(P-057)
O ATENTADO Everton Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Tentaram assassinar o Administrador do Império Solar! A primeira aventura de colonização...
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos. Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1984. Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais. No sistema solar, não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra. Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante. Mas, desta vez, o ataque partiu de dentro... Dois grupos revolucionários acusam Rhodan de ditador e tentam assassiná-lo!
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = = Horace O. Mullon — Homem de trinta anos, chefe de um grupo revolucionário. Walter S. Hollander — Chefe de outro grupo revolucionário. Fraudy Nicholson — Bela estudante. Flagellan — Comandante da nave Adventurous. O’Bannon — Lutador robusto. Milligan — Técnico da nave.
1 O homem abriu uma fresta da porta e lançou um olhar desconfiado para o lado de fora. — O que deseja? — perguntou. — Morte aos tiranos — respondeu Mullon. A senha lhe parecia ridícula, mas ele a proferiu valentemente. A porta abriu-se mais um pouco, apenas o suficiente para que uma pessoa adulta pudesse esgueirar-se pela mesma. Mullon penetrou na semi-escuridão da residência. O homem, que acabara de abrir, trancou cuidadosamente a porta e, calcando um botão, acendeu a luz do hall. — É Mr. Mullon? — perguntou. Mullon fez um gesto afirmativo. — Pensávamos que só viesse amanhã — disse o homem. Mullon voltou a fazer um gesto afirmativo e, enquanto isso, tirou a capa e a pendurou num velho cabide. — Viajei num cargueiro que levava apenas alguns passageiros. O aparelho realizou um vôo fora do horário. Por isso cheguei hoje. O homem, que recebera Mullon, abriu outra porta e levou-o a um recinto ainda mais escuro que o hall. No verão faz muito calor em Tientsim. Ninguém suporta a temperatura entre meiodia e três horas, se não fechar cuidadosamente todas as frestas pelas quais o ar quente possa penetrar. Mullon sentou. O outro — um chinês do sul, franzino e delicado — mexeu num armariozinho e trouxe uísque, soda e gelo. O rosto de Mullon iluminou-se. — Excelente, Huang! Estou morrendo de sede. Huang sorriu enquanto colocava os dois copos sobre a mesinha. — Nós também — respondeu. — Sinto sede de informações. Estamos vivendo na sombra da metrópole, isolados do resto do mundo. Ao que parece, os cinco democratas autênticos que existem em Tientsim não são muito importantes, pois ninguém se dá ao trabalho de mantê-los informados sobre os acontecimentos. Mullon sentiu a recriminação. — A coisa não deve demorar mais que seis ou oito semanas — respondeu. — Passamos por uma confusão tremenda. É que o grande dia está iminente. Huang levantou-se e arregalou os olhos. — Será possível? O senhor pretende...? Mullon ficou com o rosto muito sério. — Exatamente. Pretendo. Já chegou a hora de dar um jeito nesse homem arrogante que acha que é o dono do mundo. Huang bateu palmas de tão satisfeito que ficou. — Será um dia de festa para todos os homens decentes do Império Solar! — exclamou em tom entusiástico. — Espero que sim. Mas antes disso ainda teremos muito trabalho para fazer. Aliás, eu mesmo apenas sou a vanguarda. Atrás de mim vêm uns vinte homens, que o senhor terá de esconder em Tientsim e nos arredores. Amanhã seguirei viagem para Terrânia. Avisá-lo-ei quando os vinte homens estiverem para chegar. Acho que levaremos umas quatro a seis semanas para preparar o grande golpe.
Huang entusiasmou-se cada vez mais. — Ainda bem que temos um homem arrojado como o senhor na direção dos democratas autênticos! — exclamou. — O que seria de nós... Estava sendo sincero, mas Mullon repeliu-o com um gesto. — Qualquer um teria feito a mesma coisa, Huang — interrompeu. — Apenas teria de compreender que a democracia é a única forma de governo que resguarda a dignidade do homem, e que esse homem que está em Terrânia se tem revelado um ditador da pior espécie. É exclusivamente ele que manipula todos os fios. Não admite que ninguém se intrometa nos seus negócios; acredita que tem poderes para resolver qualquer coisa em nome de cinco bilhões de seres humanos. — Depois de termos compreendido isso, o caminho para a revolução já não é muito longo. — Na costa ocidental dos Estados Unidos existem dezenas de milhares de democratas autênticos. Em comparação com a grande massa dos acomodados, não são muitos. Mas estão dispostos a arriscar tudo para atingir o grande objetivo. — Perry Rhodan tem que morrer. *** Na manhã do dia seguinte, Horace O. Mullon seguiu viagem para Terrânia. No lugar em que ficava essa cidade, há setenta anos se estendia a imensidão desolada do deserto de Gobi, junto a um lago salgado e quase totalmente seco. Não havia mais o menor vestígio do deserto. A irrigação artificial havia transformado o grande areal numa área de jardins viçosos. Terrânia era a sede da autoridade suprema do Império Solar, da administração do planeta Terra. Era ali que residia o homem que Horace O. Mullon pretendia matar: Perry Rhodan. As telas do foguete ofereciam, no momento do pouso, uma visão ampla da gigantesca cidade. Mullon não se cansava de admirar sua beleza moderna e seu traçado impecável. Tinha certeza de que haveria algum tipo de controle na chegada. Por isso ficou espantado ao ver que todo mundo logo se dirigia aos giroplanadores e entrou num desses. Seguiu o exemplo dos outros passageiros e foi até o edifício da recepção. A bagagem de Mullon já havia chegado por caminhos ignorados. Mullon não sabia o que fazer com as malas enquanto não encontrasse hotel. Então seguiu uma seta luminosa na qual se lia “guarda-volumes”. Um tanto perplexo, olhou a fileira de guichês. De repente, uma voz amável pediu: — Aproxime-se, Mr. Mullon, caso queira guardar sua bagagem. Mullon girou repentinamente sobre os calcanhares. Um homem, que pretendia matar a autoridade de categoria mais elevada da Terra, só poderia sentir-se chocado ao perceber que, pouco antes de atingir o objetivo, uma pessoa totalmente estranha o chamava pelo nome verdadeiro. Um homem levantou-se atrás de um dos guichês. Em seu rosto havia um sorriso amável. — Ainda não sei em que hotel encontrarei um aposento — disse. — Por isso gostaria de deixar a bagagem aqui. O homem fez um gesto bonachão, comprimiu um botão de um aparelho parecido com uma máquina de escrever e segurou a fita de plástico que saltou da fenda. — Seu recibo, Mr. Mullon — disse, entregando a fita de plástico. — O resto será
providenciado automaticamente. Não se preocupe com nada. Assim que tiver encontrado um hotel, coloque esta fita de plástico em qualquer terminal do correio pneumático. Depois sua bagagem lhe será entregue o mais depressa possível. Mullon segurou a fita de plástico e ficou com o queixo caído. — Está bem — murmurou. — Mas de onde o senhor me conhece? O homem mostrou um sorriso condescendente. — O equipamento eletrônico do aeroporto e os foguetes estacionados no mesmo formam uma grande unidade cibernética — explicou. — Qualquer coisa que a lista eletrônica de passageiros de seu foguete sabe, ou já soube, eu também sei. — Como? Quer dizer que sabe o nome de todas as pessoas que chegam e partem? — Naturalmente. Minha memória é formada por cerca de um bilhão de células de armazenamento, e cada célula é formada por quatro mil e noventa e seis unidades, Mr. Mullon. Não sou nenhuma exceção. Todos os robôs da classe C-4 são como eu. — Todos os robôs...! — fungou Mullon. Atrás dele, alguém soltou urna risadinha. Mullon mal ouviu. Sentia-se ainda muito assustado pelo fato de ter descoberto que o “ser” era apenas um robô. E isto teria de causar espanto a um revolucionário apaixonado, vindo de uma cidadezinha antiquada como Seattle. Nesta só havia dois robôs fixos, cuidadosamente identificados como caixotes automáticos incumbidos da emissão de passagens no aeroporto. O robô da classe C-4 não se sentiu ofendido. — Ele não leva a mal — disse uma voz clara e amável, entremeada de um ligeiro sorriso. — Já está acostumado. Mullon virou-se. Viu uma moça. — Meu Deus — suspirou. — Será que a senhora também é um robô? — Não — disse a moça com uma risada. — Mas eu me dou muito bem com eles. Afinal, já moro alguns anos em Terrânia. Ao contemplar a moça, Mullon esqueceu-se do susto que o robô lhe pregara. Recuperou a capacidade de raciocinar. — Se é assim, talvez a senhora possa me ajudar — disse, dando uma expressão preocupada ao rosto. — Estou fazendo turismo por conta própria. Não conto com o auxílio de qualquer agência de viagens. Onde poderei hospedar-me nesta cidade? A moça deu de ombros. — No lugar que escolher. Depende do que o senhor queira gastar. Mullon sorriu. — Será que pareço muito rico? A moça avaliou-o com um olhar. — Seria difícil dizer. Acredito que o Flattner serviria para o senhor. — É um hotel? — Perfeitamente. Mullon fez um rosto tímido. A moça lançou-lhe um olhar indagador. — Bem — principiou Mullon — não quero ser inoportuno. Caso não tenha nada a fazer, será que poderia mostrar-me o caminho? Poderia pagar um drinque para retribuir a amabilidade. A moça fez um gesto afirmativo. — Pois não — disse. — Aliás, meu nome é Mullon. — Já sei. O C-4 disse em voz alta. Meu nome é Nicholson. Fraudy Nicholson. ***
Durante o primeiro dia passado em Terrânia, Mullon não pensou muito na tarefa que o fizera ir a essa cidade. Dedicou seu tempo a Fraudy Nicholson, que amava de todo coração a cidade em que vivia e por isso era uma ótima cicerone. Só se separaram pouco antes da meia-noite. Combinaram novo encontro para o dia seguinte. A bela moça já ocupava um lugar no coração dele. A idéia de revê-la deixou Mullon feliz. Sua bagagem havia sido entregue de tarde. Para celebrar, pediu uma garrafa de champanha. Só depois de esvaziá-la teve vontade de ir para a cama. *** Quando despertou em meio à escuridão, ainda estava sob os efeitos do álcool. Levou algum tempo para remexer a memória e descobrir em que lugar se encontrava. Sentiu-se surpreso por ter acordado no meio da noite. Um pouco atrás do lugar em que se encontrava viu os contornos fracamente iluminados da janela que dava para o parque do hotel. Ouviu um ruído e ergueu-se abruptamente. Pôs a mão trêmula na gaveta da mesinha-de-cabeceira, onde guardara a pistola. Tateou para encontrar a arma. — Ai! Não adiantou mais. Sentiu uma picada dolorosa e, no mesmo instante, um torpor indefinido espalhou-se por todo o corpo. Com um leve gemido, Mullon caiu para cima do travesseiro e perdeu a consciência. *** Quando acordou de novo, já era dia. A memória foi voltando pouco a pouco. Só quando olhou para a mesinha-decabeceira com o botão azul que abria a gaveta, conseguiu reconstituir os acontecimentos. “Alguém esteve aqui. Isso mesmo. Tentei abrir a gaveta e tirar a pistola. Mas antes que eu conseguisse fazê-lo, alguém me paralisou, provavelmente com alguma toxina que ataca os nervos. Por quê?”, pensou, reconstituindo a cena. Saltou da cama, cambaleou e bateu no armário. Teve de segurar-se para não dobrar os joelhos. Os efeitos da toxina ainda não haviam cessado. A gaveta da mesinha-de-cabeceira estava fechada. Mullon lembrou-se de que durante a noite não houve tempo para ter feito isso. O desconhecido é quem cuidou de fechá-la. “O que teria ele procurado por ali?”, indagou-se mentalmente. Mullon foi ao banheiro e deixou que o jato forte do chuveiro caísse sobre sua cabeça. Depois conseguiu raciocinar melhor. “O que teria o desconhecido procurado em meu quarto?”, voltou a indagar-se. Era uma pergunta ridícula. Alguém em Terrânia sabia quais eram as intenções dele, Mullon. Por isso procuraram encontrar alguma prova que pudesse justificar uma ordem de prisão. Penetraram no quarto e revistaram a bagagem... Mullon abriu as malas, que não desfizera no dia seguinte. O conteúdo das mesmas estava revolvido. As malas haviam sido revistadas! Por um instante, Mullon sentiu-se dominado pelo medo. Sabiam por que tinha vindo a Terrânia. O Serviço Secreto estava informado sobre tudo.
Agora só lhe restava fugir o quanto antes. A qualquer momento poderiam voltar e prendê-lo. Nem quis perder tempo para lavar-se melhor. Vestiu-se apressadamente, e no momento em que estava colocando a gravata, teve uma idéia. Por que fugir? Tivera o cuidado de não deixar em sua bagagem qualquer prova de suas intenções subversivas. O simples fato de terem revistado sua mala provava que, por enquanto, não sabiam nada; apenas suspeitavam dele. Não poderiam prendê-lo só porque suspeitavam dele. Se pudessem, não adiantaria fugir. Em qualquer lugar do Império Solar onde se encontrasse, poderia ser preso tão facilmente como ali. Afinal, os domínios de Perry Rhodan não se limitavam a Terrânia. O que deveria fazer? Ficar onde estava. Mullon voltou a tirar a roupa e tomou um banho demorado. O resultado foi surpreendente. Ao que parecia, a toxina tinha “medo” dos vapores quentes. Quando Mullon saiu da banheira, os efeitos da paralisia, que sofrerá durante a noite haviam desaparecido. Enquanto colocava a roupa pela segunda vez, lançou um olhar para o relógio. Assustou-se ao perceber que faltava pouco para a uma hora. E combinara almoçar com Fraudy à uma hora. Acontece que, sem saber o porquê, já não conseguia sentir o mesmo entusiasmo do dia anterior. Durante a noite alguém lhe lembrara, de forma um tanto desagradável, que não viera a Terrânia para apaixonar-se por uma desconhecida.
2 Fraudy assustou-se ao vê-lo. — Meu Deus, o que é isso? Mullon soltou uma risada forçada. — Não dormi muito bem — disse. Sentaram e fizeram o pedido. A conversa não se desenvolvia, bem ao contrário do que acontecera na noite anterior. Mullon sentiu-se incomodado ao notar que Fraudy o examinava às escondidas. — Quer saber de uma coisa? — perguntou de repente. — Alguém lhe aplicou uma boa dose de cefeidina. Mullon estreitou os olhos. — O quê? — Aplicaram-lhe uma dose de cefeidina. É uma toxina para os nervos, extraída de plantas que só crescem nos planetas dos sóis pertencentes ao tipo dos Delta-CefeiMutáveis. É uma substância traiçoeira. Um milionésimo de grama da substância concentrada basta para paralisar o sistema nervoso de um homem por alguns dias. Como foi que aplicaram isso no senhor? — Em mim? — objetou Mullon. — Ninguém me aplicou isso. Nem sei no que a senhora está falando. Fraudy fez um gesto; até parecia que não levava a sério a objeção de Mullon. — Sou aluna de biologia galáctica na Academia de Terrânia, e a primeira coisa que um estudante de biologia galáctica aprende é a identificação das plantas traiçoeiras que existem em nossa Galáxia. Poucas horas depois que a cefeidina é introduzida na circulação, verifica-se uma coloração azulada do globo ocular. Dê uma olhada no meu espelho. Tirou o espelho da bolsa e segurou-o à frente de Mullon. Este examinou seus olhos, que reluziam num belo azul-celeste. Mullon percebeu que não adiantaria negar; acabou contando o que lhe acontecera na noite anterior. Naturalmente Fraudy quis saber se desconfiava de alguém, ou se podia imaginar por que alguém o atacara. Mullon respondeu em tom convicto: — Não. Sou um simples turista vindo de uma das áreas mais atrasadas da América. Vim para conhecer a maior cidade do mundo. Não quero fazer mal a ninguém, e não posso imaginar o que alguém queria achar em meu quarto. Quem sabe se me confundiram com outro? — Quem sabe? — respondeu Fraudy em tom pensativo. Depois não tocaram mais no assunto. Mas Mullon teve a impressão de que Fraudy ainda refletia intensamente. *** O dia não foi tão recheado de entusiasmo como o anterior. De qualquer maneira, porém, foi um dia alegre. Mullon aproveitou a oportunidade para conhecer tudo que fosse possível da grande cidade e descobrir como poderia ser realizado o maior sonho de qualquer turista: ver Perry Rhodan face a face. Fraudy disse:
— Quando tem tempo, Rhodan sempre comparece aos grandes debates da Academia. Pelo que sei, a entrada é franqueada a qualquer interessado. Tenho certeza de que lá poderá vê-lo. — Quando será realizado o próximo debate? — perguntou Mullon. — Pelo que sei, daqui a uma semana, aproximadamente. — Será que Rhodan vai comparecer? — Sem dúvida, se estiver em Terrânia. Mullon mostrou-se interessado em saber quais seriam os temas tratados durante os debates. Para seu espanto descobriu que sempre se debatiam problemas de interesse geral. — Via de regra — disse Fraudy — trata-se da posição da Terra na Galáxia e dos diversos sistemas de governo. Para mim, os grandes debates são uma das coisas mais interessantes que Terrânia pode oferecer. Mullon sentia-se bastante surpreso. O fato de Perry andar em público sem o menor constrangimento não se harmonizava com a imagem que fizera do tirano. Durante a excursão pela cidade aproximaram-se da abóbada reluzente que abrigava os principais edifícios administrativos e um pequeno espaçoporto. Fraudy estacionou o carro, alugado por conta de Mullon, numa via circular que corria junto à face externa da abóbada. De dentro do carro, Mullon contemplou demoradamente a gigantesca figura que subia para o azul ofuscante do céu, descrevendo uma curvatura que, naquela altura, era quase imperceptível. Para quem olhasse diretamente a abóbada, a mesma era transparente. Não havia nada que desse a impressão de que existia algum obstáculo entre o lado da rua onde se encontrava e os edifícios que ficavam do outro lado. Mas os raios de luz, que incidissem inclinadamente sobre a abóbada, sofriam uma refração. Havia um ângulo-limite, acima do qual se verificava a reflexão total. Dali em diante, a abóbada tinha o aspecto de uma semi-esfera prateada. Mullon sabia que aquela figura singular consistia em energia. Era uma barreira que negava acesso à parte mais importante da cidade, e de todo Império Solar, a qualquer um que não dispusesse de alguma espécie de salvo-conduto. Isto se aplicava tanto aos seres humanos, como às bombas ou engenhos destrutivos. Depois de algum tempo Mullon e Fraudy desceram do carro. Havia muita gente parada diante da parede reluzente. Algumas pessoas divertiam-se colocando o dedo o mais próximo possível da barreira energética. Fraudy e Mullon juntaram-se ao grupo. Fraudy riu quando o dedo de Mullon recuou assustado diante de um obstáculo invisível, que parecia ser de borracha. Mullon fez mais algumas tentativas. Fraudy explicou que o contato com a abóbada energética propriamente dita é mortal, e que, face ao perigo, a mesma é protegida junto à rua por um campo defensivo. Este campo defensivo era a coisa parecida com borracha que Mullon acabara de tocar com o dedo. Pela primeira vez Mullon revelou parte de suas opiniões reais. Disse que não era digno de um chefe de Estado democrático esconder-se atrás de uma barreira mortal feita de energia. Fraudy assumiu uma atitude defensiva. Provou que Rhodan não tinha necessidade de esconder-se de quem quer que fosse. A barreira energética só servia para proteger os aparelhos preciosos e em parte insubstituíveis que estavam instalados no bairro administrativo. Ao que parecia, Fraudy entristeceu-se com as idéias de Mullon, e este fato, por sua vez, entristeceu Mullon. Como é que ele, que era um democrata autêntico, poderia realizar os sonhos arrojados que vinha entretendo desde o dia anterior, passando o resto
