O Ultimo Adelfi

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O Último Adelfi Paulo Roberto Purim para Rui Moreira Lima

A VIDA DE CADA HOMEM gira sempre em torno de um único período de tempo, um período circunscrito no intervalo de poucos meses, que define para sempre quem somos e o que iremos fazer. Tudo que acontece antes ou depois é avaliado e observado a partir da perspectiva dAqueles Dias. De certa forma, nada mais acontece na vida de uma pessoa, a não ser o que acontece nAqueles Dias. O que veio antes é um breve prólogo; o que vem depois é, na pior das hipóteses, uma longa e elaborada nota de rodapé; na melhor, um pungente álbum de fotografias. Para uns poucos, a vida inteira é uma homenagem, uma intensa celebração Àqueles Dias. Para Rui Moreira Lima esse momento, esse fulcro ao redor do qual a sua vida havia sido mapeada, eram os dias do 1º Grupo de Aviação de Caça, o seu glorioso, assombroso e terrível período como piloto de caça da FAB na Segunda Guerra Mundial. Era esse o buraco negro que sempre o atraía, a cena do crime à qual ele voltava, o palco onde se passava cada cena da sua ópera. Hoje ele era o respeitável Major Brigadeiro do Ar Rui Moreira Lima, reformado; mas no íntimo, no fundo do coração, ele era ainda o Rui, o afobado e inquieto Rui dAqueles Dias, sempre com uma opinião para dar, o coração na mão, uma lágrima eterna ameaçando rolar sem motivo pelo rosto. Agora, que ele já sobrevivera ao novo milênio e encarava um mundo novo ao mesmo tempo admirável e lamentavelmente diferente do mundo dAqueles dias, Rui via-se cada dia mais recorrendo ao passado. O passado é um refúgio ao mesmo tempo doloroso e fiel, e graças ao prodígio da memória Rui sentia-se capaz de enfrentar a monotonia de qualquer dia-a-dia. Ele era um felizardo, tinha Aqueles Dias para se refugiar. Bastava um cheiro, uma frase, uma tonalidade no céu, e tudo estava de volta, embriagando-o, exigindo a sua atenção, arrancando-lhe a respiração. No processo de catalogar e recordar, sua memória havia transformado cada lembrança: as sensações e imagens ligadas a cada evento eram saturadas, desfocadas, vagamente fora de centro. A cronologia era às vezes confusa, as seqüências perdiam a cor, mas ainda eram visivelmente Aqueles Dias, mais reais que qualquer sensação de que ele tivesse desfrutado depois. Mais reais. Havia tudo de fato acontecido, e sempre que precisasse ele podia procurar abrigo neles. No que dizia respeito aos estímulos de fora, periodicamente tudo voltava à tona. A isso ele já estava acostumado: uma eventual entrevista, uma homenagem, uma medalha, cada reunião de 6 de outubro, e lá

estava ele de volta, contando, relembrando, transformando e sendo renovado pelo passado. Cada vez que recontava ele vivia, cada vez que os Jambocks se reuniam a beleza e a dor dAqueles Dias voltavam ao primeiro plano: retornavam e o devastavam e reconstruíam e justificavam. Eu sempre soube que a vida era bela, só não me avisaram que ela passava tão rápido. As reuniões periódicas dos veteranos do Grupo haviam sempre sido notórias pelas ausências. Hoje em dia, no entanto, as ausências ameaçavam cada vez mais vencer as presenças. A Grande e Definitiva Perda havia sido a morte do Nero Moura, o líder das asas, o insubstituível e saudoso comandante do Grupo. Mas ele não tinha sido o primeiro, nem o último. O impensável acontecia, e os seus jovens colegas do Grupo estavam agora velhinhos, todos eles, as viagens cada vez mais dolorosas e improváveis. Aos 81 anos, ele mesmo era uma reconhecida ausência potencial. A cada ano as ausências eram mais freqüentes e mais reais; um telefonema fora de hora e ele pensava um par de mãos a menos para bater palmas antes do Adelfi. Seus irmãos partiam, decolando todos eles, e um número cada vez menor de companheiros ficava para trás, perplexos, olhando para o céu. Às vezes, no escuro da madrugada, Rui acordava e pensava, sozinho, no Último Adelfi. O que aconteceria quando tombasse o último dos seus irmãos do 1º Grupo de Caça? Quando as palmas viessem de uma única mão, o Adelfi de uma única e embargada garganta, o que seria do mundo? Quem ficaria para ensinar essa geração, para preencher essa inimaginável lacuna? Ai, meu Deus, quanta dor, quanta beleza! E sozinho ele chorava, não de tristeza, não de medo, mas da beleza da vida. Não tinha medo de morrer, queria apenas chorar, conversar com Deus, abraçar os queridos, fazer o que tinha de fazer: cumprir até o último e precioso instante a missão de viver, antes de tentar a recuperação. De certa forma, tudo havia mudado com o documentário do Erik de Castro. Depois que o Senta A Pua havia chegado aos cinemas, o assunto parecia que estava sempre na pauta: todos apareciam e faziam perguntas e queriam escutar histórias engraçadas e pitorescas, saber detalhes de um caso, ouvir trechos da Ópera do Danilo. O Brasil dava um tardio e leve aceno de reconhecimento ao pequeno grupo sobrevivente de Jambocks. Mas por mais que ele falasse, por mais que contasse e se aprofundasse e desse todos os detalhes, a mensagem, ele sabia, era em essência incomunicável. Aqueles Dias eram tão profundamente seus que não podiam ser transmitidos. Não havia uma linguagem comum, um parâmetro que pudesse servir de base de comunicação. Isso ele já havia sentido depois da publicação do seu próprio Senta A Pua, o original, o

