Meus pés descalços interrompem a harmonia da enxurrada que corre com força pra lugar algum. O frio da chuva sobre meus ombros não mais intimida. Intimidam-me, sim, as palavras de meu velho pai. “Viva com intensidade e morra com dignidade” (ou algo parecido), dizia quando não tinha nada inteligente a dizer. Repetia sempre. Nunca entendi, nunca refleti sobre isto. Frase em língua estranha é o que é. Penso em algo que me tire de mim. Penso no infinito, mas não compreendo as estrelas. Penso no átomo, mas não os vejo ou os posso tocar. Como queria ser como Oscar e Mário que enxergavam sem olhar e teciam teias mortiferamente atraentes com fios de grafite. Quanto mais investigo a mim, mais me vejo sendo instigado por este frio ácido da noite alta e a mim basta-me suportá-lo. Parece pouco porque é pouco. Recrio em minha mente as histórias que nunca ouvi. Parecem-se com algo que já foi escrito, com certeza. Desconheço, mas parecem-se. Lembranças intensas golpeiam-me pelas costas como um cachorrinho que pede a atenção do dono. Não tenho cachorros, não devo atenção a ninguém a não ser a mim mesmo e me desinteressa tanto o que não tenho a citar! E cães não golpeiam as costas de seus donos. Há por acaso alguém perdendo o centro por aqui? Ah! Doce chuva, transcendental cachoeira de esferas de vidro! Sejam bem vindas biroscas do céu de infância natimorta! Caiam sobre esta boca escancarada, seca e de mau hálito! Nem ao menos paladar para degustar o brilho dos carros adestrados a esgueirarem-se em nado sincronizado pelo leito da cidade me resta. Os postes se sucedem um após outro e a enxurrada, teimosa, enruga-me os pés. Penso em esquistossomose, mas um aborto espontâneo expulsa desta alogia qualquer música que não seja ‘progressivo’. Não calço luvas, não tenho dedos, não caibo em anéis. Não tenho medo, sorte, dor ou prazeres. Não sinto saudade, não tenho paciência, não suporto a multidão de homens desvairados a se chocarem loucamente dentro dos meus raros, cansados e pálidos neurônios. Não sei escrever, não sei pintar, não sei ficar estático sobre um monturo de papéis ao vento, nunca empinei uma pipa e nunca toquei outras mãos. Quando vasculho a gaveta do criado só encontro páginas amarelas lotadas de nada. Não há um traço infantil sequer, uma poesia, um panfleto de loja, nada, nada. Cartas? Nunca recebi de ninguém porque não há ninguém que saiba meu endereço ou nome. Tento desenhar sobre a água suja um nome qualquer que me vier à cabeça para adotá-lo e anunciá-lo aos ventos. Escrevo ‘alfarrábio’ em caligrafia tosca sem ter qualquer noção do que signifique esta palavra. Procuro bolsos em meu casaco, mas que casaco? Não inventaram ainda camisetas de propaganda política com bolsos. Menos mal, pois o que se colocaria em artefato assim? Não entendo a política de Israel, não sei o que é neoliberalismo, não leio gibis nem jornais. Constato por eliminação que não sei ler e jamais leria qualquer coisa que não fosse escrita por mim. Existo! – grito em minha mente insana – existo (como quem profere um verso alheio, crédulo, como se seu fosse)! Mostram-se inúteis todas as tentativas de refletir-me no espelho das águas sujas e rápidas, mais sujas e mais rápidas que eu. Estas pelo menos têm pigmentos de mil origens que lhe conferem um tom deprimente, mas ainda assim tom. E eu que nem pele ou ossos tenho? E quanto a mim que sequer desvio o rumo das mesmas águas sobre meus pés? Pela última vez grito com todas as forças de meu gélido coração: Existo! Mas... a verdade muda. Muda, surda e cega impõe-me toneladas de um silêncio irônico, um oco eco vencedor. Andasse eu por todas as marés de todos os mares em busca ao menos de um Rodin de mim, um Monet, um Kandinsky que seja, jamais chegaria a outra conclusão diferente desta: Não existo. Não mais. Penso, logo existo? Rio-me em tom abstrato aplaudindo uma última e desesperada tentativa de engano. Nem pensar penso. Estaria então certo o filósofo? Que
filósofo? Não sei que filósofo trôpego, mumificado ou esquecido dissera tal absurdo. Quimera! Resolvo por fim erguer a cabeça, abrir corajosamente os olhos e fitar em busca de exatidão o céu negro e randomicamente angustiante da noite chuvosa que com certeza encobre as tais estrelas que cantam por aí uns tais poetas. Vejo, sem espanto, o teto do quarto, iluminado, dia claro. Não tenho anéis, mas aperto minhas próprias mãos com força. Sinto-as! Estão molhadas de sangue ainda quente, subproduto de um assassínio. Foge-me pela boca um sorriso, afago em meus próprios poucos cabelos os louros da vitória. Coloco meu uniforme, escovo os dentes, alimento-me e escovo novamente os dentes para rever no espelho do banheiro refletida a imagem de um homem-criança, um jovem senhor que passou pelo túnel de fogo e sobreviveu. Na fábrica apita o sinal. Sim, parafraseia uma canção antiga tão bem entoada por Matogrosso e Rabello. Por detrás de mim evaporam-se as últimas gotas vermelhas de um... algo. Bem vindo, homem, bem vindo à vida!