DOSVOX: a Hist�ria de uma Revolu��o entre os Cegos D�bora Rossini M. Cardoso1, I�na Fricke D'Ascenzi2, Jos� Monserrat
Neto2
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Departamento de Qu�mica � Universidade Federal de Lavras (UFLA) Caixa Postal 37 � 37.200000 � Lavras � MG � Brasil
(UFLA)
Departmento de Ci�ncia da Computa��o � Universidade Federal de Lavras Caixa Postal 37 � 37.200000 � Lavras � MG � Brasil
[email protected],
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Abstract. This paper examines the history of a technology called Dosvox, outcome of a Brazilian project developed in NCE/UFRJ, Brazil, since 1993, which allows the digital visual disable people to access and use the computer. Resumo. Este artigo examina a hist�ria de uma tecnologia chamada Dosvox, fruto
de um
projeto brasileiro desenvolvido no NCE/UFRJ, Brasil, a partir de 1993, permitindo que portadores de defici�ncia visual acessem e utilizem o computador. 1. Introdu��o Este artigo descreve a hist�ria da cria��o do sistema operacional Dosvox, uma tecnologia social [1] que permite a inclus�o dos deficientes visuais (DVs) ao mundo dos computadores. Sua elabora��o foi em grande parte baseada no Hist�rico do DOSVOX, escrito pelo Prof. Jos� Ant�nio Borges e exibido no site do Dosvox [2]. Inicialmente redigido como atividade da disciplina Inform�tica e Sociedade, do curso de Ci�ncia da Computa��o, DCC/UFLA, o artigo foi aprimorado posteriormente. A disciplina referida acima, ministrada pelo Prof. Jos� Monserrat Neto, tem como objetivo estudar a hist�ria da inform�tica, analisar os impactos da inform�tica na sociedade e, ao mesmo tempo, como esta mesma sociedade reage e atua ativamente para modificar e/ou re direcionar os rumos da inform�tica, al�m de examinar o mercado de inform�tica e debater o papel do profissional da computa��o na sociedade. O Dosvox � um sistema operacional para microcomputador, baseado no DOS e no uso intensivo de s�ntese de voz e navega��o via teclado, desenvolvido no N�cleo de Computa��o Eletr�nica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NCE/UFRJ). Ele se destina a facilitar o acesso de deficientes visuais aos microcomputadores. Segundo o coordenador do projeto Dosvox, Prof. Jos� Ant�nio Borges, "o sistema � um ambiente desenvolvido especialmente para cegos e permite uma interatividade constante entre o computador e o deficiente visual. Atrav�s de seu uso � poss�vel observar um aumento muito significativo no �ndice de independ�ncia e motiva��o das pessoas com defici�ncia visual, tanto no estudo, trabalho ou intera��o com outras
pessoas" [2]. Estat�sticas demonstram que atualmente a tecnologia j� conta com mais de 20 mil usu�rios espalhados pelo Brasil, Portugal e Am�rica Latina. O presente artigo busca, enfim, mostrar a import�ncia desse projeto tecnol�gico brasileiro para a inclus�o digital de pessoas com defici�ncia visual. 2. Origem da Cria��o do Dosvox De acordo com o Hist�rico do DOSVOX, "Para entender melhor as raz�es pelas quais o Dosvox foi criado, � preciso analisar um problema que ainda hoje persiste n�o apenas na UFRJ mas em todas as universidades: poucos alunos cegos conseguem entrar no curso superior, e poucos daqueles que entram conseguem concluilo" [2]. O baixo �ndice de alunos com algum tipo de defici�ncia f�sica formados no n�vel superior � um problema que tem sua origem no ensino b�sico. De acordo com L�via Oliveira [3], embora a constitui��o brasileira de 1988 j� previsse que todo cidad�o brasileiro tem direito � educa��o, o fato dos professores, em sua maioria, n�o reconhecerem o potencial em alunos deficientes e n�o estarem preparados para educar tais alunos, impede que a educa��o b�sica a alunos portadores de algum tipo de defici�ncia f�sica seja feita de forma satisfat�ria. Um vez impedidos de terem acesso a uma educa��o b�sica com n�vel semelhante ao dos demais alunos, os portadores de defici�ncia passam a ter menos chances no vestibular. Al�m dos problemas j� normalmente enfrentados por deficientes f�sicos, existem algumas dificuldades que s�o exclusivas dos deficientes visuais (DVs). Conforme revela Joyce Fernanda [4], uma deficiente visual, "ser cego n�o � um supl�cio, mas tamb�m n�o � f�cil". Ela cita a aliena��o como o principal problema, uma vez que atividades como ler um livro ou um jornal, assistir a um document�rio, s�o feitas por pessoas normovisuais (pessoas com vis�o normal). Mesmo a leitura em Braille isola os DVs dos normovisuais, j� que a maioria das pessoas normovisuais n�o sabem ler em Braille. A falta de preparo dos normovisuais para com as pessoas cegas induz a falta de est�mulo destas para se envolverem com o que acontece a sua volta. Joyce lembra que o "cego, como todo deficiente, precisa de est�mulos, para que possa florescer e conhecer os limites exatos da sua defici�ncia" [4]. Esta falta de preparo, ou preparo incompleto est�: a) na educa��o b�sica, pois falta material did�tico adaptado, como livros em Braille, apostilas em �udio e professores capacitados, bem como de monitores capacitados para aux�lio extraclasse; b) no vestibular, pois as provas com frequ�ncia n�o s�o apropriadas � realidade vivida pelos DVs, pelo fato de certas abordagens did�ticas
