(P-108)
O DESERTO DA MORTE Everton Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Morto-vivo! Os agentes da Divisão III na pista dos antis.
O Sistema Azul, um velho inimigo de Árcon e um novo inimigo da Terra, teve de aceitar a rendição incondicional, depois da destruição das usinas espaciais, que forneciam a energia para o enorme campo defensivo. Privados dessa proteção, os acônidas passarão a respeitar a paz pelo simples instinto de autoconservação. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Mas também não existe dúvida de que, face aos acontecimentos turbulentos dos últimos tempos, Perry Rhodan e seus homens — e também Atlan — não dispensaram a necessária atenção aos antis. Dessa forma os antis, que se dedicavam ao culto de Baalol, disseminado por toda a Galáxia, tiveram oportunidade de dar início à execução de seu terrificante plano. As terríveis conseqüências que suas ações trariam para a Humanidade e para outras inteligências galácticas não são conhecidas. Porém os agentes da Divisão III obtêm uma visão ligeira das mesmas quando penetram n’O Deserto da Morte...
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Personagens Principais: = = = = = = =
Dr. Armin Zuglert — Sofre uma terrível transformação, que faz rolar a avalanche dos acontecimentos... Major Kindsom — Comandante do cruzador de patrulhamento Flórida. Major Ron Landry — Cujo espírito é ameaçado pelo “fogo da verdade”. Roll — Um enigmático motorista de táxi. Coronel Nike Quinto — Sempre se queixando da pressão sangüínea... mas tem uma saúde de ferro! Gerard Lobson — Um homem que está preparado para tudo, desde que se encontre em estado liquitivo. Edmond Hugher — Um misterioso médico-biólogo.
I Gerard Lobson quis dizer alguma coisa. Mas quando viu a modificação que se realizava no homem à sua frente, calou-se, todo apavorado. Fazia uma hora que estava sentado ali, separado apenas pela escrivaninha estreita, sobrecarregada de papéis, do homem ao qual pretendia fazer uma proposta. Encontravase numa sala grande, mas abafada pois tinha uma única janela. Felizmente esta era suficientemente limpa para permitir que um pouco de claridade atingisse a escrivaninha. Fazia uma hora que estava sentado na cadeira pouco confortável, e, até então, não dissera outra coisa senão: “Olá, doutor, bom dia. Gostaria de fazer-lhe uma proposta.” Depois disso, o doutor tomara a palavra e — revelando atividade, agilidade e energia, que fizeram com que Gerard se sentisse tomado por um grande espanto — elucidara a proposta que nem chegara a ser formulada. E sem perder tempo, provara a Gerard que aquilo que este pretendia fazer, e sobre o que nem sequer chegara a falar, não era possível pela forma pretendida. Por algum tempo Gerard permaneceu calado, de tão perplexo que se sentiu. E agora, que o doutor finalmente fazia uma pausa, aconteceu aquilo... Quando vira o Dr. Zuglert pela primeira vez, acreditara que se tratasse de um homem de pouco mais de quarenta anos. Tinha o aspecto de uma pessoa que costuma praticar esporte por passatempo. Seu rosto era sadio e não apresentava rugas. E agora? Gerard teve a impressão de que alguém sugava tudo que o crânio de Zuglert continha. A pele do rosto encolheu-se, como se tivesse de preencher o vácuo. Os ossos dos maxilares tornaram-se salientes, e de repente uma terrível caveira sorria para Gerard. A pele deteriorava-se a olhos vistos. O moreno sadio e robusto transformou-se num amarelo repugnante. O queixo ficou caído, e Gerard viu uma fileira de dentes encardidos. Minutos antes, ainda admirara os dentes bem tratados de Zuglert. Gerard levantou-se de um salto. De repente teve medo do homem que se mantinha imóvel do outro lado da escrivaninha, e o fitava com os olhos vidrados. Afastou-se da mesa e dirigiu-se à outra extremidade da sala. Apavorado, notou que ali não haveria salvação para ele. Só havia uma janela, e a sala ficava no vigésimo-terceiro andar de um antigo edifício. Apesar disso, Gerard continuou a retirar-se. Poderia abrir a janela e gritar, pedindo socorro. Era possível que alguém o ouvisse. Gerard virou-se, segurou a maçaneta da janela e começou a girá-la. Nesse instante, Zuglert começou a falar: — Não tenha medo, meu jovem — disse com uma voz apagada, que provocou o assobio típico de um tuberculoso e foi acompanhada por um acesso de tosse. Assim que o acesso passou, prosseguiu: — Preciso do seu auxílio, Mr. Lobson. Será que o senhor poderia ajudar-me a levantar? Gerard soltou um suspiro de alívio. Nem sequer conseguia levantar-se só. Queria fazer com que ele, Gerard, o ajudasse a pôr-se de pé, para depois enlaçar seu pescoço com as mãos. Gerard viu a porta às costas de Zuglert. Se conseguisse chegar lá, estaria livre do perigo.
Zuglert voltou a falar, o que lhe custava um esforço enorme, pois as palavras saíam hesitantes. Muitas vezes uma tosse seca e ofegante interrompia sua fala. — ...importante para a Terra, jovem... — entendeu Gerard. — Todos devem ser prevenidos... Meu exemplo prova... Zuglert disse mais que isso, mas Gerard não lhe deu atenção. Acenando com a cabeça, deslocou-se em direção à escrivaninha. Deu uma expressão amável ao rosto, para que Zuglert acreditasse que pretendia ir em seu auxílio. — ...solução alcoólica de que ninguém desconfia... — ouviu Gerard. Naquele instante aproximava-se da escrivaninha. Com um enorme salto contornou-a. Antes que Zuglert compreendesse suas intenções, segurava a maçaneta da porta e girava-a. A porta abriu-se imediatamente. Saiu correndo, mas não se esqueceu de segurar a porta com a mão direita e puxá-la. A porta fechou-se ruidosamente. Gerard viu-se no corredor de um velho edifício de escritórios. De ambos os lados havia portas. Estavam todas fechadas. Ninguém ouvira o que se passara na pequena sala ocupada pelo Dr. Zuglert. Gerard refletiu sobre se convinha falar a alguém sobre a súbita alteração ocorrida com Zuglert. Lembrou-se de que, por alguma maneira misteriosa, o doutor ficara sabendo qual era a sugestão que ele, Gerard, pretendia formular, motivo por que afastou a idéia. Zuglert acabaria contando isso a uma terceira pessoa que viesse ajudar, e era o que menos convinha a Gerard. Não; devia deixar Zuglert entregue a si mesmo. Gerard caminhou pelo corredor, até chegar ao poço do elevador antigravitacional. Deixou-se cair e suspirou, aliviado. Teve a impressão de ter escapado de um grande perigo. Mas sabia que jamais conseguiria esquecer o rosto amarelo-cinzento de uma caveira. *** A Flórida veio do centro da Galáxia. O Major Kindsom, comandante do cruzador de patrulhamento, sabia que depois de a nave ter realizado certo número de transições, ao percorrer o caminho de volta, esperavam que fornecesse à Terra um ligeiro relato, pelo telecomunicador direcional, sobre as atividades que desenvolvera no centro da Via Láctea. Dick Kindsom elaborara o relatório e mandara confeccionar a matriz codificada para a transmissão. Empurrou-a para dentro do transmissor e comprimiu a tecla que acionava o aparelho. Ouviu-se um ligeiro clique. Kindsom sabia que, a nove mil anosluz dali, os aparelhos receptores da Terra começariam a funcionar. Captariam a transmissão, que tinha uma duração total de três milésimos de segundo, e a estenderiam, desdobrariam, interpretariam e voltariam a reuni-la. Depois disso, o conversor expeliria um microfilme que, projetado por um aparelho adequado, revelaria aos olhos das pessoas habilitadas, por meio de letras comuns, tudo aquilo que Dick Kindsom dissera em cerca de mil palavras. Era só. O relatório de Dick anunciava que a abertura do misterioso campo energético do Sistema Azul, produzida pelas frotas unidas da Terra e de Árcon, voltara a fechar-se. Concluía-se que os acônidas voltaram a colocar sua fortaleza em estado de defesa, embora soubessem que o campo defensivo azul seria impotente, face às naves de propulsão linear da Terra.
Uma vez cumprida pontualmente esta operação realizada por Dick Kindsom, logo depois, preparou sua nave para a transição seguinte. Estava a ponto de desencadear o hipersalto, que aproximaria a nave mais alguns anos-luz da Terra, quando o receptor de telecomunicação expediu um sinal de advertência. Dick comprimiu um botão que anulou os comandos positrônicos, os quais haviam sido transmitidos ao sistema de pilotagem automática da Flórida, e ligou o receptor. Uma luz vermelha iluminou-se na tela do aparelho e uma voz mecânica disse: — Firing II chamando cruzador Flórida. Tenho uma mensagem TTT de Firing II para o cruzador Flórida. Favor responder. Dick não perdeu tempo. TTT era o código indicador de mensagem superurgente. Não podia imaginar quem seria a pessoa que se encontrava num mundo abandonado como Firing II e que tivesse tamanha urgência de falar com ele. Entretanto concordou em receber o comunicado. — Transmita a mensagem — ordenou ao autômato. — Aqui fala o Major Kindsom, comandante da Flórida. O grande sinal luminoso desapareceu. A tela começou a tremeluzir, e um rosto surgiu. A visão fez com que Dick recuasse, apavorado. Santo Deus! A cabeça parecia de uma múmia, de uma caveira em torno da qual alguém tivesse esticado uma pele rugosa. Os lábios estreitos da caveira abriram-se, e a múmia começou a falar. Teve de fazer um grande esforço. Levava cinco segundos para pronunciar uma palavra, e sua fala era acompanhada de um estertor ofegante. — Peço a quem quer que me ouça para me ajudar! — disse a múmia. — Encontrome numa tremenda dificuldade. Sou o doutor Armin Zuglert. Resido em Zanithon, situada em Lepso. Ajude-me, eu lhe imploro. Dick voltou a aproximar-se da tela. Com um gesto seguro, pegou o microfone, sem olhá-lo, e falou: — O que podemos fazer pelo senhor, Zuglert? Aqui fala o cruzador Flórida. Qual o tipo de dificuldade que o envolveu? Sentiu-se impaciente. Achou que Zuglert, que aparentemente estava próximo ao esgotamento total, demorou a responder. — Há doze... — principiou Zuglert. Depois disso, a comunicação foi interrompida. A tela voltou a tornar-se cinzenta, e o zumbido do receptor cessou. Dick Kindsom assustou-se. “Que idiota!”, pensou. “De tão fraco que se sente, certamente encostou o braço a uma tecla e acabou desligando o aparelho. Bem que poderia ter mais cuidado, ainda mais que sua vida está em jogo.” Dick chamou o robô de comunicação. O sinal vermelho voltou a surgir na tela. — Minha comunicação TTT com Firing II foi interrompida — queixou-se Dick. — Restabeleça o contato. — Com que aparelho o senhor falou, sir? — perguntou a voz mecânica. — Não sei — gritou Dick, em tom furioso. — O nome da pessoa que falou comigo é Armin Zuglert. Caramba! O senhor deve ser capaz de verificar nos seus registros qual é a procedência de uma mensagem TTT!? — Naturalmente, sir. Peço alguns segundos de paciência. Dick aguardou. Depois de algum tempo, a voz voltou a falar: — A mensagem veio de um dos aparelhos da missão comercial terrana de Firing II, sir. Quer que a comunicação seja restabelecida? — É claro que sim.
Dali a alguns segundos o rosto sério, um homem não muito jovem, surgiu na tela. Este lançou um olhar indagador para Dick. — Sou o Inspetor Neary, da missão comercial terrana em Firing II — disse. — O que posso fazer pelo senhor? Dick não se deu ao trabalho de apresentar-se. — Onde está Zuglert? — perguntou em tom exaltado. O inspetor fitou-o com um ar de perplexidade. — Onde está quem? — Zuglert — repetiu Dick, em tom impaciente. — O doutor Armin Zuglert, que falou comigo há trinta segundos, por esse aparelho. Via-se que a palestra não era do agrado do Inspetor Neary. — Escute aí, rapaz — principiou. — Além de iniciar a palestra sem dizer bom-dia e sem apresentar-se, o senhor me vem com tolices. Receio que, quando seus superiores... — Não me venha com essa história de superiores — gritou Dick, aborrecido. — Aqui fala o Major Kindsom, comandante da Flórida. Há pouco o Dr. Zuglert me transmitiu uma mensagem TTT, e o sistema de comunicação afirma que o chamado foi feito desse aparelho. Zuglert estava exausto. Transmitiu-me um pedido de socorro. A comunicação foi interrompida. Traga o Dr. Zuglert para junto do aparelho. Neary resignou-se ao inevitável. Como simples inspetor não se permitiu exprimir sua contrariedade perante um major. Mas fez pé firme na afirmativa de que Zuglert não usara seu aparelho. Ainda disse que, na missão comercial terrana, nunca fora visto um homem que correspondesse à descrição fornecida por Dick. — Nunca ouvi esse nome, major — concluiu. — Quase estou inclinado a acreditar que o senhor foi vítima de uma mistificação. Dick percebeu que não conseguiria nada. Interrompeu a comunicação e voltou a chamar o robô. Este voltou a afirmar que o chamado TTT viera da missão terrana. Dick sabia que seria inútil voltar a chamar Neary. Ficou refletindo por algum tempo sobre se ele mesmo deveria tomar alguma providência em relação ao caso Zuglert. Chegou à conclusão de que sua tarefa mais urgente consistia em levar a Flórida de volta à Terra, onde aguardaria novas ordens. Por isso fez uma ligação urgente em código com uma das unidades da frota terrana, estacionada nas proximidades, e apresentou um relato minucioso do incidente. Pediu ao comandante da nave capitania que fizesse o possível para ajudar Zuglert. Só depois disso prosseguiu na atividade em que fora interrompido pelo misterioso chamado. Preparou a transição e programou os dados que se tornavam necessários, introduzindo-os no dispositivo de pilotagem automática. Era uma operação que podia fazer até de olhos fechados. Seus pensamentos ficaram presos a Zuglert. Receava pela sua vida. Não conseguia desvencilhar-se da imagem que mostrava o rosto de múmia. O fato de a comunicação ter sido interrompida deixou-o bastante preocupado. Quando apresentasse seu relatório na Terra, não teria muita coisa a dizer. Naquele momento, ainda não sabia que o pouco que poderia dizer desencadearia, nos próximos dias e semanas, uma ação importante do governo do Império Solar. *** Geralmente se acreditava que os agentes especiais do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento levavam vida agradável. Tais agentes constituíam a reserva secreta da instituição. Eram convocados sempre que surgia algum problema, que não podia ser
resolvido com os meios normais. Entre uma convocação e outra, faziam o que mais lhes agradasse, desde que sua situação financeira o permitisse. A pessoa que não conhecesse as finalidades do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento, especialmente da Divisão III, à qual estavam submetidos os agentes especiais, poderia imaginar que todas as liberalidades de que os mesmos gozavam fora do tempo de serviço se justificavam face ao seu desempenho na execução das missões especiais. O simples mortal, que tivesse o direito de escolha, preferiria renunciar às férias dos próximos dez anos a aceitar a missão perigosa de um agente especial, cujo cumprimento lhe garantisse certa porção de tempo livre. Ao receber a ordem do Coronel Nike Quinto, de comparecer ao gabinete do mesmo, o agora Major Ron Landry não teve a menor dúvida de que nos próximos dias teria muito que fazer. Ron adquirira o hábito de liquidar as coisas desagradáveis o mais rápido possível. Meia hora depois de ter recebido a ordem, já encontrava-se à porta do gabinete de Nike Quinto. Ainda não estava bem preparado para as constantes queixas de Quinto, sempre se lamentando da pressão arterial e da incompetência dos subordinados. A porta abriu-se e Ron viu a gigantesca escrivaninha, sobre cuja borda apenas sobressaía o rosto rosado e suarento do coronel. Ron entrou e acomodou-se numa das poltronas colocadas à frente da escrivaninha. Nike Quinto gemia enquanto se movia. Depois de algum tempo os ombros também apareceram acima da escrivaninha. — O senhor sabe como vai minha saúde, Landry — principiou sem o menor intróito. — Por isso peço-lhe que fique quieto, preste atenção e não me contradiga. Minha pressão sangüínea chegou ao limite máximo. Se eu me aborrecer, provavelmente morrerei na hora. Assim era Nike Quinto, com sua voz aguda e suas lamentações incessantes a respeito de seu estado de saúde. Ron Landry sabia que, na verdade, o coronel era tremendamente saudável. — Sim, senhor — respondeu em tom obediente. Nike Quinto levantou-se. — Não fique dizendo “sim, senhor”. Afinal, não lhe fiz nenhuma pergunta — esbravejou. Acalmou-se tão depressa como se enfurecera e prosseguiu: — Amanhã de manhã o senhor partirá para Lepso. Recebemos informações estranhas de lá. Enquanto Ron concentrava parte de sua imaginação para descobrir quem ou o que seria Lepso, Nike Quinto relatou o que se passara com Dick Kindsom, a bordo da Flórida. Ron ficou sabendo que Lepso e Firing II eram a mesma coisa, e esse fato deu asas à sua fantasia. Mas não compreendia... — Quer dizer que o senhor já sabe o que tem a fazer, não sabe? — perguntou Quinto, com sua voz aguda. — Sim, senhor — respondeu Ron, prontamente. — Precisamos localizar Zuglert. Nike Quinto soltou um gemido e afundou na poltrona. — Ai, meu coração! — lamentou-se. — Sabia que o senhor não compreenderia. Por que não me deram oficiais mais competentes? Caramba! Eu não o mandaria para Lepso por causa de Zuglert. O que seria de nós se por causa de cada doente, que vive se lamentando, puséssemos em ação nossos agentes especiais? Não é disso que se trata, Landry.
“O que será?”, pensou Ron. Nike Quinto não teve pressa. Passou a mão pela testa e contemplou a palma, molhada de suor. Só depois disso, explicou: — Nos últimos meses surgiram em Lepso outras figuras mumificadas como a de Zuglert. Mas as figuras não aparecem nunca duas vezes. A impressão que se tem é que as pessoas magricelas são transportadas para algum lugar, assim que surgem, e substituídas por outras. Não sabemos qual é o sentido disso. Parte de seu trabalho consistirá em decifrá-lo. Para falar com franqueza, devo dizer que ainda não sei o que pensar a esse respeito. Talvez a situação não represente nenhum perigo. Mas é possível que represente. Em algum lugar, lá em cima... Quinto apontou para o teto e prosseguiu: — ...o caso Zuglert levantou muita poeira. A ordem de mandar um dos... bem, dos meus homens para Lepso veio pela linha direta que liga o administrador com minha pessoa insignificante. Ron fez um esforço para controlar-se. Teve vontade de rir. Ficou satisfeito em saber que, na pressa, Nike Quinto esteve prestes a dizer “um dos meus melhores homens”. Mas o fato de que o coronel recebera a ordem diretamente de Perry Rhodan não deixou de produzir seu efeito em Ron. — Quer dizer que o senhor irá para ali — disse Nike Quinto, apontando para uma porta lateral do gabinete — a fim de familiarizar-se com tudo que sabemos sobre o misterioso caso de Lepso. O programa inclui uma matriz da mente consciente do Major Kindsom, comandante da Flórida, que manteve a palestra TTT com Zuglert. Depois do treinamento, terá a impressão de que foi o senhor, e não Kindsom que manteve a palestra. Ron Landry levantou-se e dirigiu-se para a porta lateral, que se abriu à sua frente. Fitou a sala pouco iluminada, em cujo interior os aparelhos de treinamento hipnótico esperavam por ele.
