conex�es Cap�tulo 4 NATUREZA
VERTIGENS DA EVOLU��O P�S-BIOL�GICA O triunfo supremo sobre Deus ou a Natureza, a montagem de um mundo em miniatura criado por n�s, que se moveria, tal como o Universo, gra�as � sua energia pr�pria e obedecendo apenas � m�o do homem! Construir, pois, por si mesmo, um mundo - ser, ent�o, um deus - tal � o sonho dos inventores da era F�ustica. Oswald Spengler N o s�culo XVII, quando o universo come�ou a ser percebido, explicado e manipulado a partir da met�fora do rel�gio, a ci�ncia de inspira��o promet�ica dedicou-se a observar um mundo que funcionava de acordo com uma s�rie de leis precisamente definidas e universalmente v�lidas, com todas as suas pe�as se complementando numa orquestra��o de admir�vel rigor. No entanto, a pergunta pela origem estava ausente dessa cosmologia mecanicista: dos animais aut�matos de Ren� Descartes at� a lei gravitacional de Isaac Newton, passando pelo sistema solar de Galileu e pelo homem-m�quina de La Mettrie, todas eram estruturas j� acabadas e em pleno funcionamento. Tais caracter�sticas livravam os pensadores da necessidade de se pronunciarem acerca da origem das mesmas, pois os remanescentes de�stas 112 PAULA SIBILIA ainda proporcionavam � nova cosmologia cient�fica um marco teol�gico. Deus, bom relojoeiro, tinha constru�do e dado corda ao grande rel�gio universal; depois, Ele tinha se retirado sem maiores explica��es, deixando a m�quina em perfeito exerc�cio. Com o correr dos anos e os velozes avan�os do capitalismo industrial, por�m, a pergunta pela origem se fez cada vez mais presente. Os perigos teol�gicos que nela latejavam tinham perdido for�a, e a sociedade ocidental estava disposta a desafi�-los em troca de uma explica��o adequada para a sua exist�ncia. A resposta chegou em 1859, enunciada por um bi�logo t�o ingl�s quanto a Revolu��o Industrial: Charles Darwin. Coma publica��o de A origem das esp�cies, o mundo do s�culo XIX ganhou uma legitima��o � altura de suas necessidades, submetendo a seus des�gnios uma das �reas que tinham oposto mais resist�ncias � mecaniza��o universal: o reino do vivo. Apesar das pol�micas deflagradas com seu lan�amento, o iivro oferecia uma cosmologia muito apropriada para a �poca, o homem, por exemplo, emergia de suas p�ginas corno um animal em feroz competi��o com os demais, em luta constante pela domina��o visando � sobreviv�ncia. A imagem era, de fato, bastante crua: o respeit�vel cidad�o da sociedade burguesa pertencia a uma esp�cie sim�esca, que era fruto do mero acaso e estava destinada a ser superada e desaparecer. Contudo, conceitos como os de sele��o natural, lura pela vida e violenta elimina��o dos inaptos demonstraram a sua efetividade na legitima��o da nova ordem scciopol�tica e econ�mica. Com sua equilibrada conjun��o de acaso e necessidade, conting�ncia e sele��o, heran�a e muta��o, a evolu��o natural apresentava-se como um equivalente
cosmol�gico da "m�o invis�vel" que comandava o mercado na democracia liberal. O famoso h�ssezfaire postulado por Adam Smith O HOMEM P�S-ORG�NICO 113 para o �mbito econ�mico, logo encontrou seu par no mundo natural. A evolu��o das esp�cies da teoria darwiniana tampouco tinha um Autor, n�o obedecia a um plano predeterminado, n�o possu�a uma dire��o fixa, mas permanecia em estado de equil�brio permanente ao longo das eras geol�gicas, e seu curso denotava um progresso lento e gradativo rumo � perfei��o indefinida - um progresso convenientemente guiado por crit�rios de "utilidade" e "bem comum". E o que era melhor ainda: o processo inteiro podia ser estudado e compreendido, em todos seus detalhes, por meio das ferramentas cient�ficas dispon�veis. Das estruturas fixas da teoria cartesiana - cuja origem era vagamente divina - passou-se, assim, ao din�mico mundo darwiniano: imprevis�vel, sem a prote��o dos deuses, por�m em paulatina evolu��o mec�nica comandada pelas leis inexor�veis da natureza. Alguns aspectos das novas id�ias, surgidas no cerne da tecnoci�ncia promet�ica do s�culo XIX, podiam chocar os esp�ritos sens�veis da �poca, mas o paradigma evolucionista estava em total concord�ncia com o individualismo moderno e com a sociedade competitiva do capitalismo industrial. A met�fora evolucionista, intimamente aparentada com a cren�a no progresso, logo come�ou a invadir as mais diversas �reas do saber de cunho promet�ico, incluindo as ci�ncias sociais e a especula��o filos�fica acerca da condi��o humana. Para se adequar aos ritmos e exig�ncias do s�culo XIX, a natureza tinha sido reformulada. Das p�ginas do livro seminal de Darwin, ela surgia como uma feroz arena de luta, na qual o nascimento era um acidente e a morte a �nica certeza. Hoje, no entanto, sabemos que o universo � outro. Essas duas assevera��es, por conseguinte, est�o em muta��o: agora o nascimento pode ser planejado e, no horizonte f�ustico da nova tecnoci�ncia, a morte est� deixando de ser unia condena��o certa. A natureza que acompanhou o desenvolvimento do capitalismo industrial, portanto, est� em pleno processo de reconfigura��o. O s�culo XXI irrompe em um mundo no qual tr�s esp�cies biol�gicas s�o extintas por hora., em decorr�ncia das interven��es tecnocient�ficas na biosfera. A acelera��o da contagem regressiva da diversidade biol�gica � assustadora: antes da era industrial, a taxa de extin��o de esp�cies era de uma a cada mil anos; o prazo come�ou a diminuir j� no come�o da industrializa��o, registrando uma extin��o a cada d�cada. Esse incremento exponencial acabou gerando algumas transforma��es qualitativas. Assim, a "sele��o" que atualmente elimina 72 esp�cies biol�gicas por dia n�o parece mais se encaixar na categoria de "natural" enunciada por Darwin em meados do s�culo XIX. O acionar daquele mecanismo era lento por defini��o: a velha Natureza demorava um milh�o de anos para criar uma nova esp�cie, que normalmente estava destinada a viver entre dois e quatro milh�es de anos. Hoje n�o s� a extin��o � infinitamente mais veloz: gra�as � engenharia gen�tica, em alian�a com o instrumental inform�tico, a cria��o de novas esp�cies por meio de artimanhas "n�o-naturais" tamb�m virou rotina di�ria nos laborat�rios do mundo inteiro. Desde 1996 foram lan�adas no planeta Terra v�rias dezenas de organismos geneticamente modificados, tanto vegetais corno animais, para serem utilizados nas
lavouras e pastagens de diversos pa�ses. A grande maioria � produzida, patenteada e comercializada por umas poucas empresas transnacionais, membros de um mercado florescente que registra uma intensa concentra��o de capitais. Atualmente, milhares de novos esp�cimes est�o sendo criados nos laborat�rios dessas institui��es, ou aguardando na fila para receberem suas respectivas patente? de propriedade intelectual, em uma verdadeira corrida pela gera��o de "produto?!" inovadores que possam obter urna boa coloca��o no mercado globalizado �oagrobusiness. A esp�cie humana, por sua vez, n�o se encontra fora deste programa; pelo contr�rio, o potencial de lucro que guarda seu genoma � incalcul�vel, especialmente para as ind�strias biom�dicas e farmac�uticas, gerando muito mais expectativas e pol�micas do que qualquer outro projeto biotecnol�gico. Diante do novo panorama, � evidente a obsolesc�ncia das cosmologias emanadas pelas chamin�s do capitalismo industrial. Com essa decad�ncia, surge a necessidade de uma nova narrativa cosmol�gica que seja capaz de explicar a din�mica da evolu��o artificial, numa era em que a tecnoci�ncia est� fortemente ligada ao mercado e ostenta uma decidida voca��o ontol�gica, exibindo a sua capacidade de cria��o e deixando para tr�s o reformismo lento e gradativo que visava � perfectibilidade a longo prazo. Seria este o encerramento do �ltimo ato de uma pe�a ultrapassada, conhecida antigamente com o nome de Natureza? S�o v�rios os pensadores que detectam certa atmosfera p�stuma nas atuais concep��es do natural. Significa, ent�o, que estar�amos ingressando na era da p�s-natureza? Como decorre das reflex�es de alguns autores contempor�neos, o que entendemos por "natureza" � apenas um conceito, uma inven��o da humanidade, uma id�ia que varia nas diversas forma��es sociais de acordo com os tipos de saberes nelas gerados. Apesar das �bvias singularidades, nos textos que analisam o fen�meno com olho cr�tico paira uma certeza: a natureza e a vida foram afetadas a tal pj^nto J3elo,acionar da tecnoci�ncia nos �ltimos quatro s�culos, que acabaram perdendo a sua antiga defini��o. Seria poss�vel, assim, fazer uma genealogia dessas id�ias, rastreando a variedade de formas em que elas se cristalizaram nas distintas �pocas, localizando seus pontos de inflex�o e suas muta��es. Atualmente estar�amos vivenciando uma dessas viradas hist�ricas, uma descontinuidade em seus sentidos. J� em 1973, Clement Rosset publicou o livro A ntinatureza: elementos para uma filosofia tr�gica, no qual procurou desmascarar as ra�zes metaf�sicas ocultas no velho conceito. "A natureza n�o existe", afirmava o pensador franc�s, "ou antes, ela � apenas o que as circunst�ncias a fazem ser, sendo estas tanto de ordem 'f�sica' como 'humana'." Em 1980, combatendo tanto a trag�dia quanto a metaf�sica com humor, otimismo e muito fervor pol�tico, a epistem�loga feminista Donna Haraway lan�ou o Ma nifesto do Cyborg. mclu�docom outros ensaios em um volume cujo subt�tulo c bastante eloq�ente: A reinven��o da natureza. Em face dos novos processos de hibridiza��o dos organismos com as tecnologias, a autora propunha assumir a recria��o dos pr�prios corpos e_ _subjetividades com fins claramente pol�ticos, estimulando o surgimentode pr�ticas de resist�ncia �s pot�ncias mort�feras das novas configura��es tecnoeient�ficas: "nossas m�<moinjisesj^qj2^ provocava, "enquanto n�s estamos, assustadoramente inertes". Emergindo dessas turbul�ncias, a nova vers�o de natureza que est� se impondo como, perspectiva hegem�j�ca � compat�vel com asconfigura��es de saberes, prazeres e poderes qire^aracteriz_anr^_mundo contempor�neo. O s�culo XX foi regido pela f�sica, como saber privilegiado da tecnoci�ncia de inspira��o promet�ica; a biologia, pelo contr�rio, n�o fui um campo de conhecimento especialmente destacado no s�culo