dependerem exclusivamente da vis�o; e c) na pr�pria universidade, j� que a legisla��o que obriga as universidades a estarem preparadas para receberem alunos com defici�ncias f�sicas surgiu apenas em 2003, com a Portaria MEC No 3.284 [5], e vem sendo lentamente atendida pelas universidades. Considerando o contexto no qual viviam os alunos DVs at� o in�cio dos anos 90 � em que o material did�tico destes constitu�ase basicamente de impressos em Braille e fitas de �udio com textos lidos em voz alta e gravados por pessoas que enxergam � havia de fato uma enorme barreira para o ingresso e perman�ncia dos DVs nas escolas e universidades. Tal barreira, que at� certo ponto ainda persiste, diminuiu um pouco e era explicada por uma s�rie de raz�es, algumas j� mencionadas acima. Uma outra barreira relacionase com a simbologia diferente dos alfabetos comum e em Braille. Mesmo quando o DV tem equipamentos de uso individual para escrita Braille, o fato dele ler e escrever em um sistema com simbologia diferente do alfabeto comum acaba dificultando sua comunica��o escrita com as pessoas normovisuais que os rodeiam, tais como os colegas de turma, por exemplo, com os quais os cegos tem de fazer trabalhos em grupo, ou os professores, que ir�o corrigir trabalhos e provas do aluno DV. Como Joyce nos conta, "tive um aluno que escreveu um texto qualquer no Dosvox e pediu para imprimilo. Depois, levouo para uma pessoa que enxergava e pediu para que ela o lesse. Ela o leu, e ele se emocionou. Sempre houvera uma barreira entre as coisas que ele queria escrever e o fato das pessoas que enxergam n�o poderem ler" [4]. Por isso, antes de existir a tecnologia dos leitores de telas em portugu�s, os cegos tinham de enfrentar a barreira da linguagem escrita com os normovisuais, pois somente outros cegos entendiam o que era escrito (em Braille) pelos primeiros, impossibilitando o interc�mbio de textos escritos com os segundos, sem a necessidade de mediadores e leitura em voz alta. Uma consequ�ncia negativa do uso do Braille � a depend�ncia dos DVs em rela��o aos "ajudantes", pois aumentase a demanda de m�o de obra para atender aos cegos, que costuma ser escassa. Joyce explica: "As pessoas que ficariam ocupadas usando a m�quina (s�o necess�rias duas: uma que enxerga, para ditar, e uma cega, para datilografar), podem nos ajudar a entender os conte�dos. N�o foram poucas �s vezes em que eu e meus amigos ficamos sem assist�ncia em alguma mat�ria, porque o professor tinha que datilografar ou ajudar a datilografar algum assunto importante para n�s mesmos ou para algum companheiro de escola" [4]. Este problema poderia ser minimizado se houvesse na escola pessoas que enxergassem e tamb�m soubessem Braille. Assim, seria necess�ria
apenas uma pessoa, e n�o de duas, como Joyce explica acima, para datilografar em Braille o que ela pr�pria lesse nos originais em tinta. Joyce nos revela mais: "N�s n�o t�nhamos os livros. Ent�o, precis�vamos copiar todos os exerc�cios, perguntas e respostas a m�o, utilizandonos das nossas regl�tes e pun��es. Quando o conte�do era muito grande, pessoas batiamno � M�quina Braille para n�s, m�todo mais r�pido que o uso da regl�te. Entretanto, como o material era grande, os alunos cegos estudando em escolas normais eram muitos e os escreventes e m�quinas dispon�veis poucos, n�o era raro n�o recebermos o material h� tempo para estudarmos para a prova, ou receb�lo na antiv�spera ou v�spera da avalia��o. Isto significava que acab�vamos ficando atr�s, no tocante � oportunidade de ler e memorizar o conte�do. Como solidariedade n�o cai no vestibular, n�o era raro n�o conseguirmos acompanhar a aula dada pelo professor, o que seria nossa esperan�a enquanto o material n�o chegasse, porque os alunos n�o conseguiam fechar a boca enquanto o mestre explicava" [4]. A Figura 1 exibe um aparelho regl�te, fixado sobre um suporte de madeira.
madeira)
Figura 1 � Regl�te (pe�a met�lica sobre o suporte de
Hoje j� existem muitos DVs com 2o grau completo, no entanto, � preciso n�o esquecer da defasagem no n�vel de ensino dos alunos DVs nos 1o e 2o graus, pois muitos deles s�o aprovados sem saber integralmente o conte�do, ou, como eles pr�prios revelam: "fomos passados de ano!". Muitos professores se solidarizam com seus alunos DVs ao perceberem sua dedica��o e esfor�o, por�m, diante da falta de materiais e t�cnicas pedag�gicas adequadas, eles "passam" esses alunos de ano mesmo que n�o dominem a mat�ria, de modo a ajud�los a conseguir logo um diploma, e com isso aumentar suas chances de empregabilidade no mercado. Como todos sabem, nos an�ncios de emprego normalmente se exige pelo menos o 2o grau completo. Como confessa Joyce, "n�o tenho medo de dizer que muitos professores de mat�rias de c�lculos nos passavam por gentileza, pois sentiam nosso interesse em aprender e nossa impossibilidade de faz�lo � contento" [4]. Finalmente, quando os DVs conseguem vencer tais barreiras e ingressar na universidade, eles se deparam de novo com a quest�o da falta de material did�tico adaptado �s suas necessidades e habilidades, fazendo com que a sua perman�ncia na universidade, no curso escolhido, se torne um novo e grande desafio, vencido infelizmente por apenas alguns poucos. Em suma, o contexto do aluno DV no processo educacional, antes da cria��o e
distribui��o de programas leitores de tela, assinalava a extrema depend�ncia do DV no que se refere a mediadores do processo de produ��o e recep��o de textos escritos: era necess�rio que algu�m lesse os textos em voz alta, e que algu�m traduzisse para o professor as avalia��es escritas dos estudantes cegos, caso o professor n�o concordasse em aplicar provas e trabalhos orais. 3. A Cria��o do Vox Em 1993, ano em que come�ou o projeto do Dosvox, havia na UFRJ um total de sete alunos deficientes visuais (DVs). Um deles era ingressante no Curso de Inform�tica e se chamava Marcelo Lu�s Pimentel. No in�cio de seu curso, Marcelo n�o teve muitos problemas com as mat�rias te�ricas, pois colegas e seu pai o ajudavam. Para escrever, ele utilizava uma m�quina de datilografia Perkins que, com as combina��es de seis teclas que batem pontos em posi��es diferentes, formam as letras do alfabeto Braille, m�quina esta cujo manuseio, para leitura e escrita, � mais r�pido e pr�tico que o da f�rma conhecida como "regl�te", pois, ao contr�rio do regl�te, n�o h� necessidade de escrita das letras de maneira espelhada, nem de virar a folha do outro lado para a leitura. A Figura 2 ilustra uma m�quina Perkins.