livro que havia chamado a atenção do jovem Erik para a história do Grupo. Ele achava que publicar o livro seria uma espécie de declaração, de acertar de contas consigo mesmo, com os companheiros, com o passado. Afinal, estava tudo ali, o principal estava ali. Todos os fatos básicos, os nomes, as histórias engraçadas, a cronologia. Lendo o seu Senta A Pua as pessoas se emocionavam, escreviam, ligavam. Mas ele mesmo percebia que a sua missão não estava cumprida: Aqueles Dias ainda requeriam sua atenção, ainda o assombravam e abençoavam. O documentário, ele reconhecia, era de uma qualidade assombrosa. Rui sabia que o projeto de Erik havia garantido a permanência do 1º Grupo de Caça na memória do Brasil. Eles eram agora uma página, um legado de heróis, um exemplo e uma advertência para o futuro. Ainda assim a sombra do Último Adelfi não o abandonava. Um dia ele acordou para um céu de um perfeito azul, sem uma nuvem sequer. Azul de brigadeiro, ele sempre evitava dizer, porque ele mesmo era brigadeiro. Esse era o Rui, o jovem Rui, ao mesmo tempo ousado e acanhado, que ainda hoje assinava sem o título: Rui Moreira Lima. Não, o azul daquele céu era mais do que de brigadeiro. Era azul Aqueles Dias. Na mesa do café da manhã, enquanto ele passava os olhos pelo jornal, a campainha do apartamento soou. Depois de um intervalo, outro toque, mais longo dessa vez. – Deixa que eu atendo – Rui levantou-se, arrumando os cadernos do jornal antes de andar até a porta. Na luz difusa do corredor do nono andar, diante da porta agora aberta, esperava uma menina de quatorze ou quinze anos, sozinha ali em pé, roendo as unhas pintadas de preto. Rui já a tinha visto antes; sabia que ela morava no mesmo prédio e que já havia trocado algumas palavras com ela, mas não conseguiu lembrar-lhe de imediato o nome ou de como a conhecera. – Oi – disse a menina. Ao ouvir a sua voz rouca e impaciente, a lembrança voltou-lhe num repente. Ela havia estado ali há uns dois meses atrás, querendo um autógrafo para um gasto exemplar do seu Senta A Pua. A Julinha é quem tinha atendido a porta naquela ocasião: a menina não havia aceitado o convite para entrar, por isso Rui tinha ido ao encontro dela na porta. Alertado pela Julinha, que tinha visto nas mãos dela o livro de capa amarela e azul, ele já levava consigo a caneta que ficava junto do telefone. – O seu nome, como é? – ele havia perguntado, pegando o grosso volume das mãos da menina.