da vida ao lado de uma mulher cujo coração estava dominado pelo entusiasmo que lhe inspirava a forma de governo do Império Solar? O ligeiro desentendimento foi esquecido quando Fraudy e Mullon foram até o espaçoporto, situado num local bastante afastado da cidade. Chegaram bem na hora de assistir à decolagem de um dos gigantescos transportadores PE. PE significava planetas exteriores. Tratava-se das colônias terranas das luas de Júpiter e Saturno e das estações de pesquisa montadas nesses planetas. Até então Mullon só havia visto decolagens desse tipo na tela. O gigante espacial era esférico e atingia uma altura de trezentos metros. Os raios de corpúsculos fortemente acelerados, que lhe conferiam o impulso para a decolagem, desciam da zona equatorial da nave como se formassem uma cortina ofuscante. Não se ouvia quase nada além do som cantante dos propulsores e do farfalhar do ar deslocado. — Ninguém imaginaria que esta caixa pesada pousará em Júpiter dentro de apenas trinta horas — murmurou Fraudy. — E olhe que não possui sequer a versão mais simples da propulsão ultra luminosa. De noite Mullon manifestou o desejo de conhecer o lago de Goshun. Fraudy levouo até lá e deixou-se convencer a dar um passeio de barco. Alugaram uma lancha por três horas e abasteceram-se para a ventura com um jantar conservado em embalagem térmica. Mullon saiu lago afora até que a margem sul, da qual haviam partido, mergulhasse embaixo da linha do horizonte, sob os raios do sol no ocaso. Depois parou o motor e pegou os remos. — Assim é mais romântico — disse com um sorriso. Fraudy reclinou-se para trás e contemplou o céu escuro. À sua frente surgiu um grupo de ilhas iluminadas pela luz débil da noite. Mullon dirigiu o barco para as mesmas. Escolheu a ilha que lhe parecia mais bela e tomou a direção da mesma, para ali pôr os pés na terra. Como estivesse avançando muito devagar, voltou a ligar o motor. Naquele instante, surgiu uma lancha vinda do nordeste, que parecia dirigir-se ao mesmo grupo de ilhas. Fraudy endireitou o corpo e olhou para a lancha. — É estranho — disse. — Quem será que resolveu passear tão longe? Mullon não viu nisso nada de extraordinário, mas Fraudy asseverou que ninguém costuma afastar-se tanto da margem. Os barcos de aluguel geralmente não se afastavam mais de dez quilômetros de sua base. Afinal, nós estamos aqui — objetou Mullon. — É bem possível que outra pessoa tivesse a mesma idéia. Fraudy sacudiu a cabeça. O argumento de Mullon não lhe parecia muito convincente. — Antes tivesse trazido um binóculo — disse. Mullon chegou antes dos desconhecidos à ilha. Numa manobra elegante fez a lancha entrar profundamente na vegetação que cobria a margem, ajudou Fraudy a descer, tirou o saco de mantimentos de baixo do banco e abriu-o. A comida era excelente, e Mullon devorou sua porção com um ótimo apetite. Teve de levantar-se para acender as luzes da lancha, pois já escurecera por completo. Fraudy não conseguia livrar-se da desconfiança. Comeu pouco e olhava constantemente para os lados. O outro barco continuava desaparecido. Mullon voltou a colocar seu barco na água e virou a popa de tal maneira que poderia passar entre duas ilhas para alcançar as água mais profundas do lago. Fraudy sugeriu que apagasse as luzes e remasse. Mas Mullon limitou-se a rir, pôs a funcionar o
motor a gasolina, um tanto antiquado, e dirigiu o barco ruidoso para as duas ilhas pequenas. Sentada a seu lado, Fraudy mantinha os olhos semicerrados. Estava à espreita, como quem quer saltar para a água assim que surja qualquer sinal de perigo. Mullon achou seu comportamento cada vez mais estranho. “Por que ela ficou com tanto medo pelo simples fato de ter visto um barco desconhecido?”, pensou. Chegaram às duas ilhas. Mullon teve de prestar atenção para fazer passar o barco. Inclinou-se por cima da borda para sondar a profundidade da água. No mesmo instante, ouviu um zumbido. Mullon ergueu-se abruptamente e viu Fraudy, que estava com os olhos arregalados, cair para o lado. Em sua blusa de imitação de couro havia uma pequena seta com um penacho. — Cuidado! — balbuciou, reunindo as forças que lhe restavam. — Def... No mesmo instante, o barco bateu num obstáculo. Mullon, que se erguera ligeiramente para procurar o inimigo invisível, foi atirado para cima do assento. Sentiu que a embarcação girava em torno de seu próprio eixo, e que, a cada volta completa, a hélice batia no obstáculo. Procurou erguer-se para segurar o leme. Mas mal conseguiu levantar-se; apoiando a mão no encosto do assento, sentiu na nuca a mesma picada suave da noite anterior. A dor espalhou-se a partir do ponto de impacto e mergulhou o corpo num torpor indefinido. Mullon ainda ouviu que subitamente o motor aumentava a rotação. Depois o silêncio e a escuridão espalharam-se em torno dele. *** Já conhecia a sensação que experimentou ao recuperar os sentidos. Tinha a impressão de que os olhos estavam inchados; esforçou-se para abri-los. A luz que os atingiu era forte demais. Mullon forçou-se a manter as pálpebras abertas e olhou em volta. A primeira coisa que viu, sem sentir, foi que estava sentado numa cadeira, com as pernas e os braços amarrados à mesma. A poucos metros dele se achava Fraudy, também amarrada a uma cadeira. Ao que parecia, ainda não recuperara os sentidos. Estava com a cabeça caída sobre o ombro. Mullon sentiu-se aliviado ao ver que ela respirava. Virou a cabeça o mais que a dor surda permitia: à sua esquerda viu, a uma boa distância, uma gigantesca cortina escura que cobria uma parede. Era ali que devia ficar a janela. Perto da cortina havia uma mesinha rodeada por várias poltronas confortáveis. Numa das poltronas estava sentado um homem com as pernas cruzadas; segurava um cigarro e um radiador térmico. O homem fitou Mullon com um ar arrogante e levantou-se com um bocejo. — Finalmente! — murmurou. — É muito cansativo esperar por alguém que não consegue abrir os olhos de fraqueza. O homem saiu rapidamente por uma porta que Mullon ainda não havia visto. Mullon esperou pacientemente, esforçando-se para dominar a dor que sentia no crânio e nas juntas. Não teve de esperar muito. O guarda com a arma de radiações voltou em companhia de outro homem. Este devia ter seus trinta anos — aproximadamente a mesma idade de Mullon — e não havia a menor dúvida de que era um branco. O guarda voltou à sua poltrona, enquanto o homenzinho se plantou à frente de
Mullon. Fitou o prisioneiro por algum tempo. Depois começou a falar apressadamente e sem o menor intróito: — O senhor é Horace O. Mullon e vem de Seattle, distrito administrativo da América do Norte. Chegou a Terrânia ontem de manhã. Em Seattle, o senhor dirige a Associação dos Democratas Autênticos. Os democratas autênticos pretendem derrubar o governo atual e instituir um regime democrático. O senhor veio a Terrânia para assassinar Rhodan. Confessa tudo isto, ou será que precisa de uma lavagem cerebral? Apesar das dores o cérebro de Mullon trabalhava febril e impecavelmente. “Quem será este homem? Um agente do serviço de segurança? Dificilmente, pois nesse caso seus asseclas não precisariam ter adotado um procedimento tão traiçoeiro para prender-me; bastaria dar a ordem. Mas quem será?”, pensou. Mullon não chegou a qualquer conclusão. Mas ficou satisfeito em saber que não havia caído nas mãos do serviço de segurança. Dessa forma, a ameaça da lavagem cerebral não passaria de blefe. Só o serviço de segurança dispunha dos instrumentos necessários à realização de uma operação desse tipo. — O senhor está louco — respondeu Mullon em tom decidido. — Não sei com quem está me confundindo. Exijo minha libertação imediata; assim que conseguir sair daqui, tomarei providências para que o senhor e seu bando não possam mais fazer mal a quem quer que seja. Um sorriso zombeteiro surgiu no rosto do homenzinho. — Acha mesmo que essa tática vai adiantar alguma coisa? Teríamos de ser muito idiotas se fôssemos soltá-lo para que nos denunciasse. “Estou ganhando de um a zero”, meditou Mullon. “Se este homem está com medo de ser denunciado, não pode ser nenhum agente da polícia secreta.” — Seu nome não é Mullon? — perguntou o homenzinho. — E não vem de Seattle? — É claro que meu nome é Mullon e que venho de Seattle! — esbravejou o prisioneiro. — Mas nem mesmo num pesadelo me surgiu a idéia de assassinar Rhodan. O homenzinho fez um gesto com a cabeça. — Que pena! — disse em voz baixa. Mullon arregalou os olhos de espanto. O movimento foi doloroso. — É uma pena? — repetiu. O homenzinho prosseguia no seu gesto. — Sim, é uma pena. Meu nome é Hollander. Já ouviu falar de mim? Mullon sacudiu a cabeça. — Nunca. Um sorriso condescendente surgiu no rosto de Hollander. — Como é que alguém pode corrigir o mundo sem conhecer as outras pessoas que lutam pelo mesmo objetivo? Já ouviu falar nos filósofos da natureza? — Já; trata-se de uma seita que prega o retorno à natureza — disse Mullon, dando mostras dos seus conhecimentos. Hollander sacudiu a cabeça. — Vejo que seus conhecimentos são um tanto deficientes. Os filósofos da natureza somos nós. E não pregamos o retorno à natureza à maneira do velho Rousseau. Acontece que aqui em Terrânia nosso objetivo é idêntico ao seu. Será que já está disposto a abrir a boca? Mullon respondeu em tom de escárnio: — Quer saber de uma coisa, Mr. Hollander? Para enganar um homem como eu, o senhor terá de inventar um truque melhor. Ao que parecia, Hollander não esperara outra coisa. Lançou um olhar sério para
Mullon e disse: — Não tenha receio! Podemos dar uma prova das nossas intenções. Espero que, em compensação, o senhor compreenda que será um homem morto se não quiser colaborar conosco depois de ter visto essa prova. Mullon confirmou com um gesto automático: — Está bem; pode começar. *** Mais ou menos ao mesmo tempo, no interior da gigantesca abóbada energética, o grande conjunto positrônico, que constituía o centro de computação da capital, expeliu em vermelho uma fita de informações. A cor vermelha significava que o conteúdo da fita era extremamente importante. Os resultados de computação emitidos nessa cor teriam de ser apresentados imediatamente a Rhodan ou a seu representante. Isso foi feito automaticamente. Um seletor cromático registrou a cor da fita e encaminhou a mesma ao canal competente. Dali a alguns segundos o relatório se encontrava em mãos de Rhodan. Este atirou o mesmo no decifrador e fez com que o escrito fosse projetado sobre a parede oposta à sua escrivaninha. O texto da informação era o seguinte: Atualmente dois grupos rivais de pessoas insatisfeitas estão agindo em Terrânia. Trata-se dos filósofos da natureza, que alugaram um recinto num edifício comercial do centro da cidade, onde se encontra um total de quinze pessoas, e da Associação dos Democratas Autênticos, cuja sede principal fica na costa ocidental do continente norteamericano. Seu chefe, Horace O. Mullon, veio a Terrânia com a intenção de preparar o assassínio do Administrador. Outros vinte homens dessa associação se encontram em Tientsim, onde aguardam o momento de serem convocados para Terrânia. Não existe a menor dúvida de que os dois grupos têm um único objetivo: a destruição da ordem vigente. Ainda não chegaram a um acordo sobre os objetivos subseqüentes. Os motivos determinantes dos atos dos filósofos da natureza e dos democratas autênticos são conhecidos. Já foram tomadas precauções para proteger o Administrador e as instituições do Império Solar. As informações serão fornecidas a intervalos regulares através do mesmo canal. Fim. Perry Rhodan desligou o projetor e recostou-se confortavelmente na poltrona articulada. Não dava mostras de ter-se impressionado com aquilo que acabara de ouvir. Depois de algum tempo inclinou-se para a frente e comprimiu um dos botões do painel comprido embutido em sua escrivaninha. O pequeno aparelho de televisão, que se encontrava no centro da mesma, iluminou-se e mostrou o rosto redondo de um homem, encimado por cabelos curtos cor de ferrugem. O homem parecia ter um gênio bonachão, muito embora naquele instante houvesse uma expressão sombria em seu rosto. — Bom dia, ministro — disse Rhodan. — Venha até aqui; tenho uma novidade para você. O homem confirmou com um gesto. A tela apagou-se. Em compensação, dali a dois minutos o original da imagem surgiu na porta do enorme gabinete de Rhodan. — Você está correspondendo cada vez mais à imagem do seu cargo — escarneceu Rhodan. — Todos acham que um ministro da segurança tem de andar de cara fechada. Bell, ou melhor, Reginald Bell, velho companheiro de lutas de Rhodan, fez um gesto de contrariedade. — Acontece que as notícias recebidas não são muito agradáveis — respondeu.
— Sente e explique seus planos — disse Rhodan. Bell sentou e fez um gesto grandioso: — Vamos esperar, pegá-los no momento oportuno, submetê-los a uma lavagem cerebral para descobrir os nomes de todos os adeptos, levá-los a juízo, obter sua condenação, e só. Ao que parecia, Rhodan concordou com a sugestão. — Qual deverá ser a sentença da Justiça? Bell fez um gesto de dúvida. — Prisão, trabalhos forçados... — Nada disso. Bell fez um gesto de surpresa. — Então você quer ditar aos juizes a sentença que devem proferir? Rhodan sacudiu a cabeça. — O Governo apresentará um projeto de lei ao Conselho Solar. Este aprovará o projeto sem a menor demora, já que o mesmo realmente preenche uma lacuna do direito penal. E quando isso acontecer, haverá mais uma pena no Império Solar, pena esta que será aplicável principalmente aos membros das sociedades secretas, revolucionários e outros tipos semelhantes. — Que pena será esta? Um sorriso condescendente surgiu no rosto de Rhodan. — Já se esqueceu, Bell? Faz pouco tempo que conversamos sobre isto.
3 Mullon obteve a prova. Conhecia de nome certas pessoas das quais se dizia que eram filósofos da natureza. Nunca se interessara por eles porque, desde que soubera do surgimento da seita dos filósofos da natureza, achara que se tratava de um estranho ajuntamento de idiotas. Mas agora estes nomes se revelaram muito úteis. Um dos homens que Mullon conhecia morava em Portland, Oregon. Hollander estabeleceu uma ligação videofônica. Ao que parecia o homem de Oregon, chamado Pattem, logo reconheceu o chefe. Na oportunidade, falou sobre os objetivos dos filósofos da natureza. Disse tudo que poderia revelar através do videofone. Mullon, que já estava quase convencido, lembrou-se de outro nome. Pediu ligação com este nome e fez a mesma experiência. Uma vez que achava impossível que esses homens tivessem sido informados antecipadamente por Hollander, acabou confessando: — Está bem. Parece que nossos objetivos são os mesmos. E agora? Hollander sorriu. Em seu rosto havia uma expressão misteriosa. Apontou para o lugar em que se encontrava Fraudy. A moça já recuperara a consciência. Fora desamarrada, mas um guarda mantinha a arma de radiações apontada para ela. Sentada na cadeira, acompanhava parte da conversa, especialmente as duas palestras mantidas pelo videofone. — E a moça? — perguntou Hollander. — Não seria preferível levá-la a outro lugar? Mullon respondeu: — Por que não deixa Fraudy fora disso e a manda embora? Tenho certeza absoluta de que não nos prejudicará. Hollander não concordou. Ao responder, sua voz revelou o cinismo que parecia ser parte de seu caráter. — Um bom revolucionário não enfia a cabeça no laço. Leve-a pra fora, Loy. O guarda saiu em companhia de Fraudy. Mullon procurou animá-la com um gesto de cabeça, mas a moça nem olhou para ele. — Vamos ao que importa — disse Hollander. — Para as coisas que hão de vir depois da revolução importa muito quem tenha dado o primeiro golpe. Aquele que matar Rhodan dará as cartas no jogo que se seguirá depois. Os filósofos da natureza não querem deixar passar esta oportunidade. O senhor há de convir que aqui em Terrânia ocupamos uma posição mais favorável que seu grupo. Quer dizer que o senhor se comportará muito bem e ficará assistindo de longe quando liquidarmos Rhodan, não é?” Um sorriso débil surgiu no rosto de Mullon, que não disfarçou a repugnância que as palavras de Hollander lhe causavam. — Quer dizer que o primeiro grupo que o assassinar vale mais, não é? — perguntou. — Não me consta que a Associação dos Democratas Autênticos faça questão de eliminar sozinha o regime vigente. De qualquer maneira, não temos o menor interesse em carregar toda a responsabilidade pelo assassínio. Estamos dispostos a aceitar qualquer tipo de colaboração. — Acontece que, pelo que acaba de insinuar, até parece que os senhores estão interessados em enfeixar a maior soma possível de poderes depois da consumação do golpe. E os democratas autênticos de forma alguma podem concordar com essa
pretensão. Sua idéia é inexeqüível; continuaremos no jogo. Hollander sorriu. — Será mesmo? — respondeu tranqüilamente. — Estou em condições de obrigá-lo a fazer o que eu quiser. O senhor... Mullon interrompeu-o com um gesto violento. — Deixe de falar bobagem, Hollander. Mantenho contato ininterrupto com os homens de meu grupo que estão em Tientsim, e estes por sua vez permanecem em contato com a associação na América. Não há dúvida de que poderá matar-me se quiser. Mas justamente por sermos democratas autênticos meu lugar seria ocupado imediatamente por outra pessoa. Assim que meus contatos com Tientsim forem interrompidos, a pessoa que for culpada disso provavelmente só terá poucas horas de vida. Mullon, que já recuperara seu ar de superioridade, riu no rosto perturbado de Hollander e prosseguiu: — Se não gostasse de viver, não lhe teria contado isto, Hollander. Neste caso, o senhor me teria matado, e dentro de pouco tempo teria chegado a última hora do senhor e de seus filósofos da natureza. Bonito, não acha? Mas é como acabo de dizer: gosto de viver. Pense em algo mais inteligente, homem. E não se esqueça: um democrata autêntico não se deixa intimidar com ameaças tolas. *** A maneira pela qual Hollander acabou cedendo recomendava o máximo de prudência. Mullon resolveu ficar com os olhos bem abertos. Entre os dez homens que Mullon conhecera durante os contatos que haviam durado várias horas, o único elemento perigoso, na opinião de Mullon, era justamente Hollander, por causa de sua inteligência. Os outros davam a impressão de serem indivíduos medíocres. Hollander exercia um controle perfeito sobre eles. Uma coisa que surpreendeu Mullon foi o fato de Hollander ser um oficial da polícia de Terrânia. O posto não era muito importante, mas permitia que Hollander e, com ele, a seita dos filósofos da natureza, tivessem acesso a muitos lugares que qualquer outra pessoa dificilmente conseguiria atingir. Uma vez terminadas as discussões. Mullon viu-se diante de um problema que acabou sendo o mais difícil de todos, especialmente porque o próprio Mullon tinha muito medo de sua solução. O problema se chamava Fraudy Nicholson. Como explicar-lhe quais eram os objetivos dos democratas autênticos? Será que ela iria dizer que não queria saber mais de Mullon antes que ele tivesse tempo de proferir uma única palavra? Num súbito acesso de valentia, Mullon resolveu procurar a resposta a estas e outras perguntas num contato pessoal com Fraudy. Hollander não teve nenhuma objeção. Mullon visitou Fraudy na sala de uma única janela, muito pequena, em que fora abrigada. Mandou que o guarda se afastasse da porta. E começou a falar e a explicar. Por estranho que parecesse, Fraudy não o interrompeu, mas ouviu-o com a maior atenção. De início parecia desconfiada; depois assumiu atitudes cada vez mais objetivas e por fim disse, deixando-o surpreso: — Seus motivos são válidos, Mr. Mullon. Quase chegaria a dizer que são nobres. Apenas, os pressupostos em que se fundam são falsos.
Mullon sentiu-se perplexo. Mas logo passou a desenvolver a loquacidade de que dera tantas provas durante os debates prolongados em que se envolvera. Explicou a Fraudy os motivos dos democratas autênticos. Depois de algum tempo, a moça sacudiu a cabeça e disse: — Estou com a cuca fundida, Mr. Mullon. Acho que preciso digerir tudo isso. Parece que o senhor está com a razão, mas acho que não vai exigir que eu concorde imediatamente. Mullon não fez questão. De qualquer maneira, conseguira muito mais do que ousara esperar. Hollander permitiu que a prisioneira almoçasse em companhia de Mullon. Fraudy demonstrou um ótimo apetite. Antes disso, havia tomado um banho quente numa das salas que externamente mantinha o disfarce de escritório, mas por dentro era uma verdadeira residência, com exceção de uma sala de apresentação. Assim, os efeitos da cefeidina desapareceram, ficando apenas a cor azul dos globos oculares. — Por falar em cefeidina — disse durante o almoço. — Foram os filósofos da natureza que visitaram o senhor no hotel? Mullon fez um gesto afirmativo. — Como ficaram sabendo que o senhor estava aqui para... bem, para matar Rhodan? Mullon deu de ombros. — Não tenho a menor idéia. Devem ter um ótimo corpo de agentes. — Onde foi que Hollander arranjou a cefeidina? — perguntou Fraudy. — Pelo que sei, essa substância não está à venda. Mullon não sabia. Respondeu: — Hollander é oficial da polícia de Terrânia. Por isso tem... O garfo de Fraudy caiu ruidosamente sobre o prato. Mullon fitou-a surpreso. — Oficial da polícia? — disse, falando com dificuldade. Mullon fez um gesto afirmativo. — Isso mesmo. Por que está tão surpresa? Fraudy voltou a segurar o garfo. — Bem — disse em tom indiferente — não é muito comum um oficial da polícia juntar-se aos revolucionários. Mullon confirmou a assertiva de Fraudy. No entanto, a reação um tanto violenta da mesma deixou-o desconfiado. — Neste caso já posso imaginar onde arranjou a cefeidina — prosseguiu a moça depois de algum tempo em tom indiferente. — É claro que um oficial da polícia tem livre acesso à academia e a outros edifícios situados no interior da abóbada protetora. E na academia existem verdadeiras culturas de cefeidina. Com isso, o assunto parecia encerrado para a moça. Mas dali a alguns minutos perguntou subitamente: — Como consegue aplicar o veneno? Aproxima-se sorrateiramente e enfia a agulha na carne da vítima? Mullon riu. — Não. Seus homens utilizam verdadeiras zarabatanas com pequenas setas providas de penacho. Que nem os indígenas da América do Sul. — Ah! — fez Fraudy. Esvaziou o prato sem dizer mais uma palavra. Subitamente voltou a falar: — Resolvi ficar com o senhor e juntar-me aos revolucionários, se não tiver nenhuma objeção.