Figura 2 � M�quina de datilografar Perkins As provas eram realizadas oralmente, com as respostas transcritas para Braille. Os professores n�o sabiam Braille, e tinham de ser criativos para contornar o problema da barreira da linguagem escrita entre um DV e um normovisual, devido � diferen�a de simbologia empregada, como j� explicado. Felizmente, eles sempre descobriam uma solu��o para tais desafios. No entanto, a parte pr�tica do curso de Computa��o, que envolve o trabalho direto com o computador, na cria��o e execu��o de programas e aplicativos, era por demais complexa para Marcelo, que era, e �, totalmente cego. Com os recursos tecnol�gicos dispon�veis na UFRJ, ele n�o podia fazer sozinho tal atividade, for�andoo a participar de trabalhos em equipe nas situa��es como essa. Quando Marcelo descobriu que no SERPRO (Servi�o Federal de Processamento de Dados) existiam cegos que trabalhavam com inform�tica, soube ent�o dos equipamentos tecnol�gicos que eles usavam, "um terminal de v�deo 3270 conectado a um mainframe IBM, conectado a um sintetizador de voz (equipamento que custava alguns milhares de d�lares), uma impressora Braille e um scanner de mesa. A s�ntese de voz deste sistema era toda em ingl�s e a voz
produzida era de dif�cil entendimento" [2]. Ou seja, havia um modelo que poderia ser imitado, desde que fosse mais barato. Foi ent�o que o professor de Geometria Anal�tica, M�rio de Oliveira, sugeriu a Marcelo que, diante da inexist�ncia de um programa para microcomputadores que lesse o que estava escrito na tela, reproduzindo uma voz em portugu�s no computador, ele pr�prio desenvolvesse um projeto de inicia��o cient�fica cujo objetivo seria exatamente o de criar essa tecnologia. Prof. M�rio solicitou ent�o � Reitoria da UFRJ os equipamentos necess�rios para que Marcelo pudesse trabalhar no projeto, al�m de uma sala reservada, com os equipamentos instalados. Entretanto, ele n�o dispunha de pessoas que pudessem orient�lo adequadamente para desenvolver o trabalho e nem de conhecimentos avan�ados de inform�tica para realizar o trabalho sozinho (ele ainda estava no 1o ano de seu curso). Ent�o, durante certo tempo, ele deixou de lado o projeto, concentrandose em seus estudos. Marcelo utilizava o antigo sistema operacional DOS (Disk Operating System) utilizados no microcomputadores pessoais (IBM PC compat�vel), mas sem o devido suporte eletr�nico que atendesse �s suas necessidades, impostas pela falta de vis�o. Dependia inteiramente da ajuda de colegas para ler todo o conte�do que aparecia na tela. Possu�a tamb�m uma outra alternativa, que consistia em um pequeno programa que produzia um feedback sonoro atrav�s do autofalante do computador, mas o som era de p�ssima qualidade. Na verdade, era a �nica forma de uma pessoa cega conseguir algum feedback sonoro autom�tico. Em agosto de 1993, Marcelo iniciou o 2o per�odo do curso que tinha uma disciplina obrigat�ria chamada Computa��o Gr�fica. Nova dificuldade para Marcelo, j� que, � primeira vista, seria imposs�vel para um cego cursar uma disciplina que exige altas habilidades visuais para a sua compreens�o, entendimento e consequente aprova��o. Ant�nio Borges, professor de Computa��o Gr�fica, chegou a sugerir a Marcelo que fosse dispensado da disciplina, por�m, para sua surpresa, Marcelo recusou a id�ia e afirmou que queria curs�la sim, mesmo sendo um estudante portador de defici�ncia visual. Assim, Ant�nio orientou Marcelo a se dedicar a aprender os aspectos te�ricos da disciplina, tais como os conceitos aprendidos em C�lculo 1 e 2, Geometria Anal�tica e outras mat�rias de Matem�tica, "e que substitu�sse os exerc�cios gr�ficos do curso por alguma coisa que fosse mais �til para ele" [2]. Ant�nio testemunhou o uso dos equipamentos eletr�nicos de Marcelo, bem como o funcionamento do programa de feedback sonoro, com sua p�ssima qualidade sonora, constatando a prec�ria situa��o de seu aluno DV. O professor pensou ent�o em desenvolver algo
mais aprimorado que permitisse uma melhor intera��o entre Marcelo e o computador. Descartou de imediato a id�ia do 'Displays Braille', pois era uma tecnologia car�ssima na �poca [2]. Para viabilizar a id�ia, deveria ser usado apenas software e hardware de baixo custo. Para Ant�nio, a "situa��o parecia ser simples e se tinha id�ia sobre o que deveria ser feito, s� n�o se sabia como fazer. N�o se dominava ainda a tecnologia de s�ntese de voz no Brasil, a n�o ser em pesquisas avan�adas que eram realizadas apenas nas grandes empresas de telefonia, ou no Centro de Pesquisa da Telebr�s (CPqD)" [2], respeitado centro de pesquisas situado em Campinas, S�o Paulo. Primeiramente, pensouse em utilizar a t�cnica CVSD para possibilitar a intera��o entre um DV e o computador. Em termos simples, esta t�cnica � uma aplica��o do processo de codificar sinais de �udio digitais que cont�m fala usando uma quantidade menor de bits do que a quantidade que estas informa��es apresentavam originalmente [2]. Ant�nio conhecera esta t�cnica CVSD quando orientava alunos de inform�tica em projetos que envolviam sons e voz gravados e reproduzidos digitalmente. Por�m, esta t�cnica n�o p�de ser usada para auxiliar Marcelo quando cursava a disciplina CG. Como j� cursava tal