M77z 044 - Uma De Paz - Tony Manhattan.pdf

  • Uploaded by: João Rocha Labrego
  • 0
  • 0
  • April 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View M77z 044 - Uma De Paz - Tony Manhattan.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 18,048
  • Pages: 98
—1 —

SÉRIE: 77Z VOLUME: 44 TÍTULO: UMA DE PAZ AUTOR: TONY MANHATTAN ILUSTRAÇÃO DA CAPA:BENÍCIO EDITORA: MONTERREY ANO DA PUBLICAÇÃO: PREÇO DA PUBLICAÇÃO: CR$ 3,50 PÁGINAS: 128

SCANS E TRATAMENTO: RÔMULO RANGEL [email protected] DISPONIBILIZAÇÃO BOLSILIVRO-CLUB.BLOGSPOT.COM.BR [email protected]

—2 —

apresenta

Copyright © Editora Monterrey Ltda.

—3 —

—4 —

UMA DE PAZ TONY MANHATTAN

Capa de BENICIO Tradução de GIASONE REBUÁ

—5 —

—6 —

CAPÍTULO PRIMEIRO Nadaria apenas cem metros... O carro se afastava de Tanger em alta velocidade, a despeito de rodar por uma estrada secundária, de terra, em péssimo estado de conservação. O homem ao volante apenas evitava os buracos e as pedras maiores, mais interessado em divisar o detalhe que lhe haviam comunicado. De fato, pouco depois viu o pisca-pisca emitindo a sequência de um lampejo branco seguido de dois vermelhos, a intervalos iguais, à direita da estrada. Diminuiu a velocidade, metendo o carro na campina para alcançar o ponto de onde partiam os lampejos. Pouco depois parava o carro, descia e encarava a dupla, um homem e uma mulher, que o aguardava. — Espero ter sido pontual — sorriu. Havia receio na expressão da dupla. O homem era baixo, moreno, de nariz volumoso; a mulher, esbelta, porém de curvas sinuosas, longa cabeleira preta, tão preta quanto seus olhos. Foi ela quem disse, com receio também na voz: — Terá a bondade de se identificar... — Oh, sim, claro! Perdão. Imagino que esse “teco-teco” foi batizado com o nome “Pomba da Paz”, não? A dupla sorriu e a mulher declarou com desenvoltura: — Exato. Estamos prontos para decolar. —7 —

— Ótimo. Os três se encaminharam para o pequeno avião, deixando o carro abandonado, e alguém surgiu na porta do “teco-teco”, acenando-lhes acolhedoramente com a mão. — Diga ao piloto que podemos levantar voo — disse a mulher ao homem que os recebera acolhedoramente. Os três embarcaram e o avião decolou ligeiro, com elegante glissagem em direção ao Mediterrâneo. — Espera dificuldades, “Estambul-3”? — indagou a mulher, dirigindo-se ao importante passageiro. — Nenhuma. Dentro de quarenta minutos saltarei. Só espero não lhes ter criado complicações. — Absolutamente — interveio o homem do nariz volumoso. — Chamamos a isso simplesmente uma colaboração. Seu para-quedas está preparado. Uma vez que não exigiu armas... — Desnecessário — cortou “Estambul-3”, com um sorriso. — Pelo menos agora. Digamos que a operação está começando e as dificuldades surgirão depois, quando penetrarmos a Ásia. — Sim, claro. Ainda assim... — Daqui a Istambul será, digamos, mera viagem de recreio. Então, descarregaremos o navio e começará a parte difícil da missão. — Por que não esperar o navio em Istambul? — indagou a mulher. — Nossa rede naquela cidade tem meios adequados para... “receber” navios. Digamos que minha incumbência consiste em conduzir o barco a porto seguro, ao “porto ideal”. Desse modo realizaremos as manobras com absoluta discrição. Ela sorriu. — Eu lhe desejo sorte. —8 —