2 Dali a três dias, Ron Landry saiu da nave cargueira Efraim, que numa viagem rápida mas pouco confortável o levara ao espaçoporto da cidade de Zanithon, em Lepso. Da rampa de carregamento precipitou-se imediatamente para dentro do movimento confuso da metrópole. Notou que Lepso tinha uma peculiaridade: não havia inspeção alfandegária ou controle de passaportes, não se exigiam atestados de saúde ou outro qualquer. A pessoa saía de uma espaçonave, como se sai de um táxi, e começava a andar por aí. O governo de Lepso reconhecera em tempo a vantagem da posição galáctica do planeta, e providenciara para que as numerosas naves, que percorriam as rotas próximas, descessem em Lepso, a fim de comerciar com parte das mercadorias que levavam. Para atrair os mercadores, deve-se criar o menor número possível de problemas para o acesso ao local de negócios; de preferência não se deve criar nenhum problema. Por isso não se exigiam nos espaçoportos de Lepso as formalidades, que nos outros pontos da Galáxia eram obrigatórias e naturais. Evidentemente, o governo sabia que dessa forma não atraía a Lepso apenas comerciantes honestos. Isso não lhe doía na consciência, pois cobrava o imposto de vendas tanto sobre os negócios honestos como sobre os desonestos. E aquilo que se arrecadava — o dinheiro — era a única coisa que tinha algum valor em Lepso. Lepso era o segundo mundo-satélite de uma estrela amarela, semelhante ao nosso Sol. A gravitação superficial do planeta era quase igual à da Terra. Graças à órbita próxima ao astro central, no planeta reinavam durante todo o ano temperaturas como as que reinam no verão entre Roma e Cairo. No curso dos séculos, a política imigratória liberal do governo de Lepso fizera com que representantes de quase todas as raças galácticas se fixassem nesse mundo. Em Lepso havia tópsidas, os seres-lagarto do planeta Topsid, os swoons, pequenas criaturas em forma de pepino vindas de Swoofon, gigantescos naats de três olhos, provenientes do sistema solar arcônida, e inúmeras outras criaturas, parte das quais vindas de mundos que ainda conservavam sua independência. Mais ou menos a metade era humanóide, enquanto a outra metade era formada por seres não-humanos. Era neste mundo que Ron Landry pisava pela primeira vez na vida. Há muito tempo tivera o desejo de visitar Lepso. Mas nunca teria sonhado que sua profissão lhe propiciaria a realização desse desejo. Ao que tudo indicava, entre todos os mundos da Galáxia, Lepso era aquele que menos precisava do auxílio do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento. A pista asfaltada do espaçoporto terminava junto a um traço verde de verniz fosforescente. Além desse traço, ficava a rua; era um monstro de rua, que tinha pelo menos duzentos metros de largura. Seguindo-a pela direita, chegava-se à cidade. Logo trás do traço verde, com as extremidades dos veículos bem acima deste, via-se uma fileira de planadores, em que havia letreiros, geralmente redigidos em língua arcônida, segundo os quais esses veículos poderiam ser alugados por pouco dinheiro, juntamente com os motoristas. Ron resolveu que iria à cidade num desses táxis. Duvidou de que houvesse outra possibilidade. Mas antes queria observar o movimento do tráfego. Uma curiosa confusão de veículos deslocava-se numa velocidade infernal e uniforme em ambos os
sentidos. Ron calculou que a velocidade dos veículos devia ser de cerca de duzentos quilômetros por hora. Isso significava que a rua devia ter sido dotada de um sistema automático de direção do tráfego pelo rádio. Os carros, que haviam sido adaptados a esse sistema, pertenciam a todas as marcas conhecidas da Galáxia. Viam-se os elegantes planadores arcônidas com suas janelas largas e os Fords da Terra, um pouco menos graciosos, mas em compensação mais seguros. Viam-se veículos antiquados, bastante altos, que ofereciam grande resistência ao ar que cobria a rua e provocavam um furacão em sua esteira, bem como veículos achatados, em forma de barco, vindos dos mundos cuja atmosfera densa exigia esse formato. De repente Ron Landry pôs-se a rir. Não tinha motivo para isso, e nem sabia por que estava rindo. Era esquisito ver essa coleção multiforme de inteligências galácticas correr vertiginosamente por ali, e imaginar que o único motivo dessa tresloucada pressa, era o dinheiro, já que este, ou melhor, o lucro, representava a única finalidade de quem vinha a Lepso. Um rosto também sorridente inclinou-se para fora do táxi-planador que se encontrava próximo de Ron. — Ei, homem da Terra — gritou. — Por que está rindo? Está interessado numa viagem à cidade, mister? Ron fitou-o com uma expressão de perplexidade. O homem falava em inglês. Ron aproximou-se do veículo. — Depende do preço — respondeu. — Dois solares até o centro da cidade, sir — disse o motorista, prontamente. Ron franziu a testa. — Desde quando os preços em Lepso são calculados em moeda terrana? O motorista hesitou um pouco. — Santos deuses dos bosques — disse finalmente, em tom indiferente. — A gente pega aquilo que consegue, e é mais fácil conseguir o que as pessoas trazem no bolso, não o que têm de cambiar. Ron viu nisso uma cativante lógica mercantilista. — O senhor veio do planeta Goszul, não é verdade? — perguntou, dirigindo-se ao motorista. Agora foi a vez deste ficar admirado. — “Santos deuses dos bosques” — respondeu Ron, com um sorriso. — Não conheço nenhum outro lugar em que estas divindades costumam ser invocadas. Meus parabéns. O senhor fala perfeitamente nossa língua, sem o menor sotaque. O motorista fez com que uma porta se abrisse, como se já tivesse certeza de que Ron seria seu passageiro. — Isto também pertence ao negócio — disse. — Todos gostam de que os outros falem em sua língua, se possível sem sotaque. Falo uma porção de línguas, quase todas impecavelmente. Ron fez menção de entrar no táxi. Mas, naquele instante, rolou pela rua, em direção ao traço fosforescente, um veículo que despertou sua atenção. Era, em essência, uma caixa negra cúbica de quatro metros de aresta, com uma cabina de comando colada à parte anterior. Dos dois lados do cubo havia, além das escotilhas fechadas com pesados ferrolhos, algumas janelas amplas, atrás das quais Ron viu um líquido verde que se agitava preguiçosamente. — É um pisalama — disse o motorista. — Ali... atrás do senhor.
Ron virou-se. Mais um cubo deslocava-se em direção à periferia do espaçoporto. Era bem menor que o veículo e, segundo parecia, consistia em material elástico. Na parte superior desse cubo, também havia uma janela, e atrás dela via-se o mesmo líquido verde. Por uma fração de segundo Ron viu um vulto salpicado de marrom-claro e escuro. Alguma coisa parecia boiar no líquido verde. O pequeno cubo aproximou-se do estranho veículo. A escotilha abriu-se automaticamente. O novo passageiro ergueu-se do solo e pairou para dentro da abertura. A escotilha voltou a fechar-se. Depois de algum tempo, Ron viu atrás das janelas do veículo o mesmo vulto salpicado que observara antes. Ao que parecia, havia uma eclusa no interior da caixa, e o estranho passageiro se havia desvencilhado do traje espacial em forma de cubo. Dentro do líquido verde que enchia o veículo, parecia sentir-se bem. Ron Landry ainda estava olhando, quando o cubo voltou a colocar-se em movimento e começou a deslocar-se pela rua. — O que é mesmo? — perguntou, dirigindo-se ao motorista. — Um pisalama ou pisalamense — disse o motorista de táxi. — O nome verdadeiro é diferente, desde que reproduzido por um transec. Mas é muito complicado, e por isso inventamos essa pronúncia. Ron entrou no táxi. — De onde vêm essas criaturas? — De Pisalam. É um mundo que deve ficar além do centro da Galáxia. Ninguém sabe como souberam da existência de Lepso. O fato é que estão aqui e, pelo que se diz, são negociantes muito hábeis. Ron ficou satisfeito com a informação que acabara de lhe ser dada. O táxi pôs-se em movimento. Ron logo notou que o motorista sempre ficava do lado direito da estrada, onde podia andar tão devagar como quisesse. — Por que não segue pelo centro da estrada? — perguntou. — Não sabia que o senhor tem tanta pressa em chegar à cidade — disse o homem de Goszul. — Não tem o aspecto de uma pessoa que esteja com pressa. Ron procurou explicar-lhe que realmente não estava. No entanto, ficou admirado ao notar que o motorista seguia muito devagar. Caso corresse, poderia pegar logo outro freguês e ganhar mais dinheiro. — O senhor não deixa de ter razão — confessou o motorista. — Acontece que não gosto dessa agitação. Prefiro ganhar um pouco menos. Aliás, não sei o que deu de repente em toda essa gente. Ron aguçou o ouvido. — De repente? Antigamente não era assim? Um sorriso amargurado surgiu no rosto do homem de Goszul. — Sempre foram malucos — disse, frisando não ser um habitante de Lepso. — Mas antigamente os carros só andavam à metade ou à quarta parte de sua potência pelas faixas centrais. Hoje todos desenvolvem a velocidade máxima permitida pelo sistema de controle. Ninguém tem tempo a perder. Todos querem chegar o quanto antes a algum lugar e sair o mais depressa de lá. Ron refletiu. — Quando foi isso? — perguntou. — O que quero saber é quando a situação se modificou. O motorista refletiu por algum tempo. — Deve ter sido há uns três ou quatro meses de Lepso — disse. — Não sei exatamente. A mudança foi muito rápida; aconteceu em poucos dias.
Não quis dizer mais que isso. E Ron tinha tanto assunto para reflexões, que podia dispensar outras perguntas. A viagem ao centro da cidade correu em silêncio. Ron pagou a corrida e desceu. Tinha certeza de que nunca mais veria o motorista de táxi. Escolhera ao acaso o local em que descera. Sua suposição de que, no centro da cidade, devia haver uma porção de hotéis revelou-se correta. Ainda mergulhado em reflexões, atravessou uma ampla porta de vidro, que se abriu automaticamente à sua frente, e viu-se num amplo hall. Olhou em torno para descobrir o robô de recepção, mas notou não haver nenhum robô. À sua esquerda havia um amplo balcão, e sobre este viase uma enorme placa que, em dez línguas diferentes e quatro caracteres de escrita diversos, avisava que este era o local de recepção. Do outro lado do balcão havia uma mulher, que fitou Ron com um sorriso amável. Ron aproximou-se. — Bom dia, cavalheiro — disse a mulher num inglês que não era tão impecável como o do motorista de táxi. Era uma araucana, ou seja, uma nativa do planeta Arauca. Pelo que Ron pôde notar, correspondia exatamente à imagem que se costumava fazer na Galáxia sobre as verdadeiras araucanas: era loura, de olhos negros, bela, selvagem e imprevisível. — Quero um bom quarto, bem grande — disse Ron, em tom áspero. Não gostava que uma mulher lhe sorrisse sem que ele desse motivo para isso. Sabia que era bonito: louro e alto, até muito alto, e de ombros largos. A araucana parecia não perceber a rejeição que havia no tom de voz de Ron. Seu sorriso tornou-se ainda mais intenso. Trajava segundo uma moda que Ron não conhecia, mas que não pôde deixar de considerar fina e sofisticada. — Só temos quartos bons e grandes — respondeu. Ron deu de ombros, num gesto de indiferença. — Está bem. Nesse caso qualquer um serve. A mulher tirou uma espécie de catálogo de sob o balcão. Virou-o, abriu a primeira página e empurrou-o para junto de Ron. — Quer fazer o favor de escolher? — cochichou. Ron estudou o registro. A variedade das ofertas o confundia. Havia aposentos cúbicos, retangulares, semi-esféricos e esféricos. Havia quartos de atmosfera uniforme e outros em que a mesma formava camadas sobrepostas. Havia recintos em que a gravitação era regulada de 0,1 a 5 vezes o normal. Havia aposentos com temperaturas que variavam de menos setenta até mais trezentos graus centígrados, e inúmeras outras variantes. Depois de algum tempo, Ron encontrou aquilo que procurava. — Quero este — disse, apontando para a linha correspondente. A araucana nada teve que objetar. Sem que ninguém lhe pedisse, declarou-se disposta a mandar a bagagem de Ron para o quarto, muito embora a mesma ainda tivesse de ser enviada do espaçoporto. Depois disse alguma coisa que Ron achou muito estranha, principalmente porque não compreendeu: — Quero dar-lhe um conselho, cavalheiro. Se estiver aqui para tratar de negócios e quiser ser bem-sucedido, escolha sempre a bebida adequada. *** Quando abriu a porta do quarto com a chave codificada, Ron ainda estava mergulhado em pensamentos. Entrou sem levantar os olhos, fechou a porta e deixou-se cair numa poltrona, que ficava junto a uma mesa baixa, à direita da entrada.
Só depois de algum tempo viu a caixa que estava instalada no quarto. Atrás da grossa vidraça uma sombra matizada de cinza-escuro e claro movia-se dentro de um líquido verde viscoso. Ron assustou-se, não pelo quadro que se lhe ofereceu, mas pelo fato de que fora tolo e descuidado a ponto de cair numa armadilha — isso caso o pisalama lhe quisesse fazer alguma coisa. — Não tenha medo — disse uma voz tranqüilizadora. — Não vim para fazer-lhe mal. De repente, Ron ficou furioso. — Como conseguiu entrar aqui? — perguntou. A voz hesitou por algum tempo. — Os habitantes de Pisalam dispõem de certas faculdades fora do comum — disse. — Acho que isso basta para explicar minha presença. Ron tinha a impressão de que o traje espacial cúbico continha um transec, isto é, um aparelho que traduz as palavras de uma língua para qualquer outra, desde que seus bancos de dados sejam alimentados com um volume suficiente de informações. Só assim se explicava que Ron e o nativo de Pisalam pudessem conversar. Mas o major não sabia explicar como o ser estranho conseguira perceber o temor que sentira, e como lhe fora possível penetrar por uma porta trancada por uma fechadura eletrônica. — O que deseja? — disse Ron, em tom áspero. — Talvez o senhor esteja lembrado de que, junto ao espaçoporto, nossos táxis ficaram próximos um ao outro — disse o ser estranho. — Passei perto do senhor, e então... então percebi que o senhor veio a Lepso para procurar uma pessoa desaparecida. Ron sentiu-se perplexo. — Tolice — disse. O alto-falante do transec invisível transmitiu uma espécie de risada irônica. — Por que quer negar? — perguntou a voz. — Não somos telepatas no verdadeiro sentido da palavra. Mas conseguimos identificar perfeitamente desejos e pensamentos intensos dos seres que se encontram nas vizinhanças. Tenho certeza absoluta de que no seu caso não estou enganado. Ron recostou-se na poltrona. — Seja lá o que o senhor quer dizer — Falou — tente ser objetivo. O que deseja de mim? A caixa concordou. — É uma ótima idéia. Preste atenção. Tenho que dar uma explicação um tanto prolongada. O senhor não conhece meu mundo natal, Pisalam; ninguém conhece. Por isso não pode saber que somos um povo muito pequeno. Para usar sua linguagem numérica, direi que ao todo não somos mais que uns oito mil seres. Não é que sejamos uma raça em decadência. Nunca fomos muito mais seres, e nunca fomos muito menos. O número reduzido de nossa raça fez surgir um relacionamento íntimo entre os membros da mesma. Quando dez deles resolveram vir a Lepso, ficamos muito tristes e desconfiados. Apesar disso, essa viagem tornou-se necessária. É que daqui, de Lepso, poderemos obter certas coisas que em outra parte só conseguiríamos com muita dificuldade, ou não conseguiríamos de forma alguma. Por isso deixamos que os dez seres, que haviam resolvido vir a este mundo, partissem. Entretanto sempre ficamos em contato com eles. “Acabamos de saber que um deles desapareceu. Isso provocou muita tristeza em nosso povo. Cinco seres de nossa raça saíram à procura do desaparecido. Não podemos
aceitar passivos o desaparecimento. A criatura está em perigo, e temos de ajudar. O senhor compreende?” Ron confirmou com um gesto. — Sem dúvida. Apenas não vejo o que eu tenho a ver com isso. — É simples. O senhor também está à procura de um indivíduo desaparecido. Será que, caso desse com a pista do ser vindo de Pisalam, poderia avisar-nos? Ron não teve a menor objeção. — Como farei para entrar em contato com os senhores? — Não haverá o menor problema. No momento em que descobrir a pista, o senhor provavelmente ficará tão surpreso que perceberei seu impulso mental, uma vez que já sei identificá-los. Quando isso acontecer, entrarei em contato com o senhor o mais depressa possível. — Está bem — disse Ron. — O senhor deve saber que provavelmente não poderei lazer nada para ajudá-lo. O desaparecimento de dois seres não prova que tomaram a mesma direção. É possível que eu encontre a pessoa que procuro, sem dar com o menor vestígio do indivíduo de sua raça. — Isso pode acontecer — disse o ser de Pisalam. — Apenas estou aproveitando uma das muitas possibilidades que tenho pela frente. Sinto-me satisfeito pelo fato de o senhor me ter ouvido e mostrar-se disposto a ajudar. Espero que um dia também lhe possa ser útil. Ron esteve a ponto de formular uma pergunta. Porém, naquele instante, o ser estranho desapareceu juntamente com o liquido verde e a caixa em forma de cubo. Ron ficou só no seu quarto. Levantou-se com um suspiro. “Mais um desses teleportadores”, pensou um tanto contrariado. “É assim que sempre encerram uma conversa. Desaparecem de repente, de forma que ficamos sem possibilidades de formular outras perguntas.” Ron Landry não estava nem um pouco satisfeito consigo mesmo. Desde o momento em que se encontrava em Lepso, tinha a impressão de não estar seguindo pistas, mas de encontrar-se preso a um fio, que estava sendo puxado por outra pessoa. Isso não podia continuar assim. Ron resolveu entrar em atividade, dando início, sem mais demora, à execução de sua tarefa. Naquele instante ouviu um zumbido junto à porta. A mão direita de Ron apalpou a pequena arma que trazia no cinto. Depois disso procurou inteirar-se de como abrir a porta. Encontrou um quadro de comando na borda da mesinha de cabeceira que se achava junto à cama larga. Comprimiu o botão sobre o qual estava desenhada uma porta. A porta abriu-se. Viu uma araucana com uma bandeja, sobre a qual havia dois copos e várias garrafas. — Acho que o senhor não se esqueceu do meu conselho, sir? — indagou. — Escolhi a bebida apropriada para o senhor. Viu os dois copos, que se destacavam provocadoramente na beira da bandeja, e a fileira de garrafinhas reluzentes com os rótulos amarelo-violeta. Mal acabara de dar-se conta de que em Lepso deixara de desempenhar o papel de ator para transformar-se em marionete, quando aparecia mais alguém que lhe dizia o que devia fazer. Era demais! — Leve isso e beba sozinha — gritou para a moça, esforçando-se para reprimir a cólera. — Quando quiser tomar alguma coisa, saberei pedir. E quando isso acontecer, quero que a bebida me seja fornecida pelo serviço de entrega nos apartamentos. Entendido?
O sorriso desapareceu do rosto da moça. Ron ainda a viu estreitar os olhos e fitá-lo com uma raiva incontida. Depois disso, a araucana virou-se rapidamente e saiu. Ron comprimiu outro botão do quadro de comando e ouviu a porta fechar-se com um ruído surdo. — Lepso! Que mundo louco é este! — balbuciou.
3 Na noite do mesmo dia, Ron Landry descobriu onde ficava o escritório do Dr. Zuglert e resolveu que ainda nessa noite faria uma visita ao local. Antes disso tivera uma palestra de telecomunicador com a unidade mais próxima da frota terrana e soubera que nada mais se descobrira sobre o paradeiro de Zuglert. Os dados pessoais do doutor eram conhecidos, já que ele os tivera de fornecer à polícia de Lepso, a fim de obter o visto permanente. Zuglert era médico-biólogo, que dedicara suas pesquisas à obtenção de novas substâncias medicinais. Suíço de nascimento, possuía o título de doutor fornecido pela Universidade de Bolonha. Tinha cinqüenta e dois anos e, até o momento de seu desaparecimento, vivera quatorze anos e meio em Lepso. Conforme constava à polícia, durante esse tempo só deixara Zanithon por três ou quatro vezes. Tinha escritório na Rua Oitenta e Seis. Todos sabiam que um homem como Zuglert não poderia deixar de ter um laboratório. Mas ninguém sabia onde este se localizava. Aliás, a polícia de Lepso recusou-se a realizar diligências destinadas a encontrar o desaparecido. Argumentava que, em Lepso, qualquer pessoa tinha o direito de desaparecer e reaparecer à vontade, e que era bem possível Zuglert considerar qualquer busca como uma restrição à sua liberdade individual. O oficial com o qual Ron Landry estava conversando acrescentou, finalizando: — É claro que isso não passa de uma desculpa barata, major. Essa gente simplesmente não quer incomodar-se com o caso. Talvez as investigações venham revelar algo que eles preferem ver sepultado. Essas palavras não saíram da cabeça de Ron, enquanto este se dirigia à Rua Oitenta e Seis. Uma araucana encontrava-se atrás do balcão de recepção, no hall de entrada. Era tão bela como a que quisera levar Ron a tomar alguma coisa. Mas não lhe sorriu. Provavelmente fora avisada pela colega. Ron foi a pé. Já ficara escuro, e as fontes de luz de todas as cores inundavam a cidade. Nos vinte minutos que levou para circundar metade da praça que formava o centro da cidade de Zanithon viu a maior variedade de habitantes da Galáxia da sua vida. Durante o caminho usara todos os truques, que costumam ser ensinados a um agente treinado. Sentia-se, assim razoavelmente seguro de não estar sendo seguido. Pegou um táxi, dirigido por um gigantesco naat, que meteria medo a qualquer pessoa, e pediu que este o levasse à Rua Oitenta e Quatro. Voltou a caminhar para percorrer os últimos dois quarteirões. A Rua Oitenta e Seis era uma rua típica de edifícios de escritório. As velhas construções dos mais variados estilos erguiam-se de ambos os lados, e os milhares de anúncios luminosos tornavam dispensável qualquer tipo de iluminação pública. A Intensidade do tráfego de veículos era tão Impressionante quanto em outros lugares da cidade. Em compensação, o número de pedestres era reduzido. No edifício em que ficava o escritório de Zuglert, algumas janelas continuavam iluminadas. O fato divertiu Ron. “Deve ser alguém que corre tanto atrás do dinheiro que chega a trabalhar até de noite”, pensou.
