Público • Sexta-feira 4 Dezembro 2009 • 39
Classificar a aprovação de qualquer proposta da oposição como “coligação negativa” é uma caricatura da realidade
O triunfo da “novilíngua” de um Governo sem maioria
José Manuel Fernandes Extremo ocidental
U
ma das formas mais eficazes de condicionar o debate político é colocá-lo em termos que tornam difícil pensar. Para tal é essencial reduzir ao mínimo os termos utilizados e, sobretudo, repetir a propósito e a despropósito frases ou expressões com conotações positivas ou negativas. Estando-se distraído é fácil tomar o verdadeiro por falso ou o falso por verdadeiro, dependendo apenas da convicção colocada no discurso político. A última semana tem sido dominada por uma dessas expressões redutoras, utilizada a propósito e a despropósito: “coligação negativa”. Não há intervenção de membro do Governo ou do primeiro-ministro que não alerte para o risco de uma “coligação negativa” paralisar o país. Ou de aumentar o défice. Ou de impedir o Governo de cumprir o seu programa. Se o objectivo político é claro – o PS e o Governo querem criar a ideia de que, se existir uma crise governativa, ela será da exclusiva responsabilidade da oposição –, a fórmula é sinuosa e obriga a distorcer a realidade. Um bom exemplo disso foi a aprovação de uma proposta do CDS que suspendeu, mas não anulou, a entrada em vigor do Código Contributivo. Primeira perplexidade: como se pode chamar “coligação negativa” ao facto de a oposição ter aprovado uma proposta? Reparem: aprovado, não chumbado. A aprovação é feita pela positiva, não pela negativa. Sendo assim, como foi possível que essa votação fosse apresentada, mesmo pelos jornalistas, como resultando de uma “coligação negativa”? Segunda perplexidade: todos os deputados do Parlamento foram eleitos (em teoria...) com base num programa eleitoral; e todos os deputados da oposição foram eleitos por partidos que votaram contra, no Verão passado, o novo Código Contributivo, tendo prometido revê-lo. Sendo assim, não é natural, até exigível, que cumpram o que prometeram? Terceira perplexidade: não existindo maioria na Assembleia, o Governo tem de negociar com as oposições para conseguir equilíbrios entre os respectivos compromissos eleitorais. Quando tem sucesso, como sucedeu com a avaliação de professores, critica-se o partido da oposição que negoceia; quando, pelo contrário, o Governo vê ser aprovada uma proposta por toda a oposição, então lá vem a “coligação negativa”. É absurdo, mas é o discurso dominante. Quarta perplexidade: no momento em que, ao suspender o Código Contributivo, a Assembleia impediu que as contribuições de trabalhadores e empresas aumentassem ainda mais em 2010, o primeiro-ministro veio queixar-se do aumento das despesas. Não, não houve qualquer aumento das despesas perigoso para a “consolidação orçamental”, impediu-se sim que os portugueses ficassem ainda mais sobrecarregados em nome das ineficiências do Estado.
