e prosseguira fazendo-o depois, em razão dos bons preços dos produtos agrícolas, particularmente do café. El Salvador tomara a iniciativa de criar uma organização regional, nascendo assim a Organização dos Estados Centro-Americanos (Odeca), em 14 de novembro de 1951. Todos os países aderiram, exceto o Panamá, porém a Guatemala se retirara, alegando voltar-se a associação apenas para o combate ao comunismo ao invés de fomentar o desenvolvimento social. Atribuía-se a El Salvador o propósito de liderar a ação anticomunista na América Central. De Honduras, o ministro Pedro Alcântara Nabuco de Abreu Filho registrou o isolamento desse país e sua aversão ao comunismo, alinhando-se contra o governo de esquerda da Guatemala no seio da Odeca. Da Conferência de Caracas, desde Tegucigalpa, esperavam-se medidas de combate ao comunismo e uma demonstração de desentendimento generalizado no continente. O Haiti acompanharia a orientação de Washington, segundo o relatório do ministro Manuel Vicente Cantuária Guimarães. Não seria o caso da Guatemala, segundo o ministro Raul Bopp. Em outubro de 1944 triunfara uma revolução social no país, em grande parte movida pelos estudantes, que derivou com o tempo para a esquerda, abrindo-se à penetração da influência comunista, sem, contudo, sacrificar os mecanismos de eleições livres para a presidência, que se mantinham. A Guatemala via-se, portanto, isolada, como regime de esquerda, que concedia asilo político a perseguidos de países vizinhos e era por eles hostilizada. Temia a ação anticomunista da Odeca, da OEA e dos Estados Unidos que absorviam 85% de suas exportações. O embaixador Paulo Hasslocher, partidário da aliança incondicional com os Estados Unidos, descreveu a situação favorável a tal respeito da República Dominicana, cuja contribuição ao pan-americanismo assentar-se-ia nas relações de bom entendimento que mantinha com todos os países, exceto com o regime esquerdista da Guatemala, e no alinhamento à orientação de Washington.

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Melo Franco Filho, embaixador na Costa Rica, redigiu um simpático relatório acerca desse país democrático, de nível de vida e instrução muito superior a seus vizinhos, desenvolvendo uma política exterior pacifista e cooperativa, que tinha como único defeito o de prestigiar o peronismo. A Costa Rica pouca importância dava à Conferencia de Caracas, que, aliás, se propunha boicotar em razão das perseguições políticas e da censura da imprensa impostas pelo governo venezuelano de então. Já a descrição de Cuba, feita pelo embaixador Manoel César de Góes Monteiro, contrastava em tudo com a anterior. Há vinte anos a história do país, de violências e repressões, girava em torno do ditador Fulgêncio Batista, que conservava, contudo, o apoio dos Estados Unidos, aos quais vinculava-se o país econômica e ideologicamente. O embaixador Abelardo Bretanha Bueno do Prado remeteu o relatório acerca do Panamá. Apolítica externa do país vinha sendo dirigida com coerência e mão firme, voltada tanto para o continente sul-americano quanto para a América Central, regiões limítrofes que atraíam o país. Evitava engajar-se na Odeca, como atender acenos para integrar um projeto federativo que ressuscitasse a idéia da Grã-Colômbia. Apreocupação maior era administrar em bom entendimento as relações com os Estados Unidos, que detinham, por um tratado de 1903, poderes soberanos sobre o canal do Panamá e uma faixa contígua. Emendado várias vezes, este tratado ainda suscitava reclamações, como a participação panamenha nos lucros da empresa. O México, a América Central e o Caribe espelhavam, pois, grande diversidade entre os países sob o aspecto sócio-econômico, mas constituíam, com exceção da Guatemala, uma região confiável para os intentos superiores da diplomacia norte-americana de combater o comunismo nos meados dos anos 50. c) Norte do continente sul-americano Equador, Peru, Colômbia e Venezuela esboçavam um subsistema de relações internacionais ao norte do continente sulamericano em razão das afinidades políticas e da velha raizbolivariana grã-colombiana, como também das relações de fronteira, e apesar do pequeno intercâmbio comercial. Sanado o contencioso lindeiro entre 184

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Peru e Colômbia com a mediação do Brasil, reanimou-se, no início dos anos 50, a disputa entre Peru e Equador. Colômbia e Venezuela empenhavam-se para obter a liderança do grupo, a primeira com seus 12 milhões de habitantes e uma economia apenas cafeeira, mas a segunda, embora com seis, ostentando extraordinário crescimento econômico, em razão da exploração do petróleo e do início da indústria siderúrgica. As relações com os Estados Unidos eram intensas, mas a liberdade de penetração das empresas norte-americanas não tolhia aos países a autonomia política com que defendiam os interesses nacionais da exportação e as vistas sobre a América Central e o Caribe. Nessas condições, apesar de grandes representações locais da Argentina, a propaganda peronista não encontrava ao norte do continente sulamericano um terreno de penetração fácil. Segundo o embaixador brasileiro Edgar Bandeira Fraga de Castro, a política exterior do Peru afinava-se com a dos demais países do continente no combate ao comunismo e na visão de que a união espiritual dos países do continente e o cumprimento dos pactos panamericanos eram a condição desse empreendimento. A tranqüilidade do Peru era afetada pelo conflito fronteiriço com o Equador. Em 1859 e 1941, os dois países foram à guerra, com duas vitórias peruanas, o que sempre deixou o Equador em situação de inferioridade, bramando contra o imperialismo do vizinho. O Peru sentia-se na condição de jamais haver ferido o direito territorial equatoriano e acatara o protocolo do Rio de Janeiro de 1942, no qual os quatro garantes (Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos) haviam presumivelmente chegado a uma solução para o litígio. Velasco Ibarra, reconduzido pela segunda vez à presidência do Equador, criticou contudo aquele protocolo em abril de 1952, qualificando-o de “infame mutilação do território pátrio equatoriano e um ato de imperialismo internacional” e exigiu sua revisão. Buscava o Equador uma saída para o Amazonas que nada aos olhos do Peru justificava. Em resposta, o Peru se declarava pelo estrito cumprimento do protocolo, considerando inexistir qualquer problema de fronteira. Aliás, quatorze quinze avos da linha haviam sido demarcados. Entretanto, logo que eleito, Ibarra ordenou a paralisação dos trabalhos dos demarcadores equatorianos, 185

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apelando à mediação dos Estados garantes, o que rejeitou o Peru, alegando que o atributo de garante era incompatível com o de mediador. Um incidente militar de fronteira reacendeu o conflito em março de 1952. O Peru solicitou a investigação dos garantes. Com a Colômbia, o governo peruano também enfrentava aborrecimentos derivados do asilo que aquele país concedera ao chefe da organização revolucionária Apra (Partido do Povo), Raúl Haya de la Torre, há quatro anos internado na embaixada peruana em Lima. Foram acionadas a Convenção de Havana sobre asilo político e a Corte Internacional de Haia, que se pronunciou por sentença. Intransigentes os dois lados, negando-se um a conceder salvo-conduto e outro a desconsiderar o asilo, cogitou-se em mediação da Venezuela e do Brasil. As relações do Peru com a Argentina, apesar de limitadas, eram desfavoráveis aos propósitos de propaganda do peronismo. Primeiramente, porque suas relações econômicas orientavam-se na quase totalidade com os Estados Unidos, que importavam seus minerais e peixes e exportavam trigo, farinha, banha e outros gêneros alimentícios. Em julho de 1952, o presidente Manuel A. Odría destituiu o chanceler Callagher, que nutria simpatias por Perón, substituindo-o por Ricardo Rivera Schreiber. A decisão significava uma mudança de orientação que o Peru adotava com relação aos grandes vizinhos, no sentido de um afastamento da Argentina e concomitante aproximação com o Brasil e com os Estados Unidos. Uma série de altas personalidades brasileiras acorreu logo ao Peru, incluindo o vice-presidente João Café Filho e o chanceler João Neves da Fontoura, o deputado Afonso Arinos e o general Cyro Cardoso. Ao Brasil foram o presidente da Câmara dos Deputados, Peña Prado, e o chanceler Schreiber. Coroando esse entendimento político, Odría visitou o Brasil em agosto de 1953, ocasião em que firmou cinco tratados bilaterais. Consoante declaração política firmada pelos dois presidentes, os países estabeleceram um eixo firme pelo qual triunfava a linha de força da política do chanceler brasileiro, João Neves da Fontoura, que com Schreiber encontrou-se no Rio de Janeiro, contrária à formação de blocos econômicos ou políticos no continente, vale dizer, contrária às veleidades do imperialismo ideológico e econômico de Perón, na 186

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acepção desses dois demolidores do projeto argentino de solidariedade continental. Por isso, a Ata de Santiago teve eco negativo em Lima. Peru e Brasil invocavam os princípios de não-intervenção e de unidade do novo mundo para opor-se à subtração de países ao todo continental, mas na realidade eram braços do poder norte-americano, cuja hegemonia ideológica e econômica asseguravam contra a idéia da autonomia avançada por Perón e por Vargas, posto este em desconfortável silêncio pela ação da direita conservadora que monitorava Neves da Fontoura no Itamaraty. Esse eixo era o primeiro instrumento político forte de combate às idéias de Vargas e Perón e prenunciava a reação que contra eles triunfaria um e dois anos depois, afastando-os da história do continente. Ao expor a nova orientação da diplomacia peruana, assim concluía o embaixador Fraga de Castro seu relatório sobre o Peru. “Em suma, pode afirmar-se hoje que o prestígio político e a influência em geral que a Argentina manteve no Peru foram por este transferidos ao Brasil, apesar da diferença dos idiomas e das raças, o que constitui sem dúvida uma grande vitória da diplomacia brasileira”. As relações do Peru com a Bolívia tendiam ao esfriamento, já que eram distintos os governos de direita de Odría e de esquerda de PazEstensoro. Com os Estados Unidos, pelo contrário, alinhavam-se em harmonia perfeita, como aliás com o Brasil. As companhias americanas de petróleo e mineração apoderaram-se dos negócios peruanos em razão das reformas do governo de Odría, detendo 80% dos investimentos na área. Esses interesses, temendo represálias, pressionavam o Congresso dos Estados Unidos que desejava impor encargos à importação do atum peruano. Por essa razão, em maio de 1953, também foi rejeitado por Eisenhower o projeto de lei apresentado por R. M. Simpson contra a importação de zinco e chumbo que dava proteção a indústrias obsoletas americanas. O fulcro de toda política exterior do Equador, nesse ano de 1953, consoante o relatório do embaixador Carlos da Silveira Martins Ramos, era seu conflito de fronteira com o Peru. Nas vizinhanças, o Equador nutria simpatias pelo Chile e pela Argentina, onde o presidente, Velasco Ibarra, havia vivido na condição de exilado. Quanto ao comércio, era importante o chileno e sem expressão alguma o 187

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argentino. Por isso, o significado do Pacto de União Econômica, firmado com a Argentina em 1953, não iria além de um gesto de boa vontade, aliás explicável politicamente pela aproximação entre Peru e Brasil, que de forma alguma viria afetar o bom entendimento do Equador com os Estados Unidos. Apolítica exterior da Colômbia orientava-se por três objetivos, segundo o relatório do embaixador Carlos Maximiano de Figueiredo: administrar a rivalidade com o Peru, manter aamizadedosEstadosUnidos e sonhar com a impossível reconstituição da antiga Grã-Colômbia. Quanto a essa possibilidade, a oposição da Venezuela, fortalecida pelo seu recente crescimento econômico, esterilizava toda chance, sem, contudo, afetar as relações corretas entre os dois países. Diante do Panamá, outra nostalgia se amesquinhava, para não comprometer as boas relações com os Estados Unidos. Equador e Colômbia mantinham as melhores relações, mesmo porque os dois tinham pendências com o Peru. Eram precisamente as relações com esse país as mais difíceis. Qualquer caso, como o de Haya de la Torre, poderia avivar a memória de velha rivalidade bilateral que vinha da guerra de independência, passava por duas agressões peruanas em1828e1911e desembocava na guerra de 1932 pelo território de Leticia. O problema peruano condicionava as relações da Colômbia com outros países do sul, como o Brasil, a Argentina e o Chile. Sentia-se o país grato pela mediação brasileira que levou a bom termo o conflito de Letícia, mas esse entusiasmo arrefeceu com a recente aproximação peruano-brasileira, recolhendo a Argentina, decontragolpe, a simpatia perdida pelo Brasil. Autoridades argentinas correram atrás do trunfo que se lhes apresentava, visitando o país inclusive o chanceler Jeronimo Remorino, com o objetivo de obter a adesão colombiana à Ata de Santiago, o apoio às teses argentinas na próxima Conferência de Caracas e acordos comerciais. Tudo isso ficaria, entretanto, na dependência da reação de Washington, pedra angular da política exterior colombiana, já que daquele país dependia quase todo o comércio exterior da Colômbia, que era a exportação de café. Tanto é que, em gesto isolado no continente, a Colômbia atendeu à solicitação americana ao pé da letra e enviou uma força expedicionária à Coréia, mercê da qual conquistou especial relevo na opinião americana. 188

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O envolvimento no combate ao comunismo já se manifestara na rapidez com que aderiu ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e na aversão que devotava ao regime infiltrado da Guatemala. Coube ao embaixador Joaquim de Souza Leão Filho analisar as relações exteriores da Venezuela. Impressionava-secom a prosperidade econômica do país, em conseqüência do surto petrolífero que o transformou no segundo maior produtor mundial e no primeiro exportador. A produção crescera 34% entre 1948 e 1952, quando as exportações de petróleo alcançaram 97% das vendas externas, que tinham nos Estados Unidos o primeiro e no Brasil o segundo comprador. Mas outro setor dinâmico se anunciava do lado da siderurgia, passando a produção de minério de ferro de 198 mil toneladas em 1950 para dois milhões em 1952, toda ela destinada ao mercado americano, o que colocava aos economistas o desafio de implantar a grande indústria siderúrgica. Ocupando umaposição geográfica estratégica entre o Caribe e a América do Sul, a Venezuela, com sua pujante economia, apesar de população pequena, seis milhões de habitantes, tinha ambições internacionais de peso sobre o sistema interamericano, baseadas em forte autoconfiança. Decidiu atrair o capital norte-americano mediante reformas liberais que para lá orientaram o fluxo mais intenso destinado à América Latina. Aborrecia-lhe a idéia de blocos de qualquer espécie, preferindo andar sozinha. Sentindo-se o pivô do Caribe, desdenhava uma aproximação com Buenos Aires, que poderia comprometer a desejada penetração econômica norte-americana. Duzentas empresas norte-americanas haviam investido 3 bilhões de dólares na Venezuela, país que eliminara as restrições ao movimento de capitais. Assim mesmo, fazia valer seus direitos, contrariados com a ameaça da Lei Simpson, contra a qual buscava apoio latino-americano, particularmente do Brasil. Industriais brasileiros não ficaram alheios às possibilidades de negócios e buscavam implantar filiais de fábricas na Venezuela. Dezenas de estudantes venezuelanos freqüentavam universidades do Brasil, reforçando a nova relação de intercâmbio. d) Cone Sul O governo de Paz Estenssoro da Bolívia foi instalado a custo de violenta ação de força, evoluindo para certa feição democrática de 189

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matiz socializante. O Brasil, segundo o embaixador Hugo Manhães Bethlem, esforçou-se para que fosse reconhecido. Em razão de sua posição central e mediterrânea, a política exterior da Bolívia tendia a cultivar boas relações com todos os vizinhos, evitando comprometerse demasiadamente com uma região. Teoricamente, essa situação lhe dava um poder de negociação, com a qual especulavam seus homens públicos, tendo em vista atingir no exterior resultados de interesse nacional. Se o sonho de recuperar uma saída para o Pacífico esbarrava nas obstruções do Chile e do Peru, Brasil e Argentina poderiam ser provocados a contribuir para as saídas amazônica e platina, além de vias férreas e rodovias. Disso tudo depreendia-se o importante papel que de sua posição geográfica central decorria para a política internacional do continente. Na realidade, a grande dependência era de fora da área contígua, dos Estados Unidos, os quais, juntamente com a Inglaterra, adquiriam todo o estanho produzido no país e forneciam máquinas para processálo. Nenhum governo, por mais nacionalista que fosse, ousaria prescindir de boas relações com os Estados Unidos. As campanhas antiamericanas dos sindicatos e agremiações esquerdistas retardavam os entendimentos mas não os impediam, mesmo que obtivessem, por exemplo, a nacionalização das minas. O próprio governo brasileiro, através de sua chancelaria, intervinha com o fim de alcançar os acordos, quando estes se tornavam difíceis. De modo geral, destarte, as relações com os Estados Unidos eram boas. Com o México e América Central mantinha a Bolívia relações puramente políticas e diplomáticas. Com a Venezuela, Colômbia, Peru e Equador, intensificavam-se nos últimos anos. Com o Chile, sempre haveriam de ter em conta a grave conseqüência da Guerra do Pacífico, de que resultou a incorporação àquele país do litoral boliviano. Os propósitos nacionalistas dos governos de então, Estenssoro e Ibañez, aproximaram as presidências, mas a chancelaria boliviana tentava esfriar esse estreitamento para não enfraquecer sua histórica posição diante da questão da saída para o Pacífico e para estimular, do outro lado, o encontro entre Estenssoro e Vargas. Por estranho que pareça, as relações entre a Bolívia e o Paraguai haviam-se encaminhado muito 190

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favoravelmente após a Guerra do Chaco que dizimou os dois países. Ao Uruguai, a opinião boliviana era grata pela proposta do senador Alberto Cusano que fez a VIII Assembléia das Nações Unidas aprovar a tese do direito de nacionalização das fontes de produção, que permitiu à Bolívia enfrentar os Estados Unidos na questão da nacionalização de suas minas. O jogo boliviano de país central exercia-se concretamente entre Argentina e Brasil. Não havia mais ressentimentos acerca da anexação pelo Brasil do Acre pelo Tratado de Petrópolis de 1903. Na Guerra do Chaco, sem quebra de sua neutralidade, o Brasil auxiliou a Bolívia, equilibrando o apoio argentino ao Paraguai. Em 1938, negociou os convênios de vinculação ferroviária e de saída e aproveitamento do petróleo, cujas origens remontavam à questão do Acre, e tornou-se garante da integridade territorial da Bolívia. Contestados por correntes políticas e governos posteriores, os convênios foram modificados e novos arranjos firmados até as conclusões de 1953, quando notas reversais regularam mais uma vez as questões ligadas à construção da estrada de ferro Brasil-Bolívia e à saída e aproveitamento do petróleo boliviano. As relações bilaterais foram postas novamente em ambiente de boas disposições. Favorecida pela geografia, a Argentina cedo havia estendido sua rede ferroviária a La Paz e para além, penetrando, como desejava, em zona petrolífera. Após a Guerra do Chaco, durante a qual as relações ficaram estremecidas, os fatores geográficos e econômicos reaproximaram osdoispaíses. Firmou-se o convênio de vinculação ferroviária em 1941, semelhante ao assinado com o Brasil em 1938. ABolívia usava de sua especulação diplomática para abrir a corrida ferroviária entre Brasil e Argentina para Santa Cruz, finalmente ganha pelo primeiro. Seguiuse, em contrapartida, com o famoso convênio de cooperação econômica e comercial firmado em 1947, ao tempo de Perón e no compasso de seu expansionismo regional. Com o regime de Paz Estenssoro, a propaganda peronista invadiu La Paz, sem contudo afastar a presença brasileira, que prosseguiu mais forte. O objetivo da diplomacia argentina era o de obter a adesão da Bolívia à Ata de Santiago, mas as autoridades desta confessavam sua oposição à filosofia de constituição de blocos 191

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econômicos ou políticos regionais, embora a orientação doutrinária dos três governos se assemelhasse. Aliás, a Argentina perdeu para firmas dos Estados Unidos concessões de exploração de petróleo que buscava. O embaixador Cyro de Freitas-Valle que trocara Buenos Aires por Santiago, deslocara-se de um a outro centro do pensamento integracionista, que lhe repugnava. Sentiu, contudo, alívio, ao relatar, em 1953, após a assinatura da Ata de Santiago, o estado de dificuldades do governo deCarlosIbañezdelCampo, forçado a transigir, parafazer face à situação interna, com uma grande quantidade de facções políticas, entre as quais fortes opositores ao processo de união política com a Argentina. O clima propício à união dos países latinos seja para fazer frente, seja contra os Estados Unidos, esfriava, segundo Freitas-Valle. Precisamente porque, como o próprio Chile que lhes exportava 90% de seu cobre, esses países, por mais nacionalistas que se apresentassem, dependiam do mercado e dos dólares norte-americanos para acionar sua economia. Era o modelo brasileiro, temperado de abertura e autonomia que haveria de vingar e permitir a defesa dos interesses nacionais e não os modelos nacionalistas sem fundamento econômico. O embaixador Moacyr Ribeiro Briggs, de Assunção, comparava a política exterior pendular do Paraguai à da Bolívia e pelas mesmas razões. Um caráter marcadamente econômico adquirira, em razão da competição que internamente promovia entre o Brasil e a Argentina, embora o governo fosse inclinado à filosofia integracionista do peronismo pelo Partido Colorado então no poder. A penetração argentina no Paraguai havia criado laços de dependência profundos, tornando a nação virtualmente tributária da vizinha platina. Contudo, osEstadosUnidos emergiam no pós-guerracomo um terceiro elemento, cuja presença interna era comparável. A penetração norte-americana fazia-se pelo programa de cooperação e assistência que era ponderável em razão da exígua dimensão do país. Os Estados Unidos mantinham no Paraguai os serviços de cooperação agrícola, de saúde, de educação, de cultura, as missões militar, aérea e uma assessoria de estudos, da qual dependia, por exemplo, a liberação de empréstimos do Banco Mundial. Essa presença tinha, obviamente, o sentido decontra-arrestar, como a brasileira, a influência argentina. Desse modo, o Paraguai 192

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apresentava-se como terreno de penetração mais equilibrada de interesses externos e seu jogo de cintura diplomático alçava-se acima daqueles países vizinhos que eram dependentes dos Estados Unidos e de mais ninguém. O papel histórico do Brasil no Paraguai foi o de defender sua independência diante da Argentina e sua integridade territorial após a Guerra da Tríplice Aliança, como também mais tarde contribuir para solução do conflito com a Bolívia. Mas o Paraguai era levado a superdimensionar seu valor na política exterior brasileira, com o corolário de dificilmente estar satisfeito, segundo Briggs, com o que fazia o Brasil. Com a retirada do Brasil após a Guerra daTríplice Aliança, o Paraguai abriu-se à penetração argentina, decaindo a preeminência brasileira. Bem que tentara reverter essa tendência o primeiro governo de Vargas, com a conclusão de uma série de acordos. Apolítica negativa do governo de Dutra, no sentido de apenas obstruir a ação argentina, resultou em um aparato grandioso e custoso, que Pimenta Bueno havia já descrito e reputado inútil, indicando os caminhos de outra orientação política a ser trilhado por meio de empreendimentos de obras viárias e ativação dos fluxos econômicos e financeiros bilaterais. Briggs concordava em tudo com a inadequação da política brasileira para o Paraguai, já descrita por Pimenta Bueno, e sugeria a mesma correção. Airrelevância da presença brasileira era tal que o país ocupava o 24º lugar entre os fornecedores ao Paraguai e o 15º entre os compradores externos. Nos últimos doze anos, dezoito convênios haviam sido firmados entre os dois países, mas nenhum que regulasse as relações econômicas bilaterais estava em vigor. A Argentina habilmente beneficiou-se com os erros da diplomacia obstrucionista dos chanceleres Raul Fernandes e Neves da Fontoura. Preencheu paulatinamente o vazio deixado pelo Brasil, até firmar, em agosto de 1953, o Convênio de União Econômica Argentino-Paraguaia, um passo somente abaixo, em termos concretos, da própria Ata de Santiago. A Argentina sabiamente ia agregando à sua política exterior aquele conteúdo econômico positivo de que carecia a política brasileira de mera obstrução e utilizava seu grande aparato diplomático para fins efetivos de política. Compreendia esse aparato 193

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as missões militar, policial e naval, além da estatal de transporte que executava 90% das operações fluviais do Paraguai. O Convênio de União elevou o capital da agência do Banco de la Nación Argentina em Assunção de 4 para 100 milhões de guaranis e abriu três outras agências em outras cidades, com a finalidade de incrementar as atividades agrícolas, pecuárias e industriais; regulou o comércio, a industrialização da carne, o balizamento e a drenagem do rio Paraguai, os serviços de telecomunicações, de balsas, a construção de escolas, as tarifas fluviais e pôs em funcionamento uma comissão mista para administrar as formas de cooperação. A hegemonia que a Argentina exercia então sobre a sociedade, a política e a economia do Paraguai era tal que preocupava algumas autoridades, entre as quais o comandante em chefe das forças armadas, general Alfredo G. Stroessner. Julgavam esses ser do interesse do Paraguai uma estreita cooperação com o Brasil, para que o país viesse, como se dizia, a respirar por mais de um pulmão. A democracia uruguaia, descrita nesse ano de 1953 pelo embaixador do Brasil em Montevidéu, esforçava-se por resistir à penetração argentina, mesmo porque havia profunda dissensão doutrinal entre aquela e o regime peronista. De índole pacífico, o governo uruguaio era, contudo, castigado pela perseguição comercial e turística argentina, por recusar-se a entrar na órbita de influência política e ideológica do regime peronista, o que estava nos planos do vizinho país desde o triunfo do GOU em 1943 e a ascensão de Perón. A normalização das relações entre os dois países não parecia viável fora da hipótese da derrocada do regime peronista. Infelizmente, para o pequeno país platino, sua resistência ao peronismo de nada lhe valeu nas relações com os Estados Unidos. A democracia uruguaia estava perplexa diante da conivência dos governos dos Estados Unidos com regimes ditatoriais e de exceção. Segundo os políticos uruguaios, a conduta diplomática dos Estados Unidos respondia às pressões das corporações norte-americanas e dos consumidores, não fazendo qualquer concessão à ética política. O Uruguai enfrentava barreiras à colocação de sua lã e de suas carnes no mercado americano e não percebia estímulo nos investimentos destinados ao país.

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De Buenos Aires, o embaixador Orlando Leite Ribeiro confirmava as percepções que vinham das missões brasileiras em outras capitais do continente quanto aos propósitos da diplomacia argentina. Ativa como sempre, procurava essa convencer os outros governos a acompanhar suas posições durante a Conferência de Caracas, já que representava melhor que qualquer outra as preocupações morais e econômicas de todos. Às vésperas da conferência, percebendo a cerrada oposição que se levantava por toda parte contra a tese da formação de blocos regionais, a diplomacia peronista modificou mais uma vez sua posição, alegando ser porta-voz de uma união econômica continental, que incluísse os Estados Unidos. Na realidade, os países não viam solução a seus problemas econômicos fora da órbita das relações com os Estados Unidos e esse fato fundamental convertia a idéia argentina do pacto regional ou latino-americano em uma proposta desprovida de realismo político. O perfil das relações interamericanas que se pode inferir desse conjunto de relatórios da diplomacia brasileira, produzidos na virada de 1953 para 1954; evidencia alguns traços claros. Os conflitos ideológicos, que se espalhavam pelo continente, opunham as simpatias comunistas às ocidentais, as peronistas às filoamericanas. Desconsiderando as iniciativas dos governos em busca de influências sobre os outros países, conflitos de outra natureza eram inexistentes, com exceção do contencioso de fronteira entre Peru e Equador, o que denotava a generalização de relações pacíficas. Os asilados políticos que se espalhavam pela América Latina em razão dos golpes de força sobre os regimes constitucionais ou de perseguições movidas contra adversários políticos embaraçavam ocasionalmente as relações entre os Estados, tornando muito delicada a concessão do asilo. Todos nessa parte do continente dependiam dos Estados Unidos, enfim, e disputavam os favores norte-americanos: capitais com que implantar os elementos do desenvolvimento interno, sobretudo industrial, créditos para financiar o comércio exterior, mercado para exportação de seusprodutos, suprimento de conhecimentos, tecnologias e equipamentos, segurança contra a subversão comunista da ordem vigente. Desse quadro que evidencia os traços fundamentais da 195

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dependência dos países latino-americanos com relação aos Estados Unidos e da inviabilidade da política alternativa de integração subregional, percebe-se quão fácil seria à potência hegemônica manter sua negligência diante dos interesses do desenvolvimento da região. E quão fácil seria iludir as diplomacias para induzir os países à realização do objetivo maior que os Estados Unidos visavam no contexto da Guerra Fria, o combate ao comunismo. Destarte, republicanos e democratas prosseguiriam com a mesma política diante da América Latina: confiar os negócios às duras regras do mercado, que não realizavam o anseio de desenvolvimento, e submeter as relações interamericanas conduzidas pelo Estado ao objetivo exclusivo, autônomo e não negociável de martelar os comunistas e seus simpatizantes. A melhor percepção dessa dissociação entre o econômico e o político e da degenerescência que a ação diplomática interamericana prenunciava foi evidenciada pela inteligência uruguaia57. De Santiago, o embaixador brasileiro Freitas-Valle assinalava, em janeiro de 1954, o arrefecimento do entusiasmo pelo peronismo. Guillermo del Pedregal, ministro interino das Relações Exteriores, em exposição ao Senado, considerou contraproducente o efeito da insistente propaganda peronista no país, tanto que a Argentina não conseguiu do Chile o tratado de união econômica que firmou com o Paraguai e o Equador, consoante o espírito da Ata de Santiago. Aexplicação haverse-ia de encontrar no fato de resistir historicamente o Chile a que os pactos firmados com a Argentina fossem além do plano meramente financeiro e comercial, como sucedera com o pacto firmado a 13 de dezembro de 1946, no início do governo de González Videla, que foi rejeitado pelo Congresso sob o argumento de que se excedia politicamente. Em outros termos, apesar de haver triunfado a oposição ao governo de Videla com a eleição de Ibañez, mantinha o Chile aquela antiga diretriz, que não permitiu ao espírito integracionista alçar-se ao nível político, limitando o alcance das intenções da Ata de Santiago ao tratado econômico celebrado em 1953, aliás longe de uma verdadeira Os relatórios provenientes de todas as missões brasileiras no continente, em decorrência da Circular nº1750, de 19 de novembro de 1953, doItamaraty, foram reunidos em volume especial, avulso, que se encontra no AHIBR.