disciplina e o desenvolvimento da t�cnica CVSD era demorado, n�o havia tempo h�bil para que o m�todo pudesse ser desenvolvido e utilizado a tempo por Marcelo em seus estudos de CG. Ant�nio e sua equipe tiveram tamb�m uma outra id�ia: em vez de utilizar a tecnologia CVSD, poderiam usar uma das workstations Sun (um minicomputador), que o NCE possu�a na �poca, j� que neste computador existia a possibilidade de reprodu��o de som. Era uma solu��o interessante em termos de tecnologia, mas havia um s�rio problema: conseguir reservar tempo para que Marcelo pudesse usar os equipamentos, j� que elas eram muito utilizadas para atividades de pesquisa e por diversas pessoas. Diante desse fato, eles tiveram que pensar em outra alternativa. Nesta �poca, Ant�nio Borges comprara uma edi��o da revista de Eletr�nica Popular numa banca de jornais. � bom lembrar que al�m de professor de Inform�tica, Ant�nio era m�sico, gostava de eletr�nica e tinha interesse em publica��es como essa. Numa das reportagens da revista, era mostrado um pequeno circuito, denominado R2R. Ant�nio comprou as pe�as e montou o circuito mostrado na revista, para fins de entretenimento. Quando o circuito foi colocado em funcionamento, e o som de m�sica foi reproduzido, Ant�nio teve uma id�ia: "ser� que aquele circuito n�o poderia tamb�m ser usado tamb�m para reproduzir voz, j� que ele reproduzia m�sica?" Se fosse o caso, o circuito poderia solucionar o problema enfrentado por seu aluno DV na universidade.
A solu��o era a seguinte: ele usaria voz gravada, em vez de sons musicais digitalizados, e os sons em sequ�ncia seriam produzidos pela mesma t�cnica. A solu��o seria a soletra��o de arquivos com o som de cada letra e a produ��o de feedback das teclas do computador. Dois anos antes, em 1991, havia sido lan�ada no mercado, nos Estados Unidos, uma placa de som chamada Sound Blaster Pro. Quando um dia Ant�nio viu um an�ncio desse item de hardware num jornal carioca de classificados (Jornal Balc�o), ele viu o seu pre�o, de cerca de 300 d�lares na �poca, um pouco caro. Mesmo assim Ant�nio a comprou, sem saber se serviria ou n�o para gravar som. Mas serviu, e dois anos depois ele pode utiliz�la. Dessa forma, Ant�nio p�de montar um circuito com uma placa de som que gravava a voz e que reproduzia a voz gravada. Isto j� representava um grande avan�o. Por�m, faltava ainda fazer a leitura de um texto da tela em tempo real (o que permitiria a soletra��o dos sons, guardados em arquivos). Marcelo n�o tinha o dom�nio de programa��o necess�rio para realizar esse �ltimo passo. Por sorte, ele p�de contar com o aux�lio de uma pessoa com essa habilidade: Orlando Jos� Rodrigues Alves, que segundo Ant�nio, era um excelente estudante do Curso de Inform�tica da UFRJ, s� que num per�odo mais avan�ado do curso. Foi Orlando que desenvolveu o programa Vox, montando rotinas consideradas sofisticadas com a linguagem de programa��o Assembly. Pelo Vox, ao serem pressionadas ao mesmo tempo as teclas Alt e Esc, produziase uma parada moment�nea � numa fra��o de segundos � do programa que estivesse sendo executado na m�quina naquele momento, e ent�o uma rotina do Vox era acionada, permitindo que o conte�do exibido na tela fosse "lido em voz alta" no alto falante do computador, conte�do este escolhido por meio do movimento do cursor, atrav�s das teclas de setas. Ou seja, quando as teclas de setas moviam o cursor (lembrese que estamos falando da tela preta DOS), a letra em que o cursor estivesse apontando no momento seria "pronunciada" no alto falante do computador. Marcelo, movia o cursor para direita, por exemplo, e apertava as teclas Alt e Esc, e ent�o o programa Vox identificava a letra apontada pelo cursor (digamos 'M') e a transformava no som de 'M'. Movendo novamente o cursor para a direita com a seta, o Vox "lia" a letra seguinte, digamos 'a', e depois 'r', assim sucessivamente, de acordo com a movimenta��o que Marcelo imprimia ao cursor, com o aux�lio das setas. Assim, ele poderia "ouvir" a palavra 'Marcelo' a partir da soletra��o de cada letra de seu nome, caso ela estivesse escrita na tela do DOS, e ele movesse o cursor da esquerda para direita sobre a palavra 'Marcelo'. E, seguindo princ�pio similar, as teclas das letras que o DV digitasse tamb�m poderiam acionar rotinas do Vox e serem "lida em voz alta" pelo
computador, no momento em que fossem digitadas. Por exemplo, Marcelo apertava a tecla 'd' e o computador imediatamente "falava" o som da letra em "voz alta": "D�!", dando um feedback sonoro a Marcelo de que ele havia digitado a letra 'd'. Enfim, eles conseguiram construir ent�o o n�cleo do sintetizador de voz (o Vox), sem o qual o sistema Dosvox n�o poderia ter sido posteriormente desenvolvido e aprimorado. � importante notar que o programa Vox ent�o criado era ainda bastante rudimentar, diante do que veio a se tornar o Dosvox alguns anos depois, muito embora j� fosse de extrema valia para os DVs que soubessem usar computador. 