O
s termos em que este debate decorreu – e outros têm decorrido desde então – mostram como se pode distorcer a realidade a partir da introdução de conceitos redutores e fórmulas distorcidas que, repetidos até à exaustão, não só impedem que se discuta o essencial (neste caso, os reais efeitos da entrada em vigor desse Código) como permitem que se diga ser branca uma parede preta e ninguém proteste. Este tipo de mecanismos castradores do pensamento foi magistralmente descrito por George Orwell no seu famoso 1984. Expressões como a tão repetida “coligação negativa” encaixariam na perfeição na “novilíngua” do seu mundo imaginário e totalitário com o objectivo de reduzir o vocabulário e, por essa via, diminuir a capacidade de pensar fora dos estreitos limites impostos pelo “Partido”. A “novilíngua” era de resto uma das bases de outro conceito de Orwell, o de “duplo pensamento”, isto é,
DANIEL ROCHA
a capacidade de utilizar as palavras de formas totalmente opostas conforme os interesses do momento. Se na obra-prima de Orwell Guerra é Paz e Liberdade é Escravidão, na “novilíngua” e no “duplo pensamento” vigentes aprovar é igual a rejeitar, positivo é igual a negativo e receita é igual a despesa. É assim possível que se diga, com ar convicto, que as políticas de combate ao desemprego resultaram no dia em que se soube ter este atingido 10,2 por cento. Que se tenha acrescentado que tivemos “um terceiro trimestre que regista um dos maiores crescimentos da Europa” quando ele foi de apenas 0,9 por cento, a comparação anual é negativa e todas as previsões apontam para um futuro de crescimento anémico. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas o ponto essencial é sempre o mesmo: a melhor forma de condicionar o debate político é limitar os seus termos ainda antes de ele começar, não saindo de meia dúzia de ideias-chave que se repetem à exaustão. Foi assim que o Orçamento Rectificativo passou a chamar-se, em “novilíngua”, Orçamento “redistributivo”. Parece um detalhe, mas não é: redistribuir não tem uma conotação negativa, rectificar significa que antes se
Sem ser em “novilíngua”, “espionagem política” não é a mesma coisa que “violações do segredo de justiça”. Tal como uma mentira é uma mentira e não uma “falta à verdade”
cometeu um erro. Ora, por definição, onde vigora o “duplo pensamento”, o chefe nunca erra.
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o contrário do pesadelo orwelliano, a “novilíngua” para que tende o discurso governamental – mas não só: quase todo o discurso político e institucional já sofre do mesmo mal – pode ser contrariada se for questionada. Antes de mais procurando saber o que é essencial e o que é secundário em cada debate. Depois, contrariando a padronização do pensamento por via da regra base da inovação: obrigarmo-nos a pensar fora da norma, do hábito e da preguiça. Por fim, falando claro, como é normal em liberdade. Quanto ao resto é manter presença de espírito e ter algumas noções elementares do que não é a “novilíngua”. E, sem ser em “novilíngua”, “espionagem política” não é a mesma coisa que “violações do segredo de justiça”. Tal como se costuma chamar mentira à mentira e não apenas uma “falta à verdade”. Ou ainda que ter apanhado Sócrates nas escutas a Vara não é igual a ter o primeiro-ministro “sob escuta”. Se isso for feito será difícil escrever, como ontem escrevia a Lusa, que a hipótese de aprovação de um projecto do Bloco de Esquerda sobre combate à corrupção só ocorreria se houvesse “uma nova ‘coligação negativa’ da oposição”... Jornalista
Uma semana em http://twitter.com/jmf1957 a 03Dez09 – Recomendações FMI: Daniel Bessa defende, bem, congelamento salarial na Função Pública a 02Dez09 – Isto é o desnorte absoluto: PS suspeita que Ferreira Leite conheceu antecipadamente teor das escutas a Sócrates http://bit.ly/5PJep5 – Juiz António Fialho: nova lei Divórcio, “em vez de facilitar situações de resolução de conflito, está a aumentar possibilidades de conflito” a 01Dez09 – Obama: bem ao anunciar q vai tentar
ganhar guerra no Afeganistão, mal ao falar de esforço limitado no tempo. Aos talibãs bastará esperar... a 30Nov09 – Honduras: condenar o chamado “golpe de Estado” ordenado pelo Supremo Tribunal é hipócrita e irrelevante. Entretanto já houve eleições livres – Devo ter escrito 1º artigo sbr alterações climáticas num jornal português (em 1981) mas ñ entendo pq maioria ignora “climategate” a 03Dez09 – Sobre o referendo suíço, que tal ler: “Reflections on the Revolution in
Europe: Immigration, Islam and the West”, de Christopher Caldwell – Ligam a “luzinha” e passam por todo o lado a alta velocidade, como se o resto não existisse. Às vezes acaba mal http://bit.ly/6uxPkF a 03Dez09 – Mais A.Barreto: Podemos estar à beira uma crise institucional? Com a justiça que temos, sim! Com a cultura dominante nos partidos, sim! a 03Dez09 – Grande dia dedicado à fotografia: Augusto Alves da Silva em Serralves e, sobretudo, Fernando Lemos na Cupertino de Miranda