Mullon ergueu-se de um salto. — Realmente... quer? Fraudy fez que sim. — Só quero ressalvar uma coisa, para que o senhor não se entregue a esperanças vãs. Seus argumentos não me convenceram por completo. Portanto, não sou nenhuma democrática autêntica ou filósofa da natureza. Acredito nas raízes mais profundas das coisas. Mullon sentiu-se perplexo. — Está certo; mas por quê? — gaguejou. Fraudy inclinou-se para a frente e disse: — Porque gosto do senhor, seu bobinho! *** Os acontecimentos passaram a evoluir muito depressa. Hollander aprovou o plano de Mullon, que pretendia matar Perry Rhodan a tiros, durante uma discussão na Academia. Era muito simples: Mullon e um dos filósofos da natureza seriam os atiradores. Os outros elementos dos grupos de Mullon e Hollander lhes dariam cobertura, para protegê-los contra a fúria do público que estaria assistindo aos debates. Mullon transmitiu a notícia para Tientsim e pediu que seus homens viessem para Terrânia. No mesmo dia um filósofo da natureza teve conhecimento de que o próximo debate, que versaria sobre o tema “As Possibilidades da Cooperação da Terra com os Grandes Impérios da Galáxia”, seria realizado já na próxima sexta-feira, e que Rhodan concordara em participar do mesmo. Assim que chegaram a Terrânia, os homens de Mullon foram informados às pressas sobre suas tarefas. Mullon percebeu que sentiam a mesma aversão pelos filósofos da natureza que ele. Mas não era este o momento de perturbarem-se com isso. *** Uma fita vermelha informou Rhodan prontamente sobre a chegada dos vinte democratas autênticos. Ainda foi inteirado sobre todos os detalhes dos planos elaborados sobre Hollander e Mullon e tomou suas precauções. O projeto de reforma da legislação penal foi aprovado pelo Conselho Solar e transmitido ao Supremo Tribunal do Império. O serviço secreto de Reginald Bell foi avisado de que deveria manter-se de prontidão. E isso se aplicava não só aos agentes de Terrânia, mas aos de todo planeta. *** Mullon procurou analisar a sensação que se apossou dele quando atravessou a abóbada energética e dirigia-se ao setor central da cidade. Aí foi atingido por um verdadeiro torvelinho de gente, que o arrastou para os edifícios brancos da Academia, que ficavam a poucas centenas de metros da periferia da abóbada energética. Fraudy caminhava valentemente a seu lado, com uma expressão de obstinação no rosto. À esquerda de Fraudy ia Feable, um filósofo da natureza que assumira o “cargo”
de segundo-assassino. Carregavam as armas em coldres presos ao ombro. Eram pistolas térmicas arranjadas por Hollander. Os outros trinta e quatro homens — quatorze filósofos da natureza e vinte democratas autênticos — haviam-se misturado à multidão. A grande sala de debates da Academia, que tinha lugar para cerca de oitocentas pessoas, estava ocupada até as últimas fileiras. Mullon e Feable acomodaram-se na quarta fileira. Fraudy estava sentada na quinta fileira, bem atrás de Mullon. Este escolhera o lugar para ela, pois não queria que, em caso de fracasso, alguém ligasse Fraudy aos autores do atentado. A sessão teve início às quinze horas, com uma exposição de um alto oficial da Frota, que serviria de base aos debates. Rhodan ainda não havia chegado. Mullon olhou uma única vez para seu comparsa Feable. Este parecia ter aguardado o olhar. Retribuiu-o com um sorriso. A exposição terminou às quinze horas e quarenta minutos. O orador colheu os aplausos, fez uma mesura e sentou na primeira fila. A tensão de Mullon cresceu ao infinito. Rhodan deveria aparecer a qualquer momento. Às quinze horas e quarenta e cinco minutos a grande entrada principal abriu-se e vários homens entraram. Rhodan não era o mais alto deles, mas era o que causava uma impressão mais forte. Os vivas soaram em torno de Mullon. Muitas pessoas ficaram tão impressionadas que se levantaram e esperaram de pé até que Rhodan, que cumprimentava amavelmente, embora com gestos ligeiros, tivesse ocupado seu lugar na primeira fila. Viu Rhodan apertar a mão do primeiro-tenente que fizera a exposição. Por um instante, ficou perplexo com a despreocupação com que Rhodan se movia em meio a tanta gente. Seria este o tirano de que falavam os democratas autênticos e os filósofos da natureza? No momento em que Rhodan se levantou e foi à tribuna, Mullon varreu de sua mente esses pensamentos vãos. Novos aplausos soaram, mas Rhodan os fez cessar com um gesto amável. — Fico satisfeito em notar que tanta gente compareceu para participar dos debates — disse numa voz agradável e profunda, que o sistema de alto-falantes invisíveis transmitiu para todos os recantos da sala. “Todos já conhecem a situação da Terra e do Império Solar. Os detalhes que por ventura estavam lhes faltando, já foram fornecidos na exposição que acabaram de ouvir.” Mullon lançou mais um olhar para Feable. Este escondera a mão direita sob a jaqueta. Não dava a menor atenção a Mullon. Este passou a mão pelo cabelo e, como se depois disso não soubesse o que fazer, enfiou-a embaixo da blusa. Ali estava a coronha da arma. Dava uma sensação fria, apesar do suor que escorria pelos braços de Mullon. Nesse instante, Rhodan disse: — Nossa situação não é difícil, já que todas as raças com as quais poderemos ter de entrar em contato são humanóides. As raças não-humanóides, embora mais numerosas, seriam inofensivas como inimigos e inúteis como aliados. Isto aplica-se aos setores da Galáxia que já conhecemos. É claro que nada podemos dizer sobre aquilo que fica além desses setores. Mullon viu Feable adiantar lentamente o corpo, como se quisesse cochichar alguma
coisa ao ouvido do homem que estava sentado à sua frente. Mullon fez a mesma coisa. No mesmo instante em que Feable se ergueu, também ele levantou-se. Ao que parecia, Rhodan não estava percebendo nada. Com uma agilidade inacreditável, Feable tirou o radiador térmico. Mullon, que não estava tão bem treinado, levou mais uma fração de segundo. Só conseguiu levantar a arma quando a primeira salva energética saiu chiando em direção ao homem que se encontrava na tribuna. Mas o disparo de Mullon veio logo atrás, e a pontaria foi tão boa quanto a da salva disparada por Feable. Os impactos sucessivos silenciaram Rhodan. Mullon viu que em cima da tribuna alguma coisa se desmanchou numa explosão ofuscante. Peças incandescentes voavam para todos os lados, caíam entre a multidão e puseram em movimento as massas até então paralisadas de susto. Ouviram-se gritos estridentes, as pisadas ressoaram através da sala e a ordem transformou-se num caos. Ninguém se lembrou de molestar os autores do atentado. Ninguém, a não ser Mullon, viu o que estava acontecendo na tribuna. De Rhodan sobrava apenas uma massa fumegante. Uma das peças incandescentes que a explosão arremessara para longe caíra a menos de dois metros de Mullon, atingindo um homem que gritava e se contorcia no chão. Mullon deu um salto por cima das mesas, afastou as pessoas que corriam em pânico e avançou para junto do homem que se contorcia. Não se interessava pelo homem. Queria saber de que era feita a peça incandescente. A mesma fizera um buraco no chão coberto de ladrilhos de plástico. Mullon viu o que era: uma peça feita de chapa metálica. Ergueu-se e olhou para a frente. Atrás da tribuna, o quadro permanecia: furos queimados no chão e peças metálicas fumegantes. “Onde estaria Rhodan?”, pensou agitado. Não fora Rhodan. Fora apenas um robô. Por um instante Mullon perdeu a capacidade de raciocinar. Continuava de pé, com o radiador na mão, e estava sendo empurrado pelas pessoas que queriam passar. Alguém parecia cair em cima dele. — Vamos embora! — chiou uma voz conhecida. — A polícia! Mullon olhou para cima. Fraudy passara por cima das fileiras de mesas. Uma vez que o chão apresentava um forte declive em direção da tribuna, estava quase pendurada em seus ombros. Mullon olhou em torno. Um grupo de pessoas uniformizadas penetrava pela entrada principal. O primeiro-tenente que fizera a exposição preliminar foi ao encontro dos policiais e apontou para a multidão que, fugindo, entupia as saídas. Mullon olhou para o lado. Feable havia desaparecido; também não descobriu o menor vestígio dos outros vinte e três membros do grupo. Fraudy puxou-o pelo braço. Mullon não resistiu. Suas pernas moviam-se automaticamente. A jovem sempre parecia encontrar uma passagem em meio à multidão que se comprimia. Mullon viu que os policiais surgiam também nas entradas superiores. Apontou para lá sem dizer uma palavra, mas ela limitou-se a sacudir a cabeça. Sem dar a menor atenção às pessoas que se interpunham em seu caminho, arrastou Mullon para um corredor do lado direito. No lugar exato em que o corredor dobrava para a esquerda, em direção à saída, havia uma porta. Fraudy abriu a porta, empurrou Mullon pela mesma e voltou a fechá-la.
— Vamos adiante! — fungou. O corredor que terminava naquela porta estava profusamente iluminado. Mullon correu, e Fraudy seguiu-o com passos ruidosos. — Onde sairemos? — perguntou Mullon. — Num depósito que dá para a galeria principal — gritou Fraudy. Mullon continuou a correr. Trinta metros depois, o corredor chegou ao fim. A porta existente ali estava trancada. Mas Fraudy possuía a chave. Abriu-a e deixou que Mullon entrasse antes dela. Mullon viu-se num recinto amplo, cheio de aparelhos. Mullon não se interessava pelos aparelhos. Interessava-se pelos seis homens que se haviam postado em semicírculo junto à porta. Mantinham as armas na mão; tudo indicava que estavam esperando por Mullon. Este já voltara a guardar o radiador térmico no coldre. Fraudy manteve a cabeça abaixada. Mullon ouviu uma voz que parecia vir de longe. — Infelizmente temos de importuná-lo, Mr. Mullon. Acontece que, se não o fizéssemos, o senhor nos causaria problemas. E não queremos que isso aconteça, não é mesmo? Mullon fitou o homem que acabara de falar. Viu-o erguer a estranha arma, cujo cano parecia um funil. Não fez o menor gesto de defesa quando o dedo junto ao gatilho se curvou. Sentiu-se atingido por um golpe, e perdeu a consciência.
4 A primeira coisa que Mullon sentiu foi a decepção mais profunda já experimentada em toda a vida. Ainda não sabia por que se achava tão decepcionado; sentia-se inutilizado, arrasado e abandonado. Abriu os olhos e viu-se num leito bastante confortável, no interior de uma espécie de cela. As paredes eram nuas. Embaixo do teto corria um único tubo de luz fluorescente, não embutido. Havia uma única porta, e até parecia que a mesma só poderia ser aberta a tiro de canhão. “O que acontecera? Aqueles homens!”, pensou subitamente Mullon nos seis homens uniformizados que o aguardavam atrás da porta. Um deles o havia atingido com uma arma em forma de funil. Todos usavam uniformes de policiais. Estavam subordinados a Rhodan. Rhodan — o atentado — o robô que explodiu. De repente Mullon lembrou-se de tudo. E Fraudy! Fraudy o traíra. Fraudy o atraíra para o corredor, no fim do qual os seis policiais o aguardavam. Foi mesmo assim? Mullon recordou-se que Fraudy não se atrevera mais a encará-lo, quando olhou para trás. Isso não provava tudo? Fraudy era uma agente de Rhodan! Algum tempo se passou. Mullon não sabia se foram minutos ou horas. Finalmente a porta metálica abriu-se, um policial entrou, fez um sinal para Mullon e disse: — Estão esperando o senhor. Venha comigo. Mullon obedeceu. Caminhou cabisbaixo por um corredor. Subitamente sentiu-se levantado, ao ser atingido pelo campo antigravitacional do elevador. O policial vinha atrás dele. Mullon viu as manchas brancas das desembocaduras dos corredores passarem por ele. Finalmente o campo antigravitacional o lançou para fora do poço e o deixou em chão firme. O policial disse: — Para a direita, Mr. Mullon. Mullon caminhou para a direita. Parou quando uma porta se abriu à sua frente. — Entre! Entrou e sentiu um choque. A sala, que surgiu à sua frente, era de tamanho médio e possuía poucos móveis. A maior peça era uma escrivaninha com um grande painel. Atrás da escrivaninha, estava sentado o homem contra o qual Mullon apontara o radiador térmico poucas horas antes. Perry Rhodan! Rhodan fitou-o tranqüilamente. — Faça o favor de sentar, Mr. Mullon — disse. — Muito obrigado, sargento. Mullon ouviu a batida dos calcanhares do sargento e o ruído de uma impecável
meia-volta. A porta fechou-se com um zumbido. — Seu golpe fracassou, Mr. Mullon — disse Rhodan. — A audiência do processo instaurado contra o senhor e seus cúmplices perante o Supremo Tribunal do Império Solar será realizada amanhã de tarde. Vai ser muito rápida, pois os fatos são perfeitamente claros, inclusive a história dos dois movimentos revolucionários que participaram do atentado. Sabe qual é o castigo que o espera? Mullon resolvera manter-se em silêncio. Não tinha nada a dizer a esse homem. Porém alguma coisa obrigou-o a responder. — Trabalhos forçados — disse em tom contrariado, sem olhar para Rhodan. — Não — respondeu Rhodan. — Não acredito que chegue a este ponto. Mullon fitou-o surpreso; mas, ao que parecia, Rhodan não estava interessado em prosseguir no assunto. — Tivemos conhecimento do atentado desde o estágio dos planos preliminares — disse. — Um agente especial cuidou para que, em Terrânia, o senhor não desse um passo sem ser vigiado. Mullon acenou com a cabeça. — Sei; foi Fraudy — disse com a voz abatida. — Isso mesmo; foi Miss Nicholson — confirmou Rhodan. — Pessoalmente lamento que tenham surgido certos sentimentos íntimos que, segundo estou informado, não deixaram de afetar Miss Nicholson. O trabalho por ela realizado é merecedor de elogios. Mullon perdeu o autodomínio. Levantou-se de um salto, deu um ou dois passos em direção à escrivaninha e exclamou em tom furioso: — Merecedor de elogios. Que trabalho?! O trabalho de enganar um grupo de homens preocupados com a Terra e a Humanidade, entregando-o ao tirano? O senhor acha mesmo que isso é um trabalho que merece elogios? Rhodan ouviu-o tranqüilamente. Esperou até que Mullon fizesse uma pausa e disse: — O que menos consigo compreender, de todas as coisas que os democratas autênticos e os filósofos da natureza proclamam, é isto: por que acham que sou um tirano? — lançou um olhar prolongado para Mullon e prosseguiu: — O povo não elege seus representantes? E as leis não são feitas por um corpo regularmente eleito? — São! — disse Mullon em tom exaltado. — Por um corpo que pode ser dissolvido desde que o senhor determine. Rhodan sorriu e sacudiu a cabeça. — Não acredite numa coisa dessas, Mr. Mullon — disse. — Tenho a impressão de que os membros de seu grupo e os filósofos da natureza se interessaram muito pouco pela realidade. Construíram uma imagem distorcida das coisas. Rhodan, que também se havia levantado, saiu de trás da mesa. — Sob o ponto de vista objetivo suas idéias e as dos filósofos da natureza não passam de fantasias, Mr. Mullon. Na situação atual, a Terra não se pode dar ao luxo de entreter fantasias. Por isso devemos remover de vez o perigo representado pelas duas organizações revolucionárias. — Acho que isso não será muito fácil — disse Mullon em tom irônico. — Não será mesmo? Não se esqueça de que há alguns decênios a lei permite que a polícia utilize o interrogatório psicológico. Neste instante, cerca de vinte mil democratas autênticos e cinco mil filósofos da natureza aguardam a decisão da Justiça. Aquilo que não conseguimos saber do senhor, os outros nos revelaram, e o que estes não sabiam, foi revelado pelas pessoas que prendemos posteriormente, com base nas informações iniciais. Não acredito que neste momento exista um democrata autêntico ou filósofo da
natureza ainda em liberdade. Mullon arregalou os olhos. — Quer dizer que fui submetido a uma lavagem cerebral? — fungou. Rhodan fez um gesto afirmativo. — Isso mesmo. Submetemos o senhor a uma lavagem cerebral. Posso garantir-lhe que o tratamento não produz o menor dano físico ou psíquico. Apenas menciono o fato para deixar claro que as utopias dos democratas autênticos e dos filósofos da natureza chegaram ao fim. Pode retirar-se, Mr. Mullon. Mullon saiu cambaleante em direção à porta. O policial que o trouxera voltou a encarregar-se dele. Quando já se encontrava no corredor, Mullon voltou a ouvir a voz de Rhodan: — Não se esqueça, Mr. Mullon, de que a Terra é um astro pequeno, situado na periferia da grande Galáxia. Mais da metade da Galáxia é dominada pelo grande Império dos Arcônidas e por seus aliados, os saltadores. Durante mais de cinqüenta anos conseguimos esconder-nos dos arcônidas e dos saltadores, pois não estávamos em condições de defender-nos contra a sede de poder dos mesmos. “Acontece que há poucos dias acharam nossa pista. Não se passará muito tempo até que consigam nos localizar com certeza. Quando isso acontecer, não tirarão mais os olhos de nós. Mullon, o que está em jogo é a Humanidade, sua liberdade ou sua escravização. Acredita realmente que, numa situação como esta, ainda poderíamos dar-nos ao luxo de assistir a espetáculos como o que os democratas autênticos e os filósofos da natureza pretendem encenar?” *** O processo foi rápido. As infrações de que os réus eram acusados estavam armazenadas no centro positrônico de computação. A sentença resultou do simples confronto entre os fatos não contestados incluídos na acusação e a conceituação legal das infrações. Naquela tarde, foram proferidas vinte e cinco mil sentenças. As conclusões dessas sentenças eram inatacáveis. O que mais surpreendeu foi o fato de dezesseis mil, dos vinte mil democratas autênticos, e mil, dos cinco mil filósofos da natureza, ficarem isentos de pena, porque sua participação no crime era de somenos importância. Face aos dados processados pelo centro positrônico, o Tribunal chegou à conclusão de que as pessoas isentas de pena eram simples asseclas, que não representariam mais qualquer perigo, desde que os chefes tivessem sido afastados. Com isso, o número das condenações baixou para oito mil. O observador atento não deixaria de notar que, evidentemente, a seita dos filósofos da natureza fora a mais ativa das duas organizações, já que entre eles só vinte por cento foram considerados simples asseclas, enquanto entre os democratas autênticos a proporção chegava a oitenta por cento. A sentença foi lida pelo Presidente do Tribunal, de forma completamente inusitada. Antes de mais nada, o Presidente ofereceu um resumo das reformas pelas quais o direito penal havia passado desde a união de todas as nações terranas. Reforma esta que se tornara necessária face à ampliação da esfera de influência do homem sobre o espaço. Concluiu da seguinte forma: — A reforma do direito penal tornou-se um processo gradual, que foi adaptando este setor do direito às exigências do ambiente. Este processo ainda não chegou ao fim.
Acontece, porém, que por uma resolução do Conselho Solar, adotada há poucos dias, e que aprovou uma lei aplicável aos rebeldes, conspiradores e elementos associais, deu mais um passo para a frente. A sentença que pronuncio em nome da Humanidade é a seguinte: “A deportação da Terra, a perda da cidadania terrana e a proibição vitalícia de voltar à Terra ou a qualquer planeta do Império Solar que mantenha ligações com a Terra.” Seguiu-se a fundamentação, que não despertou o menor interesse entre a assistência exaltada. Num complemento à sentença, foram revelados os últimos detalhes: — A frota espacial terrana colocará à disposição das autoridades uma nave que executará a deportação. A nave tem um tamanho que permite uma viagem relativamente confortável aos condenados. A tripulação será formada por cento e cinqüenta homens, inclusive os oficiais. O destino da nave seria a estrela Rigel, na constelação de Orion. Os astronautas terranos sabiam que Rigel III, ou seja, o terceiro planeta desta constelação, possuía condições semelhantes às da Terra, motivo por que se prestava perfeitamente à colonização. A nave levaria recursos técnicos que garantiriam a sobrevivência dos condenados. E, face à composição originária do grupo, a metade do número total de réus eram mulheres. A sentença fora proferida. Era a primeira da história terrana que ordenava a deportação para outro mundo.
