A construção do saber histórico PRIMEIRO ANO 2019 1 Nossa história: uma leitura do passado Durante todo o século XIX, a História priorizou o estudo de fatos e feitos de “pessoas notáveis”. Por meio desse estudo, os historiadores apontavam como as nações da Europa nasceram e/ou se consolidaram. Os estudiosos desse período apoiavam-se principalmente em documentos oficiais escritos, que eram considerados a única e verdadeira versão dos acontecimentos. No século seguinte, pesquisas históricas ampliaram o debate, e novos olhares sobre a construção do saber histórico conquistaram espaço. As pesquisas passaram a abranger toda atividade humana. Em algumas décadas, estudar História deixou de significar a memorização de datas, de “fatos importantes” e de “personagens ilustres”. Dessa forma, a seleção de temas, períodos e objetos de pesquisa histórica passou a ser feita com base em preocupações e anseios da época em que cada historiador se encontra. Com essas mudanças, a História passou a ser um conhecimento dinâmico: o passado inclui tudo o que já aconteceu, sem possibilidade de modificação, mas as formas de olhar para o passado mudam conforme muda o presente. O que sabemos, por exemplo, sobre os antigos gregos continua a ser constantemente atualizado, e opiniões e afirmações são modificadas de acordo com as escolhas temáticas de cada historiador. Isso possibilita novas descobertas, pesquisas e abordagens. Contudo, exige-se o cuidado de não reduzir outros lugares e outras épocas à nossa visão de mundo. Ao buscar entender o passado, é necessário considerar o ponto de vista, os valores e os conceitos de quem viveu em determinada época, e não os nossos. Isso vale tanto para os historiadores como para você que estuda História na escola. Nesse processo para compreender o passado, é preciso levar em conta, ainda, que historiadores são indivíduos diferentes uns dos outros no que se refere a origem, formação cultural, classe social e religião. Portanto, suas interpretações da História também podem ser diferentes, embora muitas de suas preocupações (problemas ambientais ou desigualdades sociais, por exemplo) possam ser comuns. 2 Fonte histórica ou documento histórico O que distingue o conhecimento histórico de outras formas de conhecimento sobre o passado (como o discurso religioso e o senso comum) é a forma como esse conhecimento é produzido. O conhecimento histórico é construído por meio do método histórico, que deve ser racional, seguir um raciocínio lógico e apresentar argumentos baseados em evidências. Essas evidências que sustentam os argumentos históricos são as fontes. Fonte histórica ou documento histórico é tudo aquilo que de algum modo está marcado pela presença humana. Além dos documentos escritos, as fontes históricas compreendem grande variedade de vestígios e evidências em objetos e materiais diversos. Da mesma forma que há uma pluralidade de pontos de vista sobre o passado, existem também muitas fontes de informações sobre esse passado. Essas fontes podem ser discursos orais ou escritos, monumentos, obras de arte, objetos cotidianos e até mesmo corpos preservados, esqueletos de pessoas de agrupamentos antigos ou o DNA. Portanto, para apreender as múltiplas “vozes” do passado, cabe ao historiador definir um enfoque sem deixar de considerar a existência de outros. No entanto, fontes históricas não falam por si e não desvendam a verdade absoluta do passado: é preciso que o historiador interrogue o contexto em que foram produzidas, identifique os grupos ou os valores que elas representam e de que maneira abordam e retratam diferentes grupos sociais. Essas perguntas são geradas pelos interesses do historiador e pelas questões da época em que ele se encontra. Por isso, diferentes perguntas revelarão diferentes aspectos de um mesmo documento ou levarão a outros. Além disso, novos documentos surgem a todo momento. Com o passar do tempo, registros que anteriormente não eram considerados documentos pelos historiadores (por exemplo, as relações étnicas registradas no código genético
humano) passam a ser aproveitados como evidência histórica, levando pesquisadores a reescrever e reinterpretar o passado.