— Obrigado. — Diga, “Estambul-3”: o navio já transpôs o Estreito de Gibraltar? — Transpôs o estreito na tarde de hoje e já se encontra a caminho do ponto em que devo abordá-lo. Trata-se de um local cheio de penhascos e enseadas naturais, ótimo para a operação. — Podemos ajudá-lo em algo mais? — Oh, não. Eu necessitava apenas de um “teco-teco” e um para-quedas. Reitero meus agradecimentos pela colaboração. Ela sorriu, acendendo um cigarro, “Estambul-3” estudou seu mapa e o homem narigudo manteve-se imóvel como estátua. De repente, “Estambul-3” ergueu a cabeça, contemplou demoradamente a morena e sorriu, dizendo: — Permite-me dizer que é muito bonita? — Oh... Vejo que está calmo, despreocupado. O homem só se detém para analisar uma mulher quando se sente à vontade. — Sim, estou tranquilo, mas saberia apreciar seus encantos ainda que na pior das situações. — Obrigada. “Estambul-3” consultou seu relógio de pulso, digital. — Bem, creio que dispomos de apenas mais alguns minutos — comentou. — Infelizmente, talvez jamais nos tornemos a ver... — É, talvez... Porém sempre cabe a esperança de que, assim como a rede da CIA em Tanger está ajudando a rede da CIA em Istambul, de um momento para outro ocorra justamente o contrário e nós nos encontremos de novo. — Uma grande perspectiva — sorriu “Estambul-3”. — Podem ajudar-me a colocar esta coisa?

—9 —

A dupla ajudou-o a envergar o para-quedas e o narigudo abriu a portinhola do “teco-teco”, declarando, após receber um sinal do piloto: — Tem trinta segundos para saltar. — E apenas trinta minutos para dominar a tripulação do barco, assumir o comando e conduzi-lo ao lugar certo — brincou “Estambul-3”. — Adeus! Saltou. Não via nada embaixo, porém sabia ter saltado de altitude correta, sobre o Mediterrâneo, devendo cair cm um ponto que lhe permitiria aguardar a passagem do barco, minutos depois, para subir a bordo e... Tornou a puxar a fivela. Caía vertiginosamente e o dispositivo que abria o para-quedas teimava em não funcionar. Continuou insistindo, mas começou a girar descontroladamente, sentindo um vácuo terrível no estômago. Da janelinha do “teco-teco”, a morena comentou, com um suspiro: — Os homens são teimosos: não se convencem da impossibilidade de voar sem asas... O narigudo sorriu, fazendo que seu nariz enorme se achatasse. — Bom trabalho, Tarika — elogiou. — Ridiculamente fácil, Zheyad. Qualquer criança consegue avariar o mecanismo dos para-quedas. Ainda bem que é noite escura, porque eu detestaria ver os sapatos daquele homem saírem de seus pés, girando como satélites adoidados ao seu redor, e, depois, sua “aterrissagem” forçada. — E... — Fez o narigudo, pensativo. Tarika sorriu ao sentar-se num tamborete basculante, atrás do piloto, que se interessou: — 10 —

— Tudo bem? — Bem. Imagino que deu um bom mergulho para a eternidade. Agora, tratemos do resto, Baugier. A transceptora está ligada? — Claro. — Estabeleça contato com o submarino. — Um momento — discordou o piloto. — Que mais sabemos sobre esse navio? — Tudo de que necessitamos: viaja como velho e inofensivo cargueiro. É um barco pequeno, sem defesa alguma e com apenas oito tripulantes. Claro que esses homens oferecerão resistência, porém estamos bem preparados. Além disso, contamos com o fator surpresa. — Sim, é verdade. Vou entrar em contato com o submarino para fornecer o rumo do barco, embora ele não deva estar muito afastado da presa. Deve ter sido fácil segui-la dentro da noite. — Certo. Estabeleça o contato, Baugier. *** — Atenção, Baugier, atenção. O piloto apertou a alavanca. — Fala Baugier. Na escuta, Laprade. Fale. — Vocês viram a operação abordagem? — Sobrevoamos o local. Tudo bem? — Cem por cento. Estamos submergindo, já com a carga a bordo. O navio e seus tripulantes foram fazer companhia ao seu querido “Estambul-3...” — E aos peixinhos do mar... — Ironizou Baugier, ordenando: — Guinar de noventa graus e rumar para a “base”. Corto.