que acaba de se encerrar. Mas isso come�ou a mudar � medida que o novo mil�nio se aproximava. Hoje, os bi�logos moleculares consideram que o papel da biologia da primeira metade do s�culo XX (pr�-molecular) consistiu apenas no aprimoramento da linhagem iniciada por Darwin; � sua fun��o hist�rica teria sido o mero fornecimento de uma base qu�mica sobre a qual a biologia molecular p�de florescer. Ou seja: a constitui��o daquela �rea do saber que promete dominar o s�culo XXI como um campo primordial da tecnoci�ncia, com a imprescind�vel assist�ncia da artilharia teleinform�tica. Ap�s o impacto provocado pelas inovadoras id�ias darwinianas, e apesar da sua indiscut�vel aceita��o no �mbito cient�fico e da sua comprovada "validade fenomenol�gica", a teoria da evolu��o teria ficado como suspensa, � espera de uma explica��o f�sica da heran�a. Naquela �poca, a esperan�a de obt�-la rapidamente parecia remota, mas o grande passo foi dado com a enuncia��o da teoria molecular do c�digo gen�tico. O entusiasmo dos cientistas da nova gera��o n�o era gratuito: o alfabeto da vida estava come�ando a ser decifrado, como uma fabulosa pedra de Rosetta universal. As quatro letras que o conformavam eram capazes de assumir infinitas combina��es na dupla h�lice do DNA e, com isso, programar todos os organismos que habitaram o planeta, desde a apari��o do primeiro ser vivo h� 3,5 bilh�es de anos. Dominando a misteriosa din�mica dessas quatro letras, os homens poderiam alterar � vontade as informa��es condensadas nos genomas. O c�digo da vida revelava-se extremamente eficaz na compacta��o da informa��o: bilh�es de letras permanecem arquivadas no interior das c�lulas, distribu�das ordenadamente nos diminutos filamentos org�nicos que formam seu n�cleo. Assim, a biologia molecular contribuiu para o assentamento do modelo digital do corpo humano e de todo o universo vivo. Rapidamente, os saberes oriundos dessa disciplina assinalaram que a sele��o natural vinha agindo, ao longo de bilh�es de anos, sobre essa informa��o arquivada nas c�lulas, fixando eventualmente alguma altera��o do material gen�tico que implicaria uma mudan�a na forma da esp�cie. Tal passou a ser o modo de funcionamento da evolu��o natural, com seu upgrade metaf�rico e conceituai j� incorporado; pois a teoria apresentada por Charles Darwin no s�culo anterior necessitava, de maneira imperiosa, se adaptar � nova ret�rica inform�tica que invadiu os laborat�rios. Os efeitos da muta��o metaf�rica que permitiu entender a vida como informa��o, contudo, v�o muito alem dessa afina��o do foco da sele��o natural no n�vel molecular. Gra�as �s recentes conquistas das t�cnicas computacionais, a nova perspectiva expande os horizontes de outro tipo de evolu��o: a artificial. Isto �, a possibilidade de os homens alterarem com efic�cia o c�digo da vida, visando � provoca��o de determinados efeitos e prescindindo da depend�ncia hist�rica com rela��o � evolu��o natural, com suas pouco confi�veis muta��es aleat�rias e seus lentos processos de sele��o. Eis o que come�a a ser denominado "evolu��o p�sbiol�gica" ou, de modo mais direto, p�s-evolu��o. N�o � apenas o homem, pois. em seu corpo e <;ua subjetividade, que est� sendo afetado pelas novas propostas f�usticas de reinven��o da vida. O projeto contempla toda a biosfera da Terra. Nesse sentido, a proximidade exaltada por La Mettrie entre o homem e o animal, considerados ambos como m�quinas vivas desprovidas de alma ou de qualquer subst�ncia espiritual que excedesse a mat�ria pura, parece confirmada pelas novas cosmovis�es. Embora o paradigma mec�nico tenha perdido vig�ncia, hoje homens e animais revelam-se ambos como entidades compostas de uma mesma subst�ncia. No caso do chimpanz�, por exemplo, a diferen�a com rela��o aos humanos
j� foi quantificada: apenas 1,6% do material gen�tico. A equival�ncia pode ser estabelecida com rela��o a qualquer outro esp�cime vivo, seja a mosca-d a-fruta, um legume ou uma reles bact�ria. Afinal, o ser humano foi reduzido aos tr�s bilh�es de letras que comp�em seu genoma, e sabe-se que 907o do seu material gen�tico � mero junk DNA, ou seja, sucata n�o-codificante. "O homem difere da bact�ria �. coli n�o devido O HOMEM P�SORG�N1C0 119
a uma qu�mica mais eficiente, mas devido a um conte�do de informa��o muito mais vasto (de fato, mil vezes maior do que uma bact�ria coli)", explica o bi�logo Manfred Eigen no artigo j� citado. E, em seguida, acaba com s�culos de obscurantismo e mist�rios: "tal informa��o codifica fun��es sofisticadas e torna poss�vel o comportamento complexo". Com essa equival�ncia te�rica de base universal e com o dom�nio das t�cnicas necess�rias, abre-se o horizonte para uma transmuta��o de todas as mat�rias. As experi�ncias que misturam os componentes dos organismos de diversas esp�cies, alterando seus c�digos vitais, transferindo informa��es de um para outro ou ent�o combinando-os com materiais inertes, lembram as id�ias e as pr�ticas dos antigos alquimistas. Apesar da total descontinuidade entre ambos os regimes de saber-poder, a analogia � v�lida: hoje a panaceia universal e o elixir da longa vida parecem prestes a serem descobertos nos laborat�rios da tecnoci�ncia f�ustica, e um dos m�todos utilizados para atingir tais metas � o DNA recombinante, que permite efetuar a transmu-ta��o das mat�rias vivajL_ No filme jurassic Park, estreado em 1993, um grupo de cientistas reconstru�a dinossauros a partir do DNA de um mosquito conservado em um cristal de �mbar. Atualmente, os pesquisadores da �rea consideram imposs�vel realizar tal fa�anha, visto que o fr�gil material gen�tico � incapaz de sobreviver naquelas condi��es. No entanto, acreditam que seria poss�vel desenvolver um esp�cime com caracter�sticas semelhantes a um dinossauro seguindo outro m�todo: alterando o DNA de uma ave contempor�nea, como por exemplo um frango ou um p�ssaro. "Muitos genes atuais s�o bem pr�ximos ou inclusive id�nticos �queles de formas de vida extintas h� muito tempo", explica David Stern, um bi�logo evolucionista que trabalha na Universidade de Princeton.1 Ai�m da cria��o de seres h�bridos e transg�nicos, portanto, o caminho est� aberto para o design de novas esp�cies e de exemplares quim�ricos: "cria��es �nt�cas" -como diz Herm�nio Martins - que revelam a voca��o ontol�gica da tecnoci�ncia f�ustica. _ Praticando a nova alquimia dos genes, os engenheiros da vida podem reconfigurar a natureza, manipulando e reorganizando as informa��es contidas nos c�digos de todos os seres vivos, ultrapassando a barreira das esp�cies e esmaecendo de vez a cis�o entre natureza e artif�cio operada h� mil�nios pelo pensamento ocidental. Assim, dos laborat�rios contempor�neos n�o emergem apenas os computadores comandados por chips de bact�rias ou neur�nios de animais que, com seus circuitos org�nicos, substituem a fun��o do sil�cio nas tarefas de processamento de dados. Podem surgir, tamb�m, misturas pol�micas como a soja transg�nica da empresa Monsanto, que �
resistente ao herbicida Roundup (comercializado pela pr�pria Monsanto), ou um tipo de arroz que promete p�r fim aos principais problemas de sa�de p�blica da �sia gra�as a uma "colcha de retalhos transg�nica" que inclui genes de uma flor, um v�rus, uma leguminosa e uma bact�ria. Ou, ainda, misturas "est�ticas", como o coelho fluorescente criado peio tecno-artista Eduardo Kac. Divinizadas ou demonizadas, s�o ilimitadas as possibilidades de recombina��o das informa��es org�nicas e inorg�nicas por meio da engenharia gen�tica e da teleinform�tica. Com elas, a Natureza perdeu sua rigidez anal�gica e ingressou no processo de digitaliza��o universal, inspirando as met�foras de "programa��o" e de "edi��o digital" do c�digo da vida, que j� come�aram a plasmar seus efeitos de realidade no mundo vivo. Sintetizando o clima dc euforia que atualmente envolve o campo da biologia molecular, vejamos como um de seus representantes celebra a fus�o dos arsenais inform�ticos e biotecnol�gicos, por serem os ingredientes b�sicos da receita que logo permitir� obter tanto o elixir da longa vida quanto a panaceia universal: A intensifica��o do conhecimento sobre o processo de gera��o de informa��o que alcan�amos nos �ltimos 20 anos j� est� come�ando a dar frutos. Utilizando m�todos laboratoriais, seremos capazes de produzir novos tipos de rem�dios (...) Do mesmo modo, iremos compreender o n�vel ontog�nico dos seres vivos e seremos capazes de, por exemplo, intervir na elimina��o de tumores causando a sua degenera��o, iremos aprender como conhecer e modelar nosso sistema nervoso e seu modo de opera��o. A vida artificial e os computadores pensantes n�o ser�o mais relegados ao mundo da fic��o cient�fica. � quase imposs�vel avaliar o impacto que isso tudo ter� em nossas vidas.2 Apesar dessa efervesc�ncia, profusamente espelftajdjnaos m�dias, aigiimas vozes cr�ticas tamb�m se fazem ouvir, pro^_ veni entes de certas �reas da biologia contempor�nea, cer-Jamente menos louvadas do que a molecular e seu fruto jnais festejado, a engenharia gen�tica. Tais vozes denunciam o reducionismo da perspectiva que pretende explicar todo o passado, o presente e o futuro da vida na Terra a partir d^mforma��o contida no material gen�tico, com os conseq�entes sonhos de controle total dos processos vitais. Stephen Jay Gould, por exemplo, bi�logo evolucionista da Universidade de Harvard, lembra da import�ncia das conting�ncias singulares que ocorrem em um mundo "n�o s� ca�tico como tamb�m cheio de verdadeira aleatoriedade ontol�f�ca". O ser humano, por exemplo, nada mais � do que o produto final de uma seq��ncia infinita de conting�ncias ^ his_t�ncas,_oinesmo ocorrendo com todas as outras formas �yivas �]u^pajisjram pelo planeta ao longo de bilh�es de anos. A tecnoci�ncia de �ndole f�ustica, todavia, parece decidida a eliminar do mundo uma das suas caracter�sticas rohsttfttHvas: o imprevis�vel. Para tanto, come�a por excluir toda refer�ncia ao acaso logo em sua base te�rica e filos�fica: "a ci�ncia refere-se apenas ao dom�nio superior' da generalidade; a regi�o 'inferior' da conting�ncia � pequena e achatada, pressionada pela grandiosidade que lhe est� acima; � somente o lugar de detalhezinhos curiosos e sem import�ncia para o funcionamento da natureza", comenta Jay Gould em alus�o direta aos sistemas de explica��o totalizantes baseados no DNA. Em um mundo embebido pelas "incertezas pes-moder-nas", essa extirpa��o da conting�ncia nos discursos da tec-noci�ncia mais recente n�o � apenas te�rica: ela parece integrar o pr�prio programa das pesquisas cient�ficas e tecnol�gicas. Pertence a James Watson - bi�logo norte-americano que, em 1953, foi um dos descobridores
da estrutura do DNA e, em 1989, assumiu a dire��o do Projeto Genoma Humano - uma frase que rapidamente tornou-se um emblema do novo paradigma cient�fico: "o destino n�o est� mais escrito nas estrelas, ele est� escrito em nossosj^enes" Assim sendo, basta ter acesso ao or�culo gen�tico para saber tudo o que �, o que foi e o que ser�; e basta dominar as t�cnicas da biologia molecular para alterar o texto do destino. No cerne dos novos saberes reside, portanto, um forte impulso: a ambi��o de controlar o futuro. Fechar a porta do imprevis�vel, restringir o leque de possibilidades, comandar o destino do mundo. Na perspectiva da filosofia da t�cnica estudada por Herm�nio Martins e Oswald Spengler, trata-se de uma caracter�stica marcadamente "f�ustica". A vontade de conduzir a evolu��o, de tomar as r�deas do futuro da esp�cie humana e de toda a biosfera: tal � a promessa encerrada na t�cnica que permite manejar a hereditariedade. Ante essa ambi��o tecnodemi�rgic� que come�ou a inquietar as vontades humanas, d� nada adiantam advert�nO HOMEM P�S-ORG�N1CO 123
cias como as de Jay Gould: "somos entidades contingentes e n�o inevitabiiidades previs�veis". O impulso f�ustico � seduzido pela �nsia de eliminar essa aleatoriedade, calculando as probabilidades com m�todos estat�sticos e canalizando o futuro com as ferramentas bioinform�ticas. A aventura cartogr�fica do Projeto Genoma Humano, por exemplo, �cone e emblema dos saberes aqui analisados, foi amplamente divulgada nas m�dias como aquilo que ir� permitir, em um futuro pr�ximo, proezas como desprogramar _as doen�as e a pr�pria morte, anular o envelhecimento e desativar a dor. Enfim: controlar o destino, restringir o enor-me leque de possibilidades contidas no "jogo de dados" do futuro. Eis algumas das vantagens que podem ser obtidas ao se abrir m�o da imprevisibilidade, de acordo com a estrat�gia publicit�ria da engenharia gen�tica e suas terapias de preven��o de riscos. Se as for�as que regiam a evolu��o dar.viniana compunham um equil�brio sempre est�vel entre o acaso e a necessidade das leis naturais, hoje ele foi interrompido pela interven��o humana, com o intuito de eliminar o imprevis�vel e subjugar os veredictos - outrora implac�veis - das leis naturais. Afinal, agora seria poss�vej_ f�djj^rjopjHxesso a uma s�rie de escolhas concretas e_pon-jnais: decis�es delegadas .nas m�os da tecnoci�ncia e. soJaretudo, nas demandas do mercado_^_ "O ovo � comput�vel?", pergunta o bi�logo evolucionista Lewis Wolpert, no t�tulo de um artigo cujo subt�tulo tamb�m � ilustrativo: "Podemos gerar tanto um anjo como um dinossauro?" E logo explicita as suas inten��es: dada a descri��o total de um ovo fertilizado (ou seja, a seq��ncia completa de DNA e a posi��o de todas as prote�nas e RNAs), seria poss�vel prever como ser� o desenvolvimento do embri�o? Eis o sonho nascente da p�s-evolu��o: submetendo a aparelhagem, computacional � informa��o contida no embri�o de um ser vivo, inclusive do ser humano, deveria ser poss�vel deduzir o programa completo do seu desenvolvimento futuro. Dispondo de tais dados, o passo seguinte � a manipula��o: corrigir eventuais problemas, prevenir aqueles indicados como tend�ncias probabil�sticas e praticar outros ajustes e melhorias espec�ficas, de acordo com as prefer�ncias do consumidor. A ruptura com rela��o �s velhas met�foras � evidente: a antiga tecnoci�ncia promet�i-ca, confiante no progresso gradativo, baseado nas leis lentas, s�bias e inexor�veis da Natureza, assume tens claramente f�usticos. Pois n�o se trata mais de aper:e::oar o material gen�tico que a evolu��o natural legou a uma esj �-cie; agora, o objetivo � projetar
e produzir seres com fins expl�citos e utilit�rios A esp�cie humana �, logicamente, a que desperta as maiores expectativas. A maleabilidade � uma caracter�stica fundamental do ser humano, assumida com orgulho e entusiasmo na Renascen�a e defendida por vozes arrebatadas como as de Leonardo da Vinci e Pico delia Mirandola. Ao longo da Modernidade, os projetos humanistas foram talhando essa subst�ncia l�bil por meio da educa��o e da cultura. O fundamento de tais projetos era o fato de os hemen- nascerem "ainda incompletos", abrindo espa�o para as infinitas possibilidades contidas em um futuro felizmente indeterminado, uma folha em branco prenhe de surpresas. A partir da base constitu�da pelo substrato biol�gico, seu fundamento "natural", o homem podia ser constru�do, esculpido, polido, retocado. Determinar claramente essa subst�ncia indeterminada. visando � sua inser��o em uma forma��o social espec�fica - foi, precisamente, o objetivo para o qual apontaram os dispositivos disciplinares analisados por Michel Foucault, formatando corpos e subjeti-vidades com as tecnologias dirigidas � fixa��o dos devires humanos. Sustentada pelos saberes cient�ficos de �ndole promet�ica, portanto, na sociedade industrial certa "evolu��o n�o-biol�gica" j� operava de maneira expl�cita sobre a esp�cie humana. Corpos e subjetividades eram produzidos a partir da catequese de professores, pedagogos, psic�logos, m�dicos, soci�logos, psiquiatras e todo o ex�rcito de profissionais das ci�ncias humanas - campo de saber que alimentava os dispositivos de poder da era industrial e, ao mesmo tempo, deles se nutria. Agora, tal processo n�o precisa mais se restringir aos m�todos ainda lentos e imprecisos da educa��o e da cultura, pois os saberes f�usticos se prop�em a levar adiante um programa bem mais radical e efetivo de formata��o de corpos e almas: intervindo diretamente nos c�digos gen�ticos, que s�o apresentados como os respons�veis pela determina��o da grande maioria das caracter�sticas humanas. Francis Fukuyama, ensa�sta adepto de afirma��es de forte impacto, recentemente lan�ou o livro Our posthuman future: Comequences of the biotechnology revolution. Em suas p�ginas, o autor revisa certos aspectos do seu texto mais famoso: aquele que celebrava o "fim da hist�ria", no emblem�tico ano de 1989, e o triunfo definitivo do capitalismo p�s-industria! e da democracia de mercado com seu credo neoliberal, em n�vel global, descartando toda possibilidade de alguma alternativa pol�ticoecon�mica vir a surgir no futuro. O diagn�stico era "correto" em alguns aspectos, confirma o pr�prio autor no livro publicado treze anos mais tarde, por�m ele estava "fundamentalmente errado" porque seu pressuposto b�sico era a exist�ncia de uma natureza humana fixa e imut�vel, que estipulava limites �s possibilidades de desenvolvimento da sociedade. Assim, sempre segundo Fukuyama, se o socialismo e outras "ideologias radicais" do passado fracassaram foi porque elas confiaram demais na maleabilidade do ser humano e, consequentemente, na possibilidade de criar um "homem novo" a partir das influ�ncias do meio ambiente. A queda do Muro de Berlim teria demonstrado a impossibilidade de tal ambi��o, revelando os limites do reformismo social: as caracter�sticas que o socialismo tentou eliminar daquela suposta natureza humana "reapareceram depois de 1989 com toda a f�ria". Em um artigo publicado em 1999, que antecipa algumas quest�es do livro mais recente, o auior chega a uma nova conclus�o: as biotecnologias seriam capazes de conseguir aquilo que os esfor�os sociopol�ticos do passado n�o conseguiram: gerar um novo tipo de ser humano. Tais potencialidades invalidariam o argumento do "fim da hist�ria", pois se o limite para um novo devir era anteriormente imposto pela pr�pria natureza humana, agora esse limite pode ser transgredido e ultrapassado. Sem desdenhar as enormes implica��es politicas e �ticas do seu discurso, mas aceitando a sua "fatalidade" de �ndole f�ustica, Fukuyama enxerga uma poss�vel