Subia os amplos degraus que levavam à gigantesca entrada fechada por uma porta de vidro. Não se admirou por ter de abri-la manualmente. O mecanismo de abertura era desligado depois das horas do expediente. Atrás da porta de vidro ficava um hall de recepção igual ao de outros edifícios desse tipo, com o robô de informações à esquerda e a fileira de poços de elevadores antigravitacionais à direita. Ron não tinha motivo para formular qualquer pergunta ao robô. Sabia que o escritório de Zuglert era no vigésimo-terceiro andar, sala número 23.048. Comprimiu o botão correspondente ao número 23 no quadro de comando do elevador mais próximo e aguardou até que a luz de controle se acendesse. Entrou no poço e teve certeza de que a sucção suave do campo de gravitação artificial o atingiria e o levaria ao destino por ele escolhido. Ron não sentiu nenhuma sucção: caiu. Não houve nenhum campo gravitacional, e Ron passou por aquilo que acontece com qualquer pessoa que salta para dentro de um poço. A velocidade da queda foi aumentando. Ron entesou os músculos para absorver o inevitável impacto. Seguiu-se um baque, e Ron Landry, membro da Divisão III, foi colocado fora de combate. *** Quando recuperou os sentidos, viu um rosto moreno bem à sua frente, no qual um par de olhos cinzentos também o fitavam com uma expressão desconfiada. A testa, circundada por uma cabeleira negra muito bem tratada, não era muito alta. O homem que o observava estava ajoelhado. — O senhor teve uma sorte inacreditável — disse o homem. Ron procurou erguer-se. Sentiu dores que não conseguiu localizar. A cabeça funcionava perfeitamente, mas o resto do corpo parecia ter sido atingido por um martelete mecânico. — Onde estamos? — perguntou, totalmente confuso. — No vigésimo-terceiro andar — respondeu o homem de cabelos negros. — Na sala número dois-três-zero-quatro-oito. Acho que isto não significa nada para o senhor... Ron ergueu-se abruptamente e interrompeu seu interlocutor em meio à frase. — Por que vim parar justamente aqui? O homem de cabelos negros fitou-o com uma expressão de perplexidade. — Presenciei a queda. O senhor usou o poço que não estava em funcionamento. Não viu a placa de aviso? Desci ao portão, usando outro poço, e trouxe o senhor para cima. Uma vez que estava a caminho desta sala, resolvi trazê-lo comigo. No momento em que pretendia chamar um médico, o senhor recuperou os sentidos. Ron sentou-se. Não conseguia ver toda a sala. Mais atrás havia uma lâmpada colocada a cerca de um metro e meio de altura, que derramava uma luz ofuscante sobre ele e o homem de cabelos negros. Fora o círculo de luz projetado pela lâmpada, tudo estava mergulhado em escuridão. Ron não se sentiu muito à vontade. — Está sentindo alguma coisa? — perguntou o homem de cabelos negros, em tom preocupado. — Será que precisa de um médico? Ron balançou a cabeça. Tinha certeza de que a queda só lhe causara algumas escoriações. Mas não tinha tanta certeza sobre outras coisas... — Quem é o senhor? — perguntou. — Meu nome é Gerard Lobson — respondeu o homem de cabelos negros. — Sou proprietário desta sala.
— O senhor disse que o número da mesma é dois-três-zero-quatro-oito? — Isso mesmo. — Desde quando é proprietário da sala? Gerard Lobson franziu a testa; parecia não gostar da pergunta. — Há... há quatro anos — respondeu cm tom hesitante. — Por que está mentindo? — perguntou Ron. Lobson recuou. Arregalou os olhos. De repente pareceu sentir um medo tremendo. — Por que estou mentindo? — respondeu ofegante. — Não estou mentindo coisa alguma. Por que...? — Até poucos dias atrás esta sala pertencia ao doutor Zuglert — disse Ron, em tom áspero. — Exijo... Foi interrompido por um ruído. Tinha-se a impressão de que alguém arranhava o soalho, muito além da lâmpada que produzia a luz ofuscante. Antes que Ron tivesse tempo de fazer qualquer movimento, ouviu-se uma voz grave e retumbante. — Basta! Acendam a luz. As luzes do teto acenderam-se. Depois do primeiro momento de confusão, Ron deu-se conta de que o desconhecido falara em arcônida. Virou a cabeça e viu uma escrivaninha à sua direita. Sobre essa escrivaninha encontrava-se a lâmpada que o ofuscara. Atrás da mesa havia três pessoas. Duas delas eram robustas e a outra, magra, enrugada e ainda mais alta que as outras. Ron compreendeu que caíra numa armadilha. *** Um dos homens de ombros largos saiu de trás da escrivaninha. Ron viu que tinha alguma coisa na mão. Inclinou-se sobre ele, estendeu a mão e disse: — Tome isto. Continuava a falar em arcônida. Entre o polegar e o indicador da mão direita segurava uma garrafinha, na qual se via um rótulo colorido em amarelo-violeta. A recordação teve a força de um impacto em Ron. Era a mesma substância que a araucana lhe oferecera no hotel. Era estranho que tanta gente desejasse que ele sorvesse tal bebida. Dirigiu-se a Gerard Lobson, que se afastara, permanecendo de joelhos. — O que é que ele está querendo? — perguntou em inglês. Gerard parecia surpreso. — Diz que o senhor deve tomar isso. — Por quê? Gerard voltou a mostrar medo. — Pelo amor de Deus, beba sem formular perguntas. Ele... Com a mão direita, Ron afastou o braço do homem de ombros largos. — Tome você! — gritou. — Eu mesmo costumo escolher minhas bebidas. Continuava a falar em inglês, mas tinha suas dúvidas de que conseguisse convencer os três desconhecidos por muito tempo de que não sabia falar o arcônida. Evidentemente dois deles eram saltadores, ou seja, membros da raça dos mercadores galácticos, que estavam metidos em quase tudo quanto era negócio. O terceiro homem talvez fosse um ara. Os aras eram uma raça aparentada à dos saltadores, que se dedicara às ciências, especialmente às ciências biomédicas, com o mesmo entusiasmo que os saltadores demonstravam em relação aos negócios. O saltador que estava inclinado sobre Ron ficou furioso.
— O senhor vai beber isto! — gritou em inglês. “Se não sentisse tantas dores pelo corpo, eu lhe mostraria o que vou e o que não vou fazer”, pensou Ron, dominado pela cólera. Procurou pôr-se de pé. Sentiu-se admirado ao notar que o saltador não fez o menor esforço para impedi-lo. Este chegou até a afastar-se. Ron procurou abafar as dores e encostou-se à parede. O saltador continuava a segurar a garrafinha. — O que é isso? — perguntou Ron. — Licor — respondeu o saltador. — Tome. — O senhor quer que eu morra dentro de três segundos, não é? — perguntou Ron, em tom irônico. O saltador balançou a cabeça. — Se quiséssemos matá-lo poderíamos usar um método menos inconveniente que o veneno — disse. Era verdade. Realmente, Ron não acreditava que na garrafinha houvesse um veneno mortal. Devia conter alguma droga que eliminasse a vontade de Ron, e fizesse com que o terrano se tornasse loquaz ou produzisse um efeito análogo. Gerard Lobson suplicou com a voz trêmula que Ron tomasse o líquido, mas este se manteve inflexível. — Não — disse. — É minha última palavra. O ara que se encontrava atrás da escrivaninha ficou possesso. Ron notou um movimento rápido nos fundos da sala. Empurrando-se com o ombro, atirou-se para a frente. Mas a queda, que antes havia sofrido, eliminara a atuação de muitos dos seus músculos e tornara suas reações mais lentas. Enquanto caía para a frente, foi atingido por um golpe fulminante. Um sino parecia ressoar no interior de seu crânio, e a escuridão voltou a envolvê-lo. *** Quando Ron voltou a despertar, a cena estava modificada. Mas era mais uma vez Gerard Lobson que se inclinava sobre ele. — Introduziram o líquido à força em sua boca. Ron ergueu-se. Não sabia o que haviam leito com ele, mas o fato é que não produzira maiores efeitos. Encontrava-se bem-disposto. As dores tinham sumido, e sentiu-se como quem está em condições de enfrentar todo o mundo. Se os saltadores aparecessem, ele lhes mostraria em que tipo de homem haviam posto as mãos. Provavelmente o ara atirara nele com uma arma paralisante. Ficara inconsciente e aproveitaram-se disso para fazer com que engolisse o líquido. — Que bebida é essa? — perguntou, dirigindo-se a Gerard. — É um licor — respondeu Gerard. — E é só o que eu sei. É vendido livremente em Lepso e é bastante apreciado. Isso parecia estranho. — Já tomou esse licor? Gerard fez que sim. — Só depois de eles terem posto as mãos em mim. Obrigaram-me a tomá-lo, da mesma forma que fizeram com o senhor. — E qual foi o resultado?
— Hum — disse Gerard, em tom hesitante. — Parece ser uma cachaça muito forte. Depois de tomá-la a gente tem a impressão de que é capaz de arrancar árvores e enfrentar todo o mundo. Ron confessou que no momento sentia a mesma coisa. — Quanto tempo dura isso? — Não sei — respondeu Gerard. — Estão sempre me dando mais um gole, antes que o efeito passe. Ron olhou em torno. Encontravam-se num recinto amplo em que não havia nenhuma janela. O chão era de pedra dura e lisa. As paredes e o teto eram do mesmo material. Duas fileiras de colunas toscas saíam do chão e sustentavam o teto. Uma velha lâmpada de gás, pendurada entre as duas fileiras de colunas, espalhava sua luz pela sala. Numa das paredes havia uma porta. Era de metal. Ron pôs a mão no lugar em que costumava guardar a arma, e notou que esta não se encontrava sob o casaco. Naquele momento compreendeu, mesmo sem examinar a porta, que não conseguiria abri-la sem auxílio. — Isto é um porão, não é? — perguntou. — É sim — confirmou Gerard. — Onde se localiza? — Não sei. Toda vez que venho para cá meus olhos são vendados. De repente, Ron soltou uma risada. — Então usam métodos já ultrapassados? Apesar da aparente resistência da porta, Ron, sentindo-se atraído, foi tentar abri-la. Passou entre as colunas e procurou girar a maçaneta antiquada. Aconteceu o que esperara: sua tentativa não foi bem-sucedida. A porta estava trancada; a maçaneta não girou nem um milímetro. — O senhor já esteve aqui muitas vezes? — perguntou, dirigindo-se a Gerard. — Uma vez. Antes que viessem buscar-me para... — Para quê? — Bem, para arrancar do senhor a informação sobre se... De um momento para o outro, a cena que se desenrolara no escritório de Zuglert surgiu nitidamente na mente de Ron. Gerard contara-lhe uma mentira e assim fizera com que dissesse que a sala, onde se encontravam, era o escritório do Dr. Zuglert. Logo após isso, os saltadores acenderam a luz e se identificaram. “Isso faz sentido”, constatou Ron. “Não queriam que ninguém se interessasse pelo desaparecimento de Zuglert. Por quê?” O terrano teve a impressão de que já conseguira um bom progresso, depois de ter chegado a Lepso. É bem verdade que tal acontecera sem qualquer atuação consciente de sua parte. Além disso, face à situação em que se encontrava, tornava-se duvidoso que jamais os conhecimentos adquiridos lhe pudessem ser úteis. Mas, por enquanto, precisava saber de Gerard tudo que este soubesse, quer houvesse uma saída, quer não, Gerard encontrava-se em poder dos saltadores há mais tempo que ele mesmo. De início Lobson mostrou-se hesitante, mas acabou relatando fielmente o que se passara no escritório de Zuglert. Não deixou de revelar que de tanto medo fugira, deixando Zuglert entregue ao seu destino. Ron procurou unir os fatos, para descobrir o que deveria ter acontecido. Provavelmente Zuglert conseguira pôr-se de pé. E sem que ninguém o ajudasse, saíra do edifício e chegara a um lugar do qual realizara a palestra TTT com a Flórida.
Talvez durante a palestra o doutor desaparecera. Restava saber por que motivo o robô de comunicações chegara à conclusão de que a ligação fora feita do terminal da missão comercial terrana. No entanto, Gerard não saberia esclarecer este ponto. — Dali a algumas horas — prosseguiu Gerard — minha consciência começou a acusar-me. Procurei descobrir o que era feito de Zuglert. Pus-me a caminho. O escritório estava aberto. Entrei. Bem... lá dentro estavam os três indivíduos que o senhor já conhece. Perguntaram o que eu desejava, de onde conhecia Zuglert, por que havia voltado, e assim por diante. Levaram-me para baixo. Uma vez no carro, obrigaram-me a tomar o licor que também foi introduzido na sua boca. Depois vendaram meus olhos e trouxeram-me para cá. Fiquei aqui cerca de quatro horas. “Depois vieram buscar-me. Mais uma vez, meus olhos foram vendados. Quando a venda foi retirada, o carro encontrava-se à frente do edifício em que fica o escritório de Zuglert. Subimos e esperamos. Não sabia por quê. Ninguém respondeu à pergunta que formulei a este respeito. Ficaram mexendo bastante na escrivaninha de Zuglert. De repente pareceram muito surpresos. Um deles saiu correndo, e, quando voltou, catava carregando o senhor. Depois obrigaram-me a ajoelhar a seu lado e contar-lhe algumas mentiras assim que despertasse. Assim o senhor acabou revelando que viera por causa de Zuglert. O resto, o senhor já sabe.” Sim, Ron sabia o resto, mas parecia haver alguns pontos obscuros nas informações de Gerard. Será que os saltadores haviam desativado os elevadores antigravitacionais, fazendo com que todos os retardatários, que visitassem o edifício, caíssem no porão? Em caso negativo, como poderiam saber a que hora ele chegaria e qual o elevador que utilizaria? Dirigiu-lhe mais algumas perguntas. Não confiava muito naquele homem de cabelos negros, motivo por que Gerard teria de trair-se, a não ser que soubesse mentir com muita habilidade. Mas Ron não conseguiu nada. Gerard ficou firme em suas afirmações. Finalmente, o agente terrano deu-se por satisfeito. Descobrira tudo que ele poderia revelar-lhe e estava na hora de pensar na elaboração de um plano. Provavelmente os saltadores começariam a interrogá-lo. Se suas respostas não fossem satisfatórias, recorreriam a algum truque para eliminar sua vontade e extrair todo o conteúdo de sua consciência, inclusive o fato de que aquele homem louro e alto era um agente especial da Divisão III. Descobririam até o que realmente vinha a ser a Divisão III. As coisas não deveriam chegar a este ponto. Ron tinha de encontrar um meio de escapar aos saltadores. Não deixou de reconhecer que se encontrava numa situação difícil. Os instrumentos, que poderiam facilitar-lhe a fuga, encontravam-se na sua bagagem, e ele saíra do hotel antes que esta chegasse. Nem sequer tinha em seu poder o pequeno transmissor que lhe permitiria irradiar um pedido de socorro. Dependia exclusivamente de si mesmo, da sua imaginação e de suas mãos. Mal acabara de concluir o balanço da situação, a porta de aço foi destrancada e abriu-se ruidosamente. Dois gigantescos saltadores entraram, carregando uma mesa estreita e comprida de plástico sobre a qual havia uma série de aparelhos. Os saltadores não disseram uma única palavra. A porta fechou-se atrás deles — automaticamente, ao que parecia — e Ron, que prestara atenção a tudo, notou que seu caminho voltara a ser bloqueado. A mesa foi colocada no centro da sala, entre as duas fileiras de colunas. Ron
fizera um estudo intensivo de tecnologia extraterrena, motivo por que reconheceu os dois encefaloceptores. Sentiu-se dominado pelo pavor. Os saltadores haviam tomado sua decisão com uma rapidez assustadora. E, o que era pior, dispunham de todo o arsenal de aparelhos que, segundo acreditava, levariam alguns dias para serem trazidos. Os dois saltadores colocaram-se ao lado da mesa. Um deles tirou uma arma e apontou-a para Ron. O outro disse: — Agora vamos interrogá-lo, homem da Terra. Supomos que não se disponha espontaneamente a revelar-nos a verdade. Portanto, usaremos este aparelho. Venha cá! Num instante, Ron avaliou suas chances. Se ele se recusasse, obrigá-lo-iam a submeter-se ao interrogatório. De que forma? Com a arma que um dos saltadores tinha na mão. Tratava-se de um radiador térmico. Se este disparasse, já não haveria nenhum Ron Landry que pudesse ser interrogado. Ao dar-se conta disso, Ron sentiu-se amargurado e deu um passo em direção à mesa com os instrumentos. Nesse instante aconteceu o inacreditável.
4 Um dos dois saltadores caiu para o lado e bateu fortemente no chão. O outro, que segurava a arma, parecia hesitar. Lançou um olhar desconfiado e apavorado para Ron. Contornou apressadamente a mesa, a fim de ajudar o companheiro. Deu dois saltos, mas uma terrificante força invisível parecia impedi-lo de dar o terceiro salto. Ron viu que se esforçou para entesar os músculos. Soltou um grito de raiva e surpresa e procurou empurrar-se com ambos os pés, numa tentativa de avançar. Mas a força invisível foi mais forte. Puxou-o para baixo, atirou-o ao chão e comprimiu-o até que perdesse os sentidos. Sem dizer uma palavra, Ron acompanhara o incidente. Fitou o saltador que caíra em primeiro lugar. Também parecia inconsciente. Ron aproximou-se e, para ter certeza, sacudiu-o. O homem não fez o menor movimento. Ron compreendeu que sua chance havia chegado. — Vamos dar o fora! — gritou, dirigindo-se a Gerard. — Mas... mas... — gaguejou este, perplexo. Ron agarrou-o pelo ombro e puxou-o em direção à porta. Desta vez, a maçaneta não ofereceu qualquer resistência. Girou facilmente. A porta abriu-se. Lá fora havia um corredor estreito, escassamente iluminado. Com a arma em punho e depois de ter deixado para trás a porta que impedia seus movimentos, sentiu de repente a tremenda ânsia de entrar em atividade que, segundo afirmava Gerard, provinha do estranho licor. Naquele momento desejava que, do outro lado do corredor, aparecessem alguns saltadores, a fim de que pudesse mostrar aos mesmos o que acontece a quem rouba a liberdade de um agente especial da Divisão III. Teve de abandonar a idéia. Deveria dedicar sua atenção a dois pontos. Se possível, queria sair do edifício sem que ninguém o notasse. Além disso, teria que cuidar de Gerard, para que este, de tão apavorado que ficara com aquilo que acontecera no porão, não fizesse tolices ou saísse correndo. Por enquanto Gerard deixava que Ron o dirigisse. Parou quando este o segurou a fim de olhar o que havia além da curva, que ficava a uns dez metros da porta pela qual haviam escapado. Não viu o menor sinal de perigo. Um pouco adiante, o corredor terminava junto ao poço de um elevador antigravitacional. Ron não teve a menor dúvida em utilizá-lo. Comprimiu o botão do andar térreo e empurrou Gerard para dentro do poço, seguindo-o de perto. Viram acima de suas cabeças a luminosidade da saída, que dava para o andar térreo. Conforme devia, a sucção do campo gravitacional cessou quando Gerard se encontrava na altura da saída. Lobson pegou a barra de apoio e puxou-se para fora. Ron seguiu-o imediatamente. Viu-se no hall de recepção profusamente iluminado de um grande edifício de escritórios. Escondeu o mais depressa possível a arma térmica que arrebatara do saltador. Gerard parou, aguardando novas instruções. Ron olhou em torno e viu apenas o público que costumava movimentar-se pelos edifícios desse tipo. Uma profusão de seres de todas as espécies passou por uma das duas fileiras de portas, e uma outra profusão tão grande como a primeira deixava-o pela fileira de portas da outra parede. Os que passavam perto de Ron e Gerard fitavam-no com uma expressão de espanto ou de
desconfiança. O agente terrano não demorou a perceber que isso acontecia unicamente porque sua roupa ficara bastante estragada com a queda sofrida no poço do elevador. Chegou à conclusão de que não havia inconveniente em se afastarem o mais depressa possível. Misturaram-se aos indivíduos que iam saindo e, dali a alguns segundos, viram-se na pomposa faixa de pedestres que ficava ao lado de uma rua larga. Ron olhou em torno. — Que lugar é este? — indagou, dirigindo-se a Gerard. Teve de repetir a pergunta para obter uma resposta. — O setor norte da cidade — disse Gerard, laconicamente. — Na Avenida dos Cinco Mares. Havia vários táxis junto ao meio-fio. Ron achou que seria muito arriscado pegar um dos veículos estacionados junto ao edifício, pois com isso poderia voltar a cair nas mãos das pessoas às quais mal e mal conseguira escapar. Foram caminhando pela calçada. Estava anoitecendo. A claridade pálida, que o céu ainda conseguia espalhar, era abafada por milhares de anúncios luminosos. Ron viu vários restaurantes nas proximidades e deu-se conta de que estava com fome. Contemplou suas roupas. Se escolhesse um local adequado, ninguém teria uma objeção contra as mesmas. A fim de gravar na memória a imagem do edifício do qual haviam saído, virou-se. Ficou tão surpreso com aquilo que viu, chegando até a esbarrar em Gerard, que parara. Bem alto, na fachada da gigantesca torre, lia-se em caracteres latinos de pelo menos cinco metros de altura a inscrição pomposa: Missão Comercial Terrana. *** O fato deixou-o bastante impressionado, mas não prejudicou seu apetite. Gerard recusou em tom mal-humorado a sugestão de comerem alguma coisa. — Não tenho dinheiro — resmungou. Ron bateu na testa. — Santo Deus, o senhor acaba de me dar uma idéia. Quem sabe se essa gente... Interrompeu-se em meio à frase e pôs a mão no bolso. Encontrou a carteira. Ao abrir o fecho magnético, viu que o dinheiro estava intato. — Eu o convido — disse alegremente, batendo no ombro de Gerard. Por uma fração de segundo, os olhos deste iluminaram-se. Ron notou-o, mas apenas desconfiou de que a fome de Gerard Lobson não fosse menor que a sua. A algumas centenas de metros do edifício da Missão Comercial Terrana, encontraram um restaurante que servia refeições rápidas, e que parecia não ser muito exigente quanto aos trajes dos seus freqüentadores. O robô porteiro indicou-lhes uma mesa nos fundos do salão. Enquanto Ron girava rapidamente o disco seletor embutido na mesa, a fim de compor um menu bastante rico em conformidade com o código exposto nas proximidades, aconteceu pela primeira vez que Gerard Lobson dissesse algo sem ser perguntado. — O que foi isso? — perguntou; sua voz ainda estava insegura. — Refiro-me ao que aconteceu no porão. — Ora, não foi nada de especial. Um amigo meu agiu no momento apropriado. Ron virou a cabeça e procurou olhar pela janela que dava para a rua. Não teve muita certeza, mas parecia que naquele momento um recinto cúbico com uma grande
vidraça passava à frente da ampla janela. Resistiu ao desejo de levantar-se e ir até a porta. Era preferível não revelar todos os detalhes a Gerard Lobson — ao menos por enquanto. Gerard fez questão de pedir um licor idêntico ao que os saltadores haviam introduzido em sua boca e na de Landry. Ron disse: — Eu o convidei, Gerard, mas o convite não inclui a misteriosa bebida. O senhor já deve ter percebido que há algo de errado com aquilo. Contém uma droga. Gerard fitou-o prolongadamente. — Pode ser. Acontece que eu gosto — respondeu. Como Ron tivesse o dinheiro, seu desejo prevaleceu. Gerard não recebeu o licor. Não parecia importar-se muito com isso. Tomou cinco copos de cerveja terrana de alta fermentação, isso em trinta minutos. Quando Ron concluiu a refeição, sentiu-o ligeiramente tocado. Ron não se importou. Deu-se por satisfeito ao notar que Gerard se mantinha num estado de modorra. Isso lhe ensejou a oportunidade de pôr seus pensamentos em ordem. E o volume destes era tamanho que se tornava difícil processálos de uma só vez. Quer dizer que os saltadores se haviam fixado no edifício da Missão Comercial Terrana. A palestra que o Dr. Zuglert mantivera com a Flórida, pouco antes de seu desaparecimento, fora registrada num dos números da Missão. E o Inspetor Neary afirmara que na Missão nunca existira nenhuma pessoa que correspondesse à descrição de Zuglert, e que muito menos este chegara perto de seu fone particular, do qual, segundo se dizia, fora mantida a palestra. Nesse meio tempo, Ron soubera, que o serviço de rádio do governo de Lepso debitara a Missão Comercial Terrana por uma ligação TTT de telecomunicação com a duração de cinqüenta segundos. Concluía-se que não havia nenhum mistério, e a essa hora o Inspetor Neary já devia ter percebido que cometera uma injustiça contra Dick Kindsom, quando manifestou a suspeita de que o major queria fazê-lo de bobo. Será que Neary estava ligado aos saltadores? Será que estes se haviam apoderado de Zuglert? Como foi que este conseguiu aproximar-se do aparelho de telecomunicação? Teriam relaxado em sua vigilância? Ron teve a impressão de que não poderia deixar de aceitar esta última tese, pouco importando o que pensasse a respeito dos acontecimentos passados. Zuglert só conseguira entrar em contato com a Flórida por ter escapado à vigilância, durante alguns instantes. Provavelmente julgaram que uma pessoa semimorta já não seria capaz de desenvolver qualquer atividade. “Até aqui não há a menor dúvida”, concluiu Ron. “Mas de onde Zuglert teria chamado?” De início quis afastar a idéia de que Neary pudesse estar ligado aos bandidos. Os funcionários terranos, que iriam servir no exterior, eram cuidadosamente selecionados e submetidos a um treinamento intensivo, que os preparava para suas funções. Dificilmente um deles falharia no desempenho de suas missões. “Isso em condições normais”, apressou-se Ron a retificar. Lembrou-se do ara que vira no escritório do Dr. Zuglert. Sempre que um ara estava metido em alguma coisa, devia-se ter o maior cuidado. Os médicos galácticos eram mestres no preparo de modernos caldos de bruxas. Era possível que Neary cooperasse com os saltadores por estar submetido à vontade de outra pessoa.