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união aduaneira, porquanto estabelecia a livre importação e exportação mútua de alguns produtos enquanto outros ficavam sujeitos a autorizações58. As relações entre Brasil e Argentina soçobraram por efeito de um discurso pronunciado por Perón, a 11 de novembro de 1953, em que relatou as negociações que mantivera com Vargas para a concertação do Pacto ABC, confessou sua decepção pela hesitação deste e acusou o Itamaraty de obstruir a formação do bloco e manter, por sobre a diretriz do Estado, a política de zonas de influência na América Latina. Tudo que disse tinha fundamento. O discurso era sigiloso, mas a embaixada em Buenos Aires remeteu cópia ao Itamaraty. Havendo a oposição ao governo de Vargas, entrincheirada na UDN, se apropriado do texto, deu-lheescandalosapublicidadenaimprensa, àqual se associou João Neves da Fontoura, que se servira do episódio para pedir demissão da chancelaria e acusou Vargas de trair os interesses da nação e da solidariedade continental. Dessa forma, o discurso de Perón não só perturbou as relações bilaterais como ainda aprofundou a divisão dentro da própria família brasileira, o que talvez desejasse para forçar Vargas a uma decisão. O fato revelou, conforme ofício de Orlando Leite Ribeiro, embaixador em Buenos Aires, ao chanceler Vicente Rao, que Vargas se comunicava com Perón por meio de agentes especiais, sem que dessa diplomacia paralela tomasse conhecimento a missão brasileira em Buenos Aires, até mesmo Baptista Luzardo, que jamais se afastara da linha de conduta oficial do governo que representava59.

4.3. A ascensão de Stroessner e o triângulo Argentina-Paraguai-Brasil Vargas retirou-se do cenário político, suicidando-se a 24 de agosto de 1954. AaçãodaMarinhaedo Exército da Argentina derrubou o governo Perón a 19 de setembro de 1955, assumindo provisoriamente Freitas-Valle a Vicente Rao, ofício, Santiago, 15 jan. 1954, AHI, armário, maço 45497. Orlando Leite Ribeiro ao MRE, telegrama, Buenos Aires, 26 jun. 1956, AHI, armário, maço 45497. 59 Orlando Leite Ribeiro a Vicente Rao, ofício, Buenos Aires, 8 abr. 1954, AHIBR, caixa 1. 58

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o governo o general Eduardo Lonardi. A trajetória dos dois países do Cone Sul haveria de assemelhar-se, contudo, nos anos seguintes: o Brasil passou por um interregno irrelevante em que governou o país, nos termos da Constituição, o vice-presidente João Café Filho e elegeu Juscelino Kubitschek, dando prosseguimento à ação do Estado desenvolvimentista; a Argentina, após um período transitório de contes tação do peronismo, confiou o mando ao presidente Arturo Frondizi, que também deu, em boa medida, continuidade à ação de Perón, apesar de pertencer à agremiação política que sempre lhe fizera oposição. Estando a Argentina sob rigoroso estado de sítio, não foi difícil ao governo de Lonardi exercer o controle da situação interna e orientarse, o que era firme propósito da revolução libertadora, pela recuperação de tendências do passado anterior ao justicialismo. A mais delicada tarefa de foi a de conter a Confederação Geral do Trabalho, uma estrutura piramidal de poder que congregava seis milhões de associados, sobre a qual se assentara o regime peronista. Organizou-se o novo governo argentino em um gabinete conservador que reabilitava antigas lideranças políticas. Ele agia com moderação tanto do lado das conquistas operárias quanto dos derrotados que, como o próprio Perón, demandavam as representações de Paraguai, Uruguai, Nicarágua, Equador e Chile, onde obtinham asilo. As relações com o Brasil pareciam poder encaminhar-se melhor, pelo menos assim pensava Lonardi, para quem a união dos dois países simbolizava a unidade ibérica do continente e, além do mais, dizia, “o contato com a deliciosa cultura brasileira nos ajudará a preencher o vazio desses doze anos de estrepitoso mau gosto”60. Ao deixar seu posto um ano depois do golpe que derrocou o peronismo, também o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Orlando Leite Ribeiro, nutria grandes esperanças de entendimento entre Argentina e Brasil, ante a perspectiva de eleição do líder da União Cívica Radical, Arturo Frondizi, com que se consolidaria o movimento de restauração das liberdades políticas comprometidas desde 1943: Orlando Leite Ribeiro a Raul Fernandes, ofício, Buenos Aires, 26 set. 1955, AHIBR, caixa 31.

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Vi e senti com íntima satisfação o fato de que a profunda mudança verificada na Argentina em setembro do ano passado não trouxe até agora problemas com o Brasil. A linha de isenção adotada pelo governo brasileiro em matéria de política interna de seus vizinhos mais uma vez se evidencia como a única que devemos seguir61.

Com a ascensão do general Alfredo Stroessner à presidência do Paraguai, preparava-se, em 1958, com apoio do Partido Colorado, a transição do país da órbita argentina onde gravitara há décadas para a brasileira, que se prenunciava no futuro. As novas autoridades paraguaias acusavam a República Argentina de envolver-se em ações cuja intenção era derrubar o governo e devolvê-lo ao Partido Liberal, a que pertenciam quase todos os ricos do país, que se haviam beneficiado com a ordem vigente à época da preeminência argentina. Além de envolver-se em ações políticas, as autoridades argentinas, conforme confessou o chanceler interino Raúl Peña ao encarregado de negócios do Brasil, José Jobim, não tolerariam um governo que desse andamento aos projetos de ligação rodoviária do Paraguai com o Brasil. Com efeito, o comércio entre estes dois países ainda era nulo, mas o Convênio de Comércio Fronteiriço recentemente firmado poderia modificar drasticamente essa situação, caso as rodovias fossem concluídas e pavimentadas. Acoadjuvar as autoridades argentinas, nesse intento de obstruir a ligação com o Brasil, estava o embaixador dos Estados Unidos, Walter C. Ploeser, que se manifestou contrário, já que seu país buscava a cooperação da Argentina para a exploração do petróleo do Chaco paraguaio. Circulava, com efeito, entre as capitais, Assunção e Buenos Aires, o advogado das empresas petrolíferas norte-americanas, Henry Holland, com o intuito de associar os interesses dos dois países na exploração do petróleo paraguaio, já que aquelas empresas dominavam essa atividade na Argentina, no Paraguai ena Bolívia, onde procuravam cercar o Brasil e mantê-lo distante.

Orlando Leite Ribeiro a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Buenos Aires, 19 jul. 1956, AHIBR, caixa 31. 61

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Na mesma intensidade com que Raúl Peña e o próprio chanceler Sapena Pastor aspiravam simultaneamente o desenvolvimento da economia paraguaia e sua libertação da tradicional submissão à República Argentina, José Jobim cobrava do Itamaraty uma política positiva de resposta brasileira a este anseio, não deixando escapar o petróleo paraguaio, que julgava indispensável à construção da independência econômica de seu país. Duas condições vislumbrava favoráveis: em primeiro lugar, a posse de Frondizi, que aspirava ao entendimento com o Brasil; conseqüentemente, o abandono da ingerência política argentina no Paraguai, com a finalidade de substituir o governo por outro menos entusiasta da cooperação com o Brasil e de desfazer a concessão já outorgada ao grupo brasileiro Rocha Miranda para exploração do petróleo em uma área equivalente à obtida pela americana Pure Oil. O que era de se esperar por parte do Brasil, perguntava Jobim, para concretizar a transição de órbita ou ao menos o equilíbrio de presenças de Argentina, Estados Unidos e Brasil? A conclusão e apavimentação das rodovias com que tornar-se-ia efetivo o convênio de comércio fronteiriço e um tratado econômico que amarrasse a produção e o escoamento do petróleo paraguaio aos interesses brasileiros, como ocorrera com o tratado firmado entre Brasil e Bolívia62. Achancelaria deu ouvidos à insistente demanda de cooperação. A 19 de abril de 1958 instruiu sua embaixada em Assunção no sentido de iniciar as gestões necessárias para que o governo paraguaio colaborasse na realização de estudos tendentes ao aproveitamento hidrelétrico do Salto de Sete Quedas e à aplicação industrial da energia elétrica. José Jobim percebeu então, antes de passar nota à chancelaria paraguaia sobre a proposta, que o governo paraguaio contestava um tratado de limites de 1872 e considerava necessário proceder ao levantamento aerofotogramétrico das duas margens do rio Paraná com o intuito de rever a demarcação de uma faixa de dez quilômetros que reivindicava de seu direito, onde presumivelmente estaria o Salto del Guairá63. 62 José Jobim a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Assunção, 11 abr. 1958, AHIBR, caixa 3. 63 Idem, ofício, Assunção,20 maio, 1958, AHIBR, caixa 3.

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Apesar desse problema, Jobim prosseguiu insistindo no programa de cooperação econômica com que firmasse o Itamaraty uma política concreta de cooperação com o Paraguai de Stroessner, atraindo o país para a influência brasileira. Estava o encarregado de negócios angustiado com os avanços dos planos integrados de exploração petrolífera na Argentina, Paraguai e Bolívia por parte das empresas americanas e argentinas, sem envolvimento brasileiro algum, negociados pelo representante dos trustes americanos, Henry Holland, com o assentimento de Frondizi, que não aceitaria sem luta que o Paraguai saísse da órbita de influência de seu país. Metade da área do Chaco, doze milhões de hectares, já havia sido dada em concessão, havendo o grupo Rocha Miranda obtido uma área de valor inestimável, correspondente a quatro milhões de hectares, em condições de contrato muito favoráveis ao Brasil, que poderia intercambiar manufaturas por petróleo sem ter que despender dólares, como previam os dispositivos do Convênio de Comércio Fronteiriço. Mas as oportunidades poderiam esvair-se, caso perdurasse a ausência de uma política global para o Paraguai. Quando Francisco Negrão de Lima, que fora embaixador em Assunção, assumiu a chancelaria brasileira, apressou-se Jobim aescreverlhe, propondo que criasse no Itamaraty um grupo de trabalho para estudar as condições do Paraguai em face dos interesses do Brasil e elaborasse um plano de cooperação de acordo com a filosofia panamericana de Kubitschek. A estratégia que sugeria para as relações com o Paraguai envolvia quatro frentes de ação: o aproveitamento do petróleo, a industrialização do Paraguai, a conclusão das ligações rodoviárias e o incremento do comércio bilateral64. Em fins de outubro de 1958, o governo paraguaio tornou públicas informações colhidas em depoimento acerca de incidentes ocorridos na fronteira entre Paraguai e Argentina, segundo os quais altas autoridades militares argentinas tramavam um golpe contra o presidente Arturo Frondizi, devendo para tanto assassiná-lo, quando de sua programada visita à Assunção. O chanceler Sapena Pastor José Jobim a Francisco Negrão de Lima, ofício, Assunção,9 jul. 1958 e 2 mar. 1959, AHIBR, caixa 3. 64

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convocou Jobim solicitando que interviesse junto a Kubitschek para que ele acalmasse as autoridades argentinas. Desde então, por decisão própria, Stroessner tomou a iniciativa de afirmar amiúde, quando se fazia necessário, que nas suas relações com a Argentina contava com a solidariedade do Brasil para qualquer eventualidade, até mesmo o uso da força. Assim respondia aos ataques da imprensa argentina, que ridicularizava sua atitude de apoio ao chamado revisionismo histórico, que significava o endeusamento dos líderes nacionais do século XIX, Francia e os dois Lopez. Mas a ostentação da amizade com o Brasil tinha dois outros objetivos: internamente, a fixação da política do Partido Colorado, que se apresentava como antiargentino e, por contraste, como pró-brasileiro; externamente, o Brasil era usado como esteio para uma eventual política de pressão, quer sobre a Argentina quer mesmo sobre os Estados Unidos. A amizade de Stroessner para com o Brasil era, pois, sincera e oportunista. Por que não corresponder-lhe? “O Brasil não tem um programa estabelecido para a sua política em relação ao Paraguai”, reafirmava Jobim, que avançava uma idéia moderna de cooperação, longe de rivalidades e intrigas: conviria uma pronta ação diplomática nossa... tendente a alertar o governo paraguaio para os riscos que comporta uma política de atritos com a República Argentina e também para convencer ao governo de Buenos Aires de que não somos os instigadores dessa política e que, ao contrário, consideramos que está no real interesse do Brasil que as relações argentino-paraguaias se processem num clima de confiança mútua para a tranqüilidade dos três países65.

Essa interpretação seria mantida pelo novo embaixador em Assunção, Euclydes Zenóbio da Costa, que alertava o Itamaraty para não embarcar na aventura de indispor-se com seus vizinhos, Bolívia e Argentina, em atendimento ao apoio que Stroessner alardeava contar 65 José Jobim a Antônio Mendes Vianna, ofício, Assunção, 6 nov. 1958 e 10 jun. 1959, AHIBR, caixa 3.

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por parte do Brasil para seus pronunciamentos e até mesmo sonhos de expansão territorial ao norte e ao sul66. Ao final da década de 1950, com a queda de Perón e a ascensão de Stroessner, a posição internacional do Paraguai modificara-se profundamente em razão da ilusão do petróleo. A política exterior de Stroessner orientava-se por dois objetivos: atenuar fortemente a tradicional dependência política e econômica diante da Argentina e abrir seu país à concorrência estrangeira com que impulsionar o desenvolvimento com base na exploração de presumíveis depósitos de petróleo no território do Chaco. Para atingir o primeiro, voltou-se resolutamente para o lado do Brasil, cujo interesse e ação provocava por todos os modos; para realizar o segundo, abriu o caminho às companhias americanas que dispunham de capitais, meios e mercado, sem, contudo, deixar de acenar ao Brasil e à Argentina com as grandes facilidades e vantagens que àquelas concedia.

4.4. O norte da América do Sul à época de Pérez Jiménez A Venezuela desempenhava, ao norte do continente, um papel similar sob certos aspectos ao da Argentina de Perón entre 1947 e 1959. Essa proeminência lhe advinha da riqueza que representava a produção e a exportação do petróleo que fortalecia a autoconfiança nacional e a projetava nas vistas expansionistas, que envolviam tanto ambições territoriais quanto influência a exercer sobre as adjacências. A Venezuela antecipou-se à Operação Pan-Americana proposta por Kubitschek em 1958, ao avançar a idéia do fundo financeiro com o objetivo de tornar efetiva a solidariedade americana. Internamente, consignava-se o duelo político entre o democrata Rômulo Betancourt e o ditador Marcos Pérez Jiménez, cuja sorte, em 1957, foi duramente ferida, como acontecera com Perón dois anos antes. Os vínculos entre Venezuela e Brasil eram quase inexistentes, a demonstrar que este país não tinha competência para fazer valer sua condição de segundo 66 Euclydes Zenóbio da Costa a Horácio Lafer, ofício Assunção, 19 ago. 1959, AHIBR, caixa 3.

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importador de petróleo venezuelano. A documentação diplomática do lado da Venezuela era vazia de conteúdo, contrariamente ao que ocorria com a que circulava entre o Rio de Janeiro e as capitais do Cone Sul. Em 1947, uma remessa de armas brasileiras a São Domingos evidenciou a complicada rede de rivalidades entre os governantes da região, armada em razão dos asilos políticos concedidos a opositores de regimes implantados na vizinhança. São Domingos acusava Gua temala, Cuba e Venezuela de protegerem abertamente os dominicanos contrários ao governo do ditador Trujillo. Era, aliás, de todos conhecida a inimizade entre os presidentes Betancourt e Trujillo, apoiando esse pecuniariamente os venezuelanos refugiados em seu país. As boas relações políticas entre Brasil e Venezuela inspiraram o envio de uma missão ao Rio de Janeiro com a finalidade de impedir aquele embarque de armas destinado a São Domingos67. No início dos anos 50 prosseguiam sem relevância as relações entre a Venezuela e o Brasil, conforme relatório do embaixador brasileiro em Caracas, Fernando Lobo. Politicamente nenhum problema se havia imiscuído nessas relações no pós-guerra, a não ser os decorrentes de freqüentes golpes e mudanças de governo na Venezuela. Asilaram-se na embaixada do Brasil dois líderes da oposição, Mario Briceño Iragorry em 1952 e, no ano seguinte, Hugo Quintana Franklin. No terreno econômico, o Brasil, que fora grande supridor da Venezuela, durante a guerra mundial, de tecidos, produtos farmacêuticos e gêneros alimentícios, perdeu aquele mercado no pós-guerra. As causas do recuo eram três: seus preços situavam-se acima do mercado internacional, a intensificação da concorrência dos produtores norte-americanos e europeus e a falta de comunicações marítimas diretas. No início dos anos 50, o Brasil nada vendia à Venezuela além de pouco algodão e alguns produtos farmacêuticos, em uma conjuntura em que todos demandavam aquele mercado pelo fato de se pagarem as importações em dólares. 67 W. do Amaral Murtinho a Raul Fernandes, ofício, Caracas, 20 nov. 1947; W. do Amaral Murtinho a Gonzalo Barrios, ofício, Caracas, 5 dez. 1947. AHIBR, caixa 40.

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A falta de comunicação marítima direta e regular era outro grande obstáculo ao incremento do comércio bilateral. Alegavam tanto o Loide Brasileiro quanto a Flota Mercante Grancolombiana que seus navios teriam carga apenas à chegada nos portos brasileiros, pois, sendo as importações brasileiras unicamente de petróleo, haveriam de regressar vazios. Ademais, apesar de importar 45 mil barris diários, como segundo importador do Petróleo venezuelano, o intercâmbio de mercadorias, afora este produto, quase inexistia. Durante dois anos esforçou-se em vão o embaixador Fernando Lobo para mandar uma missão venezuelana de comércio ao Brasil68. As relações culturais entre o Brasil e a Venezuela eram singelas, porém corretas. Compreendiam troca de visitas de professores, literatos e artistas e a matrícula de mais de uma centena de estudantes venezuelanos em universidades brasileiras, sobretudo nas faculdades de medicina e agronomia. Em 1956, surpreendeu-se o embaixador brasileiro em Caracas, Oscar Pires do Rio, com a incitava de um grupo de alunos da Universidade de São Paulo de dirigirem-se diretamente ao ministro da Educação da Venezuela, solicitando-lhe interceder junto a seu governo e à missão brasileira para facilitar-lhe uma excursão ao país. A concretizar-se essa hipótese (escrevia Pires do Rio ao Itamaraty), poderíamos ainda vir a defrontar-nos com uma repetição do que, a esse respeito, ocorria com a Argentina no seu regime anterior de governo, sob os auspícios do qual inúmeras caravanas de estudantes e de professores brasileiros passaram a ser convidados para visitar Buenos Aires, com evidentes finalidades políticas.

Nessa época em que remanesciam ainda entre representantes do Itamaraty ranços da diplomacia da obstrução, com que se notabilizou João Neves da Fontoura, não é de estranhar que Pires do Rio visse com suspeitas as excursões de estudantes entre os países da América Latina69. 68 Fernando Lobo a João Neves da Fontoura, relatório, Caracas, 28 maio 1953, AHIBR, caixa 40. 69 Oscar Pires do Rio a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Caracas, 27 set. 1956, AHIBR, caixa 40.

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A 8 de agosto de 1956 chegou à Venezuela, procedente do Paraguai, o ex-presidente Perón, beneficiando-se do asilo que lhe concedia o regime corrupto de Pérez Jiménez. Esse governo estava dividido quanto à decisão, opondo-se o ministro das Relações Exteriores a que lhe fosse concedido o visto, mas sendo-lhe favorável o ministro do Interior, a eminência parda do regime. Perón não causou problemas, sendo discreta sua atuação pessoal e um pouco mais sensacionalista a de seus porta-vozes, que pretendiam manter a imagem de seu senhor em cartaz nos meios jornalísticos. O embaixador da Argentina em Caracas esforçou-se em aniquilar a propaganda peronista, tomando iniciativas até certo ponto constrangedoras, como o pedido apresentado ao governo venezuelano, que o desprezou, de embargo contra os bens pessoais do líder justicialista e de numerosos seguidores seus, decretado pelo governo argentino. Em represália ao asilo concedido aPerón, o governo de Buenos Aires estaria disposto a asilar Rômulo Betancourt, líder político, então vivendo em Porto Rico, e adversário tenaz do general Pérez Jiménez. Ao expirar, a 9 de novembro, o visto para estar na Venezuela, Perón desapa recera do contato público, sabendo-se depois que continuava no país. Suas atividades públicas eram aparentemente nulas durante mais de um ano de estada no país. Em dezembro de 1957, contudo, chegaram a Caracas Jorge Antonio e Angel Borlenghi, como também John William Cooke e Guillermo Patricio Kelly, fugidos do Chile, todos peronistas que para lá acorreram a uma reunião política na presença de seu chefe70. Eram ativas as relações do general Pérez Jiménez com outros regimes militares da América Latina. Entendia-se com o general Anastácio Somoza, o homem forte da Nicarágua, assassinado em setembro de 1956. Vendeu-lhe aviões e deu-lhe dinheiro para combater os revolucionários de Costa Rica71. Recebeu em junho do ano seguinte o general Alfredo Stroessner, presidente do Paraguai, que veio solicitar empréstimos e negociar convênios sobre cooperação cultural, transporte aéreo e assistência técnica72. Idem, relatórios, Caracas, 17 set., 6 out. e 14 nov. 1956, 2 nov. 57 e 3 jan. 1958, AHIBR, caixa 40. 71 Ibidem, relatório, Caracas, 6 out. 1956, AHIBR, caixa 40. 72 Ibidem, ofício, Caracas, 8 jul. 1957, AHIBR, caixa 40. 70

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O tema que passou a preocupar a missão diplomática brasileira, ao final do governo Pérez Jiménez, foi o fato de se ressuscitar no país velhos sonhos de anexar os territórios das Antilhas inglesas, das Antilhas holandesas, a ilha de Trinidad, a Guiana inglesa, além de territórios brasileiros. Aquestão fora levada para a imprensa a partir de entrevistas concedidas pelo escritor Ramiro Nava, cujos livros advogavam esta expansão territorial73. A anexação das Antilhas e da Guiana, como também da ilha de Trinidad, far-se-ia como desfecho da descolonização, sobre cujas soluções se cogitava então nos meios pan-americanos, aproveitando-se a Venezuela dessa circunstância que a opinião pública contemplava. Ramiro Nava tentava fundamentar direitos venezuelanos sobre tais territórios, mas era evidente que correspondiam à aspiração venezuelana. Para realizar uma eventual expansão à custa de possessões européias no Caribe e no continente, teria a Venezuela de obter o assentimento do Brasil, dos Estados Unidos e dos países ditos bolivarianos, principalmente o Peru e a Colômbia. Para tanto, dispunha de empréstimos a acenar para o primeiro e para os últimos e, quanto aos Estados Unidos, havia os negócios petrolíferos. As preocupações do embaixador Oscar Pires do Rio acerca das ambições sobre territórios brasileiros tinham, pois, certo fundamento. Confidenciava ele ao Itamaraty, em agosto de 1957, um plano de expansão hegemônica engendrado pelo regime Pérez Jiménez para estender-se à América Central e ao norte da América do Sul. Aprimeira fase estava em execução por instrumentos diversos que comportava a intensa campanha de influência predecessora do desfecho territorial. Depois de conquistada a opinião pública dos habitantes das possessões e os governos referidos, como se oporia o Brasil a que a solução fosse tomada na OEA em favor de um plebiscito?74. Apoiada nos dólares do petróleo, vinha a Venezuela cuidando de projetar uma imagem de nação solidária e generosa com o sistema interamericano. Em julho de 1956, o presidente Pérez Jiménez, por 73 Mellilo Moreira de Mello a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Caracas, 26 dez. 1956, AHIBR, caixa 40. 74 Oscar Pires do Rio a José Carlos de Macedo Soares, ofício, Caracas, 3 ago. 1975, AHIBR, caixa 40.

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ocasião da Reunião dos Chefes de Estado das Nações da América no Panamá, propôs solenemente a criação do Fundo Econômico Interamericano, no mesmo espírito com que Juscelino Kubitschek lançaria a Operação Pan-Americana dois anos depois e com que Perón buscara a integração latina anos antes. Sete países apoiaram, quatro não emitiram opinião e nove propuseram que fosse encaminhada ao exame do Conselho Interamericano Econômico e Social da OEA. Nesse conselho, o governo dos Estados Unidos fez gestões ante outros para obstruir a aprovação da proposta, em reação semelhante, aliás, ao boicote que ofereceria à iniciativa brasileira do presidente Kubitschek. Em outros termos, o sistema interamericano haveria de girar em torno de propostas norte-americanos centradas sobre interesses nacionalistas dos Estados Unidos ou paralisar-se. Esta linha de ação caracterizara a política continental da potência hegemônica para a América Latina desde o pós-guerra. declaração americanismo, reconheceu Pérez continental conceitos do estilo Irritado,solidariedade Jiménezem e outros pública.“Pansó seguirão sendo proposições teóricas que fracassarão ou permanecerão como aspirações latentes, enquanto não se traduzam em medidas concretas com resultados de benefício coletivo”. Seu embaixadorjunto à OEA, diante das circunstâncias, retirou a proposta de criação do fundo e solicitou o fim dos debates. Orientouse então o governo venezuelano, ainda naquela linha de influência a exercer sobre o subcontinente latino-americano, para concessão de empréstimos a serem decididos bilateralmente. Haiti, Paraguai, Bolívia e Equador já se haviam habilitado75. O ditador não permaneceu no poder tempo suficiente para levar adiante seu plano hegemônico regional e sua solidariedade continental. A 15 de dezembro de 1958, o plebiscito eleitoral forjado para reconduzi-lo ao poder em novo mandato presidencial de cinco anos deu-lhe 2 milhões, 374 mil e 790 sobre 2 milhões, 924 mil e 985 votos apurados. Mas a farsa desencadeou uma revolta na base aérea de Maracay no mês seguinte. Embora aparentemente controlada, 75

Idem, relatório, Caracas, 2 out. 1957, AHIBR, caixa 40.

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a revolta estendeu-se a forças do Exército e da Marinha que exigiam uma reforma do ministério, tido por corrupto e imoral. Jiménez exigiu a demissão coletiva e, nessa ocasião, vieram a público desmandos, prevaricações, peculatos e escândalos envolvendo particularmente o poderoso ministro das Relações Interiores, Laureano Vallenilla Lanz. Pérez Jimenez não resistiu e, a 23 de janeiro, tomou o caminho do exílio, seguindo os passos de toda a alta administração. As legações em Caracas de República Dominicana, Brasil, França, Paraguai, Bolívia, Panamá, Colômbia, Equador, Nicarágua e Paraguai receberam os asilados da débâcle do regime, que fugiam de graves delitos pelos quais haveriam de prestar contas se permanecessem no país. Instalou-se uma junta de governo cuja função era de convocar eleições e restaurar a democracia venezuelana76. O movimento de libertação nacional instituiu um governo provisório que foi logo reconhecido no exterior. Embora executado pelas forças armadas, seu alicerce subterrâneo era civil. Gestões foram postas em marcha para o restabelecimento imediato das relações diplomáticas com Uruguai, Argentina, Chile e Costa Rica, rompidas pelo regime anterior. Uma devassa empreendeu-se então que demonstrou quão profunda era a corrupção do regime e quão desumana era a conduta da Seguridad Nacional, o braço forte da ditadura. Procedeu-se à depuração dos quadros das forças armadas, do funcionalismo público e do órgão de segurança, para o qual trabalhavam 70 mil pessoas, comprometidos com os desmandos de função e a violência. Os líderes partidários democratas e políticos asilados acorreram logo à pátria: Rafael Caldera, Rômulo Betancourt, Rafael Pisani e outros. Com essa catarse, a Venezuela estava pronta para um longo período de democracia, no qual sobressaiu a figura do grande estadista Rômulo Betancourt77.

76 77

Ibidem, relatórios, Caracas, 3 jan. e 3 fev. 1958, AHIBR, caixa 40. Ibidem, relatórios, Caracas, 7 mar. 1958, AHIBR, caixa 40.