5 — Está pronto, Mullon? Nos poucos dias de prisão, Mullon já se acostumara ao fato de que os guardas julgavam o Mister um acréscimo supérfluo a seu nome. Comprimiu pela última vez a fechadura da malinha que lhe haviam entregue para guardar seus reduzidos haveres. Fez um gesto afirmativo. — Venha comigo. O caminho levou-os por corredores profusamente iluminados, mas sem janelas, por uma grade eletrônica e por um elevador antigravitacional que conduzia à rua. Dos outros corredores vinham guardas com levas de prisioneiros. Mullon conhecia aqueles que pertenciam à Associação dos Democratas Autênticos. Não se cumprimentaram. Na rua, os veículos-planadores se enfileiravam. Em cada um deles cabiam cinqüenta prisioneiros e um guarda. A deportação estava em pleno andamento. A viagem ao espaçoporto durou apenas alguns minutos. Os prisioneiros demonstraram certo interesse diante da esfera de mil metros de altura, que os levaria ao destino longínquo. O nome da nave era Adventurous. Uma larga fita rolante levava do chão até uma enorme escotilha que se abria na parte inferior da nave. Os prisioneiros desapareciam aos grupos no interior dela. Alguém se dirigiu a Mullon: — Este grupo seguirá para a direita. Subam pelo elevador antigravitacional até o convés E. Quando chegarem lá, alguém lhes indicará o caminho. Mullon obedeceu. Sentia-se apático. Por que se lembrava de Fraudy justamente neste momento? Por que martirizar-se justamente quando a porta da Terra se fechava definitivamente para ele? Nos cinco dias em que se encontrara na cela, depois da prolação da sentença, Fraudy tentara visitá-lo cinco vezes. Sempre se recusara a sair da cela. Não queria trocar uma única palavra com Fraudy. “Teria agido corretamente?”, pensou indagando-se. — Preste atenção, homem! — gritou alguém para ele. — Nessa direção. Mullon voltou-se na direção que lhe fora indicada. Caminhando no fim do grupo, caminhava por um corredor largo, comprido e bem iluminado. O grupo dividiu-se várias vezes. Por fim havia apenas cinco pessoas além de Mullon. Todos eram democratas autênticos. Um homem uniformizado lia os nomes e, assim que a pessoa respondesse, indicava um número. — Mullon. — Pronto! — Dois mil, cento e trinta e sete. É ali. O camarote 2.137 era o último, antes do cruzamento de dois corredores. A porta estava trancada, mas Mullon fora informado sobre a maneira de abri-la. Colocou-se bem em frente desta e aguardou até que o dispositivo automático refletisse sua imagem e a fizesse deslizar. Atrás da porta havia um pequeno recinto guarnecido apenas com os móveis essenciais. Uma cama de dobrar, uma pia, uma mesa, duas cadeiras, um pequeno armário. Tudo isso estava sendo iluminado por um tubo de luz fluorescente que corria na junção formada pelo teto e pela parede. Alguém havia ligado a luz antes que Mullon entrasse.
Este alguém estava sentado numa cadeira e fitava Mullon com uma expressão insegura e assustada. Havia um sorriso débil em seus lábios. Fraudy! Mullon ficou rígido de surpresa. Fraudy levantou-se. — A coisa é muito simples — disse com um desembaraço do qual logo se notava que era forçado. — Fui eu que o meti nisso, e por isso quero passar pela mesma coisa que você. Em poucas palavras, ficarei a bordo e irei com vocês para Rigel III. Já não posso voltar. Ninguém mais pode sair da nave. Só resta saber se você quer ficar comigo. Se não, terei que alojar-me em outro lugar. Demorou algum tempo até que Mullon conseguisse controlar-se o suficiente para poder dizer qualquer coisa. E as palavras que proferiu não pareciam muito lógicas nem refletidas. — Sua teimosa encantadora! Por estranho que possa parecer, a permanência de Fraudy a bordo da Adventurous não exigiu outras formalidades. Até parecia que ela conseguira junto a uma autoridade muito importante a licença para acompanhar os condenados. Este fato provava que suas intenções eram sérias. A Adventurous decolou assim que foi concluído o embarque dos condenados, que demorou um dia e meio. Depois que Fraudy aparecera diante dele, Mullon parecia transformado. Subitamente compreendeu que as responsabilidades que lhe cabiam como chefe dos democratas autênticos não haviam terminado com a condenação. Era bem verdade que os democratas autênticos não existiam mais; mas havia quatro mil seres humanos que viam em Mullon a autoridade suprema. Mullon conhecia Hollander e a ambição de que o mesmo era possuído. Sabia que o filósofo da natureza tentaria assumir o comando dos oito mil homens. E os democratas autênticos logo se deixariam dominar, se Mullon não se interessasse por eles. Ao que parecia, a manutenção da ordem existente correspondia aos desejos dos juizes e dos funcionários incumbidos da execução da sentença. Tanto era assim que, quando Mullon pediu que lhe cedessem a grande cantina dos tripulantes, para realizar uma reunião, logo atenderam a seu pedido. Convidou também os filósofos da natureza, nas Hollander mandou dizer que seus homens ainda não se haviam instalado convenientemente. A desculpa era tão esfarrapada que qualquer um perceberia imediatamente que os filósofos da natureza nem pensavam em renunciar a seu papel de grupo distinto. Na reunião, Mullon aludiu a esta circunstância. Sem preocupar-se com os espiões dos filósofos da natureza que deviam estar infiltrados em seu grupo, recomendou o máximo de vigilância. Referiu-se a Hollander, dizendo que o mesmo era um homem que se encontrava sob a suspeita de não ter reconhecido a lei suprema que devia guiá-los naquela hora — a da estreita cooperação — por não querer desistir das pequeninas intrigas. Mullon sugeriu que se elegesse uma comissão incumbida de elaborar um projeto de constituição. A proposta mereceu a aprovação dos presentes. Ainda propôs a criação de uma força policial, que durante o vôo cuidaria dos filósofos da natureza e, depois do pouso, tanto destes como do primeiro acampamento dos banidos. Esta proposta também foi aceita. Finalmente Mullon procurou um sacerdote e um oficial do registro civil que estivesse entre os condenados. Não escondeu o fato de que agia assim movido por
interesse particular. Antes de encerrar a reunião, celebrou seu casamento com Fraudy Nicholson. O mais estranho era que os democratas autênticos, embora soubessem do papel desempenhado por Fraudy, desde logo a aceitaram como esposa de Mullon. Este não teve necessidade de lançar mão da autoridade de que se achava investido. Os boateiros já haviam espalhado entre os ocupantes da nave que Fraudy escolhera este destino para redimir-se da traição cometida contra Mullon. *** Quando Mullon e Fraudy voltavam ao camarote, depois da reunião, um homem que ele nunca havia visto os esperava. Parado diante da porta fechada, segurava um envelope fechado. — É Mr. Mullon? — perguntou. Mullon fez um gesto afirmativo. — Sou. E o senhor? — Isto não interessa. Mr. Hollander me mandou para que lhe entregasse esta carta. Deu o envelope a Mullon e retirou-se. Mergulhado em pensamentos, Mullon entrou no camarote atrás de Fraudy, enquanto abria a carta. Tirou a folha de papel dobrada três vezes e começou a ler. Fraudy viu que a expressão do rosto se alterava. Primeiro parecia perturbado, depois zangado, e finalmente contorceu-se num sorriso malévolo. Ao largar a carta, soltou uma gargalhada. — Hollander quer sua extradição — exclamou. — Minha extradição? — perguntou Fraudy em tom de espanto. — Aqui. Leia! Fraudy pegou a carta e leu: O Conselho dos Colonos Associados Livres (ao que parecia Hollander gostava tanto deste nome que continuava a usá-lo para designar os oito mil condenados) decidiu o seguinte: Miss Fraudy Nicholson, agente secreto do ditador Rhodan, deve comparecer perante um tribunal para ser julgada por traição à causa dos democratas autênticos e dos filósofos da natureza. O Conselho dos Colonos Associados Livres intima aqueles que adotam o comportamento estranhável de abrigar essa mulher, a entregála imediatamente. Ass. Hollander, Presidente do Conselho dos Colonos Associados Livres. — O que pretende fazer? — perguntou Fraudy assustada. Mullon riu. — Vou dizer a Hollander que vá para o inferno juntamente com seu conselho associado. Pelo que conheço dos meus homens, todos concordarão comigo. Mullon escreveu às pressas uma carta-resposta. Não usou palavras tão duras e terminantes como pretendera. Perguntou se Hollander não achava que para Fraudy seria castigo suficiente deixar-se deportar da Terra como todos os condenados, e se em sua opinião valia a pena que a união, tão necessária numa hora como esta, fosse minada por uma questão dessa natureza. Meia hora depois da chegada da mensagem de Hollander, a carta foi enviada por um
mensageiro especial. Este mensageiro recebeu instruções para aguardar a resposta de Mullon. A resposta veio prontamente e foi do seguinte teor: O Conselho dos Colonos Associados Livres tomou conhecimento de que Horace O. Mullon, antigo chefe dos democratas autênticos, desposou a agente secreto Nicholson, que está sendo acusada pelo Conselho. Face a isso o Conselho conclui que Horace O. Mullon se distanciou dos objetivos pelos quais se empenham tanto os filósofos da natureza como os democratas autênticos. Deve ser considerado inimigo da causa comum. O Conselho exige que também seja extraditado para ser julgado por um tribunal dos colonos. Mullon sentiu-se perplexo. — Hollander quer briga — disse em tom pensativo. — Bem que gostaria de saber quais são suas intenções. *** Mullon convocou cerca de cem dos democratas autênticos para deliberar face às duas cartas recebidas de Hollander. Conforme esperava, os homens ficaram de seu lado. Mas também não conseguiram adivinhar o que Hollander pretendia fazer. *** O comandante Flagellan resolveu efetuar duas transições para vencer a distância enorme que separava a Terra de Rigel. Na altura da órbita de Urano, a Adventurous penetrou no hiperespaço, para emergir a meio caminho entre a Terra e Rigel. Flagellan deixou passar vinte horas entre uma transição e outra. Queria ter certeza de que os geradores da nave tivessem restaurado o suprimento de energia antes de executar o segundo salto pelo hiperespaço. Flagellan era um comandante cuidadoso e responsável. Não poderia imaginar que justamente esse cuidado seria a causa do desastre. *** A primeira redação do projeto de constituição, elaborado pela comissão especial, foi apresentada à assembléia. Mullon ficou satisfeito ao notar que mais de três mil e quinhentos, dos quatro mil democratas autênticos, haviam comparecido para assistir à leitura do projeto, participar dos debates e exercer o direito de voto. O interesse político estava bem vivo, o que para Mullon era um bom sinal. Depois de uma hora de debates aprovou-se uma constituição provisória. Sabia-se perfeitamente que não valeria a pena fazer um trabalho definitivo, já que os filósofos da natureza insistiam em trilhar seu próprio caminho. Teriam de aguardar se, uma vez chegado a Rigel III, Hollander fundaria um Estado próprio ou não. Segundo a constituição provisória, os destinos dos democratas autênticos seriam decididos por uma assembléia, composta de cem representantes eleitos por voto livre, universal e secreto. O presidente da assembléia, eleito por esta, exerceria as funções de chefe de Estado. Conforme ressaltou Mullon numa breve alocução final, esta decisão ainda apresentava certa conotação ridícula, mas depois de chegarem à nova pátria isso
mudaria. Fraudy não participou da reunião. Mullon recomendou-lhe que ficasse no camarote e não deixasse entrar ninguém. Alguns homens, cujos camarotes ficavam na mesma área que o de Mullon, acompanharam-no. Conversavam sobre os resultados da votação. Todos — com exceção de Mullon — tiveram certeza de que este seria o primeiro presidente da assembléia. Mullon repeliu a idéia com uma risada e esteve a ponto de enumerar os motivos pelos quais, na sua opinião, estava automaticamente excluído, quando viu a sombra de um homem que desaparecia na curva do corredor que ficava junto ao seu camarote. “É gente de Hollander!”, foi este o primeiro pensamento que lhe acudiu. Sem dar a menor atenção aos companheiros espantados, correu em direção a seu camarote e aguardou impaciente até que a porta se abrisse. A visão que se lhe ofereceu foi terrível. Fraudy havia desaparecido. Ao que parecia, defendera-se com todas as forças antes de ser seqüestrada. — Os homens de Hollander estiveram aqui! — gritou Mullon para seus acompanhantes. — Ainda cheguei a ver o último deles; foi para este lado. Levaram Fraudy! O’Bannon, um dos colaboradores mais chegados de Mullon, foi quem compreendeu primeiro. — Vamos trazê-la de volta, Horace! — gritou. — Venham. O alojamento de Hollander fica no setor cinco. Cortaremos caminho. Este corredor leva diretamente para lá, enquanto os filósofos terão de descrever um círculo. Ninguém hesitou. Correram pela galeria principal, até chegar à bifurcação à qual O’Bannon acabara de aludir. O’Bannon não a atravessou. Parou num cruzamento, depois de ter percorrido cerca de três quartas partes do caminho. — Sua mulher deverá causar-lhes certas dificuldades — gritou com a voz ofegante. — Por isso não conseguirão avançar tão depressa como nós. Seria uma tolice se fôssemos parar diante da porta de Hollander. Dobraremos à direita aqui mesmo e com alguns passos estaremos no corredor principal, onde esperaremos por eles. A sugestão foi aceita. Dali a dois minutos, chegaram ao lugar em que os dois corredores se encontravam num cruzamento profusamente iluminado. Os dois corredores estavam vazios. Por enquanto não se via o menor vestígio dos homens de Hollander. Mullon contou suas forças. Eram apenas sete homens. — Estão chegando! — cochichou O’Bannon e retirou-se para o corredor lateral. Deitado no chão, esticou a cabeça e observou. Depois espalmou por três vezes a mão direita para os que estavam atrás dele e mostrou mais dois dedos. Mullon compreendeu. Eram dezessete pessoas. Seria uma luta difícil. Mas as coisas nem ficaram tão ruins, graças à fúria de O’Bannon. Este ia levantando-se à medida que os homens de Hollander se aproximavam. Encolheu lentamente os joelhos e ficou de pé. Levantou o braço e saiu em disparada para o corredor, gritando: — Vamos, rapazes! Com a violência de um foguete, abriu um caminho de cinco metros nas fileiras dos inimigos totalmente perplexos. Mullon e os outros logo o seguiram. Ouviam-se gritos estridentes sempre que os punhos terríveis de O’Bannon atingiam o alvo. Antes que Mullon e os outros homens conseguissem entrar em ação, O’Bannon
derrubou seis dos inimigos. Os onze restantes, ainda dominados pelo susto, foram facilmente vencidos pelos homens de Mullon. Libertada da brutalidade dos seqüestradores, Fraudy estava encostada à parede, chorando. Mullon abraçou-a e procurou consolá-la. — Sabia que vocês viriam — disse Fraudy. — Vocês são formidáveis. Obrigado, O’Bannon. Um sorriso cobria o rosto largo de O’Bannon. Dos homens de Hollander, que estavam mais ou menos conscientes, três, que ainda se conseguiam manter sobre as pernas, foram levados por Mullon. Mullon achou que os três homens lhe poderiam servir de reféns. Além disso, queria apresentá-los a Flagellan, para provar que era Hollander quem vinha perturbando a ordem. Mandou que um dos seus homens, chamado Wolley, fosse ao convés C para avisar Flagellan. O’Bannon disse: — Provavelmente o distinto cavalheiro nem se interessará por isto. *** Os três prisioneiros foram trancados numa das salas destinadas às atividades comuns e mantidos sob estrita vigilância. Wolley demorou a voltar. Quando finalmente apareceu, veio em companhia de dois homens pesadamente armados. Parecia abatido. — O senhor é Mullon? — perguntou um dos soldados em tom sombrio. — Sim. O que houve? — O senhor logo vai descobrir. O comandante Flagellan quer que o senhor compareça à sala de comando. Mullon sentiu-se um tanto intrigado; olhou para Wolley. — O que houve, Wolley? Wolley fez um gesto de recusa. — Hollander inventou um truque miserável, chefe. Acompanhe os homens. Flagellan explicará. Mullon olhou em torno. Fitou O’Bannon, que se encontrava próximo a ele e acompanhara a conversa. Parecia que adivinhava as preocupações de Mullon. — Não se preocupe, Horace — disse. — Ficarei de guarda à frente da porta de Fraudy e cuidarei para que ninguém a leve. *** Mullon nunca havia visto a sala de comando de uma nave espacial, mas imaginava que normalmente não estaria tão repleta de gente armada como desta vez. Flagellan aproximou-se em atitude ameaçadora e disse em tom furioso: — Então é o senhor que pretende apoderar-se da nave à força para escapar à execução da pena! Fez um plano para dominar a tripulação e assumir o comando da Adventurous! Por mais que a acusação o surpreendesse, Mullon manteve-se tranqüilo. Sacudiu a cabeça e, quando Flagellan fez uma pausa, disse: — Não sei quem lhe contou isso; apenas sei que é mentira. Ninguém de nós jamais concebeu uma idéia destas.
Sem tirar os olhos de Mullon, Flagellan fez um gesto e disse: — Tragam os prisioneiros! Mullon viu uma porta abrir-se. Quatro homens algemados foram empurrados pela mesma. — Conhece estes homens? — perguntou Flagellan. Mullon nunca os havia visto. — Não — respondeu. — Ah, é? — disse Flagellan, respirando com dificuldade. — Como é que estes homens o conhecem tão bem? — Isto não quer dizer nada — respondeu Mullon em tom seco. — Qualquer tripulante desta nave conhece o senhor, mas nem por isso o senhor conhece todos os tripulantes. Por um instante Flagellan ficou sem fala. Voltou-se para os homens algemados. — A que grupo pertencem vocês? — perguntou. — São democratas autênticos ou filósofos da natureza? — Somos democratas autênticos — responderam os quatro a uma voz. — E por que andaram espionando perto da sala de comando? Um dos homens respondeu: — Queríamos descobrir quantos homens costumam permanecer na sala de comando, quando é feito o revezamento e de que lado é mais fácil penetrar na sala. — Por que estavam interessados em descobrir isso? — Porque Mullon elaborou um plano para apoderar-se da nave. Flagellan voltou a dirigir-se a Mullon. Falou em tom exultante: — Então, o que me diz? — Que isto não passa de uma palhaçada — respondeu Mullon tranqüilamente. — Mande interrogar meus homens. Eles lhe dirão que estes prisioneiros não são democratas autênticos. — É claro! — disse Flagellan em tom de escárnio. — Seus homens foram preparados. Mullon reprimiu a cólera. — Sinto muito que o senhor não tenha acompanhado atentamente o processo que resultou em nossa condenação — disse. — Do contrário saberia qual das duas entidades é a mais perigosa. Desde o início, os filósofos da natureza procuraram enganar os democratas e, ao que parece, encontraram um homem que os ajudará a fazê-lo: o senhor. — Vejo-me obrigado a detê-lo, Mr. Mullon — disse Flagellan em tom rígido. — Garanto-lhe que farei tudo para que haja justiça. O caso será examinado e, se apurarmos que o senhor sofreu uma injustiça, pedirei desculpas. O senhor há de compreender que, como responsável pela segurança da nave, tenho que certificar-me de que o senhor não nos causará problemas. Mullon fez um gesto afirmativo. — Se acha que deve fazer isso, fique à vontade — murmurou. Mullon foi levado ao camarote que se parecia muito com aquele que ocupava juntamente com Fraudy. Milligan trancou Mullon e postou-se diante da porta. — Se precisar de alguma coisa, bata — disse. — Se puder, arranjarei. Mullon agradeceu. A porta fechou-se e o prisioneiro viu-se a sós. Resolveu refletir sobre os estranhos truques de Hollander e sobre a finalidade dos mesmos.
