Inveja E Ambição

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Inveja e ambição

Robson Gonçalves

“A felicidade é a atividade da alma em conformidade com a virtude.” Aristóteles, Ética a Nicômaco

A dívida do pensamento ocidental com Aristóteles é incalculável. A frase acima, simples, clara e sucinta, ilustra a dimensão de sua contribuição ao nosso modo de pensar e ver o mundo. E ela não é mais do que uma pequena pérola do imenso tesouro que é o livro que o grande pensador escreveu para seu filho, Nicômaco. A definição aristotélica de felicidade não poderia ser mais conforme aos ensinamentos de nossa Doutrina. Senão, vejamos: Antes de mais nada, ela é atividade. Aprendemos no Espiritismo que não pode haver felicidade na inatividade e no ócio e que o paraíso ansiado por muitos na outra vida – o da completa inação – seria certamente o inferno das almas laboriosas. Se a vida após a morte nos traz os prêmios e as justas cobranças impostas por Deus e por nossa consciência, a felicidade do justo deve se revestir da imensa paz prometida por Cristo. Assim se expressa Emmanuel, tocando no tema que reúne paz e atividade laboriosa: “É indispensável não confundir a paz do mundo com a paz de Cristo. A calma do plano inferior pode não passar de estacionamento. A serenidade das esferas mais altas significa trabalho divino, a caminho da Luz imortal” (Vinha de Luz, 105). Aparece aqui com clareza, revestida do mais puro sentido evangélico, a indissociável vinculação entre a paz, manifestação da autêntica felicidade, e o trabalho ativo e contínuo. Mas Aristóteles diz claramente que essa atividade é da alma. Como conseqüência, ela não está limitada nem por restrições da vida material – pobreza, deficiência física, grau de intelecto – nem se restringe à vida terrena. Se a felicidade decorre da ação da alma, quem estará privado dela? Novamente é possível observar aqui a conformidade com os preceitos do Evangelho e do Espiritismo. Jesus afirma que a bondade de Deus se manifesta, entre outras coisas, por fazer o Sol nascer sobre justos e injustos. Traduzindo a alegoria, isso significa que ninguém está privado do alcance da bondade divina que

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coloca a felicidade ao alcance de todos, visto que esta se prende à ação da alma humana, cuja existência e capacidade de trabalho não cessam. Por fim, Aristóteles afirma que a felicidade decorre da conformidade desse agir com a virtude. O filósofo dedica páginas e páginas do seu livro à discussão da virtude. Debate com pitagóricos e platônicos antes de formular suas próprias idéias. Sob a ótica cristã, sabemos que a virtude pode ser resumida na máxima: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Mas, se essa máxima nos indica o Norte inquestionável da prática da virtude, atingir esse objetivo em nossas atividades cotidianas representa enorme desafio. É preciso, portanto, como o faz o próprio Aristóteles, descer do nível mais abstrato para o das relações e dos sentimentos da vida cotidiana a fim de fixarmos corretamente algumas diretrizes para a prática virtuosa. Vejamos, por exemplo, outra máxima evangélica: o perdão das ofensas. Aplicada de forma ingênua, essa regra nos diria para, caso sejamos assaltados, esquecermos o assunto e não registramos uma ocorrência policial; caso venhamos a ser lesados pelo descumprimento de um contrato, deixarmos o fato de lado e simplesmente “tocarmos a vida”. Ora, Aristóteles afirma que “está na natureza das virtudes serem destruídas tanto pela deficiência quanto pelo excesso”. A coragem é, assim, o meio termo entre a covardia e a temeridade; a justa indignação é o meio termo entre a cólera e a apatia e assim por diante. Conclui Aristóteles que a prática virtuosa decorre de uma disposição da alma de agir de forma a evitar os erros do excesso e da falta. Em essência, a virtude é a busca do equilíbrio. O filósofo conclui que, se em relação aos excessos e às deficiências, a virtude é o meio termo, “com referência ao sumo bem e ao mais justo, ela é um extremo.” Aplicando esses conceitos à luz do Evangelho, seria possível dizer que alguém que foi assaltado tem o dever de registrar uma ocorrência policial; quem foi prejudicado pelo descumprimento de uma cláusula contratual pode e deve procurar seus direitos na Justiça. O perdão das ofensas não é incompatível com a justa indignação, com a busca de se evitar um mal maior para outros – no caso do assalto – ou para si mesmo – no caso do contrato desrespeitado. O próprio Jesus deixou claro o ensinamento: a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, ou seja, há normas divinas e humanas a serem respeitas e nenhuma delas é incompatível com o perdão, postura íntima e não social, que deve nascer de forma espontânea na individualidade e no livre-arbítrio de cada um.

