Ordem Para Limpar

Ordem para limpar As nossas casas são objecto de profundas operações de limpeza, pelo menos duas vezes por ano. A Quaresma e o Natal são as épocas tradicionalmente propícias para estas tarefas. A primeira, porque aliada à limpeza de almas e posterior visita pascal, a segunda, porque associada ao nascimento de Cristo e à tomada de decisões em véspera de novo ano. Prateleiras, gavetas, guarda-fatos, arrecadações, garagens, tudo é vistoriado. Roupas, calçado, bugigangas, papéis, pastas, nada escapa. Tudo o que é considerado desnecessário, obsoleto e fora de moda é normalmente separado e lançado ao lixo, por vezes em sugestivas condições de reutilização. Depois destas limpezas, há quem remate com uma pintura. Sempre dá outro ar à coisa. Por força do meu ofício, há mais de trinta anos que prefiro duas outras ocasiões para fazer a limpeza anual do meu território. Na primeira, em meados de Julho, quando acaba o ano escolar, vistorio prateleiras, gavetas, pastas, discos duros, pens e CDs com vista à separação e remoção dos materiais de ensino que se revelaram chatos, ineficazes, inúteis ou desadequados. Na segunda, no início de Setembro, quando começa o novo ano escolar, reciclo e arrumo todos os materiais que julgo serem necessários, adequados, actuais, interessantes e motivadores de boas aprendizagens durante os meses seguintes. Por vezes fabrico materiais novos, o que para mim é sempre muito estimulante e gratificante. Os políticos também fazem questão de cumprir a sua tradicional agenda de limpezas. Neste peculiar ano de eleições, a missão parece estar a ser desempenhada com muito mais brio e renovado vigor. Tamanha é a avidez que a Quaresma, o Natal, Julho e Setembro, todas as ocasiões revelaram-se-lhes prenhes de oportunidades. Uns abateram árvores alegando que o seu prazo de validade tinha acabado e que as velhas tinham que ser substituídas por novas, mais adequadas para o espaço e fins em vista. Outros reciclaram ciclovias que tinham enterrado há cinco anos. Uns rasgaram novas ruas para logo as abandonar. Outros asfaltaram três ruas. Uns esconderam velhas fachadas de prédios abandonados ou devolutos sob fachadas descartáveis para aí instalarem suas sedes de campanha. Outros organizaram festins de arregalar o olho, emprenhar o ouvido e encher a pança. Uns saltaram de prateleira, trocaram de pasta, mudaram de gaveta. Outros repetem, gritando, que depois deles é o caos. Em suma, nunca Espinho terá vivido momentos tão estimulantes. Consta, porém que, por força de nova legislação, dois terços dos actuais recandidatos às autarquias já não poderão repetir a dose em 2013. Já não poderão requalificar gabinetes e renovar sistemas de ar condicionado, tirar retratos, ter motorista para deslocações de 2 quilómetros, reciclar promessas há 4 anos apresentadas e já esquecidas e bolorentas, apregoar obras financiadas por Lisboa e por Bruxelas, invectivar adversários, mudar de galho e de pelouro, ir ao alfaiate virar a casaca, ir ao sapateiro e colocar palmilhas novas. A lei acaba, ironicamente, por obrigar os eleitores a fazer o que há muito deviam ter feito e não fizeram, quiçá por inércia ou preguiça: limpeza. Limpeza de toda a quinquilharia velha, bafienta, poeirenta, há muito jazendo em prateleiras, putrificando em gavetas, desfazendo-se em guarda-fatos, encalhada em arrecadações e garagens. Pois então, alguém me explica o que é que um autarca tem a mais que o Presidente da República para poder cumprir mais do que os dois mandatos atribuídos ao supremo cidadão da Nação? Octávio Lima in Maré Viva, Espinho, 8Set2009.