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5. A dinâmica do ângulo atlântico entre 1960 e 1979 5.1. Os primórdios da integração física na década de 1960 5.1.1. O Cone Sul: da diplomacia da obstrução à cooperação regional No início dos anos 60, o dirigente paraguaio, Alfredo Stroessner, com seu ministro das Relações Exteriores, Sapena Pastor, implementou uma diretriz de política exterior, que assim definia o embaixador brasileiro em Assunção, Euclydes Zenóbio da Costa: “É evidente o interesse do atual governo em vincular o seu destino com os interesses do Brasil”. Afirmava o primeiro constantemente que seus opositores do Partido Liberal, caso assumissem o poder, cederiam a todas as injunções argentinas e cortariam os aspectos concretos das relações com o Brasil. Não se podia aquilatar então quanto essa política tirava sua motivação da disputa interna pelo poder, haja vista o apoio que Perón havia dado para a consolidação do regime de Stroessner e a espontânea e cordial solidariedade com que este o acolhera quando de seu asilo político1. Mas é certo que a nova diretriz de política exterior paraguaia, de aproximação com o Brasil, produzia efeitos concretos como o aproveitamento hidrelétrico do Acaraí e do Mondaí, o uso do porto de Paranaguá, a construção de estradas dentro do território paraguaio, o pagamento do empréstimo de 1942, o apoio moral, técnico e militar, bem como o fornecimento de armas. Criava, ademais, condições para a futura corrente de imigrantes brasileiros que iriam promover a modernização agrícola de uma faixa lindeira do país2. Euclydes Zenóbio da Costa a Horácio Lafer, ofício, Assunção, 12 fev. 1960, AHIBR, caixa 3. 2 Ver Menezes, Alfredo daMota. A herança deStroessner: Brasil-Paraguai, 1955-1980. Campinas: Papirus, 1987. Laino, Domingo. Paraguai: fronteiras e penetração brasileira. São Paulo, Global, 1979. 1

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Sapena Pastor mantinha a missão brasileira informada acerca de todos os lances que envolviam as relações do país com a Argentina. O embaixador brasileiro em Assunção recomendava à chancelaria, contudo, muita prudência. Ao invés de envolvimento com os embates políticos internos, convinha-lhe intervir junto ao Palácio San Martín e ao governo de Arturo Frondizi para que coibisse as invasões que se armavam em território argentino com a finalidade de causar instabilidade e derrubar o governo de Stroessner3. A diretriz paraguaia de política exterior não era servil com relação ao Brasil. Dois graves problemas, o primeiro de alguns anos atrás, o segundo recente, preocupavam o chefe da missão brasileira em Assunção, precisamente porque envolviam uma percepção unilateral de interesses por parte do país guarani. O Paraguai ambicionava tornar-se condômino do setor das Sete Quedas do rio Paraná. Com tal intuito, pretendia fazer uma revisão do critério adotado pela Comissão Mista Demarcadora de Limites que atuou entre 1872-1874, embora não estivesse disposto o Brasil a ceder, ante um direito considerado líquido e inalienável sobre a área pretendida. É bem verdade que essa reivindicação territorial paraguaia vinha acompanhada de outras sobre territórios bolivianos e argentinos, o que a enfraquecia politicamente e lhe tolhia operacionalidade. Assim mesmo, Zenóbio da Costa sugeria ao Itamaraty abrir negociações, invocando o estado favorável das relações bilaterais para solver a pendência por ato internacional4. Outro problema, a demonstrar a autonomia paraguaia diante dos interesses brasileiros, teve origem na criação da zona franca em uma área de Puerto Presidente Stroessner, contígua à cidade brasileira de Foz do Iguaçu e à ponte internacional que as vincularia. Esta zona foi criada por um convênio firmado a 26 de fevereiro de 1960 entre o governo de Stroessner e a empresa estrangeira Foreign Markets Trading Corporation, que se tornou administradora do empreendimento. Um ano depois de criada, portanto em fevereiro de 1961, a missão brasileira em Assunção denunciou os inconvenientes para os 3 Euclydes Zenóbio da Costa a Horácio Lafer, ofício, Assunção, 23 jun. 1960, AHIBR, caixa 3. 4 Idem, ofício, Assunção,30 jun. 1960, AHIBR, caixa 3.

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dois lados das atividades desenvolvidas pela Foreign Markets. Embora tivesse um caráter prospectivo bem fundado, tal denúncia não encontrou acolhida e conservou sua validade pelos próximos 40 anos, visto que, sem prestar ouvidos às sugestões que continha, as partes não tomaram providência alguma com a finalidade de erradicar atividades abusivas e ilegais. Segundo relato encaminhado então por Gomes Pereira ao chanceler Afonso Arinos de Melo Franco, a zona franca paraguaia nasceu em 1960 como um “centro de contrabando em larga escala para o Brasil”, desenvolvendo-se esse comércio ilegal “com o conhecimento das autoridades fronteiriças paraguaias” e contando, de outra parte “com a cumplicidade de indivíduos residentes no território nacional”. Embora devesse dedicar-se a fomentar a industrialização da zona por força dos dispositivos de convênio, aForeign Markets restringiuse ao comércio e ao contrabando de uísque, cigarros americanos, rádios, produtos de náilon etc., que lhe asseguravam lucros fáceis5. A questão das Sete Quedas tomou vulto ainda na primeira metade dos anos 60. Os dois governos trocavam notas oficiais a esse respeito desde o início de 1962. As atitudes que tomavam diante da questão decorriam de um “crescendo” reivindicativo paraguaio marcado pelas seguintes fases: (a) nota de 12 de março de 1962 do embaixador Raúl Peña ao governo brasileiro, vinculando o aproveitamento hidrelétrico à nova demarcação das fronteiras; (b) noticiário enfático dos jornais oposicionistas paraguaios, (c) nota de 19 de setembro de 1962 do Itamaraty, opondo-se à revisão do traçado da fronteira e reafirmando os direitos do Brasil; (d) publicação pelo Ministério de Minas e Energia do relatório do engenheiro brasileiro Otávio Marcondes Ferraz acerca do aproveitamento do salto de Sete Quedas; (e) segunda nota do governo paraguaio de 10 dejunho de 1963, protestando contrao fato de aquele relatório não fazer referência ao impacto sobre o Paraguai do aproveitamento do rio e reivindicando estudos conjuntos sobre o mesmo aproveitamento; (f) agressividade crescente da imprensa oposicionista e assunção de sua tese pelo governo paraguaio;(g) Carlos S. Gomes Pereira a Afonso Arinos de Melo Franco, ofício, Assunção, 7 fev. 1961, AHIBR, caixa 4. 5

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conversações bilaterais por ocasião da inauguração do novo mandato de Stroessner; (h) declaração pública dos direitos do Paraguai sobre o Salto de Guaíra ou das Sete Quedas pela Câmara dos Representantes; (i) visita ao Paraguai do ministro de Minas e Energia do Brasil, Oliveira Brito, e longas negociações com o chanceler Sapena Pastor, das quais resultou um acordo para realização de estudos conjuntos acerca do aproveitamento hidrelétrico; (j) envolvimento das imprensas dos dois países e perspectiva da visita do presidente João Goulart ao Paraguai. As conclusões do embaixador brasileiro em Assunção, Mário de Ascensão Palmério, acerca do aproveitamento de Sete Quedas eram, em novembro de 1963, as seguintes: (a) convinha levar em conta a suscetibilidade da opinião paraguaia e a ambição pessoal de Stroessner, desejoso de tornar-se o restaurador da história; (b) o Paraguai somente aceitaria participação no empreendimento em igualdade de condições, criando toda sorte de obstáculos a um empreendimento unilateral do Brasil; (c) a falta de afinidade ideológica entre os dois governos, um independente e outro alinhado com o ocidentalismo, poderia estar sendo utilizada pelo Paraguai para adiar o projeto hidrelétrico6. Existiu, portanto, nos anos 60, um contencioso entre o Brasil e o Paraguai sobre o aproveitamento dos rios para produção de energia elétrica, que foi desde o início muito bem administrado pela negociação diplomática, o que veio criar condições para a cooperação conjunta de que resultou na década seguinte a construção de Itaipu, o maior empreendimento do mundo no setor. Sorte inversa afetou o contencioso de mesmo gênero entre o Brasil e a Argentina, travado na década de 1970 e muito mal administrado pelas diplomacias, de tal modo que nenhum projeto conjunto de cooperação tornou-se viável até o início do século XXI. Como já se observou em parágrafo anterior, o governo de Frondizi imprimiu à política exterior um caráter pragmático que rompeu de vez com os sonhos peronistas. Seus princípios básicos eram a posição ideológica ocidental, sem sacrifício da autonomia de decisão Mário de Ascenção Palmério a João Augusto de Araújo Castro, ofício, Assunção, 26 nov. 1963, AHIBR, caixa 6.

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e sem hipoteca dos interesses nacionais; cooperação com todos os povos para manutenção da paz; reforço das relações com os Estados Unidos e demais Estados americanos com o objetivo de promover o desenvol vimento interno; estreitamento das relações políticas, econômicas e culturais com o Brasil, como se correspondessem a uma “quarta posição”; expansão das pautas e mercados do comércio exterior; cooperação econômica norte-sul; criação do mercado comum latino-americano; e defesa da democracia na América. Esses princípios da política exterior frondiziana fluíram por meio da Operação Pan-Americana concertada pessoalmente entre os presidentes de Brasil e Argentina, Kubitschek e Frondizi, em 1958, e afinaram-se ainda mais no encontro de Uruguaiana, em 1961, entre Frondizi e Quadros. Correspondiam aos princípios da Política Externa Independente então formulados no Brasil por Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas e implementados durante os governos de Quadros e Goulart, entre 1961 e 1964. No encontro de Uruguaiana, em abril de 1961, negociou-se um acordo de amizade e consulta, convergindo os dois chefes de Estado em marchar unidos nos órgãos multilaterais, diante da questão cubana e para alcançar a paz entre Peru e Equador. Medidas de promoção do comércio bilateral e do intercâmbio cultural e científico foram concertadas. As relações de cooperação entre Brasil e Argentina assumiam em Uruguaiana a feição de alternativa, tanto à solução revolucionária cubana para a vida política e o desenvolvimento da América Latina quanto à solução de dominação econômica e ideológica norte-americana, no contexto da Guerra Fria7. As relações entre Brasil e Argentina, nas circunstâncias dos governos Kubitschek, Quadros e Goulart, por um lado, e Frondizi, por outro, afinadas política e ideologicamente, voltaram-se, portanto, para a realização de interesses mútuos, políticos e econômicos. No primeiro plano, situava-se a implementação efetiva do Acordo de Uruguaiana, primeiro passo da unidade latino-americana, em razão da Beired, José Luis B. La experiencia histórica del Brasil y de la Argentina (1955-1964), p.293-310; Di Tella, Torcuato. La politica en Brasil y en Argentina entre 1955 y 1966. p. 311-28 In: Llados, Guimarães (1999). 7

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posição relativa e absoluta dos dois países no concerto interamericano e mesmo porque a simples descoordenação entre suas políticas constituía fator de debilitamento regional. Daí a necessidade de intensificar o intercâmbio cultural e científico, criar as casas respectivas no outro país, firmar um convênio turístico, conjugar a ação política para os projetos que tratassem do aproveitamento dos recursos da bacia do Prata, neutralizar a disputa por esferas de influência no Uruguai, Paraguai e Bolívia e, enfim, conformar as posições diante de Cuba. No plano econômico, a realização de interesses sugeria aumentar os fluxos do comércio bilateral de modo a fortalecer as duas economias, vincular estreitamente as duas economias, removendo óbices psicológicos resultantes de rivalidades anacrônicas, concertar posição comum diante das restrições do Mercado Comum Europeu às importações agrícolas, equacionar o comércio bilateral do trigo, do café, dos manufaturados e do petróleo, de modo a resultar o equilíbrio do comércio e a corresponder ao estádio de evolução das economias nacionais. Se esta política de entendimento e cooperação entre o Brasil e Argentina, inaugurada por Kubitschek e Frondizi, não sofria restrições no Brasil, o mesmo não se pode dizer da Argentina. O governo e a chancelaria acompanhavam-na sem restrições, mas o mesmo não ocorria com as forças armadas, que exerciam verdadeira tutela sobre as decisões de Frondizi e que consideravam a Política Externa Independente do Brasil algo radical, próximo do neutralismo nasseriano8. Ao derrubar o presidente Frondizi, após as eleições provinciais de 18 de março de 1962 que deram vitória aos peronistas, e ao instalar na presidência da República o presidente do Senado, José María Guido, os militares argentinos apoderaram-se concretamente do poder. Não alcançara Frondizi, embora fosse sua intenção, conduzir com suficiente equilíbrio sua política pendular entre as forças conservadoras tradicionais e as massas operárias ainda politizadas pelo justicialismo. As forças armadas, que nunca haviam confiado em seu governo e desaprovavam sua política interna e internacional, diante do resultado das eleições, da posição assumida pela chancelaria durante e após a Conferência de Punta del 8

Narto Lanza ao MRE, relatório, Buenos Aires, 1º fev. 1962, AHIBR, caixa 32.

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Este com relação ao governo de Fidel Castro e diante do temor de uma volta ao passado, intervieram brutalmente na vida política9. Romperia a Argentina com apolíticade franco entendimento e cooperação com o Brasil, mola mestra da união sul-americana, ou encamparia o papel de obstrutora dos interesses da outra parte por meio das zonas de influência a firmar, papel que coube ao Itamaraty desempenhar entre 1945 e 1956? As sucessivas quarteladas na América Latina estavam, com efeito, contagiando as políticas exteriores dos diferentes países, como vasoscomunicantes, colocando em xeque a doutrina da não-intervenção. Um governo com culpa sufocada, como era o argentino de Guido, exultava com males alheios, como o golpe militar que depôs o governo de Manuel Prado no Peru, golpe cuja brutalidade aliviava a consciência dos militares portenhos que mantinham uma ilegalidade menos acintosa. Mas a situação na Argentina permanecia explosiva e qualquer mudança nesse país afetaria as relações interamericanas em seu conjunto. Quem negaria que a falsa democracia argentina, com os militares a governar por trás das aparências constitucionais, não houvesse influenciado o meio castrense peruano, que implantou uma junta de governo diretamente militar e que, ao reverso, como vasos-comunicantes, a ditadura peruana não encorajasse os militares argentinos a fazer o mesmo? Assim raciocinava, com preocupação, o chefe da missão brasileira em Buenos Aires. Toda a diplomacia americana estava perplexa, sem bem saber como reagir diante dos golpes de força que feriam de morte a democracia no continente. A maior parte dos governos do hemisfério manifestou aberta repulsa pela deposição de Prado e os Estados Unidos suspenderam a ajuda econômica ao Peru. O governo argentino, por conveniência, não se pronunciou, já que por golpe havia deposto Frondizi. Quando o governo venezuelano solicitou na OEA a convocação de uma reunião de consulta para considerar o caso peruano. Com tal atitude deixou constrangidos tanto o governo argentino, quanto o norte-americano.Quando os militares argentinos depuseram Frondizi, John F. Kennedye seu secretário Dean 9

Legação do Brasil a Renato Archer, ofício, Buenos Aires, 11 abr. 1962, AHIBR, caixa 32.

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Rusk não só não suspenderam a ajuda econômica como apadrinharam o regime falsamente democrático. Com que moral aplicariam uma política diversa no caso do Peru, quando tivessem que acompanhar as decisões de uma reunião de consulta? Melhor seria, para ambos, que não prosperasse a iniciativa venezuelana10. O comércio entre o Brasil e a Argentina, em razão de dificuldades políticas de relacionamento bilateral que se reproduziam, fluía abaixo das potencialidades, como reconheciam os negociadores do novo acordo do trigo, firmado em novembro de 1964, em virtude do qual prosseguia o intercâmbio de produtos primários tradicionais11. Quando o golpe militar de março de 1964 no Brasil alinhou o país à ideologia ocidentalista e ao contexto da Guerra Fria, o entendimento com o Paraguai de Stroessner sobre o aproveitamento das Sete Quedas não ocorreu como supôs o embaixador Palmério. Em 1966, o governo paraguaio ostentava publicamente, como se quisesse referi-lo como modelo, o projeto de aproveitamento dos saltos de Apipé que resultou de estudos bilaterais feitos por Comissão Mista Paraguaio-Argentina. Dava a entender que havia clara diferença entre a posição argentina, de colaboração no aproveitamento da energia de Apipé, e a brasileira, monopolística e esbulhadora de territórios, no caso de Sete Quedas. O governo de Stroessner havia evoluído diante do aproveitamento do rio, adotando de forma intransigente aquela tese do Partido Liberal. Quando, em 1962, esse partido de oposição acusou Stroessner de alta traição por não reclamar direito de soberania sobre Sete Quedas, desencadeou a mudança de atitude, percebendo o presidente as vantagens que poderia tirar para firmar sua posição dentro e fora do país, ao sustentar com intransigência a tese liberal. Encampou-a como desiderato nacional, mas não recolheu junto à opinião argentina o entusiasmo esperado. O Itamaraty solicitou das missões diplomáticas um levantamento dos reflexos da tese paraguaia na imprensa e na opinião. As respostas foram dispersas. Na Argentina, por exemplo, apenas a 10 Legação do Brasil a Afonso Arinos de Melo Franco, ofício, Buenos Aires, 24 jul. 1962, AHIBR, caixa 32. Moniz Bandeira (1993); Black (1986). 11 Arnaldo de Vasconcelos ao MRE, ofício, Buenos Aires, 18 nov. 1964, AHIBR, caixa 33.

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pequena imprensa peronista apoiava a reivindicação paraguaia, permanecendo a imprensa de modo geral cautelosa. Algumas revistas, entretanto, alertavam as forças armadas do país para não permanecerem inertes diante de um projeto que poderia afetar o regime das águas e a navegação do ribeirinho inferior12. Havia uma corrente de opinião favorável ao golpe de estado para derrubar o governo radical do presidente Arturo Illia, corrente que se aproveitou do caso para provocar as forças armadas do país. Enquanto se mantinha Illia no poder, a orientação do Palácio San Martín correspondia às idéias de Frondizi quanto às relações regionais, que deveriam pautar-se pelo entendimento político e pela cooperação. Supunha-se, então, que a futura integração regional deveria ser preparada com a implantação de uma infra-estrutura física de transportes e comunicações ligando os países do Cone Sul: Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia e Chile. Esse pressuposto da administração radical tinha preponderância na política regional e também envolvia os projetos hidrelétricos e da navegação dos rios. Inúmeros atos dispondo sobre ferrovias, rodovias, pontes, navegação, drenagem, utilização de portos foram concluídos entre o governo de Illia e os governos do Paraguai, Bolívia e Brasil com o intuito de levar a termo obras integradas de infraestrutura para os transportes regionais. “Conforme ficou evidenciado (escreveu, em 1966, o embaixador brasileiro em Buenos Aires Décio de Moura) a política de transportes da Argentina, em relação a seus três vizinhos citados, é um corpo inteiriço e indissociável”. Tal espírito então reinante preparava as negociações em torno do tratado de integração física da bacia do Prata que se iniciaram em 1967. Em tais condições, sem uma mudança radical de governo, o que aliás logo sucederia na Argentina, a postura intrigante do Partido Liberal do Paraguai soava como uma aberração política, como também a proposta inicial do Ministério de Minas e Energia do Brasil, que ignorava as repercussões em outros países do aproveitamento de Sete Quedas13. 12 Décio de Moura a Juracy Magalhães, ofícios, Buenos Aires, 26 jan. e 15 mar. 1966, AHIBR, caixa 33. 13 Idem, ofício, Buenos Aires, 11 maio 1966, AHIBR, caixa 10.

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Sem aparelhar a infra-estrutura física de modernos meios de transporte, conectando rodovias, ferrovias ehidrovias, a expansão dos negócios regionais, particularmente do comércio, estaria comprometida. O comércio entre o Brasil e a Argentina reduziu-se a partir de 1958, ano em que, nos dois sentidos, ultrapassou os duzentos milhões de dólares. Somente em 1965 recuperou aqueles níveis, atingindo 269 milhões, o que acendeu as esperanças de um intercâmbio futuro em escala crescente, ao abrigo do Tratado de Montevidéu que criou a Alalc. Essas expectativas resultavam da modificação da pauta brasileira de exportação para a Argentina e da maior venda do trigo para o Brasil. Entre 1953 e 1963, compunha-se a pauta brasileira de produtos tradicionais (café, madeira, cacau e mate) na proporção de 70%, caindo então o peso relativo desses produtos a 41% em 1965,comavendade industrializados14. Em dezembro de 1966, o presidente boliviano René Barrientos visitou seu colega Juan Carlos Onganía em Buenos Aires com o objetivo de acelerar a obra de integração viária com o Prata, de que dependia o incremento do comércio regional no seio da Alalc e o próprio desenvolvimento boliviano. A cooperação que buscava na Argentina visava a incorporação efetiva da Bolívia ao sistema de navegação do Prata como também a ligação de suas ferrovias à rede argentina, como condição para executar os projetos bilaterais de complementação econômica nos campos de siderurgia, petróleo e petroquímica15. Em fevereiro de 1967, em decorrência da visão integracionista moderna do governo argentino, os cinco países (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia) compareceram à I Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata, “um passo certo para a complementação racional de ideais, objetivos e meios para superar os obstáculos que se opõem a uma efetiva assistência que dê impulso ao desenvolvimento”, na avaliação do periódico portenho Clarin. A realização de um programa multinacional com espírito integracionista era vista como passo no sentido de promover o desenvolvimento de cada uma das economias 14

Legação do Brasil ao MRE, relatório, Buenos Aires, 7 jun. 1966, AHIBR, caixa 33. Buenos Aires,28 dez. 1966, AHIBR, caixa 33.

15Décio de Moura a Juracy Magalhães, ofício,

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nacionais que disporia de infra-estrutura física e energética complementar. A imprensa portenha desconhecia as negociações que haviam precedido a reunião. Manifestou certa obsessão contra a presença do Brasil no Prata, exceto quanto ao Clarin, que se diferenciava das manifestações nacionalistas, porque estava imbuído de espírito desenvolvimentista. Era geral a preocupação acerca da divisão internacional do trabalho e o receio de ver o processo de integração agravar a desigualdade entre o Brasil industrial e a Argentina fornecedora de alimentos e matériasprimas. Aimprensa reivindicava aparticipação argentina nos projetos hidrelétricos de Sete Quedas em razão de os trabalhos poderem afetar o regime do rio e alegando, corretamente, que o Brasil invocara a Declaração de Montevidéu de 1933 para ser consultado quando dos estudos relativos ao aproveitamento de Salto Grande. Elogiava o chanceler Costa Mendez por haver englobado Sete Quedas no complexo dos temas da bacia do Prata. Mas a verdade não era bem a que aparecia, porquanto a delegação brasileira esvaziou de conteúdo a exigência argentina de trocar informações e consultar-se reciprocamente sobre a realização de obras hidráulicas que pudessem afetar os demais países, exigência essa que foi eliminada na declaração final da I Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata16. Assim mesmo, parecia estar-se em condições mais favoráveis à negociação da integração física do que ao tempo em que ela era proposta por Perón ou Pérez Jiménez. Onganía dera, pois, continuidade à política de Illia, projetando a imagem do chanceler Costa Mendez, artífice da Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata, onde se negociava a integração física regional, e promotor depois dela de inúmeros estudos que visavam seu desenvolvimento. O Brasil via com bons olhos e confirmou seu interesse pela cooperação com a visita a Buenos Aires do presidente eleito, Artur da Costa e Silva17. A extensão da jurisdição argentina sobre as 200 milhas do mar territorial decretada então provocou dificuldades por parte do Brasil, que se opunha a seu reconhecimento, Carlos dos Santos Veras a José Magalhães Pinto, ofício, Buenos Aires, 16 mar. 1967, AHIBR, caixa 34. 17 Décio de Moura a José de Magalhães Pinto, ofício, Buenos Aires, 3 maio 1967, AHIBR, caixa 34. 16

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mesmo recebendo em troca isenção de taxas previstas na legislação para a pesca18. Ao lado dos mecanismos instituídos pela Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata com o objetivo de dar operacionalidade às iniciativas de cooperação, também operavam aqueles inerentes à Alalc, os primeiros destinados aos empreendimentos de infra-estrutura, os segundos à promoção do comércio. Nas reuniões da Comissão Especial Brasileiro-Argentina de Coordenação, decorrente do Tratado de Montevidéu, os representantes brasileiros esforçavam-se por vender produtos manufaturados à Argentina, como, aliás, aos demais países da América Latina. Mas estavam abertos às oportunidades de comple mentação dos processos produtivos em determinados setores da indústria, como a siderurgia, a construção naval, os equipamentos ferroviários etc. e, para tanto, apelava-se de lado a lado para aparticipação do empresariado privado nas negociações19. Esse espírito de entendimento facilitou as negociações do Tratado do México relativo à proscrição de armas nucleares na América Latina, uma resposta da região ao Tratado de não- Proliferação Nuclear proposto pelas duas superpotências e considerado então obstrutor da pesquisa científica e do uso econômico da energia atômica20. O mais grave problema a repercutir nas negociações e nos projetos discutidos pelos países da bacia do Prata era a tese segundo a qual inaugurava-se uma tendência de comércio desigual, aparecendo o Brasil como exportador de manufaturados e os demais países como fornecedores de matérias-primas. As exportações de manufaturados argentinos para o Brasil passaram de sete para dez milhões de dólares entre 1963 e 1967, enquanto o fluxo inverso ascendeu de um para 32 milhões. O editorialista do Clarin, Oscar Camilión, descrevia com freqüência os inconvenientes estruturais desse fluxo comercial e acusava as autoridades argentinas de terem aceito um esquema de trocas Idem, ofício, Buenos Aires, 15 maio 1967, AHIBR, caixa 34. Legação do Brasil ao MRE., relatório, Buenos Aires, 1º dez. 1967, AHIBR, caixa 34. 20 Décio de Moura a José de Magalhães Pinto, ofício, Buenos Aires, 17 maio 1967, AHIBR, caixa 34. 18 19

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qualitativamente desfavorável, o que afetava as negociações no seio da Comissão Especial da Alalc, retardando os acordos. A Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata, realizada em Santa Cruz de la Sierra nos meados de 1968, dividiu a opinião platina, alguns órgãos de imprensa como LaNación a sufragar, outros, como Clarin, a rejeitar a própria filosofia do desenvolvimento integrado da região, em bases multinacionais, por ver nessa tendência o caminho da preservação da desigualdade de estádios de desenvolvimento entre as nações. Clarin apoiava o pensamento desenvolvimentista de linhagem frondiziana, porém não sua dimensão integracionista, em editorial de 31 de maio de 1968: estamos nos prolegômenos de uma operação de grande alcance em prol da divisão internacional do trabalho, máxima aspiração precisamente da burocracia internacional que destinou a Argentina à função de continuar uma feliz era pastoril provendo alimentos ao resto do mundo.

Tanto o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) quanto o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento manifestaram interesse em apoiar estudos sobre oportunidades de ação integradora e em contribuir financeiramente para execução de projetos, caso os recursos fossem solicitados pelos governos. No embalo desse movimento de difícil condução, as chancelarias formulavam seus anteprojetos para um tratado de desenvolvimento integrado da bacia do Prata21. A iniciativa concreta desse movimento coube à Argentina, que convocou para Buenos Aires a I Reunião de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, realizada em 27 de fevereiro de 1967, ocasião em que uma declaração conjunta determinou a constituição do Comitê Intergovernamental Coordenador (CIC), integrado por representantes de Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, com sede em Buenos Aires. AII Reunião de Chanceleres (Santa Cruz de la Sierra, 18 a 20 de maio de 1968) aprovou seu estatuto e a I Reunião Extraordinária de do Brasil ao MRE, Buenos Aires, ofícios e relatórios de 15, 21 e 26 mar., 15 maio, 6 e 27 jun., 12 jul., 13 set., 4 out. e 26 dez. 1968 , AHIBR, caixa 34. 21 Legação

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Chanceleres, realizada em Brasília, a 23 de abril de 1969, firmou o Tratado da Bacia do Prata, em que se dispôs que o CIC: é reconhecido como o órgão permanente da bacia, encarregado de promover, coordenar e acompanhar o andamento das ações multinacionais, que tenham por objeto o desenvolvimento integrado da bacia do Prata, e da assistência técnica e financeira que promova com o apoio dos organismos internacionais que estime convenientes, bem como de executar as decisões que adotem os ministros das Relações Exteriores.

Desde 1967, portanto, os chanceleres da bacia do Pratareuniamse, em princípio anualmente, repassando à responsabilidade executiva do CIC, desde que criado, as resoluções destinadas a promover, mediante ações coordenadas, a integração física da região22. Ao deixar seu posto em Buenos Aires, o embaixador brasileiro Pio Corrêa produziu, emjaneiro de 1969, um relatório sobre as relações entre os dois países, analisando circunstancialmente as dificuldades e indicando caminhos para construção de uma parceria estratégica. A tese que defendia o diplomata brasileiro fundava-se na necessidade de entendimento prévio entre Brasil e Argentina para o êxito de qualquer processo de integração regional. Com efeito, argumentava, sendo elas as duas maiores potências da América do Sul, sua influência política seria tal que o entendimento mútuo asseguraria via de regra a maioria em qualquer foro decisório regional. Disso resultaria a necessidade não só de se manter o entendimento cordial mas de se criar um sistema de consulta permanente e de concertação política. Os regimes implantados em 1964 no Brasil e 1966 na Argentina convergiam quanto a convicções ideológicas e teorias sócio-econômicas: repudiaram a 3ª Posição, o neutralismo dosnão alinhados e fizeram uma opção clara pelo Ocidente liberal. Essas afinidades que aconselhavam a implantação do sistema de consultas, eram neutralizadas por forças negativas que agiam nos dois lados. No Brasil, a tendência de evitar uma associação íntima com a Argentina em razão de seu regime militar ditatorial; na Argentina, 22

Cláudio Garcia de Souza ao MRE, ofício, Buenos Aires, 5 set. 1978, AHIBR, caixa 159.

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o trauma psicológico de país mais atrasado economicamente, receoso de se tornar caudatário ou parente pobre. Essas determinações ou preconceitos compeliam as sociedades para relações frias e formais, com conseqüências negativas para as relações econômicas e comerciais. A Argentina era o terceiro maior comprador do Brasil, após Estados Unidos e Alemanha, e o primeiro comprador de manufaturados. Mas a cada ano, de forma constrangedora, o Brasil lhe impunha negociar a quota de trigo destinada a seu mercado como forma de pressão para ampliar a venda de manufaturados. Resultou desse mecanismo irritante a crítica ao que se convencionou chamar de relação trigo-aço, expressão da má qualidade do comércio bilateral. Convinha, pois, alcançar uma reestruturação desse comércio em novas bases. A V Reunião da Comissão Especial Brasileiro-Argentina de Coordenação realizada no Rio de Janeiro entre 26 de novembro e 9 de dezembro de 1968, de certo modo, corrigiu alguns defeitos acumulados. O Brasil programou a compra anual de um milhão de toneladas de trigo no período de 1969-1971 e a Argentina comprometeu-se com a compra de telas de juta. Mais relevante foi o compromisso assumido por ambas as partes de adquirir no outro país 30% de suas importações de produtos siderúrgicos, consoante as características da produção. Inúmeras outras medidas foram sugeridas como conveniências para desentravar o comércio bilateral de obstáculos tradicionais. Um convênio de créditos recíprocos foi concluído logo depois, entre os respectivos bancos centrais. Não obstante esses resultados, Pio Corrêa considerava ao término da década de 1960 os entendimentos muito aquém das exigências concretas para situar as relações econômicas ao nível de suas potencialidades: Para o Brasil e para a Argentina, existe a necessidade imperiosa de uma complementação industrial mútua: somente assim poderão os dois países chegar a economias de escala, condição indispensável para atingir a um desenvolvimento econômico de caráter genuinamente industrial e pós-industrial. Não há outro caminho para chegar a isso, senão a articulação dos dois mercados em um mercado comum sub-regional,

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mediante o planejamento em conjunto da política industrial dos dois países, de modo a assegurar às respectivas indústrias, na fase sobretudo de amortização do investimento inicial, base de mercado que proporcione condições econômicas de operação, competitivas com as similares de outros países.