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A confusão que se coloca na busca da prática virtuosa é imensa e pode ser eficazmente evitada com a formulação aristotélica. De um lado, ao vermos um irmão justificadamente indignado, podemos confundir sua atitude com ira. Mas a indignação é a busca ativa da correção de uma injustiça ou a expressão de nossa contrariedade com relação a um ato ou a uma opinião que nos agridem de forma injustificada. A ira, pelo contrário, é o desejo de vingança, é uma explosão que rapidamente se distancia de sua verdadeira causa e se propaga através de um desejo forte de que aquele que nos ofendeu ou prejudicou sofra. Por outro lado, aquele que é ofendido ou prejudicado e simplesmente se cala pode aparentar o exercício da mais pura moral evangélica de “dar a outra face”, mas pode estar se omitindo simplesmente. Se temos a oportunidade de chamar o agressor à realidade e, quem sabe, evitar que sua atitude se perpetue e acabe por prejudicar a tantas outras pessoas, nosso silêncio será sinônimo de omissão e desconsideração para com os demais agredidos. O amor a si mesmo é o verdadeiro parâmetro do amor ao próximo e tolerar a agressão não significa omitir-se frente a ela. O perdão deve recair sobre o agressor, não sobre a agressão. Esta deve ser neutralizada pelos meios possíveis, para que não se repita, enquanto o agressor, doente da alma, merece nossa compaixão. É no nesse âmbito da busca da virtude pela ausência do excesso e da falta que podemos analisar a questão da inveja e da ambição. Se a primeira tem o claro significado de um vício, a segunda constitui um conceito que gera confusão, pois é ambíguo. Afinal, que dizer de uma pessoa ambiciosa? Será ela necessariamente avara e mesquinha, materialista e interesseira? Muitas pessoas usam o termo ambição associado a esse tipo de pessoa. Mas o que dizer das “justas ambições” de alguém? Para nos fazermos claros, vamos usar o termo ambição como sinônimo de “firme disposição na busca de um objetivo”, material ou não. Assim, ter ambição terá aqui o significado de almejar algo de bom para si sem pretender prejudicar quem quer que seja, procurando mover os recursos necessários para atingir essa meta. Nesse sentido, o que se poderia dizer de alguém que ambiciona algo estritamente material? Estaria essa pessoa agindo de acordo com a virtude evangélica? Em termos aristotélicos, poderíamos dizer que a avareza é o excesso de ambição e a negligência com os bem materiais caracteriza sua falta. O capítulo XVI de O Evangelho Segundo o Espiritismo analisa esse tema. Jesus adverte o jovem rico que não consegue se desprender de seus bens para segui-lo. Nele identificamos a avareza que

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torna o homem escravo de seus próprios bens. Mas, ao mesmo tempo, a parábola dos talentos desaprova o servo que não soube multiplicar os recursos materiais que lhes foram confiados. Neste, temos a demonstração da negligência que faz o homem desprezar as oportunidades de avanço que a vida material lhe propicia. Daí a utilidade providencial da riqueza, discutida naquele capítulo do Evangelho, elemento de estímulo ao trabalho e ao progresso intelectual sobre a Terra e, se bem empregada, instrumento da autêntica caridade. É evidente que não se pode confundir – e como é fácil fazê-lo! – os meios com os fins. A ambição material pode e deve servir como um meio de se estimular o trabalho diligente e o progresso material. Mas o fim é a prática da virtude. E essa, como vimos, está na ação da alma que sobrevive aos meios e riquezas materiais até o infinito. Seja como for, não há elementos que nos levem a condenar uma justa ambição estritamente material desde que ela não seja um fim em si mesma. Almejar um bom emprego, desejar uma casa mais espaçosa, ter prazer em comprar um sapato durável e confortável são disposições saudáveis de um espírito encarnado. O fato, porém, é que os bens materiais existem para nos servir, seja por sua utilidade providencial, seja pelo prazer que podem nos proporcionar. Devemos é estar atentos para a inversão desses papéis, isto é, para os momentos em que os bens materiais – e sua busca – tornam-se senhores de nossa vontade. Estaríamos, então, deixando passar a lição tão poeticamente sugerida no Sermão da Montanha: “buscai antes o Reino de Deus e sua justiça e todas essas coisas vos serão dadas como acréscimo” (Mateus, 6:33). E onde, nessa nossa breve discussão, entra a inveja? É da Lei Divina que o ser humano viva em sociedade (O Livro dos Espíritos, Livro III, capítulo VII). É o convívio social é uma das mais relevantes engrenagens do mecanismo do progresso espiritual. Lemos em inúmeras páginas de André Luiz a importância da vida nas colônias do mundo espiritual a nos ensinar que a sociabilidade humana resiste à própria morte do corpo físico. É através da convivência social que se estabelecem os parâmetros com os quais nos avaliamos, procuramos mensurar nossos avanços e nossos retardos. É através do exemplo de virtude e da felicidade daqueles que nos são moralmente superiores que a convivência social age no sentido de impulsionar nosso desejo ambicioso de novas e maiores conquistas. O convívio social age de forma semelhante no que diz respeito às justas ambições materiais. O progresso material daqueles que convivem conosco pode servir de exemplo