O trabalho do historiador com as fontes históricas Como vimos, as fontes históricas não são a História em si, elas não expõem diretamente o passado. Entre o passado e o historiador há uma série de “filtros”: a própria preservação de uma fonte pode ser considerada um desses filtros. O primeiro passo do trabalho do historiador é realizar o levantamento dos documentos que pretende analisar. No entanto, às vezes não é possível obter determinados documentos, pois eles podem ter sido extraviados, danificados em desastres e fenômenos naturais, como incêndios, enchentes, umidade e temperaturas inadequadas; deteriorados por insetos e/ou microrganismos; danificados pela ação humana, como rasuras, uso de material inadequado, grampos ou clipes (no caso de documentos escritos), destruição de documentos considerados irrelevantes ou mesmo para ocultação de acontecimentos. Além disso, essa seleção de fontes históricas é conduzida de acordo com o tema, o interesse e outras variáveis adotadas pelo pesquisador. Assim, diferentes historiadores utilizarão diferentes fontes, o que implicará reflexões e resultados também diversos. O modo pelo qual um historiador aproveita as informações dos documentos também não é sempre o mesmo, e isso constitui mais um filtro entre ele e o passado. Com todas essas variáveis, fica evidente que os documentos não nos permitem “ver”, mas sim “ler” o passado. O historiador faz uma leitura do passado, e leitura significa a produção de uma interpretação específica. Portanto, pesquisadores e estudantes, ao analisarem o passado, não podem deixar de considerar que tudo o que lhes chega é apenas uma das versões possíveis de uma época e de um lugar. E eles próprios, em suas reflexões e análises, também produzirão uma das versões possíveis nesse trabalho dinâmico de interpretar a História. Tomemos um exemplo interessante: a Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, dom Manuel. Esse documento – que descreve a terra, os habitantes, a fauna e a flora do Brasil quando da chegada da esquadra de Cabral ao território brasileiro – ficou esquecido por três séculos em um arquivo português, até ser recuperado e assim: publicado no final do século XIX por historiadores brasileiros interessados em construir uma narrativa que valorizasse o nascimento da nação brasileira. Nessa interpretação, destacavam-se a exuberância da natureza e os aspectos que consideravam “exóticos” dos povos indígenas. Assim, a carta de Caminha foi tida como uma espécie de “certidão de nascimento” do Brasil pelos historiadores da época, que consideravam que o Brasil “surgiu” com a chegada dos portugueses. O documento foi submetido a análises mais críticas apenas no século XX. Avaliando, entre outros aspectos, a maneira como os navegantes europeus descreveram as populações indígenas que encontraram, os historiadores passaram a considerar a carta de Caminha uma importante fonte a respeito da mentalidade desses europeus – que julgavam o que viram na América pelo olhar do conquistador. A relação presente-passado A relação presente-passado exige cuidados: é preciso sempre distinguir o tempo estudado do tempo em que o historiador está inserido. Por exemplo, cometemos equívoco histórico, denominado anacronismo, se julgamos eventos do passado, de outras culturas, regidas por outras regras morais, com base na cultura e nos valores de nossa sociedade. Em outras palavras, entre o atual e o antigo sempre se impõem cuidado, reflexões e relativizações, mas nunca censura ou juízos de valor. A moralidade, as práticas e as crenças funcionam de formas diferentes em culturas diferentes; por isso não é possível julgar uma cultura de acordo com os pontos de vista de outra cultura. Essa ideia de relativismo cultural nos foi legada pela Antropologia. O antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) dizia: “A humanidade é uma. As civilizações, muitas”. Dessa forma, nenhuma cultura pode medir a qualidade das outras com base em sua própria cultura, pois cada uma tem um sistema de valores próprio que não pode ser comparado ao das outras. 3 Leituras do tempo