— 11 —

Retirou os fones dos ouvidos e se reclinou no assento, para falar enquanto seu copiloto dirigia o “teco-teco”: — Terminou, Tarika. — Maravilhoso, não, Baugier? — Sem dúvida. O honorável ficará contente... Não só nos apoderamos de uma carga importante como também desarticulamos completamente a rede da CIA em Tanger. — E que sabemos sobre a carga? — indagou Tarika. Baugier encolheu os ombros. — Não fiz perguntas ao honorável. Quando ele não dá explicações, é prudente não fazer perguntas. Além disso, minha curiosidade a respeito é somente relativa. Não tardaremos a saber de que se trata. Quer me acender um cigarro? A jovem e formosa morena acendeu dois cigarros, colocando um entre os lábios do piloto Zheyad, que tragou com prazer. Retomara os comandos das mãos do copiloto Berlano. Após pensar, fumando devagar, Tarika murmurou: — Estou pensando que a CIA não se conformará facilmente, Baugier. — E daí? — Bem... Não sei. Eu só estava pensando... — Não nos poderá encontrar, Tarika. Seus agentes ficarão desnorteados. É uma das vantagens de se ter um chefe inteligente. — Lembre-se de que cm nossa profissão não há idiotas, Baugier — disse a morena, agora em voz alta. — Que ninguém se esqueça disso. — Que pretende insinuar? — Não estou insinuando, mas lembrando que não devemos superestimar nossa inteligência, imaginando o resto do mundo constituído por débeis mentais; só isso. — 12 —

Baugier arqueou as sobrancelhas, parecendo levar mais a sério as ponderações de Tarika.

— 13 —

CAPÍTULO SEGUNDO A tara do pintor improvisado... Tudo era paz naquele bucólico recanto do jardim. E a visão jamais poderia ser melhor: ela, inteiramente nua, em pose de Diana Caçadora, no gramado verdejante. Ele, diante de um cavalete, empunhando palheta e pincel, devidamente vestido de pintor estilo francês, de guarda-pó e boina, dava pinceladas na tela, deliciando-se ao mesmo tempo com os contornos do modelo e com o murmúrio das ondas que rebentavam docemente e se espraiavam em Pensacola Beach. Ali, naquele lugar maravilhoso, Horace Young Kirkpatrik, o playboy mais famoso do mundo, possuía um pequeno bangalô que, visto de longe, dava a impressão de simples refúgio de troglodita: uma combinação de pedras naturais, troncos rústicos e folhas tropicais. Parecia algo improvisado, porém em seu interior havia de tudo para conforto até do mais exigente homem mundano. — Que foi, Lana? — interessou-se o pintor, ouvindo-a gemer. — Estou exausta! Ainda falta muito, Horace? — Bem... Um pouco... — Já se passaram cinco dias! — protestou Lana. — O verdadeiro artista não tem noção de tempo, querida. — 14 —

— Mas os modelos sentem o tempo nas carnes. Não poderíamos dar uma paradinha? — Dentro de quinze minutos. — Você não passa de um Drácula! Kirkpatrik sorriu e seu olhar cinza metálico percorreu demoradamente os contornos da ruiva espetacular. Ele ia prosseguir dando expansão à sua genialidade artística quando uma luz âmbar, discretamente oculta na grama, piscou três vezes. Deixando o pincel e a palheta sobre a mesinha auxiliar, ele sorriu e declarou carinhosamente: — Você ganhou uma vez mais, Lana. Vou buscar algo de beber. — Seja lá o que for, mas que contenha muito gelo, Horace. Kirkpatrik lhe atirou um beijinho com as pontas dos dedos e dirigiu-se para a cabana troglodita, indo ter à pequena, mas luxuosa biblioteca, cuja porta fechou cuidadosamente antes de pegar o fone. — Sim? — Horace? É Eddy. Seu secretário particular e homem da mais alta confiança. — Diga, Eddy. — Recebi algo de Longley. É uma fita magnética. Valendo-me de sua autorização, ouvi a gravação e me convenci de que sua volta para Pittsburgh é urgentíssima. — Ah... — Quer saber do assunto? — Oh, não, não. Ouvirei a gravação pessoalmente ao chegar, não importando a que horas da noite. Espere por mim, Eddy. Alguma outra novidade? — Não, isso é tudo, Horace. — Está bem. Então, até logo. — 15 —