– Ahn, não é pra mim – ela havia dito, alisando com as pontas dos dedos e um ar ausente o cabelo curto, pintado de uma tonalidade impossível de vermelho. – É para o meu professor. Raul, é o nome dele. Raul Medeiros. – Certo – ele havia dito, recriminando-se por ter alimentado a ilusão de que uma jovem daquela idade pudesse se interessar por uma história que se passava há quase cinqüenta anos. Para Raul Medeiros com um abraço, Rui Moreira Lima, ele havia escrito, na falta de maiores informações, que a menina, de qualquer forma, não parecia disposta a dar. – Ele descobriu que eu moro no mesmo prédio, daí ele me pediu – ela havia se justificado, estendendo a mão para pegar o livro de volta. – Nenhum problema – ele tinha sorrido. – E o seu nome, como é? Clarice, ela havia dito. O nome era Clarice. Hoje ela vestia o que parecia ser a mesa roupa preta de há dois meses atrás, mas havia uma diferença: naquela ocasião ela havia ostentado um piercing a menos. Agora, Rui não pôde deixar de notar, além de um na sobrancelha direita e outro na narina esquerda, Clarice trazia uma bolinha metálica na depressão do queixo, abaixo do lábio inferior. Uma outra diferença, ainda mais evidente: há dois meses Clarice havia chegado e partido ostentando no rosto aquela expressão de tédio eterno que parecia estar gravada a ferro e fogo nos rostos dos adolescentes de hoje em dia. Hoje a indiferença havia dado lugar ao que era, evidentemente, uma irritação profunda. Clarice estava indignada, e não fazia nenhum questão de esconder o fato. – Bom dia, Clarice – ele estendeu a mão, tentando ignorar a irritação estampada no rosto da menina. A menina deixou de roer as unhas e cruzou os braços, ignorando a mão estendida de Rui. Ela também pareceu não dar importância ao fato de que ele se lembrava do nome dela. – Tudo bem? – ele insistiu, recolhendo a mão. – Meu professor me mandou ler o seu livro – ela cuspiu as palavras, – como castigo. Rui ergueu as sobrancelhas brancas, surpreso. Ele respirou fundo antes de se pronunciar. – Tenho certeza que você não fez nada que mereça um castigo tão terrível. – Não me venha com essa! – ela grunhiu, tirando de dentro do casaco o mesmo exemplar do Senta A Pua que ele havia autografado a pedido dela. – Agora eu tenho de ler essa droga até terça que vem, se não o Raul me garantiu que eu não passo de ano. E a culpa é sua! – Minha culpa? – ele levou uma mão ao peito, sinceramente chocado. Ele não sabia se a culpa que ela lhe atribuía era a de ter escrito

o livro ou de levá-la a repetir de ano. Provavelmente as duas, ele pensou. – Você tinha que morar bem no meu prédio? – ela lamentou, olhando-o fundo nos olhos, a voz cheia de ressentimento. Mais uma culpa que eu não conhecia, ele pensou. Ela deu meia volta e andou até o elevador. Enquanto Clarice apertava repetidamente o botão de descer, Rui coçou o nariz, pensando no que dizer. – Até terça que vem são sete dias – ele arriscou. – Sinto que tenha de ser o meu livro, mas acho que você consegue. – Eu nunca li um livro dessa grossura – ela semicerrou os olhos para melhor emoldurar o seu ódio. – Não é agora que eu vou começar. E, com um gesto obsceno da mão, Clarice desapareceu dentro do elevador. Rui ficou ali em pé, perplexo e embaraçado, apoiado na maçaneta da porta aberta. Ele era ainda um galante jovem dos anos 40, e sentia-se completamente despreparado para a grosseria do novo milênio. Depois de um longo intervalo, para que a Julinha não o visse ali e perguntasse o que ele estava fazendo, ele fechou a porta silenciosamente. Rui não teve notícias dela até o sábado. Eram dez da manhã e ele estava no telefone quando a Julinha entrou na sala e fez sinal com a mão para chamar a sua atenção. – Um minuto – Rui disse no telefone. – Aquela menina esta aí de novo – Julinha disse, – a sua amiga Clarice. – Ela não é minha amiga – Rui disse, cobrindo o fone com a mão, e sentiu-se imediatamente mal por ter dito. Depois, tentando se reparar: – Faça ela entrar. Eu já estou desligando. Julinha saiu da sala e Rui terminou a ligação. Quando deu as costas ao telefone ele se surpreendeu ao ver a menina em pé junto do sofá, as mãos cruzadas na altura dos quadris. Ele não esperava que ela fosse aceitar o convite para entrar. – Por favor, sente – ele disse, tomando um lugar numa poltrona. – Desculpe, eu não vi você entrar, estava no telefone. – Obrigada – ela sentou-se, muito educada, na ponta do sofá. Clarice usava uma roupa preta que poderia ser a mesma das vezes anteriores (ele quase desejou que fosse a mesma; a alternativa, que todo o guarda-roupa daquela jovenzinha consistisse de roupas da mesma cor, era angustiante demais para ser levada em consideração), mas nenhum piercing novo que ele pudesse perceber.