4. Difus�o do Dosvox para Al�m da Universidade Rapidamente, "[m]uitas outras pessoas cegas acabaram por ter not�cias do desenvolvimento desses programas no NCE, especialmente programadores do SERPRO e outros alunos cegos da UFRJ, e alguns vinham visitar Marcelo e conhecer o que estava sendo feito" [2]. Constatando o grande interesse de outras pessoas cegas sobre o projeto que desenvolviam, Ant�nio, Marcelo, bem como v�rias pessoas do NCE/UFRJ, perceberam enfim a real dimens�o do que haviam criado. Tornouse claro que as solu��es criadas para o leitor de telas deveriam ser divulgadas e repassadas para outros usu�rios com defici�ncia visual, pois elas poderiam melhorar a produtividade e a qualidade de vida de in�meras pessoas cegas, em suas atividades de estudo, trabalho e entretenimento. Estando em um meio acad�mico surgiu logo a id�ia de cria��o de um curso sobre tais ferramentas computacionais. Os alunos deste curso poderiam posteriormente tornar se n�o apenas usu�rios do Dosvox, mas tamb�m futuros instrutores e divulgadores do projeto que estavam desenvolvendo. A implementa��o de tal id�ia, no entanto, n�o se revelava t�o simples. Como fabricar o circuito sintetizador se n�o tinham recursos financeiros para tal? Outro problema era em rela��o � inicializa��o do computador por uma pessoa cega, que pudesse ser realizada de forma independente da ajuda de uma pessoa normovisual. Havia d�vidas tamb�m quanto � possibilidade do usu�rio DV, sem conhecimentos de inform�tica, ligar o computador, esperar pelo tradicional boot, e ent�o usar os comandos do sistema DOS, que n�o s�o triviais para pessoas leigas. Em rela��o ao problema de replica��o do circuito, Ant�nio resolveu da seguinte forma: "comprou o material suficiente para fabricar 20 unidades do circuito, foi � empresa de uma pessoa amiga e conseguiu que fosse fabricado um circuito impresso em quantidade pequena, conseguiu a doa��o de uma outra empresa (LayCab) de pequenas caixas que eram usada para outra finalidade (micromodem) mas cujo tamanho era similar ao do circuito, e pagou a um t�cnico para
montar. A id�ia foi que os alunos que fizessem o curso poderiam comprar, pelo valor de custo, este hardware, ressarcindo assim Ant�nio pelo gasto" [2]. O problema mais s�rio, por�m, era o da intera��o do DV com o sistema operacional DOS. Era preciso desenvolver uma interface operacional pela qual o usu�rio DV pudesse orientarse no menu e encontrar as fun��es e aplicativos mais usados, dispensandoo da intera��o direta (e penosa) com o DOS. Foi Ant�nio que desenvolveu as primeiras vers�es do sistema de interface com o usu�rio, que preenchesse tais requisitos, compondo o Gerenciador do Dosvox. Esse sistema, baseado em menus com mensagens gravadas, permitia a ativa��o dos programas a serem executados, bem como algumas fun��es de arquivamento, e permitia tamb�m economizar o uso de teclas: uma ou duas j� eram suficientes para acionar as opera��es mais comuns. Al�m disso, n�o havia necessidade de memoriza��o de todos os itens do menu e dos comandos, pois a tecla F1 ativava uma ajuda online "falada", de forma que o usu�rio DV poderia ouvir as op��es, sem ter que memoriz�las previamente, e as escolher usando algumas poucas teclas. Por exemplo, uma das op��es do Dosvox � a de editar um arquivo de texto, ent�o a ajuda online "fala em voz alta" as v�rias op��es, entre elas a de: "'E' para editar um arquivo de texto!", e o usu�rio cego poderia ent�o apertar a tecla 'E' para acionar a op��o e iniciar a edi��o de um texto. A �nica memoriza��o realmente necess�ria para o usu�rio DV era a da posi��o das letras e demais s�mbolos no teclado. Como isso j� � feito nos tradicionais cursos de datilografia, ent�o tal memoriza��o n�o representava nenhuma barreira intranspon�vel aos cegos. Conforme o Hist�rico do DOSVOX [2], a 1a vers�o cabia em 3 disquetes de 5 � polegadas (ainda n�o eram os de 3 � polegadas, que hoje tamb�m j� est�o obsoletos, pelo uso dos pendrives), e era composta pelos seguintes programas: � gerenciador do sistema (com os menus); � programa que ajudava a aprender e memorizar as posi��es das teclas; � editor de textos Edivox; � gerenciador de arquivos e discos; � programa impressor de textos; � op��o para digitar diretamente comandos do DOS. 5. Curso de Dosvox como Impulsionador de Modifica��es e de Novas Id�ias O primeiro curso de Dosvox foi finalmente ministrado em 1994, durando uma semana, sendo que na 1a turma estavam os alunos DVs da UFRJ, cinco no total, al�m de alguns conhecidos de Marcelo. Como lembram Marcelo e Ant�nio, um truque ensinado aos alunos DVs para que verificar se o computador estava ligado era o seguinte: os alunos cegos deveriam colocar a m�o perto do "ventiladorzinho", atr�s do gabinete, referindose ao funcionamento do "cooler". No curso, Marcelo