Desligou e sua fisionomia sofreu espantosa transfiguração, tornando-se pétrea. Seus olhos se tornaram ainda mais gélidos. Após sacudir a cabeça afirmativamente, “77Z” preparou dois uísques com gelo e saiu, constatando que Lana era uma garota desobediente. Não atendendo à sua determinação de só ver o quadro depois de terminado, lá estava ela, ainda inteiramente nua, de pé diante do cavalete, gesticulando de modo estranho. — Lana... — murmurou, deixando os copos na mesinha auxiliar. Ela virou-se e seus olhos castanhos cintilaram. — Você... você é um farsante! — soltou. — Não pretenderá convencer-me de que este... este aborto seja eu! Qualquer chimpanzé teria feito melhor! — Mas... — murmurou o playboy, com cara de desvalido. Ela recuou alguns passos, parecendo temer que ele a tocasse. — Diga a verdade, Horace: que pretendia de mim? — Por favor, Lana, é minha primeira obra de arte e... — Obra de arte?! — cortou Lana, furiosa. — Você é um embusteiro, um aproveitador, um...! Sua vocação repentina para a pintura foi um recurso sórdido para me ver, durante horas e dias, como jamais teria visto um segundo sequer: nua em pelo! Seu indecente! Tarado! Horace Young Kirkpatrik estava simplesmente boquiaberto, os olhos arregalados de espanto e as mãos, trêmulas, fazendo tilintarem os cubos de gelo nos copos que ele recolhera da mesinha num gesto apaziguador. — Lana, eu lhe pedi que não olhasse antes de... — Antes de quê? De que estivesse concluída a sua obra mestra de chantagem?! — 16 —

— Você não entende de arte — gemeu Kirkpatrik, repondo os copos na mesinha. — £ preciso ter olhos de artista para ver... — Qualquer um vê qualquer coisa nesses borrões, menos um retrato de mulher bonita, e eu sou bonita, muito bonita, ouviu? E tenho um corpinho lindo. Não sou isso aí! Quando você me falou de sua repentina vocação para retratista, afirmando que eu era o modelo mais perfeito que um pintor conseguiria neste mundo, eu, com a minha estúpida vaidade feminina, caí na sua conversa e me prestei ao ridículo de bancar a Diana Caçadora, nua em pelo. Jamais me ocorreria estar diante de um chantagista vulgar que usasse a arte para dar vasão à sua tara! Tarado! — Lana, você está sendo injusta, está... irreconhecível! — protestou Kirkpatrik, aparentemente à beira de um dos seus ataques histéricos de playboy. — Pois você não está nada irreconhecível — disse ela, correndo para recolher suas roupas de cima do banco de troncos. — Está bem reconhecível: é um tarado. Usava apenas um biquíni e um vestido leve vermelho japonês, com fecho-éclair. Vestiu-se ligeiro, calçou as botinhas de meio cano pretas, pegou a bolsa de couro preto, hippie, e saiu correndo para o interessante portão rústico em paus-de-mato. — Lana! — chamou Kirkpatrik, sem entusiasmo, sentando-se no banco de troncos para saborear o uísque com gelo. Afinal, tinha sido ótimo livrar-se dela tão facilmente, pois sua nova missão para a CIA implicava em ação imediata. ***

— 17 —

Um tímido raio de sol atravessou as persianas, apósconseguir varar o smog de Pittsburgh, cujas fumegantes chaminés de siderúrgicas estavam muito ativas. Isolado em sua residência na colina, com a cidade do aço a seus pés, Horace Young Kirkpatrik acendeu um cigarro e contemplou a porta, à espera de a ver abrir-se. Eddy entrou. — Você não dormiu, Horace? — Não. Há muito trabalho, Eddy. — Quando partimos? — Não se precipite — sorriu “77Z”. — Inicialmente, estarei sozinho nessa viagem a Tanger, via Paris. — Via Paris?! Bem... Devo reservar passagens de avião? — Não, Eddy, irei no meu avião particular. Necessito de todo o tempo e não posso depender de horários. Porém isso é secundário em face do que ocorreu em Tanger. Você ouviu a fita e sabe que nossa rede nessa cidade foi arrasada. — E... — Fez Eddy, pensativo. — Houve outras consequências, é claro, porém só me ocuparei disso em momento oportuno. Agora, a prioridade é a criação de uma nova rede em Tanger. Uma rede fantasma, inexistente, porém à qual emprestarei características de vida, movimento, ação. Eddy parecia não compreender bem. — Isso exige tempo, Horace. Não será fácil... — Ocorrerá em tempo mínimo — interrompeu-o Kirkpatrik. — De momento, daremos à rede uma cabeça visível... até certo ponto, é claro. Seus tentáculos serão oportunamente estendidos, se necessário. Aqui estão suas instruções. Partiremos juntos, mas em Paris seguirei para Tanger num avião da “Air France” e você irá para Roma. Eddy recebeu os papéis, metendo-os no bolso. — 18 —