Na idéia de Rui ela tinha vindo se desculpar; não lhe ocorria nenhum outro motivo que pudesse trazê-la de volta. Com isso em mente, ele fez a gentileza de manter-se calado para não constrangê-la ainda mais. – Desculpe ter vindo de novo sem avisar – ela começou, – mas eu vim lhe pedir um favor. O rosto de Rui se iluminou enquanto outra idéia, ainda mais improvável, passava-lhe pela cabeça: ela leu o livro e gostou. – Se eu puder ajudar – ele sorriu, de novo o Rui galante dAqueles Dias. – Pode sim – ela baixou os olhos por um momento, – pode me contar a história do Senta A Pua. Ela levantou os olhos, desafiadoramente agora, esperando a resposta dele. Rui demorou a entender o que estava acontecendo. No primeiro instante ele achou que a menina havia de fato lido o livro e agora buscava mais informações, detalhes que ele poderia esclarecer. Afinal de contas, já havia acontecido antes. Mas nos olhos dela, fixos nos seus, ele encontrou a verdade e, quando entendeu, sentiu-se afundar na poltrona. Não, Clarice não tinha lido o livro. Na verdade, era o contrário: ela queria que ele lhe contasse a história para não precisar ler o livro ela mesma. Rui pensou um longo tempo antes de responder. Então essa menina tinha vindo lhe perguntar sobre Aqueles Dias. Na verdade ela não era a única; ele estava acostumado a conhecer e ser apresentado a todo tipo de gente que tinha a esperança de ouvir de um velho veterano uma história pitoresca sobre aquela guerra dos filmes de nazistas. De vez em quando, nos lugares mais inesperados, alguém se apresentava e dizia eu li o seu livro, eu vi a sua entrevista no Jô, e ele sabia que teria de dizer alguma coisa, contar um causo, fazer uma brincadeira, soltar uma aparente revelação. O interesse da maioria era apenas temporário; o de outros, como o do jovem Erik de Castro, florescia numa legítima paixão. Ele estava acostumado a conquistar as pessoas narrando a elas as histórias dAqueles Dias, e a ser conquistado pela paixão que elas demonstravam nas suas palavras. Mas agora era diferente. Muito diferente. O envolvimento de Clarice estava longe de ser legítimo, e ela não tinha feito nenhum esforço para ocultar o fato. Não era preciso ser adivinho para perceber que a menina dos piercings estava longe de se interessar por ele, pelo Grupo de Caça ou por qualquer coisa que dissesse respeito a eles. Valeria a pena profanar aquelas lembranças, as suas mais preciosas lembranças, compartilhando-as com quem não tinha nenhum interesse legítimo nelas? Não era isso que Jesus tinha chamado de lançar pérolas aos porcos?

O problema não era só a perspectiva de ser usado: ele também acreditava com todas as forças que Clarice seria incapaz de dedicar a sua atenção a qualquer coisa fora o seu limitado círculo de interesses. Ele duvidava até mesmo da legitimidade do seu zelo em passar de ano; deveria haver algo mais em jogo, um namorado a perseguir no ano seguinte, uma recompensa a ser arrancada dos pais, alguma vantagem pessoal. Não era preciso conhecer a jovem Clarice profundamente para saber que nada a interessava além dela mesma. Nisso, Rui sabia, ela também não era única, mas representava toda uma classe, toda uma geração: e isso era ainda pior. Então é nisso que o mundo se tornou depois dAqueles Dias, ele lamentou, ali sentado na poltrona. No Natal de 1944 , numa transmissão de rádio que havia sido gravada e agora aparecia no documentário do Erik de Castro, Rui havia falado ao Brasil, em nome do Grupo de Caça, sobre a sua fé num futuro feliz. Um futuro melhor. Olhando para a menina que tentava manipulá-lo, ele estremeceu com as lembranças mais temíveis da guerra. Então era por isso que ele tinha lutado? Era por isso que tantos haviam tombado? Ele não compreendia mais o mundo que havia ajudado a salvar. Se essa meninada ao menos soubesse, ele começou a pensar. Não, não havia a menor possibilidade de diálogo. Rui afastou uma lágrima antes de responder. – Tudo bem – ele disse, – eu aceito. Eu conto. Clarice não escondeu a sua satisfação. – Você tem tempo agora? – ela perguntou, preocupadíssima que ele não tivesse. – Tenho sim – ele garantiu, e começou. E começou da forma mais honesta que conhecia, dando uma visão geral de toda a história, como no livro. Mencionou Orlando, Aguadulce, Suffolk, Tarquínia, Pisa, a volta ao Rio de Janeiro. Percebendo a desorientação da menina (Orlando foi o único nome que ela reconheceu), Rui recomeçou do princípio, traçando as linhas gerais da guerra, chegando à inevitável questão dos navios torpedeados na costa brasileira. – Não entendo o que de tão legal tem essa guerra – Clarice interrompeu. – Foi uma guerra mundial – Rui disse, muito sério. – E nos afetou, é o que ela tem de importante. Clarice se calou. Estava claro que ela queria que aquilo terminasse logo, da forma mais indolor possível. Quanto menos perguntas, mais rápido isso termina, é como ela parecia estar pensando agora. Rui respirou fundo e prosseguiu. Ele contou do recrutamento do Nero Moura, do treinamento em Orlando, dos vôos hesitantes em Aguadulce, da tensa travessia do