e Ant�nio observavam constantemente seus alunos, bem como suas habilidades e limita��es, durante a aprendizagem do Dosvox no uso do computador. Essa observa��o foi importante pois puderam verificar e descobrir o que poderia ser melhorado no sistema. E os resultados do curso foram animadores, por�m ficaram evidentes alguns problemas no sistema, que n�o eram simples de resolver. O mais grave deles era a dificuldade na audi��o de um texto "falado" em voz alta pelo computador atrav�s da pura soletra��o. Ou seja, se estivesse escrito a palavra 'soletra��o' na tela, cada letra de 'soletra��o' era lida uma de cada vez: 's', 'o', 'l', 'e', 't', 'r', 'a', 'c', 'a', 'o'. O que, evidentemente, n�o era a melhor solu��o, embora j� fosse melhor do que nada, permitindo a independ�ncia dos DVs no uso do computador, como mencionada acima. Por�m, na verdade, muito melhor seria se o programa fosse capaz de identificar que todas aquelas letras juntas formavam algumas s�labas e estas uma palavra s�, "lendoas" como uma palavra �nica, "soletra ��o", tudo junto! No entanto, naquela �poca, n�o estava dispon�vel no mercado nenhum sintetizador de voz para a l�ngua portuguesa, que pudesse ser utilizado pelo Dosvox. A solu��o encontrada por Ant�nio foi a seguinte: ele criou, "com base em um projeto de tradu��o fon�tica para portugu�s, desenvolvido alguns anos antes como projeto de fim de curso de alguns alunos de inform�tica, um programa tradutor, capaz de realizar a tradu��o de um texto em portugu�s para os fonemas correspondentes" [2]. Assim, a partir desses fonemas era poss�vel fazer o programa identificar as s�labas da palavra, faltando apenas gerar o som de cada s�laba de forma digitalizada. Essa gera��o foi feita gravando, atrav�s de um microfone, o som de todas as poss�veis s�labas da l�ngua portuguesa, que posteriormente eram tocadas em sequ�ncia, gerando ent�o a voz digitalizada. A qualidade sonora n�o era boa, mas j� era poss�vel comprender o que o computador "falava", desde que o usu�rio treinasse o ouvido previamente com a voz digital produzida. Como Ant�nio explica, "[e]sta s�ntese de voz apesar de ser limitada pela extrema simplicidade da t�cnica usada, � ainda hoje distribu�da junto com o Dosvox. � interessante notar que mesmo existindo nos dias de hoje excelentes sintetizadores comerciais para a l�ngua portuguesa que s�o compat�veis com o Dosvox, muitos usu�rios antigos ainda preferem a s�ntese original pela sua velocidade e aus�ncia da emo��o sint�tica exibida em produtos mais sofisticados" [2]. 6. Ampliando a Equipe de Desenvolvedores e Colaboradores: o "Multir�o VOX" Os usu�rios tiveram papel fundamental no aprimoramento do sistema. � medida que encontravam dificuldades ou tinham novas sugest�es, isso era relatado aos desenvolvedores do sistema, de modo que estes puderam gradualmente aperfei�oar o sistema, algo similar
ao que ocorre no desenvolvimento de software livre [6]. Uma das preocupa��es de Ant�nio "era [a de] que as pessoas se sentissem atra�das a usar o computador com voz. Parecia �bvia a necessidade de criar programas interessantes, em especial utilit�rios e jogos, que tornassem o Dosvox um sistema com "algo mais" do que um simples de edi��o de textos. Ant�nio convocou ent�o os seus alunos de computa��o gr�fica, colegas de Marcelo, a participarem de um "mutir�o vox", onde esses alunos se engajariam no desenvolvimento de outros aplicativos para o ambiente. Nesse mutir�o foram criadas as vers�es iniciais de alguns jogos e do programa Televox" [2]. A partir deste mutir�o inicial, professores e alunos do Curso de Inform�tica da UFRJ se empenharam bastante no projeto. Posteriormente, v�rios outros alunos se juntaram ao esfor�o de cria��o de programas para compor o Dosvox, que foi crescendo gradualmente, incorporando novos aplicativos e funcionalidades, at� se transformar no que � hoje: um sistema operacional complexo e extremamente rico em programas, aplicativos, utilit�rios e jogos (tanto jogos educacionais quanto puramente recreativos). Nas vers�es mais atuais, o Dosvox possui quase uma centena de programas. Assim, a partir da id�ia inicial de um simples editor/leitor de textos, passou a ser um sistema operacional completo, contando com in�meros aplicativos, tais como calculadora, agenda, utilit�rios de acesso � internet, jogos, chat, etc. Aqui entra par�grafo descrevendo o Dosvox hoje. 7. Distribuindo o Dosvox Cursos de Dosvox continuaram a ser oferecidos por Marcelo e Ant�nio, por alguns anos, e a procura pelo Dosvox cresceu gradativamente, fazendo com que usu�rios do Brasil inteiro entrassem em contato com eles, por telefone, manifestando interesse em adquirir c�pia do programa. Diante da demanda, chamaram um de seus alunos do curso, Luis C�ndido Pereira Castro (que era DV), para auxiliar na administra��o do projeto. Luiz C�ndido criou uma microempresa, respons�vel pela distribui��o e vendas do Dosvox, e ele se tornou o primeiro distribuidor do Dosvox em territ�rio nacional. Era "respons�vel pela replica��o em disquetes, empacotamento, distribui��o e suporte � implanta��o do Dosvox sem se esquecer do lado social do projeto" [2]. O programa era vendido com uma pequena margem de lucro, quase a pre�o de custo, mais para cobrir as despesas de produ��o de c�pias e distribui��o. Assim, em "setembro de 1994 j� haviam 200 pessoas na fila de espera pelo programa e 6 meses depois do lan�amento, o sistema j� contava com 500 usu�rios" [2]. Infelizmente, tr�s anos depois Luiz C�ndido faleceu. A cantora K�tia Garcia Oliveira, que