Mas havia outra possibilidade. Talvez Neary nem soubesse o que se passava em torno dele. Talvez os saltadores, que tinham seu esconderijo no mesmo edifício em que ficava a Missão dirigida por Neary, se tivessem apoderado do canal de comunicação terrano e possuíssem um aparelho que lhes permitisse realizar palestras sob o mesmo número-código da Missão Comercial... Seriam perfeitamente capazes disso, ainda mais que a ligação clandestina lhes permitiria ouvir as palestras que Neary realizasse em seu aparelho. Ron resolveu procurar o inspetor o quanto antes e falar-lhe a respeito daquilo em que acabara de pensar. Ficou refletindo sobre se valeria a pena voltar imediatamente ao edifício da Missão Comercial e entregar à polícia de Lepso os dois saltadores inconscientes, que se encontravam no subsolo. Mas chegou à conclusão de que nem deveria pensar nisso. Os saltadores saberiam o que dizer à polícia. E ele, que podia contar apenas com Gerard Lobson — uma testemunha nada segura — ainda poderia ser acusado de autor da agressão. Não era este o caminho que devia seguir. Mas de qualquer maneira tinha de falar o quanto antes com Neary. Levantou os olhos. Gerard começou a resmungar sons ininteligíveis. Seus olhos estavam injetados de sangue. Seu aspecto não era nada atraente. De repente levantou a cabeça e olhou para além do ombro de Ron. A expressão de seu rosto alterou-se. Os olhos, que até então pareciam vidrados e inchados, arregalaram-se e fitaram com uma expressão de pavor um ponto situado além das costas de Ron. Este teve imediatamente a impressão de que Gerard estava lançando mão de um velho truque para desviar sua atenção, a fim de fazer alguma coisa que ele, Ron, não deveria saber. Mas, de repente, ouviu as cadeiras serem empurradas em torno dele pelas numerosas pessoas que se levantavam ao mesmo tempo. Alguém gritou: — Chamem um médico! Depressa! Só então Ron virou a cabeça. Olhando por entre duas pessoas, que se dirigiam a outra mesa, viu por um instante o vulto de um homem que, segundo parecia, acabara de levantar-se da cadeira. Provavelmente concluíra sua refeição e pretendia sair do restaurante. Mal e mal, o tal homem tinha forças para manter-se de pé. Segurou-se com ambas as mãos na borda da mesa. Cambaleou e abriu a boca, respirando com dificuldade. A boca era apenas um buraco escuro em meio a uma horrível máscara marrom-amarelenta, que antes parecia uma caveira que a cabeça de uma pessoa viva. A memória de Ron começou a funcionar. O setor implantado pelos aparelhos misteriosos do Coronel Nike Quinto entrou em atividade. Lembrou-se da palestra que Kindsom mantivera com o Dr. Zuglert, e do aspecto que este último oferecia. Zuglert tinha exatamente o aspecto do homem que se encontrava à sua frente. Ron agiu com uma rapidez fulminante. Com um gesto rápido arrancou Gerard Lobson de cima da cadeira. — Fique logo atrás de mim — ordenou. Gerard confirmou com um gesto automático. Continuava a dirigir os olhos para o lugar onde se encontrava o homem-caveira, que agora estava escondido atrás de um grupo de pessoas. Ron afastou os que se encontravam mais próximos. — Abram caminho! — exclamou. — Aqui vem um médico. Olhando de relance, viu que Gerard o seguia conforme ordenara. As pessoas abriam caminho.
Ninguém pediu documentos que os identificassem. Tratava-se de pessoas desconhecidas, que se encontravam por acaso em determinado local, e testemunharam o desenvolvimento da doença de um deles. Estariam dispostos a aceitar a atuação de qualquer pessoa que se apresentasse como médico. Ron avançou habilmente até a mesa em que se achava o desconhecido. A caveira parecia nem notar sua presença. Não havia a menor dúvida de que era um terrano. Ron segurou-o pelo braço direito. — Venha comigo; sou médico — disse em inglês. — Estou disposto a ajudá-lo. O homem girou ligeiramente a cabeça. — Ajudar...? — disse num estertor. — Sim, pretendo ajudar — confirmou Ron. — O senhor pode andar, ou prefere ser carregado? Em vez de responder, o homem deu um passo para a frente, soltando a mesa. Teve de apoiar-se no braço de Ron, mas conseguiu manter-se de pé. Quando se dispôs a dar o segundo passo, os circunstantes afastaram-se. Ron olhou para Gerard, que se encontrava a seu lado, e suplicou aos deuses para que o parceiro não fizesse tolices. De início tudo foi bem. Acompanhado do homem com aspecto de caveira e de Gerard e, a uma distância maior, do grupo de curiosos que ia diminuindo, Ron dirigiu-se lentamente para a saída do restaurante. Finalmente viram-se na rua. Ron olhou em torno, à procura de um táxi, mas não havia nenhum por ali. O fato deixou-o espantado. Percebeu que, naquele trecho da calçada, não havia pedestres. De repente, Gerard soltou um grito de espanto abafado. Ron imaginou, mesmo sem ver, que seu parceiro pretendia fugir. Num movimento rápido, sua mão livre agarrou a jaqueta do bêbado. — Fique aqui! — gritou. Mal pronunciara estas palavras, uma voz áspera, vinda de detrás dele, disse: — Entregue-me este homem! Ron virou-se abruptamente. Às suas costas, um homem uniformizado saíra da sombra projetada pelo restaurante. Reconheceu o uniforme da polícia de Lepso. — Por quê? — perguntou o terrano. — Este homem está doente. Precisa de um médico, não de um policial. Um sorriso de escárnio surgiu no rosto do homem. — O senhor é médico? — perguntou num péssimo inglês. Ron julgou preferível não repetir a mentira. — Não — respondeu. — Mas pretendo levá-lo à presença de um médico. — Nós temos condições muito melhores para isso — afirmou o homem uniformizado. — Olhe. Não teve necessidade de olhar, pois ouviu. Um potente veículo giromático desceu e pousou junto ao meio-fio, num trecho do qual todos os veículos haviam sido removidos. De repente apareceram mais alguns policiais e cercaram Ron e o homem com aspecto de caveira. “Bloquearam uma parte da rua”, pensou Ron. Mais cinco policiais saltaram do veículo giromático. O terrano sabia perfeitamente que não teria a menor chance contra os milicianos. Isso deixou-o furioso. E, o pior: foi obrigado a esconder sua raiva.
— Acho que o senhor tem razão — disse, dirigindo-se ao policial que agora se encontrava à sua frente. — O senhor tem melhores possibilidades. Leve-o. O policial segurou o braço do velho doente e arrastou-o em direção ao veículo giromático. Ron ficou parado até que a porta do carro espacial se fechasse atrás do doente e do policial. Viu que o tráfego noturno voltou a fluir sobre o trecho da rua que até então ficara bloqueado. O veículo giromático subiu num salto arrojado, ganhou altura em meio à luz dos anúncios luminosos e acabou desaparecendo num mar colorido de luminosidade. Só agora Ron deu-se conta de que continuava a segurar a jaqueta de Gerard. Fez sinal com a mão livre, a fim de chamar um táxi que seguia lentamente junto ao meio-fio. O carro parou e a porta lateral traseira abriu-se. Ron empurrou Gerard para dentro do veículo escuro e depois entrou. A porta fechou-se automaticamente atrás dele. O motorista manteve-se imóvel atrás da direção. Não passava de um contorno vago na escuridão. — O senhor viu a viatura policial que acabou de decolar desta rua? — perguntou Ron. O motorista confirmou com um aceno de cabeça. — Pode fazer o favor de segui-la? Saberei recompensá-lo. A cabeça virou-se e inclinou-se para trás. — Farei isso pelo senhor, homem da Terra — disse o motorista. Por uma fração de segundo, a luz de um letreiro luminoso iluminou-lhe a face. Era o homem do planeta de Goszul, o mesmo que levara Ron Landry do espaçoporto à cidade.
5 Ron ocultou a surpresa. — Acho que o senhor está em toda parte, não está? — perguntou em tom irônico. O motorista já voltara a colocar em movimento o veículo, e o fizera decolar da rua. — Em toda parte onde precisam de mim — confessou. — Ao menos costumo estar. Quando o homem de Goszul teve de concentrar sua atenção na manobra de erguer o carro por cima do tráfego intenso, que se desenvolvia sobre a rua, a conversa morreu. Uma vez atingida a altura de dez metros, as piores dificuldades já haviam sido superadas. Quem quisesse voar mais alto precisava de licença, e a polícia de Lepso não gostava de concedê-la. O veículo ganhou altura rapidamente e passou por uma abertura existente na enorme muralha, formada pelos edifícios de escritórios, dirigindo-se para o noroeste. — Sabe para onde voou a viatura policial? — perguntou Ron. — Não tenho a menor dúvida — respondeu o motorista. — Já observei muitas vezes casos idênticos àquele em que o senhor esteve envolvido. Nesses, a polícia sempre segue na mesma direção. Ron olhou pela janela. Ali em cima era escuro. A nuvem de poluição produzida pela cidade cobria a paisagem. Viam-se apenas algumas estrelas. Ron não percebeu o menor sinal do carro de polícia. — Como é que o senhor consegue enxergar? — perguntou Ron. — Será que está seguindo o veículo da polícia em vôo visual? O motorista soltou uma gostosa gargalhada. — Pelos deuses dos bosques, garanto que não. Daqui de cima não se enxerga nem um palmo além do nariz — inclinou-se para a frente e pôs o dedo num instrumento do painel. — Tenho licença para trafegar em grande altitude, e por isso sou obrigado a possuir um instrumento de localização. Ron também se inclinou para a frente e viu na tela, que projetava os reflexos, uma profusão de pontos amarelos, verde-claros e azul-turquesa. — Se o senhor me perguntar qual é a viatura policial, provavelmente não saberei responder — disse em tom de perplexidade. — Isso não tem importância — contestou o motorista, com uma risada. — Afinal, sou eu que tenho de encontrar o caminho. Ron reclinou-se no assento. Estava surpreso com as atitudes do homem de Goszul. Ele surgira na hora exata de seguir a viatura policial. E Ron tinha certeza de que dificilmente outro motorista se teria mostrado disposto a fazer isso. Por coincidência também tinha uma licença de tráfego para grande altitude, sem o que seria impossível atender ao desejo de Ron, e evidentemente possuía os instrumentos que lhe permitiam identificar e seguir determinado veículo, em meio a dezenas de milhares de outros. Ron não pôde livrar-se da impressão de que eram muitos acasos reunidos de uma só vez. De repente sentiu certa desconfiança pelo motorista. No entanto, não conseguiu convencer-se de que o amável homem de Goszul pretendia fazer-lhe qualquer coisa. Olhou para Gerard Lobson, que estava recostado, em posição inclinada, com os olhos fechados e a boca aberta. Estava totalmente embriagado.
Ron voltou a inclinar-se para a frente. Viu que o amontoamento de pontos na tela se tornara mais ralo. Restavam apenas uns cem reflexos, e a cada segundo que se passava, seu número diminuía. Ao que parecia, a viatura policial seguia por uma rota de tráfego pouco intenso. De repente, Ron sentiu o desejo de ter a seu lado Larry Randall, um velho companheiro de lutas. Sentiu que não estava em condições de enfrentar sozinho o mundo de Lepso e as coisas que aconteciam por ali. Perguntou a si mesmo qual seria a tarefa que Nike Quinto resolvera confiar a Larry. Enquanto se encontrava na Terra, não tivera tempo de formular esta pergunta. Quinto costumava distribuir as missões de uma hora para outra. Via de regra, as pessoas enviadas por ele só descobriam a centenas de anos-luz da Terra que se haviam esquecido de perguntar, levar ou deixar alguma coisa. “Onde estaria Larry?”, pensou. — O que está fazendo seu companheiro? — perguntou o motorista, naquele instante. — Está dormindo — respondeu Ron. — Está mergulhado num sono profundo e repousante. — Ainda bem. Quando entrou no carro, parecia não ter vontade de nada. — Realmente não tinha. Acho que bebeu demais. O número dos pontos na tela do localizador continuava a diminuir. Depois de algum tempo, só restavam dois. Um deles encontrava-se próximo ao centro da tela, enquanto o outro se deslocava em direção à periferia e deveria desaparecer dentro de alguns segundos. — Já que nos conhecemos um pouco melhor — disse o homem de Goszul, reiniciando a conversa — peço licença para perguntar por que deseja seguir a viatura policial. A resposta de Ron foi imediata. — Quero ver se o doente realmente será levado para junto de um médico. — De um médico? — Isso mesmo. O doente sofreu um ataque agudo de fraqueza no interior do restaurante. Mal conseguiu manter-se de pé, e sua cabeça parecia uma caveira. O homem de Goszul resmungou alguma coisa incompreensível. Depois disse: — Já vi muitos casos iguais a este. Uma pessoa, alegre e bem-disposta, passeia tranqüilamente pela rua. De repente transforma-se num fantasma vivo. O rosto fica flácido, a pele torna-se seca, amarela e quebradiça... — É isso mesmo — confirmou Ron, em tom animado. — ...e, depois de algum tempo, aparece a polícia, coloca-o no veículo e o leva. Gostaria de saber se lá nos confins do deserto de Sukussum realmente existe um médico. — Onde? — No deserto de Sukussum. É o lugar ao qual nos dirigimos, e para onde costumam ir os veículos da polícia que levam doentes a bordo. Esse deserto tem mil nomes. Cada raça que vive em Lepso lhe deu um nome diferente. O que gosto mais é Sukussum. Ron pôs-se a refletir. Então os doentes eram levados para o deserto. Será que Zuglert também se encontrava lá? — Como é seu nome? — perguntou, dirigindo-se ao motorista.
— Roll — respondeu este. — Vivo em Lepso há cinco anos e meio, estou devidamente registrado como motorista de táxi, possuo licença de tráfego em grandes altitudes e... — Está bem, está bem — interrompeu Ron. — Não tive a intenção de submetê-lo a um interrogatório. Qual é a área do deserto? — Na direção noroeste segue por uns mil e oitocentos quilômetros, até a costa do mar de Seyfour. Para o nordeste e o sudoeste mede uns trezentos quilômetros, a partir daqui. Estamos voando exatamente pela linha do centro. É um bom pedaço de terra. Ron confirmou com um gesto. Fazia votos de que o ponto de destino escolhido pela viatura policial não ficasse na extremidade oposta do deserto. Duvidava de que as reservas energéticas do táxi de Roll fossem suficientes para voar até o fim do deserto e voltar a Zanithon. Transmitiu seus receios a Roll. — Não se preocupe com isso — disse o homem de Goszul, em tom tranqüilizador. — Já atravessamos metade. — Metade de quê? — perguntou Ron, perplexo. — Do deserto. Já deixamos para trás quase mil quilômetros. Ron realizou alguns cálculos rápidos. Não fazia mais de trinta minutos que haviam decolado da Avenida dos Cinco Mares. — Que velocidade estamos desenvolvendo? — perguntou. — No momento estamos voando a cerca de dois mil e quinhentos quilômetros por hora, numa altitude de quinze quilômetros — respondeu Roll, em tom indiferente. Ron teve a impressão de que, para um simples táxi-planador, esses dados eram estranhos. *** Teve certeza de que havia algum mistério envolvendo Roll. Mas acreditava firmemente que era um mistério agradável. Por isso resolveu não perguntar. Roll lhe revelaria os fatos quando achasse adequado. Poucos minutos depois do momento em que Ron teve conhecimento do desempenho espantoso do táxi, o reflexo luminoso produzido pela viatura policial começou a afastar-se do centro da tela. — Estão pousando — anunciou Roll, com a voz tranqüila. — O senhor conhece o terreno? — perguntou Ron. — Não. Ninguém conhece. O deserto de Sukussum pode ser considerado tranqüilamente como área inexplorada. Ninguém jamais penetrou nele mais de vinte quilômetros e as linhas de navegação aérea traçam suas rotas de maneira a evitar o deserto. Preferem percorrer um trajeto mais longo. Ron não teve outra alternativa senão tomar sua própria decisão. Procurou avaliar que distância da viatura policial, pousada no deserto, representava a combinação mais favorável entre a prudência e os limites do raio de ação. Instruiu Roll a baixar cinqüenta metros e prosseguir mais um trecho em direção ao noroeste. Roll seguiu as instruções. Enquanto o táxi estava descendo, determinou o ponto em que o veículo da polícia pousara. Assinalou-o num cartão vazio, introduziu-o num traçador de rota e deixou que este, depois de ter apurado a posição de seu veículo em relação ao da polícia, registrasse a rota do táxi no cartão. Dali a alguns minutos, o planador pousou. Ron viu as vagas sucessivas de dunas amarelas iluminadas pela luz débil das estrelas. Notou as nuvens de areia fina
brincarem, tangidas pelo vento, em torno das linhas de cumeeira e ouviu o canto e o tilintar dos grãos de areia sob a ação constante do deslocamento do ar. Roll ligara a luz de posição e entregou a Ron o cartão do registrador de rota. Via-se que o veículo policial se encontrava quase exatamente na direção norte, numa distância não superior a um quilômetro e meio do táxi de Roll. Ron resolveu agir imediatamente. Pediu a Roll que cuidasse de Gerard, que continuava a dormir, mas Roll recusou-se a isso. — Quer saber uma coisa? — disse. — Acompanhei o começo da aventura e também quero assistir ao fim. Por que não o trancamos no carro e deixamos que continue a dormir? — O senhor sabe o que isso significa? — perguntou Ron, em tom de surpresa. — É possível que a polícia não goste de que eu fique espionando o que ela está fazendo. Talvez haja um tiroteio e... — Não me importo — respondeu Roll. — Para mim, isso é muito interessante. No fundo, o agente ficou satisfeito em saber que teria um companheiro. Formulou uma pergunta: — O senhor pode desligar o mecanismo propulsor de tal forma que Gerard não possa fazer nada quando acordar? Roll soltou uma risada. — É claro que posso. Andei pensando a este respeito. Nem precisamos trancá-lo. Não vai ser idiota a ponto de sair correndo pelo deserto de Sukussum. Ron ponderou que Gerard nem sabia em que lugar haviam pousado. Resolveram não trancar o carro e deixar um pequeno recado para Gerard. Roll desligou o mecanismo de propulsão e tirou a chave codificada. Depois disso puseram-se a caminho. Tomaram a direção norte, percorrendo um vale formado por duas fileiras de dunas. O ar estava fresco. A areia já irradiara o calor do dia anterior. Caminhavam vigorosamente, a fim de esquentar o corpo. Via de regra, Roll ia alguns passos à frente de Ron, como se já conhecesse o caminho. Na luz mortiça das estrelas, só se via uma silhueta, dando ao agente terrano a impressão de que Larry Randall caminhava à sua frente. A visão teve um efeito tranqüilizador sobre Ron. Mas este logo chegou à conclusão de que não havia o menor motivo para ficar tranqüilo. Roll tinha um segredo. E era possível que ele, Ron, estivesse enganado ao supor que tal segredo fosse agradável. Como explicar, por exemplo, que ele se mostrara disposto a participar de uma ação perigosa, como a de aproximar-se furtivamente de uma viatura policial? *** Quando haviam caminhado cerca de um quilômetro, ouviram o ruído surdo de um motor de fusão, vindo da esquerda. Ron subiu correndo a encosta suave da duna mais próxima. Afundou até os joelhos na areia macia. Mas chegou em tempo de ver alguma coisa escura levantar-se nas proximidades, entre as dobras formadas pelas dunas, e subir para o céu. O veículo da polícia acabara de decolar.
