Do Que Pode O Homem Se Furtar?

  • Uploaded by: Robson Ribeiro Goncalves
  • 0
  • 0
  • December 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Do Que Pode O Homem Se Furtar? as PDF for free.

More details

  • Words: 1,715
  • Pages: 5
O binômio Deus-consciência

Robson Gonçalves

“De tudo pode o homem se furtar: da opressão, do medo, da doença e, ainda que apenas por algum tempo, da morte. Só não pode ele se furtar de duas coisas: da presença de Deus e de sua própria consciência.”

A frase acima, dita com um sentimento de grande compaixão por um sábio amigo, tem um significado profundo. As reflexões que me suscitou são muitas. Compartilho com os irmãos algumas delas. Desde a Antiguidade, a idéia da vida humana como um constante movimento, semelhante às águas correntes de um rio, tem gerado a simpatia de alguns e a rejeição de outros. Nos limites da Doutrina Espírita, porém, a Lei da Evolução se assemelha muito a essa idéia de um movimento contínuo. Mas a analogia com as águas de um rio talvez não seja a mais adequada. Se a Lei do Progresso (O Livro dos Espíritos, livro III, cap. VII) se impõe ao homem como a gravidade se impõe e move as águas do rio, estas mesmas águas não têm consciência de seu movimento e não têm uma vontade capaz de deter ou acelerar seu avanço. No homem, o orgulho e o egoísmo, alicerces da imperfeição como a conhecemos na Terra, podem retardar seu progresso moral. De modo contrário, a Caridade pode acelerar esse processo. Não cabe aqui uma longa digressão sobre como esses dois elementos, o orgulho e o egoísmo, são capazes de se desdobrar em um sem número de outras mazelas do espírito. Cabe sim a pergunta: por que eles tantas vezes nos detêm no curso da evolução? Por que, ao voltarmos à pátria espiritual despidos de títulos, posses e nomes – tão transitórios frente à eternidade da alma quanto desenhos feitos pelo vento nas nuvens do céu –, tantas vezes elaboramos delicados planos de ação para novas experiências

1

terrenas e, uma vez encarnados, acabamos incorrendo em velhos erros e velhos vícios? Por que, terminada mais uma existência terrena repleta de desacertos, vagamos pelas frias regiões espirituais, criadas pelas emanações de mentes em desalinho, e somente depois de anos aceitamos a mão socorrista que estava há tanto tempo estendida? A questão é extremamente densa e a resposta, certamente, complexa. Pode-se arriscar, sem medo de errar, que existem diversas respostas possíveis, cada uma colocando em relevo um aspecto verdadeiro e relevante. Vai aqui uma modesta contribuição, inspirada na frase em destaque, acima. É instintiva a fuga da dor pelo homem. Bem entendida, ela é parte da Lei da Conservação (O Livro dos Espíritos, livro III, cap. V). Mas, qual a origem da dor da qual foge o homem? Certamente não é única. Se essa origem decorre de uma potencial agressão de um semelhante ou da ação de elementos naturais, a qual podemos chamar de dor-ameaça, não resta dúvida de que a fuga se insere na Lei da Conservação. Mas, que dizer da dor que decorre de nossos próprios atos passados ou presentes? Que dizer da dor-reação, decorrência da dor-ação que se origina em nós e recai sobre nosso semelhante ou sobre nós mesmos? Quando tentamos fugir da dor-reação, essa fuga escapa completamente dos limites da Lei da Conservação e se torna uma fuga – impossível – de nós mesmos em um processo de realimentação contínua dessa mesma dor. Vejamos o argumento mais de perto. Se a Caridade é a síntese da virtude na Doutrina Espírita, o homem que busca ser caridoso tem um parâmetro simples: fazer ao outro o que gostaria que fizessem a ele mesmo. Essa capacidade empática não exige amplos conhecimentos filosóficos e está à disposição tanto dos simples quanto dos doutos. Daí o alcance da mensagem do Evangelho de Jesus. Quando essa máxima é descumprida e impomos ao semelhante algo que nós mesmos não suportaríamos ou não desejaríamos, entramos em desarmonia com a Lei da Justiça (O Livro dos Espíritos, livro III, cap. XI). Espíritos ignorantes e ainda muito envolvidos com certas ilusões da vida material, precisamos de um mecanismo de reação que nos mostre o erro dessa atitude, que nos alerte e ensine, induzindo-nos à correção através de nosso próprio discernimento e livre-arbítrio. Se o corpo físico, submetido a atividades insalubres, nos devolve a dor como sinal de alerta para que corrijamos o que estiver sendo agressivo a ele, algo semelhante se dá com nossa alma. Em desalinho, ela é afligida pela dor-reação a nos dizer: “seu comportamento é insalubre do ponto de vista