tamb�m era uma DV, assumiu o seu lugar na tarefa de distribui��o do Dosvox, realizando este trabalho at� 2002. A partir deste ano, com a internet e as placas de som se tornando acess�veis para boa parte das pessoas, o Dosvox passou a ser distribu�do via internet, atrav�s de download gratuito na p�gina do NCE/UFRJ. Com a necessidade de oferecimento de suporte aos usu�rios do Dosvox, criouse o CAEC � Centro de Apoio Educacional ao Cego, com uma pequena verba da universidade e com o apoio do NCE. O CAEC era "um centro de atendimento que se tornou um p�lo de dissemina��o de tecnologias de computa��o para cegos, oferecendo n�o apenas o suporte aos usu�rios Dosvox mas a todas as pessoas deficientes visuais que precisam de apoio" [2]. Atualmente, Ant�nio visita escolas do Brasil para apresentar e distribuir o Dosvox e v�rios outros programas de inclus�o digital de deficientes f�sicos, tais como o Ephig�nia e o Motrix, este �ltimo voltado para portadores de defici�ncias motoras graves, que permite que o computador seja controlado apenas por meio da voz [???]. 8. Conclus�o Neste artigo, examinamos a hist�ria do desenvolvimento de um sistema operacional voltado para pessoas portadoras de defici�ncia visual, o Dosvox. A partir da percep��o da situa��o prec�ria em que se encontravam os alunos deficientes visuais (DVs), em particular do aluno Marcelo Pimentel, professores e estudantes do Curso de Inform�tica do NCE/UFRJ, liderados pelo Prof. Ant�nio Borges, foram gradualmente elaborando e construindo um sistema operacional de computador pessoal para DVs, tomando como base o DOS. Primeiro criaram um sistema de feedback sonoro, ainda primitivo. Depois, desenvolveram o programa Vox, que permitia a soletra��o de letras, com os sons gravados de cada uma delas, acionada pelo teclado. A partir disso, puderam criar um sistema gerenciador, com menus de op��es "faladas", em que o DV navegava por algumas op��es, como as de abrir e editar um texto, salvar ou carregar um arquivo. Com o sucesso deste sistema inicial, montaram um curso de Dosvox para DVs, atrav�s do qual puderam perceber as falhas do sistema e aprimor�lo. A principal delas era a limita��o imposta pela soletra��o pura de um texto. Foi ent�o elaborado e constru�do um sistema de identifica��o de fonemas e s�labas das letras, de uma palavra qualquer, sistema este com o qual se conseguia � novamente com os sons gravados das s�labas do portugu�s � reproduzir sonoramente todas as s�labas e, com isso, o som de uma palavra qualquer, e da� de uma frase completa. Com esse grande avan�o e por meio do 'Multir�o Vox', v�rios professores e alunos puderam ent�o contribuir, desenvolvendo novos aplicativos para o sistema Dosvox: utilit�rios
como calculadora, agenda, acesso e navega��o na internet, jogos educativos e de entretenimento, chat, RPG, etc, compondo um rico conjunto de quase uma centenas de variados programas, voltados para as pessoas com defici�ncia visual. Como mostra bem esta hist�ria, toda a tecnologia � o resultado de um projeto e de seu gradativo desenrolar, normalmente envolvendo muitas pessoas, entre cientistas, engenheiros, projetistas, consumidores, pessoas leigas (deficientes visuais, por exemplo), todas elas contribuindo de diversas formas e em diferentes graus para a constru��o da tecnologia. Esta n�o � fruto de uma sequ�ncia l�gica, linear e imanente da ci�ncia ou da t�cnica, como se existissem fora da sociedade (de modo aut�nomo), nem de imperativos econ�micos ou sociais pr�determinados, pelo contr�rio, toda tecnologia � uma constru��o social, em que diferentes atores buscam gradualmente mobilizar e negociar recursos t�cnicos e sociais dispon�veis e, assim, montar a nova tecnologia, no caso visto aqui a do Dosvox. A �rea dos Estudos Sociais de Ci�ncia e Tecnologia (ESCT) examina tal processo e realiza an�lises hist�ricas desta natureza, fornecendo uma vis�o t�cnica e social integrada do desenvolvimento da tecnologia. Uma introdu��o � �rea [7] pode ser vista nos livros cl�ssicos de Donald MacKenzie [8] e Wiebe Bijker [9]. Para os interessados em aprofundar no tema de um ponto de vista pol�tico, � interessante ver os trabalhos de Roberto Dagnino [10] e Andrew Feenberg[11]. O desenvolvimento da tecnologia Dosvox, descrita neste artigo, ilustra de forma exemplar o processo de constru��o social de uma tecnologia que, de forma gradual e em zigzag, � paulatinamente bolada, elaborada e desenvolvida por v�rios atores sociais, compondo um rico mosaico hist�rico de contribui��es diversas, uma verdadeira "novela", por�m muito mais rica e interessante que as da televis�o. Al�m disso, tecnologias quando elaboradas com a finalidade de beneficiar as pessoas � de inclus�o digital, educacional, profissional e social, em suma, de valoriza��o humana �, podem produzir efeitos positivos surpreendentes. O projeto Dosvox � um exemplo claro disso, pois permite acesso de um cego ao computador, fazendo com que ele possa ter oportunidade similar a de uma pessoa com vis�o normal. O impacto positivo desta tecnologia na sociedade � ineg�vel, j� que contribuiu muito para impulsionar a inclus�o digital de DVs, uma vez que, quando criado em 1994, n�o existiam programas similares em l�ngua portuguesa. Uma conclus�o importante � sobre o grau da import�ncia do computador para um DV, pois � muito maior que para as pessoas normovisuais, o que vem causando uma verdadeira revolu��o entre