Ron não teve a menor possibilidade de determinar-lhe a rota. Contrariando todas as regras, os policiais deixaram de colocar as luzes de posição. O zumbido do motor diminuiu rapidamente e logo cessou de vez. Muito pensativo, Ron voltou para junto de Roll, que o esperava. — Já decolaram, não é? — perguntou Roll. — Já. Gostaria de saber o que significa isso. Roll cocou a cabeça. Era um gesto tipicamente terrano. Por um instante Ron espantou-se. — Isso só pode significar que largaram o doente nas proximidades — disse Roll. — Talvez não — objetou Ron. — Também pode significar que tenham pousado devido a uma avaria na máquina, e que tenham levantado vôo depois de repará-la. Roll fitou-o. Finalmente declarou em tom convicto: — Não; não pode ser isso. Ron sentiu-se perplexo. — Por que tem tanta certeza disso? Roll fez um gesto de impaciência. — Que diabo! Vamos deixar cair as máscaras — disse sem maiores explicações. Ron ficou rijo de espanto ao ver seu acompanhante pôr a mão na boca e tirar alguma coisa, que jogou fora. Levantou os olhos. Quando Roll voltou a falar, o timbre de sua voz era totalmente diferente. — O fato é que eu sei, Ron — disse. — Lá atrás existe uma construção. Certa vez eu a vi de uma grande altura, mas... Surpreso, Ron deu um passo para trás. Conhecia aquela voz; e durante toda a viagem desejara ouvi-la a seu lado. Percebeu que Nike Quinto lhe pregara uma peça. Não o mandara só para Lepso. — Larry, seu safado! — disse numa alegre exaltação. *** — Espere até que eu tenha tirado tudo isto que fizeram com meu rosto — falou Larry Randall, em tom contrariado. — Depois voltarei a ser o Capitão Randall. Ron tinha uma porção de indagações na ponta da língua. Como veio parar aqui, por que usou o disfarce de motorista de táxi, qual a missão que lhe foi confiada por Nike Quinto, por que usou máscara? Mas sabia que teria de deixar as perguntas para outra oportunidade. — O que há com essa construção? — indagou. — A frota forneceu-me algumas fotografias aéreas — disse Larry. — Nesta região existe uma construção, ou melhor, um grupo de construções que nenhuma pessoa em Zanithon ou em qualquer outro lugar sabe para que servem, quem as ocupa e quem as fez. E, o que é pior, em Zanithon ninguém parece saber da existência dessas construções. Ron confirmou com um sorriso. — Isso mesmo. Pelo que contou meu motorista de táxi, o deserto de Sukussum é uma área inexplorada. — Não tenha a menor dúvida — confirmou Larry, em tom tranqüilo. — De qualquer maneira, tenho certeza de que foi lá que os policiais deixaram o doente. Feito isso, voltaram a levantar vôo. — Bem — disse Ron. — Vamos dar uma olhada nesse lugar.
Larry concordou. Ron dirigiu-se até a duna da qual descera há pouco. Subiu-a, e voltou a olhar em torno. Porém a luz das estrelas não lhe permitiu reconhecer o grupo de edifícios que, segundo Larry acabara de informar, devia ficar por lá. O capitão parou a seu lado. — Pelo que se conclui das fotografias, os edifícios são baixos — disse em tom comedido. — É bem possível que só consigamos vê-los do ponto mais alto da próxima duna. Mas Ron acabara de descobrir outra coisa. A fileira de dunas não continuava indefinidamente na direção oeste. Pelo que pôde ver à luz mortiça das estrelas, só havia mais dois montes de areia à sua frente. Atrás deles parecia estender-se uma área plana, até onde a vista alcançava. Se havia algum edifício no meio do deserto, este só podia ficar nessa área. Voltaram a pôr-se a caminho. Era difícil caminhar na areia. Tiveram de poupar suas forças, pois, após cada passo, gastavam energias ao puxarem seus pés que afundavam na massa pulverizada. Apesar do frio raiar do dia, o suor começou a correr por suas testas. Mas, dali a meia hora, conseguiram. Abrigados atrás da última fileira de dunas, olhavam por cima do cume. Embaixo deles estendia-se um trecho de muralha cinzenta, que corria na direção norte-sul, e atrás dela amontoava-se uma quantidade enorme de edifícios de vários tamanhos. Alguns deles eram cúbicos ou retangulares, enquanto outros imitavam uma pirâmide ou uma esfera. Em seu conjunto, o complexo realmente era impressionante. Ron gostaria de saber por que haviam construído uma cidadezinha nesse lugar, longe do tráfego e das amenidades que a vida de Lepso oferecia. Só no primeiro instante espantou-se com o formato estranho das casas. Logo se lembrou de que em Lepso não havia motivo para admirar-se com tal tipo de construção. Lepso era um cadinho em que se fundiam as raças galácticas. Ao construir, cada um agia segundo seus hábitos. Era verdade que Ron não sabia que em Lepso havia cidades inteiras construídas num só estilo estranho. Examinou cuidadosamente o núcleo populacional. Se por ali vivia gente ou outros seres, estes habitantes ainda estavam dormindo ou permaneciam no interior das casas. O lugar parecia deserto, e se as circunstâncias da descoberta fossem diferentes, Ron teria chegado à conclusão de que o local era desabitado. Acontece que o doente desaparecera por lá. Em hipótese alguma, os policiais o teriam levado a uma cidade sem população. Quer dizer que lá embaixo devia haver vida. Ron fitou o maior edifício: uma pirâmide erguida no centro do grupo de construções. De repente teve a impressão de que um perigo irradiava da cidade construída em meio ao deserto. Não sabia explicar por que motivo fora erguido o pedaço de muralha. Bastaria contorná-lo para atingir a cidade. O céu começou a mudar de cor. As estrelas empalideceram, e a claridade de um novo dia raiou no norte. As sombras, que Ron e Larry viam à sua frente, transformaramse em silhuetas. Naquele momento Ron lembrou-se de que, enquanto fora mantido preso pelos saltadores, devia ter dormido um dia inteiro. Do contrário sua contagem do tempo não dava certo.
Aproximaram-se cautelosamente do primeiro edifício que se erguia na areia, e que tinha a forma de um cubo. Não havia janelas. As paredes pareciam ser de pedra. No momento não se via ninguém junto à entrada. Contornaram o cubo e encontraram uma fenda do lado voltado para a pirâmide, que localizava-se no centro do grupo de edifícios. Esta delineava um quadrado de metro e meio que se desenhava na parede de pedra. Não havia nenhum mecanismo capaz de mover a porta, se é que realmente se tratava de uma porta. Por isso Larry não teve muita esperança de sucesso, quando procurou forçá-la com o ombro. E justamente por isso quase caiu, no momento em que a pedra cedeu, sem oferecer a menor resistência. A peça cercada pela fenda girou leve e silenciosamente para o lado de dentro, pondo a descoberto um recinto escuro, quente, úmido e malcheiroso. Ron segurou a arma que tomara dos saltadores. Larry pulou para o lado. Da escuridão que reinava no lado de dentro, saiu um forte chiado. Ron esperou. Teve a impressão de que alguma coisa se movia na escuridão. Dali a alguns segundos viu que não se enganara. Alguma coisa saiu rastejando. De início Ron vislumbrou uma figura semelhante a uma vara fina e branca. Acontece que na parte superior desta havia uma articulação. Seguiu-se mais um pedaço de vara, enrolado numa espécie de pano. Era uma perna humana! Ron obrigou-se a permanecer tranqüilo. Esperou até que aquela incrível criatura conseguisse deslocar-se totalmente para a claridade do início do dia. Teve de esforçar-se para fitar a criatura. Sentiu pena como nunca sentira, e repugnância por aqueles que deixavam que esse destroço humano se acabasse no deserto. O homem, que haviam visto no restaurante de Zanithon e que fora entregue à polícia, era um modelo de aparência sadia em comparação à criatura estendida no chão à frente de Ron, o major, e Larry, o capitão. A triste figura mal conseguiu levantar a cabeça do chão. Fez algumas tentativas, mas sempre voltava a cair na areia. Ron abaixou-se e ajudou-o. A caveira fitou-o com os olhos apagados. Os lábios moveram-se, e num grasnado saíram estas palavras, pronunciadas em inglês: — Eternamente... eu vos sirvo... meus senhores. Ron não quis perder tempo. — Coragem, amigo — disse à criatura. — Nós o tiraremos daqui. Quem é você? Como foi parar neste lugar? A cabeça esteve a ponto de cair para a frente, mas Ron segurou-a e obrigou a criatura a fitar seus olhos. — Eternamente... — repetiu a criatura, num estertor. Não teve forças para pronunciar outra palavra. Ron largou-a cuidadosamente na areia e levantou-se. — Não adianta — disse em tom de resignação. — Vamos ver se encontramos alguém que tenha mais saúde e vigor. Caminharam em silêncio. Ron refletiu sobre o significado das palavras que aquela criatura lhe dissera. Evidentemente achava essas palavras muito importantes, pois continuava a pronunciá-las num estado de total abatimento. A quem pretendia servir? Quem eram os senhores a que aludira? Ron quase chegou a acreditar que se tratava de uma espécie de oração. Mas não conseguira descobrir qualquer sentido nisso.
Aproximaram-se do segundo edifício, que também tinha a forma de um cubo, e abriram-no com a mesma facilidade do primeiro. Mas desta vez uma surpresa lhes estava reservada. Um pedaço de material com o formato de caixa caiu para fora, vindo de trás da porta, e parou diante de seus pés. Ron fitou-o, perplexo. Apresentava uma configuração cúbica, tal qual o edifício no qual estivera deitado e era tão leve que parecia oco. Virouo e descobriu a janela quebrada de um dos lados. Compreendeu que acabara de encontrar uma pista do ser de Pisalam. Era uma pista triste, pois o destino que aguardava um pisalamense, que perdesse seu traje protetor em Lepso, só poderia ser um: a morte. Ron ainda estava refletindo sobre o macabro achado, quando um gongo soou fortemente em algum lugar, ressonando num zumbido que feriu os ouvidos de Ron. Virou-se apressadamente. Lançou um olhar indagador para Larry, mas este limitou-se a dar de ombros. — Também não sei o que é isso. Ao que parece, o som vem de dentro do chão. Por coincidência o major olhou para a grande pirâmide, cuja ponta sobressaía sobre os telhados planos e as cumeeiras dos outros edifícios. Larry ouviu o amigo soltar um grito de espanto e virou-se abruptamente. No topo havia um vulto que, do lugar em que se encontravam, parecia muito pequeno. Até mesmo sob a luz fraca do amanhecer, a figura cintilava de tantas jóias que se encontravam penduradas em seu corpo. Movia-se. Parecia que se inclinava em diversas direções. De repente, Ron teve certeza de que sua suposição fora correta. A cidade, os doentes com cabeça de caveira, que se encontravam no interior das cabanas de pedra, a figura, que acabara de surgir no topo da pirâmide — tudo isso fazia parte de algum culto. A pessoa, que se achava no alto da pirâmide, parecia ser um sacerdote. Talvez fosse um daqueles aos quais o terrano semimorto prometera servir eternamente. A idéia deixou Ron furioso. — Vamos até lá — gritou para Larry. — Temos de pegar esse sujeito. Contornaram apressadamente o cubo mais próximo e correram em direção à pirâmide, passando por uma viela que seguia entre as construções pequenas. A batida de gongo parecia não modificar em nada a inatividade que se notava na cidade. Tudo continuava quieto e vazio como antes. Com uma única exceção... Quando chegaram mais perto da pirâmide, ouviram que o homem reluzente no topo desta estava cantando. Era uma cantoria triste, desfiada em tom de ladainha. Comunicava-se com um dos pretensos ídolos, em homenagem ao qual deixava que terranos, pisalamenses e outros seres definhassem. Era ao menos o que Ron pensava, e sua raiva aumentou. De cada um dos lados da pirâmide, uma série de largos degraus levava para o alto. Ron não perdeu tempo. Empunhando a arma, correu escada acima. Larry gritou alguma coisa, mas Ron não ouviu. Só viu o ser envolto em trajes reluzentes, que continuava de pé lá em cima. Mas, de tão surpreso que ficou, o “pajé” parou em meio à cantoria. — Desça daí — gritou Ron. — Desça para ser responsabilizado por seus atos de crueldade. Não esperou para ver se o ser estaria disposto a obedecer à ordem. Continuou a correr escada acima. Faltavam poucos degraus para chegar ao topo da pirâmide, apenas uns dez ou doze. Logo estaria lá. Mas de repente... De repente!
Por alguns segundos Ron viu o rosto daquele ser, do sacerdote, bem à sua frente. A raiva e o esforço dispendido fizeram com que, na mente do terrano, o rosto do “feiticeiro” se transformasse numa careta. Por um segundo teve a impressão de que bastaria estender os braços para agarrar aquele homem. Mas de repente, o gongo soou pela segunda vez e, de súbito, Ron Landry viu-se num lugar totalmente diverso. *** Em torno dele ouviram-se sons estridentes, gritos, guinchos e choros nos mais diversos tons. Sentiu que alguma força o fazia girar loucamente em torno de seu próprio eixo. Sentiu-se perdido. O cérebro recusou-se a pensar. Deixou-se girar e reprimiu a dor lancinante causada pelo barulho, que se desenvolvia em torno dele. Com um ligeiro resquício de curiosidade, procurou reconhecer se sentia alguma coisa além da dor, como por exemplo o deslocamento do ar, já que estava sendo girado violentamente, ou a dificuldade de respiração, enquanto se sentia cada vez pior. Mas não havia ar e parecia não estar respirando. Ron procurou mover os braços, mas não havia nada que pudesse ser movido. Transformara-se em algo de incorporal, que girava num espaço irreal. De repente, fragmentos de idéias estranhas começaram a atropelar-se em seu cérebro. — Você insultou Baalol. Por isso terá a pior das mortes. Você insultou Baalol. Ron não sabia quem ou o que vinha a ser Baalol. Não se interessava por isso. Mas se estava prestes a sofrer a pior das mortes, queria que tudo se passasse o mais depressa possível, principalmente a gritaria em torno dele. Mas, ao que parecia, o desejo de Ron não iria cumprir-se. Os uivos tornaram-se cada vez mais fortes. De repente surgiram outros pensamentos. — Não matem... Vocês não o matarão... Seus idiotas... Encontraram alguém mais poderoso. Ron aguçou o ouvido. Eram apenas pensamentos, e o pensamento não tem voz. Mas teve a impressão de que reconhecia a voz de alguém. Teve a impressão de que sabia quem falava — ou pensava. Era alguém que lutava pela sua vida. Isso mesmo, pela sua vida. Quem seria? Girava loucamente no nada, sem a menor resistência, e o que mais desejava era que o sofrimento terminasse o quanto antes. Reuniu as últimas energias. Começou a recear pela vida. Resistiu ao destino que forças fantásticas e selvagens lhe haviam atribuído. Ajudou o alguém que lutava a seu lado contra os estranhos para salvá-lo. Passou a girar mais lentamente. A gritaria tornou-se mais fraca. Mais uma vez, Ron captou os pensamentos estranhos: — Estão vendo? Vocês não conseguem nada... Venci... Maldito seja Baalol! Subitamente surgiu o silêncio. Por um instante, o major teve uma impressão confusa: parecia estar caindo num vazio. Realmente devia ter caído, pois bateu fortemente em alguma coisa. Depois começou a rolar, voltou a declinar e acabou por se segurar numa pedra.
Abriu os olhos. Sentiu-se ofuscado pelo sol. Viu à sua frente uma pequena superfície de pedra, seguida de uma aresta abaixo da qual vinha outra superfície de pedra. Era a escada! Estava deitado nos degraus da escada que subia pela pirâmide. Ergueu-se sobre os joelhos e olhou em torno. Seu olhar foi atraído por alguma coisa brilhante, cintilante. Eram as vestes do sacerdote. Estava deitado, pouco acima de Ron. A cabeça mantinha uma estranha posição e os olhos vidrados achavam-se muito arregalados. Estava morto. Não havia a menor dúvida. O olhar de Ron continuou a caminhar pela pirâmide e deu com outro sacerdote, que escorregara escada abaixo, tal qual o primeiro, e se encontrava deitado, imóvel. Alguns degraus mais embaixo havia um terceiro sacerdote, e um quarto descera por toda a escada e estava jogado na areia, com o corpo contorcido. Ron pôs a mão na cabeça. “O que aconteceu?”, pensou. “Onde estará Larry?” Viu alguma coisa mover-se na sombra de um dos pequenos edifícios de formato cúbico. Num gesto apressado, pôs a mão na arma — ou melhor, quis colocá-la, mas teve de constatar que já não trazia a pistola. Devia tê-la perdido. A sombra penetrou na luz e transformou-se na figura esbelta e de estatura média de Larry Randall. Ron levantou-se de vez e desceu a escada com as pernas cansadas. Quando se encontrava a meio caminho, viu um radiador térmico jogado nos degraus. Levantou-o e colocou-o no cinto. Larry lançou-lhe um olhar indagador. — O que foi isso? — perguntou. — O que foi o quê? — replicou Ron, por sua vez. — Esse espaço estranho... o movimento giratório... as vozes... Ron arregalou os olhos. — Você também? — perguntou em tom de perplexidade. Larry fez que sim e relatou: — Vi você subir os degraus que nem um louco. Gritei para que não o fizesse. Lá no topo da pirâmide, surgiram mais alguns desses sujeitos reluzentes. Não davam a impressão de que ficariam quietos enquanto você lhes dissesse umas verdades. Quis preveni-lo, mas você não me ouviu. E de repente começou... Não estava mais aqui. Flutuava em algum lugar e não via mais nada. Em torno de mim havia um barulho infernal. Alguém disse que iria matar-me porque faltei com o devido respeito, ou coisa que o valha, perante... bem, esqueci o nome. Mas houve outro alguém que se opôs a isso. De súbito tudo cessou, e caí na areia. Continuava a fitar Ron, como se esperasse que este lhe desse uma explicação. Mas Ron limitou-se a dizer: — Vamos voltar. Lançou os olhos para o sol e viu que pelo menos duas horas deviam ter passado, desde o momento em que avistara o sacerdote no topo da pirâmide e depressa dirigira-se até ele. O relógio confirmou a suposição. O movimento giratório consumira bastante tempo. Lembrou-se de Gerard Lobson. Provavelmente, já havia acordado da embriaguez. Talvez tomasse uma atitude absurda e saísse correndo por aí. Assim que visse que em torno dele apenas havia areia, vento e uma cidade-fantasma, naturalmente voltaria. Mas até lá se perderia tempo, um tempo precioso. E Ron não tinha tempo...
Saíram. A cidade voltara a ficar silente como no momento em que a viram pela primeira vez. Estava abandonada, com exceção dos vultos imóveis jogados ao pé e nos degraus da pirâmide. Ron perguntou a si mesmo o que significava isso. Em pleno deserto havia uma cidadezinha, ou melhor, uma série de construções, que se agrupavam em torno de uma pirâmide que, segundo tudo indicava, era um templo. A finalidade das construções parecia consistir unicamente em abrigar os servos dos sacerdotes, que eram as criaturas semimortas recolhidas em Zanithon e, provavelmente, também em outras cidades. Que doença seria esta, que atacava as pessoas em plena rua, durante as refeições ou numa conversa, e transformava criaturas vigorosas em cadáveres ambulantes? E que seita seria esta, cujos sacerdotes recrutavam estes enfermos como servos, e isso com o apoio da polícia do planeta? Ron acreditou ter uma explicação para aquilo que lhe acontecera quando procurara atacar o sacerdote. Este não utilizara nenhuma arma material. Lutara com as armas do espírito. Ele e os que acorreram em seu auxílio deviam ser certos tipos de mutantes. Dispunham de faculdades parapsicológicas. Ao que tudo indicava, entre estas se incluía a de transportar aquele que os atacasse para uma outra dimensão e fazê-lo girar até que morresse. O estranho em tudo isso era que ele mesmo pouco sabia a respeito dos tais sacerdotes! Será que eles apenas existiam em Lepso, ou também estariam em outros lugares, onde trabalhavam às escondidas como aqui? Era uma pergunta atrás da outra. Ron teve a impressão de que vislumbrava uma pista. De repente, o nome Baalol despertou sua memória para alguma coisa. Não sabia o que era. Mas lembrou-se de que esse nome tivera uma relação nada agradável com a História da Terra dos últimos meses ou anos. Quanto à voz estranha, que lutara com os sacerdotes de Baalol pela vida dos dois prisioneiros e acabara por libertá-los do espaço irreal, cheio de gritos e uivos, não havia por que fazer conjeturas. Agora Ron poderia até apostar, pois tinha certeza de quem se tratava. Seu amigo de Pisalam realmente dispunha de faculdades espantosas! *** Durante a caminhada de volta, não disseram uma única palavra. Atravessaram as fileiras de dunas e perderam de vista a cidade que se estendia em torno do templo. Vez por outra voltavam a cabeça, a fim de verificar se, por acaso, os sacerdotes os perseguiam. Mas a luta espiritual contra o pisalamense parecia ter consumido todas as energias dos tais sacerdotes. O deserto jazia em silêncio, e o ar tremeluzia sob a ação do calor. Finalmente o táxi surgiu à sua frente. Cansados e suarentos desceram pela encosta da última duna. Caminhando lado a lado, foram-se aproximando do veículo. Subitamente Ron estacou e segurou Larry pelo ombro. O carro estava vazio. Gerard Lobson havia desaparecido. — Que idiota! — exclamou Larry em tom furioso. — Para onde será que ele foi? Procuraram localizar o rastro, mas o vento parecia ter desenvolvido uma atividade muito intensa. Havia algumas impressões apagadas, que se perdiam entre as dunas, na direção norte. Mas ninguém poderia dizer se foram as que os dois homens haviam produzido na manha daquele dia, ou se provinham de Gerard Lobson.