vit�ria dos engenheiros gen�ticos precisamente ali onde os �rduos m�todos do reformismo social fracassaram. Substituindo as t�cnicas minuciosas, lentas e potencialmente falhas da domestica��o disciplinar, a engenharia gen�tica seria capaz de efetuar uma reprograma��o precisa e eficaz dos seres humanos: Poderia ser que as ferramentas usadas pelos reformistas sociais do s�culo XX - da socializa��o precoce da;; crian�as e a psican�lise at� a propaganda de agita��o e os campos de trabalho for�ado - foram cruas demais para alterar de maneira efetiva o substrato natural da conduta humana. Em duas gera��es disporemos do conhecimento e da tecnologia que nos permitir� realizar aquiio que os engenheiros sociais n�o conseguiram. Nesse est�gio, teremos encerrado definitivamente a hist�ria humana,, porque teremos abolido os seres humanos enquanto tais. Ent�o come�ar� uma nova hist�ria, para al�m do humano.5 A p�s-evoiu��o � apresentada, assim, como uma nova etapa na longa hist�ria de produ��o humana da sociedade ocidental. Tal processo sempre foi an�nimo, uma cria��o sem criadores, por�m guiada por interesses bem determinados: um impulso biocultural sem sujeito. Ou, como diria Foucault: "uma estrat�gia sem estrategistas". Cabe refletir, ainda, sobre as possibilidades de opor resist�ncia a tais acontecimentos, pois a constru��o de corpos e subjetividades � um processo necessariamente din�mico, e seus efeitos s�o sempre o produto de intensas lutas ocorridas na arena das redes de poder, com diferentes for�as e interesses se enfrentando sem cessar. Paradoxalmente, em uma �poca em que o fim da natureza � decretado, propondo a sua substitui��o pelo laborat�rio tecnocient�fico cujos muros ru�ram para abarcar a Terra inteira, as quest�es cuja origem e eventuais solu��es antes eram consideradas pol�ticas ou sociais, agora passam a ser entendidas como naturais - como � o caso do discurso de Francis Fukuyama. Assim, naturalizadas, tais quest�es se apresentam como sendo cong�nitas ou gen�ticas, inscritas na "ess�ncia" dos corpos e das almas. A receita f�ustica para "corrigir" eventuais "erros", por�m, apela para as interven��es tecnocient�ficas na programa��o da vida. Quando o esp�rito de Prometeu renasceu na Europa, nos in�cios da Era Moderna, tinha a firme inten��o de enterrar de vez os dogmas escol�sticos, desafiando a advert�ncia do ap�stolo Pedro: N�o ousa conhecer. Tema. O clima era de efervesc�ncia e confian�a nas pot�ncias humanas. Contudo, urna certa caixa de Pandora come�ava a se abrir: o Homem j� podia modificar a Natureza; depois, ele iria querer domin�la; mais adiante, n�o conseguiria resistir � tenta��o de substitu�-la. Uma trag�dia de reminisc�ncias f�usticas aguardava no final do caminho, prenunciada por vozes inflamadas como a de Francis Bacon: no s�culo XVII, o fil�sofo brit�nico propunha "atormentar" e "violentar" a natureza com o objetivo de "corrigi-la", de sujeit�-la ao supl�cio das ferramentas para domestic�-la e utiliz�-la em proveito humano. Bacon afirmava, j� naquela �poca, que n�o existia nenhuma diferen�a essencial entre o a��car e o mel. Desafiando as eventuais resist�ncias das leis ancestrais da Natureza, a t�cnica devia agir "como algu�m que fizesse crescer rosas em mar�o e que as uvas nascessem maduras".4 No horizonte da tecnoci�ncia que estava apenas emergindo, a Natureza - considerada, ainda, como uma cria��o divina -deveria e poderia ser submetida aos des�gnios humanos. Quatro s�culos depois, abandonada pelos deuses, ela passa a ser compreendida como uma cria��o dos pr�prios homens; e, como tal, � submetida � corre��o de erros inspirada na l�gica digital. BlOPROGRAMA��O: MOUtl.AGE.Vt ACELERADA DE COITOS E ALMAS
No �ltimo mil�nio constru�mos nossas m�quinas, e neste nos converteremos nelas. N�o precisamos temer porque n�s, do mesmo modo que acontece com qualquer artefato tecnol�gico, as absorveremos em nossos corpos. Rodney Brooks A estirpe do Homo sapiens � muito recente, quase uma novidade no longo percurso do planeta Terra. Seus ancestrais, os primeiros homin�deos com postura ereta, surgiram na �frica h� 4 milh�es de anos; entretanto, os seres cuja anatomia � id�ntica � dos homens contempor�neos possuem uma hist�ria de apenas 100 mil anos. A evolu��o biol�gica foi lavrando o corpo humano, selecionando aquelas muta��es aleat�rias que fariam parte de seu iegado gen�tico e descartando muitas outras, at� chegar �s caracter�sticas que hoje nos definem como esp�cie. O que se conhece como evolu��o cultural, por outro lado, come�ou h� escassos 38 mil anos, com a produ��o incipiente das primeiras ferramentas, pinturas rupestres, rituais f�nebres, instrumentos musicais e outros objetos art�sticos e utilit�rios Daquela �poca at� os dias de hoje, nesse curt�ssimo suspiro temporal - se medido em termos da morosa cronologia geol�gica -, o homem se encarregou de impor suas marcas em todos os cantos do planeta, bem como na sua pr�pria configura��o corporal e subjetiva, operando transforma��es de enorme import�ncia e conseq��ncias incalcul�veis. Gra�as a suas habilidades culturais, o homem se apropriou do planeta Terra. Como lembra Peter Sloterdijk em seu livro Regras para o parque humano, retomando as reflex�es de Martin Heidegger: "o ser humano poderia at� mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser animal (Tiersein) e em seu permanecer animal (Tierbkiben)". A partir desse paradoxal fracasso biol�gico, o ser humano conquistou o mundo brandindo seu arsenal cultural. O ac�mulo de saberes e as diversas t�cnicas ligadas � agricultura e � domestica��o de animais fazem parte desse processo: a evolu��o cultural. A interven��o humana passou a afetar, assim, o desenvolvimento dos mais diversos organismos de outras esp�cies, tanto vegetais como animais. Do mesmo modo, a constru��o de ferramentas para lidar com todos os aspectos do cotidiano, bem como a descoberta de subst�ncias corn poderes curativos, a inven��o de tratamentos terap�uticos e a produ��o de rem�dios para curar ou aliviar doen�as foram originando, tamb�m, uma quantidade de saberes e t�cnicas com fortes influ�ncias na produ��o dos corpos e das subjetividades. Por que, ent�o, os aportes da mais recente tecnoci�ncia s�o apresentados como uma ruptura radical com rela��o ao 130 passado? A teleinform�tica e as biotecnologias n�o representariam apenas mais um degrau nessa trajet�ria milenar tra�ada pela evolu��o cultural? O argumento da continuidade hist�rica � defendido por muitos cientistas das �reas em quest�o, fil�sofos, l�deres pol�ticos e outros articuladores da opini�o p�blica. Eis a s�ntese dessa posi��o, apresentada novamente por Peter Sloterdijk: Se "h�" homem � porque uma tecnologia c fez evoluir a partir do pr�-humano. Ela � a verdadeira produtora cie seres humanos, ou a base sobre a qual eles podem existir. De maneira que os seres humanos n�o se encontram com nada de novo quando se exp�em � pr�pria cria��o e manipula��o, e n�o fazem nada perverso quando se automodificarri tecnologicamente.1' No entanto, s�o v�rios os sinais que sugerem uma verdadeira ruptura no drama humano, desaconselhando uma simples resposta afirmativa para a pergunta formulada
no par�grafo anterior. Pelo contr�rio, com suas potencialidades demi�rgicas, os saberes ligados � teleinform�tica e �s biotecnologias estariam inaugurando algo de fundamentalmente novo na hist�ria do homem, pr�prio da tecnoci�ncia de �ndole f�ustica cuja hegemonia vem se estabelecendo na sociedade ocidental ao longo das �ltimas d�cadas. Desde os prim�rdios da domestica��o agropecu�ria -ou seja, ao longo dos �ltimos 10 mil anos -, as t�cnicas desenvolvidas pelas diversas culturas inclu�ram a transfer�ncia gen�tica entre determinados tipos de animais e de vegetais, visando ao seu melhor aproveitamento na alimenta��o e na constru��o de abrigos. Contudo, at� muito recentemente os artif�cios humanos esbarravam em uma fronteira intranspon�vel: as trocas g�nicas s� podiam ser efetuadas entre organismos de esp�cies intimamente relacionadas, capazes de produzir a hibridiza��o por via sexual. Os meO HOMEM POS-ORG�NICO 131