6 Mullon passou algumas horas monótonas, preenchidas apenas com reflexões estéreis. Começou a interessar-se em saber quando Flagellan iniciaria a investigação contra ele. Estava prestes a bater à porta para chamar Milligan quando ouviu um estranho ruído, vindo do lado de fora. Mullon, que nunca havia visto uma nave espacial do lado de dentro, não sabia que as paredes e as portas dos camarotes absorviam perfeitamente o som, e que aquilo que estava ouvindo era o uivo estonteante das sereias de alarma. Só o percebeu quando a porta se abriu. — Venha comigo! — gritou Milligan, superando o ruído das sereias. — Alguma coisa está sendo tramada na sala de comando. Tenho de ir até lá. Mullon obedeceu; correu atrás de seu guarda. O corredor percorrido terminava numa pequena alameda. Havia ali uma série de portas que davam para a sala de comando. Essas portas estavam escancaradas, e via-se ao primeiro relance o que estava acontecendo lá dentro. O corredor e a sala de comando achavam-se repletos. Segundo as normas prevalentes na nave, aquelas pessoas nada tinham que fazer por ali. Na parte dos fundos da sala de comando estava sendo travada uma luta. Mullon percebeu os raios ofuscantes saídos das armas térmicas e os gritos dos feridos. Ao que parecia, Milligan não pretendia outra coisa senão entrar na confusão. No momento em que saiu de trás da parede, de onde ele e o prisioneiro haviam observado o interior da sala de comando, Mullon segurou-o pelo braço. — Fique aqui, seu idiota! — chiou. — Não vê que está chegando tarde? Milligan mexeu furiosamente na arma de radiações. — Esta gente é de seu grupo? — perguntou com a voz zangada. Mullon sacudiu a cabeça. — Não; são os filósofos da natureza. E, pelo que vejo, praticamente já conquistaram a sala de comando. Milligan praguejou e voltou a abrigar-se atrás da parede. Mullon procurou calcular o número dos filósofos da natureza que participavam do ataque. Deviam ser cerca de quinhentos. A tripulação da nave era composta de cento e cinqüenta homens, três quartos dos quais ocupavam algum posto fora da sala de comando. Hollander devia ter conseguido chegar com toda sua tropa à sala de comando sem que ninguém o percebesse. Depois não houve mais nenhuma dificuldade. Mullon viu um grupo de cerca de cem filósofos da natureza sair da sala de comando com as armas de que se haviam apoderado e penetrar num dos corredores principais, que saíam pelo lado esquerdo da alameda. Os outros iniciaram a limpeza da sala de comando. Mais precisamente, arrastaram os feridos para fora e colocaram-nos na alameda. Mullon notou que para cada homem uniformizado havia cerca de quatro filósofos da natureza feridos. Ao que tudo indicava, os homens de Flagellan se haviam defendido valentemente. Por estranho que parecesse, não havia mortos. Talvez o ataque não tivesse acarretado perda de vidas — o que Mullon não acreditava — ou então, os filósofos da
natureza estavam retirando os mortos por outra porte, para não mostrar tão abertamente a infâmia que haviam cometido. De qualquer maneira, haviam conseguido o que queriam: a sala de comando encontrava-se nas mãos deles. Mullon achou que estava na hora de retirar-se. Bateu levemente no ombro de Milligan e cochichou: — Vamos dar o fora! Aqui não podemos fazer mais nada. Milligan, que até então se mantivera agachado, levantou-se e saiu andando na frente de Mullon. Os dois homens atingiram o corredor mais próximo sem que ninguém os perturbasse e, ao chegarem junto ao elevador gravitacional, confabularam sobre o destino que deveriam tomar. — Fique conosco — sugeriu Mullon. — Será o mais seguro. Milligan concordou. Subiram pelo poço lado a lado. Mullon procurou reconstituir mentalmente a idéia que servira de ponto de partida aos filósofos da natureza: “Hollander talvez tivesse mandado que quatro dos seus homens fossem até a sala de comando, instruindo-os a fazerem tudo para despertar a atenção. Os quatro logo foram presos. Ao serem interrogados, provavelmente depois de muita ‘relutância’, confessaram que eram democratas autênticos e pretendiam descobrir a maneira mais fácil de entrar na sala de comando. Flagellan não encontrou nenhum motivo para desconfiar das declarações deles. Mandou chamar-me e prendeu-me.” Era nisso que consistia o estratagema psicológico de Hollander. A partir do momento em que Mullon estava preso, Flagellan pensou que o complô fora desmantelado e que nenhum perigo ameaçava a sala de comando. A vigilância foi reduzida e Hollander atacou. Empregou quinhentos homens na operação. Só mais tarde saberia como Hollander conseguira levar quinhentos homens à sala de comando sem que ninguém o percebesse. Não havia a menor dúvida de que havia conseguido; e ainda não havia dúvida de que, a essa hora, os filósofos da natureza comandavam todos os mecanismos que serviam para controlar a nave. Mullon lamentou-se porque a idéia não lhe havia ocorrido antes. Convocou uma assembléia geral. Receava que os homens demorassem demais em comparecer, por isso chamou desde logo os elementos mais importantes, em número de quinze, e conferenciou sobre a situação. — Na minha opinião — disse, resumindo suas impressões — no momento não podemos fazer muita coisa. Por enquanto o mais importante é avaliarmos a situação. Conheço “nosso amigo” Hollander e sei que dentro em breve teremos notícias dele. Não é um homem que gosta de esconder seus trunfos. — Talvez você tenha razão — admitiu O’Bannon. — Mas o que será feito da nave? Acho que Milligan nos poderá esclarecer: uma pessoa que controla a sala de comando controla automaticamente toda a nave? Milligan sacudiu a cabeça. — Não. O caso é o seguinte: todas as operações da nave são reguladas a partir da sala de comando. Se o comandante aperta um botão, uma máquina começa a funcionar na sala de máquinas. A sala de máquinas e a sala de comando dependem uma da outra. Uma não pode fazer nada sem a outra. Acontece... O’Bannon interrompeu-o com um gesto. — Acontece — completou — que em sua opinião Hollander também sabe disso e neste meio tempo já fez das suas na sala de máquinas. Não é isso? — Exatamente — confirmou Milligan.
Mullon soltou um gemido. — Meu Deus, Milligan! Está lembrado do grupo de cerca de cem homens armados que saiu da sala de comando? Milligan lembrava-se. — Aposto qualquer coisa que Hollander os mandou à sala de máquinas. Quantos homens costumam ficar por lá? — Cerca de cinqüenta. — Então o trabalho desses cem homens foi fácil. Milligan confirmou com um gesto triste. Mas, ao que parecia, Mullon acabara de recuperar a coragem. — Neste caso, sabemos perfeitamente o que devemos fazer. Temos de conformarnos com o fato de que Hollander conseguiu dominar a nave. Por enquanto não sabemos se entre seus homens existe algum piloto, ou se capturou prisioneiros que possam ser obrigados a conduzir a nave ao lugar desejado por ele. Não demoraremos em descobrir. Mas há uma coisa que já sabemos: Hollander tem armas. E é um sujeito sem escrúpulos. Tentará subjugar-nos. Portanto, também devemos arranjar armas. Olhou em torno. A lógica do argumento convencera todo mundo; mas pelos rostos dos circunstantes percebeu que ninguém achava que apenas a lógica seria uma receita para a situação. — E onde vamos arranjá-las? — perguntou O’Bannon. — Não acredito que Hollander tenha conseguido dominar todos os tripulantes. Precisamos descobrir os homens que ainda estão livres e traze-los para cá, juntamente com suas armas. Subitamente Milligan teve uma idéia. — No convés K existe um observatório astronômico. É guarnecido por quatro pessoas. Via de regra os leigos não sabem de sua existência. É bem possível que tenha passado despercebido a Hollander. — Será que o senhor poderia ir até lá com alguns homens? — perguntou Mullon. Milligan confirmou com um gesto entusiástico. — É claro que sim. Se formos pelo elevador central, não demoraremos em chegar lá. Vários homens estavam dispostos a acompanhar Milligan. Escolheu O’Bannon e Wolley. Mullon ficou para trás e tomou suas providências. Seus primeiros cuidados foram dedicados às mulheres. Deviam ser transferidas para setores que ficavam fora das prováveis linhas de ataque de Hollander e o mais longe possível dos alojamentos dos filósofos da natureza. Aproximadamente a metade dos democratas autênticos era formada de mulheres, a maior parte na faixa dos vinte aos trinta anos. Mullon pediu a Fraudy que informasse as mulheres e formasse um comitê que organizasse a mudança. Os homens não poderiam ser desviados para essa tarefa, pois o ataque de Hollander poderia ser desfechado a qualquer momento. A assembléia geral reuniu-se. Mullon relatou em palavras lacônicas o que havia acontecido. Numa resolução enérgica a assembléia desaprovou os atos de Hollander, manifestou seu apoio ao comandante, do qual ninguém sabia se ainda estava vivo, e intimou Hollander a devolver a Flagellan o comando da nave. Ninguém achou que a resolução resolveria muita coisa. Mullon pediu ao mensageiro que não se dirigisse ao acampamento de Hollander. A resolução deveria ser
entregue ao primeiro filósofo da natureza com que se encontrasse. Afinal, havia três membros da seita que se encontravam em poder dos democratas autênticos, e Hollander não teria escrúpulos em transformar um simples mensageiro num refém. Mas nem houve tempo para tomar essas providências. No mesmo instante em que o mensageiro pretendia pôr-se a caminho, os homens que montavam guarda do lado de fora introduziram no recinto um filósofo da natureza, que trazia uma mensagem de Hollander. Conforme correspondia ao gênio de Hollander, o mensageiro recebera ordens para não esperar resposta. Mullon limitou-se a entregar-lhe o texto da resolução. A carta de Hollander foi lida perante a assembléia. Seu texto correspondia exatamente ao que se esperava face ao relato de Mullon: Um grupo de combate dos filósofos da natureza conseguiu eliminar a tripulação da Adventurous. Ocupamos agora a sala de comando e de máquinas. O Conselho dos Colonos Associados Livres nomeou Walter S. Hollander comandante da nave. O comandante declara que a partir deste momento a nave se encontra em estado de emergência. As ordens serão dadas única e exclusivamente pelo comandante, e qualquer desobediência às mesmas será considerada como motim. Mullon colocou a carta sobre a mesa e olhou os presentes. — Então já sabemos a quantas andamos — disse em tom tranqüilo. — Hollander quer submeter-nos ao poder de sua chibata. A próxima mensagem, que receberemos dele, deverá consistir numa série de ordens que em hipótese alguma poderemos cumprir. Depois invocará o estado de emergência e nos prenderá. — Se até lá não tivermos arranjado armas, teremos de esconder-nos. Mas espero que nesse meio tempo os remanescentes da tripulação oficial se juntem a nós. Depois faremos o possível para perturbar os desígnios de Hollander. Ao se retirarem, os homens pareciam pensativos. Naquele mesmo instante foram formados vários grupos de combate que, segundo a opinião de Mullon, deviam operar quase independentemente um do outro. Milligan só voltou dali a cinco horas. Em sua companhia vinha O’Bannon, que trazia um olho roxo, Wolley, com uns fortes arranhões no rosto, e os quatro homens do observatório astronômico. O’Bannon estava num excelente humor. — Mostramos uma coisa a eles! — exclamou. — Alguns dos homens de Hollander procuraram deter-nos no momento em que pretendíamos entrar no elevador central. Apenas um deles carregava uma arma, e este sentiu a força de meu punho antes que pudesse puxar o gatilho. Vejam só que linda arma consegui! Tirou a arma do bolso e levantou-a. Era um microrradiador do tipo usado pelos oficiais. Milligan apresentou seu relatório a Mullon. — Nos conveses E, F e G, o movimento é grande. Mais em cima reina calma. Por lá ficam os depósitos, e provavelmente Hollander não está interessado nos mesmos. Foi como disse: não se lembrou do observatório. Os homens, que acabo de trazer, ficaram um tanto confusos quando lhes contei o que aconteceu. Tive muito trabalho em convencê-los. — Encontrou algum homem de Hollander enquanto vinha para cá? Milligan sacudiu a cabeça. — Não. Por enquanto só avançaram até o setor três. Mas descobri outra coisa.
— O que foi? — Mais sete tripulantes. Estavam nos depósitos, onde realizavam a inspeção de rotina. Explicamos-lhes o que aconteceu, e eles logo se mostraram dispostos a descer conosco. Mas O’Bannon foi de opinião que devíamos voltar separados, pois um grupo grande sempre chama mais a atenção do que um grupo pequeno. Devem chegar a qualquer momento. — São doze armas ao todo — disse Mullon em tom exultante. — O suficiente para atrapalhar a vida de Hollander. Descobriu o que aconteceu com os outros tripulantes? Milligan fez um gesto afirmativo. Subitamente uma expressão sombria surgiu em seu rosto. — Pergunte a O’Bannon. Ele poderá informar. Mullon lançou um olhar espantado para O’Bannon. — Diga logo! — Bem, foi o seguinte — principiou O’Bannon. — Procuraram deter-nos no momento em que pretendíamos entrar no elevador central. Como já disse, só um deles carregava uma arma, e este colocou-se ao alcance dos meus punhos. “Conversei um pouco com ele. No princípio não quis falar, mas afinal, temos nosso sistema... Em resumo: Flagellan e três oficiais da equipe técnica estão mortos. Aconteceu na sala de comando. Não quiseram entregar-se enquanto tinham uma arma na mão. E Hollander não perdeu tempo. “De resto, correu muito pouco sangue, por causa de um truque de que Hollander se valeu. No momento do assalto havia vinte homens na sala de comando, uns cinqüenta na sala de máquinas e cerca de dez em outros pontos da nave. Logo, sobravam setenta, que se encontravam nos alojamentos. No momento em que ouviram o alarma, não obtiveram outras instruções. Por isso correram para a sala de comando. “Hollander sabia qual era o corredor pelo qual procurariam atingir a sala de comando e ali postou alguns homens que facilmente conseguiram controlá-los com as armas. O grupo teve de recuar e procurou atingir a sala de comando por outro lado. Escolheram o caminho mais curto: a mapoteca. Hollander mandou trancar uma das escotilhas e postou seus filósofos atrás das armações dos mapas e microfilmes. Assim que os homens haviam entrado na armadilha, a outra escotilha também foi fechada. Depois não tiveram outra alternativa senão entregar-se. “Na sala de máquinas foi travada uma luta violenta, mas só houve dois feridos graves. Os outros renderam-se quando viram que não receberiam auxílio e a situação se tornou desesperadora. É só.” Naquele momento houve certo tumulto entre os homens. Estes abriram alas e deixaram passar sete homens uniformizados, que pararam à frente de Mullon e olharam em torno um tanto perplexos. Só pareciam mais aliviados quando viram Milligan e os quatro homens do observatório. — Não se preocupem — disse Mullon. — Não queremos enganá-los. Oferecemoslhes refúgio. Hollander anda atrás de qualquer pessoa que use uniforme. Querem ficar conosco? Um dos homens, um sargento, foi o porta-voz dos demais. — Conheço Milligan — disse. — Se ele diz que viu Hollander atacar a sala de comando, então é verdade. Milligan ainda diz que os democratas são inimigos dos filósofos da natureza. Por isso teremos o maior prazer eu ficar aqui e fazer o que pudermos. Mullon sentiu-se satisfeito. — Está bem. Acho que precisaremos dos senhores. Em primeiro lugar, porque
conhecem a nave, suas instalações e sua carga. Depois, precisamos de armas. Quero pedir-lhes que respondam a uma pergunta. Querem colocar suas armas à disposição da comunidade, para dar-nos apoio contra Hollander, ou preferem ficar com elas? O sargento ergueu os ombros. — Se acredita que seus homens sabem lidar com as armas, teremos o maior prazer em entregá-las. — Obrigado. Encontraram-se com gente de Hollander enquanto vinham para cá? — Vimos alguns de longe. Mas, como Milligan nos preveniu, tivemos cuidado. Não acredito que nos tenham visto. — Onde foi? — No convés F, setor um. Mullon soltou um assobio. — É bem em cima de nós. Não viu o que estavam fazendo? — Não senhor. — Posso imaginar — interveio Milligan. — Um deles descobriu que os condutos de ventilação permitem a passagem de um homem não muito corpulento. Provavelmente querem descer por lá e atacar-nos pelas costas. Mullon exaltou-se. — Onde viu aqueles homens? O sargento não se lembrou do lugar exato, mas um dos homens sabia: — No setor F-l-XIV, seção g. Essa designação correspondia à décima quarta parcela do convés F, que ficava a cerca de dois terços da distância do centro da nave à periferia. — Não acredito que Hollander nos ataque antes que tenha um motivo para isso — disse Mullon. — Provavelmente não demorará em obrigar-nos a dar-lhe esse motivo. Quando isso acontecer, bastará que seus homens desçam pelos condutos de ventilação para que fiquemos entre dois fogos. O’Bannon sugeriu que subissem ao convés F e caíssem nas costas dos homens de Hollander. Mas Mullon recusou. Não queria dar início às hostilidades. Dali a pouco chegou outro mensageiro dos filósofos da natureza, que trouxe um escrito lacônico no qual se exigia a entrega imediata dos três prisioneiros, de Fraudy e principalmente de Horace O. Mullon, que era o instigador do tumulto, na expressão de Hollander. O mensageiro teve de ouvir uma risada de escárnio e foi mandado de volta. Milligan observou o mensageiro que se afastava rapidamente como se fosse um animal pré-histórico. — Meu Deus — disse. — Esta nave dispõe de uma instalação eficientíssima de intercomunicações. Por que será que Hollander não pega um microfone e lhe diz o que quer de senhor? Até então Mullon nunca havia quebrado a cabeça sobre isso. Logo concluiu que se Hollander — já de posse de todas as instalações, inclusive as de intercomunicação — enviava um mensageiro, ainda não aprendera a usar o complicado sistema de comunicações da nave. A não ser que o mesmo tivesse sido destruído durante a luta. Mas Mullon achou que este ponto não era muito importante. O que lhe interessava saber era se Hollander cumpriria sua ameaça e consideraria a resposta negativa com um motim, para lançar seu ataque. O’Bannon recebeu instruções para ir ao convés F em companhia de quatro homens armados, a fim de assumir seu posto na área XIV, setor 1, seção g. Seis homens armados esconderam-se na sala dos tripulantes. O conduto de ventilação corria pelo centro da parede dos fundos. O ar saía pelos “poros” do material,
motivo por que não havia nenhuma abertura. Sem dúvida, os homens de Hollander abririam caminho com seus desintegradores, no momento em que recebessem ordem de atacar. Mullon resolveu fazer um plano de ataque. Partiu da suposição de que Hollander ainda acreditava que os democratas não possuíssem qualquer armamento. Em sua opinião não poderia saber que quase a metade dos tripulantes que restavam se havia juntado a ele. Se é que os filósofos da natureza poderiam sentir-se livres de perigo, seria nessa hora. Assim que se lançassem ao ataque saberiam que os democratas estavam armados, ou ao menos parte deles, e dali em diante Hollander mandaria guarnecer as posições mais importantes. A idéia para o golpe partiu de Milligan que, embora não fosse oficial, acabou revelando-se um excelente estrategista. Na opinião de Milligan o ponto mais crítico da nave não era a sala de comando, mas a de máquinas, isso especialmente face aos planos que Hollander ainda poderia ter em relação à Adventurous. Quem controlasse a sala de máquinas poderia fazer com que as ordens dadas pela sala de comando fossem ou não executadas. Hollander sabia disso. Uma boa quantidade de pessoas devia estar vigiando a sala de máquinas. Mas o simples fato de Hollander preferir atacar a sala de máquinas, depois de ter se apoderado da sala de comande, parecia indicar que não dava à mesma importância que realmente merecia. Milligan achava que na sala de máquinas haveria sentinelas, mas não muitas. Acreditava que uns poucos homens bem armados teriam uma boa chance, ainda mais que o grande número de máquinas dificultava o controle do recinto. Mullon deixou-se convencer. Mais do que isso, assumiu pessoalmente o comando do grupo que se dirigiu à sala de máquinas. Esse grupo era formado por três homens: Mullon, Milligan e o sargento Brennan. Este último estava armado com um desintegrador, enquanto Milligan e Mullon levavam microrradiadores. O que preocupava Mullon era o fato de que, durante o avanço em direção à sala de máquinas, seria praticamente impossível manter contato com seu grupo. Milligan tentara utilizar uma das linhas do intercomunicador, que partia da sala dos tripulantes, mas não foi bem sucedido. Mullon colocou o destino dos democratas autênticos nas mãos de Wolley, que foi nomeado seu representante, e garantiu que voltaria o mais rápido possível. Não pôde despedir-se de Fraudy, que estava ocupada com a mudança das mulheres para os setores mais afastados.
7 O’Bannon conduziu os quatro homens pelo tumulto das mulheres em mudança, levando-os à seção K. Ali, mandou que entrassem num dos elevadores secundários que ligavam algumas áreas de conveses, subindo e descendo alguns pavimentes. O’Bannon foi o primeiro a entrar no poço. A sucção suave do campo antigravitacional levou-o para cima. Seus homens seguiram-no. Pela primeira vez O’Bannon deu-se conta de que uma boa memória é um verdadeiro tesouro. Desde que ingressara na Associação dos Democratas Autênticos, trabalhava em estreita cooperação com Mullon, funcionando na diretoria da entidade. Por isso conheceu muita gente; e, como tivesse boa memória, não se esqueceu de nenhum deles. Conhecia todos os quatro mil que haviam sido condenados em Terrânia, tanto os homens como as mulheres. E sentia-se grato por isso. Se não fosse assim, poderia facilmente ver-se numa situação em que não saberia dizer se o homem à sua frente era um democrata ou um filósofo da natureza. O’Bannon resolveu sugerir o uso de um distintivo. Nem todos tinham memória tão boa quanto ele. O’Bannon e seu grupo foram passando pela área I do convés E e pela área XV do convés F. Cada um dos grandes conveses dividia-se em quinze áreas, e cada uma delas tinha seis metros e meio de altura, e assim podia abrigar dois pavimentos. As áreas dos conveses eram numeradas de “cima” para “baixo”, sendo que estas designações correspondiam à posição normal da nave no campo de pouso ou à situação criada pelo campo de gravitação artificial ativado durante o vôo. Depois de chegar à área XV, O’Bannon deixou-se escorregar para fora do poço do elevador. Pediu aos seus homens para aguardarem e avançou lentamente por um corredor que partia do elevador, até chegar ao limite da seção I. Os compartimentos situados à direita e à esquerda do corredor serviam para abrigar a carga. O’Bannon voltou para junto de seu grupo, depois de ter descoberto que ninguém se encontrava no pavimento XV. Saltou para dentro do elevador antigravitacional e deixou-se levar para baixo juntamente com seus parceiros. Examinou cuidadosamente o elevador. Estava muito bem iluminado e podia ser visto perfeitamente até o lugar em que terminava no pavimento V. O’Bannon sentiu-se tranqüilizado ao notar que estava vazio. A seção K do décimo quarto pavimento também estava vazia. Passou pelas seções I e H, chegando ao limite da seção G, sem que ninguém procurasse impedi-lo. Ainda não havia visto nenhum dos homens de Hollander. Prosseguiu sistematicamente na busca. Sabia que a seção G media 50 metros de comprimento e tinha uma largura média de duzentos metros. Essa área de cerca de dez mil metros quadrados, dividida em dois pavimentes, estava entrecortada por uma série de corredores largos e estreitos. Atrás de qualquer canto destes, poderia surgir um filósofo da natureza. Instruiu seus homens a manterem as armas prontas para disparar. Se houvesse um encontro, deveriam evitar que um dos inimigos escapasse e revelasse aos companheiros o avanço que os quatro fizeram. Quando O’Bannon, pelos seus cálculos, havia revistado aproximadamente metade da seção, ouviu um ruído estranho à sua frente.