Larry contornou o veículo. Ron parou e refletiu sobre se convinha subir à próxima duna, a fim de ter uma visão mais ampla. Mas não teve tempo para tomar uma decisão. Ouviu um ruído atrás de si e virou-se abruptamente. Mas Gerard Lobson foi mais rápido. Ergueu-se do buraco que ele mesmo cavara na areia. Gerard estava inclinado para a frente. Achava aquilo divertido. Era ao menos o que se concluía de seu sorriso. Mas o pior de tudo: segurava um pequeno radiador de tiro concentrado, e seus efeitos eram mortíferos.
6 Parecia uma situação louca. Gerard se via obrigado a dirigir sua atenção para dois lados, e os homens à sua frente estavam armados. Não tinha a menor chance de ser bemsucedido. Mas a um novo exame crítico, as coisas mudavam de feitio. Gerard tivera tempo para refletir, e aproveitara bem esse tempo. Encontrava-se a cerca de quinze metros do táxi. Achava-se bem próximo para realizar um disparo seguro, e bastante longe para ficar de olho nos dois homens ao mesmo tempo, sem virar a cabeça. Em compensação Larry e Ron não viam um ao outro. Larry encontrava-se atrás do planador, onde ficara parado. Provavelmente, Gerard “protestaria” se fizessem qualquer movimento. Isso significava que não podiam recorrer a gestos ou olhares para combinar uma ação conjunta. Nenhum dos dois sabia o que o outro estava fazendo. Ao que parecia, Gerard já se deleitara bastante com a visão dos dois homens. Pôsse a falar, e sua voz tinha um timbre estranho. — Os senhores e eu voltaremos juntos para Zanithon — anunciou. — Irão no assento da frente, e eu no de trás. Irão sem armas, enquanto eu levarei este radiador. Ao que parecia, Larry acabara de fazer um movimento. Num rápido giro, Gerard mudou ligeiramente a direção de sua arma e gritou: — Pare! Evidentemente Larry obedeceu, pois Gerard voltou a descontrair-se. — De qualquer maneira pretendíamos ir para Zanithon — disse Ron, em tom indiferente. — Para que serve essa palhaçada? — Acontece que os senhores não iriam ao lugar que eu quero — disse Gerard. — Para onde pretende ir? — Para onde estão meus amigos, que, quando eu os entregar, me ficarão devendo alguma coisa. — Para onde estão os saltadores, não é? — perguntou o major, em tom irônico. Aquilo não passara de uma adivinhação. Ron não tinha qualquer prova de que Gerard colaborava espontaneamente com os saltadores. Mas acertou. Gerard arregalou os olhos. — Como soube disso? — replicou surpreso. Ron soltou uma risada irônica. — Ora, Lobson, o senhor me contou tantas mentiras que tive de construir minha própria história. O senhor estava sentado com os dois saltadores e o ara no escritório de Zuglert, não é? De repente um dos saltadores levantou-se e saiu da sala. Não foi o que o senhor disse? Quando voltou, trazia-me nos braços. Santo Deus, da próxima vez o senhor terá de aprender a mentir melhor. O senhor estava montando guarda lá embaixo; a verdade é esta. “Os saltadores desconfiaram de mim, desde que cheguei a Lepso na nave Efraim. O melhor meio de descobrir se a suspeita era fundada consistia em aguardar para ver se eu faria uma visita ao escritório de Zuglert. Nem havia necessidade de manter-me sob vigilância. Bastava colocar um guarda no edifício da Rua Oitenta e Seis, e tomar certos preparativos de ordem técnica. O guarda foi o senhor, Lobson, e os preparativos foram
realizados de tal forma que o campo antigravitacional de cada poço de elevador pudesse ser desligado a qualquer momento. “Quer dizer que seu trabalho era ficar atento e avisá-los quando eu chegasse. Não venha me dizer que um único saltador me levou para cima. Haveria necessidade de pelo menos dois homens. Afinal, a ação tinha que ser rápida, pois naquele edifício havia gente que não tinha nada a ver com aquilo. O senhor o ajudou a carregar-me, não é mesmo?” Por algum tempo Gerard parecia totalmente perplexo. Mas logo recuperou o autocontrole e um sorriso atrevido surgiu em seu rosto: — Pois bem. E daí? Tem alguma objeção? Ron balançou a cabeça. — Nenhuma — respondeu em tom sério. — Ainda mais que eu sei que o senhor não é responsável pelo que fez. Gerard voltou a assustar-se. — O que quer dizer com isso? — perguntou furiosamente. Ron fez um gesto de desprezo. — Deixemos isso para depois — disse. — O senhor, que por assim dizer nos tem nas mãos, poderia responder a algumas perguntas? Avaliara corretamente a personalidade de Gerard. Agora, que sentia-se vitorioso, estava disposto a exibir seus conhecimentos. Fez um gesto benevolente e respondeu: — Pergunte! — Seus amigos, os saltadores, violaram uma linha de telecomunicação da Missão Comercial Terrana, não é? Gerard fez um gesto afirmativo. — Zuglert falou por essa linha? — Pelo que sei, sim. Mas não falou do edifício da Missão. Por uma questão de comodidade, a linha violada foi transferida para a sede da representação comercial dos saltadores. Foi de lá que Zuglert falou, num momento em que relaxaram em sua vigilância. — Como foi parar lá? — Depois que o deixei, ele conseguiu reunir forças e saiu de seu escritório para pedir auxílio. — Um instante — interrompeu-o Ron. — Em seu escritório havia um videofone. Por que não chamou de lá? Gerard hesitou. — Não sei. Provavelmente achava que o assunto era tão importante, que não queria confiá-lo à primeira pessoa que pudesse alcançar com o videofone de pequeno alcance. Realmente, quando falou da representação comercial dos saltadores, não chamou ninguém, mas pediu ao sistema de comunicações que o ligasse com a primeira nave terrana com a qual conseguisse estabelecer contato. Provavelmente estava fazendo a ligação de telecomunicação, quando saiu de seu escritório — um sorriso irônico surgiu no rosto de Gerard. — Acontece que subestimou a vigilância dos saltadores. Dificilmente existe um edifício no centro da cidade que eles não mantenham sob vigilância. Descobriram-no em tempo e levaram-no. Infelizmente, depois disso surgiu um contratempo. Manteve aquela palestra com a Flórida... mas não conseguiu revelar nenhum dado importante. Desta vez, Ron soltou uma risada de escárnio. — O senhor já me revelou todos os detalhes, Lobson — disse em tom tranqüilo.
— Eu? — Isso mesmo. O senhor não repetiu fielmente o que Zuglert disse no momento em que teve o acesso de fraqueza? “Importante para a Terra... Todos devem ser prevenidos... Meu exemplo prova... Solução alcoólica de que ninguém desconfia...” Não acha que isso basta para que se tirem algumas conclusões? Gerard fez um gesto negativo. — Não — disse em tom áspero. — Acredito... — Diga-me mais uma coisa. Por que os doentes são levados ao deserto? — perguntou Ron. — O que é que os sacerdotes de Baalol fazem com eles? Gerard estremeceu num gesto nervoso e seu rosto ficou muito pálido. — Não sei! — exclamou em tom exaltado. — Nunca mais pronuncie esse nome. Baalol representa um poder terrível. Ron lembrou-se daquilo que acabara de acontecer com Larry e ele. Estava disposto a dar uma ênfase toda especial às últimas indagações. — Pois bem — respondeu em tom frio. — Vejo que o senhor ainda não sabe. Fitou Gerard e prosseguiu: — Acontece que eu sei alguma coisa. O senhor é um viciado em drogas, e é só por isso que se dispõe a colaborar com os saltadores. A droga de que precisa não é muito cara, mas acontece que o senhor não tem dinheiro. Foi por isso que entrou em contato com Zuglert. Precisou de que ele o ajudasse em algum truque grosseiro que lhe renderia algum dinheiro. Mas Zuglert já conhecia sua fama e sabia o que o senhor desejava dele. Pelo que me contou, ele se dispôs a ajudá-lo, mas só de maneira decente. “Quando Zuglert adoeceu, o senhor fugiu. É possível que os saltadores realmente o tenham agarrado, quando voltou ao escritório de Zuglert, mas também é possível que se tenha unido espontaneamente a eles. De qualquer maneira os saltadores lhe deram as quantidades de droga de que o senhor necessitava. Por isso mostra-se submisso a eles. Por alguns goles de uma bebida semelhante a um licor, que é vendida em garrafinhas com etiqueta amarelo-violeta.” Gerard fitou-o. Parecia perplexo. Recuou um passo, como um sonâmbulo. Sua boca movia-se. Esforçou-se para formular palavras, mas estas não eram articuladas. Ron esforçou-se para não mexer-se. Tinha de manter preso ao seu o olhar de Gerard. A maior parte do que acabara de dizer não passava de suposições. A reação de Gerard provava que todas eram corretas. Gerard estava terrivelmente assustado porque seu segredo fora descoberto. “Que diabo!”, pensou o major. “Está na hora de Larry agir.” Uma fração de segundo depois disso percebeu que não se enganara em relação a Larry. De repente Gerard teve sua atenção despertada para alguma coisa que aconteceu fora do campo de visão de Ron. Fez menção de saltar para o lado, mas tropeçou e caiu. Naquele instante, o disparo ofuscante do capitão saiu com um chiado de trás do veículo. Ron entesou-se para dar um salto, a fim de desviar a atenção de Gerard, caso Larry errasse o tiro. Acontece que Larry fizera boa pontaria. O tiro atingiu o braço direito de Gerard. Este soltou um grito de dor. Ron caminhou lentamente em sua direção. Segurou-o pelos ombros, puxou-o para cima e colocou-o de pé. — Vamos voltar para Zanithon — disse em tom tranqüilizador. — O senhor receberá seu licor, mesmo sem ser dado pelos saltadores.
*** A viagem correu sem incidentes. Gerard Lobson recebeu aquilo que queria. Ron Landry teve oportunidade de verificar que a droga, denominada liquitivo, era livremente vendida no comércio de Lepso. Era um licor. Ao que parecia, ninguém desconfiava do perigo que a bebida representava. Depois de sorver sua dose, Gerard modificou-se. Não pensava mais em voltar para junto dos saltadores, ainda mais que Ron adquiriu uma grande provisão de liquitivo, a fim de abastecê-lo por algum tempo e também poder fornecer algumas amostras aos analistas terranos. Gerard até chegou a concordar para que fosse levado o quanto antes à Terra, onde procurariam libertá-lo do vício. Ron transmitiu um extenso relatório em código destinado a Nike Quinto. Enquanto aguardava a resposta, manteve a planejada palestra com o Inspetor Neary, da Missão Comercial Terrana. Neary parecia muito surpreso com o fato de que seus canais de telecomunicação haviam sido violados. O local da violação logo foi descoberto, pois os técnicos estavam a par dos acontecimentos. Encontraram uma estação retransmissora num pequeno escritório, situado quatro andares abaixo, e que pertencia à Transall Import and Export Company. O proprietário não estava presente no momento da descoberta, e nunca mais foi visto no local. Dali em diante, os saltadores já não tinham a possibilidade de escutar as palestras da Missão Comercial. As investigações realizadas por Neary revelaram que o produto denominado liquitivo era de origem desconhecida e aparecera pela primeira vez no comércio de Lepso há cerca de doze anos terranos. Neary tinha seus meios de descobrir isso. Bastava recorrer às listas de compras dos negociantes de bebidas, aos fregueses dos grandes restaurantes da cidade e a alguns policiais de Lepso. Era verdade que fazia apenas alguns meses que o liquitivo fora colocado ao alcance do grande público. O movimento de vendas do produto se centuplicara, por assim dizer, da noite para o dia. Era a mesma observação que Larry lhe comunicara, enquanto executava o papel de motorista de táxi, embora ele mesmo não a tivesse feito, já que lhe fora transmitida por terceiros. Há alguns meses, Lepso enlouquecera de repente. Uma tremenda ânsia de atividade apoderou-se dos habitantes daquele mundo. Ninguém queria andar devagar. Todos pareciam ter pressa, pois sentiam-se com forças para ter pressa pelo resto da vida. Ainda se constatou que um total de quarenta e oito terranos registrados na Missão Comercial estavam desaparecidos. Ao que tudo indicava, encontravam-se na cidade onde ficava o templo dos sacerdotes de Baalol. Era bem verdade que, segundo os cálculos de Ron Landry, essa cidade devia ter alguns milhares de habitantes, admitindo que cada uma das casas tinha pelo menos três ocupantes. Dali se concluía que também havia membros de outras raças galácticas, vítimas do perigoso licor. Quando as investigações de Neary ainda estavam em curso, Ron recebeu ordens da Terra para regressar imediatamente com Larry Randall. Avisou Larry, que estava realizando investigações por conta própria, juntamente com Gerard, e combinou um encontro em seu hotel. Depois disso despediu-se de Neary. Nos últimos tempos vira vários funcionários da Missão Comercial e falara com todos eles. Saiu da sede com a impressão de que ali também se verificava uma estranha pressa e ânsia de atividade. Mas não falou com Neary a este respeito.
Sabia que a droga, denominada liquitivo, já tinha um círculo de consumidores muito mais amplo do que supusera. *** A araucana alta estava novamente atrás do balcão da recepção. Ron sabia que cometera uma injustiça contra a moça, ao supor que ela era uma colaboradora dos saltadores. O liquitivo apenas era uma bebida entre muitas. Naqueles tempos tornara-se a bebida da moda em Lepso, e tinha um enorme efeito revitalizante. Ninguém sabia — ou ninguém parecia saber — que certos consumidores se tornavam viciados. Era por simples cortesia que a direção do hotel oferecia aos hóspedes recém-chegados uma dose de liquitivo — cujo preço evidentemente lhes seria debitado. “Todavia”, pensou Ron, com um sorriso, “o segundo copo que a araucana traz agora na bandeja, sem dúvida não está previsto nas instruções de serviço!” Sorriu para a moça ao passar por ela. Quando chegou ao quarto, Larry Randall e Gerard Lobson já se encontravam lá. Como sempre, Gerard estava animado e impaciente. Não se tranqüilizou, nem mesmo quando Ron lhe asseverou que deixariam Lepso ainda naquele dia. Larry descobrira que, em linhas gerais, os dados fornecidos por Neary eram corretos. Fazia pouco mais de doze anos que o liquitivo aparecera no comércio pela primeira vez. Ninguém sabia de onde vinha. O dono do restaurante adquiria o produto do varejista, este o comprara do atacadista, o atacadista o recebera de um distribuidor geral, que fazia suas compras no lugar denominado Cinema, no sistema de Lorraine. Não havia a menor dúvida de que os habitantes de Cinema não eram os verdadeiros produtores. O licor passava por um número muito grande de mãos, e chegava a ser um milagre que o vendedor final ainda pudesse fornecê-lo a um preço acessível. — Quer dizer — concluiu Ron, em tom pensativo — que o liquitivo provoca duas reações diversas. Larry arregalou os olhos. — Você já chegou mais longe que eu — disse com um sorriso. — Poderia fazer o favor de explicar? Ron fez que sim. — Preste atenção. Armin Zuglert era um homem robusto e esportivo. Ninguém desconfiava de que fosse um viciado em liquitivo. De repente sua saúde se arruína; ele se torna um cadáver vivo. Por quê? — Porque não recebe mais liquitivo — disse Larry, apressadamente e em tom convicto. Ron negou com o dedo. — Não é nada disso! O liquitivo pode ser comprado em qualquer lugar, e Zuglert tinha dinheiro. Sabia que estava viciado, e também sabia que um viciado não pode parar de uma hora para outra de tomar a substância à qual o corpo está acostumado. Portanto, não tinha nenhum motivo para deixar de adquirir novas provisões de liquitivo, assim que suas reservas da bebida se esgotassem. “Porém, além de viciar, o liquitivo produz outro efeito, depois de um período de consumo regular. Transforma o homem e outros seres em cadáveres vivos. Quanto tempo dura isso? A única coisa que podemos dizer é que esse efeito surge no máximo depois de doze anos e alguns meses de uso. E que antes disso Zuglert não poderia ter conseguido a droga em Lepso.”
Larry refletiu por algum tempo. Finalmente confirmou com um gesto. — Acredito — disse como quem fala para si mesmo — que poderemos descobrir muita coisa se nos ocuparmos detidamente com os habitantes da cidade templária de Baalol. Ron levantou-se e dirigiu-se a uma das janelas. — Acredito — disse com um suspiro — que é por isso que Nike nos chama de volta à Terra. Quer apostar que não ficaremos em paz por muito tempo? — Não aceito a aposta — disse Larry, que continuava sentado na poltrona. — Não posso fazer uma aposta contra alguém que pensa da mesma forma que eu. Ao que parecia, Gerard sentiu-se entusiasmado com a idéia de voltar para Lepso e examinar a cidade templária. Estava a ponto de iniciar um discurso prolongado a este respeito, quando aconteceu uma coisa estranha. Ron olhou para trás e viu uma neblina tremeluzente que surgiu no meio do quarto. Surpreso, deu um passo na direção da mesma para examiná-la melhor. Naquele momento, a neblina transformou-se numa caixa de formato cúbico, que desceu tranqüilamente sobre o tapete e se acomodou. Na parte dianteira da caixa havia uma grossa vidraça, atrás da qual se movia um líquido verde viscoso. No interior do líquido boiava uma sombra matizada de cinza-claro e cinza-escuro, que executava uma série de movimentos elegantes. Ron logo se recuperou da surpresa. — Fico satisfeito em revê-lo mais uma vez — disse. — Vim para despedir-me. — Vai voltar para Pisalam? — Isso mesmo. Quero agradecer-lhe. Você encontrou a pista de nosso irmão desaparecido. — Uma pista muito triste... — Foi o destino. Quando lhe pedi que procurasse localizar nosso irmão, tinha certeza quase absoluta de que não poderíamos salvá-lo. — Por quê? — perguntou Ron, em tom de surpresa. — Do contrário teria sido possível estabelecer contato com ele — disse o ser de Pisalam. O transec conferiu um tom alegre à sua voz, quando acrescentou: — Afinal, mantive contato com você, que é um estranho, por mais afastados que estivéssemos um do outro. Por isso, quando você esteve para ser interrogado no interior de um edifício desta cidade e quando correu perigo no deserto, pude intervir em tempo. Teria sido muito mais fácil estabelecer contato com meu irmão, se nada lhe tivesse acontecido. No momento em que cheguei a Lepso, as emissões dele estavam reduzidas a um zumbido surdo e ininteligível. Supus que não poderíamos fazer mais nada por ele. Mas quis ter certeza. Seguiu-se uma ligeira pausa. — Voltarei para Pisalam — continuou o ser estranho, em tom triste. — O nome de nosso irmão será riscado das listas. — De qualquer maneira fico-lhe muito grato pelo auxílio que me prestou — disse Ron. — Se não fosse este auxílio, não teria conseguido muita coisa. — Não diga isso — objetou o pisalamense. — Seu espírito é muito forte. Você é capaz de enfrentar muitos inimigos. Ron refletiu sobre o que deveria dizer. — Se você permitir, um dia lhe farei uma visita — disse.
— Você sempre será bem-vindo — respondeu o ser. — Você e seus amigos. Depois disso, o incrível se repetiu. De repente, o lugar em que pouco antes se encontrava o cubo, ficou vazio. Lá embaixo, junto à entrada do hotel, um veículo de formato cúbico pôs-se em movimento, seguiu rua a fora e afastou-se rapidamente. Ron olhou para o relógio. — Está na hora — disse em tom cansado. — Iremos numa nave-correio da Missão Comercial. Preparem-se, amigos.