canismos da evolu��o natural, por sua vez, tamb�m encontravam as mesmas barreiras na dispers�o incidental de genes. Dessa maneira, at� pouco tempo atr�s as possibilidades de realizar combina��es g�nicas entre os diversos organismos da Terra, tanto por meios naturais como artificiais, eram muito limitadas. A rigidez caracter�stica do mundo anal�gico, constitu�do de �tomos freq�entemente "incompat�veis" entre si, restringia as possibilidades de varia��o dentro de limites finitos, discretos e perfeitamente quantific�veis. Agora, por�m, com a perspectiva da digitaliza��o universal e da convers�o de todos os �tomos em bits, isso tamb�m est� mudando. Nos laborat�rios contempor�neos, as informa��es gen�ticas fluem sem constrangimentos de qualquer g�nero, pois a t�cnica do DNA recombi-nante permite efetuar infinitas combina��es: a transmuta��o g�nica pode ser realizada entre representantes de esp�cies totalmente distintas, e inclusive entre organismos animais e vegetais. Assim, s�o fabii�ados camundongos com genes humanos, soja com genes de castanha-do-par�, tabaco com genes de hamster chin�s; enfim: trocas g�nicas que jamais poderiam ocorrer de maneira espont�nea na Natureza, nem mesmo sendo induzidas atrav�s das t�cnicas de inspira��o promet�ica. Ancorados no paradigma da informa��o imaterial e da digitaliza��o universal, os novos saberes constituem um genu�no afastamento com rela��o � hist�ria evolutiva precedente e �s pr�ticas tradicionais de cria��o agropecu�ria. Quanto � esp�cie humana, seu caminho evolutivo tamb�m pode ser retra�ado gra�as �s terapias gen�ticas, que prometem revolucionar a medicina com a preven��o e at� mesmo a "corre��o" dos "erros gen�ticos" detectados nos c�digos dos pacientes. Tais terapias poder�o ser aplicadas tanto em n�vel som�tico (afetando somente o indiv�duo tratado) quanto em n�vel germinativo (operando nas c�lulas sexuais e embrion�rias, habilitando assim a transmiss�o do novo tra�o para toda a descend�ncia do organismo alterado). Por outro lado, a engenharia gen�tica oferece um cat�logo de "tecnologias da alma", surgidas de um campo de saber que hoje recebe aten��o permanente das m�dias: a gen�tica comportamental. Esta disciplina se prop�e a identificar as supostas rela��es existentes entre um determinado gene e um certo tra�o da subjetividade (intelig�ncia, ansiedade, pregui�a, desejo sexual, ambi��o, pessimismo etc), utilizando a estat�stica como m�todo b�sico para estabelecer as correspond�ncias. Seu objetivo final coincide com o da gen�tica m�dica: diagnosticar, prevenir e
eventualmente "ajustar" determinados "erros" inscritos nos c�digos gen�ticos dos indiv�duos. Assim, alterando a informa��o contida no DNA seria poss�vel, por exemplo, transformar um criminoso - potencial ou real - em um "homem honesto". O desafio est� lan�ado: se a propens�o � viol�ncia � controlada pelos genes, por que n�o intervir para corrigi-la? Do mesmo modo, se ela � transmitida geneticamente, por que n�o praticar logo uma terapia em n�vel germinativo, em vez de limitar-se � extirpa��o som�tica no indiv�duo, para assim eliminar o "gene violento" de toda a descend�ncia do sujeito e livrar-se para sempre desse grave problema social? Al�m das trocas e altera��es na informa��o gen�tica, que apontam para a modelagem dos corpos e das subjetivida-des, a tecnoci�ncia contempor�nea tamb�m facilita a inser��o subcut�nea de componentes n�o-org�nicos, hibridizan-do os corpos com materiais inertes. Trata-se do processo que Paul Virilio denominou endocoloniza��o, e que caracteriza a conquista do interior do organismo humano por parte da tecnoci�ncia mais recente: da aparelhagem videosc�pica utilizada para o diagn�stico e o tratamento de diversas doen�as, at� as experi�ncias mais inovadoras O HOMEM P�S-ORC�N1CO 133
de cirurgias sem cortes por meio da inser��o de dispositivos nanotecnol�gicos. A prop�sito disso, em seu livro A bomba inform�tica, Virilio tamb�m detecta um deslocamento do foco dos saberes hegem�nicos, nos �ltimos anos, concordante com a conceitua��o aqui apresentada: a tecnoci�n-cia estaria transferindo seu interesse primordial pelo "exotismo macrof�sico" - que pretendia conquistar os planetas e as gal�xias do cosmos - para um "endotismo microf�sico", que constitui seu foco privilegiado na atualidade e visa a penetrar no espa�o �ntimo do corpo humano a fim de coloniz�lo. Cada vez mais introjetados, transparentes e dilu�dos em trocas �ntimas e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os org�nicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferencia��o, visto que ambos os tipos de elementos compartilham a mesma l�gica da informa��o digital. Assim, hoje s�o criados materiais in�ditos, h�bridos de ambos os mundos, representados pelos microcl�ps com componentes org�nicos e pelos implantes bi�nicos. Estes �ltimos se apresentam como capazes de devolver a vis�o aos cegos e a possibilidade de andar aos parapl�gicos, gra�as � implanta��o cir�rgica de microprocessadores nos c�rebros dos pacientes e outros dispositivos teleinform�ticos ligados aos nervos, aos m�sculos ou a �rg�os espec�ficos. Solu��es semelhantes est�o sendo testadas para tratar de doen�as como a epilepsia e os males de Parkinson e Alzheimer; e, inclusive, de dist�rbios nervosos como a obsess�o compulsiva, a s�ndrome do p�nico e a depress�o. Em seu livro mais recente, The Singularity is Next, o pesquisador Raymond Kurzweil afirma que a evolu��o tecnol�gica logo ser� t�o r�pida e profunda que representar� "uma ruptura no tecido da hist�ria humana". Tal descontinuidade hist�rica ocorrer�, segundo Kurzweil, por causa do apagamento da linha que costumava separar os seres humanos dos dispositivos inform�ticos: ''ela ficara cada vez mais t�nue, � medida que computadores do tamanho das c�lulas - os rtanob�ts - permitam aos cientistas
o desenvolvimento de modelos do c�rebro humano baseados em computadores, al�m do aperfei�oamento das mentes humanas atrav�s de pequenos implantes digitais". Assim, combinando as diversas habilidades dos homens com a velocidade, a precis�o e a capacidade de processamento dos computadores, a intelig�ncia humana poder� ser incrementada: "o c�rebro humano n�o ter� mais um limite estabelecido pela natureza", conclui Kurzweil. Al�m dos implantes de mem�ria artificial, o cientista destaca a possibilidade de introduzir dados no c�rebro atrav�s de canais neurais diretos. Dessa forma, seria poss�vel incrementar a pr�pria capacidade de armazenar informa��es a velocidades inusitadas, deixando obsoletos os �rduos processos de aprendizado tradicionais. Como resultado dessa fus�o entre os �rg�os da mente e os circuitos eletr�nicos, � oferecida uma possibilidade sedutora: a de efetuar um upgrade sistem�tico da alma, a partir da variedade de menus oferecidos no mercado. Ao que parece, com o enriquecimento de seus saberes e a aud�cia de suas experi�ncias pr�ticas, de seus discursos e suas propostas, a atividade humana acabou vencendo o lento e outrora inexor�vel acionar da Natureza. Por causa disso, neste in�cio de mil�nio a humanidade se encontra em uma encruzilhada sem precedentes, tomando decis�es que muito antes s� cabiam aos deuses e, logo depois, �s perip�cias do acaso e das f�rreas leis naturais. Na �poca de Charles Darwin, por exemplo, tal fa�anha parecia inating�vel, corno revela o pr�prio cientista em um trecho do seu livro mais famoso: Na medida em que o homem pode produzir e certamente tem produzido grandes resultados atrav�s de suas formas de sele��o inconscientes e met�dicas, o que a natureza n�o poderia fazer? O homem � capaz de agir apenas sobre caracter�sticas externas e vis�veis; a natureza n�o liga para as apar�ncias... Ela age em qualquer �rg�o interno, em qualquer ind�cio de diferen�a constitucional m�nima, em todo o maquinismo da vida... Como s�o passageiros os desejos e esfor�os do homem! Como � curto o seu tempo! E, conseq�entemente, como ser�o pobres as realiza��es humanas comparadas �s acumuladas pela natureza ao longo de inteiros per�odos geol�gicos.6 Na era da tecnoci�ncia f�ustica, com a perturbadora acelera��o de todos os processos, as realiza��es humanas j� n�o s�o t�o "pobres" como pareciam em pleno per�odo promet�ico. Hoje, com o caminho aberto para a p�s-evo-lu��o de car�ter inform�tico e gen�tico, calcula-se que a "evolu��o tecnol�gica" � dez milh�es de vezes mais veloz do que a "evolu��o biol�gica", de acordo com estimativas publicadas na revista Scientific American. E o futuro se anuncia ainda mais vertiginoso: neste s�culo, segundo o mencionado Raymond Kurzvveil, os avan�os tecnol�gicos da humanidade prometem duplicar a cada dez anos, de maneira exponencial. Nesse ritmo, os velhos mecanismos da Natureza n�o podiam sen�o se tornarem ultrapassados, obsoletos. Na era f�ustica, a atualiza��o tecnocient�-fica dos organismos vivos j� n�o obedecer� - pelo menos n�o exclusivamente - �s ordens arcaicas e vagarosas da evolu��o natura! descrita pelos bi�logos do long�nquo s�culo XIX. O sonho de compatibilizar o par corpo/mente dos homens com o par hardware/software dos computadores come�ou a se realizar nos anos 90, a partir da proposta de criar redes neurais artificiais capazes de imitar eletronicamente o funcionamento do c�rebro. O vocabul�rio da tecnoci�ncia contempor�nea, que entende as transmiss�es en136