2

espiritual; você está produzindo e armazenando energias que estão em desarmonia com a ordem da vida e do mundo como Deus a estabeleceu”. Essa voz, nossa consciência, patrimônio incalculável da alma humana, fala dentro de nós com clareza, pois é na consciência que está escrita a Lei Natural, a lei da moral divina (O Livro dos Espíritos, livro III, 621). Ela não nos acusa – como muitas vezes se diz –, antes nos convida à correção. A consciência não se mostra, assim, como um juiz, mas como um terapeuta a recomendar uma mudança de postura. Não pode o homem furtar-se a essa voz. Quando se detém e insiste no orgulho e no egoísmo, é por tentar empreender uma fuga impossível daquilo que o define como homem: sua consciência de si mesmo, do que quer para si mesmo e, portanto, do que pode ou não fazer de bem ou de mal para o seu semelhante. A inutilidade dessa fuga a torna um contínuo retorno ao ponto de partida: a dor-reação pedindo a correção de sua causa primeira, isto é, da postura em desalinho com a ordem divina. Examinemos apenas um exemplo, talvez dos mais relevantes: o rancor. Somos todos falíveis e ninguém poderá dizer que jamais precisou do perdão de um semelhante ao menos uma vez. O rancor constitui, portanto, a negação a alguém de uma atitude que queremos – ou precisamos – continuamente. E onde a raiz do rancor se não no orgulho? E como poderia alguém esperar que convivessem a paz – fruto da harmonia com a ordem divina da criação – e o rancor no mesmo íntimo humano? O rancoroso busca amortecer sua consciência, tenta fugir da lembrança das tantas vezes em que precisou pedir o perdão de alguém e se arvora, então, no direito de agir com o próximo de maneira diversa daquela com que gostaria que agissem com ele. Fuga impossível e, portanto, inútil. Investida de um aríete frágil – o orgulho – contra uma muralha sólida – a Lei Natural. A persistência nessa fuga impossível, a resistência à voz que clama dentro de nós, é o mecanismo que tende a estender dor-reação. E como tentamos evitar essa dor? Com a ilusão que a realimenta. O egoísmo nos diz: “no meu caso é diferente!” Ou talvez: “ninguém passou o que eu passei!” Nós, que temos em nós mesmos o parâmetro das ações para com o próximo, nos colocamos acima de nossos semelhantes com atitudes assim, novamente em desalinho com a Lei Natural que nos fez todos iguais, todos revestidos do mesmo valor incalculável que tem a vida humana. Concluímos, como Buda, que a ilusão é a causa da – repetição e perpetuação da – dor. O desafio de superar esses estados metais, verdadeiras armadilhas que enredam nossa evolução, é enorme. Mas há uma grande consolação aqui.

3

Pode o homem se iludir, pode ele retardar seu avanço, mas ele não pode se furtar à sua própria consciência. A voz que nos fala incessantemente acaba por ser ouvida. O discernimento surge na alma humana juntamente com o instinto de sobrevivência. É sua capacidade de avaliar o que lhe é benéfico ou não o que lhe permite evitar legitimamente a dor-ameaça. A energia da ilusão é esgotável, pois o discernimento, somado à experiência e à capacidade de agir com a consciência de seus atos – o Livre Arbítrio – acabarão por “impor” ao homem a evolução. Ou talvez fosse mais correto dizer que sua livre capacidade de escolha, seu instinto de sobrevivência e seu discernimento, devidamente burilados pela experiência, acabarão por conduzi-lo à escolha certa e à superação do erro. Mas a consolação é ainda maior. Porque não pode o homem furtar-se à presença de Deus, mesmo nos momentos em que se detém, iludido, no caminho da evolução. Deus é a fonte da vida na qual se manifesta a inteligência humana. Sua luz é o combustível de todas as manifestações da vida. Não há tempo, nem lugar, nem estado mental que impeça o homem de recorrer a Deus. A literatura espírita, sobretudo algumas das obras de André Luiz, mostra que o socorro àqueles que se detiveram no caminho da evolução estava sempre presente, como uma mão continuamente estendida, à espera de um gesto de aceitação. “Pedi e obtereis, buscai e achareis, batei e a porta vos será aberta”, disse Jesus (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXV). Esse gesto de aceitação, em si, é simples como acender a luz tocando o interruptor e as palavras do Evangelho transmitem essa exata idéia afirmando que basta pedir, basta buscar, basta bater à porta. Demorada, porém, é a consciência da importância desse mesmo gesto, como prova a parábola do semeador (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVII). Como conclusão, pode-se dizer que o binômio Presença da Consciência – Presença de Deus nos coloca diante de uma grande responsabilidade e diante de uma enorme graça. A responsabilidade refere-se ao fato de que somos o único juiz de nós mesmos, somos responsáveis frente à nossa consciência, eterna como nossa própria alma. Mas é nossa desarmonia com a ordem divina que nos condena à dor. A consciência, tantas vezes encarada como a personificação do acusador, do torturador e do juiz implacável, é na verdade a voz branda que nos chama a corrigir a causa primeira da dor-reação – o orgulho e o egoísmo – bem como seu elemento propagador – a ilusão que tenta sufocar aquela mesma voz, inutilmente.

4

Por seu turno, a grande graça é que, atingido o discernimento necessário através vivência da própria dor-reação, reconhecida a inutilidade da fuga, ouvida a voz incansável da consciência, a mão de Deus será finalmente vista por traz do véu escuro da ilusão. Com ela vêm o socorro, o auxílio, o refazimento, o alívio e, sobretudo, a oportunidade de retomarmos o caminho da evolução, pelo resgate e pelo aprimoramento, o qual fora temporariamente interrompido.

5

Related Documents


More Documents from ""

December 2019 4
October 2019 27
Apostila Bass
October 2019 26
October 2019 43