Atlântico. No começo ele estava preocupado, ansioso para se fazer interessante; seu maior medo era que Clarice o interrompesse e dissesse que preferia ler o livro a ouvi-lo falar. Por mais inadmissível que fosse a idéia, Rui achava que Clarice seria capaz disso. Mas ela não disse nada. Quando a narrativa chegou à Itália, ele já havia deixado para trás todo o receio. O assunto era, afinal de contas, Aqueles Dias. Numa sucessão de histórias e anedotas, ele narrou missões, piques, bombardeios, perdas e briefings, valorizando o drama e deixando de lado a cronologia. Ele fazia questão de delinear com clareza a personalidade e o jeito de cada novo personagem que introduzia; mesmo falando para a Clarice, ele não podia denegrir a memória do Nero Moura, do Disosway e de cada um dos companheiros de vôo e de terra deixando de descrevê-los como convém. Ele lembrou-se dos primeiros vôos, mencionou a história dos bombardeios mais importantes, descreveu a investida do Monte Castelo, em que o Grupo de Caça havia ajudado a Força Expedicionária Brasileira; deteve-se nas odisséias dos fugitivos Joel Santana e Danilo Moura (não mencionou a ópera; achou que ela não se identificaria com esse ponto), fez menção do destino de cada prisioneiro de guerra. Às vezes, entre uma história e outra, ele viase obrigado a esclarecer “esse morreu lá,” ou apenas “esse já morreu.” Contou o episódio do seu próprio vôo às cegas, o vazamento de óleo obstruindo-lhe a visão e queimando-lhe a vista, o pouso sem rodas, o encontro na pista de pouso com o curitibano que era piloto da RAF e o porre que veio depois. Mencionou, mesmo sem querer, as pequenas lealdades, as afinidades, as brincadeiras, a impossível dor da perda. Falou de pontes, trens, fábricas, mapas, pistolas, partisanos, hospitais, noites geladas, saudades de casa; falou da comida americana, descreveu as diferentes rações, explicou as cores dos cachecóis, a origem do avestruz, do Senta A Pua, da saudação do Adelfi. Ele só percebeu que haviam passado duas horas quando a Julinha entrou na sala e interrompeu-o em meio a um gesto eloqüente para perguntar a Clarice se ela ia almoçar com eles. Rui enrubesceu; feliz pela simples benção que era ter um ouvinte, ele havia esquecido momentaneamente os motivos e a pressa da menina. Ele havia cometido o pecado dos velhos e contadores de histórias: tinha se estendido demais. Agora Clarice olhava para ele exibindo um meio sorriso. Rui percebeu que ela havia tirado os sapatos e estava com as pernas aconchegadas junto ao corpo, apertada na extremidade do sofá mais próxima dele. Ele não queria se precipitar, não queria se enganar, mas ela parecia estar interessada. – Não sei – ele disse, embaraçado, – acho que já contei o principal, não sei se ela vai querer ficar...

– Posso? Posso almoçar com vocês? – Clarice disse, olhando para Rui, e ele se emocionou porque de onde ele estava os olhos dela pareciam estar brilhando. – Claro que pode – a Julinha, arrumando as revistas na mesa de centro, falou antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. – Você ainda nem viu as fotografias! – Fotografias? – Clarice olhou diretamente para ele, e agora era inquestionável. Os olhos dela brilhavam. – Muitas fotografias – Julinha sorriu, como se entendesse mais do que estava deixando entrever. – Você quer que eu ligue para os seus pais e avise que você vai almoçar conosco? Vocês tem muito que conversar. – Conversar qual nada! – Rui sorriu diante da idéia, afastando-a com a mão. – Só eu é que estou falando. – Pois eu estou gostando – disse Clarice, e tocou com a mão o braço dele. Ele estremeceu, mas não teve como deixar de acreditar. Ela está gostando. É impossível, mas algo mudou em duas horas. Voltando-se para Julinha, Clarice continuou: – A senhora liga pra mim? O número está na etiqueta da minha bolsa, acho que eu deixei no hall. Eu posso... Onde está o cinismo da expressão dela? Onde está o tédio? Será que no fundo ela é tão frágil, tão carente... – Pode deixar que eu acho e ligo pra eles – Julinha disse. – Fiquem à vontade. E deixou-os sozinhos. – Você quer beber alguma coisa? – Rui lembrou-se de oferecer, erguendo as sobrancelhas. – Um copo d'água, pode ser. – Não prefere um refrigerante? Uma Coca-Cola? – Pode ser – ela sorriu, grata. – Só um minutinho que eu vou buscar – ele levantou-se com alguma dificuldade e saiu da sala. Na cozinha, enquanto pegava uma Coca na geladeira, a Julinha, temperando a salada, apenas olhou para ele e sorriu. Da porta Rui mandou-lhe um beijo. Ela baixou os olhos, alargando o sorriso, e ele saiu com a lata na mão. Durante o almoço, como que por milagre, e com a improvável mas definitiva aprovação de Clarice, a conversa se manteve firmemente presa nAqueles Dias. Rui deixou que Julinha guiasse a conversa, contando o seu lado da história, falando dos boatos, das cartas, do medo, das notícias, do racionamento, da solidão. Sua esposa parecia, de alguma forma intuitiva, ter entendido Clarice por completo. Ela respondia com