PAULA SIBILIA tre os neur�nios humanos como sendo efetuadas por meio de "impulsos eletr�nicos", abriu o caminho para se pensar uma intera��o poss�vel com os aparelhos inform�ticos. Por compartilharem a mesma l�gica e terem como base uma estrutura semelhante, ambas as entidades poderiam se in-terconectar e interagir logicamente, trocando dados e operando de maneira conjunta. � o que j� acontece, de fato, no interior dos "chips �midos". Se somente agora essa intera��o org�nico-eletr�nica est� se realizando nos laborat�rios, j� h� muito tempo que ela est� presente no imagin�rio da fic��o cient�fica: na �ltima d�cada, a id�ia foi recriada em filmes como Johnny Mnemonic, Estranhos prazereseeXistekZ. Ultrapassando os limites da fic��o, todavia, o cientista brit�nico mencionado no cap�tulo anterior, Kevin Warwick, oferece um exemplo perfeito dessa nov�ssima compatibiliza��o entre homens e computadores. Ele pr�prio explica o objetivo das experi�ncias em andamento na Universidade de Reading, baseadas na implanta��o de um microchip em seu bra�o para servir como ponte entre seus nervos e um computador: Captaremos no meu sistema nervoso os sinais f�sicos produzidos por sensa��es como a dor, a raiva, o medo e a excita��o sexual. Depois os devolveremos ao sistema nervoso e observaremos os resultados. Ser� poss�vei recriar a dor, por exemplo? Cremos que sim. Poderemos enviar impulsos eletr�nicos para inocul�-la, como uma esp�cie de anestesia local? Sena muito �til se pud�ssemos inserir um chip nos corpos das pessoas que sofrem de dores constantes, para elimin�-las de forma eletr�nica e dispersar assim os calmantes qu�micos, com todos seus efeitos negativos. Procuraremos tamb�m, enviar sinais de uma pessoa para outra, de um sistema nervoso para outro, atrav�s da Internet, a fim de conhecer os efeitos provocados pelos impulsos alheios. Eu tenho certeza cie que a cria��o eletr�nica de O HOMEM P�S-ORG�NICO 137
estados de �nimos ser� poss�vel em um futuro muito pr�ximo, talvez daqui a dez anos.7 Assim, potencializado pelo uso de um vocabul�rio e de uma ret�rica comuns ao reino biol�gico e ao inform�tico, o homem contempor�neo se torna compat�vel com os computadores. A l�gica digital envolve a ambos e os interco-necta. Para colocar o projeto em perspectiva e examinar as suas descontinuidades com rela��o aos saberes e �s t�cnicas de inspira��o anal�gica, pode ser �til recorrer a um estudo de Hillel Schwartz sobre as transforma��es ocorridas na �rea da fabrica��o de pr�teses ao longo da hist�ria. De acordo com o autor, professor da Universidade de San Diego, a ind�stria de membros artificiais experimentou um forte impulso logo ap�s a guerra civil dos Estados Unidos -no final do s�culo XIX, em pleno desenvolvimento industriai. Nesse per�odo, as pr�teses eram confeccionadas em madeira ou metal. A qualidade das pe�as foi aprimorada consideravelmente durante a Primeira Guerra Mundial, focalizando detalhes decalcados do modelo mec�nico, tais como as articula��es
dos membros e as possibilidades de movimenta��o em sintonia com o resto do corpo. A partir de ent�o, sempre segundo a an�lise de Schwartz, "a ci�ncia ortop�dica assumiria como objetivo priorit�rio a integra��o completa dos membros artificiais e os movimentos neuromusculares". S� mais tarde, j� bem avan�ado o s�culo XX, come�aram a ser implementados "avan�os extraordin�rios na uni�o cir�rgica dos nervos". Hoje tal projeto chegou a contemplar, inclusive, a restaura��o dos sentidos e das fun��es neurais. Assim, enquanto as pr�teses cl�ssicas se inspiravam na met�fora do rob�, a tecnoci�ncia f�ustica de voca��o ontol�gica abandona o modelo mec�nico para assumir de vez a analogia digital e submeter o organismo ao upg raie inform�tico. 138 A integra��o de circuitos eletr�nicos no corpo humano - � maneira de pr�teses e implantes conectados ao organismo para restaurar fun��es danificadas - corresponde � bi�nica, um dos ramos da medicina que gera mais expectativas na atualidade por conta de alguns avan�os surpreendentes registrados nos �ltimos anos e das promessas que reserva para o futuro pr�ximo. A disciplina mereceu um dossier completo na revista Science em fevereiro de 2002, no qual nove especialistas sintetizaram os projetos e as conquistas mais importantes da �rea. Confiantes no ritmo em. que avan�am a miniaturiza��o dos componentes eletr�nicos, a cria��o de materiais biocompat�veis e os conhecimentos sobre gen�tica e engenharia de tecidos, os cientistas acreditam que as pr�teses inform�ticas para diversos fins abandonar�o o terreno puramente experimental e estar�o dispon�veis no mercado j� na pr�xima d�cada. Por causa disso, atualmente mais de 70 companhias biom�dicas est�o investindo centenas de milh�es de d�lares na pesquisa que conduzir� ao desenvolvimento de novas t�cnicas e pr�teses bi�nicas. Por enquanto, um dos acontecimentos mais festejados foi a cria��o da primeira m�o artificial que permite ao portador utilizar os canais nervosos existentes para controlar cinco dedos prof�ticos comandados por um computador. A comunica��o com o dispositivo se efetua por meio de sinais el�tricos emitidos pelos m�scuios e tend�es do usu�rio, permitindo a realiza��o de tarefas complexas como tocar piano e digitar no teclado. A pr�tese inform�tica foi desenvolvida por uma equipe da Universidade de Rutgers (EUA), liderada pelo Prof. William Craeiius, que considera que "as tecnologias bi�nicas podem restaurar quase qualquer fun��o perdida, pelo menos em algum grau". Se a interconex�o entre computadores e corpos � vi�vel, usando uma linguagem comum e operando na mesma l�gica eletr�nica e digital, ent�o tamb�m ser�o poss�veis a intera��o, a troca de dados e a opera��o conjunta entre os dispositivos inform�ticos e os �rg�os corporais. Na Universidade da Calif�rnia, por exemplo, foi desenvolvido um implante do tamanho de um gr�o de arroz: ap�s a inser��o subcut�nea, ele � capaz de operar como intermedi�rio na comunica��o entre os nervos e as mais diversas pe�as eletr�nicas implantadas no organismo, permitindo efetuar todos os processos computacionais no interior do corpo e dispensando a necessidade de fios e pr�teses externas. Nesse projeto de digitaliza��o do humano, corpo e mente se tornam program�veis. Como resume Davi Geiger, pesquisador em intelig�ncia artificial no MIT: "somos simplesmente uma m�quina, um tipo muito especial de m�quina similar a um computador, com programas desenvolvidos ao longo da evolu��o das esp�cies". Extrapolando a met�fora at� implodi-ia, o cientista conclui que n�o existe nenhum processo de informa��o que n�o possa ser processado no computador-homem; a �nica limita��o residiria "no tamanho da mem�ria, do processador e dos programas nele instalados".8 O �nico obst�culo para atingir a compatibilidade absoluta, portanto, nessa perspectiva
de equival�ncia total entre computadores e homens, parece ser o est�gio ainda insuficiente de desenvolvimento tecnol�gico. Sabe-se, entretanto, que a capacidade da aparelhagem inform�tica aumenta de maneira exponencial e suas potencialidades n�o t�m limites: elas s�o, por defini��o, infinitas. "O n�mero de transistores que podemos incluir dentro de um circuito integrado se duplica a cada 18 meses", confirma em depoimento � revista Science o mencionado Prof. Craelius, respons�vel pela inven��o da primeira m�o bi�nica, e prossegue: "nesse ritmo, o processamento para a atividade bi�nica complexa poder� ser implantado no c�rebro ou em qualquer outra parte do organismo daqui a dez anos." Nesse horizonte de universalismo infinitista, pode-se dizer que 140 PAULA SICILIA tudo e todos - todas as coisas e todos os seres vivos - poder�o ingressar na ordem digital. Tudo pode ser convertido em informa��o. Tudo pode ser processado, � medida que se estende o projeto de digitaliza��o dos reinos org�nicos e inorg�nicos. Nos diversos exemplos comentados at� aqui, computadores foram ligados com sucesso a neur�nios animais, bem como ao sistema nervoso humano e a mol�culas de DNA. Outro conjunto de experi�ncias em andamento tem como meta a digitaliza��o da percep��o., indo al�m do benquisto par �udio/visual para penetrar nos mist�rios dos demais sentidos humanos. A digitaliza��o do olhar foi analisada por Paul Virilio em um artigo publicado originalmente no ano de 1988, "A m�quina da vis�o", como sendo o ponto culminante dos processos de automa��o da percep��o e de acelera��o generalizada do mundo contempor�neo. Naquele texto, o autor detectava o surgimento de uma certa ''�ptica ativa", que estava se superpondo e se contrapondo � "�ptica passiva" das lentes foto/cinematogr�ficas tradicionais, prescindindo de no��es cl�ssicas como as de sombreamento e ilumina��o. Ou seja: a velha perspectiva anal�gica estava cedendo o passo � l�gica digital. As imagens inform�ticas s�o compostas de impulsos luminosos (pixels) que o computador processa e calcula de maneira ultrave�oz: corno se fosse "um c�rtex occipital eletr�nico", constatava Virilio. As met�foras anat�mico-tecnol�gicas fluem em ambos os sentidos: o sistema de percep��o visual dos homens, por sua vez, come�a a ser compreendido n�o mais por analogia � camera fotogr�fica tradicional (o velho modelo mec�nico, com seu t�pico funcionamento anal�gico), mas como "uma s�rie de impulsos luminosos e nervosos que nosso c�rebro decodifica rapidamente". Paul Virilio pressagiava, ao con-' cluir o artigo escrito no final dos anos 80, que logo seriam � desenvolvidas diversa^ pr�teses de percep��o assistida por O HOMEM P�S-ORG�MCO 141