As oposições a essa política sensata de integração e desenvol vimento provinham, em ambos os países, do nacionalismo autárcico do setor público e do nacionalismo protecionista do setor privado. Daí a necessidade de empreender longo e metódico esforço de remoção desses obstáculos à integração pelas diplomacias, em negociações de alto nível, de preferência longe do debate público que sempre acaba por influir e enrijecer as posições. O foro das reuniões dos chanceleres da bacia do Prata, bem encaminhado nas reuniões de Buenos Aires de 1967 e de Santa Cruz de la Sierra de 1968, parecia adequado. Paraguai, Bolívia e Uruguai, três integrantes da bacia sem dimensão de mercado, acompanhariam Argentina e Brasil, caso estes levassem à frente o projeto racional de integração econômica para o desenvolvimento. Os investimentos externos fluiriam em tais condições. O Brasil e a Argentina (conclui Pio Corrêa sua análise) estão naturalmente designados para a tarefa pioneira dessa elaboração, que supõe um entendimento lúcido entre ambos para uma política orgânica da bacia do Prata. Daí resulta o maior e mais nobre desafio que confronta a diplomacia brasileira desde o Império.

O erro estratégico brasileiro seria o de recusar esse desafio e de acantonar-se em uma política de isolamento, omissão ou obstrução que comprometeria o desenvolvimento do Cone Sul durante décadas23. Ao término dos anos 60, apesar da existência de regimes militares em ambos ospaíses, a diplomacia brasileira recuperou o espírito de presidentes democratas como Kubitschek, Frondizi, Quadros e Goulart, espírito que ascendeu ao cenário da política regional por meio da Operação Pan-Americana e do Acordo de Uruguaiana. Havia, M. Pio Corrêa a José de Magalhães Pinto, ofício, Buenos Aires, 27 jan. 1969, AHIBR, caixa 35. 23

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portanto, cursos profundos na política regional dos países do Cone Sul, que afloravam e submergiam, por sobre governos e regimes. Indicavam a existência de alternativas excludentes de política regional: a alternativa da rivalidade, das zonas de influência e da diplomacia da obstrução e a alternativa da negociação de interesses, da colaboração bilateral e coletiva e da integração regional aberta, ambas contando com defensores civis e militares. E com diplomatas de matiz ideológico contraditório, como serviram de exemplo os embaixadores brasileiros em Buenos Aires, João Baptista Luzardo, o nacionalista, e Pio Corrêa, o anticomunista, dois entusiastas da cooperação entre Brasil e Argentina. Carece, pois, de fundamento a tese segundo a qual as relações interamericanas balizaram-se por perfis contraditórios emanados ora do regime democrático, ora do ditatorial. As relações internacionais são mais complexas e freqüentemente escondem forças profundas capazes de se impor ao processo decisório e de neutralizar, em certa medida, a natureza dos regimes políticos. A diplomacia brasileira forneceu sólido exemplo disso, ao implementar durante o regime militar, entre 1967 e 1979, uma estratégia oriunda de princípios e valores cultivados por governos democráticos anteriores, traçada por estadistas de envergadura24. Embora com menos continuidade e coerência, a política exterior da Argentina também ostentou linhas de conduta comum a regimes democráticos, populistas e militares, por sobre a turbulência da vida política nacional25. Careceria por certo de fundamento, por outro lado, uma tese que não reconhecesse à natureza dos regimes políticos importante influência sobre a conduta exterior dos Estados. Assim, o papel do desenvolvimento como vetor das políticas exteriores foi mantido por distintos regimes políticos na América Latina, na segunda metade do século XX, mas democracia e ditadura reagiram de forma diferente às coerções que a Guerra Fria impôs à região. Cervo, Amado Luiz (org). O desafio internacional; a política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias. Brasília: Edunb, 1994; Cervo, Bueno ( 1992); Albuquerque (1996); Vizentini (1998); Vizentini (1995). 25 Rapoport (1997); Lladós, Guimarães (1999); Lanús, Juan Archibaldo. DeChapultepecal Beagle; política exterior argentina, 1945-1980. Buenos Aires: Emecé, 1984, 2 v; Jalabe(1996). 24

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O sucessor de Pio Corrêa, futuro chanceler Azeredo da Silveira, chegou cauteloso a Buenos Aires, em 1969. Apresentou uma proposta para reformar o precário Centro de Estudos Brasileiros com a “aplicação do princípio de que a difusão cultural e a cooperação intelectual devem ser instrumentos auxiliares e paralelos de uma política internacional global”26. Deu ênfase ao papel da imagem positiva do outro em política internacional. Considerou-a oportuna, no momento em que o inter câmbio comercial vinha sendo desobstruído pela Comissão Especial Brasileiro-Argentina de Coordenação, cujas reuniões anuais tornaramse regulares desde a criação da Alalc. As expectativas e as recomendações das delegações de ambos os países coincidiam quanto à possibilidade de ampliação dos fluxos de comércio e de preparação para um sistema de integração mais avançado, tanto mais que ocupavam-se elas igualmente dos transportes e do turismo. A fé na Alalc como etapa prévia de futura integração mantinha-se viva27. Uma proposta de convênio entre a Eletrobrás e a Agua Y Energia Electrica negociada, em maio de 1969, para o estudo conjunto do trecho internacional dos rios Iguaçu e Uruguai e seus afluentes trouxe à ordem do dia a divergência entre os dois governos quanto ao princípio de consulta aos ribeirinhos inferiores que a Argentina queria consagrar28. A troca de informações na área militar, entre as chancelarias latino-americanas, comprovava estar em elaboração, no fim dos anos 60, a nova doutrina de segurança, quejá ensaiava seusprimeirospassos. O ambiente da década fora favorável à emergência de um pensamento criativo em matéria de segurança. Desejava-se, então desvincular a segurança de sua forma coletiva, atrelada à Guerra Fria e à dependência dos Estados Unidos, que nenhum dividendo trouxera à América Latina, fazendo emergir seu nexo com a economia e o desenvolvimento nacional. Encaminhavam-se os governos em direção à nacionalização da segurança, que compreendia o domínio próprio de tecnologias em setores estratégicos, demandado tanto pela produção de meios de Azeredo da Silveira a José de Magalhães Pinto, ofício, Buenos Aires, 2 jul. 1969, AHIBR, caixa 35. 27 Idem, ofício, Buenos Aires, 23 out. 1969, AHIBR, caixa 35 28 Ibidem, ofício, Buenos Aires, 28 maio 1969, AHIBR, caixa 35 26

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dissuasão e defesa quanto pela modernização do processo produtivo como um todo. Azeredo da Silveira acompanhava desde Buenos Aires a mudança que se processava na Argentina. A Experiencia Navidad, realizada com êxito, constou do lançamento de três foguetes – Castor 00, Rigel e Canopus II-Bio II – com que a Argentina, aparentemente, inseria-se “num grupo extrema mente restrito de Estados que podem apresentar resultados expressivos em provas espaciais”, já que praticamente tudo fora realizado por técnicos argentinos29. O Plano Europa de modernização das Forças Armadas da Argentina era mais revelador. Esboçado em 1967 para modernizar o Exército, destinava-se a prover o país de meios de segurança, em um esforço conjugado entre universidade, empresa privada e governo. Essa estratégia não era uma invenção, porquanto os Estados Unidos a vinham implementando há muitos anos. Para a América Latina, contudo, havia algo criativo, porquanto ela vinha dar suporte ao projeto de desenvolvimento econômico e tecnológico, vinculando os setores civil e militar no sistema produtivo. As etapas de execução do plano previam a importação inicial de armamentos e a posterior produção dos mesmos mediante associação interna do conhecimento, daprodução e das necessidades de defesa para as três forças, Exército, Marinha e Aeronáutica30. 5.1.2. O norte da América do Sul: o isolacionismo venezuelano Nos anos 60, como antes, a conjuntura ao norte do continente sul-americano punha em marcha fatores distintos daqueles do Cone Sul para a evolução das relações interamericanas. Diferentemente da Argentina de Perón e Frondizi, a Venezuela de Romulo Betancourt e Rafael Caldera relutava em incorporar-se à Alalc e opunha-se a qualquer projeto de integração sub-regional. Não nutria simpatias pelo terceiromundismo. Seus interesses econômicos condicionavam de duas formas Silveira a Mario Gibson Barbosa, ofício, Buenos Aires, 30 dez. 1969, AHIBR, caixa 35. 30 Idem, relatório, Buenos Aires, março. 1969, caixa 1. 29 Azeredo da

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a política exterior, incumbindo-a, por um lado, de lutar pela manutenção da quota de petróleo no mercado norte-americano e, por outro, de defender o protecionismo e as restrições às importações em nome da necessária industrialização interna. Indispunha-se, por isso, com os demais países do continente que buscavam seu mercado em troca de petróleo e que, não satisfeitos, dirigiam-se a outros fornecedores, países árabes e União Soviética. Para compensar esse isolacionismo comercial e econômico, a diplomacia venezuelana acionava a doutrina Betancourt, segundo a qual sanções haveriam de ser aplicadas aos regimes que atentassem contra a legalidade das instituições, os direitos humanos e a democracia. Por força de tais convicções, o governo venezuelano abriu conflito tanto com os regimes de esquerda, como Cuba de Fidel, quanto com as ditaduras de direita, do Caribe, da Argentina, do Peru, do Brasil, entre outras. Essas contradições políticas encantonavam, ao final, a ação externa venezuelana em horizonte limitado, cujo espectro estendia-se ao norte pelaAméricaCentraleCaribe, ao sul pela Guiana, para definhar sobre os demais países bolivarianos. A ditadura de Pérez Jiménez foi derrocada pela revolução de 23 dejaneirode 1958, época em que a Venezuela dava a falsa impressão de ser um dos países mais ricos do mundo, graças à extração e à exportação de petróleo. Na realidade, um dispendioso programa de obras públicas consumira as grandes receitas geradas pelo incremento das exportações resultante da crise de Suez. O déficit fiscal e do orçamento acentuou-se depois, ao tempo em que uma superoferta de petróleo criava dificuldades para as exportações, afugentava os investimentos externos e provocava até mesmo a saída de capitais. Ao assumir novamente a presidência, a 13 de fevereiro de 1959, Romulo Betancourt anunciou a política de proteção alfandegária à indústria nacional, garantiu as concessões já feitas para a exploração do petróleo, mas reservou para a empresa estatal nacional toda e qualquer concessão futura concernente ao petróleo e aos minérios. Betancourt governava o país com base em coalizão que tinha por centro o Partido da Ação Democrática e o apoio do Partido Social Cristão. O da Ação Democrática cindiu-se, todavia, contribuindo, com 230

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correntes de oposição, para um clima de constante agitação, do qual foi exemplo o atentado que sofreu o presidente em junho de 1960, com apoio da ditadura de São Domingos. A conduta internacional da Venezuela era influenciada por três fatores: a dependência das exportações de petróleo, cerca de 90% do total; a dependência dos Estados Unidos, principal investidor, cliente e fornecedor; e a repercussão interna dos acontecimentos políticos na áreado Caribe. Osobjetivosdaação externafluíam naturalmente desses fatores: conservar os mercados e defender o preço do petróleo; preservar e desenvolver suas relações com os Estados Unidos; impedir o estabelecimento de governos hostis no Caribe e sua interferência em assuntos internos, mobilizando para tal fim os governos democráticos das Américas. A filiação conceitual da política exterior punha em evidência a defesa do sistema representativo e da autodeterminação dos povos, a repulsa à ação comunista promovida por guerrilheiros com apoio sino-soviético eaperspectiva de converter em responsabilidade internacional coletiva dos Estados americanos a proteção aos direitos humanos e à democracia representativa. Nesse sentido, esforçava-se por provocar sanções da OEA tanto contra a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana, de onde partidários de Pérez Jiménez partiam para desestabilizar a democracia venezuelana, quanto contra o regime cubano, de onde vinham doutrinas e agentes de subversão. No início dos anos 60, a Venezuela mantinha-se fora do Gatt e da Alalc porque lhe repugnava ter que fazer concessões aduaneiras generalizadas, preferindo outorgá-las por tratados bilaterais, aliás pouco numerosos. Na origem dessapolítica econômica internacional estava o receio de que o liberalismo comprometesse seu projeto nacional de industrialização31. Gestionou junto aos países árabes, entretanto, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep ), com a finalidade de defender o preço desse combustível e de ganhar mais pela mesma quantidade exportada. A Opep não foi de grande valia à Venezuela. Seus objetivos foram comprometidos pelo excesso de oferta no mercado internacional 31 AntônioCorrêadoLagoaSanTiagoDantas, relatório, Caracas, 29 dez. 1961,AHIBR, caixa41.

Legação do Brasil ao MRE, ofícios, Caracas, 21 jul. e 31 dez. 1960, AHIBR, caixa 41.

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e pela disposição dos países americanos de não aceitar a política de quotas de importação por origem, estimulando, assim, a concorrência internacional do lado da oferta. Ademais, os países da América Latina estavam dispostos a comprar de quem lhes comprasse, mas a Venezuela fechava seu mercado à importação sobretudo de manufaturados. Esse entrave parecia intransponível nas relações comerciais com o Brasil, o segundo importador de petróleo venezuelano nas Américas. Sendo originalmente o fornecedor quase exclusivo, em 1960 a Venezuela já participava com menos de 50% das importações brasileiras de petróleo e derivados. Do lado brasileiro, havia boa disposição no sentido de reanimar o comércio bilateral com uma política de intercâmbio de petróleo por manufaturas. Os óbices já conhecidos, aliados recentemente ao controle do câmbio implantado no país bolivariano, impediam as intenções de se realizar, permanecendo esse comércio extremamente favorável à Venezuela, que importava do Brasil quase nada além de alguns produtos químico-farmacêuticos. Se, com o poder de barganha de que dispunha, o Brasil não alcançava expandir seu comércio com a Venezuela, maiores dificuldades existiam nos negócios com os demais países. A oposição venezuelana à Alalc e ao acordo de integração sub-regional dos países andinos, por receio de que afetassem sua industrialização, fechava o cerco do país aos negócios sul-americanos32. As relações da Venezuela com os demais países da América Latina espraiavam o vazio de conteúdo que seu isolacionismo estava a provocar. Em julho de 1962, após o golpe militar que derrubou o governo de Manuel Prado no Peru, teve certo impacto sobre a opinião o comunicado do governo venezuelano que anunciou a ruptura de relações com o Peru, coerente com a atitude que adotara nos casos de São Salvador e da Argentina e ratificando a decisão de não manter relações diplomáticas com governos que fossem produto de golpes de Estado. Tratava-se da aplicação da doutrina Betancourt, uma forma de conduta destinada, como já se observou, amanter viva a presença venezuelana nas relações interamericanas. Diante do caso peruano, a diplomacia da Venezuela manifestou, ademais, o desejo de que fosse convocada, de 32

Idem, ofício, Caracas, 18 set. 1961, AHIBR, caixa 41.

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urgência, uma reunião de ministros das Relações Exteriores da OEA para estudar medidas aplicáveis aos países vítimas de golpes de Estado. Essas iniciativas venezuelanas situavam politicamente o país como arauto da democracia nas Américas, um argumento de grande ressonância interna a favor do governo de Betancourt, que também era objeto de consideração pelos países da adjacência caribenha. Mas os grandes, México, Argentina e Brasil, em nome do princípio de não-intervenção, esfriaram o entusiasmo venezuelano, negando apoio à tese das sanções contra regimes oriundos de golpes de Estado33. Ao deixar o governo no início de 1964, Romulo Betancourt advertiu as nações do continente de que haveriam ainda de escolher entre o modelo cubano e o venezuelano, caso a OEA não aplicasse sanções contra o regime de Fidel, que acusava de atentar contra as instituições democráticas do país. Talvez o Brasil anticomunista dos militares acorresse em apoio à tese venezuelana, após o golpe militar que derrubou a democracia em 31 de março de 1964, mas de que modo, se, em nome da doutrina Betancourt, a Venezuela rompera com este vizinho as relações diplomáticas? O arauto da democracia no continente isolava-se cada vez mais em razão de decisões de política exterior derivadas de princípios democráticos. Isolava-se dos regimes de direita, oriundos de golpes militares, porque os fustigava; e dos regimes democráticos que ainda subsistiam, porque estes eram simpáticos à causa cubana e defensores dos princípios de autodeterminação e não intervenção. Em uma visita não oficial a Caracas, logo após o golpe de 1964, o deputado brasileiro André Franco Montoro ouviu do ministro das Relações Exteriores do governo recém-empossado de Raul Leoni, Iribarren Borges, que a Venezuela aguardava a expiração do Ato Institucional, pelo qual eram cassados os direitos políticos de parlamentares e lideranças esquerdistas, para reatar as relações que havia cortado com base na doutrina Betancourt. Mas as dificuldades internas de tal decisão seriam graves, visto que à opinião pública repugnava 33 Fernando Paulo Simas Magalhães a Afonso Arinos de Melo Franco, ofício, Caracas,

1962 AHIBR, caixa 41.

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transigir em matéria de reconhecimento de regimes antidemocráticos. A Venezuela sentia-se aliviada com a deposição de João Goulart, porque este se opunha a qualquer tratamento discriminatório contra Cuba, mas não se beneficiava com o triunfo de seus adversários militares e temia que o exemplo brasileiro desencadeasse uma série de levantes castrenses no resto do continente. Cogitou, por isso, em abrir importante consulado no Rio de Janeiro com a finalidade de, por via indireta, manter relações políticas oficiosas com o Brasil. Essa atitude era importante no momento em que Leoni sofria pressões internas no sentido de aderir à Alalc para atenuar o isolamento tanto político quanto econômico que as contradições entre uma diplomacia continental de prestígio e outra de fechamento comercial haviam aprofundado34. O modus vivendi com o Brasil prolongou-se, a demonstrar que a censura venezuelana ao regime militar brasileiro era tênue e que a ruptura não havia representado um ato hostil. O reatamento tardou até julho de 1967, quando chegou a Caracas o primeiro embaixador brasileiro depois de 1964. Com efeito, Leoni, o sucessor de Betancourt, deu continuidade a sua doutrina em matéria de relações diplomáticas continentais, afirmando ser este um contrato que o governo havia firmado “não só com nossos cidadãos, mas com a América como um todo”35. Rafael CalderaRodríguez, eleito em 1968, parecia, entretanto, disposto a não mais comprometer-se com a rigidez da doutrina Betancourt e sequer rompeu novamente as relações com o Brasil, embora para tanto pressionasse o Partido da Ação Democrática, após o Ato Institucional 5, que endureceu o regime e introduziu em 1968 a ferrenha ditadura do general Emílio G. Médici36. A chancelaria venezuelana envidou grande esforço para a convocação da XII Reunião de Consulta dos Ministros do Exterior da Antônio Corrêa do Lago a João Augusto de Araújo Castro, ofício, Caracas, 29 fev. 1964, AHIBR, caixa 41. Alberto da Costa e Silva a Vasco Leitão da Cunha, ofícios, Caracas, 20 e 25 maio 1964, AHIBR, caixa 41. 35 Cyro Gabriel Cardoso a Vasco Leitão da Cunha, ofício, Caracas, 14 out. 1964, AHIBR, caixa 41. 36 Alfredo Rainho Neves a José de Magalhães Pinto, ofício, Caracas, 21 jan. 1969, AHIBR, caixa 42. 34

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OEA, que se realizou em 1967, com a finalidade de condenar Cuba como foco subversivo. Seus resultados, contudo, ficaram muito aquém do que esperava o governo de Leoni. Além de pretender afastar a ação revolucionária apoiada por Fidel Castro da área caribenha, a Venezuela preocupava-se então com um possível triunfo de governo esquerdista e inimigo na Guiana, país fronteiriço com o qual tinha um contencioso lindeiro37. Ao apresentar seu relatório em que prestava contas ao Itamaraty de sua gestão na Venezuela, entre julho de 1967 e fins de 1969, o embaixador brasileiro, A. Boulitreau Fragoso, pela exiguidade de assuntos que expunha, expressava a pouca repercussão das relações internacionais da Venezuela sobre a América do Sul. A expectativa de fomentar o comércio, ao menos com o Brasil, que lhe comprava petróleo, foi frustrada pela suspensão das relações diplomáticas entre 1964 e 1967. Após o reatamento, em outubro de 1967, uma importante missão comercial brasileira chefiada pelo embaixador Manuel Antônio Maria de Pimentel Brandão dirigiu-se a Caracas para negociar com a Venezuela as primeiras concessões tarifárias decorrentes da entrada do país na Alalc. Dava-se, assim, mais um passo no caminho da superação do isolamento venezuelano com relação à América do Sul, que se havia iniciado com a adesão tardia e reticente à Alalc e ao movimento de integração. O novo ambiente que se respirava inspirou o discurso latinoamericanista que passou a contaminar os pronunciamentos do presidente Rafael Caldera. Este, em manobra de cunho oportunista, alardeava a filosofia Betancourt por sobre o pensamento terceiromundista dos demais países, com o intuito subterrâneo de provocar a união para garantir o mercado regional para o petróleo venezuelano, o maior objetivo concreto de interesse nacional pelo qual se movia a diplomacia do país38.

Legação do Brasil ao MRE, relatório, Caracas, 6 dez. 1967, AHIBR, caixa 42. Boulitreau Fragoso aMário Gibson Barbosa, relatório, Caracas, 21 nov. 1969, AHIBR, caixa 42. Carlos Silvestre de Ouro Preto ao MRE, ofício, Caracas, 10 jun. 1970, AHIBR, caixa 42. Ver Portillo, Julio. Venezuela-Brasil; relaciones diplomáticas (1842-1982). Caracas: Artes, 1983; Guimarães, Samuel Pinheiro. Brasil e Venezuela: esperanças e determinação na virada do século. Brasília: Funag, 1995. 37

38 A.

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5.2. Relações regionais em compasso de espera na década de 1970 5.2.1. O sul do continente latino-americano: as águas e a geopolítica. Ter-se-ia observado no Cone Sul, nos anos 70, uma deterioração da filosofia inaugurada e, em certa medida, implementada na década anterior, concernente à integração física preparatória da integração econômica? Esta interpretação foi muito difundida pela literatura especializada39. Duas circunstâncias teriam compelido os governos da região para essa tendência negativa das políticas exteriores: por um lado, separou-se de outros aspectos da integração física a questão do aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios, em cujo terreno o desentendimento entre o Brasil e a Argentina agravou-se; por outro, ressurgiram velhas visões geopolíticas, condicionando as oportunidades de cooperação entre os países da bacia do Prata. A tendência positiva da fase anterior teria sofrido um enfraquecimento, antes de amadurecer. Naspáginas a seguir, há como verificar que esta interpretação tradicional corresponde em boa medida a um equívoco do conhecimento histórico. Em janeiro de 1970, o projeto de construção da ponte ligando o Uruguai à Argentina entre Porto Unzué e Fray Bentos suscitou preocupações da diplomacia brasileira, em razão da presença maior que teria a Argentina no vizinho país. Por isso mesmo, diante da precariedade do porto de Montevidéu, via-se com expectativas de restabelecer o equilíbrio de influências o projeto de construção do superporto brasileiro de Rio Grande, concebido como um porto da bacia do Prata e não apenas do sul do Brasil40. Ao assumir, naquele mês de janeiro, as funções de secretário de de Estado Recursos Hídricos, o engenheiro argentino Guillermo Cano fez declarações no sentido de que seu país deveria adotar e manter uma 39 A bibliografia anexa ao final do texto contém uma extensa lista de obras concernentes. O leitor poderá identificar pelos títulos as que analisam as relações interamericanas de forma abrangente ou por países. 40 Expedito de Freitas Resende ao MRE, ofício, Buenos Aires, 23 jan. 1970, AHIBR, caixa 35.

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política fluvial internacional definida, estável e coerente, integrando a respectiva gestão com a política hídrica nacional, como se ambas tivessem por objeto a mesma água41. Encaminhava-se, desde então, a atitude argentina de requerer um estatuto jurídico destinado a disciplinar o uso dos recursos hídricos da bacia do Prata, mediante a incorporação da tese da consulta prévia compulsória aos ribeirinhos inferiores acerca de obras que se construíssem em território de ribeirinhos superiores em rios internacionais sucessivos. Já o Brasil sustentava tese diferente baseada em dois princípios: o respeito à soberania do ribeirinho superior em decisões concernentes ao aproveitamento dos rios e o compromisso de não causar danos sensíveis a terceiros. Esses debates que se travavam no Grupo de Peritos do Comitê Intergovernamental Coordenador do Tratado da Bacia do Prata, sem perspectiva de acordo, ameaçavam paralisar o mecanismo de discussão da integração física regional42. A diferença vinha sendo administrada até então nas reuniões órgãos dos competentes e em contatos permanentes entre as chancelarias. Em maio de 1971, o Itamaraty estava propenso a uma atitude de ruptura, declarando-se oficialmente contrário à tese argentina, o que provavelmente provocaria a suspensão de negociações, nas quais, aliás, vinha obtendo êxito junto aos demais órgãos brasileiros interessados e junto aos governos platinos do Paraguai e da Bolívia. O embaixador em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, não julgando oportuna a mudança de política brasileira, da negociação à ruptura, produziu na ocasião um longo parecer de 42 laudas em que aprofundou a análise da questão do aproveitamento dos rios, à luz do direito internacional e dos resultados das negociações anteriores entre os países da bacia do Prata. Com seu estudo, Azeredo tinha a intenção de fundamentar a doutrina brasileira e de consagrá-la regionalmente, caso viesse a demover o Itamaraty de sua disposição rígida e garantir o prosseguimento das negociações em curso, nas quais tinha chance de ser consagrada.

41 42

Idem, ofício, Buenos Aires, 29 jan. 1970, AHIBR, caixa 35 Azeredo da Silveira ao MRE, ofício, Buenos Aires, 20 mar. 1970, AHIBR, caixa 1.

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Fruto de lento trabalho no qual participaram o Itamaraty, os demais ministérios e órgãos interessados, como também o Conselho de Segurança Nacional, a doutrina brasileira vinha sendo aplicada com coerência nas negociações regionais e assim conviria proceder nesse âmbito e em eventuais negociações extrazonais como a ONU e outros foros. A doutrina brasileira exposta por Azeredo da Silveira estabelecia a distinção entre rios contíguos, cujo aproveitamento deveria ser precedido de acordo bilateral, e rios sucessivos, de soberanias sucessivas, em que cada Estado reservar-se-ia o direito de dar a seu trecho o uso compatível com seu interesse. Não era absoluta, entretanto, essa soberania a exercer sobre as águas, mas limitada pelo princípio de não causar prejuízos sensíveis e permanentes aos outros Estados. A aplicação deste último corolário à doutrina far-se-ia mediante estudos técnicos e adaptações das respectivas legislações nacionais. Segundo Azeredo da Silveira, osprojetoshidrelétricosbrasileiros conformavam-secom essadoutrina, elaborada como um corpo conceitual homogêneo e coerente para ser aplicado também à bacia Amazônica, onde o Brasil era ribeirinho inferior. Sob o âmbito internacional, supunha o diplomata, as teses convinham ao Brasil, já que retiravam da questão as conotações políticas e emocionais – com que, por exemplo, o almirante Rojas da Argentina pretendia inflamar o contencioso com o Brasil para dele tirar vantagem pessoal. O princípio de não causar danos a terceiros temperava o da integridade territorial absoluta e despertava a simpatia de outros governos; enfim, por meio da negociação entre os envolvidos evitavam-se os longos e penosos debates jurídicos dos foros extrazonais. Aprópria Argentina já evoluíra, abandonando a exigência da consulta prévia, mas não chegando ainda a admitir o princípio da soberania nacional temperada e advogando a forma supranacional da tomada de decisão relativa aos recursos naturais. Com um pouco de habilidade, certamente chegaria a dobrar-se e essa deveria ser, segundo Silveira, a diretriz de conduta a ser mantida pelo Itamaraty43.

43

Idem, ofício-parecer, Buenos Aires, 10 maio 1971, AHIBR, caixa 17.