Pediu que dois dos homens ficassem para trás e avançou cuidadosamente com os outros dois. Seguiram o ruído e acabaram entrando num corredor secundário, onde o ruído parecia mais forte. Mais à frente o corredor parecia envolto em neblina. O’Bannon procurou farejar e constatou que a neblina não passava de uma fumaça ordinária. Dali a pouco, viu a abertura da qual saía a fumaça. Era uma escotilha aberta. Numa pausa entre os estranhos ruídos ouviu alguém tossir e gritar. O’Bannon não tinha a menor idéia do que estaria acontecendo além da escotilha. Quando notou que a fumaça se tornava cada vez mais densa, dificultando a visão, arriscou-se a avançar até a escotilha e dar uma olhada pela mesma. Viu vultos que se moviam junto à parede oposta. Alguém gritou: — Atenção! Um raio fino e ofuscante atravessou a sala e o ruído que havia chamado a atenção de O’Bannon encheu a sala. Dali a pouco, novas nuvens de fumaça envolveram a cena. O’Bannon vira bastante. Os homens de Hollander estavam fazendo uma abertura para penetrar no conduto de ventilação. As ferramentas que usavam para isso eram radiadores térmicos. Tinham que enfeixar os raios muito estreitamente para não queimar toda a parede, e os raios assim concentrados provocavam o ruído, semelhante ao que se ouvia quando alguém rasgava fazenda. Não sabia por que os homens não usavam desintegradores. O funcionamento destes era quase totalmente silencioso e não provocava fumaça. O’Bannon concluiu que Hollander ainda não conseguira apoderar-se de um número suficiente de desintegradores para equipar todos os homens. Além disso, todos que trabalhavam junto ao conduto de ventilação pareciam sentirse em segurança. Apesar do barulho que provocavam não haviam colocado nenhuma sentinela. O’Bannon reuniu seus homens e abrigou-se num pequeno depósito situado junto ao grande salão, atravessado pelo conduto de ventilação. A escotilha foi aberta apenas o suficiente para permitir a visão sobre o corredor. O’Bannon esperava que Hollander enviasse um mensageiro assim que chegasse a hora de lançar o ataque. E O’Bannon preferia não agir antes disso. *** O primeiro trecho do caminho que levava à sala de máquinas foi percorrido sem o menor problema. Era mais do que Mullon esperava. Milligan sugerira penetrar na sala de máquinas a partir do recinto em que ficavam os tanques de hidrogênio. A matéria de apoio, que servia ao funcionamento dos propulsores corpusculares, em vôo normal, era o hidrogênio atômico. Milhões de metros cúbicos do mesmo eram guardados em gigantescos tanques, em ambiente superrefrigerado e em estado líquido. Condutos resistentes corriam dos tanques para os motores corpusculares. Esses condutos, por sua vez, eram ladeados por estreitos passadiços, que permitiam a inspeção e os reparos. Milligan acreditava que os homens de Hollander provavelmente ainda não teriam notado os passadiços que ficavam na parte superior das paredes da sala de máquinas ou, se os tivessem descoberto, não lhes dessem maior importância. Mullon mantinha-se constantemente na periferia da nave, ou seja, nos setores I ou K, embora isso representasse um caminho mais longo. Os democratas autênticos haviam sido alojados nos conveses C a E, e dentro destes nos setores 9, 10, 1 e 2. Os alojamentos
dos filósofos da natureza ficavam nos mesmos conveses, apenas nos setores 4, 5, 6 e 7. O barulho em torno de Mullon e seu grupe só cessou quando estes pegaram o elevador antigravitacional e atravessaram a linha divisória entre o convés C e o convés B, situado mais abaixo. É bem verdade que ali teriam de ficar com os olhos bem abertos. Provavelmente Hollander estaria esperando um ataque à sala de máquinas. Com Milligan à frente, o grupo foi penetrando pelo pavimento central, avançando da seção externa em direção ao eixo da nave. Ao atingir a seção E, Milligan descreveu uma curva para a esquerda. Passaram por um estreito corredor secundário e chegaram a uma longa parede que apresentava poucas escotilhas. Em compensação liam-se de espaço a espaço estes dizeres, escritos em letras brilhantes: Atenção! Combustível. À primeira vista percebia-se que não havia filósofos da natureza nessa área. Milligan abriu uma das escotilhas e deixou que seus companheiros passassem pela mesma. Depararam-se com um quadro impressionante. O recinto era circular e tinha um diâmetro de cerca de oitenta metros. Parecia atingir uma profundidade estonteante. Mullon teve a impressão de que o estreito passadiço no qual desembocava a escotilha ficava praticamente no centro do enorme cilindro. A forma do recinto era determinada pelo tanque abrigado no mesmo. Pelo visto, o gigantesco recipiente, que preenchia quase cem por cento do recinto, era feito de plástico metalizado que emitia um brilho fosco. O espaço entre a amurada do passadiço e a parede do tanque era apenas o suficiente para que um homem que tivesse braços muito compridos pudesse tocá-lo. Milligan dirigiu-se para a direita. Mal acabara de dar o primeiro passo, tropeçou. Segurou-se na amurada, olhou em torno muito perplexo e indagou: — O que foi isso? O senhor percebeu? Brennan não havia percebido nada, porém Mullon sentira perfeitamente. — Até parece que foi um terremoto leve — confirmou. — Conheço isto. Lá em Seattle a terra costuma tremer vez por outra. Mas será que por aqui pode haver terremotos? Milligan sacudiu a cabeça. — Não sei. Tomara que isso não acabe num desastre. Mullon prosseguiu cautelosamente. O abalo não se repetiu. Contornaram a metade do tanque e viram que do lado oposto havia tubos de vários metros de diâmetro, que atravessavam a parede. Junto a cada um desses tubos corria um passadiço metálico estreito, que podia ser atingido por meio de um pequeno elevador antigravitacional ou de uma escada. Milligan desceu ao passadiço situado mais embaixo. Mullon e Brennan seguiramno. Assim que alcançaram Milligan, este abriu um pouco a escotilha através da qual o tubo penetrava no recinto ao lado. — Tudo em ordem — cochichou. — Não vejo ninguém. Abriu a escotilha de vez e passou pela mesma. Uma série de ruídos indefiníveis passou pela abertura. Era o barulho do conjunto de máquinas, trabalhando a toda força. Mullon viu que Milligan se mantinha abrigado atrás de uma coluna e olhava em torno. Mandou que Brennan seguisse à frente. Aguardou até que este chegasse à coluna e seguiu-o. Ficou surpreendido ao constatar que os tubos de combustível passavam muito acima do piso da sala de máquinas. Calculou a altura em pelo menos trinta metros. A altura total da sala devia corresponder ao dobro disso. Lá nos fundos havia uma confusão formada por série de conjuntos enormes e de formato estranho, parte dos quais tomava toda a
altura do recinto. Mullon não teve tempo de deleitar-se com a impressão. Tinha que prestar atenção aos homens de Hollander — e estes estavam lá embaixo. Mullon não deu atenção ao rosto contrariado de Milligan. Apenas viu que lá embaixo ao menos cinqüenta homens desenvolviam uma atividade febril. Corriam de um lado para outro e gritavam comandos. Na frente de um dos conjuntos menores, estava um homem de uniforme esfarrapado, vigiado por dois guardas armados. Mullon procurou descobrir o que os homens de Hollander estavam fazendo lá embaixo, mas não conseguiu. Perguntou a Milligan. — O grande conversor está quebrado — disse Milligan em tom contrariado. — Provavelmente foi danificado quando atacaram nossos homens. Precisam consertá-lo. O homem que lhes dá as respectivas instruções é Stokes, um dos oficiais da equipe técnica. Mullon logo percebeu que vantagem representaria a libertação do oficial da equipe técnica. Talvez fosse o único entre os ainda vivos que era capaz de dar as informações necessárias ao reparo de um aparelho importante. Depois de passar por uma coluna que seguia uns dez metros sem oferecer o menor abrigo, descobriu seu término junto a um tubo vertical, servindo de elevador antigravitacional. O poço corria obliquamente, passando por um dos grandes canhões e atingia o chão perto do lugar onde se encontrava o oficial algemado. A dificuldade consistia em atravessar os dez metros sem ser visto. Na opinião de Mullon, o resto seria fácil. Os poucos homens, que passavam apressadamente de um lado para outro, estavam armados. Além disso, o elemento surpresa desempenharia um papel importante. Por fim, o oficial da equipe técnica era um homem tão importante que os filósofos da natureza não se arriscariam a atirar depois que Mullon e seus homens o tivessem libertado. Milligan não se impressionou com os dez metros. — Posso dar um jeito nisso — disse. — Brennan, dê-me o desintegrador. Brennan entregou-lhe a pequena arma. Milligan apontou para um lugar situado nos fundos da sala. Puxou o gatilho. Um raio fino e claro saiu do cano, atingiu o alvo e no mesmo instante fez com que a chapa de revestimento de um dos aparelhos se desprendesse. A peça caiu ao chão, provocando um barulho infernal. Nenhum dos homens de Hollander havia notado o disparo ligeiro e seguro. Mas o barulho fê-los voltarem a cabeça. Alguém gritou algumas ordens. Dez dos homens ocupados com os reparos do conversor separaram-se dos outros e correram para o lugar de onde viera o ruído, a fim de verificar por que a chapa se desprendera. Os demais seguiram-nos com os olhos. — É agora! — cochichou Milligan. Nenhum dos homens que se encontravam lá embaixo notou o grupo que atravessou o passadiço, às pressas, mas cuidadosamente, para não provocar nenhum ruído. Antes que os homens de Hollander descobrissem por que a chapa havia caído, o grupo desapareceu no poço do elevador antigravitacional. Mullon foi o primeiro que, atingido pela sucção do campo antigravitacional, chegou à saída inferior do poço. Viu que esta era ampla, e que qualquer pessoa, que por acaso olhasse nessa direção, vê-la-ia imediatamente. Havia duas possibilidades. Podia apoiar-se na parede e esperar um momento favorável, ou avançar imediatamente. Mullon optou pela última afirmativa. — Vamos! — gritou para seus homens. Saltou suavemente para o chão e, ainda correndo, eliminou com um tiro o guarda que vigiava o prisioneiro. Ouviu um chiado pouco acima de seu ombro. Era a salva disparada por Milligan, que atingiu outro guarda.
Os demais ficaram estarrecidos. E antes que estes tivessem tempo de desviar os olhos dos dez homens que examinavam a chapa caída e percebessem o que se passava, Mullon puxara o prisioneiro para junto de si e o arrastava em direção ao elevador antigravitacional. Milligan e Brennan davam-lhes cobertura. Nenhum dos homens de Hollander julgara necessário andar com a arma na mão. Seus radiadores estavam guardados nos bolsos ou presos aos cintos. — Venham para cá! — gritou Milligan para os homens. Obedeceram com certa relutância. Milligan percebera logo que o maior perigo residia no fato de estarem os homens espalhados pela sala. Por isso reuniu-os num grupo compacto. — Atirem as armas no chão! — ordenou Milligan. Alguns obedeceram. Alguém que se encontrava nos fundos gritou: — Parem, seus idiotas! Somos muito mais que eles. Atirem, seus covardes! Mas Milligan estava atento a tudo. O homem ainda não acabara de proferir a última palavra, quando um disparo passou junto à sua cabeça. Ele desviou-se, tropeçou e caiu. Ninguém seguiu sua ordem. Todos obedeceram a Milligan. As armas foram caindo ao chão. O homem, que se encontrava nos fundos, voltou a pôr-se de pé. Ao ver que os outros haviam capitulado, também atirou fora sua arma. Abriu caminho entre os demais e só parou quando Milligan levantou a pistola num gesto de advertência. — Atire, seu idiota! — gritou com a voz zangada. — Quem vai consertar o conversor? Milligan deu de ombros. Não estava interessado nisso. — Ah, quer dizer que você não se importa? — esbravejou o filósofo da natureza. — Se Hollander fizer a Adventurous entrar em transição daqui a meia hora, estaremos todos perdidos. Isso também não lhe interessa? Milligan voltou-se para Mullon. — Como é que a Adventurous pode entrar em transição com um conversor danificado? — Pois é justamente isso! — disse o homem em tom exaltado. — As avarias são apenas parciais. O transformador de fases ainda trabalha com sessenta por cento de sua potência. Mullon voltou-se para o oficial da equipe técnica que acabara de libertar. — O que significa isso? O oficial soltou uma risada contrariada. — Antes de mais nada, acontece que Hollander é um tolo. Pensa que estou exagerando as avarias do conversor para criar problemas. Fixou o momento da transição para obrigar-me a trabalhar depressa. Quanto ao mais, Suttney está com a razão. As avarias do conversor são apenas parciais. Talvez possa resistir a uma transição, talvez não. Mas procure explicar isso a Hollander! Mullon olhou em torno. Milligan e Brennan continuavam com as armas levantadas, mantendo os filósofos da natureza sob controle. Mullon sabia que não poderia confiar neles. — De quanto tempo ainda dispomos, Suttney? — perguntou Mullon, dirigindo-se ao homem que estava parado à frente de Milligan. Suttney olhou para o relógio. — Vinte e oito minutos. — Quanto tempo durarão os reparos? — perguntou Mullon ao oficial da equipe
técnica. — Mais ou menos o mesmo tempo. Se Hollander não conceder um prazo maior, nossa situação será bastante difícil. Mullon só hesitou um instante. — Preste atenção, Suttney — disse. — Vamos reparar juntos o conversor. Milligan pode ajudar um pouco, pois é técnico. Talvez consigamos antes que Hollander entre em transição. Depois veremos o resto. Combinado? Suttney parecia contrariado. — Naturalmente. Afinal, nossa vida está em jogo. Mullon fez um sinal para que os filósofos da natureza se afastassem para um lado. Quando se encontravam suficientemente longe do montão de armas jogadas ao chão, assumiu o lugar de Milligan e pediu que este fosse ao conversor juntamente com o oficial da equipe técnica. — Vamos começar, gente! — gritou. — Precisamos terminar dentro de vinte minutos. Os filósofos da natureza puseram-se a trabalhar com uma pressa notável, sob a direção de Milligan e do oficial da equipe técnica. Enquanto isso, Mullon ficou refletindo para descobrir uma maneira de impedir a execução do perigoso plano de Hollander.
8 O’Bannon e seus homens não tiveram de esperar muito tempo. A julgar pelos ruídos, os filósofos acabavam de concluir o trabalho que vinham executando na parede porosa do conduto de ventilação. Nesse instante, O’Bannon viu pela escotilha entreaberta que um homem se aproximava pelo corredor. Passou pelo esconderijo de O’Bannon e penetrou no recinto contíguo. O’Bannon ouviu-lhe a voz forte e exaltada. Abriu de vez a escotilha e saiu. Aproximou-se da entrada da sala contígua e ouviu o que se falava lá dentro. — Dentro de meia hora tudo deverá estar terminado — disse alguém em tom enérgico. — Isto só será possível se Mullon e seus auxiliares mais importantes estiverem reunidos no mesmo lugar — respondeu outro homem. — O que é que Hollander está pensando? — Não faço a menor idéia. Só sei que dentro de meia hora entraremos em transição. E vocês sabem perfeitamente quais são os efeitos da mesma. Se não terminarem ou não desaparecerem em tempo, os democratas cairão em cima de vocês assim que passar a dor da transição. — Muito bem. Faremos o possível. Quando é que Hackney deve atacar? — Daqui a cinco minutos. Sairá do corredor radial, avançando do setor cinco diretamente para o setor um. Se vocês chegarem ao mesmo tempo à sala de oficiais, Mullon estará entre dois fogos. — Se é que está por lá. — Se não estiver, prendam aqueles que encontrarem. Comecem logo! Não temos tempo a perder. O’Bannon ouviu o ruído de passos. Do lado de dentro ouviu outros passos, que se aproximavam da escotilha. O’Bannon, que se mantivera deitado no chão, levantou-se. Não teve tempo para esconder-se. O homem que trouxera a ordem de ataque de Hollander voltou para o corredor sem desconfiar de nada. Só descobriu O’Bannon quando já se encontrava lado a lado com ele. O’Bannon não lhe deu tempo para soltar um grito de advertência. Saltou sobre ele e apertou-lhe a garganta até que ficasse inconsciente. Lá dentro, onde os filósofos da natureza continuavam ocupados em penetrar no conduto de ventilação a fim de descer ao convés E, ninguém notou o incidente. O’Bannon levou o prisioneiro ao esconderijo onde estavam seus companheiros. O homem de Hollander foi amarrado e amordaçado. Deixaram-no ali mesmo. Depois o grupo de O’Bannon penetrou na peça contígua, que os filósofos da natureza acabavam de deixar através do conduto de ventilação. O buraco aberto na parede mal permitia a passagem de um homem. Mullon olhou para dentro do canal de ventilação e descobriu pequenos degraus de metal plastificado, colocados em fila vertical, quarenta centímetros um acima do outro. O’Bannon já havia concebido seu plano. Desceria por ali com dois dos seus homens, enquanto os outros dois ficariam na abertura, a fim de pegar os filósofos da natureza que lhe escapassem. A descida decorreu sem qualquer incidente. Os sete ou oito homens, que Hollander
havia enviado para caírem nas costas dos democratas, faziam tamanho barulho que O’Bannon e seus companheiros não tiveram necessidade de tomar maiores precauções para não serem descobertos. Deviam estar passando pela altura dos conveses F e E, quando mais embaixo surgiu uma luminosidade ofuscante. Dali a alguns segundos, uma nuvem de ar quente subiu pelo conduto. O’Bannon quase não conseguia respirar. Os filósofos da natureza estavam começando a trabalhar na parede do tubo de ventilação. Haviam chegado à altura da sala dos tripulantes do convés F. O’Bannon sabia que levariam pelo menos quinze minutos para fazer uma abertura. Trabalhavam com radiadores térmicos, que só poderiam ser usados a uma distância segura e com raios finíssimos. Além disso, teriam de esperar até que a parede, especialmente na parte próxima à abertura, esfriasse o suficiente para permitir passagem. Apesar disso, O’Bannon se apressou. Desceu o bastante para que pudesse enxergar o inimigo que se achava postado mais acima, poucos degraus abaixo do lugar em que se encontrava anteriormente, à luz de um radiador térmico. O inimigo dedicava toda atenção aos homens que lá embaixo tentavam romper a parede. O’Bannon não perdeu mais tempo. Desceu o mais que podia, inclinou-se para a frente e encostou o cano de sua arma ao ombro do inimigo desprevenido. — Tire o dedo do gatilho — ordenou em voz suficientemente alta para ser ouvido. — Passe para cá essa pistola, meu filho. Vamos logo! O filósofo da natureza obedeceu, perplexo e apavorado. O’Bannon tirou-lhe a arma e cochichou ao seu ouvido: — Agora vá na minha frente e suba. Lá perto do buraco há gente esperando por você. O’Bannon segurou-se com a mão esquerda nos degraus. Enfiara no bolso a arma de que acabara de apoderar-se e mantinha seu próprio radiador na mão direita. Os disparos de radiações, cuja luz fulgurante chegava lá embaixo, permitiam que o inimigo surpreendido visse que já não tinha a menor chance. Foi subindo devagar. O’Bannon continuou a descer. Surpreendeu mais três filósofos da natureza. Tirou as armas dos mesmos e mandou que subissem. Seus bolsos estavam enchendo. Nesse meio tempo, os outros inimigos haviam conseguido abrir um buraco na parede. A luz da sala dos tripulantes iluminou o interior do conduto. Mais ao longe ouviam-se gritos, o chiado dos tiros de radiações e, vez por outra, a voz de comando de Wolley. Na sala dos tripulantes, rugia a luta. Os filósofos da natureza que se encontravam no tubo de ventilação estavam impacientes. Em torno da abertura, a parede ainda estava incandescente, e ao que tudo indicava Wolley não percebera o que se passava nas suas costas. O’Bannon resolveu arriscar uma jogada decisiva. Disparou um tiro de radiação pelo conduto inferior e gritou: — Rendam-se! Descobrimos seu plano. Já prendemos quatro dos seus. Vocês não têm outra chance. Por algum tempo não se ouviu nada além do ruído da luta que se desenvolvia na sala dos tripulantes. O’Bannon viu que o homem que se encontrava mais próximo a ele começou a mexer-se. Sua mão desceu para o cinto e voltou a subir com a arma. O’Bannon inclinou-se bem para a frente, virou o radiador que trazia na mão e golpeou antes que o inimigo pudesse fazer pontaria. A pesada coronha atingiu o punho do outro. Com um grito, o homem deixou cair a arma. O’Bannon viu-a descer ruidosamente
pelo conduto. — Menos um! — gritou. — Desistam! Rápido, que somos pessoas impacientes. Talvez o problema não fosse resolvido tão depressa se lá embaixo uma cabeça calva não aparecesse na abertura, cujas bordas já haviam esfriado, e se todos não tivessem ouvido a voz exultante de Wolley: — É O’Bannon? Já chegaram? Expulsamos o pessoal de Hollander. Será que já podemos recepcionar os outros? Com isso, os filósofos da natureza desistiram. Wolley mandou que atirassem as armas pelo buraco e fossem entrando um após o outro. O’Bannon viu que tudo correu sem o menor incidente. Voltou a subir com seu grupo. Dali a alguns minutos chegaram ao convés F, onde os que haviam ficado para trás estavam amarrando o último dos prisioneiros. O’Bannon estacou quando viu que só havia três. — Mandei quatro prisioneiros. Onde está o outro? Os dois homens não sabiam nada. — Por aqui só saíram três — asseveraram. — Acredito — trovejou O’Bannon. — Quero saber onde foi parar o quarto. Os dois homens que haviam entrado no conduto juntamente com O’Bannon garantiram que quatro filósofos da natureza haviam passado por eles. Uma vez que não haviam dado com o quarto no caminho de volta, só restava uma possibilidade: passara pelo convés F e continuara a subir. — Vamos embora! — gritou O’Bannon. — Temos de ir atrás dele. Quem sabe lá o que está tramando? Os prisioneiros não poderiam fugir. Não havia motivo para preocupar-se com eles. O’Bannon voltou a entrar no conduto com os quatro homens e subiu o mais depressa que pôde. Ainda não havia galgado dez degraus quando viu uma luz ofuscante mais em cima. Sem reduzir a velocidade, gritou para seus homens: — Tomem cuidado! O sujeito está armado. Tenta abrir uma saída mais em cima. Se nos ouvir chegar, atirará. O’Bannon subia tão depressa que quase ficou sem fôlego. Quando devia ter alcançado uns duzentos metros, viu a silhueta do homem à luz de um disparo. O’Bannon reuniu as forças que lhe restavam. Pouco lhe importava que os outros ficassem para trás. O homem descobriu-o antes que se aproximasse a menos de dez metros. — Fique onde está, senão atiro! — gritou. A voz parecia nervosa e insegura. Em compensação O’Bannon sentia-se bastante calmo. Usou seu truque. — Escute aí! — gritou. — Você sabe que dentro de dois ou três minutos Hollander entrará em transição. Já pensou no que lhe acontecerá depois disso? O homem parecia refletir. — O que poderá acontecer? — perguntou temeroso. — Por alguns segundos você ficará em péssimo estado mental — disse O’Bannon. — Perderá o domínio dos seus músculos. Fatalmente soltará o degrau que está segurando e, quando a transição acabar, cairá pelo conduto abaixo... Acontece que o conduto chega até o convés B. Sabe lá quantos metros representa isso? O filósofo da natureza não respondeu. O’Bannon aproveitou a oportunidade para subir mais alguns degraus. Desta vez não ouviu nenhuma advertência.