naturalidade a cada pergunta, e chegava a antecipar os detalhes que despertariam o maior interesse da menina: os bigodinhos dos rapazes, os namoros no portão, os bailes, os cortes de cabelos e vestidos. Por sua vez, Julinha não fazia nenhuma pergunta; ela parecia ter percebido que para Clarice era um conforto não ter de falar de si mesma e do seu mundo. Enquanto isso, entre uma pequena contribuição e outra, Rui gastou alguns instantes para examinar melhor a menina. Ele não podia dizer se o caso era que antes ele não havia prestado atenção, ou se ele agora era capaz de olhá-la com outros olhos. Apesar de muito jovem (e, ele tinha de admitir, apesar dos piercings e do cabelo exótico) ela tinha traços regulares, promissoramente bonitos. Agora que a máscara de indiferença havia sido levantada, Clarice sorria sinceramente, com um frescor e uma simpatia que teriam parecido inconcebíveis há apenas algumas horas atrás. Ela já sabe mais do que precisa para o seu trabalho de escola, ele pensou. De alguma forma, Aqueles Dias haviam capturado a menina. Ela está escolhendo ficar. Ele escondeu o sorriso atrás do copo d'água. Terminado o almoço Julinha recusou a ajuda que Clarice de fato ofereceu (“aproveite o herói,” Julinha disse). Deixados sozinhos novamente, a conversa voltou-se naturalmente para as fotografias. – Espere que eu vou trazer alguma coisa – ele havia dito. As últimas defesas de Clarice caíram diante do arsenal fotográfico que Rui depositou na mesinha de centro. Ela não escondeu um suspiro de admiração e, ele suspeitou, de respeito. – Esse é mesmo você? – ela perguntou, apontando para um retrato solto que mostrava um jovem piloto ao lado de um P-47, o rosto redondo emoldurado por um sorriso cativante e grossas sobrancelhas escuras. – Esse era eu – Rui sorriu. – Esse é o D-4. – Uau, você até que era bem simpático – ela afastou a fotografia, como que para avaliar melhor – Bonitão. Desnecessariamente, ele enrubesceu. Como que para afastar o embaraço, ele pegou outra foto qualquer e começou a contar a sua história. Depois de passá-la para as mãos de Clarice ele partiu para a foto seguinte, encontrou outra relacionada e foi prosseguindo. Agora Clarice não ocultava mais a sua admiração. – Uau. Nossa. É demais. É demais – ela repetia, a intervalos regulares, desde que não atrapalhasse a narração do episódio em questão. Em determinado momento, sem conseguir se conter, Rui interrompeu-se: – Você não viu essas fotos no livro? Muitas dessas estão no livro.

Foi a vez de Clarice enrubescer. – Eu não abri o seu livro – ela confessou, evidentemente constrangida. – Se tivesse aberto, acho que teria vindo antes. Tenho certeza. Rui preferiu não comentar, para não aumentar o constrangimento. – Esse é o Torres, o piloto do grupo que mais teve missões – ele pegou outra foto e continuou. – Esse ainda está vivo. Clarice estava fascinada. Ela achou todos os pilotos indiscriminadamente bonitos. Ficou legitimamente desolada diante das primeiras mortes que ele narrou, as do Cordeiro, do Medeiros e do Rittmeister (“o mais bonito de todos,” ela sentenciou, mas no momento seguinte não tinha mais certeza). O sorriso de galã do Armando chamou a sua atenção e ela perguntou quem era; estremeceu quando Rui contou que ele havia sido abatido em combate; suspirou de alívio sincero quando soube que ele havia caído em território amigo. – Ele morreu aqui no Brasil – Rui esclareceu, olhando para o homem na foto nas mãos de Clarice – voando pela Panair. Aviação comercial. Ele e o Morgado. Rui mostrou a foto do Santos, que pulou depois de ter o seu caça atingido, mas morreu na queda e foi enterrado pelos soldados alemães. Mostrou a placa, feita por um alemão anônimo a partir de um estojo de munição de 20mm, que havia sido encontrada afixada na cruz que assinalava a sua sepultura. – “Homenagem ao Aviador Morto em Combate” – ele traduziu, apontando com o dedo. – 13 de abril de 1945 – Clarice leu. Ela pediu para ver o Joel Santana, que havia sido acolhido e lutado ao lado dos partisanos, e comparando as fotos achou que ele era mais bonito de perfil. A tarde foi se esgotando num rosário de fotografias, nomes, histórias, risadas, perguntas e respostas. Às três da tarde Clarice já sabia reconhecer os pilotos em cada fotografia e chamá-los corretamente pelos nomes (“aqui o Correia Neto parece mais jovem,” ela dizia, ou: “já sei, aqui ainda é em Tarquínia”). Às quatro ela sabia o que era canopy, flak, Linha Gótica. Às cinco ela pediu para dar uma volta imaginária com ele no seu D-4. Sentados lado a lado no sofá, Rui e Clarice fizeram um vôo de P-47 pela Itália dAqueles Dias. – Aqui, você coloca o cinto, o óculos de proteção, o fone. Pronto, agora estamos no ar. Para chegar à linha de frente temos de atravessar as montanhas, mas não vou levá-la para além da Linha Gótica. Quero que você conheça Verona, a cidade de Romeu e Julieta. Também vamos sobrevoar Pisa, onde estamos acampados. Está tudo meio devastado pela