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Quando tomou forma o projeto de construção da grande hidrelétrica de Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai, duas outras preocupações foram suscitadas pela embaixada brasileira em Assunção: o repentino interesse dos capitais e empresas estrangeiros ante a perspectiva de que o Paraguai estaria dando um passo de gigante rumo ao desenvolvimento econômico e o cerrado combate da oposição liberal ao governo de Stroessner, acusado de submeter o Paraguai ao imperialismo brasileiro. Aperspectiva de se implantar um pólo siderúrgico no Paraguai e outro na Bolívia animavam a competição entre Brasil e Argentina sobre a área platina44. As suspeitas de segundas intenções contaminavam as interpretações do embaixador brasileiro no Paraguai, Fernando de Alencar. Quando Sapena Pastor optou pela cooperação tripartite entre Brasil, Paraguai e Argentina para a construção de uma fábrica de cimento destinada a suprir a construção da barragem de Itaipu, Alencar alertou o Itamaraty de que poderia tratar-se de uma estratégia argentina para lançar uma ponta de lança com que viesse, em outros empreendimentos, reapresentar suas teses de consulta prévia ou decisões supranacionais45. Suas suspeitas tinham por fundamento a campanha difamatória da imprensa de oposição que alardeava, sob instigação argentina, os desígnios imperialistas e hegemônicos do Brasil. Com efeito, a invasão brasileira feria diretamente os interesses dos líderes liberais que integravam grupos econômicos vinculados à anterior preeminência da Argentina sobre o Paraguai, agora frustrados com as perspectivas de negócios decorrentes de Itaipu. A geopolítica irrompia sobre as obras bilaterais, em conseqüência do efetivo avanço brasileiro sobre a região46. Sugeria Alencar ao Itamaraty uma cobrança junto a Sapena Pastor, no sentido de reagir à deturpação da imagem do Brasil. Suspeitava ainda que o chanceler paraguaio estivesse cedendo à Argentina o argumento de limitar a quota de eletricidade a ser produzida por Itaipu para compatibilizá-la com o projeto argentino-paraguaio de Corpus, rio abaixo47. de Alencar ao MRE, ofícios, Assunção, 8jun. e 12 jul. 1973, AHIBR, caixa 23. 45 Idem, ofício, Assunção, 5 abr. 1974, AHIBR, caixa 25. 46 Ibidem, ofício, Assunção,28 maio 1974, AHIBR, caixa 25. 47 Ibidem, ofício, Assunção,28 nov. 1974, AHIBR, caixa 25. 44 Fernando

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De lado a lado do Prata, os generais projetavam suas doutrinas geopolíticas sobre o processo de cooperação e sobre a conduta diplomática. Contribuíam para deteriorar o ambiente em que se moviam técnicos e diplomatas, com o intuito de chegar a decisões concretas em resposta a aspirações e interesses dos povos, alimentavam oposições locais, obstruíam a integração física e acabavam sendo por vezes renegados pelos próprios colegas de farda. A irrupção do pensamento militar sobre as diretrizes da política regional produzia por certo efeitos concretos, mas não pode ser tomada como o vetor permanente das decisões. Ao contrário, essa geopolítica feita de rivalidades tendia a exercer um papel cada vez mais irrelevante – e mesquinho – no contexto de interação entre os países do Cone Sul. Em julho de 1975, o ex-embaixador argentino no Rio de Janeiro, general Osiris Guillermo Villegas, lançou o livro Tiempo Geopolítico Argentino, no qual caracterizava o Brasil como um país com vocação expansionista e predisposto ao esquema de cooperação subimperial amando dos Estados Unidos. Respondia, de certa forma, à doutrina das “fronteiras vivas” advogada pelo general brasileiro Golbery do Couto e Silva em seu livro Geopolítica do Brasil. Por sua vez, outro general argentino, Juan Enrique Guglialmelli, diretor da revista Estrategia, ilustrava por meio de mapas e estatísticas os aspectos demográficos e econômicos da expansão geopolítica do Brasil no Cone Sul do continente e as conseqüências ameaçadoras do fenômeno para a segurança da Argentina. Interpretava Itaipu como um projeto geopolítico e via por trás de todos os outros empreendimentos de cooperação, cuja iniciativa cabia ao Brasil em razão de seu extraordinário crescimento econômico, o desígnio de dominar o hinterland da bacia do Prata e o Atlântico sul. Mas tanto ele quanto Villegas repudiavam as inferências lógicas de suas doutrinas e aconselhavam, ao invés do confronto, a negociação, o entendimento e a cooperação entre Brasil e Argentina, na linha de conduta aconselhada por Azeredo da Silveira48. Em outros termos, os generais geopolíticos, como teóricos, repudiavam apraxis 48 J. B. Pinheiro ao MRE, ofício, Buenos Aires, 28, jul. 1975, AHIBR, caixa 51. Marcos Henrique C. Cortes ao MRE, ofício, Buenos Aires, 8 jan. 1976, AHIBR, caixa 82.

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de sua lógica, que consideravam inadequada para alimentar as decisões de governo. A mirar-se o comércio bilateral, a complementaridade econômica, as afinidades culturais, a necessidade de coordenar posições nos foros multilaterais em defesa de interesses comuns e os benefícios da cooperação para o desenvolvimento de tecnologias avançadas, eram as incoerências dos generais e não seus pressupostos doutrinais que se aproximavam da sabedoria e acabariam por informar a conduta diplomática mais cedo ou mais tarde. A questão atômica era uma das mais sensíveis e os próprios generais argentinos aspiravam por uma concertação com o Brasil, que afastasse o risco de corrida incontrolável. Acorrespondência diplomática demonstra que havia elevado grau de preocupação nos dois lados, particularmente do lado brasileiro, visto que a Argentina, pioneira na pesquisa nuclear na América Latina, parecia situar-se em posição avançada49. Os esforços argentinos vinham de longe. Um período de grandes realizações estendera-se entre 1955 e 1965, decrescendo posteriormente o ritmo dasatividades. Em 1975, a Comissão Nacional de Energia Atômica elaborou um plano decenal, que foi comunicado ao Itamaraty pelo adido aeronáutico do Brasil em Buenos Aires. O plano previa inversões de cinco bilhões de dólares até 1985 para execução de investigações e construção, além da conclusão de Embalse, em rio Tercero, de quatro centrais nucleares, em que a participação de empresas e técnicos argentinos seria crescente. O principal colaborador externo era o Canadá, mas a Argentina firmara igualmente acordos nucleares com a Aiea, a Alemanha Federal, a Índia e a Líbia. A tecnologia nuclear era vista como fator de desenvolvimento econômico e não como fator de segurança, tanto pelos líderes argentinos quanto brasileiros. O plano nuclear argentino de 1975 e também o brasileiro, datado de 1976, foram desmesurados em seus propósitos e

49 Ver Carasales,

Julio César. Derivalesa socios; elprocesodecooperación nuclear entre Argentina y Brasil. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1997; Hirst, Mônica et al. Desarme ydesarrolloen América Latina. Buenos Aires: Fundación Arturo Illia, 1990.

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por isso implementados como meros desenhos de intenções, ao sabor das conveniências e das possibilidades efetivas50. O importante, para os dois países e para o continente, era a determinação comum de não se lançar a uma corrida armamentista. Pelo contrário, mantiveram ambos os países, por décadas, desde que as questões foram aventadas em negociações internacionais, invariável apoio à proscrição de armas nucleares na América Latina por um lado, e, por outro, repulsa ao Tratado de não-Proliferação Nuclear proposto pelas duas superpotências à adesão de terceiros. As posições de Brasil e Argentina coincidiam perfeitamente, em múltiplos aspectos. Não se opunham esses países ao princípio da não-proliferação nuclear e davam firme apoio a todas as iniciativas internacionais que visassem suaoperacionalização, como a desnuclearização da Antártica e da América Latina. Recusavam o tratado inventado pelas superpotências, entretanto, com base em dois pressupostos: era discriminatório ao congelar o poder, não vir acompanhado de compromissos de desarmamento por parte das nações nucleares e não fornecer garantias a quem a ele aderisse; era antieconómico, ao obstruir a pesquisa e o acesso dos países aderentes à tecnologia nuclear, considerada indispensável ao processo de desenvolvimento, congelando dessa forma, além do poder, o saber e a riqueza51. Essa adequada sintonia de posições e idéias entre brasileiros e argentinos diante da questão nuclear constitui, portanto, uma herança histórica do pensamento político aplicado às relações internacionais, a desmentir a vertente geopolítica avançada por generais de ambos os países, como acima se observou. Paradoxalmente, todavia, convive, nos anos setenta, com o contencioso acerca do aproveitamento dos rios. Mas a rivalidade entre Brasil e Argentina não era então o paradigma de relações bilaterais, a nortear e explicar as iniciativas em todos os terrenos. Essa última interpretação, largamente divulgada, incorre no erro de simplificar e distorcer uma rica e complexa gama de visões e iniciativas políticas na bacia do Prata. Azeredo da Silveira ao MRE, ofício, Buenos Aires, 25 out. 1972, AHIBR, caixa 3. Marcos Henrique C. Cortes ao MRE, ofício, Buenos Aires, 19 nov. 1975, AHIBR, caixa 30. Cláudio Garcia de Souza ao MRE, relatório, Buenos Aires, 5 jul. 1976, AHIBR, caixa 82. 51 Cláudio Garcia de Souza ao MRE, ofício, Buenos Aires, 5 abr. 1978, AHIBR, caixa 159. 50

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O comércio bilateral e regional da América Latina adquiriu maior importância ante as decisões tomadas pelo Executivo norteamericano, a 15 de agosto de 1971, de suspender a conversibilidade do dólar e de impor uma sobretaxa de 10% sobre todas as importações, além de programar a redução de 10% da ajuda externa ao desenvolvimento52. AXI Reunião da Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana (Cecla) realizada em Buenos Aires entre 3 e 5 de setembro, examinou suas conseqüências, redigindo um manifesto a ser encaminhado ao governo dos Estados Unidos. Os governos latinoamericanos consideraram uma iniqüidade ter que suportar as conseqüências das medidas corretivas do déficit e do balanço de pagamentos dos Estados Unidos. Viam-nas como obstrutoras do crescimento, provocadoras de instabilidade no sistema monetário internacional e como uma quebra da ética em política internacional, porquanto sobre a base da moeda conversível se assentara o sistema de Bretton Woods. Não sabiam ou não aceitavam esses governos do Terceiro Mundo o fato de as grandes potências eliminarem de suas medidas internas considerações acerca dos reflexos negativos que viessem a provocar no exterior e levarem em conta o exclusivo interesse nacional53. Esse egoísmo indisfarçável, se praticado por países da periferia era estigmatizado como nacionalismo, se pelos países centrais, como medida de ajuste requerida pelas leis do mercado. Mas aprendiam com os grandes, esforçando-se por aumentar os fluxos do comércio zonal. Em 1973, o mercado brasileiro absorvia 40% das exportações argentinas de carne, 37% de cavalos de corrida, 38% de leite em pó, 70% de alho e cebola, 31% de trigo, 74% de maçã, acima de 90% de passasdeuva, peras, cerejas, aveia, azeitonas, sabão industrial, inseticidas, couros reconstituídos, arame de aço, máquinas para fabricação de pasta de papel, medidores de gás, entre dezenas de outros produtos que a compunham54. Ver Sela (org). Relaciones económicas internacionales de América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1987;Hirst, Mônica (org). Continuidady cambio en las relationes América Latina/ Estados Unidos. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1987. 53 Informe final de la XI Cecla, Buenos Aires, set. 1971, AHIBR, caixa 115. 54 Legação do Brasil ao MRE, relatório, Buenos Aires, 10 out. 1974, caixa 34. 52

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O retorno do peronismo ao poder, entre 1973 e 1976, voltou a dividir a opinião interna e a revolver velhos embaraços na diplomacia. As esquerdas se infiltraram nas hostes justicialistas, cindiram-nas em centro-direita e esquerda, sendo porta-voz da primeira corrente o jornal Mayoria e da segunda o Noticias55. A imagem da Argentina com a restauração do peronismo melhorou de modo geral nas correntes de esquerda da opinião latino-americana, mas deteriorou-se junto à maioria dos governos56. O êxodo de profissionais qualificados para o exterior demonstrava a gravidade da crise argentina: entre janeiro e junho de 1975, ascendeu de vinte para duzentos o número dos que se destinavam ao emprego no Brasil. Empresas brasileiras publicavam anúncios de rotina na imprensa portenha, oferecendo vagas57. As distorções de imagem eram ressentidas por quase todos os governos de então, não fazendo exceção a imagem do Brasil que a imprensa argentina levava à opinião pública. Parte da imprensa era predominantemente hostil, parte do empresariado desfavorável, os meios universitários agressivos e a classe média preconceituosa. Essa análise do embaixador brasileiro em Buenos Aires, J. B. Pinheiro, levou-o a propor uma reforma radical dos serviços da diplomacia cultural com o objetivo de iniciar: um amplo e sistemático trabalho de persuasão e esclarecimento sobre a realidade brasileira e, mais importante, sobre a verdadeira atitude de cooperação ( em todos os níveis ) que o Brasil pretende manter com a Argentina, como base desejável (e talvez indispen sável) ao desenvolvimento pacífico desta parte do continente.

Tratava-se de restabelecer a imagem do país, “com um máximo objetividade de e pragmatismo”, como convinha à boa diplomacia importância cultural. A da Argentina estava a exigir tal esforço. O primeiro plano de atividades dessa nova dinâmica cultural, encaminhado Azeredo da Silveira ao MRE, ofício, Buenos Aires, 8 dez. 1973, AHIBR, caixa 19. J. B. Pinheiro ao MRE, ofício, Buenos Aires, 19 maio 1975, AHIBR, caixa51. 57 Idem, ofícios, Buenos Aires, 30jun. 1975, AHIBR, caixa51 e9 fev. 1976, AHIBR, caixa82. 55 56

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à aprovação do Itamaraty em 1974, contemplava a difusão cultural, a literatura, a música, o cinema, as artes plásticas, a cooperação intelectual, o boletim cultural, as publicações e a divulgação, prevendo o total de quarenta mil dólares para o ano de 1975. As ações destinavam-se, principalmente, à classe média, sem afastar-se da diplomacia cultural para as elites, implementada até então. Aprovado e executado com êxito, o plano seria renovado nos anos seguintes, preparando a opinião da geração que tomaria em mãos os destinos futuros do país58. De qualquer modo, depois do esforço de Azeredo da Silveira ao termo dos anos sessenta, pela segunda vez a embaixada do Brasil em Buenos Aires alertou o Itamaraty para o descaso com que operava a diplomacia cultural e indicou os graves inconvenientes dessa negligência sobre os interesses políticos e econômicos do país. A restauração peronista de 1973 não resistiria ao tempo. Após os breves interregnos de Hector Campora e Lastiri, a recondução ao poder do próprio Juan Domingo Perón acendeu a esperança de união nacional e conciliação social. Sua morte a primeiro de julho do ano seguinte e o sucessivo governo da viúva Maria Estela Martinez de Perón comprometeram a união dos argentinos, ficando os militares a observar de longe o agravamento das condições da vida política e social até a intervenção de 24 de março de 1976, que conduziria à presidência o general Jorge Rafael Videla. Ao tempo da restauração do peronismo, as relações entre o Brasil e a Argentina permaneceram corretas, sem avanços relevantes. A opinião argentina expressava frustrações acumuladas pelo desempenho díspar das economias nacionais nos últimos anos. Nunca apagou-se, porém, dessa opinião a corrente que valorizava a cooperação com o Brasil como meio de aparelhar e emparelhar os processos de desenvolvimento. Na realidade, o único contencioso concreto dizia respeito ao aproveitamento dos rios, obtendo até então o Brasil o afastamento de princípios que lhe eram inadmissíveis e a direção do processo da bacia do Prata. O comércio bilateral era o maior entre Ibidem, ofício, Buenos Aires, 19 nov. 1975, AHIBR, caixa 34. Marcos Henrique C. Cortesao MRE, ofício, Buenos Aires, 11 dez. 1975, AHIBR, caixa51. 58

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países latino-americanos, acusando um valor de 600 milhões de dólares em 1975. O Brasil era nos últimos anos o segundo mercado de exportação argentino e a Argentina o novo mercado brasileiro. Esse elevado fluxo produzia a convergência das posições dos dois países nos órgãos multilaterais universais e regionais, onde defendiam seus interesses comerciais, como também em outros órgãos multilaterais voltados ao exame das relações internacionais e de questões específicas como a não proliferação nuclear. Destarte, o contencioso acerca do aproveitamento dos rios figurava como um irrelevante atrito que não comprometia a qualidade e a intensidade de uma relação de rotina positiva59. O regime militar implantado em 1976 na Argentina não provocou uma ruptura desses princípios de conduta, tampouco deulhes nova vitalidade. As relações bilaterais prosseguiriam corretas, sem atingir a modalidade e a intensidade apregoadas como desejáveis pelos governos e diplomacias de ambos os lados60. Contudo, esse movimento militar imprimiu duas novas orientações à política exterior argentina, com o intuito de melhorar sua imagem no exterior, profundamente desgastada com a guerrilha e o terrorismo que mergulharam o país em uma espécie de guerra civil, mas também porque correspondiam à ideologia conservadora que os militares cultivavam: a política exterior de corte ideológico liberal e a conseqüente aproximação com os Estados Unidos. O peronismo, segundo os novos dirigentes argentinos, trouxe conseqüências danosas à diplomacia, isolando-aeimobilizando-a. Com o intuito de remediar as conseqüências dessa experiência anterior, Videla na presidência, Martínez de Hoz na direção da economia e Oscar Antonio Montes na condução da diplomacia projetavam nas decisões internacionais o modelo liberal argentino e a conseqüente determinação de estabelecer relações especiais com os Estados Unidos, na esperança de que delas resultassem insumos para o desenvolvimento nacional. Azeredo da Silveira ao MRE, relatório, Buenos Aires, 3 fev. 1976, AHIBR, caixa 42. Maury Gurgel Valente ao MRE, Ofício, Montevidéu, 15, out. 1976, AHIBR, caixa 159. Oscar Antônio Montes a Azeredo da Silveira, nota, Buenos Aires, 28 jul. 1977, AHIBR, caixa 46. Cláudio Garcia de Souza ao MRE, relatório, Buenos Aires, AHIBR, caixa 122. 59 60

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A Argentina de Videla reproduziu, a partir de 1976, o modelo que Castelo Branco implementara no Brasil entre 1964 e 1967, com evidente malogro, já que os Estados Unidos não tinham por estratégia retribuir com favores econômicos a subserviência política e já que o liberalismo por si não criava credibilidade internacional. Aliás, a campanha pelos direitos humanos com que o presidente Carter dos Estados Unidos encobria então sua política para a América Latina antepunha-se como muro de contenção para as ambições da nova estratégia externa da Argentina. Esta teve que recusar em 1977, como fizera o governo brasileiro, a ajuda militar dos Estados Unidos, que vinha subordinada à verificação interna do respeito aos direitos humanos. Sem esmorecer, dispostos irredutivelmente ao diálogo, os dirigentes argentinos aplainaram arestas nas relações com a potência matriz do mundo capitalista e transitaram do esfriamento à deterioração, da deterioração a uma perspectiva promissora, estabilizando-se, enfim, em relações corretas61. Apesar de voltar-se para os Estados Unidos, não descuravam os militares argentinos os intercâmbios com outras áreas, em primeiro lugar com o Brasil. O comércio bilateral ascendeu de 200 a 750 milhões de dólares entre 1968 e 1976, ano em que o Brasil tornou-se o primeiro comprador e o segundo fornecedor da Argentina. Nessa evolução, a interdependência não só se observava quanto ao volume do comércio, como ainda quanto à diversificação de suas pautas, atingindo o Brasil 800 itensde sua nomenclatura de mercadorias nas exportações para a Argentina. Estendia-se essa interdependência, por outro lado, ao sistema de comunicações e a outros aspectos das relações econômicas bilaterais, que se desenrolavam, portanto, em condições satisfatórias62. 5.2.2. O norte da América do Sul: a força do petróleo Ao norte da América do Sul, a década de 1970 deu à Venezuela novas condições de projetar seu prestígio em razão da alta dos preços 61 62

Cláudio Garcia de Souza ao MRE, ofício, Buenos Aires, 8 fev. 1978, AHIBR, caixa 159. Idem, ofício, Buenos Aires,3 mar. 1978, AHIBR, caixa 159.

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do petróleo. Carlos Andrés Pérez, sucessor de Rafael Caldera, nutria ambições de liderar a América Latina, imbuído dos velhos ideais bolivarianos. Não tinha simpatias pelo desenvolvimento brasileiro que podia tolher-lhe o caminho da influência regional, por isso buscou aproximar-se da Argentina e aderiu ao Pacto Andino por razões puramente políticas. As duas áreas geográficas de interesse concreto da Venezuela prosseguiam sendo o Caribeeospaíses bolivarianos. Afora isso, o país girava em torno do petróleo e com ele se iludia. A sensação de grandeza decorria desse elemento e explicava, como ocorrera com Perón, as ambições políticas de liderança latino-americana e terceiromundista, um desvio de conduta que o velho líder da Ação Democrática, Romulo Betancourt, não hesitava em criticar com veemência. O Brasil tinha em Caracas um observador realista e um analista inteligente dos passos da diplomacia venezuelana na pessoa do embaixador Lucillo Haddock Lobo. Por obstruir a cooperação econômica do Brasil, não encontrar os mecanismos da cooperação com o Caribe e alimentar velhas reticências diante do projeto de integração sub-regional, por não contar, ademais, com uma chancelaria com corpo profissional preparado, Pérez desenvolveu uma ação externa sem racionalidade, conturbada pela “diplomacia do telefone” com que o presidente pensava projetar suas idéias e angariar adesões no exterior. Perpetuava, ao termo, em conseqüência de falhas estratégicas, o isolamento da Venezuela, esterilizando seu grande potencial63. A Comissão Mista Brasil-Venezuela, desde o início dos anos 70, não estabelecia agenda objetiva de cooperação com vistas a expandir as relações mútuas e o intercâmbio entre os dois países. De parte a parte reconhecia-se, em 1972, permanecer ela um instrumento ainda inócuo64. Algo semelhante sucedia com o Pacto Andino, que não se encaminharia a contento enquanto a Venezuela a ele não aderisse. Com efeito, os meios empresariais e certos setores políticos do governo de Rafael Caldera, eleito em dezembro de 1968, se haviam oposto àadesão, prolongando negociações que evidenciavam o tradicional receio de que 63 64

Ver as referências da nota 38. Lucillo Haddock Lobo ao MRE, ofício, Caracas, 25 ago. 1972, AHIBR, caixa 3.

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a integração viesse prejudicar os interesses da economia venezuelana65. A inexistência de agenda de negociação viável para relações oportunas entre Venezuela e Brasil era percebida na realização da visita ao Brasil do ministro de Obras Públicas, José Curiel, em janeiro de 1973. Seu objetivo aparente era tratar de uma imensa obra hidroviária para interconectar as bacias da Amazônia e do Prata, em uma extensão de 5.900 milhas navegáveis. Segundo Haddock Lobo, a viagem tinha por escopo mobilizar a opinião pública da Venezuela em favor do governo de Rafael Caldera, que estava em campanha eleitoral para prestigiar seu companheiro do Partido Copei, candidato à presidência66. A imprensa venezuelana interpretava de forma geralmente negativa tudo aquilo que dizia respeito ao Brasil, até mesmo a adesão da Venezuela ao Pacto Andino em meados de 1973, tida por medida destinada a isolar o Brasil no continente67. Essa característica do jornalismo latino-americano, como já se observou em outros casos, denotava que os profissionais da área andavam, seja imbuídos de sentimentos xenófobos, seja de miopia diante das possibilidades da política internacional. O petróleo constituía a verdadeira coluna-mestra das relações bilaterais. Em julho de 1973, o chanceler brasileiro Gibson Barbosa escreveu ao ministro de Minas e Hidrocarburos da Venezuela, Hugo Pérez la Salvia, sumariando os pontos essenciais de uma cooperação desejada entre as duas empresas estatais que operavam no ramo. O Brasil manifestou a intenção de aumentar suas compras de óleo em contratos de longo prazo, de colaborar na exploração, na comercialização internacional e interna e de participar de licitações para vender equipa mentos, dando passos concretos no sentido de efetivar as perspectivas de cooperação e intercâmbio68. Idem, relatório, Caracas, 11 dez. 1972, AHIBR, caixa 3. ofício, Caracas, 24jan. 1973, AHIBR, caixa 19. Nestor Luiz dos Santos ao MRE, ofício, Caracas, 4 abr. 1973, AHIBR, caixa 19. 67 Ibidem, ofício, Caracas, 29 maio, 1973, AHIBR, caixa 19. 68 Mário Gibson Barbosa a Hugo Perez La Salvia, despacho, Brasília, 19 jul. 1973, AHIBR, caixa 26. 65

66 Ibidem,

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A adesão da Venezuela ao Pacto Andino atraiu também os olhares da Argentina, cujo governo enviou a Caracas, no início de 1974, uma missão de cem industriais, presidida pelo ministro da Economia, José Gelbart. O objetivo era a criação de empresas binacionais e a conclusão de acordos de complementação industrial. Constituiu-se de imediato o Comitê Misto Privado com apoio oficial, uma decisão esperada em vão pelo Brasil, desde a visita a Caracas da missão empresarial brasileira chefiada pelo ministro ReisVelloso, em fins de 197269. O vetor da política exterior venezuelana era então o de movimentar os grandes recursos do petróleo para projeção do país no hemisfério. A ressurreição do pensamento de Bolívar pelos meios intelectuais e de imprensa de então dava respaldo intelectual a tal política de raiz petrolífera de querer assumir a “posição permanente de portabandeiradoslatino-americanos”. Essa ambição era cerceada, contudo, no entender da oficialidade venezuelana, pela preeminência que o dinâmico crescimento econômico brasileiro derramava sobre a América do Sul. O presidente Rafael Caldera fora à Buenos Aires com o intuito de entrelaçar os dois países como contraponto à expansão brasileira e Carlos Andrés Pérez estava dando continuidade a tal política. A sedução dos dólares também facilitou a entrada da Venezuela na América Central e nas ilhas do Caribe. Embora Pérez tenha afirmado ao presidente do Brasil, Ernesto Geisel, em carta que lhe dirigiu em março de 1974, quando os dois iniciavam seus mandatos presidenciais, que desejava ampliar e aprofundar as relações com o Brasil, Haddock Lobo, o observador postado em Caracas, não dava fé àquelas palavras: “Asnossas propostas não tiveram êxito; encalharam na suspicácia, no temor ou no desinteresse. Nas conversas com altas autoridades venezuelanas, as palavras são de simpatia, de chegarmos à cooperação fecunda; agradáveis palavras o vento leva...” 70. As perspectivas sobre a melhora das relações venezuelanobrasileiras tropeçavam nos anos 70 em dificuldades concretas. O partido de Carlos Andrés Pérez, a velha Ação Democrática, preservava uma ala 69 70

Lucillo Haddock Lobo ao MRE, ofício, Caracas, 3 abr. 1974, AHIBR, caixa 34. Idem, ofício, Caracas, 12 fev. 1975, caixa51.

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conservadora que alimentava concepções opostas ao modelo brasileiro de desenvolvimento e com ele não tencionava vincular o país. O empresariado e os homens de negócios estavam mais propensos ao adensamento das relações, mas, no fundo, os venezuelanos cuidavam de suas duas áreas de interesse, as Caraíbas e os países bolivarianos. Uma coisa não excluía a outra necessariamente, porém havia ênfases diferenciadas. Ademais, o temor da dependência, que era fomentado pela opinião pública, criava outra ordem de obstáculos a projetos de cooperação tecnológica, industrial e empresarial de grande porte que o Brasil buscava realizar na América Latina, em conseqüência de seu acelerado crescimento econômico71. O esforço mais intenso da Venezuela na região da América Central e Caribe iniciou-se com o chanceler Aristides Calvani, ao tempo do governo de Rafael Caldera (1969-1973). O interesse que tinha a Venezuela em dirigir sua ajuda financeira à América Central e ao Caribe era múltiplo. Esperava, por um lado, em contrapartida, apoio desses numerosos pequenos países a sua política de altos preços para o petróleo que articulava no seio da Opep. Presumia, por outro, que com isso aumentaria sua influência, divulgando a língua espanhola junto às ilhas de fala inglesa que se haviam tornado países independentes e atraindoas para sua tutela. Buscava ainda sustentação a seus pleitos fronteiriços com a Guiana, além de mirar para as jazidas de bauxita da Jamaica e da Guiana para produção de alumínio em território venezuelano. Dispondo de somas oriundas da elevação do preço do petróleo e observando a retirada da Grã-Bretanha, a Venezuela foi ao encontro das necessidades da área por meio de empréstimos, acordos e empresas mistas, apoio ao Banco de Desenvolvimento dasCaraíbaseparticipação em uma empresa de navegação regional. Aretirada do Chile do Pacto Andino em 1976, enfraquecendo-o, reforçou a orientação venezuelana para América Central e Caraíbas, tanto mais que pouca repercussão mundial tivera o eloqüente discurso latino-americanista e terceiromundista de Carlos AndrésPérez. Contudo, essa movimentação carecia de racionalidade e desenvolvia-se sem planos estruturados, escalonados 71

Ibidem, ofício, Caracas, 29 maio, 1973, caixa 51.