computador". Quinze anos depois, vivenciamos um avan�o not�vel da digitaliza��o dos corpos e de sua compatibiliza��o com os dispositivos inform�ticos. Alguns exemplares daquelas pr�teses prenunciadas por Virilio, de fato, j� est�o dispon�veis no mercado, com a promessa de cobrir todo o cat�logo sens�rio do ser humano. Recentemente, por exemplo, uma equipe m�dica dos Estados Unidos divulgou uma experi�ncia de implanta��o de chips microsc�picos no globo ocular de um homem com problemas na retina, na tentativa de reverter a sua cegueira. "Os microchips usados
na cirurgia s�o menores do que a cabe�a de um alfinete e t�m cerca de metade da espessura de uma folha de papel", divulgava a ag�ncia de not�cias Reuters em agosto de 2001. Outros detalhes podem ser reveladores do novo horizonte f�ustico de compatibilidade total e ultrapassagem de limtes: o chip � alimentado por c�lulas solares que convertem a luz em sinais el�tricos, enquanto ajudam a estimular as c�lulas saud�veis que ainda restam na retina. A pe�a implantada foi desenvolvida por uma empresa, a Optobionics Corp., e constitui apenas uma das v�rias experi�ncias ern andamento na �rea. J� foram registradas opera��es bem-sucedidas de recupera��o da vis�o em pacientes que tinham permanecido cegos por mais de 30 anos, por meio de uma complexa aparelhagem inform�tica anexada ao corpo que lembra, mais uma vez, os vatic�nios da fic��o cient�fica; neste caso, o filme At� o fim do mundo (1991), do diretor alem�o Wim Wenders. Do mesmo modo, existem experi�ncias tendentes a restaurar o sentido auditivo em pacientes surdos, tamb�m por meio de pr�teses bi�nicas e implantes eletr�nicos embutidos no corpo. Outros sentidos humanos, que tradicionalmente foram menos privilegiados na cultura ocidental, tamb�m est�o sendo processados pela teleinform�tica. O olfato, por exemplo, ganhou pelo menos um dispositivo espec�fico: o DigiScents, uma tecnologia pioneira na digitaliza��o e transmiss�o de odores que opera junto com o sintetizador de aromas iSmell e o software ScentStream, com a inten��o de incorporar o sentido olfativo ao computador. A digitaliza��o do tato, por outro lado, ati�a as expectativas no promissor mercado do cibersexo, gerando diversos prot�tipos de trajes com sensores e outros artefatos capazes do ativar a estimula��o er�tico-e�etr�nica da pele. Existem experi�ncias, tamb�m, cie videogames que emitem pequenos choques el�tricos e outras rea��es interativas, a fim de acrescentar "realismo" �s aventuras hipermidi�ticas. Uma das fronteiras da sensibilidade humana que parecia mais resistente � digitaliza��o, inclusive, j� come�ou a ser conquistada: a do paladar. Um nov�ssimo aparelho, desenvolvido por pesquisadores da Unicamp/SP e promovido com o apelido de L�ngua Eletr�nica, � capaz de reconhecer um amplo leque de sabores em subst�ncias l�quidas, com uma precis�o mais agu�ada do que os mais bem treinados paladares humanos; de fato, o dispositivo foi elaborado com vistas a desempenhar uma tarefa que exige um alto refinamento das papilas: a dos degustadores de vinhos. Se depender de seus defensores mais entusiastas, a digitaliza��o dos processos org�nicos - bem como a hi-bridiza��o entre corpos humanos e dispositivos digitais -promete ultrapassar muitas outras fronteiras., tornando as previs�es ainda mais ousadas. Rodney Brooks, diretor do Laborat�rio de Intelig�ncia Artificiai do MIT, assim o expressa: A biotecnologia ira avan�ar muito depressa nos pr�ximos anos. Nas experi�ncias de clonagem, por exemplo, hoje o DNA � inserido em uma c�lula atrav�s de um choque el�trico. Parece um filme do Frankenstein! Ta! � o n�vel de sutileza da tecnologia atual. No entanto, depurando o processo poderemos alterar o DNA com precis�o e modificar as propriedades das c�lulas. Primeiro haver� uma alian�a entre o material biol�gico e o sil�cio, mas a gera��o seguinte ser� capaz de manipular completamente o material biol�gico humano. Assim, a distin��o entre o que � um rob� e o que � uma pessoa ir� desaparecer, e come�ar� a verdadeira fus�o entre o homem e a m�quina.9 Quase duzentos anos depois do seu nascimento, inaugurando com toda a pompa o g�nero da fic��o cient�fica, o velho monstro criado na literatura pelo Dr. Frankenstein tamb�m requer um upgrade. Se tivesse que ressuscitar hoje, a criatura imaginada em 1818 por Mary Shelley seria bastante diferente: em vez dos fragmentos de cad�veres mal costurados e do "pouco sutil" choque el�trico que lhe deu o inef�vel sopro vital, a inform�tica e as biotecnologias entrariam em cena. Como constata o cr�tico de arte italiano Roger Malina, ao descrever a metodologia de trabalho dos
engenheiros geneticistas: "assim como os arquitetos criam pr�dios e os artistas criam esculturas, do mesmo modo esses cientistas manipulam e modificam a mat�ria viva".10 Nas m�os dos cientistas-escultores da atualidade, cujas precis�o e assepsia se inspiram, na l�gica digital, as rudezas anal�gicas do per�odo promet�ico s�o claramente superadas. As criaturas produzidas pelos cientistas da era f�ustica iludem com a sua ambig�idade, dificultando a diferencia��o entre o que � "natural" e o que � "artificial". Basta lembrar dos protagonistas de filmes como Blade Runner, Matrix e Intelig�ncia artificial, cuja qualidaden�o-humana � imposs�vel de se determinar a olho nu, ou at� mesmo com a ajuda das ferramentas anal�gicas desenvolvidas pelos saberes promet�icos. As cicatrizes dos "monstros" f�usticos, que poderiam revelar os rastros da interven��o tecnocient�fica, s�o bem mais sutis do que aquelas que delatavam a monstruosa artificialidade daquele ser m�tico inventado no s�culo XIX. Agora elas se tornam impercept�veis, convertendo as criaturas h�bridas em seres menos "monstruosos" do que os originais pr�-tecnologizados. � o que pretende provar Cindy Jackson (www.cindyjackson.com), autora de um livro de sucesso e, tamb�m, do seu pr�prio corpo: "aplicando os princ�pios de beleza que aprendi em meus estudos art�sticos, incluindo regras centen�rias sobre as propor��es faciais e corporais, bem como algumas leis antropol�gicas b�sicas sobre a atra��o humana, elaborei um plano'. O plano de Cindy Jackson contemplava uma s�rie de 38 cirurgias pl�sticas, que resultou em uma transforma��o radical do seu corpo e da sua subjetividade; uma vers�o extrema de uma tend�ncia que est� se popularizando em todo o mundo. No Brasil, curiosamente, esse mercado cresce a um ritmo surpreendente: 20% ao ano, desde 1994. Em 2001 foram realizadas 350 mil cirurgias pl�sticas no territ�rio nacional, n�mero que coloca o pa�s no segundo lugar do ranking mundial da �rea, logo atr�s dos Estados Unidos. Os servi�os de lipoaspira��o - os mais procurados no mercado local - s�o anunciados em revistas e jornais de grande circula��o com propostas de pagamentos divididos em at� 48 parcelas mensais; sem d�vida, trata-se de um procedimento bem afinado com o perfil do "homem endividado" enunciado por Gilles Deleuze, por�m considerado "anti�tico" pelas associa��es m�dicas e outras institui��es caracter�sticas do regime disciplinar. O arsenal da nova tecnoci�ncia oferece o instrumental necess�rio para realizar o t�o desejado sonho de modelar os corpos e as almas, gerando os mais diversos resultados ao gosto do consumidor, Autoproduzir-se e viver eternamente: duas op��es que hoje s�o oferecidas no mercado. Gra�as ao ac�mulo de saberes e t�cnicas, os discursos da tecnoci�ncia f�ustica expulsam a velhice e a morte do neo-para�so humano. Enfraquecidas as restri��es impostas pela velha Natureza, com suas severas leis colocadas em xeque, o sujeito contempor�neo � incitado a gerir seu pr�prio destino, tanto em n�vel individual como de esp�cie. As deriva��es desta proposta s�o, basicamente, duas. De um lado, abre-se o caminho rumo � realiza��o do sonho individualista e narcisista por excel�ncia: o da autocria��o - a proposta, idealizada e perseguida com fervor pelos modernistas, de fazer de si mesmo uma "obra de arte".11 Contudo, os alcances e limites de tais sonhos hoje s�o demarcados, em grande parte, pelas diretrizes do mercado que impelem os sujeitos a se tornarem gestores de si, administrando suas potencialidades a partir das escolhas de produtos e servi�os oferecidos pelas empresas. De outro lado, � ineg�vel a import�ncia desta quest�o em n�vel macrosso-ciai: o rep�anejamento da esp�cie humana, possibilitado pela p�s-evolu��o autodirigida, � um tema