guerra, mas é lindo assim mesmo. Talvez ainda mais lindo por causa disso. Há essa beleza, esse peso no coração de se saber que estamos vivos e que há uma guerra rugindo tão perto em algum lugar. Mesmo na cama, mesmo na cantina, nunca deixamos de pensar nisso. Com certeza você também quer conhecer Tarquínia? – É lindo – ela dizia, olhando ao redor, como se estivesse vendo o que só ele via, segurando com firmeza o manche imaginário. – O pouso é o melhor – ele garantiu, e num movimento seguro baixou o bico do D-4. – Vou dar uma esticada e parar junto do caça do Coelho. Não tenha medo não, vai dar um tranco quando a gente tocar o solo. Clarice, de olhos fechados, sentiu um frio na barriga, depois o impacto, e só abriu os olhos quando o avião parou na ponta da pista. – Valeu – ela disse. – Eu viajei. Viajei mesmo. Agora, refestelados no sofá, a luz amarela da tarde escalando as cortinas da sala, os dois estavam emocionalmente esgotados. Ao seu redor, as fotografias, na mesa de centro a jarra de limonada e o bolo de chocolate que Julinha tinha trazido... quando? Nenhum dos dois sabia dizer ao certo. No silêncio que se seguiu Clarice sabia que devia ir embora, Rui sabia que ela tinha de ir. Mas nenhum dos dois queria adiantar nada. – Que tipo de música vocês ouviam? – Clarice finalmente quebrou o silêncio, querendo prolongar o momento. – Todo o tipo – Rui se animou e andou até o aparelho de som. – Ópera. Carmem Miranda. As Andrews Sisters, que você não conhece. Na baixa do sapateiro. Glenn Miller. Vou por Glenn Miller pra você ouvir. Moonlight Serenade, talvez você conheça. Uma música nostálgica de big band, apenas vagamente dançante, tomou conta da sala. Sim, Clarice conhecia. E tinha odiado, até agora. O velho tomou o seu lugar na poltrona, esperando que a menina apreciasse a música. Clarice ficou olhando para Rui, o rosto inclinado para o lado, como se tivesse uma idéia, uma possibilidade, passando-lhe pela cabeça. Ela levantou-se do sofá em silêncio e ficou em pé diante dele. Instintivamente ele também colocou-se de pé, o eterno cavalheirismo voltando à tona. A menina olhou-o nos olhos por um longo intervalo. Depois, com um gesto respeitoso, quase reverente, estendeu a mão e tocou-lhe o rosto. – Você está mesmo aí dentro? – ela perguntou, e surpreendeu-se diante da pergunta, porque já sabia a resposta. Emocionada, Clarice levou a mão à boca e deixou escorrer uma lágrima. Ela não havia demonstrado qualquer deferência diante