os cegos, como Joyce Fernanda nos revela: "Um computador � muito mais �til a uma pessoa que n�o enxerga que a uma pessoa que enxerga. Voc�, que est� lendo este texto agora, n�o precisa de um computador para ler um jornal, uma revista, o resumo da sua novela favorita, um romance, uma receita de bolo, escrever uma carta com privacidade para um amigo e, muitas das vezes, conversar. Provavelmente voc� tem seus jornais e seus livros longe do PC, e pode ler suas receitas na cozinha, perto dos utens�lios necess�rios. Provavelmente voc� nunca precisou ditar uma carta para algu�m, ou escrev�la em Braille e pedir para que algu�m escrevesse em tinta entre as linhas (...), ficando sem jeito de abrir seu cora��o para o destinat�rio, porque algu�m leria a carta, al�m dele. Fica dif�cil para explicar a voc�, caro leitor, o que isto significa para uma pessoa que nunca p�de desfrutar esses prazeres simples. Sei de cegos que choraram quando puderam acessar um jornal pela primeira vez e ler o que quisessem, sem depender da boavontade de algu�m, sendo eu mesma uma delas" [4]. Al�m disso, quando se trata de navega��o na internet, um mundo inteiro se abre para os DVs, como Joyce testemunha: "com a Internet e o Dosvox, eu pude muito mais que ler o que queria do jornal ou saber o que aconteceria na novela das oito. Eu pude conhecer pessoas e interagir com videntes e cegos, ampliando meu leque de amizades e de experi�ncias. (...) Pela primeira vez, um vidente p�de conversar comigo sem prestar aten��o mais � deformidade dos meus olhos que a mim; pela primeira vez, o fato de eu ser cega n�o era respons�vel umbilical pela sua aproxima��o; pela primeira vez, eu podia ter a certeza de que as minhas id�ias valiam mais que a minha apar�ncia. Partilhar experi�ncias, sair do meu casulinho, descobrir que cada pessoa era um mundo e que o tratamento ao cego variava de regi�o para regi�o, s� n�o foi mais m�gico que a possibilidade de fazer amizades s�lidas e duradouras atrav�s destas ferramentas t�o �teis" [4]. Sem d�vida, a tecnologia Dosvox n�o apenas melhorou a qualidade de vida dos DVs em termos de amplia��o de suas capacidades, mas tamb�m aumentou a sua autoestima. Em suma, o projeto Dosvox ajudou a abrir as portas para que o DV, antes aprisionado em suas limita��es impostas por doen�as oculares, pudesse desenvolver e expressar suas id�ias, talentos e potencialidades, realizando suas aspira��es tal como pessoas normovisuais s�o capazes de fazer. � mister fazer duas observa��es finais. Primeira: seria interessante aprofundar o exame desta hist�ria, j� que foi baseada quase que exclusivamente no "Hist�rico do DOSVOX" [2], quem sabe entrevistando alguns de seus personagens centrais, por exemplo, para compreender com mais detalhes a sua cria��o e evolu��o. Segunda: � importante chamar a aten��o para a forma como foi
criada a tecnologia Dosvox, uma tecnologia aberta, livre e includente, sendo desenvolvida com a contribui��o de uma comunidade de programadores, professores, alunos e DVs. Tecnologias fechadas podem por vezes at� beneficiar muitas pessoas, mas em geral elas acabam sendo caras e restritas somente aos que podem pagar, transformandose em tecnologias excludentes [12]. Refer�ncias [1] Dagnino, Renato (org.) (2009) "Tecnologia Social � ferramenta para construir outra sociedade", Editado pela Companhia de Comunica��o, Bras�lia/DF, Brasil. Vers�o online dispon�vel em: http://www.ige.unicamp.br/gapi/old/GAPI Tecnologia Social ferramenta para construir outra sociedade.pdf [2] Site do Dosvox: http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/historico.htm [3] Oliveira, L�via C. P. (2007) " Trajet�rias Escolares de Pessoas com Defici�ncia Visual: da Educa��o B�sica ao Ensino Superior", Disserta��o de Mestrado, PUCCampinas, SP, defendida em novembro de 2007. http://www.bibliotecadigital.puccampinas.edu.br/tde_arquivos/3/TDE 20080214T144028Z1384/Publico/Livia Cristiane Pereira Oliveira.pdf [4] Site pessoal de Joyce Fernanda, "O Sistema Dosvox e a revolu��o por ele causada entre os cegos", http://amacrj.org.br/~jobis/dosvox.htm [5] MEC Portaria No 3.284, http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/portaria3284.pdf [6] Alkmim, G. P. & Monserrat N., J. (2009) "Software Livre: O que � isso?", In: SBC Horizontes � Revista eletr�nica sobre carreira em computa��o da SBC, Edi��o de Abril. https://www.sbc.org.br/horizontes/edicoes/v02n01/v02n0133.pdf [7] Wikip�dia � Defini��es de SST e SCOT: http://en.wikipedia.org/wiki/Social_Shaping_of_Technology (SST) http://en.wikipedia.org/wiki/Social_construction_of_technology (SCOT) [8] Mackenzie, D. & Wajcman, J. (eds.) (1985) "The Social Shaping of Technology", Edited by Open University Press, USA. [9] Bijker, W., Hughes, T. & Pinch, T. (1987) "The Social Construction of Technological Systems, Edited by MIT Press, USA. [10] Dagnino, Renato (2008) "Neutralidade da Ci�ncia e Determinismo Tecnol�gico", Editora da Unicamp, Campinas, SP. [11] Feenberg, Andrew (2002) "Transforming Technology � a critical theory revisited", Edited by Oxford University Press, New York, USA. [12] Monserrat N., J. (2008) "Economia da Exclus�o vs. Economia da Inclus�o", In: V Encontro LatinoAmericanos de Cooperativismo, FUNDACE/ USP, 6, 7 e 8 de agosto de 2008, Ribeir�o Preto, Trabalho apresentado oralmente. http://www.fundace.org.br/cooperativismo/arquivos_pesquisa_ica_la_2008/078monserrat .pdf