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e executados metodicamente. Enfrentava, ademais, a prudência dos governos locais em ceder aos interesses venezuelanos além do que lhes aconselhavam antigos vínculos europeus que haviam tomado outras modalidades diante de ex-colônias72. Quando a diplomacia brasileira passou a apoiar a política venezuelana de altos preços para o petróleo, como uma variável de sua luta pela valorização das matérias-primas produzidas pelo Terceiro Mundo, o Brasil adquiriu novo conceito na política exterior da Venezuela, havendo o próprio presidente Pérez rebatido a acusação que em Caracas se lhe fazia, veladaou abertamente, de expansionistae hegemônico. Nessas condições, seria possível, enfim, entabular negociações construtivas em torno da cooperação bilateral no seio da Comissão Mista bilateral, inerte até então? O embaixador em Caracas, Haddock Lobo, espreitando a oportunidade, propôs em 1974 ampla agenda para a reunião prevista da comissão. Sugeriu que se partisse do zero, onde em seu entender se situavam as relações bilaterais, para criar condições operacionais sobre as quais se assentariam futuros projetos de cooperação. A pauta que o embaixador preparou contemplava as questões de tráfico fronteiriço, controle sanitário, fiscalização aduaneira, turismo, comunicações, correios e telégrafos, rádio, transporte terrestre e fluvial, entrepostos livres, cooperação técnica, hidrologia, conservação ambiental, parques nacionais, vigilância e combate ao crime, cooperação científica, preservação de áreas indígenas, pesca, cooperação intelectual e cultural: Acredito que, agora, passada a fase de estudo recíproco e da eliminação das suspicácias, já é sem tempo que nos reunamos, venezuelanos e brasileiros, para assentar bases concretas, equacionar problemas, palmilhar as vias abertas pelo trabalho exploratório das comissões anteriores. O saldo positivo e concreto que se obtiver, ainda que em áreas aparentemente sem importância, constituirão os primeiros degraus de cooperação com um vizinho de substancial importância ao norte da América do Sul73. Ibidem, ofícios, Caracas, 8 maio, 6 jun. 1975, AHIBR, caixa 51, 8 jul. e 11 nov. 1976, AHIBR, caixa 82. 73 Ibidem, ofício, Caracas, 21 mar. 1974, AHIBR, caixa 34. 72

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Nos anos 70, portanto, defensores da cooperação para o desenvolvimento entre o Brasil, por um lado, a Venezuela e a Argentina, por outro, animavam o ambiente diplomático, que se punha em compasso de espera ante a possível construção de eixos regionais. Queixavam-se os diplomatas brasileiros em Caracas da falta de meiospara desenvolver uma ação cultural e jornalística para contrarrestar a imagem negativa que do Brasil se veiculava. A mesma sensação e a mesma avaliação das deficiências da diplomacia cultural brasileira verificaram-se nos relatórios que chegavam a Brasília desde Buenos Aires, como se demonstrou em parágrafo anterior. Na capital venezuelana, o pequeno Centro de Estudos Brasileiros era insuficiente. Seria necessário afastar, segundo a legação brasileira, três dificuldades que se antepunham àconstrução da boa imagem do país: a ignorância da realidade brasileira, os preconceitos históricos e os preconceitos políticos. Não havia, contudo, uma diretriz de ação cultural tática com que remediar tal diagnóstico e por isso a legação fazia sugestões concretas, entre as quais um novo convênio cultural funcional em substituição ao de 194274. Ficaram sem efeito as reclamações e sugestões da legação em Caracas acerca de nova política cultural. Prosseguiu o tratamento crítico e desfavorável ao panorama brasileiro na imprensa venezuelana, a obstruir, pelo efeito quederramava sobre os meios políticos, diplomáticos e empresariais, a cooperação útil ao desenvolvimento dos dois povos. Eram permanentes as críticas ao modelo de desenvolvimento e ao expansionismo brasileiros, apoiadas no nacionalismo venezuelano, nos interesses econômicos ligados aos círculos tradicionais do comércio exterior venezuelano, nos opositores ideologizados ao regime político brasileiro e na ignorância. A legação não dispunha de meios para agir nessas quatro fontes de alimentação da imagem e reiterava em 1977, quando lá chegou o novo embaixador, David Silveira da Mota Jr., suas sugestões e solicitações de meios ao Itamaraty75. Mas este prosseguia Nestor Luiz dos Santos Lima ao MRE, ofícios, Caracas, 9 abr. 1973, AHIBR, caixa 19 e 10 out. 1974, AHIBR, caixa 35. 75 David Silveira da Mota Jr. ao MRE, ofícios, Caracas, 29 set. e 28 out. 1977, AHIBR, caixa 122. 74

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sem dar à diplomacia cultural a relevância que abriga no seio das relações internacionais, provocando com sua negligência o desperdício de oportunidades concretas de realização externa de interesses nacionais. Foram os próprios venezuelanos que mudaram suas visões acerca das relações interamericanas. De uma postura isolacionista, imbuída de empáfia sem lastro material, os dois grandes partidos transitaram para uma orientação realista, que a integração regional sugeria, no sentido de realizar, por meio de esforços conjugados, objetivos concretos de desenvolvimento nacional. Tanto os lideres do Copei quanto da Ação Democrática, por volta de 1976, haviam-se convertido ao pensamento integracionista e ficaram surpresos com a decisão chilena de abandonar o Pacto Andino, que consideravam o ponto de partida de um processo que, vindo do norte, alcançaria o movimento em curso na bacia do Prata, arrastando, domando e contendo, na medida do conveniente, a expansão brasileira76. Assim deve ser entendida a viagem de Carlos Andrés Pérez ao Brasil em novembro de 1977 e seu impacto sobre a mudança da opinião venezuelana acerca da política continental do vizinho país77. No embalo dessa nova perspectiva, despachou o governo brasileiro para Caracas, em abril de 1978, seu ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki. Como resultado dessa visita, pela primeira vez foram assentadas bases de cooperação para projetos relevantes que iam muito além do mero comércio de petróleo em que se haviam assentado no passado as relações bilaterais. As estatais brasileiras que operavam nos ramos do petróleo, da petroquímica, da mineração e da metalurgia encontraram boa acolhida por parte do empresariado venezuelano para suas propostas de complementação empresarial e tecnológica. Encaminhava-se, assim, o Tratado de Cooperação Amazônico, firmado em 1978 por oito países. Nascia o terceiro agrupamento integrativo sub-regional ao lado do Tratado da Bacia do Prata e do Pacto Andino78. Não sem as dificuldades que a tradicional intriga ideológica, geopolítica e política voltava a suscitar. Lucillo Haddock Lobo ao MRE, ofícios, Caracas, 12 mar. e 21 out. 1976, AHIBR, caixa 82. 77 Sérgio Damasceno Vieira ao MRE, ofício, Caracas, 25 nov. 1977, AHIBR, caixa 122. 78 David Silveira da Mota Jr. ao MRE, ofício, Caracas, 25 abr. 1978, AHIBR, caixa 160. 76

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No entender do embaixador em Caracas, David Silveira da Mota Jr., eram três as frentes de ação que visavam boicotar o projeto de cooperação amazônica. Em primeiro lugar, a agência espanhola EFE, que derramava notícias antibrasileiras sobre a imprensa venezuelana, com o argumento de que esta presença brasileira representava sério perigo para o triunfo da hispanidade da América Latina; em segundo lugar, preocupações até mesmo legítimas acerca da assimetria no grau de desenvolvimento entre os países da região, que poria em evidência a liderança do Brasil; em terceiro, a difusão na Venezuela e em outros países da América Latina de autores arcaicos do pensamento geopolítico brasileiro (Mário Travassos, Everardo Backheuser, Paulo Schilling, Golbery do Couto e Silva), em edições feitas no México e na Argentina, pensamento que pouco ou nada influía sobre a política brasileira para a América Latina. Esta última iniciativa era tributada aos generais argentinos, desejosos de explorar a imagem do Brasil de país hegemônico e expansionista para dela valer-se em seu contencioso acerca do aproveitamento dos rios da região platina79.

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Idem, ofícios, Caracas, 27 out. e 3 nov. 1978, AHIBR, caixa 160.

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6. A construção de eixos bilaterais 6.1. Novos equilíbrios às margens do Atlântico sul (1980-1986) O fato mais relevante para as relações entre os países da América do Sul, durante a primeira metade dos anos 80, foi a virada para o processo de integração de longo curso. Essa mudança preparou-se simultaneamente ao norte, nas relações entre o Brasil e a Venezuela, e ao sul, entre o Brasil e a Argentina, embora somente o processo sulino tenha-se operacionalizado em projeto político de envergadura. Duas séries de fatores explicam essa virada estratégica: por um lado, a herança do pensamento político e a ação diplomática que, linearmente sob o aspecto teórico e intermitentemente sob o prático, promoveram entendimento e cooperação, embora de alcance limitado; por outro, a superação de entraves históricos e a conseqüente remoção de entulhos ao movimento de integração dos países da América Latina. A integração sempre fora uma bandeira da diplomacia latino-americana, porém sem chance de adquirir viabilidade enquanto obstáculos que se lhe antepunham não fossem identificados e erradicados. Esses fatores negativos agiam isoladamente ou se combinavam, em função das circunstâncias. Suas principais manifestações nas décadas precedentes foram: As rivalidades Não eram próprias deste ou daquele país com relação a outro, eram intermitentes, porém afetavam a opinião e os governos de todos os países, embora pesassem de modo especial sobre o subsistema aquelas que punham em confronto os grandes da região. As ambições nacionais desmesuradas A Argentina de Perón sentia-se suficiente para encaminhar a formação de um bloco e projetá-lo com autonomia ao lado dos blocos 257

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configurados como zonas de influência das duas superpotências no contexto da Guerra Fria. Pérez Jiménez utilizou o bolivarismo com o intuito de fomentar a união dos latinos sob a égide da Venezuela. O Brasil do milagre dos anos 70 tinha a ambição de arrastar os países vizinhos com seu modelo de desenvolvimento baseado no mercado local e no empreendimento estatal. Há outros exemplos. As atitudes diante dos Estados Unidos O Brasil liderou o grupo de países decididos a boicotar a formação do bloco regional, na suposição de que viesse prejudicar as relações de cooperação entre os Estados Unidos e a América Latina. Outrospaíses, inversamente, agiam como instrumento do confronto, na suposição de que a intensificação das relações com os Estados Unidos eram prejudiciais aos interesses dos povos latinos. As atitudes diante do Brasil O pensamento de esquerda e os nacionalismos dos países hispano-americanos alimentaram a corrente de opinião segundo a qual a integração estenderia a hegemonia brasileira sobre o subcontinente, em razão dos desníveis econômicos. A separação entre Estado e sociedade Àépoca do Estado desenvolvimentista, os governos tomavam decisões sem auscultar a sociedade organizada, alijando de experiências de integração idealizadas o parecer realista das classes empresariais, particularmente do setor privado. A diplomacia da obstrução Esta conduta sistemática de obstruir iniciativas de cooperação de outros países inspirava-se nos entraves acima referidos e se sucedia de país a país com as mudanças de governo. A obstrução era fatal à formação do bloco quando praticada pelos grandes, como o Brasil, a Argentina e a Venezuela. 258

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Desde o início da década de 1980, os sintomas de mudança diante desses fatores negativos das relações interamericanas eram percebidos. Em boa medida foram as dificuldades do modelo de desenvolvimento que fomentaram a crítica das políticas exteriores. A inflação, o endividamento externo, a recessão econômica, a instabilidade das instituições, os regimes de força, a Guerra das Malvinas, a retomada da democratização e outros fenômenos afetaram a autoconfiança nacional e criaram a consciência da unidade regional e da necessidade de se falar de uma só voz. Apareceram os consensos e novos órgãos latino-americanos. Quando a Espanha que transitava do regime franquista para o da democracia monárquica ensaiou uma investida na área, comprovou precisamente o fato de estar desinformada sobre essas mudanças, ao pretender soerguer sua influência com base no fomento da, já então, arcaica rivalidade entre as nações hispanas e a nação lusa da América Latina. Aprimeira metade dos anos 80 assistiu à derradeira reação do paradigma do Estado desenvolvimentista. Por meio dela, as iniciativas de cooperação e a nova modalidade de integração estendiam para fora das fronteiras nacionais as esferas de ação do modelo histórico de desenvolvimento, em uma tentativa racional e coerente de superação de entraves e de salto para uma nova fase de crescimento autônomo, porém amparado na força de blocos. Ao final da década, o triunfo de doutrinas liberais e sua adoção sem crítica pelos dirigentes dos principais países da região provocaram o abandono da estratégia de desenvolvimento auto-sustentado, cedendo o mercado em troca da alienação dos sistemas produtivos e de serviço nacionais. Assim, ao invés de avançar, a América Latina mergulhava no passado, reintroduzindo os parâmetros do paradigma liberal-conservador da fase anterior a 1930, que a fazia regredir à infância social. Reassumia sua função de exportadora para o mundo de matérias-primas e importadora de produtos sofisticados, de conhecimento e de tecnologias. Mas sobretudo acentuava sua disposição de transferir renda para os países centrais, seja mediante os serviços de uma dívida que se avolumou como nunca no passado, seja mediante o crescimento das remessas de lucros de empresas industriais

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e de serviços, que havia sido historicamente contido em proporções adequadas1. Reveste-se, pois, de grande interesse o estudo das últimas manifestações relevantes do paradigma desenvolvimentista, que tiveram lugar entre 1980 e 1986, em um momento em que dava demonstrações de racionalidade e adaptabilidade, antes de sucumbir sob a onda liberal de cunho fundamentalista que se derramou sobre a América Latina.

6.2. O eixo Brasil-Venezuela O primeiro indicador da mudança em curso nas relações regionais advém do memorando entregue às autoridades venezuelanas, aos 6 de novembro de 1979, pelo governo brasileiro. A mudança de filosofia consistia na transformação do Estado desenvolvimentista, divorciado da economia de mercado, em Estado logístico, cuja função consistiria em dar suporte operacional a projetos de cooperação a serem implementados por empresas públicas e privadas. A participação brasileira em empreendimentos venezuelanos era então prevista em diversos e variados setores de atividades, tais como a implantação de um complexo siderúrgico e de outro para a produção de valores, a 1 Há muitos estudos sobre as relações internacionais dos países latino-americanos no contexto

da globalização, como indica a bibliografia anexa. Há poucos que analisam as condições em que o paradigma desenvolvimentista foi abandonado e o acerto ou o equívoco, nessas circunstâncias, da adoção do paradigma neoliberal. Ver, entre outros, Albuquerque (1996); Azpizau, Daniel, Nochteff, Hugo. El desarrollo ausente. Restricciones al desarrollo, neoconservadorismo y elite económica en la Argentina. Ensayos de economia politica. Buenos Aires: Tesis, 1995; Baumann, Renato (org). O Brasil e a economia global. Rio de Janeiro: Campus, 1996; Bernal-Meza (1994); Cepal. Quince años de desempeño económico. América Latina y el Caribe. Santiago: Cepal, 1996; Ferrer, Aldo. El capitalismo argentino. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1997; Guimarães (1995); Guimarães (1999); Hirst, Mônica. Democracia, seguridad e integración; América Latina en un mundo en transición. Buenos Aires: Norma, 1996; Llaidós, Guimarães (1999); Lowenthal, Abraham, Treverton, Gregory (orgs). América Latina en un nuevo mundo. México: Fondo de Cultura Económica, 1996; Perina, Rubén, Russell, Roberto. Argentina en el mundo (1973-1987). Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1988; Rapoport, Mario (org). Argentina y Brasil en el Mercosur; políticas comunesy alianzas regionales.Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1995; Russell, Roberto (org). Lapolítica exterior argentina en el nueva orden mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992; Vizentini (1998).

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construção de casas pré-fabricadas, a produção de açúcar, de óleo de palma, a prospecção de urânio, a indústria alimentícia, a exploração mineral, a transmissão de eletricidade. As oportunidades de cooperação estavam a exigir das empresas que abrissem representações locais e para tanto procurava a missão do Brasil em Caracas facilitar-lhes os meios, como convinha a um Estado logístico2. A percepção dessas novas condições havia-se configurado na iniciativa brasileira de negociar o Tratado de Cooperação Amazônica, a partir do momento em que os temas de cooperação começaram a adquirir envergadura e a ultrapassar os limites e as possibilidades da cooperação bilateral. Este tratado foi concebido com finalidade distinta dos tratados que criaram a Alalc, a Aladi ou o Pacto Andino, que visavam estimular o comércio intrazonal ou o mercado comum. Seu principal objetivo consistia em implantar um mecanismo permanente de concertação entre os governos e os setores técnicos dos países amazônicos com vistas à cooperação nas áreas de caráter não econômico, tais como os estudos hidrológicos e climatológicos, a cooperação técnica e científica em matéria de saúde, transportes, comunicações, preservação do meio ambiente etc. Indiretamente adviriam conseqüências econômicas dos estudos que redundassem na criação de infra-estrutura física, mas a cooperação regional, buscada pelos signatários, tinha por escopo articular e fortalecer os esforços nacionais com impacto de longo prazo sobre as condições de vida das populações amazônicas, incorporando a vasta região no espaço produtivo do continente. Com relação aos transportes, procedia-se ao estudo da infra-estrutura física de conexão dos oito países signatários, associando rodovia e hidrovia. A coordenação de projetos conjuntos estaria a cargo de comissões nacionais permanentes, instituídas pelo tratado, que adquiria, desse modo, um caráter de complementaridade vis-à-visdos demais tratados de cooperação regional, como a Aladi, o Pacto Andino, o Sela e o Tratado da Bacia do Prata. Nenhum desses órgãos anteriores ocupava-se especificamente da Amazônia, que permaneceria à margem das iniciativas latino2

David Silveira da Mota Jr. ao MRE, ofício, Caracas, 29 fev. 1980, AHIBR, caixa 205.

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americanas de integração, se os dispositivos do Tratado Amazônico não mobilizassem o potencial e as populações para aproximar países e gerar cooperação. O tratado não correspondia a uma transferência de prioridade da bacia do Prata para a Amazônica, mesmo porque os potenciais das duas bacias eram de natureza muito distinta, mas ao propósito de desenvolvimento integrado e sustentável da bacia norte, conjugando os esforços dos três subsistemas amazônicos que a compunham, o brasileiro, o andino e o das Guianas. Pela primeira vez, o conceito de desenvolvimento sustentável era aplicado na esfera multilateral, propiciando, nos anos 80 e 90, grandes vitórias à diplomacia brasileira em outras organizações internacionais, que foram levadas a discuti-lo, inclusive a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvol vimento realizada no Rio de Janeiro em 1992. Em documento emanado de sua chancelaria, o governo brasileiro respondeu a duas objeções que foram levantadas a respeito do Tratado de Cooperação Amazônicapor correntes de opinião adversas ao processo de integração. A primeira referia-se à dimensão ecológica: Ao atribuir desde o preâmbulo igual prioridade às metas do desenvolvimento e da preservação ecológica, o Tratado de Cooperação Amazônica transformou-se possivelmente no primeiro grande tratado multilateral a consagrar juridicamente uma das idéias-forças do nosso tempo: a convicção da finitude dos recursos, dos limites do planeta Terra, da obrigação de não saquear o patrimônio existente.

A segunda ressuscitava a velha tese da hegemonia brasileira a expandir-se pela América do Sul: A tese não tem qualquer fundamento. Em termos gerais, porque o Brasil busca a realidade da cooperação, não a quimera da hegemonia e considera altamente positivo que a América Latina seja uma área de desconcentração do poder, formada por numerosas unidades grandes ou médias, insatelizáveis pelas dimensões, recursos e tradição de autonomia. Em termos específicos, o Tratado Amazônico consagrou no artigo XXV a

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regra da unanimidade das decisões, que terão forçosamente de nascer do consenso. Não haverá assim maiorias ou minorias, nem espaço para hegemonias, já que qualquer membro do pacto poderá evitar uma decisão que não atenda aos seus interesses3.

Por iniciativa conjugada dos embaixadores Miguel Angel Burelli Rivas e David Silveira da Mota Jr., implantou-se em 1980 na sede do Instituto de Altos Estudos da América Latina da Universidade Simón Bolívar, em Caracas, o Centro de Estudos Brasileiros, com a finalidade de realizar atividades de investigação, docência e extensão relativas à realidade brasileira e às relações entre o Brasil e os demais países latinoamericanos, bem como aos processos de integração latino-americana de que o Brasil fazia parte4. pós-franquista adequava-se como resposta ao ativismo na Venezuela ena A oportunidade dessa espanhol nova ação cultural brasileira América Latina, desencadeado quando Carlos Andrés Pérez, à sombra da riqueza petrolífera, projetou sobre a Espanha a imagem de campeão da democracia e colheu, em 1977, por ocasião da visita a Caracas do rei Juan Carlos, importantes acordos econômico-comerciais. Sucessivamente à penetração econômico-comercial na Venezuela, a Espanha obteve status especial no Pacto Andino, a admissão como membro pleno daCepaleum acordo com o Sela. Essa bem orquestrada ação diplomática conferiu à ex-metrópole ares de triunfalismo, perceptível no propósito de tornar-se ponte entre a América hispânica e a Comunidade Econômica Européia (CEE) e de deter posição privilegiada em relação aos países de língua espanhola no continente. Os chanceleres do Pacto Andino não apreciavam a insistência de “leválos a Bruxelas” com que o chanceler espanhol, Marcelino Oreja, exibia seu apadrinhamento sobre a organização regional. Com relação ao Brasil, a ofensiva diplomático-econômica da Espanha sobre a América Latina era negativa. A agência de notícias espanhola EFE dedicava-se regularmente a divulgar notícias insidiosas

3 4

MRE à legação em Buenos Aires, despacho, Brasília, 25 ago. 1980, AHIBR, caixa 221. David Silveira da Mota Jr. ao MRE, ofício, Caracas, 13 nov. 1980, AHIBR, caixa 205.

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destinadas a prejudicar a imagem do Brasil junto aos vizinhos hispanos, possivelmente com o intuito de, como parte da estratégia espanhola, retirar credibilidade a um importante concorrente, colocando em risco o processo de integração da América do Sul5. Se começou equivocada e à contracorrente a aproximação da Espanha democrática com a América Latina, uma vez depurada de seus vícios, serviria anos mais tarde para a profícua experiência de concertação entre as nações iberoamericanas. O fato de Espanha e Portugal serem admitidos, em 1983, como observadoresjunto à Aladi, constituiu o primeiro passo corretivo daquela contraproducente estratégia espanhola de influência. A administração deHerreraCampins, que se iniciou em março de 1979, manteve as linhas tradicionais da política exterior de institucionalização da democracia e dos direitos humanos na América Latina, com o respaldo que lhe dava uma democracia consolidada pela vidapartidária da AçãoDemocráticaedo Partido Social Cristão (Copei). Como não dispunha mais dos volumosos recursos do petróleo que haviam inspirado ao governo de Carlos Andrés Pérez uma audaz diplomacia de projeção, a Venezuela de então, apesar de ser um interlocutor privilegiado da administração do presidente Carter em razão dessas afinidade políticas, não cessava de criticar a OEA por seu conformismo diante dos interesses e iniciativas norte-americanas, de denunciar o crescente protecionismo dos Estados Unidos e as deficiências da cooperação norte-sul. Essas percepções venezuelanas inspiravam sua nova fase de política exterior voltada à cooperação e à integração latinoamericana6. As tradicionais linhas de força da política externa venezuelana mantiveram-se nos anos 80: as relações com os Estados Unidos e com as regiões do Caribe e da América Central. Manteve-se, igualmente, o tradicional conflito externo, a questão de Essequibo, nos limites com a Guiana. Nos anos 80, entretanto, Caracas inovou quanto à política exterior, ao consolidar as relações com o Brasil e ao buscar novas aberturas com a China Popular. A inclinação realista para a América 5 6

Idem, ofício, Caracas,13 nov. 1980, AHIBR, caixa 205. Ibidem, ofício, Caracas, 10 abr. 1981, AHIBR, caixa 231.

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Latina e o crescente interesse pela integração efetiva da região derivavam da constatação de que a Venezuela não era mais objeto das prioridades continentais dos Estados Unidos. Mas sua tentativa de politização do Pacto Andino não teve acolhida junto aos demais integrantes, estancando-se virtualmente esse processo de integração econômica subregional. Já com o Brasil, consolidava-se, por volta de 1981, o processo de aproximação diplomática e econômica, aberto com a visita de Carlos Andrés Pérez a Brasília em 1977. A Comissão de Coordenação Brasil-Venezuela vinha demonstrando a disposição dos dois países de incrementar o lastro econômico e comercial do relacionamento bilateral. Em outubro de 1981, firmou-se um protocolo de intenção entre os governos de Venezuela, Brasil e México para criação da primeira transnacional de petróleo do Terceiro Mundo. A aproximação com o Brasil, um país com o qual nunca tivera conflito de qualquer natureza, além da substancial dimensão econômica que engendrava, era aconselhável e útil à Venezuela, no momento em que esta necessitava coordenar com aquele sua política para a área do Caribe e da América Central, afim de fortalecer-se diante das investidas do nacionalismo norte-americano. Era oportuna, ademais, no momento em que o Pacto Andino definhava e que a Venezuela mantinha dois conflitos de fronteira, com a Colômbia e com a Guiana. Foram esses fatores que propiciaram a construção pelas diplomacias de ambos os países de um arcabouço jurídico e político destinado ao apoio dos operadores oficiais e privados das relações bilaterais. O noticiário de imprensa, antes adverso, tornou-se crescentemente favorável ao Brasil nos periódicos venezuelanos, precisamente em decorrência do processo de consolidação da aproximação política que o sucesso das telenovelas brasileiras favorecia7. Somente quando tratava dos limites com a Guiana na região do Essequibo, as reticências da imprensa venezuelana afloravam quanto à atitude do Itamaraty, presumivelmente de apoio às pretensões de Georgetown8. 7 8

Ibidem, relatório, Caracas, 31 dez. 1981, AHIBR, caixa 231. Ibidem, ofício, Caracas,15 fev. 1982, AHIBR, caixa 254.

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O governo deHerreraCampinsdesgastava-se, contudo, ante a estagnação do mercado petrolífero mundial e ante o quadro recessivo que vinha de 1979. Afalência financeira do México, em 1982, ameaçava atingir a própria Venezuela. Com tudo isso, desgastava-se o Copei, abrindo o caminho para a ascensão à presidência do candidato da Ação Democrática, Jaime Lusinchi. As esquerdas e os militares, nos extremos desse centro político da democracia venezuelana, nenhuma chance ostentavam de alcançar o mando supremo da nação. A nova orientação moderna da diplomacia venezuelana ocupou muito espaço na campanha presidencial de 1982. O conflito das Malvinas uniu toda a classe política no apoio irrestrito à ação militar argentina e reativou a reclamação territorial sobre o Essequibo, considerado outro resquício não solucionado da usurpação colonial britânica na América do Sul. Tributária desses condicionamentos, a política exterior venezuelana, ao termo do mandato de Herrera, voltou-se para os seguintes objetivos: solução para a reivindicação territorial sobre o Essequibo; envolvimento político em favor da Argentina durante o conflito das Malvinas; relativo distanciamento de Washington que enquadrava no conflito leste-oeste as crises centro-americanas e do Atlântico sul; permanente atenção à região caribenha e centro-americana; e, enfim, estreitamento do relacionamento com o Brasil9. A recessão que afetava ambas as economias retardava a implementação de projetos de cooperação regional. Assim é que permanecia nas intenções o ambicioso projeto de constituição da multinacional Petrolatina, mediante associação das estatais de Venezuela, México e Brasil. Nova evidência dos limites dessa cooperação representou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial, Calha Norte, em 1985, com que o Brasil enfrentava isoladamente os problemas de desenvolvimento da região situada acima dos rios Amazonas e Solimões, entre os quais a demarcação dos limites, o levantamento da situação das terras indígenas, a criação de colônias de povoamento com forte presença do Exército e o estímulo ao comércio fronteiriço. Causavapreocupação aos integrantes desse GTI o fato de 9

Jório Salgado Gama Filho ao MRE, relatório, Caracas, 31 dez. 1982, AHIBR, caixa 254.

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as terras indígenas concentrarem-se precisamente na região de fronteira, registrando-se o fato de o grupo étnico ianomâmi viver em ambos os lados, a requerer uma política comum de proteção10. Em 1987, negociavam-se modificações no estatuto do Pacto Andino, com o objetivo de reerguê-lo de sua letargia e de transformálo em um bloco operacional. O exame das sugestões que chegavam à confecção do Protocolo Modificatório deixou transparecer falhas congênitas na concepção integracionista e na condução processual, responsáveis em última análise pelo seu malogro como instrumento destinado à promoção da integração sub-regional. Essas mesmas falhas foram sabiamente evitadas nos dispositivos com que Brasil e Argentina haviam posto em marcha, no ano anterior, o processo de integração do Cone Sul. Com efeito, os empresários e os governos das nações que integravam o bloco andino requeriam mudanças no ato constitutivo, o Acordo de Cartagena, para: (a) eliminar previsão de datas rígidas de constituição da união aduaneira; (b) flexibilizar e individualizar prazos para eliminação de barreiras aduaneiras; (c) suprimir a obrigatoriedade da programação industrial coletiva, tornando-a optativa; (d) revogar a legislação coletiva a respeito de capitais e tecnologias estrangeiros; (e) estabelecer mecanismos de transição para o comércio bilateral e de salvaguardaspara as contingências que afetassem as economias nacionais. Desse modo, a nova filosofia da integração andina enfraquecia o dirigismo estatal coercitivo e conferia maior determinação ao mercado e à concorrência não desleal como motores do crescimento, da alocação eficiente de recursoseda expansão dos mercados nacionais. Osempresários venezuelanos criticavam, contudo, a hesitação da Venezuela, que até então não aderira ao Gatt, que entrara tardiamente para a Alalc e para o Pacto Andino e que retardava a assinatura do Protocolo Modificatório, correndo o risco de isolar-se diante de pólos mais dinâmicos da economia latino-americano como o México, a Argentina e o Brasil11. MRE à legação em Caracas, despachos, Brasília, 24 set. 1985, AHIBR, caixa 286 e 6 jan. 1986, AHIBR, caixa 292. 11 Paulo Henrique de Paranaguá ao MRE, ofício, Caracas, 13abr. 1987, AHIBR, caixa 302. 10

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A fim de desencadear o processo moderno de integração, o presidente brasileiro, José Sarney, foi ao encontro de seu colega argentino, Raúl Alfonsin, em 1986, e venezuelano, Jaime Lusinchi, no ano seguinte, com o intuito de assentar sobre eixos de sólidas relações bilaterais o progressivo e flexível processo de integração da América do Sul. No Compromisso de Caracas, subscrito a 17 de outubro de 1987, expressava-se “a irreversível vontade política comum de iniciar as ações capazes de elevar aos níveis mais altos e em benefício mútuo as relações econômicas entre o Brasil e a Venezuela”. Os novos eixos de cooperação ao norte e ao sul do Brasil tinham causas comuns, no plano político: a consolidação da democracia, uma atitude de maior introspecção latinoamericana, em substituição à introspecção nacional dos países, e a presença ativa dos governos em grupos regionais de concertação política e econômico-financeira, como o Tratado da Bacia do Prata e o de Cooperação Amazônica, o Grupo de Contadora-Apoio, o dos Oito e o do Consenso de Cartagena. Os laços foram estreitados pelos encontros dos presidentes Sarney e Lusinchi em Brasília e em Caracas, com a criação de um ambiente político muito favorável à cooperação econômico-comercial de que resultou o Compromisso de Caracas. Um programa de ação foi criado com o objetivo de promover de imediato a recomposição do comércio bilateral. Com efeito, esse fluxo situava-se muito abaixo do potencial de ambas as economias e enveredara-se por desequilíbrios estruturais que o haviam deteriorado nos últimos anos. Entre 1982 e 1986, o comércio bilateral caiu de 1 bilhão e 440 milhões de dólares para 440 milhões, sobretudo em razão da queda das exportações venezuelanas para o Brasil, constituídas quase que exclusivamente de petróleo, queda de 970 milhões para apenas 96 milhões de dólares. O perfil do comércio bilateral evidenciava, portanto, a extrema dependência da Venezuela com relação a um produto de exportação e as vantagens de um exportador de múltiplos itens como o Brasil. O déficit que fora tradicionalmente brasileiro verteu-se para o outro lado, colocando à Venezuela o desafio de diversificar sua pauta para não perpetuá-lo. Outra idéia perdida em favor do equilíbrio bilateral fora a associação das estatais de ambos os países na exploração do petróleo venezuelano, 268

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o que teria evitado a drástica redução do volume da importação brasileira, de 28 milhões de barris em 1982, para pouco menos de cinco em 1986. Esses problemas requeriam soluções criativas, como a associação de empresas de ambos os países, que a nova modalidade de cooperação se propunha engendrar12. De qualquer modo, ao tempo em que o processo de criação do bloco do Cone Sul nascia da cooperação entre Brasil e Argentina, a diplomacia do presidente brasileiro José Sarney havia preparado outro processo alternativo, ao norte, construindo um firme eixo de perspectivas similares com a Venezuela.