Brigadeiro, mas tremeu de emoção ao reconhecer, no velho de pele enrugada, o rosto redondo do jovem piloto Rui. Ela está me vendo como eu era. Está vendo o Rui dAqueles Dias. E, sem tirar, os olhos dele, Clarice começou a chorar. Ela chorou porque o reconheceu, chorou porque se reconheceu, chorou porque viu ao mesmo tempo o jovem e audaz piloto e o velho herói e descobriu neles a mesma e admirável pessoa, chorou a sua própria mesquinhez, chorou a mediocridade do seu mundo, chorou pela guerra, pelos companheiros perdidos, pelo sofrimento de Rui e pelo seu. Rui, o jovem Rui, abraçou-a ali na sala, e ela chorou ainda mais. Rui também queria chorar, mas não foi capaz, porque estava de volta Àqueles Dias. Por um breve e passageiro momento tudo retornou. Ele estava de volta: os céus da Itália, o cheiro de café e de vermute, fazer a barba na manhã gelada, a sala de briefings, a entonação do Nero Moura, as risadas, as lágrimas, as explosões, a vida, as sensações jovens de um mundo jovem, estava tudo de volta. Uma única e repetida ária, lindíssima, tomou conta do seu coração. Aqueles Dias estavam de volta, ele percebeu que eles nunca haviam estado longe. Na sala, o velho e a menina estavam abraçados, dançando ao som de Moonlight Serenade. Rui viu Julinha aparecendo na porta da sala, viu que ela se afastava da cena sem querer atrapalhar, viu-a linda e jovem e frágil na perspectiva privilegiada dAqueles Dias. Com a mão enrugada ele acenou para a esposa, depois chegou a cabeça de Clarice junto ao peito e esperou que ela parasse de chorar. Quando a música terminou eles puderam ouvir a voz de Julinha atendendo o telefone no hall. – Não, não se preocupe, ela está conosco, sim. Está aqui, passou a tarde conversando com o Rui. – Meus pais – Clarice afastou-se do abraço e enxugou os olhos. Depois, levantando a voz: – Diga que eu já estou descendo. Só um minuto. – Ela disse que já está descendo – a esposa de Rui disse no telefone, fora do campo de visão deles. – Só mais um minuto. Não foi nada, boa noite. Eles ouviram Julinha se afastando no corredor, e Clarice voltou a olhar o velho Rui nos olhos. – Obrigada – ela sorriu, afastando uma furtiva lágrima dos olhos vermelhos. – Valeu. Obrigada mesmo. Uh, será que foi legal? – Foi legal – Rui concordou. – Antes de ir embora, posso pedir um último favor? – Desde que não seja de fato o último – o velho veterano sorriu.

No momento seguinte Clarice estava no telefone do hall, esperando alguém atender a sua ligação. Julinha estava recolhendo a jarra e os pratos da sala, enquanto Rui juntava as fotografias. – Alô? Raul, é você? É a Clarice! Você não imagina com quem eu passei o dia hoje – e depois de uma pausa, sorrindo muito e dando pulinhos de alegria: – É! É! Ele me mostrou as fotografias! Eu sei. Eu sei. Eu sei. Eu sei que você disse. Eu sei, eu estava. Você quer falar com ele? – É o meu professor – ela disse a Rui, escondendo o fone na barriga. – Você fala com ele? – É claro. No outro lado da linha, Raul Medeiros suava frio. – Alô, é o Rui Moreira Lima – Rui atendeu. – Uh! – disse Raul, emocionado. – Aqui fala Raul Medeiros, eu sou professor da Clarice. Desculpe se ela o incomodou muito, eu não mandei ela atrapalhar o senhor. – Não, ela não me incomodou muito – ele sorriu, olhando para Clarice, que roía as unhas de alegria. Rui fez sinal que ela parasse, e ela baixou as mãos da boca imediatamente. – Preciso que o senhor saiba – o professor disse, – o senhor é o meu herói. Já li tudo sobre o 1º Grupo de Caça, vi o documentário, tenho o Missão 60, mas o seu Senta A Pua é o melhor. Puxa, é um privilégio falar com o senhor. Uma honra. Obrigado por autografar o meu exemplar. – Obrigado, obrigado, mas o professor da Clarice é você. O verdadeiro herói, digamos assim. – Ah, entendi – Raul riu em voz alta no outro lado da linha. – Entendo o que o senhor quer dizer. Mas eu pelo menos nunca tive que passar um dia inteiro com ela. – Ela é boa companhia – Rui ficou sério por um instante, depois voltou a sorrir. – Uma boa menina, boa menina. Quando ele finalmente fechou a porta, dando um suspiro de alívio e de emoção, sentiu sua esposa abraçá-lo por trás. – Eles estão certos, todos eles – disse Julinha, o queixo pousado no seu ombro. – Você é um herói, Rui. – Todos somos – disse Rui Moreira Lima, e apertou os braços da esposa junto aos seus. Duas ou três horas depois, quando eles se preparavam para dormir, o telefone tocou. – Desculpe incomodar, Rui – era Clarice. – Prometo que nunca mais vou ligar essa hora. Eu só liguei porque era importante. – Nenhum problema – disse Rui.

– Liguei pra dizer que estou lendo o seu livro. Naquela noite, abraçado à esposa, o jovem Rui e o velho brigadeiro choraram juntos. Em silêncio solene, bateram palmas e saudaram um ao outro com um sonoro Adelfi. Não o último, ele tinha certeza. Aguardando permissão para decolar, ele pensou. Mas sem nenhuma pressa. Ele demorou a adormecer, feliz da vida, emocionado como nAqueles Dias.

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