— Não faça tolices! — disse enquanto subia, e procurou dar um tom sugestivo à voz. — Ajudá-lo-ei a romper a parede. Antes ser preso pelos democratas que cair de uma altura de oitocentos metros. O homem não se moveu. Deixou que O’Bannon se aproximasse a uma distância de três degraus. O’Bannon chegou a ouvir sua respiração apressada. — Não faça tolice! — disse O’Bannon em tom tranqüilo. — Se acha que deve atirar, atire contra a parede. Alguma coisa passou acima de O’Bannon. Num movimento instintivo, este se comprimiu contra a parede. Um metro acima de sua cabeça surgiu uma luminosidade ofuscante. O’Bannon entesou o corpo para mudar de lugar e escapar ao segundo disparo, tal qual escapou ao primeiro. Percebeu que o disparo não fora dirigido contra ele. Um feixe estreito de luz azulada encheu o conduto. O homem que se encontrava acima dele seguira sua recomendação e estava atirando contra a parede. O’Bannon subiu os últimos degraus que o separavam do filósofo da natureza. — Isto! — fungou. — Em dois terminaremos mais depressa. Vamos! Revezaram-se nos disparos térmicos dirigidos contra a parede. A abertura foi aumentando. O truque com que O’Bannon havia surpreendido o filósofo da natureza na verdade não era nenhum truque. A transição estava iminente. Teriam de atravessar a parede, pois do contrário estariam perdidos. Conseguiram. Os homens do grupo de O’Bannon, que vinham atrás, ajudaram. Aumentaram a abertura até que pudessem saltar pela mesma sem tocar as bordas incandescentes. Viram-se num gigantesco depósito, onde havia uma quantidade enorme de grandes máquinas, cobertas por lonas ou guardadas em engradados. O’Bannon viu que uma delas tinha certa semelhança com um canhão. Como precisasse de tudo que se parecesse com um canhão, examinou o engradado em que o aparelho estava guardado e começou a soltar os grampos. No momento em que estava puxando o terceiro sentiu uma dor lancinante. Os contornos dos objetos apagaram-se e perdeu o controle dos músculos. — Transição! — gritou alguém. *** Depois de quinze minutos Mullon tornou a perguntar se os reparos poderiam ser concluídos no prazo fixado. Milligan e Stokes, o oficial da equipe técnica, não se limitavam mais a dar ordens. Eles mesmos puseram mãos à obra. Stokes saiu do grande tubo de cabos em que estivera trabalhando e sacudiu a cabeça. — É impossível — disse. — Um dos orifícios atravessa todo o aparelho. O conversor deveria ser desmontado. Mas acredito que gastaríamos, num conserto provisório, uma hora. Mullon acenou com a cabeça, como se não esperasse outra informação. — Pois bem — disse. — Nesse caso vamos pedir um adiamento a Hollander. Suttney! — Pois não. — Pare de trabalhar e venha comigo. Precisamos fazer com que Hollander adie a transição.
Suttney enxugou o suor da testa. — Não adianta — respondeu em tom contrariado. — Ele não vai adiar. — Não importa — respondeu Mullon em tom enérgico. — De qualquer maneira tentaremos. Venha comigo. Pediu a um dos homens que subisse ao convés E e avisasse aos democratas de que iria à sala de comando para negociar com Hollander. O mensageiro foi um filósofo da natureza desarmado. Era duvidoso que realmente fosse desincumbir-se da tarefa. Mas Mullon não tinha outra chance. Pôs-se a caminho em companhia de Suttney. Já havia concebido seu plano. Usaria Stokes como uma espécie de refém durante as negociações com Hollander. Tal qual os demais ocupantes da nave, Hollander precisava de ao menos um homem vivo que entendesse alguma coisa da complicada técnica astronáutica. Ao que tudo indicava, Hollander não havia sido avisado da visita de Mullon. Encontrava-se diante do painel principal, juntamente com um prisioneiro e alguns de seus homens. No momento em que a escotilha se abriu, olhou para o lado. Quando reconheceu Mullon, arregalou os olhos. Empurrou seus homens para o lado e aproximou-se de Mullon. Num gesto dramático estendeu as mãos, sorriu e disse: — Mullon, quer dizer que resolveu colocar-se à disposição do Conselho dos Colonos Associados Livres? Garanto que esse gesto voluntário pesará a seu favor. Farão... — Farão coisa alguma! — interrompeu Mullon em tom zangado. — Nada será feito, a não ser que o senhor adie a transição. Hollander estacou, deixou cair as mãos e lançou um olhar sombrio para Mullon. — Por quê? — perguntou laconicamente. — Porque até o momento fixado pelo senhor, o conversor não poderá ser suficientemente reparado. — O que quer dizer com suficientemente reparado? A única coisa que quero fazer é realizar a transição, e isso o aparelho há de agüentar. Tenho certeza de que Stokes está exagerando. — Está exagerando coisa alguma! — gritou Mullon. — A nave explodirá se o senhor realizar o salto. Hollander parecia refletir. Subitamente virou-se e caminhou em direção aos instrumentos de localização. — Venha cá, Mullon! — disse. — Quero mostrar-lhe uma coisa. Mullon seguiu Hollander. Este apontou para uma tela que brilhava num tom verde, na qual havia uma série de pontinhos claros. — Está vendo isto? — perguntou Hollander. — Sim; o que é? — inquiriu Mullon. — Não temos certeza. Mas devem ser naves espaciais. Talvez estejam nos chamando, mas não podemos ouvir, pois o receptor não está funcionando. É quase certo que são naves de patrulhamento da frota terrana. Desde a conquista da sala de comando as comunicações entre a Adventurous e a Terra estão interrompidas. Em Terrânia devem ter desconfiado e enviado alguns cruzadores para cima de nós. Nós os observamos há várias horas. Por certo também já notaram nossa presença, apenas preferem ser cautelosos. Estão desconfiados. “Se esperarmos mais algum tempo, eles se aproximarão. Nos últimos minutos, a distância diminuiu bastante. O senhor acredita que estou disposto a deixar que eles me capturem e me coloquem mais uma vez na presença dos juizes, apenas porque Stokes demora demais em reparar o conversor? Nada disso, meu caro. Vamos saltar, e é agora.
Prefiro morrer a ser capturado pela segunda vez.” Mullon manteve-se tranqüilo. — Pensa só no senhor! — respondeu. — E as oito mil pessoas que se encontram aqui não o preocupam nem um pouco? Hollander sorriu. — Não — respondeu em tom brutal. Virou-se, sem dar mais a menor atenção a Mullon. — Gire a chave — ordenou a um dos seus homens, que se encontrava junto ao painel principal. — Vamos saltar agora. — Não! — gritou Mullon. — Não façam o que ele está dizendo. Morreremos no mesmo instante em que o senhor mover essa chave. Hollander nem sequer olhou para trás. Mullon foi recuando devagar em direção ao pequeno painel do hipertransmissor. O homem que se encontrava junto ao painel principal hesitou. — Vai obedecer, ou terei de substituí-lo? — perguntou Hollander em tom áspero. Ninguém deu a menor atenção a Mullon. Este continuou a caminhar de costas e só parou quando sentiu atrás de si os botões e as chaves do hipertransmissor. Neste meio tempo o homem que se encontrava junto ao painel principal havia tomado uma decisão. Subitamente moveu a chave. Mullon viu uma neblina surgir diante de seus olhos. Os contornos da sala desfizeram-se, e uma dor cruciante invadiu todo o corpo. *** O’Bannon não sabia quanto tempo costuma durar uma transição, mas esta, talvez, foi terrivelmente longa. E não sabia nada sobre as complicações que surgiram na sala de máquinas, ou do perigo que a Adventurous atravessara naqueles segundos. No momento em que a dor desapareceu e a sala voltou a adquirir seus contornos normais, continuou a trabalhar no engradado em que estava guardado o aparelho com o formato de canhão. Enquanto isso os outros cuidavam do prisioneiro. Depois de alguns minutos, O’Bannon retirou a estranha máquina e leu a inscrição que se encontrava atrás do cano. Viu tratar-se de uma máquina de desmatamento. Por enquanto não tinha a menor idéia do que seria desmatado e de que forma aquele aparelho desempenharia sua tarefa. Mas resolveu descobrir o quanto antes. Para isso começou a mexer nos botões. Tomou cuidado para que nenhum dos homens ficasse à frente do “canhão”. Por algum tempo a atividade de O’Bannon não produziu o menor efeito. Nenhuma das luzinhas coloridas, que sem dúvida serviam para controlar a máquina, se iluminou. Finalmente lembrou-se de que, provavelmente, teria de comprimir em primeiro lugar o botão cujo letreiro dizia “força”. Comprimiu o botão e, no mesmo instante, uma luz verde acendeu-se. O’Bannon criou coragem. Apertou outro botão, cujo letreiro dizia “intensidade mínima”. No mesmo instante, aconteceu uma coisa estranha. O ar começou a tremeluzir à frente do canhão. Num instante, a faixa de ar quente avançou até a parede oposta. O’Bannon sentiu-se envolto numa nuvem de calor e o suor começou porejar por todo o corpo. Deixou os botões na posição em que se encontravam e contornou o canhão. Colocou cautelosamente a mão esquerda dentro da faixa de ar superaquecido, mas logo a retirou com um grito de dor. As costas da mão ficaram cobertas de bolhas. Bastante exaltado e sem dar a menor atenção à dor que o afligia, voltou para junto
do pequeno painel e comprimiu o botão junto ao qual se lia “intensidade máxima”. Aconteceu aquilo que esperara. O tremeluzir aumentou e a temperatura no interior do depósito subiu rapidamente. Na parede contra a qual era dirigido o canhão, começaram a surgir bolhas. O’Bannon pegou um dos enormes grampos de plástico retirados do engradado e colocou-o dentro do raio expelido pela mesma. O metal começou a chiar e se desmanchou em grandes pingos azuis, que caíram ao chão e endureceram imediatamente. Desligou a máquina. Já não pôde ocultar o triunfo. — Com isto aqui conquistaremos a nave, rapazes! — gritou entusiasmado. — E mais algumas que apareçam. Tudo depende de tirarmos o canhão daqui e o levarmos à sala de comando. Os homens participaram de seu entusiasmo. Levaram o canhão até a escotilha. O’Bannon tentou abri-la, mas não conseguiu. A escotilha não reagia a qualquer das tentativas de aproximação realizadas por O’Bannon. Este perdeu a paciência e fundiu o mecanismo com seu radiador. Depois a escotilha tombou, dando passagem aos cinco homens juntamente com o canhão. Viram que do lado de fora a escotilha trazia uma placa na qual se lia “lacrado”. Foi por isso que O’Bannon não conseguiu abrir sua fechadura. O’Bannon chegou à conclusão de que havia por ali várias máquinas que só deveriam ser entregues aos colonos após o pouso. A seguir, não houve problemas. Unindo suas forças, os homens transportaram o canhão ao elevador central mais próximo. Agora, que dispunham de uma arma tão eficiente, não tinham a menor dúvida em usá-la. Desceram ao convés E. Ali souberam que, pouco antes da transição, Mullon fora procurar Hollander na sala de comando, para negociar. O mensageiro de Mullon transmitira o recado. O’Bannon não perdeu tempo. Reuniu seu pequeno grupo de combatentes e, levando o canhão, avançou até o convés C, dirigindo-se à sala de comando. *** Mullon percebeu que a dor provocada pela transição estava desaparecendo. Viu que os objetos voltavam a assumir seus contornos normais, e procurou atingir as chaves às quais se agarrara antes da transição. Foi a primeira pessoa na sala de comando que recuperou os sentidos. Deu uma boa olhada no painel que tinha diante de si. O letreiro era simples e facilmente compreensível. Havia um botão com a inscrição “entrada de energia” e uma chave junto à qual se lia “pronto para transmitir”. Além disso, notou uma porção de botões destinados a orientar as antenas e condensar as mensagens. Sem que ninguém o percebesse, Mullon comprimiu os botões e moveu a alavanca destinada ao suprimento máximo de energia. Ficou satisfeito ao notar que duas luzes de controle se acenderam. O transmissor estava em perfeitas condições. Só faltava pegar o microfone e falar, ou comprimir um dos botões que ocasionava a transmissão de sinais codificados preestabelecidos. Mullon virou-se. Ainda chegou a ver Hollander erguer-se com um gemido e dirigirse ao prisioneiro uniformizado. — O que foi isso? O prisioneiro, que ainda estava um tanto confuso, sacudiu a cabeça. — Não sei — gemeu. — Só sei que foi a transição mais longa pela qual já passei. Olhe — disse, apontando para a única tela que estava funcionando. — Veja onde saímos.
Hollander fitou a tela. — Onde foi? — perguntou em tom ingênuo. — Aí que está. Não sei. Não vejo uma única constelação conhecida. Tenho certeza quase absoluta de que nem mesmo um astronauta experimentado conseguiria orientar-se aqui. Por alguns segundos Hollander parecia perplexo. Dirigiu-se às instalações de localização. Ao ver a tela verde, seu rosto iluminou-se. — Pelo menos uma coisa conseguimos — exclamou. — As naves desapareceram. Virou-se de novo. Seu olhar caiu sobre Mullon. Só agora parecia lembrar-se da presença do democrata autêntico. — Ah, Mullon! — disse, esticando as palavras. — Como vê, superamos a transição. Não sabemos onde saímos, mas estamos todos vivos e bem dispostos. Agora só lhe resta entregar-se. O Conselho dos Colonos Associados Livres o julgará. Mullon continuou a aparentar calma. Mantinha os dois braços voltados para trás, e ninguém poderia ver que tinha as mãos sobre dois botões muito importantes. — O senhor está enganado, Hollander — respondeu com um sorriso. — Não me entregarei. Graças à sua teimosia o senhor nos meteu numa situação que poderá representar a morte para todos. Apesar do conversor danificado o senhor fez realizar uma transição que terminou no desconhecido. Não sabemos se nesta área existem mundos habitáveis. Mesmo que existam, não sei como fará para encontrá-los em meio às inúmeras estrelas. “Hollander, o senhor é um idiota, e um idiota perigoso. Está com medo de que as naves-patrulhas da Terra voltem a agarrar o senhor e seu bando de gângsteres. Acontece que eu sinto medo de que oito mil pessoas tenham de morrer por causa de sua idiotice. “Há pouco o senhor me disse que o receptor foi destruído. Acontece que o transmissor está funcionando. E acabo de ligá-lo. Basta comprimir um botão para que uma mensagem codificada seja irradiada para todos os setores do espaço. Haverá pelo menos uma nave terrana que a captará. Com isso, a Terra saberá onde saímos e virá em nosso auxílio. Sinto muito, Hollander, mas seu medo puramente pessoal terá que ceder diante do interesse geral.” Hollander empalideceu. Quis dizer alguma coisa e deu um passo à frente, como se quisesse precipitar-se sobre Mullon. Mas não disse nada e parou. Mullon entesou os braços enquanto a palma da mão comprimiu fortemente os dois botões. Ouviu-se um leve zumbido, que em meio ao silêncio reinante na sala tornou-se nítido. Foi o único sinal de que o transmissor estava funcionando. Mullon deixou cair os braços. — Muito bem — disse. — Agora poderá colocar-me diante de seu ridículo Conselho dos Colonos Associados Livres. Isto se conseguir agarrar-me vivo. Uma vez que Suttney o acompanhara à sala de comando, ninguém se dera ao trabalho de revistá-lo para verificar se trazia armas. E Mullon tinha um microrradiador no bolso. Quando Hollander despertou do torpor, Mullon já segurava a arma. Sabia que de qualquer maneira estaria perdido. Havia muitos filósofos da natureza na sala de comando. Só tinha um par de olhos, e não sabia o que se passava atrás dele. Mas podia manter Hollander sob controle. Este só se encontrava a sete ou oito metros dele. Enquanto visse o cano do microrradiador apontado para ele, pensaria duas vezes antes de dar ordem de atacar Mullon. — Isso não lhe adiantará nada, Mullon! — exclamou. — Guarde a arma e se entregue.
Mullon sacudiu a cabeça. — Não, Hollander. Esta arma está apontada para o senhor. Mesmo que seja atingido por dez disparos ao mesmo tempo, ainda terei forças para puxar o gatilho. Se quiser continuar a viver... — Não! — berrou Hollander aflito. — Não atirem, seus idiotas! Estas palavras foram dirigidas a alguns homens que haviam sacado as armas e as estavam apontando para as costas de Mullon. Este sentiu um calafrio. Só lhe restava uma chance mínima, se o mensageiro que saíra da sala de máquinas tivesse chegado a Wolley e O’Bannon, e estes resolvessem fazer alguma coisa para libertá-lo. Por enquanto o jogo havia chegado a um ponto morto. Nenhum dos dois lados podia executar qualquer movimento. Os homens de Hollander conservaram a calma e voltaram a guardar as armas. Hollander e Mullon fitaram-se frente a frente. Alguns instantes se passaram. Cada minuto parecia uma eternidade. Mullon perdeu a sensação do tempo. Quando soube que se mantivera durante quarenta e cinco minutos diante do painel do hipertransmissor e não tirara os olhos de Hollander por um instante sequer, sentiu-se muito espantado. Mas tudo isso não adiantou nada. Hollander ganhou o jogo por causa de um truque. Atrás de Mullon alguém soltou um grito estridente. Depois do silêncio prolongado e enervante que reinara na sala de comando, o ruído foi tão inesperado e apavorante que Mullon se abaixou instintivamente e virou a cabeça. Ouviu-se um baque. A tensão, que mantivera todo o mundo preso, desfez-se num único grito histérico. Mullon compreendeu que fora enganado. Com um enorme pulo afastou-se do painel... saltou no instante exato. Dez disparos de radiações térmicas passaram pouco acima de sua cabeça e transformaram o aparelho de hipercomunicação numa massa fumegante de metal, vidro e plástico. O ombro de Mullon bateu contra um pequeno painel. No mesmo instante, girou o corpo e abrigou-se atrás do mesmo. A trincheira era puramente simbólica, pois o painel ficava no meio da sala e os homens de Hollander estavam espalhados por todos os lados. Mullon feriu dois destes que se encontravam perto dele e, mais uma vez, saltou para o lado. Os disparos escaldantes vieram apenas com uma fração de segundo de atraso. O painel entrou em incandescência e se desmanchou. Mullon passou em meio a um grupo de pessoas que, de tão assustadas e receosas de atingirem um dos seus, não usaram suas armas. O radiador de Mullon expelia raios energéticos fortemente enfeixados para todos os cantos. Mullon não pretendia matar ninguém. A arma foi regulada para a abertura mínima. As feridas produzidas pela mesma geralmente não seriam mortais, a não ser que atingissem o coração ou o cérebro. Mullon conseguiu livrar-se dos inimigos por um instante. Alcançou a parede na qual estava embutido o painel principal, encostou-se à mesma e repeliu os que o seguiam. Deu um enorme salto, “pousou” de barriga e arrastou-se alguns metros pelo soalho liso. Uma coisa quente atingiu seu ombro, mas a dor logo passou. O tiro apenas o havia atingido de raspão. Mullon compreendeu que a única chance que tinha era sua mobilidade. Corria, atirava, saltava, atirava, rolava pelo chão, voltava a atirar, arrastou-se de bruços e sentiu que respirava com dificuldade e sua vista começava a escurecer. Em meio ao zumbido que sentiu, ouviu uma voz exaltada: — Estão chegando! Vamos dar o fora!