7 Ron teria ganho a aposta, se tivesse encontrado alguém disposto a aceitá-la. Quando a nave-correio pousou, Nike Quinto encontrava-se no espaçoporto. Depois de um ligeiro cumprimento, disse a Ron Landry e Larry Randall que só disporiam de cinco horas para descansar. Levou-os a um hotel e mandou que, depois desse tempo, se apresentassem em seu escritório. Imediatamente pôs as mãos em Gerard Lobson, que pouco antes do pouso recebera a última dose de liquitivo e estava muito exaltado. Se Nike Quinto sugerisse que se dirigissem à cidade e assaltassem a sede do General Cosmic Bank, provavelmente teria ficado encantado com a idéia. Não se interessou em saber o que Nike Quinto pretendia fazer com ele. O que lhe importava era que acontecesse alguma coisa. Naquela oportunidade houve um incidente que provavelmente ficaria gravado pelo resto da vida na memória de Ron e de Larry. É que Nike Quinto se sentiu incomodado com a atividade excessiva de Gerard. Procurou restringi-la pela forma a que estava habituado. Começou a queixar-se da pressão sangüínea e responsabilizou Gerard pelo fato de que seu estado de saúde se deteriorava rapidamente, motivo por que, dentro de uma hora, provavelmente sofreria um infarto. Gerard ouviu as queixas, Mas finalmente irrompeu: — Pare com essa choradeira. Se sua pressão sangüínea realmente é tão miserável, aposente-se e deixe que outra pessoa ocupe seu cargo. Nike Quinto engoliu várias vezes em seco e seu rosto tornou-se ainda mais vermelho. Ficou calado. Enquanto Gerard estava por perto, não disse mais uma única palavra sobre sua pressão. *** Dali a cinco horas, Nike Quinto falou em atitude muito séria, e fazendo um esforço inútil para dar um tom grave à voz, que saía aos guinchos: — O assunto em que estamos envolvidos é tão importante que recebi minhas instruções diretamente do administrador. É bom que isso fique bem claro, para que não pensem que podemos discutir os planos que lhes serão apresentados. Cabe-lhes exclusivamente tomar conhecimento dos mesmos e executá-los. Moderando o tom de voz, acrescentou: — Não é porque o administrador em pessoa deu as instruções. Como sabem, ele não acredita que é um super-homem e nem que entende de tudo melhor que qualquer outra pessoa. É porque todo o potencial positrônico da Capital foi utilizado na elaboração dos planos. Não podemos descobrir nenhum erro nos mesmos. Nossos cérebros são muito pequenos para isso. Entendido? Ron confirmou com um gesto distraído. Como de costume, Larry preferiu não dizer nada, nem fazer qualquer gesto. Ron não pôde deixar de confessar que se sentia impressionado com a exposição de Nike Quinto. Via de regra Perry Rhodan, o administrador, costumava ser considerado um homem ao qual todos se referiam num tom de voz de uma criança que alude ao grande mágico da fábula. O administrador não estava sujeito à pressa e insegurança deste mundo. Estava sentado em seu trono, bem
acima das nuvens, em algum país nebuloso e distante. Nunca intervinha em qualquer assunto. Suas atividades restringiam-se ao plano mais elevado da política interestelar. Era esta a imagem que a maioria das pessoas havia formado de Perry Rhodan. Por isso, o fato de ele ter intervindo no problema de Lepso era espantoso. — De onde vem a ordem? — perguntou. Nike Quinto inquietou-se. — De onde vem o quê? — esbravejou. — Faça o favor de exprimir-se com maior clareza. Uma pergunta confusa sempre me deixa nervoso, e o nervosismo faz subir minha pressão. O que deseja saber? Ron sorriu. — Por que — perguntou, usando uma linguagem mais precisa — o assunto é tão importante que o administrador teve de cuidar pessoalmente do mesmo? — É simples — respondeu Nike Quinto. — Os sacerdotes do culto de Baalol ocupam um lugar de destaque no problema de Lepso. O culto de Baalol já desempenhou seu papel na História da Terra, isso há cerca de sessenta anos. Houve uma tentativa de atentado contra o Imperador de Árcon. Furtaram-lhe o ativador, a fim de obrigá-lo a abdicar. A iniciativa partiu dos sacerdotes de Baalol. E o aparelho foi encontrado em poder de um sacerdote desse culto, depois da perseguição até o sistema de Gela e da luta violenta. Os sacerdotes de Baalol são mutantes poderosos, com uma variedade tremenda de capacidades paramentais. Nenhum dos mutantes terranos está em condições de enfrentá-los. Com a maior facilidade absorvem outras capacidades parapsicológicas e as dirigem contra o indivíduo que é portador das mesmas. Face a este efeito de reversão, também costumam ser chamados de antis. “Sabemos que os antis montaram uma extensa rede de locais de culto em todos os pontos da Galáxia. Acontece que não conhecemos seus objetivos, nem a natureza de seu culto. A respeito deste, apenas sabemos que não gira em torno de uma ou algumas divindades definíveis. Manifesta, de forma mística, a pretensão de incutir nos crentes a sabedoria final e livrá-los de todo sofrimento físico e psíquico. “Ainda sabemos que os antis são hábeis negociantes. Não é de se admirar que mantenham relações com os saltadores, pois, ao que tudo indica, estão em condições de fornecer mercadorias importantes a estes. Os biomédicos, conhecidos como aras, também foram vistos muitas vezes em companhia dos sacerdotes de Baalol. Ambas as raças, ou seja, os saltadores e os aras, têm intenções nada amistosas para com a Terra. Por isso, a lógica nos faz concluir que não devemos esperar nada de bom dos antis. “Em Lepso, eles se envolveram num negócio. Provavelmente são os saltadores que fornecem as matérias-primas para o liquitivo. Os aras usam estas matérias-primas para fabricar a bebida diabólica e os antis tiram proveito dos viciados semimortos que são recolhidos pela polícia de Lepso e levados à cidade templária. Certamente Lepso só participa da operação porque isso lhe traz uma vantagem financeira. “Isso basta para que possam avaliar a situação. Cabe-nos agora impedir a disseminação do tóxico pela Galáxia, especialmente pelas áreas de influência terrana. As amostras de liquitivo, que os senhores trouxeram de Lepso, já foram submetidas a uma análise provisória. Os analíticos são de opinião que não poderão fazer muita coisa, enquanto só dispuserem dessas amostras. Precisam dos viciados para realizar seus estudos. Portanto, os senhores terão de voltar para Lepso e libertar o maior número possível de prisioneiros da cidade templária. Concordam em fazer isso?” Ron estremeceu. Lembrou-se do que lhe acontecera quando pela primeira vez procurou penetrar no templo. Já conhecia o terrível poder dos sacerdotes de Baalol. Face
ao que Nike Quinto acabara de dizer, nenhum mutante os acompanharia durante a missão. Ele e Larry ficariam sós. Dependeriam exclusivamente de suas capacidades para enfrentar um grupo de antis que dispunha de dotes sobrenaturais. Sentiu um calafrio. — Não é que eu goste disso, coronel — respondeu, depois de algum tempo. — Mas sou de opinião que sempre se deve concluir o que foi começado. Nike Quinto acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. — Apenas lhe peço que responda a uma pergunta — prosseguiu Ron. Nike Quinto franziu a testa. — Compreendo perfeitamente que o assunto cause repugnância — disse Ron. — Alguns milhares de seres vivos de todas as raças desapareceram em Lepso, entre eles quarenta e oito terranos, e as vendas da bebida diabólica crescem constantemente. Mas por que motivo o administrador, em pessoa, resolveu participar da solução do problema? Quinto pôs-se a brincar com um estilete de escrever. Ao que parecia, esforçava-se para formular uma resposta lacônica. — É simples — começou sentencioso. — Na Terra surgiram indícios da realização de atividades suspeitas. Ao que parece, o liquitivo já encontrou um caminho para cá. *** Vários transeuntes observaram o homem que saiu cambaleando do pequeno edifício de escritórios e começou a deslocar-se pela rua, apoiando-se contra a parede do edifício como se tivesse medo de cair. Realmente parecia que iria ao chão assim que ficasse privado de apoio. Era bem verdade que aquilo que acontecia não conseguira alterar a constituição gigantesca de seu corpo. Continuava a ser um gigante de ombros largos e mãos robustas. Mas alguma coisa parecia ter subtraído as forças de seu corpo. Seus joelhos tremiam, e as mãos não conseguiam ficar quietas por um segundo. O rosto estava flácido. A pele cinzaamarelenta estendia-se sobre os maxilares, mostrando-se flácida e enrugada. Não se sabia para onde o homem pretendia ir. Para ele, o hospital seria o lugar mais adequado. Acontece que o hospital ficava em direção oposta à que seguia. Finalmente um dos transeuntes tomou coragem e aproximou-se do doente. Pretendia explicar-lhe que direção deveria tomar, a fim de conseguir auxílio. Mas apenas havia dado um ou dois passos, quando ouviu o uivo da sereia de uma viatura policial, vindo do alto. Viu um veículo giromático descer junto à parede do edifício e pousar a poucos metros do doente. Antes que todos compreendessem o que estava acontecendo, alguns policiais desceram do veículo e cercaram o doente. Ao que parecia, este não estava disposto a resistir quando os policiais o agarraram e arrastaram ao veículo. E nem teria forças para isto. Dali a alguns segundos, o veículo voltou a levantar vôo e desapareceu em meio ao tráfego denso que se desenvolvia sobre os telhados. Até parecia bruxaria. O homem, que pretendia dar um conselho ao doente, virou-se e saiu andando. *** Menos de uma hora depois disso, os policiais “descarregaram” o homem em pleno deserto. O doente nem se deu conta do que lhe estava acontecendo. Uma pessoa, que ele não conseguia ver, levantou-o e levou-o num vôo vertiginoso em direção a um grupo de edifícios que se destacava em meio ao areal. De repente, viu-se no interior de uma
pequena casa, sem que qualquer porta se tivesse aberto. Estava escuro. Ficou quieto por um instante, à espera de que seus olhos se acostumassem ao pouquinho de claridade que passava por um buraco de dez centímetros de diâmetro, aberto no teto. Depois disso olhou em torno e viu mais quatro pessoas que se encontravam no mesmo estado que ele, isto é: deitadas no chão de pedra. Não se mexiam e não demonstravam o menor interesse pelo recém-chegado. Sem dúvida esperavam que se comportasse como eles. Mas não se comportou. Levantou-se e caminhou de um dos homens deitados para outro. Pela primeira vez notou uma reação em seus olhares. Seguiram seus movimentos com os olhos arregalados. Ao que parecia, achavam inacreditável que alguém que parecesse tão doente como eles se levantasse, logo após a chegada, e caminhasse alegremente pelo interior da casa. Dois deles movimentaram-se com dificuldade, deslocando-se até a parede dos fundos e, apoiando-se na mesma, procuraram levantar-se. Conseguiram fazê-lo depois de várias tentativas. Quando se encontravam de pé, tossiam e fungavam. Mas ergueramse e viam perfeitamente o homem que se achava à sua frente. Este cumprimentou-os com um gesto. Tiveram a impressão de que estava satisfeito. Disse com uma voz que tinha um tom enérgico. — Vejo que ainda têm forças para ser curiosos. Ainda bem. Dentro de poucos dias precisaremos de gente que possa mexer-se. São terranos? Os dois homens que se encontravam junto à parede confirmaram com um gesto. E os que continuavam deitados também fizeram ligeiros gestos afirmativos. — Eles sempre... — grasnou um deles — ...juntam... as criaturas da mesma raça. O homem à sua frente interrompeu-o com um gesto. — Só falem quando for absolutamente necessário — disse. — Poupem suas forças. Depois apresentou-se. — Vim diretamente da Terra para ajudá-los — disse. — Sou major da Frota Espacial Terrana. Meu nome é Ron Landry. *** “Até aqui o plano foi bem-sucedido”, constatou Ron Landry. Enquanto ainda se encontrava na Terra, haviam-lhe injetado uma droga que provocava a estranha modificação em seu aspecto exterior sem causar-lhe outro dano. Imediatamente após sua chegada a Lepso, dirigira-se a um edifício em que, segundo sabia, ficava um escritório dos saltadores. Permanecera por lá bastante tempo, a fim de que os saltadores notassem sua presença, e o resultado era evidente. Os saltadores chamaram a polícia, e ele foi recolhido. Agora encontrava-se ali, juntamente com quatro doentes que até há pouco eram tão indiferentes que nem sequer conheciam seus nomes. A presença de Ron Landry despertara a curiosidade deles e ativara o que sobrava de suas energias físicas. Mas será que o pouco que restava seria suficiente para salvá-los? Os quatro homens não puderam revelar-lhe muita coisa. Ron descobriu que a pessoa, só depois de ter tomado quatro ou cinco doses de liquitivo, se tornava viciada. Há muito interessava-se por isso, pois em certa oportunidade fora obrigado a beber liquitivo, e agora desejava saber se passara perto do abismo. Ron ainda descobriu que na cidade templária havia principalmente vítimas humanóides da substância liquitivo, mas além destas existiam algumas centenas de vítimas não-humanas. Isso parecia provar que
a perigosa bebida produzia seus efeitos em todos os seres inteligentes, fosse qual fosse sua origem ou a composição química de seu organismo. Com isso, esta tornava-se ainda mais perigosa. Ron deu-se conta de que o licor liquitivo talvez poderia permitir aos antis, aliados aos saltadores e aos aras, transformar todos os habitantes da Galáxia em viciados e, com isso, em pessoas submetidas à sua vontade. Ao que parecia, não havia ninguém que conseguisse resistir à diabólica bebida. Os doentes não tinham a menor idéia sobre os motivos por que haviam sido levados para a cidade templária. Disseram-lhes que, dali em diante, teriam de ser servos obedientes dos sacerdotes de Baalol. A falta de submissão era rigorosamente punida. A pena consistia numa espécie de prisão solitária num recinto totalmente escuro, além da redução das rações alimentares. Ninguém sabia para que serviria a submissão. Nunca se pedia aos doentes que executassem qualquer tarefa. Ficavam deitados nas cabanas, modorrando durante o dia, num estado de debilidade e letargia. Informaram que a lição de submissão lhes fora dada durante as chamadas horas de instrução. Ron Landry não conseguiu descobrir o que vinha a ser “horas de instrução”. As descrições eram contraditórias. Consolou-se com a idéia de que, mais dia menos dia, os sacerdotes também lhe ministrariam uma instrução desse tipo. Ainda não sabia que essa instrução representava um perigo tremendo para ele; mas não demoraria a descobrir.
8 Dormiu algumas horas. Foi despertado pela batida retumbante do gongo. Espantado, virou-se para o lado. Por uma fração de segundo viu o doente pálido que estava deitado a seu lado. Mas este logo desapareceu. Outro quadro surgiu. Viu um recinto amplo, escassamente iluminado, que estava totalmente vazio, com exceção de três sacerdotes enfileirados, em trajes reluzentes e esvoaçantes. Os três “feiticeiros” se encontravam na outra extremidade do recinto e dirigiam os olhos sobre Ron. Por estranho que pudesse parecer, Ron não teve a impressão de encontrar-se no interior do recinto. Tinha certeza de que continuava deitado na cabana de pedra, e de que o quadro do pavilhão com os sacerdotes estava sendo incutido em sua mente. Parecia até alguém segurando um quadro colorido e vivo à frente dos seus olhos. Permaneceu indiferente. Subitamente, os sacerdotes começaram a falar. Ron viu que não moviam a boca. Mas, como da primeira vez, ouviu suas vozes e entendeu as palavras proferidas. — Alegre-se! Você foi eleito para servir à verdade eterna e aos seus servos. Ron sentiu que essas palavras haviam sido dirigidas a ele, e que as compreendia da mesma forma que, em outra oportunidade, compreendera o turbilhão de fragmentos de idéias, que lhe prometiam uma morte horrível. Ron não disse nada. Limitou-se a fitar o quadro com uma expressão de espanto. — Mas a fé exige obediência — emitiu um dos sacerdotes. — Ninguém alcança o conhecimento sem obediência. Você nos obedecerá, senão... Não prosseguiu. Ron sentiu uma dor lancinante atravessar seu corpo. Quis gritar. Mas como se encontrava em estado incorpóreo naquele recinto, não teve boca, pela qual pudesse sair seu grito. Compreendeu o sentido da demonstração. Toda vez que desse mostras de falta de dedicação, sentiria a mesma dor, ou talvez até uma dor ainda mais violenta. “Nestas condições sou obrigado a ser obediente”, pensou. Os três sacerdotes pareciam ter captado a idéia. — Não existem condições — voltou a emitir um deles, e Ron percebeu que a dor se tornava mais intensa. — Você servirá incondicionalmente à verdade, e a nós, que somos seus guardiões. Ron contorceu-se e não ouviu mais nada. Não sabia o que estavam fazendo com ele, mas tinha certeza de que era horrível. Não era possível localizar a dor. Parecia que seu corpo fora atirado num espaço, onde dor e martírio o envolviam. “Sim, obedecerei”, pensou Ron. A dor passou. A voz dos sacerdotes tornou-se audível. — Pratique a humildade. As portas da verdade só se abrem aos humildes. Retorne ao seu lugar. Ron abriu os olhos. Esperava ver à sua frente o rosto do doente que estivera deitado a seu lado. Mas o chão de pedra estava vazio. Ron virou-se de costas e viu um dos quatro companheiros de sofrimento, ajoelhado a seu lado. — Meu Deus... foi demorado — disse o homem, em tom apavorado. Ron levantou o braço e olhou para o relógio. Não sabia quando fora despertado pela batida do gongo, mas acreditava que não eram mais de cinco horas. E agora já
passava das oito. Quer dizer que passara pelo menos três horas com o sacerdote, no interior daquele recinto. Os outros doentes garantiram que isso não era comum. Nenhum deles “ficara longe”, conforme costumavam exprimir-se, por mais de uma hora e meia. Ron começou a desconfiar. Será que os sacerdotes notaram que era diferente das outras pessoas que a polícia de Lepso costumava entregar-lhes? Era um risco que tinha de aceitar. Os sacerdotes de Baalol dispunham de intensas capacidades psíquicas. Era bem provável que soubessem distinguir entre o espírito de um homem sadio e o de um doente. Segundo informaram seus quatro companheiros de prisão, seu corpo girara várias vezes de um lado para outro, enquanto os sacerdotes trabalhavam com seu espírito. Era outro fato extraordinário, ao qual nunca haviam assistido. Ron resolveu que teria de imitar ainda melhor o comportamento de uma pessoa realmente doente. Assim, por exemplo, deixou que o dia se passasse sem fazer nada. Durante esse dia apareceram por três vezes cinco bacias, trazidas por mãos invisíveis. Nessas bacias havia um mingau cinzento, sobre o qual seus companheiros se precipitaram vorazmente. Ron não estava com fome. Teve de fazer algum esforço para comer. Esvaziou sua bacia, tal qual os outros. Sentiu que o mingau saciava tanto a fome quanto a sede. As vasilhas desapareceram ao mesmo tempo, sempre quinze minutos depois do momento em que haviam surgido. Isso deixou Ron mais tranqüilo, já que o fato o levou a concluir que os sacerdotes não exerciam uma vigilância ininterrupta sobre o interior das cabanas. Do contrário veriam quando cada prisioneiro concluía sua refeição, e retirariam as bacias, seguindo a ordem. Face a isso, assim que escureceu, criou coragem para sair da cabana e dar uma olhada pelas outras construções da cidade templária. Ele o fez com uma finalidade definida. Queria descobrir quem havia chegado no dia anterior, além de desejar encontrar-se com o Dr. Zuglert. Revistou várias cabanas de pedra. Todas elas eram ocupadas por seres nãoterranos. Na sua maioria, os ocupantes eram membros das raças de colonos arcônidas, mas também havia alguns swoons e outros prisioneiros não-humanóides. Ron levou mais de uma hora para encontrar outra cabana habitada por terranos. Seus olhos já estavam habituados à luz mortiça das estrelas. Bastaria deixar a porta aberta e logo reconheceria perfeitamente os prisioneiros, que se achavam mais próximos. Pôs-se de joelhos e disse num cochicho para dentro do recinto escuro: — Nike Quinto tem uma enorme barriga... Dali a alguns segundos ouviu a resposta, proferida em voz baixa: — ...e apenas dezessete fios de cabelo na cabeça. Alguém mexeu-se. Ron viu uma cabeça emergir da escuridão. Reconheceu um dos cinco homens que Nike Quinto enviara a Lepso juntamente com ele. — Tudo bem,,sir — anunciou o homem. — Sabe alguma coisa a respeito dos outros? — indagou Ron. — Lester e Harrings chegaram “bem”. É só o que eu sei. — Muito bem. Zuglert está na sua cabana? — Sim, senhor. Até se mantém bastante ativo. — Está bem. Preciso falar com ele.
Rastejou para dentro da cabana. Um dos ocupantes ouvira a palestra. Ergueu-se e fitou Ron. — O senhor é o Major Landry? — perguntou com a voz apagada. Ron respondeu que sim. — Meu nome é Armin Zuglert — disse o prisioneiro. — Seu plano já é do meu conhecimento e fico muito satisfeito com o mesmo. É muito importante que eu volte à Terra. Ron confirmou com um gesto. — Não sou autor do plano — respondeu. — E é perfeitamente possível que ele falhe. Será preferível que me diga logo o que sabe. Talvez, apenas um de nós conseguirá escapar. Zuglert concordou. Formava um estranho contraste, face aos outros doentes. Parecia ter uma reserva oculta que constantemente lhe proporcionava novas energias. Era capaz de uma fala coerente e, depois de cada palavra que pronunciava, não tossia. Explicou o motivo. Era médico e havia criado um método de controlar as escassas energias que lhe restavam, a fim de possuir uma reserva quando precisasse dela. Zuglert informou que há doze anos trabalhara com um terrano chamado Edmond Hugher. Hugher também era biomédico, e foi por intermédio dele que pela primeira vez Zuglert travou conhecimento com o licor liquitivo. A ocupação de Hugher consistia em examinar o líquido. Ao que parecia, sabia que o licor continha substâncias ativas vegetais, que produziam um rejuvenescimento do espírito e dos tecidos do corpo. Ambos tomaram o licor, e Zuglert transformou-se num viciado. Depois de pouco tempo, Hugher desaparecera sem deixar o menor vestígio. Zuglert não saberia dizer se o liquitivo produzira nele o mesmo efeito que em sua pessoa. Mas no seu íntimo tinha certeza disso, já que não havia ninguém que tomasse o liquitivo por mais de quatro vezes sem transformar-se num viciado. Após isso, Zuglert estudara atentamente as características do vício até o momento em que sucumbira, e registrara seus estudos. A maior parte dos registros fora enviada a um banco da Terra, para ser guardada no cofre. Apenas as informações relativas aos últimos dias anteriores ao seu colapso haviam ficado em seu escritório, onde os saltadores provavelmente as haviam encontrado e confiscado. Das informações de Zuglert, ainda se concluía que doze anos e quatro meses se haviam passado, desde o momento em que se tornara viciado até aquele em que sobreviera o colapso. Certa vez, Zuglert interrompera o consumo do liquitivo por um período prolongado, a fim de estudar os sintomas. Suas experiências levaram-no a afirmar que ninguém suportaria uma interrupção por período superior a seis dias terranos. A conseqüência imediata da suspensão eram as manifestações de esgotamento, que se tornavam mais patentes, face ao período antecedente de superexcitação. A elas, seguia-se a decadência psíquica. Descreveu seu ex-colaborador, o Dr. Edmond Hugher, como um homem calmo, sempre bem-humorado, que costumava exibir um sorriso malicioso e parecia saber certas coisas que não queria revelar. De qualquer maneira, o Dr. Zuglert surpreendera-se com a variedade e a quantidade de seus conhecimentos. Depois disso, Zuglert fez uma revelação surpreendente. — Aliás, ainda tenho um retrato dele — disse. — Sempre o trago comigo, já que para mim o Hugher foi um colaborador precioso. Guardo uma boa lembrança dele. Ron estendeu a mão.