6.3. O eixo Brasil-Argentina A Argentina iniciou a década de 1980 com instabilidade acentuada de seu regime militar, evidenciada, por um lado, pelo grotesco afastamento do presidente Roberto Eduardo Viola, uma demonstração do malogro da Junta Militar criada para aparentar coesão interna ao processo ditatorial, e, por outro, pela ruptura da apregoada continuidade da política econômica que representou a elevação de Leopoldo Fortunado Galtieri à presidência. Os ministros civis, sobretudo da área econômica, careciam de poder e de visão orgânica nacional, visto que agiam como representantes de interesses setoriais da sociedade. Arecessão econômica era em parte conseqüência da inabilidade administrativa e as críticas à política cambial do ministro Martinez de Hoz faziam-se uníssonas em todos os setores de atividade. Os argentinos correram atrás do dólar, provocando uma perda excepcional de divisas para o país. Tanto o setor industrial quanto o dinâmico setor agropecuário entraram em declínio. Apesar da instabilidade do regime, apolítica exterior argentina conservou suas prioridades tradicionais em 1980-1981, mesmo porque teve à frente do Palácio San Martín chanceleres competentes, como Oscar Camilión, ministro de Viola, e Nicanor Costa Méndez, de Galtieri. Os dois conflitos de fronteira, com o Chile na parte austral e

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Osmar Vladimir Chohfi ao MRE, relatório, Caracas, 14 jan. 1988, AHIBR, caixa 324.

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com a Grã-Bretanha acerca das Malvinas, eram conduzidos, o primeiro sob mediação do papa e o segundo em rodadas de negociações. Camilión foi responsável por progressiva recuperação da imagem internacional da Argentina, ao explorar diversas possibilidades de tirála do isolamento em que haviam-na mergulhado os militares desde 1976. Essa tendência vinha se delineando desde o governo Videla, como reação a dificuldades de monta que os militares provocaram nas relações com os Estados Unidos, o Pacto Andino e a Europa Ocidental, tendo no bojo a questão dos direitos humanos, e com o Brasil, pelo conflito acerca do aproveitamento dos rios internacionais da bacia do Prata, sem mencionar os de fronteira, com o Chile e a Inglaterra. Fora precisamente a atuação de Camilión, à frente da embaixada em Brasília, no sentido de desativar o contencioso dos rios que o credenciara ao Palácio San Martín. Sua política exterior seria marcada por uma orientação prioritáriapara os países da América Latina, reflexo da política de afastamento da Europa que se fechava aosprodutos argentinos de exportação. Camilión caiu, entretanto, na armadilha criada pela eleição de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos e seu sucessor dela não se livrou. Crendo com sua atitude vis-à-vis dos Estados Unidos poder superar os embaraços que a campanha de Carter pelos direitos humanos fez emergir nas relações bilaterais, a Argentina ofereceu-se à colaboração norte-americana na Guerra Fria, engajando-se nas intervenções que Reagan promovia contra os regimes de esquerda e os movimentos revolucionários na América Central e no Caribe. Embora fosse idéia do ministro apenas colaborar na contenção do comunismo pela assistência econômico-financeira, excluído o envolvimento militar, sua diplomacia civil ensejou intensos contatos entre os setores castrenses de ambos os países, como se operassem uma diplomacia militar paralela. Os militares argentinos criaram a ilusão de um capital político que se acumulava, como se, mais adiante, se lhes seria outorgado de direito o apoio de Reagan a suas iniciativas, como a tomada das Malvinas, já que as negociações diplomáticas com a Grã-Bretanha andavam estagnadas. Visitas presidenciais, efetuadasem 1980 e 1981, repuseram as relações entre o Brasil e a Argentina no quadro do entendimento 270

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político, desde que o acordo de compatibilização entre as hidrelétricas de Itaipu eCorpuspôs termo ao contencioso acerca dos rios, em outubro de 1979. Eventuais dificuldades no comércio ou nos transportes de carga tinham pronta solução nesse clima de entendimento que, ademais, resultava na coordenação de posições em organismos internacionais. Mas a assunção de Galtieri, em dezembro de 1981, abriu perspectivas de acentuado envolvimento na Guerra Fria, de intensificação de contatos com os militares norte-americanos e de maior engajamento com relação à América Central. O Itamaraty não apreciava essa inflexão da política exterior argentina, apesar de que, e felizmente, ela não comprometia a prioridade para a América Latina e a estreita cooperação bilateral13. Essa atitude moderada e autônoma do governo brasileiro diante do envolvimento argentino na Guerra Fria e a concomitante ocupação das ilhas Malvinas permitiu-lhe, durante e após o conflito no Atlântico sul, desempenhar um papel importante para o conserto que a política exterior argentina estava a requerer. As instruções de julho de 1982 que recebeu a delegação brasileira à I Reunião Ordinária do Comitê de Ação de Apoio à Argentina, criado no quadro dos mecanismos regimentais do Sela, revelam a delicadeza das decisões a tomar para socorrer o vizinho país em contexto de amarga desventura. Recomendava o Itamaraty nesse documento a dissuasão da “retórica do ressentimento” que extravasasse os limites dos problemas concretos argentinos para abarcar outros reclamos; recomendava obstruir a latino-americanização do antagonismo norte-sul ou leste-oeste ao ensejo do epílogo da crise das Malvinas, por considerá-lo prejudicial às relações bilaterais ou multilaterais com os países industrializados e corruptora do processo de integração da América Latina; recomendava desativar o próprio Comitê de Ação, caso o governo argentino aceitasse tratar da questão da soberania sobre as Malvinas no âmbito das Nações Unidas; os compromissos de ajuda à Argentina não deveriam comportar a solidariedade política agressiva que a secretaria do Sela propunha, por isso melhor seriam encaminhados na esfera bilateral; especificamente, no caso do Brasil, as fórmulas de 13

Carlos F. Duarte ao MRE, relatório, Buenos Aires, 13 jan. 1982, AHIBR, caixa 253.

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ajuda bilateral teriam por escopo o aprofundamento do entendimento entre os dois países14. Em suma, a diplomacia brasileira, quando reagiu diante da derrota da Argentina, buscou salvar a unidade da América Latina de forma realista, evitando desvios introspectivos que haviam-na comprometido no passado, e mirou para o lado do entendimento com a Argentina, que a ocasião poderia reforçar em favor de um processo gradual e flexível de integração, que mais tarde iniciar-se-ia efetivamente. Com efeito, um mês depois dessa reunião do Sela, teve lugar em São Paulo grande encontro empresarial brasileiro-argentino convocado para examinar o desenvolvimento das relações econômicas bilaterais e sugerir iniciativas. Dentre estas, recomendava-se a divulgação das normas vigentes na área do comércio exterior, a estabilização dessas normas para evitar os inconvenientes de mudanças bruscas nas legislações, facilidades operacionais para empresas comerciais e uma presença empresarial constante nos foros decisórios da Aladi. A integração econômica com que sonhavam os empresários dependia de entendimentos setoriais, da identificação de carências dos sistemas produtivos nacionais, do progressivo desagravo comercial e da segurança de execução para os projetos industriais ou comerciais bilaterais diante de eventuais modificações de políticas econômicas nacionais. Essas recomendações, de caráter objetivo, iriam conformar os protocolos de cooperação que, em 1986, foram firmados pelos dois governos, a demonstrar que a moderna integração já vinha sendo pensada quatro anos antes15. O Sela representava, nos anos 80, o foro de debate mais concorrido sobre as questões latino-americanas. O Itamaraty andava contudo aborrecido com o posicionamento politizado da secretaria permanente do órgão que preparava de ordinário o documento básico a ser debatido nas reuniões do conselho ou dos comitês de apoio. As instruções da chancelaria brasileira para a delegação que compareceu à IX Reunião Ordinária do Conselho do Sela, realizada em Caracas entre 14 15

MRE à legação em Buenos Aires, despacho, Brasília, 21 jul. 1982. AHIBR, caixa 269. Idem, relatório, Brasília, 24 set. 1982, AHIBR, caixa 269.

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12 e 21 de setembro de 1983, evidenciam a coerência e a continuidade de concepções do Itamaraty acerca das relações interamericanas e da inserção internacional da América Latina, que encaminhavam a nova fase integracionista da região. A institucionalização e a ampliação da burocracia do Sela eram indesejáveis para o Brasil, que preferia atuar por meio dos grupos latino-americanos existentes, de caráter mais informal e flexível. As atribuições daquele órgão econômico multilateral latino-americano deveriam restringir-se às de um foro de consulta e coordenação em assuntos para os quais fosse exigido um posicionamento comum, o que na prática raramente ocorria, em razão da inviabilidade operativa. No setor do comércio, as instruções tinham por irrealista a proposta da secretaria de impor um tratamento simétrico para as importações provindas dos países desenvolvidos que mantinham em vigor políticas protecionistas. Da mesma forma, haveria de se pronunciar a delegação brasileira contrariamente à proposta da secretaria permanente, de promover uma ampla coordenação dos países latinoamericanos para atuar conjuntamente nos foros internacionais e ante os governos dos países credores, na busca de soluções coletivas para a conjuntura financeira do endividamento externo. As autoridades brasileiras faziam restrições de princípio à ação conjunta dos países da América Latina propalada pelo Sela e consideravam mais adequado acionar os mecanismos existentes (FMI, BID e Bird) e o tratamento isolado do caso brasileiro. As atribuições programadas do Sela acerca de suas responsabilidades nos setores de energia e transporte também eram tidas por inconvenientes pela inteligência diplomática brasileira; eventuais soluções nesses domínios de ação, como ainda no do planejamento prospectivo dos processos de cooperação e integração, somente poderiam encaminhar-se no âmbito de grupos sub-regionais em razão da complexidade da América Latina. Quanto às relações da América Latina com os Estados Unidos e com a CEE, conviria ao Sela restringir-se a estudos e abster-se de regulamentações coercitivas para os países que dessem origem a confrontos externos. O Brasil apoiava apenas o diálogonessas frentes e, mesmo assim, porque os países menores da região lhe davam importância, e não porque via nesse diálogo um instrumento prático. 273

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Em suma, a diplomacia brasileira, na primeira metade dos anos 80, depreciava as diversas modalidades do consenso latino-americano, por considerá-lo inexeqüível em campos essenciais das relações internacionais como o comércio, as finanças, os transportes, o provimento energético e as relações com parceiros estratégicos como os Estados Unidos e a CEE. Essas questões, a menos que fossem encaminhadas isoladamente por cada governo, teriam abrigo quando muito em eixos bilaterais ou pequenos grupos integrados, onde as soluções se ajustassem aos contornos da realidade comum16. Na verdade, a diplomacia brasileira olhava tanto para a Venezuela quanto para a Argentina, bem mais voltada para esta última, “em vista da importância das relações entre os dois países e das possibilidades de ação conjugada”17. Os demais foros eram paliativos para o senso de união da América Latina que, por todos os títulos, convinha nutrir constantemente, mesmo porque o desempenho de cada país nos foros multilaterais e grupos operativos sub-regionais dele dependiam. Nesse contexto, triunfou a ação diplomática com a assinatura, em 1986, dos doze protocolos de cooperação entre o Brasil e a Argentina, o eixo em torno do qual, cinco anos depois, o Tratado de Assunção criaria o Mercosul. Presume-se que o sucesso da integração no Cone Sul retirou o entusiasmo acerca de outro processo que se preparou, como foi visto no parágrafo anterior, com a construção do eixo Brasil-Venezuela. Em termos estratégicos, foi um erro abandonar a integração com a Venezuela, visto que esta integração adquiria caráter complementar. Com efeito, a Argentina, desprovida de grandes empresas, representava um importante mercado de consumo para as exportações brasileiras, fato que forçou a integração produtiva delineada nos protocolos de 1986 aconverter-seapenasem integração comercialistacom o tratado de 1991. Mas a Venezuela abria a perspectiva de, por meio da associação, MRE à delegação brasileira à IX Reunião Ordinária do Sela, instruções (anexas ao despacho de 4 outubro de 1983 à legação em Caracas), caixa 273. 17 MRE à legação em Buenos Aires, despacho, Brasília, 2 set. 1985, caixa 286. 16

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dar nascimento a grandes empresas de matriz venezuelano-brasileira, capazes de se tornarem latino-americanas e transnacionais, nas áreas da prospeção do petróleo, da petroquímica, da siderurgia e da hidreletricidade, conforme já se aventara nos meios dirigentes. O abandono do paradigma desenvolvimentista de política exterior, ao final da década de 1980, está na origem tanto da feição meramente comercialista que adquiriu o processo de integração do Cone Sul quanto do esquecimento em que mergulhou a integração produtiva ao norte do continente sul-americano.

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Terceira parte O ciclo da diplomacia neoliberal

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7. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina na virada do século O abandono do paradigma de relações internacionais do Estado desenvolvimentista, a favor do paradigma neoliberal, teve seu impulso inicial em países de menor porte da América Latina, nos meados da década de 1980, e concluiu-se por volta de 1990, com a chegada ao poder do presidente Carlos Salinas de Gortari no México, Carlos Saúl Menem na Argentina, Carlos Andrés Péres na Venezuela, Alberto Fujimori no Peru e Fernando Collor de Mello no Brasil. Desse modo, as experiências neoliberaisestender-se-iam sobre o subcontinentecomo um todo durante a última década do século XX. Embora a América Latina tenha demonstrado a maior coerência dentre todas as regiões do mundo na adoção do consenso neoliberal, não houve uniformidade na intensidade e nos ritmos das reformas internas requeridas pelo nova forma de inserção internacional. A modernização foi concebida pelos dirigentes como abertura do mercado de bens e de valores e privatização das empresas públicas, como sugeria o centro hegemônico do capitalismo, mas os países avançaram por esta via com certo descompasso: Chile e Argentina são exemplos de adaptações rápidas e radicais, Venezuela e Brasil exemplos de hesitações políticas e tropeços operacionais, enquanto o México se afastava da América do Sul e encaminhava com senso prático sua vinculação ao bloco da América do Norte, o Nafta. No ano 2000, reviravoltas eleitorais haviam afastado do poder os próceres do neoliberalismo no México, no Uruguai, no Chile, na Venezuela e na Argentina. Com a vitória de governos de oposição, cujas campanhas políticas se haviam assentado na crítica ao neoliberalismo, a opinião pública deu provas de que estava avaliando negativamente a década de consenso das experiências neoliberais.

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7.1. A transição do Estado desenvolvimentista para o Estado normal Com o término da Guerra Fria e o fim da bipolaridade, estabeleceu-se um consenso em esfera planetária que a literatura definiu ora com os termos de globalização, ora de nova interdependência, ora de neoliberalismo. O mundo parecia uniformizar-se nos aspectos tanto ideológico, quanto político, econômico e estratégico. O consenso neoliberal global postulava a implementação dos seguintes parâmetros de conduta por parte dos governos de todo o mundo: democracia, direitos humanos, liberalismo econômico, cláusula social, proteção ambiental e responsabilidade estratégica solidária tendo em vista a promoção de tais valores. Como este consenso representava o triunfo do centro capitalista– basicamente Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão – sobre as experiências socialistas e terceiro-mundistas, parecia ter que prevalecer. Assim entenderam os dirigentes latinoamericanos dos anos noventa, que o abraçaram de corpo e alma, quase sempre de forma acrítica, diante de uma opinião pública dominada por pressões da imprensa, cuja informação vinha impregnada com os novos princípios. Os dirigentes argentinos à época dos dois mandatos de Menem (1989-1999) cunharam com felicidade a expressão Estadonormal para designar a adaptação ante o novo paradigma. Desde o início do governo de Menem, a Argentina via-se como o país normal que aspirou ser. Tal opção comportava padrões concretos de comportamento: não só não abrir confronto político, ideológico e de segurança com os Estados Unidos e seus aliados, mas apoiá-los e, quiçá, segui-los em quaisquer iniciativas. Ser normal significava, no caso argentino, romper com os princípios da autodeterminação e da não intervenção, tão caros à tradição diplomática latino-americana, como também com osprincípios do direito internacional de que a ONU é guardiã, em favor de uma ordem regulada por relações de força. Significava, ademais, sujeitar a estrutura econômica interna e os padrões de inserção econômica internacional aosdogmasdo chamado Consenso de Washington. Em conseqüência desse giro para a normalidade, a Argentina exibiu nos 280

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anos noventa uma política exterior pragmática e clara em seus princípios e objetivos, diferente da brasileira, feita de hesitações conceptuais e estratégicas1. Ser normal converteu-se, contudo, no desideratum de todos os países da América Latina, exceto Cuba, que se apressavam em agradar à matriz do novo sistema internacional, os Estados Unidos, porque com eles os vínculos eram os mais fortes e cada um desses países trabalhava com a hipótese de poder tirar os melhores proveitos dessa subserviência. Assim, atransição do Estado desenvolvimentista para o Estado normal significou nos anos noventa, na América Latina, a adoção de um processo de modernização concebido pelo centro em substituição à formulação da inteligência local, consubstanciada no tradicional pensamento daCepal. Com efeito, o acervo de idéias estruturalistas cepalino, ancorado nos conceitos de centro-periferia, deterioração dos termos de troca, indústria, mercado interno, expansão do emprego e da renda, que inspirou a política dos países latino-americanos em sua estratégia de superação do atraso histórico, foi despachado para o arquivo histórico pelos dirigentes neoliberais. Em seu lugar, introduziu-se a visão de um mundo harmônico, global, que compreendia a valorização do individualismo e da iniciativa privada, o mercado mundial e a transferência dos ativos nacionais para as empresas oligopólicas globais, em nome da elevação da produtividade. Em poucos anos, a América Latina avançou no caminho da desconstrução do núcleo central robusto de sua economia, erguido em sessenta anos de esforços nacionais. Consumou, desse modo, a transição paradigmática das políticas exteriores, quer em sua formulação nacional quer na dos blocos regionais que o processo de integração criava. Mesmo a concepção da segurança transitou do âmbito nacional ou regional para o global, aceitando-se como naturais as intervenções eventualmente empreendidas, sob a égide da Otan e não mais da ONU, com a finalidade de salvaguardar a nova ordem.

Certas passagens do texto coincidem com a parte do autor inserida em Guimarães, Samuel Pinheiro. Argentina: visões brasileiras. Brasília: Funag, 2000.

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As margens de manobra da política internacional da América Latina, que o paradigma desenvolvimentista implementara durante sessenta anos e que denominara de 3ª Posição ou Política Externa Independente, foram consideradas nos anos 90 inadequadas para os tempos da globalização. O Estado normal não admitia o conceito de margens de manobra e introduzia, em seu lugar, os conceitos de consentimento diante das matrizes e de padronização de condutas em matéria de macropolíticas internas e externas. Às críticas de indivíduos e grupos intelectuais e das correntes da opinião política de oposição aos regimes neoliberais, os dirigentes respondiam sem hesitar que não havia outra opção para a América Latina. Os condicionamentos externos que se encontram na origem mudança paradigmática das relações internacionais da América Latina da coincidiram com fenômenos internos, que também explicam a transição. Com efeito, os anos 80 assistiram à queda do desempenho e à exaustão do modelo desenvolvimentista. O fim da era das ditaduras e a restauração da democracia engendraram crises políticas. O endividamento externo agravou-se e a instabilidade monetária, com surtos de hiperinflação, exacerbava os descontentamentos sociais. A superproteção às empresas locais conduzira à baixa produtividade sistêmica da economia. Os neoliberais extraíram desses malogros argumentos com que seduzir a opinião eleitoral nas campanhas presidenciais. A eles se somaram dirigentes por vezes eleitos com outro discurso político, mas que também faziam referência ao malogro do ciclo desenvolvimentista, para justificar a mudança de estratégia. E o consenso cobriu o subcontinente. Houve uma modificação importante no processo decisório responsável pelos novos desígnios das políticas exteriores. Em quase toda parte, os dirigentes latino-americanos dos anos 90 substituíram grupos tradicionais que mantiveram a coerência do poder por décadas. As novas autoridades vinham das margens da vida política, embora utilizando partidos tradicionais, como no México e na Argentina, ou de fora de tais partidos, como no Brasil. O certo é que os grupos de

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Gortari no México, Menem na Argentina, Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Pinochet no Chile e outros substituíram as elites dirigentes tradicionais por recém-chegados ao poder. Esses, com certa naturalidade e muita desenvoltura, implementaram a nova visão de mundo, desvinculada de objetivos, valores, idéias e compromissos políticos relacionados à herança histórica. Uma outra leitura dos interesses nacionais deu forma ao processo decisório dos governos neoliberais. As chancelarias foram em boa medida silenciadas, como guardiãs que eram do patrimônio político da filosofia desenvolvimentista. Sua esfera de ação foi confinada à diplomacia ornamental, os novos temas da moda, como a governança global, o meio ambiente, os direitos humanos e as intervenções humanitárias. A política internacional pesada, isto é, as relações econômicas internacionais dos países como comércio, finanças, vinculações empresariais ou transferências de ativos privatizados, passou para o comando dos ministérios econômicos, ocupados por jovens que em sua maioria haviam feito pós-graduação em universidades norteamericanas ou haviam servido como técnicos de agências tais como o FMI e o Banco Mundial. Aimprensa denunciava amiúde a petulância com que estas autoridades aplicavam sem senso prático poucas teorias assimiladas no centro do capitalismo e formuladas precisamente para servirem de inspiração à periferia. Altas taxas de juro para manter a estabilidade monetária, contenção do crescimento econômico para combater a inflação, privatização e transferência de empresas públicas ao controle estrangeiro, para aumentar a competitividade, tornaramse parâmetros de políticas públicas na América Latina. As idéias expostas neste parágrafo espelham uma situação homogênea da América Latina nos anos 90. Elas apresentam, sobretudo, um interesse didático. Como se verá no próximo parágrafo, as experiências foram bem diversas, unspaíses avançando mais e outros menos no caminho neoliberal. Dois países de grande dimensão da América do Sul realizaram experiências nos extremos: a Argentina, uma experiência liberal radical e o Brasil, uma experiência mista, situada em algum ponto entre o paradigma desenvolvimentista e o neoliberal.

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7.2. Orientações externas dos regimes neoliberais As tendências dos estudos de relações internacionais na América Latina comprovaram certa perplexidade dos autores, postos diante do desafio de explicar e avaliar a transição paradigmática do modelo desenvolvimentista para o neoliberal, bem como osprimeiros resultados deste último2. Um modo de introduzir este tema dos paradigmas de política exterior consiste em comparar os estudos de relações internacionais na América Latina e aprofundar as linhas de produção acadêmica do Brasil e da Argentina nos anos 90. Estes dois países vincularam-se estreitamente desde o Tratado de Assunção de 1991, que criou o Mercosul. Brasileiros e argentinos estão desde então considerando com maior atenção o que se faz do outro lado do rio da Prata. Abibliografia recente acerca das relações interamericanas e da projeção mundial da América Latina não apresenta um padrão de interpretação unívoco. Há grandes divergências de interpretação acerca dos resultados do ciclo desenvolvimentista, que se estende de 1930 a 1986-1989. Em alguns países, a irrupção do liberalismo do fim do século afetou a reflexão intelectual e aconselhou o revisionismo histórico. Em outros, a inteligência nacional manteve o espírito crítico tanto para o estudo do ciclo desenvolvimentista quanto para o do ciclo liberal que o sucedeu. O pluralismo das correntes de interpretação não desapareceu em nenhum país. Surgiram, contudo, na historiografia e na ciência política aplicadas às relações internacionais no Brasil e na Argentina, nos anos 90, linhagens que exemplificam aquela perplexidade dos pesquisadores postos diante de dois desafios: por um lado, avaliar, sob pressão das mudanças do fim do século, um passado de sessenta anos; por outro, desvendar o grau de acerto dos parâmetros da nova inserção internacional ou então lançar dúvidas sobre sua compatibilidade com os interesses da região. A bibliografia anexa a este texto foi examinada pelo autor com o intuito de fundamentar suas interpretações. Serviram-lhe ao mesmo propósito grande número de artigos publicados pela Revista Brasileira de Política Internacional, entre 1993 e 2000, acerca das relações interamericanas e das relações internacionais da América Latina. 2

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Grande número de especialistas argentinos congregou-se em verdadeira comunidade epistêmica, composta de acadêmicos, diplomatas e burocratas, por vezes a mesma pessoa. Dedicaram-se a uma implacável condenação do passado de sessenta anos. Além de consertar o conhecimento, tiveram os epistêmicos por fim influir sobre a opinião pública, o pensamento político e o processo decisório em matéria de política interna e externa durante os dois mandatos do presidente Carlos SaúlMenem, entre 1989 e 1999. Seu objetivo erao de imprimir a racionalidade decorrente do neoliberalismo à nova organização nacional e à nova inserção internacional do fim do século. As publicações do grupo estiveram a cargo sobretudo do Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales e do Grupo Editor Latinoamericano. Os epistêmicos almejaram, em vão, nos anos 90, produzir o consenso nacional. Podemos separar os analistas argentinos de relações internacionais dos anos noventa em três grupos: (a) os revisionistas de direita, conduzidos por Carlos Escudé, Andrés Cisneros e Felipe de la Balze; (b) uma corrente revisionista de centro juntou-se a eles, sem contudo sacrificar a autonomia mental à ideologia neoliberal; citamos entre os centristas os nomes de Roberto Bouzas, Mônica Hirst, Juan Archibaldo Lanús, Rubén M. Perina e Roberto Russell; (c) menos expressiva em volume de textos publicados, mas não em profundidade de análise, uma corrente de interpretação crítica sobreviveu à comoção intelectual do fundamentalismo liberal e expressou-se nos anos noventa com os nomes de Raúl Bernal-Meza, Aldo Ferrer, Alfredo Bruno Bologna, José Paradiso, Silvia Ruth Jalabe, Víktor Sukup e Mario Rapoport, entre outros3. Qual o mais importante resultado epistemológico das novas correntes argentinas de estudo das relações internacionais? Feito o balanço dessa literatura, é difícil negar que irrompeu e projetou-se sobre o meio intelectual da Argentina dos anos 90 um pensamento com pretensão hegemônica que construiu a teoria da decadência nacional Seus textos aparecem, na bibliografia anexa, tanto em obras individuais como em obras coletivas, cujas referências indicam apenas o nome dos organizadores.