Não sabia quem estava chegando, quem devia dar o fora e por que fugiam. Com um último e débil impulso, enfiou-se sob um outro painel astronáutico onde permaneceu imóvel. Ouviu gritos, pisadas, ordens furiosas e um ruído semelhante ao de um maçarico. Subitamente reconheceu a voz que de uma hora para outra fez desaparecer toda dor e cansaço. Quem tivesse ouvido uma vez os berros de O’Bannon, não deixaria de reconhecê-los em meio a milhares de vozes. Mullon ergueu-se. Viu que na sala de comando, que parecia envolta em neblina, havia vários feridos estendidos no chão. Mullon dirigiu-se à escotilha principal. Estava bem aberta. Notou homens correrem apressadamente à frente da mesma, tomando a direita. Mais uma vez, ouviu a voz potente de O’Bannon, agora mais perto. Mullon alcançou a escotilha, segurou-se com ambas as mãos para vencer a fraqueza e saiu para o corredor circular. Pouco adiante, no lugar em que um dos corredores principais desembocava na galeria, viu a figura larga, maciça e inconfundível de O’Bannon. Tinha diante de si um objeto parecido com um canhão da Guerra Civil. Mullon não percebeu que o ar estava superaquecido e que mal conseguia respirar. Notou O’Bannon, e viu que este lhe fazia um sinal. O’Bannon e seus homens avançaram para o corredor circular, empurrando o canhão antediluviano. Agora, que sabia estar em segurança, já que O’Bannon se encontrava à entrada da sala de comando e ninguém mais conseguiria impedi-lo de ocupar a mesma, Mullon cedeu à fraqueza. Perdeu os sentidos.
9 — Santo Deus! — disse uma voz retumbante. — Parece que este sujeito não quer mais acordar. Mullon reconheceu a voz, mas teve de esforçar-se para abrir os olhos. Finalmente conseguiu. Viu o rosto de O’Bannon pouco acima do seu, e ao lado dele os olhos radiantes de Fraudy. — Graças a Deus! — disse O’Bannon. — Já estávamos pensando... Mullon ergueu-se abruptamente. Sentiu uma dor lancinante no ombro e sua vista se turvou; mas conseguiu dominar a fraqueza. — O que houve? — perguntou. — A sala de comando... — Sim, a sala de comando está em nosso poder — interrompeu O’Bannon. — Há dois dias; é o tempo que você está inconsciente. A situação é a seguinte: os filósofos da natureza foram derrotados. Hollander e seus colaboradores mais importantes estão em nossas mãos. Hollander está gravemente ferido, mas escapará com vida. “Poderíamos dar-nos por satisfeitos. Mas há um detalhe. Os propulsores estão praticamente inutilizados. No momento em que Hollander executou o hipersalto, houve uma pequena explosão na sala de máquinas. Felizmente Stokes recomendara aos homens que se abrigassem a tempo. O conversor foi destruído; mal e mal conseguiu realizar esta transição. E, face à inutilização do aparelho, a Adventurous conservou apenas dez por cento de sua capacidade de manobra. Não podemos ir para a direita, nem para a esquerda, apenas para a frente. Um pouso será uma questão bastante problemática. Nem sequer poderemos escolher um lugar para pousar. Quando encontrarmos um planeta, teremos de dirigir-nos ao lugar ao qual a gravitação nos estiver levando. “São estas as notícias desagradáveis. Mas também tenho algumas novidades agradáveis. Em princípio, os filósofos da natureza concordaram em colaborar conosco. É bem verdade que Hollander não foi consultado; ainda está inconsciente. Os tripulantes foram libertados. “Segundo: a Adventurous encontra-se a apenas algumas” horas-luz de uma gigante estrela branco-azulada. O observatório constatou que esta tem uma infinidade de planetas. Quer dizer que tivemos sorte, pois não teremos necessidade de perder tempo e procurar. É claro que a estrela é totalmente desconhecida. Mas isso não é nenhuma tragédia, desde que encontremos um lugar no qual possamos pousar. “Ainda: a luta contra Hollander e seus homens não causou qualquer derramamento de sangue. Houve uma porção de bolhas produzidas por queimaduras, mas nem um único morto. Aliás, quero contar-lhe uma coisa. Num dos depósitos encontrei um canhão. Ei, não está prestando atenção...” O’Bannon entusiasmara-se com suas palavras, e por isso nem percebera que, depois de ter ouvido as coisas mais importantes, Mullon se dirigira para Fraudy. Quando notou alguma coisa, O’Bannon viu que os dois estavam abraçados. — Está bem — resmungou enquanto se dirigia à porta. — Voltarei mais tarde. *** A única tela que continuava a funcionar mostrava a massa cinza-clara de um gigantesco planeta. O limite entre a zona diurna e noturna desenhava-se nitidamente sobre uma camada impenetrável de nuvens.
As análises haviam sido concluídas. Mullon sabia que a atmosfera desse mundo continha oxigênio, nitrogênio e outros gases, quase na mesma proporção da atmosfera terrana. O gigantesco sol branco-azulado ficava a seis milhões de quilômetros. Era a mesma distância que separava Plutão do sol terrano. Mas a potência do gigantesco astro bastava para aquecer a superfície do planeta no zênite até cinqüenta graus, conforme se constatara por meio dos instrumentos de precisão. — Teremos calor de sobra — suspirou Mullon. — Não acredito que precisemos preocupar-nos com a calefação. Os resultados continuaram a chegar. O planeta, ainda sem nome, percorria uma órbita apenas ligeiramente excêntrica. No curso do ano planetário, a distância do astro central só sofria uma modificação insignificante. E cada ano planetário durava cerca de cento e setenta dos terranos. A inclinação do eixo do planeta em relação ao plano da órbita era pouco superior a dez graus. Dali se concluía que as estações do ano seriam pouco pronunciadas. Finalmente, a última informação: a gravitação na superfície era de aproximadamente 1,2G. Uma pessoa que na Terra pesasse setenta quilos, aqui teria um peso de oitenta e quatro quilos. Mullon ficou satisfeito. O planeta tinha um diâmetro de cerca de quarenta mil quilômetros. Por isso, certamente, não apresentava uma gravitação mais elevada porque sua densidade era extremamente reduzida. Além de Mullon e de algumas pessoas que lhe serviam de elementos de ligação, haviam comparecido à sala de comando todos os membros da antiga tripulação que entendiam alguma coisa de astronavegação. O de graduação mais elevada era um primeiro-tenente. Este confessou que nunca pilotara sozinho uma nave de grandes dimensões, mas prometeu fazer tudo que estivesse ao seu alcance. Os colonos haviam sido informados de que, conforme as circunstâncias, o pouso poderia terminar em desastre. Na nave, reinava um profundo silêncio. Os homens reuniram-se nos compartimentos coletivos e mantinham os olhos fixos nas telas que ainda funcionavam. A Adventurous inclinou-se preguiçosamente para o lado, dirigindo para o planeta o conjunto de bocais que funcionava melhor. A altitude foi diminuindo. Alguém leu as indicações em voz monótona. O planeta desconhecido já havia crescido para além das bordas da tela. A nave baixou sobre uma área extensa, que apresentava uma coloração verde. Na extremidade superior da tela, o verde desmanchou-se num cinza-reluzente, que assumiu os contornos de rochas. Na extremidade inferior da tela surgiu abruptamente um verde-marrom, que provavelmente correspondia às florestas. Mullon sentiu-se fascinado diante do panorama. Procurou localizar algum indício de vida inteligente, mas não o descobriu. Em vez disso, descobriu um rio, que se estendia em curvas sinuosas pela planície verde-clara. — Seria bom — disse a meia voz — se pudéssemos pousar perto do rio. Stokes compreendeu. Virou-se para Mullon e disse: — Só podemos rezar, Mullon! Nesta altura, só Deus tem alguma influência sobre nossos propulsores. Mullon sentiu que a nave estremecia e, por um instante, perdeu o equilíbrio. Stokes levantou a cabeça. — A antigravitação está falhando — disse em tom seco. — Tomara que o gerador agüente até que cheguemos lá embaixo.
Mullon sabia que a massa da nave, que estava sendo atraída pelo planeta, só em pequena parte repousava sobre o impulso dos bocais dos jatos de partículas. A sustentação resultava principalmente de um campo de gravitação artificial, que neutralizava parcialmente a gravitação do planeta e fazia com que a nave descesse lentamente. *** Dali a oito minutos, o gerador antigravitacional deixou de funcionar por completo. A velocidade da queda da nave, que nessa altura só podia contar com os propulsores danificados, subiu vertiginosamente para cem metros por segundo... e não parou de subir. Stokes levantou-se e enxugou o suor da testa. A ausência da gravidade, que se fez sentir desde que o gerador antigravitacional entrou em pane, ergueu-o do piso e fê-lo subir ao teto. Stokes parecia não se importar com isso. Mas Mullon teve de esforçar-se para não gritar de medo. A ausência de gravidade causava uma sensação apavorante de queda livre. Além disso, a distância entre a nave e a superfície do planeta já se reduzira a um ponto tal que os contornos do solo pareciam aproximar-se vertiginosamente. — Vinte e um mil metros! — gritou uma voz apavorada. Mullon fez um movimento mais forte. O impulso resultante do mesmo fê-lo perder o apoio e atravessar a sala. Dali a um segundo, sentiu-se atingido por um força intensa que o atirou ao solo. Quase inconsciente, ouviu os homens gritarem: — O gerador está funcionando. Atenção! Vamos pousar. Do ponto em que Mullon se encontrava, as cenas que se seguiram pareciam um pesadelo. Como estivesse deitado no chão, só via a extremidade superior da tela. Constatou que a velocidade com que a superfície se aproximara estava diminuindo. Depois viu que os contornos do solo começavam a girar. Pôs a cabeça bem para trás e sentiu-se tonto. Ouviu Stokes soltar um grito estridente. Tanto poderia ser um grito de pavor como de triunfo. De qualquer maneira, logo após aconteceu um terrível solavanco. Ouviram-se alguns estalos. Mullon encolheu a cabeça, pois receava que o teto desabasse sobre ele. Mas não aconteceu coisa alguma. Os estalos foram diminuindo; finalmente ouviu-se apenas um leve crepitar, como se as paredes opusessem resistência à pressão que as forçava para baixo e procurassem erguer-se. Finalmente alguém disse em voz tranqüila: — Chegamos, minha gente. *** De qualquer maneira, o pouso terminara em desastre. A Adventurous estava quase que totalmente destruída. Mas a nave auxiliar, de formato esférico, com sessenta metros de diâmetro e equipada apenas com um propulsor corpuscular interplanetário, continuava intacta. A comporta pela qual teria de sair da nave ainda estava funcionando. Metade da carga da Adventurous fora destruída. Algumas máquinas preciosas estavam inutilizadas, enquanto outras teriam de ser submetidas a reparos. Havia muitos feridos. Felizmente ninguém morrera. Mullon — cuja posição de chefe, depois da união entre os democratas e os filósofos
da natureza, foi reconhecida até mesmo pelos membros da antiga tripulação — providenciou para que a nave fosse descarregada o mais rápido possível. A maior parte dos guindastes automáticos continuava intacta: homens, máquinas e provisões saíram da nave em largas esteiras transportadoras. O rio avistado ficava a apenas um quilômetro e meio. Mullon mandou que os bens descarregados fossem levados até meia distância do rio. Com as peças que continuavam intactas mandou construir casas. O impacto destruíra pouco menos de metade dessas peças. Por enquanto todo mundo viveria bastante apertado. Uma casa destinada a cinco pessoas tinha que abrigar dez. Mas isso não importava. Ninguém iria sentir o desconforto. Mullon postou uma fileira de sentinelas em torno da aldeia que já crescia rapidamente. Ninguém sabia dos perigos que os ameaçariam nesse mundo. Todo cuidado seria pouco. A colaboração entre os democratas autênticos e os filósofos da natureza funcionou muito bem. Todos haviam compreendido que, para controlar a situação, teriam de manter-se unidos. Hollander, que já recuperara a consciência e estava sendo submetido a um tratamento intenso, manteve-se em silêncio. Mullon tinha certeza de que sua ambição doentia conseguira ceder ante a catástrofe. Assim que se pusesse de pé, voltaria a criar problemas. *** A planície em que a Adventurous realizara seu pouso malogrado estava coberta por uma ampla área de capim. Subia suavemente do leste para o oeste. A uns cem quilômetros de distância, os cumes das montanhas galgavam o céu branco-azulado, e ao leste, a uma distância ainda maior, começava a massa sombria da mata virgem. O rio descia das montanhas e desaparecia na mata. Em virtude da inclinação da planície, a correnteza era extremamente forte, apesar das numerosas curvas. Era um rio jovem e indômito. Quatro dias de quarenta horas já se haviam passado. A aldeia estava consolidada. Mullon conseguira superar a maior dificuldade: inserir os antigos tripulantes da nave entre os colonos. Afinal não fora tão difícil. Eram poucos os oficiais que achavam que se devia continuar a tratar os colonos como degredados. Mullon ressaltou a situação em que todos se encontravam, tanto os tripulantes como os degredados, e conseguiu romper a resistência dos mais obstinados sem que surgisse qualquer malquerença. A aldeia foi batizada com o nome de Greenwich. O motivo era óbvio: a palavra green — verde — provinha da cor do capim que cobria a planície. Além disso, o nome Greenwich estava ligado a certas tradições. E foi graças à tradição que se convencionou que o meridiano zero passaria pela casa de Mullon. As sentinelas, que Mullon postara num círculo amplo em torno de Greenwich, haviam observado rebanhos de animais gigantescos. Os mesmos nunca se aproximavam o suficiente para poderem ser vistos detalhadamente. Mas, ao que tudo indicava, eram maiores que elefantes. Em certa manhã, quando o crepúsculo cobria a terra, houve uma enorme excitação. O chão começou a tremer e as sentinelas vieram correndo para avisar que um rebanho dos gigantescos animais se aproximava. Mullon mandou que os homens se postassem ao sul da aldeia. Os animais aproximavam-se ruidosamente, numa espécie de trote. Mullon observou-os pelo
binóculo. As pernas massudas tinham quase dois metros de altura. A seguir, começava o tronco maciço, mas elegante e quase esbelto. Tinha pelo menos dez metros de comprimento. Na frente do tronco via-se um pescoço de comprimento inacreditável e em cima do pescoço uma pequenina cabeça. Os olhos ficavam cerca de doze metros acima do solo. Felizmente não houve nenhum confronto. O rebanho descreveu uma curva em torno da aldeia e desapareceu em direção ao norte. As sentinelas voltaram aos seus postos, e em Greenwich havia um novo tema de conversa: as elefantogirafas ou girafantes. Ainda não haviam resolvido que nome dar aos bichos. *** Mullon fez um inventário de todos os objetos que poderiam ser usados, ou colocados em condições de sê-lo, por meio de reparos não muito extensos. O resultado não foi tão assustador, como seria de se esperar face ao pouso malogrado da Adventurous. Além da nave auxiliar, com a qual Mullon não poderia fazer muita coisa, havia uma série de veículos de rodas ou de esteira, todos equipados com pequenos e potentes motores de fusão. Eram de grande durabilidade. Havia uma porção de máquinas agrícolas e toneladas de sementes. No terreno científico a biblioteca da Adventurous poderia satisfazer a qualquer consulta. Havia ainda instrumentos para a determinação das variações de temperatura a longo prazo, cronômetros interestelares destinados à determinação da duração exata do dia e o equipamento náutico necessário à determinação da posição. O campo magnético do planeta poderia ser medido com os magnetômetros, o que permitia a fixação exata do eixo norte-sul. Os medicamentos e os equipamentos eram tantos que, na opinião dos médicos, que se encontravam entre os colonos, daria possibilidade de montar dois hospitais muito eficientes. Ainda havia um helicóptero. Originariamente eram dez, mas só um resistiu ao pouso. Esse helicóptero era um veículo de múltiplas finalidades. As hélices podiam ser retiradas e guardadas, caso em que o veículo se transformaria num automóvel ou num barco, conforme o meio pelo qual tivesse que deslocar-se. Mullon tinha certeza de que os equipamentos técnicos e científicos seriam suficientes para garantir a sobrevivência da colônia. No entanto, devia-se ter cuidado para que as pessoas não perdessem o conteúdo especial de sua personalidade, pois, se isso acontecesse, dentro de poucas gerações os colonos regrediriam à barbárie, apesar de toda a tecnologia. Mullon já desistira da esperança de que sua hipermensagem pudesse ter sido captada e que a Terra conhecesse a posição da Adventurous. — Estamos sós — declarou numa reunião realizada no sétimo dia após o pouso. — Provavelmente a maior parte de vocês não vê nisso qualquer vantagem, ao menos por enquanto. Os homens e as mulheres são aproximadamente em número igual. Somos jovens. Por que não poderíamos povoar um grande mundo? “Mas não devemos esquecer uma coisa. Não dispomos do amparo representado por bilhões de seres humanos que habitam a Terra. Não devemos negligenciar os dons do espírito. Não nos encontramos na mesma situação dos pioneiros que há duzentos anos ou mais colonizaram o oeste dos Estados Unidos. Estes precisavam percorrer no máximo alguns milhares de quilômetros para reencontrar a civilização. Acontece que nós estamos
completamente isolados. Em vez de milhares de quilômetros teríamos de vencer milhares de anos-luz, e não dispomos de meios para isto. “Assim, é importante que permaneçamos unidos. Nunca se esqueçam de que só poderemos sobreviver se nosso pequeno grupo não se dividir em subgrupos marcados pelas diferenças de opinião e de concepção filosófica. Não se ponham a trabalhar estupidamente, apenas para realizar o máximo. Sempre pensem no que pretendem realizar, e por quê. Promovam debates, leiam os livros que trouxemos conosco. Mantenham suas mentes ativas. E não se cansem.” *** O novo mundo recebeu o nome de Fera Cinzenta. A fera cinzenta constava no escudo do novo planeta: era um girafante. Mullon enviara patrulhas, que se deslocavam ora em veículos de esteira, ora no helicóptero, a fim de procurarem qualquer indício de vida inteligente. Ao que parecia, no planeta Fera Cinzenta não havia seres inteligentes. Não encontraram o menor vestígio. As únicas criaturas inteligentes que existiam em Fera Cinzenta eram os habitantes da aldeia de Greenwich. E por enquanto estes se sentiam muito satisfeitos com isso. *** Mullon não sabia que ao anoitecer um dos participantes da reunião deixou a aldeia às escondidas, caminhou para o sul e começou a cavar o chão a alguns quilômetros de Greenwich. Retirou do buraco uma caixa de plástico que continha um traje. Do lado esquerdo desse traje, na altura do peito, havia em vez do bolso uma série de botões. O homem misterioso vestiu-o, comprimiu um dos botões e subiu ao ar. Voou rapidamente acima da planície e, dali a duas horas, chegou a um disco elíptico. Uma escotilha abriuse, e o homem voou para dentro do objeto. Após alguns minutos o disco decolou. Mais alguns minutos, e iniciou a transição a dois milhões de quilômetros do planeta Fera Cinzenta. Quase no mesmo instante, alcançou o sistema solar terrano. A mensagem de Mullon fora captada. Ao apertar o botão, havia expedido a mensagem que dizia: “Ataque de naves inimigas, pedimos ajuda.” Imediatamente um cruzador de patrulhamento saiu em auxílio da Adventurous e, sem que as pessoas a bordo da mesma soubessem, constatou que não havia o menor sinal de ataque de naves inimigas. O comandante do cruzador extraiu do fato a única conclusão viável: alguém que se encontrava a bordo da nave que transportava os colonos comprimira ao acaso qualquer dos botões, no intuito de chamar a atenção de alguma nave terrana. Uma nave acompanhou a Adventurous. Sabia-se perfeitamente que algo de anormal devia ter acontecido a bordo da mesma, uma vez que o rastreamento estrutural revelou que esta foi parar a alguns milhares de anos-luz da área de Rigel. O cruzador manteve-se de prontidão enquanto a Adventurous se dispunha a pousar. Notou a falha do gerador antigravitacional e suas conseqüências e esteve prestes a segurar a nave dos colonos com um raio de tração para evitar sua queda. Porém, nesse instante, o gerador voltou a funcionar. Tudo isso foi feito sem que ninguém o percebesse. Uma ordem terminante transmitida ao comandante do cruzador-patrulha dizia que os colonos em hipótese
alguma deveriam descobrir que a Terra não havia perdido sua pista. O comandante mandou que cinco homens descessem numa nave auxiliar do tipo Gazela. Um deles participou da reunião durante a qual Mullon proferiu seu memorável discurso. A fala foi gravada em microfita. *** Pouco depois Perry ouviu a mesma. — Nunca pensaria que este rapaz fosse capaz de tanta coisa — confessou em tom de surpresa para Bell. — Está se transformando num político altamente capacitado; em todos os sentidos. O agente secreto de Rhodan conversara com alguns colonos e descobrira o que havia acontecido durante o vôo da Adventurous. Rhodan e Bell foram informados sobre os papéis desempenhados por Hollander e Mullon. — Assim até ficou melhor do que eu imaginava — disse Rhodan em tom pensativo. — Pelo menos saberemos como um pequeno grupo de pessoas reagirá quando deixado a sós e com poucos recursos em meio à imensidão do espaço.
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Num Estado altamente civilizado como o Império Solar, a pena de morte deixou de existir. Os autores do atentado foram banidos da Terra e perderam a cidadania terrana. Assim, transformaram-se em colonos interestelares. Será que os 8.000 banidos conseguirão sobreviver?... Em Ataque do Invisível, próxima aventura de Rhodan, novas emoções irão surgir.