— Dê-me o retrato — pediu. — Tenho a impressão de que esse Hugher não é tão inocente como pode parecer. Zuglert obedeceu imediatamente. Sua mão débil tirou o retrato do bolso da jaqueta e entregou-o a Ron. Este examinou-o ligeiramente e guardou-o. Depois disso saiu da cabana. Prosseguiu em sua ronda e constatou que os cinco agentes disfarçados de doentes haviam chegado à cidade templária, conforme previam os planos. *** O Capitão Larry Randall, que estava na sala de comando da Flórida, voltou a fitar o mostrador luminoso do grande relógio. Desta vez, os dois ponteiros se encontravam na posição desejada por ele. Soltou um suspiro de alívio e levantou-se. Dick Kindsom, oficial superior, que também se achava na sala de comando, perguntou: — Está na hora? Larry fez que sim. — Vamos passar para a outra nave e prosseguir com a ação. Dick Kindsom lançou um olhar extremamente desconfiado para a nave arcônida, que se destacava nas telas da Flórida sob a forma de uma mancha escura no mar de estrelas. — Quem dera que eu não tivesse uma sensação tão desagradável — observou. Larry fez um gesto de desprezo. — Se mantivermos a máquina constantemente guarnecida e em recepção, dificilmente poderá acontecer qualquer coisa. Na pior das hipóteses, chegarão algumas pessoas a menos do que esperávamos. Dick Kindsom fez uma careta. — Seja como for... — disse — rezo pelo senhor. Larry agradeceu. Depois disso dirigiu-se ao intercomunicador e chamou os homens, que deveriam transferir-se, juntamente com ele, para a nave robotizada arcônida. Não houve perda de tempo. Trinta minutos depois do momento em que Dick Kindsom’ dissera que rezaria por Larry, a nave robotizada recebeu uma tripulação orgânica. A seguir, afastou-se da Flórida, acelerando fortemente. Deslocou-se em direção a Lepso. *** Na manhã do dia seguinte, Ron Landry passou por outra sessão de instrução. Mais uma vez viu-se no interior do gigantesco recinto, à frente dos três sacerdotes, que lhe haviam explicado que a obediência prevista no culto de Baalol exigia principalmente que nunca tentasse abandonar a cidade templária. Esta exposição foi apresentada com uma força de persuasão quase hipnótica. Ron teve certeza de que o espírito dos doentes, muito mais débil que o seu, sucumbiria sem a menor resistência a este tipo de influência. Mesmo após a sessão de instrução, continuariam presos à ordem quase hipnótica; nem pensariam em sair da cidade. Ron concluiu que os antis estavam interessados em que o público não tivesse conhecimento dos resultados de sua ação malévola. Os semimortos nunca mais deveriam sair do templo. De outro lado, porém, o templo deveria ter um aspecto místico,
não de uma prisão. Além disso, os sacerdotes provavelmente eram poucos para vigiar os milhares de prisioneiros. Por isso usavam suas faculdades parapsicológicas a fim de que estas criassem uma barreira, impossível de ser rompida pelos doentes. Ao dar-se conta disso, Ron Landry voltou a ficar com raiva, e foi esta raiva que acabou por traí-lo. *** Nenhum dos doentes possuía energia para sentir raiva. Os sacerdotes registraram a presença das fortes irradiações hostis daquele espírito pretensamente enfermo e passaram a exercer uma vigilância mais intensa sobre ele. No mesmo dia, Ron Landry foi levado a uma segunda sessão de instrução, e desta vez os sacerdotes armaram-lhe uma cilada. Expuseram as características do culto de Baalol. Explicaram que, segundo este culto, a verdade-última, até o fim dos tempos, sempre seria acessível apenas a uns poucos eleitos. Um deles emitiu: — Um dia os mundos reconhecerão a importância de nossa tarefa. Os donos dos planetas, os que governam os grandes impérios, inclinar-se-ão à nossa frente e sentir-seão satisfeitos se puderem beijar nossos pés. E Ron Landry cometeu um grande erro! Por mais que se esforçasse, não conseguiu ouvir esse tipo de conversa-fiada, sem que lhe surgissem idéias próprias. E naquele momento, sua idéia foi mais ou menos esta: “Eles vão-me dar uns puxões de orelhas!” Depois disso os sacerdotes, perplexos, mantiveram-se em silêncio por alguns minutos. Finalmente um deles voltou a emitir: — Este homem é um traidor! Matem-no! Ron recuou. Por um instante esqueceu-se de que sua presença naquele recinto era incorpórea. As paredes do pavilhão desfilaram diante de seus olhos. Parecia que se deslocava. Os sacerdotes foram ficando menores: afastava-se deles. Enquanto recuava, aqueles homens à sua frente começaram a movimentar-se. Agitaram violentamente os braços e emitiram: — Segurem-no! Ele não deve escapar. É um traidor, e por isso deve morrer. Por um instante, o fato da fuga ser tão fácil deixou Ron espantado. Nunca acreditaria que o simples desejo de não morrer bastaria para resistir à vontade dos sacerdotes. Não sabia que, por meses a fio, estes haviam lidado apenas com doentes, incapazes de oferecer qualquer resistência. Não sabia que as forças espirituais dos “feiticeiros” haviam se acostumado à constituição débil dos doentes, motivo por que levariam algum tempo para habituar-se à nova situação e enfrentar a luta com um espírito sadio e vigoroso.
9 Saiu do pavilhão, passando por um amplo portão. Viu diante de si uma praça redonda, na qual desembocavam corredores vindos de todas as direções. O fato de acreditar que se tratava de corredores provava que tudo fora bem tramado. Naquele instante, não percebeu o que se encontrava acima de sua cabeça. As emissões dos sacerdotes tornaram-se mais fracas. Ron teve uma sensação de triunfo. Num caso como este, as vozes mais fracas significavam que o poder que os sacerdotes exerciam sobre seu espírito estava desaparecendo. Quando deixasse de ouvilas de vez, estaria livre de todo perigo — exceto, talvez, o de não mais encontrar seu corpo. Escolheu um corredor, que formava um ângulo reto com o eixo longitudinal do pavilhão e levava para a direita. Bastou seu desejo para que o chão da praça deslizasse sob seus pés e o corredor se aproximasse. No interior do corredor reinava uma estranha escuridão, que não lhe permitia perceber os detalhes. A única coisa que viu foi uma mancha luminosa amarela, que ficava bem ao longe e levava à conclusão de que o corredor saía ao ar livre. Deslocou-se em direção a essa mancha luminosa. Sentiu um desejo ardente de alcançá-la o quanto antes. Segundo seus cálculos, havia percorrido mais ou menos metade do caminho. Naquele instante, sentiu que alguém se encontrava atrás dele. Face ao nervosismo dos últimos minutos, deixara de prestar atenção às vozes dos sacerdotes. — Lá adiante, no corredor — gritou alguém. — Apressem-se, senão ele acabará escapando. Agora eram vozes mesmo, e não impulsos mentais. — Não escapará — disse alguém em tom tranqüilizador. — Se necessário, poderemos recorrer ao fogo da verdade. — Sim, mas com isso todas as nossas forças... — Cale-se, seu idiota! Será que você faz questão de revelar-lhe todos os nossos segredos? Depois disso voltou a reinar o silêncio. Ron compreendeu que ainda estava sendo perseguido. *** Cinqüenta quilômetros acima da superfície de Lepso, os propulsores da nave arcônida robotizada explodiram, conforme previam os planos. Seguiu-se um clarão visível a grande distância. Larry Randall, na sala de comando — a única parte da nave que continuava intata — preparou juntamente com seus fiéis colaboradores a manobra de pouso de emergência. O encarregado da localização confirmou que se encontravam exatamente no lugar previsto em seu plano. ***
Assim que saiu do corredor e mergulhou na claridade amarelenta, Ron percebeu seu engano. Aquilo não era nenhuma saída. Não viu nenhuma extensão de areia banhada pelo sol, com as pequenas construções enfileiradas. Viu-se num mar de luz amarela, no qual podia nadar como se estivesse na água. Precipitou-se para o lado, tornou a mergulhar, voltou-se para a direita e para a esquerda, mas não encontrou outra coisa além da luz amarela. Nem sequer conseguiu localizar a extremidade do corredor do qual saíra há poucos segundos. Apenas percebeu que, de repente, a luz amarela se tornou menos intensa e assumiu uma tonalidade vermelha. Sentiu o calor que o atingia de todos os lados. Olhou em torno e viu os rostos debochados que o fitavam. “Recorreram ao fogo da verdade...”, pensou o major. Ron disciplinou-se mentalmente. Não adiantava andar nadando pela luz e cansar-se em troca de nada. O calor foi aumentando. Ron sentiu que começava a transpirar. Era estranho. Como poderia suar, já que não possuía corpo? As caretas que o cercavam continuaram no mesmo lugar. Pairavam imóveis. Eram apenas rostos que o fitavam com um sorriso diabólico. Ron ouviu vozes vindas de longe, que se divertiam à sua custa: — Olhem como ele vai se contorcer! Ficará preso no fogo. A verdade final castigará aquele que dela zomba. Outra voz gritou em tom estridente: — Todos aqueles que desprezarem Baalol terão esse destino. O calor começava a tornar-se insuportável. A luz que o envolvia transformara-se numa incandescência vermelha. Teve a sensação de quem está preso num forno, mas sabia que o martírio estava longe de ter chegado ao fim. Voltou a movimentar-se. Foi subindo lentamente e tornou a descer. Mas o calor continuava inalterado. A temperatura crescia rapidamente. Ron viu que as caretas dos sacerdotes se aproximavam. As vozes estridentes tornavam-se mais fortes. Sabia o que significava isso. Eles o haviam prendido. Seus pensamentos começaram a ficar confusos. Já não sabia onde estava. A impressão de que seu corpo sofria todos esses martírios tornava-se cada vez mais nítida. Sentiu uma comichão na pele e o suor entrava-lhe pelos olhos. Contorceu-se. Só teve um desejo, o de poder levantar as mãos para coçar-se em todos os lugares em que sentia comichão e mordidelas... Começou a gritar. *** Larry Randall concentrou o campo de absorção de choque da nave sobre a sala de comando. Depois disso tirou a mão do painel e, resignado, aguardou o que estava para vir. Na sala de comando, apenas se sentiu um ligeiro solavanco. Mas do lado de fora, o envoltório da nave rompeu. Uma gigantesca nuvem de pó e areia ergueu-se do solo, encobrindo o local do impacto. Larry teve certeza de que o estremecimento do solo desértico fora bastante violento. Portanto, as pessoas que se encontravam na cidade templária saberiam que chegara o momento de entrar em ação.
*** Os agentes de Nike Quinto costumavam ser treinados para agir com total independência. Ouviram o uivo da nave que caíra. Quase ao mesmo tempo escutaram o estrondo provocado pelo impacto do veículo espacial e sentiram o solavanco que sacudiu o solo, como se fosse um terremoto. Cada um deles segurou dois dos doentes mais fracos, retirou-os da pequena casa e levou-os pelo deserto a fora, em direção à gigantesca nuvem de pó que cobria o local da queda. Os outros, que dependiam das energias que lhes restavam, arrastavam-se pesadamente atrás dos primeiros. Se não fosse a esperança da salvação, não conseguiriam dar mais que dois ou três passos. Tudo correu conforme fora planejado. A nuvem de pó continuava a ocultar a nave que acabara de realizar o pouso de emergência. Naquele momento, o último dos quarenta e oito doentes atravessou a única eclusa da nave que continuava intata e entrou na sala de comando. Larry Randall encaminhava os doentes imediatamente para uma espécie de cerca de arame, que havia nos fundos da sala. No meio da cerca abria-se uma porta. Braços prestativos empurravam os doentes por essa porta e fechavam-na atrás deles. No mesmo instante, o local junto à cerca ficava vazio. O doente desaparecia. Larry observou a tela. Viu a nuvem de pó baixar lentamente. Já reconhecia o topo da pirâmide do templo. E Ron Landry ainda não chegara! *** Ron levou algum tempo para entender o que as caretas já tinham compreendido. O major só conseguia raciocinar perfeitamente porque o calor diminuíra. Ficou espantado. Alguma coisa devia ter acontecido. Os sacerdotes já não se interessavam por ele. Será que sua pessoa e seus pensamentos e ações deixaram de ter importância? Ou será que a atenção dos “feiticeiros” fora desviada? Não sabia. Sentiu-se aliviado ao notar que a luz que o envolvia voltava a tornar-se mais intensa. Nadava com movimentos vigorosos pelo mar de luminosidade. Agora, que escapara ao maior perigo, voltou a lembrar-se da tarefa que devia cumprir. Antes de mais nada, teria de reencontrar seu corpo. Até parecia que o reconhecimento da tarefa fora suficiente para realizar o milagre. De repente, o mundo que o cercava começou a modificar-se. Perplexo, Ron notou que a luz se afastava. Os contornos dos pequenos cubos, esferas e pirâmides, que abrigavam os doentes, surgiram diante de seus olhos. A escuridão voltou a reinar em torno dele, mas agora ele possuía mãos que lhe permitiam tatear para orientar-se na escuridão. Possuía pés, que lhe permitiram apoiarse contra uma parede invisível. Agora ele podia usar os cotovelos e erguer-se. Viu a pequena abertura iluminada acima de sua cabeça e sabia que se encontrava novamente no interior da cabana de pedra, da qual fora retirado pelo sacerdote, a fim de assistir à sessão de instrução. Retornara para seu corpo. Num movimento instantâneo pôs-se de pé. Sentiu que estava banhado em suor. Por um instante, o fato o deixou espantado, mas logo compreendeu que seu espírito dirigira de longe as reações do organismo.
Por uma fração de segundo, Ron Landry estremeceu diante do quadro de um mundo estranho e irreal, no qual o espírito e o corpo levavam uma existência separada. O fato de seus quatro companheiros de prisão terem desaparecido provava que, neste meio tempo, a segunda parte da missão, que representava a fase decisiva, começara a ser posta em execução. Contornou a cabana e viu os restos da gigantesca nuvem de pó, levantada pela nave que acabara de realizar o pouso de emergência. Também viu o vulto esférico da própria nave. Saiu correndo em direção à mesma. Era maravilhoso conseguir correr, usando as próprias pernas, sem depender da força e do poder do espírito inteligente. Levou cinco minutos para chegar à nave. Entrou apressadamente pela eclusa aberta, e abriu os braços para cumprimentar Larry Randall, que já o esperava. — Lá atrás! — exclamou Larry, em tom insistente. — Meu Deus, você está com um aspecto horrível. Ron confirmou com um sorriso. Passou pela porta gradeada de um transmissor. Do lado de fora alguém moveu uma chave. Por uma fração de segundo, Landry sentiu a dor da desmaterialização. Os contornos dos objetos que o cercavam desmancharam-se. Quando voltou a enxergar, encontrava-se a bordo do cruzador Flórida. Dick Kindsom em pessoa abriu a porta do receptor conjugado com o transmissor. Estendeu-lhe a mão e disse: — Seja bem-vindo a bordo! Sinto-me feliz de saber que no fim tudo deu certo. *** No momento em que Ron Landry desapareceu através do transmissor, fortes batidas de gongo encheram a cidade templária. A queda da nave deixou os sacerdotes confusos. Estes desistiram de seus esforços de destruir o homem, que escarnecera de Baalol, no fogo da verdade. Procuraram investigar o perigo que se aproximava. Alguns deles saíram da cidade templária, a fim de olhar de perto o veículo espacial que acabara de cair. Perceberam que alguns dos prisioneiros haviam desaparecido. Supuseram que a nave pousada tinha algo a ver com isso. Provavelmente os fugitivos já se encontravam a bordo. Acharam que seria fácil recapturá-los, quer o comandante concordasse, quer não. Mas estavam enganados. Quando chegaram à nave, o comandante e o resto da pequena tripulação ocupavam-se com os reparos do sistema propulsor de emergência. Não encontraram o menor vestígio dos fugitivos. O comandante estranhou o pedido que eles fizeram: queriam dar uma olhada pelo interior da nave. Kindsom não se opôs. Os sacerdotes revistaram todos os cantos da nave, inclusive as partes que sofreram graves avarias com o impacto, e chegaram à conclusão de não haver por lá nenhum adorador de Baalol. Não tiveram a menor dúvida. Mesmo que os fugitivos se tivessem escondido nos cantos mais inacessíveis, eles o teriam percebido. Afinal, o homem não é feito unicamente de matéria. Possuíam um espírito, e os sacerdotes de Baalol não poderiam deixar de perceber as irradiações do mesmo. Não havia a menor dúvida: os fugitivos não se encontravam no interior da nave. Retiraram-se, depois que o comandante lhes garantiu que, dentro de duas horas, repararia o propulsor de emergência para tentar decolar e dirigir-se ao espaçoporto de Zanithon.
Cumpriu sua palavra. Antes que as duas horas chegassem ao fim, a nave ergueu-se com sons retumbantes e chiantes, abandonou as areias do deserto, foi ganhando altura e desapareceu na direção sudeste. *** — Não — disse Nike Quinto, em tom resoluto. — Por enquanto não temos nenhuma explicação para as experiências pelas quais acabam de passar. Ron Landry e Larry Randall estavam sentados à sua frente. A resposta de Nike Quinto fora dirigida a Ron. Este recuperara o aspecto normal, assim que regressara à Terra. — Existem certas coisas — acrescentou Nike Quinto — que a ciência terrana ainda não consegue enxergar. Devem estar cientes de que, por enquanto, não existe nenhuma explicação científica para as faculdades dos nossos mutantes. Os sacerdotes de Baalol são indivíduos do mesmo tipo, com a única diferença de que possuem uma variedade muito maior de faculdades que os membros do Exército de Mutantes da Terra. Ergueu os olhos e sentenciou: — Major, o senhor ainda terá que ter alguma paciência até que alguém lhe possa fornecer uma teoria viável. Diria que isso deve demorar uns trezentos a quatrocentos anos. Ron retribuiu a ironia com um ligeiro sorriso. — Muito bem — disse em tom tranqüilo. — Mesmo que não haja nenhuma explicação, valeu a pena passar pela experiência. O espírito e o corpo levaram uma existência separada. Que aventura! Nike Quinto interrompeu-o com um gesto. — Não se entusiasme sem motivo — replicou com sua voz aguda. — Posso imaginar perfeitamente que, quando estava sendo aquecido pelo fogo da verdade, não se sentiu muito bem. Ron confessou a si mesmo que Nike Quinto tinha razão. — Uma autoridade muito importante autorizou-me a manifestar-lhe os agradecimentos do administrador. Sem que o soubéssemos, nós nos envolvemos num assunto que cobre áreas cada vez maiores. Ao que parece, trata-se de um complô contra o Império Solar. É como acabo de dizer: ao que parece. Ainda não dispomos de dados precisos. Mas libertamos quarenta e oito terranos, que iriam morrer nas garras dos sacerdotes de Baalol, e descobrimos uma pista importantíssima. E é por isso que o administrador manifesta seus agradecimentos. — Sinto-me muito honrado — disse Ron. — É bem verdade que eu gostaria... — É bem verdade que gostaria de quê? — gritou Nike Quinto. — Não se esqueça da minha pressão; não me enerve. Faça o favor de exprimir-se com mais clareza. Ron reclinou-se na poltrona. — Sei perfeitamente que libertamos quarenta e oito terranos — disse Ron. — Mas qual é a pista importantíssima que teríamos descoberto? O senhor poderia fazer o favor de explicar? Um sorriso surgiu no rosto de Nike Quinto. — Ah, então o senhor ainda não sabe — disse com uma risadinha. — Lembra-se do retrato que lhe foi entregue por Armin Zuglert? — Naturalmente.
— Esse retrato corresponde ao homem que pela primeira vez colocou Zuglert em contato com o liquitivo, não representa? — Perfeitamente. — Esse homem disse ser biomédico e apresentou-se com o nome de Edmond Hugher? — Isso também é verdade — respondeu Ron Landry, desejando que Nike Quinto lhe dissesse finalmente o que sabia. — Pois é aí que está a pista — disse Nike. — O retrato foi examinado pelos órgãos competentes. Sabe quem é a pessoa da fotografia? Ron negou com a cabeça. — Não senhor. Não tenho a menor idéia. Nike Quinto deleitou-se com a tensão que estava criando. — Pois fique sabendo — disse, esticando as palavras — que não existe a menor dúvida de que essa pessoa é... Thomas Cardif, o filho do administrador.
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Os agentes da Divisão III descobriram o plano dos antis, mas não conseguiram fixar as terríveis dimensões do mesmo. No próximo volume da série, intitulado O Bloqueio de Lepso, uma nova e eletrizante perseguição vai acontecer...