extremamente problem�tico que carrega obscuras conota��es �ticas e pol�ticas. A responsabilidade pela produ��o de corpos e subjeti-vidades da popula��o global parece cair, hoje em dia, nas m�os de uma tecnoci�ncia que opera conforme a l�gica cega do capital, minguando a capacidade de a��o dos organismos p�blicos, das inst�ncias pol�ticas tradicionais e dos Estados-na��o; institui��es, todas elas, que costumavam orquestrar o biopoder caracter�stico das sociedades industriais. Por outro lado, um perigoso fantasma torna a percorrer o mundo: o da eugenia. Os projetos de aprimoramento da esp�cie humana com base no novo arsenal tecnocient�fi-co despertam inquietantes ecos totalit�rios que pareciam j� esquecidos; agora, por�m, eles retornam em uma nova vers�o: globalizada, sem refer�ncias nacionalistas ou raciais expl�citas, e comandada com m�o firme pelas tiranias e alegrias do mercado. A ALQUIMIA DOS GENES E DOS BITS: UMA EUGENIA A GOSTO DO CONSUMIDOR Vejam a obra de Deus: quem pode endireitar o mie Ele fez torto? Eciesiastes 7:13 O pr�ncipe das trevas se retira elegantemente, como um cavnUiciro; mas efe ri antes de sair; Fausto I 'uhti estado fingindo - n�o s� perante os outros mas tamb�m para si mesmo - que poderia criar um mundo novo sem sujar as pr�prias m�os. Marshall Berman Stephen Hawking, o cientista que hoje ocupa na universidade de Cambridge a poltrona que j� pertenceu a Isaac Newton, deflagrou um pequeno esc�ndalo midi.�tico ao declarar que a inform�tica e as biotecnologias "ir�o incrementar a complexidade interna do corpo humano sem precisarmos esperar pela evolu��o biol�gica, que � inexoravelmente lenta". A concord�ncia com as id�ias p�s-evolucio-nistas aqui expostas � total: em vez de aguardarmos centenas de milhares de anos pela fixa��o de uma muta��o aleat�ria, logo ser� poss�vel provocar a altera��o desejada em laborat�rio, que depois ser� transmitida �s novas gera��es como um tra�o pr�prio � esp�cie. "� inevit�vel", sentenciou Hawking com corto laconismo: "daqui a pouco, quando for tecnicamente poss�vel, ser� realizado." Assim, em entrevista coletiva, o cientista comentou a possibilidade de ampliar a intelig�ncia humana com o aumento do tamanho do c�rebro (realizando partos extra-uterinos, por exemplo) e da velocidade de transmiss�o da informa��o entre os neur�nios (por meio de dispositivos eletr�nicos e altera��es. � gen�ticas). "Em oertC sentido, a ra�a humana precisa nies-^ mo melhorar as suas qualidades f�sicas e mentais", admitiu
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o autor da teoria prevalecente sobre a origem do universo, famoso tamb�m por padecer de uma doen�a degenerativa dos nervos que, desde 1985, o condena a viver acoplado a um aparelho inform�tico. O sistema combina uma cadeira de rodas automatizada com um sofisticado computador, atrav�s do qual o f�sico brit�nico se comunica com o mundo. Os pol�micos depoimentos acima citados, de fato, foram emitidos pela voz digitalizada do aparelho que est� permanentemente ligado ao corpo de Hawking: as frases s�o formadas por um sintetizador, que processa as palavras ingressadas lenta e trabalhosamente atrav�s de um teclado especial. Essas circunst�ncias
contaminaram, provavelmente, o conte�do do discurso, por�m talvez ele nem precisasse desse toque adicional para provocar o impacto que acabou causando. A utiliza��o das ferramentas tecnocient�ficas para "melhorar a ra�a humana", sabese, foi um componente importante do programa nazista, com seus projetos de eugenia com vistas a "purificar" a esp�cie em sua base biol�gica, estimulando a propaga��o das caracter�sticas pr�prias aos arianos - considerados "superiores" - e a elimina��o da linhagem dos demais grupos �tnicos, bem como dos doentes mentais e de todos aqueles que sofriam malforma��es f�sicas. Essa ambi��o, colocada em pr�tica e levada aos extremos do horror na Alemanha de Hitler, � outro sintoma do impulso f�ustico que hoje parece renascer, com caracter�sticas renovadas, acompanhando o desenrolar da tecnoci�n-cia bioinform�tica e seus projetos transcendentes. O termo EUGENIA foi cunhado em 1883 por um precursor da estat�stica que, curiosamente, tamb�m era primo de Charles Darwin. Os estudos de Sir Francis Galton sobre os mecanismos da hereditariedade em v�rios pares de g�me-aram-no a concluir que certas caracter�sticas huma-m IO a intelig�ncia, por exemplo - eram transmiss�veis I
por via gen�tica. Gaitem dedicou-se a conceber os m�todos RAPAT""g de "melhorar" a esp�cie humana, com o intuito de criar um ser "superior". Sua id�ia era favorecer a reprodu��o do "bom material" e inibir seu contr�rio., propiciando um aprimoramento gradativo das caracter�sticas da esp�cie. A disciplina cient�fica assim nascida teve uma trajet�ria bastante intensa por�m breve, perdendo toda legitimidade ap�s as experi�ncias nazistas, caie se apropriaram da justificativa cient�fica concedida pela eugenia a um mito j� estabelecido no Ocidente: o da superioridade biol�gica do tipo ariano. Nos alvores do s�culo XXI, em meio a pol�micas midi�ticas, debates acad�micos e perplexidades v�rias, a eugenia parece estar ressurgindo ap�s d�cadas de condena��o e sil�ncio. Trata-se de um gesto tipicamente f�ustico. Como diz Oswald Spengler ao descrever o ripo de homem europeu n�rdico, gerador da "cultura f�ustica", com toda a ret�rica e a �nfase t�pica dos discursos dessa �ndole: Estes homens s�o aut�nticos predadores, cujas almas fortes tentam o imposs�vel. [...] Eles t�m um menosprezo por todas as limita��es temporais e espaciais, colocando o ilimitado e o infinito no centro de seus objetivos poss�veis; subjugam continentes inteiros, envolvem a Terra com as suas cerradas redes de comunica��o e transportes. � essa vontade de dom�nio que transforma literalmente o planeta, atrav�s da for�a da sua energia pr�tica e do poder gigantesco de seus processos t�cnicos.12 Os sonhos eug�n�cos, contudo, n�o s�o urna exclusividade desses dois momentos especialmente "��ustices" da hist�ria ocidental, a Alemanha nazista e a contemporaneidade. Como mostra o filme document�rio Homo sapiens 1900, do diretor sueco Peier Cohen, entre a Primeira Guerra Mundial e a d�cada de 1930 os preceitos eug�n�cos se espalharam pelo planeta e conquistaram a opini�o publica e a O HOMEM P�S-ORG�NiCO 149
credibilidade cient�fica nos pa�ses industrializados do Ocidente. Rapidamente, ganharam um forte apoio popular e passaram a embasar as pol�ticas p�blicas de educa��o e sa�de das diversas na��es. Foi nos Estados Unidos da Am�rica, significativamente, que a doutrina eug�nica encontrou a maior aceita��o e se desenvolveu com mais for�a, tanto nos �mbitos cient�ficos e acad�micos quanto nas m�dias, na sociedade civil e nas institui��es p�blicas. Em 1928, a eugenia constava dos planos de estudo de tr�s quartos das universidades do pa�s. A lei de migra��o promulgada em 1924 tamb�m se baseou em padr�es eug�nicos, a fim de permitir somente o ingresso dos colonos de determinadas proced�ncias e de banir a entrada de todos os imigrantes suspeitos de "inferioridade biol�gica". Em uma sociedade frustrada pelos magros resultados das pol�ticas reformistas implementadas pelo Estado, fatores como os la�os de sangue, a linhagem familiar e a heran�a racial foram se tornando explica��es v�lidas para a inefic�cia das institui��es de confinamento. A administra��o de tais fatores, portanto, prometia solucionar os principais problemas sociais e econ�micos que afligiam a vida p�blica, com a imprescind�vel ajuda dos saberes tecnocient�ficos. Tanto nesse primeiro apogeu nas sociedades industriais do in�cio do s�culo quanto na Alemanha nazista, a reforma eug�nica via-se constrangida pela insufici�ncia dos conhecimentos e das t�cnicas dispon�veis. Contudo, em ambos os per�odos destinaram-se fortes investimentos e, em conseq��ncia, avan�ou-se consideravelmente na pesquisa e no desenvolvimento de procedimentos eug�nicos. Aplicaram-se pol�ticas p�blicas de planejamento reprodutivo, esteriliza��o em massa e, inclusive, segrega��o e elimina��o sistem�tica dos "inadequados", aqueles que amea�avam poluir a pureza gen�tica dos povos civilizados. Ap�s a Segunda Guerra Mundial, no entanto, a eugenia se converteu em um tabu inextricaveimente associado ao nazismo, e foi extirpada em completo sil�ncio da esfera da ci�ncia. Atualmente, as id�ias e propostas com reminisc�ncias eug�nie�s emergem em contextos completamente diferentes; n�o se trata mais, pelo menos abertamente, da "higiene racial" que fermentou na primeira metade do s�culo passado. Em seu mais novo upgrade, a eugenia � apresentada em termos de mercado: agora as manipula��es gen�ticas s�o promovidas em nome da efic�cia econ�mica, do aumento da performance, da otimiza��o da qualidade e da rela��o Custo-benef�cio. E uma eugenia � venda, com todo seu marketing dirigido aos consumidores dos mercados globalizados. Quando a biologia molecular e a engenharia gen�tica come�aram a despontar, os cientistas procuraram desfazer qualquer associa��o entre as novas disciplinas e os malfadados projetos hist�ricos de reforma eug�nica da humanidade. No entanto, tal esfor�o foi in�til: j� na d�cada de 1990, os avan�os velozes e surpreendentes das novas propostas tecnocient��icas motivaram uma prolifera��o de debates em torno do assunto. Pois os novos saberes parecem trazer consigo a possibilidade de realiza��o plena dos antigos projetos eug�nicos, abrindo um caminho que conduz n�o s� � "melhoria" mas � gera��o de elementos vivos. De fato, os cientistas que operam com a t�cnica de DNA recombinan-te, manipulando informa��es gen�ticas nos laborat�rios de firmas privadas e nos institutos de pesquisa de todo o planeta, realizam "escolhas eug�nicas" de maneira rotineira quando decidem quais genes alterar, suprimir ou inserir nos c�digos de diversos organismos animais e vegetais. A esp�cie humana
tamb�m est� na lista, com promessas de neg�cios milion�rios para as empresas que saibam dar os primeiros passos da sua reconfigura��o eug�nica. Os problemas que a quest�o apresenta s�o evidentes, e possuem enorme relev�ncia �tica e pol�tica. Quem poderia
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