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de determinação, de desafio e de motivação. Nada disso fere a moral evangélica. Tomar o próximo mais bem-sucedido como parâmetro para o nosso progresso moral, intelectual e material é algo que surge espontaneamente do convívio social. Muitos são levados a pensar: “se ele pôde, eu também posso...!” Essa ambição, fundada em uma comparação direta de cada um com seus colegas de jornada, não se confunde em nenhum momento com a inveja. Esta última se caracteriza por um incômodo íntimo pelo sucesso alheio e não pelo anseio de um sucesso próprio comparável. O invejoso não almeja o que o outro tem, simplesmente. Ele não quer ser como o outro, de fato. Ele quer ter o que o outro tem e, caso esse outro perca o que conquistou, o invejoso se sentirá intimamente feliz. O que o invejoso carrega, antes de mais nada, é um sentimento de inferioridade. Sua formulação mental seria mais ou menos assim: “como alguém como ele pode ter isso, se eu não tenho...?!” Daí o desejo íntimo e amargo de, se possível, destituir o outro de sua conquista, furtando-a para si. O invejoso é, portanto, um ladrão em potencial da conquista alheia. O invejoso não é bom companheiro de jornada. Trairá seu colega se puder a fim de inverter os papéis, corrigindo o que lhe aparenta ser sempre uma injustiça: “o outro tem o que eu não tenho e isso é injusto”, pensa. A inveja mostra-se, sob esse prisma, filha do orgulho e do egoísmo, tão destacados na Codificação como raízes dos males morais da humanidade terrena. O ambicioso, ao contrário, quer saber do companheiro como atingir – ou mesmo superar – a meta por ele conquistada. Observa e estudo o sucesso alheio ao traçar seu próprio plano de ação. Ele quer juntar-se ao grupo dos que realizaram dada conquista. Almeja ter o que os outros têm, alcançar o que os outros alcançaram, vê nos colegas que já obtiveram sucesso exemplos e ícones, desbravadores que nos mostram o caminho das pedras. Não se mortifica pelo sucesso que ainda não alcançou, antes trabalha para fazêlo ou, quem saber, ir além. Motiva-se e espelha-se no sucesso alheio. O negligente, por sua vez, é apático. Conforma-se com sua situação com frases do tipo: “isso não é para mim” ou “ah se eu tivesse a sorte que ele teve!”. É semelhante ao servo que enterra o talento. É claramente um companheiro de jornada menos daninho que o invejoso. Mas faz um mal muito grande para si mesmo. Despreza de forma passiva as oportunidades que a vida lhe dá e não vê no sucesso alheio senão um alvo impossível de atingir. Perde-se na auto-piedade, amesquinha-se e se conforma, tornado-se o grande obstáculo a seu próprio progresso.

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Assim, aprendendo com Aristóteles a encarar a moral evangélica sob esse prisma rico, o da ação virtuosa como a fonte da felicidade e o da virtude como a ausência de excessos, podemos estar mais atentos ao valor da ambição e aos perigos da inveja e da negligência. E qual é a consolação? É que a justa ambição material não é condenável. Evitando seus excessos, fazendo dela um motor para o progresso e colocando-a em uma escala de valores abaixo do progresso moral, essa ambição só terá a contribuir com nosso avanço. No futuro, despidos da veste transitória da carne, teremos cultivado a saudável ambição, tão valiosa também no Reino do Espírito, onde nos cabe cultivar os verdadeiros tesouros, como ensinou Jesus.

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