A História é o estudo das ações humanas ao longo do tempo e em determinados espaços geográficos. As diferentes formas de organização, constituição e ocupação do espaço fazem parte do campo de estudo da Geografia, uma das ciências com a qual os estudos historiográficos dialogam. Mas como definir o tempo? Há muitas maneiras de explicar e sentir a passagem do tempo. Todos nós convivemos com fenômenos temporais: dia, noite, estações do ano, crescimento, envelhecimento. Várias civilizações estabeleceram divisões do tempo que adotaram a observação dos ciclos da natureza como base: o movimento da Terra, do Sol e da Lua. Além da Lua e do Sol, o calendário maia, por exemplo, baseava-se na observação do planeta Vênus. Muitos calendários surgiram da análise dos astros, por sua influência sobre as plantações e a necessidade de definir os tempos de plantio, poda e colheita. Uma volta do planeta Terra em torno de seu eixo (rotação) foi interpretada por diversas culturas como um dia, que foi dividido em 24 partes iguais, chamadas de horas, por sua vez também subdivididas, e assim por diante. Decidiu-se que o dia não começa ao nascer do sol, mas aproximadamente seis horas depois que ele desaparece no horizonte. Outras civilizações consideravam que o dia só começava logo que o sol aparecia. No século VIII a.C., na Babilônia, os astrônomos definiam o início do dia quando o sol estava a pino, em seu ponto mais alto no céu. A semana de sete dias pode ter surgido de acordo com as fases da Lua. Essas diferentes formas de dividir o tempo correspondem ao tempo físico ou cronológico. Cada civilização tem uma leitura particular do tempo, que pode ser a melhor, a mais adequada ou a mais confortável para seu próprio povo. Embora seja fundamental para a compreensão da História, o tempo cronológico não é seu objeto de estudo, mas sim o tempo histórico, ou seja, os períodos da existência humana em que ocorrem eventos que fazem parte de estruturas e contextos mais amplos, como a economia ou a política. Os calendários Existiram na História diferentes tipos de calendário: solares (como o cristão); lunares (como o islâmico ou muçulmano); e lunissolares, em que os anos seguem o movimento da Terra ao redor do Sol e os meses acompanham o movimento da Lua em torno da Terra (como o calendário hebreu). Entre os gregos, romanos e maias, observa-se o predomínio da ideia de um tempo cíclico (em função dos ritmos naturais e da cosmologia, como já vimos). Dessa forma, os povos antigos acreditavam que o tempo era circular e que os fenômenos se repetiam. Assim, não haveria um momento inicial de criação do Universo, ideia difundida pela tradição judaico-cristã. A concepção de um tempo linear, não cíclico, marcado por acontecimentos únicos, era uma característica dos hebreus e dos persas zoroastristas que acabou sendo adotada também pelos cristãos. O nascimento de Cristo e o fim do mundo (apocalipse) são exemplos de demarcações do tempo que não poderiam se repetir. A Pedra do Calendário ou Pedra do Sol é uma gigantesca escultura asteca descoberta em 1790 na praça central da Cidade do México. Pesando 24 toneladas e medindo quase 4 metros de diâmetro, esse baixo-relevo foi interpretado como a representação da divisão do tempo para os astecas. A figura central simboliza um deus Sol em torno do qual estão representados os vinte dias do calendário sagrado, denominados vintenas. No total, seriam dezoito meses, e ao final do calendário haveria mais cinco dias reservados à meditação. Há outra hipótese sobre sua função original: seria um altar de sacrifícios humanos ao deus Sol, com uma representação da divisão asteca do tempo. Divisão de tempo e poder No processo de expansão de um povo, sua forma de compreender, dividir e periodizar o tempo também é transmitida a outros povos. Para que ocorra essa transmissão, entretanto, não basta que exista determinada marcação do tempo: é preciso que ela esteja ligada aos indivíduos ou grupos sociais que detêm o poder, tanto no âmbito econômico e político como no religioso, e que esse poder perdure. O calendário gregoriano, por exemplo, foi adotado pelos povos europeus, que expandiram seu poder econômico e político por todo o globo, e tornou-se referência para vários outros povos. Os líderes chineses, por exemplo, adotaram o calendário gregoriano em 1912, por causa das relações comerciais com o Ocidente. No entanto, entre a população chinesa, continua valendo seu calendário tradicional, usado há mais de 5 mil anos.
Outro exemplo de uso político da marcação do tempo foi a criação de um calendário pelos revolucionários franceses, no final do século XVIII, para demarcar o início de uma nova era com a Revolução Francesa. No entanto, ele deixou de ser adotado quando o grupo que o criou foi expulso do poder. O historiador francês Jacques Le Goff afirma que o calendário pode ser entendido como um recurso de controle do tempo, geralmente por parte dos poderosos. A utilização do calendário gregoriano no continente americano resulta de um processo que teve início na conquista da América pelos europeus. Eles dominaram os povos nativos e suas culturas e escravizaram diferentes povos africanos, que foram transportados para a América