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engendrada pelo isolamento internacional do país, durante a fase que se estende entre 1930-1943 e 1983-1989. E que reivindicou, como terapia para todos os males, desesperadamente, o neoliberalismo da década de 1990. Em outras palavras, o grupo epistêmico argentino substituiu nos anos 90 pela teoria da decadência a teoria latinoamericana da dependência, formulada pelos marxistas dos anos 60 em reação ao pensamento da Cepal. A mudança sem confusão quanto aos conceitos ou decisões a tomar, que se observou no plano da política interna, verificou-se também no plano da política exterior durante o primeiro mandato de Menem. Um pensamento presumivelmente realista – realista, segundo os escritos de Carlos Escudé – alimentou a nova orientação e provocou um giro dramático da política exterior com o fim de eliminar os efeitos autodestrutivos das tendências confrontacionistas com grandes potências ocidentais que haviam acompanhado a política exterior desde os anos 30 do século XX. A política exterior ajustou-se, em nome desse presumível realismo, à condição de país periférico. Seus fundamentos doutrinais foram explicitados em três princípios, expostos amplamente nos textos de Escudé: a) Um país periférico, dependente, pobre e estrategicamente irrelevante para as grandes potências, deve eliminar suas confrontações políticas com o exterior e lutar apenas por assuntos materiais que afetem o bem-estar do povo. Deve conformar seus objetivos externos com os da potência hegemônica na área, tendo em vista obter algum ganho econômico em troca da aceitação da liderança. b) Apolítica exterior do país periférico deriva do cálculo entre custos e benefícios materiais, como ainda do cálculo de risco de custos eventuais. O desafio político à grande potência pode não comportar custos imediatos, mas a longo prazo sempre se revela autodestrutivo. c) A autonomia da política exterior há de refletir a capacidade real de confrontação do Estado mas, sobretudo, orientarse pelos custos relativos dessa confrontação. Ela não corresponde à liberdade de ação mas à possibilidade de 286

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eliminar perdas e promover ganhos nas relações exteriores do país. Formulados no momento em que a ordem internacional transitava da bipolaridade à globalização, esses princípios de realismo periférico inspiraram as formulações reativas do governo argentino, diante da nova visão de mundo dos Estados Unidos. O cientista político Felipe A. M. de la Balze identificou cinco domínios de ação da nova política exterior argentina de realismo periférico, também chamada de política exterior de reincorporação ao Primeiro Mundo pelos dois ministros de Relações Exteriores de Menem, Domingo Felipe Cavallo e Guido Di Tella. Esses domínios de ação serão expostos e avaliados a seguir, porquanto servem de parâmetro para qualificar, de modo geral, a política exterior dos Estados neoliberais da América Latina, cujos dirigentes também afirmaram no início de seus mandatos que pretendiam, por essa via, incorporar seus países ao Primeiro Mundo. 1) Reinserir a economia argentina na economia mundial O propósito apostava na premissa de que o processo de globalização da economia mundial manteria sua tendência ascendente no futuro e partia da convicção de que a abertura econômica induz o progresso tecnológico. Esse domínio de ação estabeleceu como meta alcançar a fronteira tecnológica dos países do Primeiro Mundo no espaço de uma geração. Contudo, visto com espírito crítico, esse parâmetro decisório surpreende o observador, já que não leva em conta o fato de que a desnacionalização da economia interrompe a geração e a apropriação de tecnologia pelo sistema produtivo nacional e acentua a desigualdade estrutural. No fundo, por trás dessa linha de conduta dissolve-se o conceito de sistema produtivo nacional, a indicar a ruptura filosófica com o passado. Daí a ênfase no mais relevante dentre os objetivos econômicos da política exterior, o de aumentar o fluxo de investimentos externos no país com o intuito de provocar a modernização da estrutura produtiva local. No entender de Cavallo, havia-se difundido na cultura política argentina a convicção de que o 287

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desenvolvimento era uma espécie de dívida caritativa das nações avançadas para com os pobres. Mas ao fazer esta crítica, aliás com pouco fundamento, à experiência do passado, não percebia o ministro argentino que sua própria estratégia mantinha o desenvolvimento, da mesma forma, como uma responsabilidade alheia, cuja indução era posta a cargo da nova política exterior. O segundo objetivo econômico relevante da Argentina consistia na busca de meios para reinserir o país no comércio internacional. A abertura da economia à competição internacional e a atuação junto aos órgãos reguladores multilaterais, aos blocos regionais e aos países emergentes da Ásia foram meios selecionados para realizar tal objetivo. As condições internas para tornar exeqüíveis os dois objetivos da política econômica externa foram as reformas estruturais e a estabilidade monetária. Fechou-se, desse modo, o círculo da política econômica externa e interna. 2) Estabelecer relação especial com os Estados Unidos O propósito reconhece o triunfo dos Estados Unidos sobre a União Soviética ao termo da Guerra Fria. Assenta na convicção de que o mundo se encaminha a longo prazo para um futuro multipolar, com distribuição relativamente eqüitativa do poder, do prestígio e da riqueza, mantendo, porém, a médio prazo, a preeminência dos Estados Unidos nesses aspectos. Essa linha de força da política exterior de Menem não esconde o caráter corretivo relativamente ao passado de confrontação, embora ela se assemelhe a formulações de política exterior de períodos anteriores, sobretudo de governos militares. Aposição de excepcionalidade dos Estados Unidos no mundo sugere à Argentina que estabeleça com esse país uma relação especial capaz de produzir os seguintes efeitos: modernização das forças armadas, apoio para superação de questões estratégicas regionais (Malvinas, corrida armamentista, estabilidade democrática, eventuais desastres ecológicos), influência argentina sobre o processo decisório norte-americano em política exterior, acesso especial das exportações argentinas ao mercado dos Estados Unidos e do Nafta e captação de uma parcela importante dos investimentos norteamericanos no exterior. A nova relação pressupõe a conformação dos 288

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valores que condicionam as visões dos dois países quanto à organização interna e às relações internacionais, conformação essa que também foi eleita como objetivo ou condição a criar pelos dirigentes do governo de Menem. Admite-se entre aspartes apenas aquele tipo de confrontação normal em matéria econômica, que os Estados Unidos enfrentam com seus aliados europeus. Em sua formulação geopolítica, a relação especial não recusa a intenção de a Argentina vir a tornar-se mão forte dos Estados Unidos, quando a expansão de seus interesses (de um ou de outro) requeira medidas de coerção regional. Tal recuperação da tradicional empáfia argentina assenta-se na presunção segundo a qual o país foi posto, em conseqüência da ruptura dos anos noventa com o passado, em situação de superioridade sobre qualquer outro da América Latina para implementar uma política de influência em Washington, ao ponto de haver-se tornado indispensável à tomada de decisão das autoridades norte-americanas com respeito aos países latino-americanos. O objetivo de longo prazo, afirma Balze, “es llegar a una situación en la cual los Estados Unidos encuentrem natural pedir nuestra opinión en los temas claves de su política latinoamericana y se sientan incómodos de ignorarla”. Nesse sentido, a singularidade do caráter da aproximação entre a Argentina e os Estados Unidos era sua feição propriamente ideológica, distinta da feição política chilena, operacional mexicana e contextualizada na política brasileira de múltiplas parcerias estratégicas. 3) Aprofundar a integração econômica e a cooperação política com o Brasil O terceiro parâmetro da política exterior de Menem não constitui propriamente um fim em si, segundo Balze, mas, sim, o meio indispensável de se chegar, depois de décadas de tentativas mal sucedidas, a uma genuína estratégia de cooperação e integração latino americana. Seu pressuposto consiste na substituição da geopolítica pela integração nas relações sub-regionais, particularmente entre os países do Cone Sul. Com efeito, o grupo de Menem esperava daquela influência em Washington solução prévia para a dimensão geopolítica de sua política exterior. Assim, por coerência, essa dimensão podia ser afastada das relações entre parceiros sub-regionais. Entretanto, como 289

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adiante se verá, a geopolítica corria o risco de ser reintroduzida na área por efeito involuntário ou maquiavélico, precisamente em razão daquele papel que a Argentina presumia exercer na esteira de suas relações especiais com os Estados Unidos. Por enquanto – no cálculo dos dirigentes menemistas – uma relação de tipo especial com o Brasil modificaria o jogo de duas maneiras: primeiro, ao contrabalançar aquela que se buscava com os Estados Unidos e, segundo, ao relançar a relação cooperativa com os vizinhos da América do Sul e com as grandes potências, por modo a romper com a política de isolamento em que o país vivera mergulhado no passado. 4) Criar uma zona de paz no Cone Sul da América A garantia de paz para a Argentina seria fornecida pelo fortalecimento da segurança decorrente da criação da zona de paz em sua área de influência, o sul do continente. Para tanto, o entendimento com a Inglaterra e a cooperação militar, primeiro com o Brasil e depois com o Chile, seriam os passos da estratégia de confiança a alcançar. Esse objetivo vem associado ao anterior, de promover a integração econômica e política latino-americana a partir do Mercosul. Contudo, a realização da política externa de segurança nacional aparece como uma variável dependente de dois outros fatores: por um lado, da obtenção de tratamento especial porpartedosEstadosUnidosmediante acesso à condição de membro especial da Otan ou, quiçá, a própria admissão à organização e, por outro, dadesconstrução das seguranças nacionais. Em outros termos, a zona de paz seria efetiva quando os meios de segurança dos países do Cone Sul fossem desmontados em favor do controle externo por parte do aliado especial ou da Otan, que auscultariam a Argentina antes de tomar decisões relativas à América do Sul e, quiçá, lhe fornecessem modernos meios de ação externa. 5) Desenvolver uma política de prestígio internacional Apolítica de prestígio recupera a tradição principista do passado, particularmente o estilo diplomático de Juan Domingo Perón, conferindo-lhe a legitimidade de que carecia, por vir desde Menem 290

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estribada nos princípios universais da diplomacia do Primeiro Mundo. Após reverter a opinião argentina aos novos valores – liberalismo econômico, integração, democracia, direitos humanos, meio ambiente, combate ao narcotráfico, ao terrorismo e às ditaduras – o Estado dispôsse a conduzir de forma ostensiva a política de prestígio como tática voltada à epifania da nova política exterior da nação. Para realizar tal empenho, o momento e o gesto espetacular foram escolhidos como oportunidades da sorte. Aos olhos do observador externo, essa lógica não levou em conta o realismo. Com efeito, a história está repleta de exemplos dessa conduta malograda de algumas nações que carecem de poder. Apesar disso os dirigentes argentinos não hesitaram em recorrer a uma política de prestígio feita de gestos grandiloqüentes, consoante velhas táticas do peronismo. A comunidade epistêmica argentina que procedeu ao revisionismo histórico, à fundamentação doutrinal e ao desenho estratégico da nova política exterior, nos moldes dos cinco pilares acima descritos, apresentou surpreendente coerência, além de convergir para a convicção de que esse era o caminho da reincorporação do país ao Primeiro Mundo. Esses analistas das relações internacionais do país, que por vezes coincidem com seus protagonistas, pretendiam, na prática, fechar o ciclo da decadência nacional resultante da política exterior do isolamento implementada no segundo tempo da história argentina, entre 1930-1945 e 1983-1989, econtribuir para empurrar o país ao terceiro tempo, o da prosperidade. Nas palavras de Raúl Bernal-Meza, “os epistêmicos certamente produziram o suporte ideológico-conceptual e cognitivo que o modelo neoliberal requeria”. Mas outro grupo intelectual e acadêmico da Argentina contrapôs sistematicamente, por meio da cátedra, da investigação e das publicações, uma oposição crítica a esta comunidade epistêmica. Seus membros mais conhecidos foram Atilio Borón, Mario Rapoport, Aldo Ferrer e o próprio Bernal-Meza. Estiveram a postos desde os primeiros momentos. Prenunciaram os erros estratégicos da opção neoliberal e não necessitaram aguardar os resultados negativos para o país, provocados pela década menemista em termos de indicadores econômicos e sociais, para expor suas interpretações. 291

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No Brasil, as linhas de análise das relações internacionais do país não se dispersaram nos anos noventa como na Argentina. Há muito, por sinal, as teorias da dependência estavam em descrédito nos meios acadêmicos brasileiros. Não se construiu no Brasil uma teoria da decadência e tampouco se escreveu contra o isolamento nacional do passado. Pelo contrário, os historiadores refletiram, de modo geral, uma interpretação valorativa dos sessenta anos que precederam o governo neoliberal de Fernando Collor de Mello. Promoveram uma espécie de apologia do modelo de política exterior cujo vetor era o desenvolvimento nacional. Esta visão positiva do passado, em contraposição à visão argentina da decadência, foi hegemônica no Brasil. Ela se reflete nas obras mais relevantes publicadas nos anos noventa por eminentes scholarscomo José Augusto Guilhon de Albuquerque, Moniz Bandeira, Paulo Roberto de Almeida, Clodoaldo Bueno, José Flávio Sombra Saraiva e Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, entre os quais este autor e outros mais podem ser incluídos. Nada de comparável à numerosa literatura revisionista e ideologizada da Argentina existe no Brasil. Nada de comparável ao confronto de correntes de interpretação das relações internacionais. Como se a base étnica e cultural da nação, multirracial e pluralista, fosse capaz de engendrar consensos nacionais. Os resultados desiguais do modelo de desenvolvimento, adotado com maior racionalidade e continuidade no Brasil do que na Argentina e em outros países da América Latina, entre 1930 e 1989, explicam por certo a reação dos intelectuais e essas divergências de avaliação da experiência do passado em ambos os países. Essa observação nos sugere a questão do ambiente em que se produz o conhecimento das relações internacionais do Brasil nos anos 90. Em nenhum país da América Latina foi tão difícil a transição do paradigma de política exterior do Estado desenvolvimentista para o paradigma do Estado neoliberal como no Brasil. A mudança que ocorreu no Chile, no México e na Argentina não se verificou no Brasil de forma abrupta, como naqueles países. O presidente Fernando Collor de Mello ensaiou em 1990 uma ruptura ao estilo desses outros países, mas Itamar Franco, que o substituiu em 1992, pisou no freio das 292

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inovações em termos de políticas públicas nacionais e da política exterior. Apolítica exterior de Fernando Henrique Cardoso, em seus dois mandatos entre 1995 e 2002, corresponde a uma prática sem paradigma. Por que tanta indefinição? Foi difícil ao governo brasileiro adaptar sua agenda externa aos novos temas globais. Aceitou de bom grado a emergência da democracia e dos direitos humanos nas decisões de política internacional, mas afastou com repugnância a nova ingerência da aliança ocidental, a Otan, mesmo quando feita em nome desses valores, porém fora do sistema de decisão coletiva das Nações Unidas. Considerou a irrupção da causa ecológica e da cláusula social sobre o comércio internacional como nova forma de proteção dos países avançados e reagiu no sentido de corrigir distorções. Desconfiou do credo liberal difundido desde Washington – liberalização do mercado interno e dos fluxos financeiros internacionais, internacionalização dos empreendimentos nacionais, particularmente dos serviços – e confrontou-o com o conceito de globalização assimétrica. Em suma, o Estado brasileiro dos anos 90 hesitou em tornarse um Estado normal, como fizeram a Argentina, o Chile, o México e outros. Normal, isto é, receptivo, submisso e subserviente aos comandos das estruturas hegemônicas do mundo globalizado. O passado nacional de sessenta anos somente foi avaliado de forma negativa por um grupo de economistas que aprenderam nos programas de pós-graduação dos Estados Unidos o credo neoliberal e estavam dispostos a aplicá-lo quando se tornavam autoridades da República. Estes economistas e algumas outras autoridades, cujo pensamento com eles se conformava, esforçaram-se por difundir a noção de globalização benéfica. Apesar de deter a maior soma de poder em matéria de relações internacionais do país, a esfera das relações econômicas, o grupo não se tornou hegemônico sobre a inteligência nacional do Brasil, como ocorreu em boa medida com o grupo epistêmico da Argentina. A maior parte do meio político, talvez possamos dizer o mesmo do meio diplomático, mas sobretudo o meio acadêmico, avaliou positivamente a estratégia de desenvolvimento brasileiro das últimas décadas e avançou o conceito de globalização assimétrica, que expressa uma interpretação mais nociva 293

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que benéfica para a periferia do capitalismo. O próprio presidente Cardoso, embora ideologicamente simpático à expansão do neoliberalismo, usou o termo em conferências públicas, com o fim de denunciar efeitos contraproducentes da nova ordem internacional Estes condicionamentos influíram na produção do conheci mento das relações internacionais do Brasil nos anos 90 e certamente continuam influindo. Os estudos de relações internacionais feitos no Brasil não são abundantes comparativamente com outros países até mesmo de menor peso, como a Argentina. Os mais numerosos até o ano 2000 foram, precisamente, os estudos históricos: da política exterior e das relações internacionais do país. Em menor número existem ensaios de politólogos e outros trabalhos no campo da economia, da sociologia e do direito internacionais. Acarência fundamental desses estudos no Brasil verifica-se no campo da teoria das relações internacionais, que tanto avançou em muitos países, particularmente nos Estados Unidos. Outra característica da produção brasileira em relações interna cionais é sua distribuição entre diplomatas de carreira e universidade. Existe ainda uma parceria efetiva entre acadêmicos e diplomatas no campo de estudo das relações internacionais do Brasil e esta colaboração certamente contribuiu para se atingir a maturidade científica, no entender de Paulo Roberto de Almeida4. Em sentido epistemológico, caberia perguntar se a América Latina desenvolveu uma escola de interpretação das relações internacionais. Se existe um paradigma analítico brasileiro ou argentino, mexicano ou chileno, venezuelano. A Universidade de Brasília, com seus departamentos de História e de Relações Internacionais, e o Instituto de Investigaciones de Historia Económica y Social da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires reuniram nas últimas décadas grupos precursores de estudos avançados que contribuíram para modernizar a área de estudo das relações internacionais na região. Coincidentemente, 4 Ver

o livro de Almeida, Paulo Roberto de. O estudo das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Unimarco, 1999.

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a produção desses dois centros colocou invariavelmente sob suspeita a estratégia neoliberal latino-americana. Nessas instituições, os estudos adquiriram o perfil próprio decorrente das visões de mundo que os países da América Latina alimentaram com suas preocupações e seus desígnios externos. Se existe um paradigma latino-americano de análise das relações internacionais, pode-se dizer que apresenta em sua gênese e evolução dois fundamentos: por um lado, deprimiu o papel da guerra e da segurança, já que este foi, desde a independência e a consolidação dos Estados nacionais, um subcontinente pacífico e não uma zona de pressão; por outro lado, introduziu o primado da luta pelo desenvol vimento nosestudosinternacionais, jáqueo desenvolvimento se tornou o vetor das políticas exteriores nos diversos países, desde os anos 30 ou 40 do século XX. Além das histórias gerais das relações internacionais do Brasil e Argentina (Juan Archibaldo Lanús, José Paradiso, Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, José Augusto Guilhon Albuquerque, Clodoaldo Bueno, Amado Luiz Cervo), inúmeras obras aprofundaram as relações entre o esses países e as grandes potências, Estados Unidos em primeiro lugar, mas também a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Itália (Gerson Moura, Moniz Bandeira, Mario Rapoport), entre o Brasil e a África (José Honório Rodrigues, José Flávio Sombra Saraiva), bem como as relações regionais (Paulo Roberto de Almeida, Edmundo Anibal Heredia, Francisco Doratioto, Moniz Bandeira). Não citamos a contri buição de historiadores estrangeiros, muito importante décadas atrás. Centremos a atenção sobre o paradigma analítico brasileiro, que não se confunde com o latino-americano, mas espelha uma corrente regional de interpretação das relações internacionais. Quando definem as tendências gerais das relações internacionais do Brasil, quando analisam as relações com os parceiros estratégicos, o desempenho diante da grande política internacional ou a atuação junto aos órgãos multilaterais, os analistas brasileiros manifestam preocupações próprias. Concentraram suas análises nas possibilidades econômicas abertas pela expansão do capitalismo e nos mecanismos de sustentação ou superação

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do atraso histórico. Tiveram de enfrentar o dilema das opções de política exterior, entre o desenvolvimento autônomo, à base de uma economia nacional robusta e auto-sustentada, e o desenvolvimento associado às forças da economia internacional, à base do capital e do empreendimento estrangeiros. Em meio ao mundo bipolar da Guerra Fria e à globalização do fim do século XX, foram vinculadas aos estudos internacionais questões como a legitimidade do desenvolvimento, a desigualdade entre as nações, as relações assimétricas entre as potências avançadas e os países em desenvolvimento, a cooperação internacional, a exploração e a dependência, a transferência de renda, a permanência de estruturas de poder e de riqueza, entre outros ingredientes das experiências de inserção internacional dospaíses da América Latina. Esse perfil próprio da política exterior do Brasil assenta na identidade de um país heterogêneo em sua base étnica e múltiplo em sua expressão cultural. A conduta histórica de sua diplomacia pautou-se pela cooperação e pela não confrontação, pelo legado feito de respeito ao direito internacional, à autodeterminação dos povos e ao culto da paz. Mas sua essência, nos sessenta anos que vão de 1930 a 1990, foi a diplomacia para o desenvolvimento. Ao tentarem introduzir um novo paradigma latino-americano, os autores de vertente neoliberal como as autoridades econômicas do Brasil e os epistêmicos argentinos do fim do século XX afastaram essas questões de fundo de suas categorias de análise. Em seu lugar, firmaram a tese de que a conformação das políticas interna e externa ao consenso neoliberal induz o progresso em todos os aspectos da vida e configura uma ordem internacional sem alternativa. Eliminaram de suas considerações o planejamento estratégico e a idéia de um projeto nacional. Contudo, essas questões de fundo inspiram a corrente crítica acima mencionada, que preexistiu às experiências neoliberais e se manteve viva durante sua vigência. Entendem seus autores, mais realistas e menos ideologizados, que a América Latina, ao termo do ciclo desenvolvimentista, necessitava transitar para outro paradigma de relações internacionais. Entendem, ademais, que o cânon neoliberal não era a opção estratégica correta para implementar os interesses e o bem-estar dos povos da região.

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7.3. Balanço das relações internacionais do Estado normal e primeiras reações Poder-se-ia argumentar, com Andrew Hurrell, que a América Latina, particularmente o Brasil, não é uma entidade fechada que interage com o mundo exterior5. Que seus interesses, pelo contrário, são constantemente repensados em razão dessas interações. Dado o alto grau de desigualdade entre as nações, entre o norte e o sul, é natural observar a transferência e a adoção de idéias externas, normas e práticas e a miscigenação de tudo isso com valores e percepções internas. Ao final do século XX, a América Latina não poderia ignorar as novas condições em que se processavam externamente as relações interestatais, a globalização dos mercados e a homogeneização da sociedade internacional. As novas opções dos latino-americanos levaram tais fenômenos em conta, o que pode explicar a irrupção do pensamento neoliberal. Teriam as duas experiências históricas de inserção internacional da América Latina desde os anos 30, o desenvolvimentismo e o neoliberalismo, reproduzido o mesmo erro de percepção das interações com o exterior? Como se a causalidade externa induzisse resultados em apenas uma direção? Com efeito, os desenvolvimentistas, especialmente aqueles imbuídos das teorias da dependência, viram as estruturas das relações internacionais entre a América Latina e o Primeiro Mundo como obstáculos no caminho do desenvolvimento. No outro extremo, os neoliberais viram no ajuste das estruturas latino-americanas ao mundo globalizado o caminho da ascensão ao Primeiro Mundo. A complexidade do real evidencia que uns e outros compartilhavam boa dose de acerto e de erro em suas avaliações. As estruturas da ordem internacional produziram efeitos perniciosos ao esforço de desenvolvimento empreendido pelos países da periferia durante a segunda metade do século XX. Contudo, certas distorções Hurrell, Andrew. Brazil’s Foreign Policy and International RelationsTheory. In: Colóquio Brazil’s International Relations in theTwentieth Century: History and Theory. Universidade de Oxford, 26 maio 2000. 5

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do modelo de Estado desenvolvimentista, já referidas, não haverão de ser tributadas a causalidades externas e constituíram-se em óbices do desenvolvimento. Para engendrar um processo contínuo de elevação de seu status, os países da América Latina necessitavam remover aqueles óbices internos e não apenas render-se à pressão internacional, introduzindo o paradigma do Estado normal. As interações da América Latina com o mundo exterior, seja qual for a opção estratégica de um determinado período, apelam à constante vigilância de seus governos diante dos esquemas de benefícios e custos envolvidos nas relações internacionais. Autonomistas e associacionistas, desenvolvimentistas e neoliberais podem exibir sua dose de razão, conquanto temperem suas percepções com o indispensável cálculo. As reações dos meios intelectuais da América Latina diante das experiências neoliberais dos anos noventa foram polêmicas. Prevaleceram, no pensamento acadêmico brasileiro, um senso crítico dotado de certa repugnância e, no pensamento argentino, uma adesão acrítica diante da mudança de paradigma de relações internacionais. Já a opinião eleitoral, cuja reação é lenta porém madura, expressou um julgamento severo, ao afastar do poder os agentes da abertura econômica e da alienação sem barganha e ao colocar, no governo, regimes de centroesquerda, na transição de um para outro século. A reação pelo voto evidencia na percepção da opinião popular as insuficiências das políticas exteriores do Estado normal: endividamento para sustentar uma estabilidade monetária baseada na captação pelo Estado de capitais especulativos; venda de empresas públicas para honrar compromissos financeiros crescentes; queda da atividade produtiva interna em razão da queda tarifária; abandono da integração produtiva em favor da integração meramente comercialista; conflitos comerciais intrazonais entre membros dos blocos econômicos, Mercosul e Pacto Andino; desmonte dos sistemas nacionais de segurança; desativação da pesquisa tecnológica transferida para as multinacionais; transferência crescente de renda ao exterior, compensada pela ilusão dos ingressos especulativos; crescimento do desemprego; aumento da massa dos excluídos; crescimento da criminalidade e outras insuficiências. 298

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Os economistas liberais que se apropriaram das decisões internas e externas em matéria de comércio, finanças e propriedade empresarial estavam isolados, mais de uma década depois de iniciado o processo de mudança, na convicção de que a globalização era benéfica. Os próprios neoliberais de bom senso contrapuseram-lhe a noção de globalização assimétrica, ou seja, de benefícios desequilibrados entre as nações. A globalização passou a ser vista como o fenômeno do fim do século XX, por meio do qual algumas nações avançadas derramam sua superioridade sobre as nações da periferia, aprofundando e prolongando o desequilíbrio estrutural entre os dois mundos. Este estudo sobre velhos e novos paradigmas de relações internacionais da América Latina sugere uma conclusão. Ao invés de transitar o Estado desenvolvimentista para o Estado normal, a racionalidade do processo histórico demandava, diante do fenômeno da globalização, um outro desfecho paradigmático. Admitindo-se como inelutável o fim do Estado interventor, a evolução adequada a implementar era do Estado desenvolvimentista para o Estado logístico. Com efeito, todo o avanço no sentido do domínio de tecnologias, da criação de grandes empresas com notável produtividade, do provimento das necessidades do mercado, da expansão do emprego e da renda foi obra do paradigma desenvolvimentista. Ao ostentar tais resultados, robusteceu o poder regional em escala mundial. O modo como os regimes neoliberais reagiram diante da nova interdependência global correspondeu à disposição dedesconstruir esse patrimônio. Atodosos títulos, correto seria o esforço que tomasse como desafio, no ponto do avanço atingido, a expansão de alguns setores, mediante uma integração produtiva regional em uma primeira fase, sistêmica global em uma segunda fase. Ao termo do ciclo desenvolvimentista, a América Latina usufruía de condições adequadas para engendrar empreendimentos de envergadura global. Dispunha dos quatro fatores requeridos para uma inserção competitiva no mundo interdependente: grandes empresas, tecnologias próprias, mercado e capitais. A internacionalização da economia latino-americana poderia haver-se iniciado em setores de atividades como siderurgia, aeronáutica, petróleo, comunicações, 299

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alimentação e certas indústrias. A região não carecia nem de capital nem de tecnologias externos para tanto, porque deles dispunha em medida suficiente – sabe-se que a América Latina, desde a alta dos juros internacionais de 1981, tornou-se um grande exportador líquido de capitais. Carecia apenas de um Estado logístico que, ao invés de desconstruir e alienar, houvesse preferido avançar por meio de associações, dando suporte à expansão de empreendimentos de origem regional. A opção do regresso neoliberal foi uma opção latinoamericana, não uma imposição devida a coerções externas. Se Estados europeus, até mesmo de pequeno porte, como Portugal e Espanha, fizeram opções corretas, que forças haveriam de impedir os dirigentes latino-americanos de proceder da mesma forma? Com um Estado logístico, de comportamento similar aos Estados avançados e tendo como protótipo, precisamente, os Estados Unidos, a inserção da América Latina no mundo globalizado não teria sido desastrosa nem assimétrica. Além de reverter o processo de desenvolvimento auto-sustentado posto em marcha desde os anos 30, os liberais do fim do século exibiram uma desmedida segurança em sua estratégia, chamando com desprezo de saudosistas aqueles que porventura discordassem de suas idéias. De um ponto de vista histórico, contudo, foram os dirigentes do fim do século XX que reproduziram na América Latina o paradigma liberalconservador do século XIX. Quando o capitalismo exigiu da periferia, durante a primeira metade do século XIX, a política das portas abertas, fê-lo para escoar excedentes industriais, capitais e serviços. Quando impôs a mesma política de portas abertas, ao final do século XX, fê-lo para escoar excedentes de capitais, tecnologias, produtos e empresas. Esses fatores, que sustentam a superioridade do centro, seus níveis de emprego, derendaedebem-estar, não deveriam ser gerados naperiferia, mas absorvidos passivamente, para retroalimentar o centro. O Estado normal, Estado subserviente e sem criatividade, a invenção latinoamericana por excelência, consentiu na reprodução do desequilíbrio estrutural do processo de desenvolvimento. Ele repôs a América Latina no caminho de regresso à infância sócio-econômica, como se devesse retomar sua função de exportadora de matérias-primas e produtos 300

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agrícolas. Ele fez a ponte entre o primeiro e o terceiro paradigma de relações internacionais, eliminando o ciclo intermediário. Quem foram, pois, os saudosistas? O debate paradigmático não se reduz a um divertimento acadêmico. Faz sentido, na medida em que as opções estratégicas de relações internacionais determinam, ao lado do desempenho interno das sociedades, as condições de vida dos povos. Particularmente, no caso do signo liberal prevalecente na América Latina no fim do século XX, evidencia o peso da injunção ideológica sobre o processo decisório dos governos.

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Siglas

Ahibr

Arquivo Histórico do Itamaraty

Aladi Alac

Associação Latino-Americana de Integração Associação Latino-Americana de Livre-Comércio

Alca

Área de Livre Comércio das Américas

Aiea Apra

Agência Internacional de Energia Atômica

BID

Partido do Povo (Peru)

Bird

Banco Interamericano de Desenvolvimento Banco Internacional de Reconstrução eDesenvolvimento (Banco Mundial)

Cecla

Comisão Especial de Coordenação Latino-Americana

CEE Cepal

Comunidade Econômica Européia Comissão Econômica para a América Latina

CGT

Confederação Geral de Trabalhadores

CIA

Central Intelligence Agency

CIC

Comitê Intergovernamental Coordenador

Copei

Partido Social Cristão ( Venezuela)

EFE

Agência de Notícias (Espanha)

FMI

Fundo Monetário Internacional

Gatt

General Agreement on Tariffs and Trade

Mercosul

Mercado Comum do Sul

MCE

Mercado Comum Europeu

MRE Nafta

Ministério das Relações Exteriores North American Free Trade Agreement 303

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Odeca

Organização dos Estados Centro-Americanos

OEA

Organização dos Estados Americanos

OMC

Organização Mundial do Comércio

ONU

Organização das Nações Unidas

OPA

Operação Pan-Americana

Opep

Organização dos Países Exportadores de Petróleo

Otan

Organização do Tratado Atlântico Norte

PEI

Política Externa Independente

Sela

Sistema Econômica Latino-Americano

Tiar

Tratado Interamericano de Assistência Recíproca

TNPN

Tratado da Não-Proliferação Nuclear

UDN

União Democrática Nacional (Brasil )

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Bibliografia Albuquerque, José Augusto Guilhon (org). Sessenta anos de política externa brasileira. Crescimento, modernização e política externa; Diplomacia para o desenvolvimento. São Paulo: USP, 1996. 2 v. Aleixo, José Carlos Brandi. O Brasil e a América Central. Brasília: Câmara dos Deputados, 1984. Almarza, Alberto Sepulveda. Esposible la democracia en América Latina. Un estudio sobre los militares y la política. Santiago: Cesoc, 1995. Almeida, Paulo Roberto de. O Brasil e o multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. _____. O estudo das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Unimarco, 1999. _____. Mercosul: fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTr, 1998. _____. O Mercosul no contexto regional e internacional. São Paulo: Aduaneiras, 1993. _____. Relações internacionais e política externa do Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 1998. Alves, Janine da Silva. Mercosul: características estruturais de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Florianópolis: UFSC, 1992. Atkins, G. Pope. América Latina en el sistema político internacional. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1991. Ayerbe, Luis Fernando. Neoliberalismo e política externa na América Latina: uma análise a partir da experiência argentina recente. São Paulo: Unesp, 1998.

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