— Vou examiná-los enquanto atravessarmos o Atlântico — disse. — Bem pensado. E eu lhe prestarei os esclarecimentos de que necessite. — Que sabe desse Dagobert Horrall, citado na fita magnética? — Nada, Eddy. Porém receberei, em Paris, uma foto desse homem e informações detalhadas. Ao que parece, é o único suspeito com que contamos, o que não é pouco, para começar. Agora, ordene ao meu piloto que disponha o jato para o voo a Paris. Para dentro de — consultou o relógio de pulso, digital — duas boras. Devemos estar voando às dez e quinze.

— 19 —

CAPÍTULO TERCEIRO Onde ninguém é quem diz ser... Era um chinês grande, forte, de idade indefinível, completamente inexpressivo. Acabara de entrar numa cabina telefônica de “La Pagode”, um dos restaurantes chineses de Tanger, situado “na rue de la Liberté”, pertíssimo de “le Grand Socco”, o lugar tão animado e barulhento, de dia, quanto silente e misterioso durante a noite. Discara e esperava. — Alô! Quero falar com o honorável Wong-Fu — disse, em chinês. — Receio que será impossível... — É importante e urgente. — Quem é você? — Eu me chamo Thi-Siung. O silêncio, no outro extremo da linha, indicava hesitação do interlocutor, que acabou dizendo: — Espere um pouco. — Está bem — concordou Thi-Siung. Aguardou, contemplando a esbelta garçonete chinesa que trazia os pratos à mesa de canto por ele escolhida para seu jantar. — Alô. Aqui fala Wong-Fu. Não tenho o prazer de conhecê-lo, Thi-Siung. — 20 —

— Pois espero que nos fiquemos conhecendo muito depressa, Wong-Fu — respondeu prontamente Thi-Siung. — Confio em que não tenha esquecido certas particularidades de sua vida. Na verdade, desejamos sinceramente que o sucedido corresponda apenas a uma pequena demora de sua parte. — Não entendo. — Está seguindo mau caminho, Wong-Fu. Em primeiro lugar, devo felicitá-lo pelo êxito de sua operação, realizada com a máxima “limpeza”; em segundo, recomendar que se apresse em entregar-nos a carga. Ou havia pensado em coisa diferente, Wong-Fu? — Não sei que carga... — Desculpe a interrupção, Wong-Fu — cortou ThiSiung. — Sabe perfeitamente. No entanto, embora estejamos falando em nosso idioma, sempre haverá o perigo da nossa conversa ser ouvida. Além disso, não há o que discutir. Sejamos positivos: Você continua ligado a nós, a menos que deseje correr grandes riscos. — Escute... — E tem mais, Wong-Fu — tornou a interrompê-lo ThiSiung, desta vez com voz dura. — Refiro-me a algo que representa grande ameaça para você. Maior do que possa imaginar, Wong-Fu: a CIA está se reorganizando em Tanger. Sabia? — Isso... isso é mentira! — Velho ditado de nossa velha China diz que não se deve andar de olhos fechados. Há muitas implicações nesse adágio, Wong-Fu. Repito que os americanos estão se reorganizando aqui, com forças redobradas. Tenho provas, que posso lhe mostrar como demonstração de que jogamos jogo limpo. Naturalmente, não nos interessa que a CIA e abata sobre você... — 21 —

— Eu gostaria de ter essa prova, Thi-Siung. — Localize um tal Antonio Morandi. Se ainda não chegou a Tanger, chegará de um momento para outro. Provavelmente já tem suíte reservada em algum hotel da cidade. Trata-se da peça importante que a CIA enviou para reorganizar sua rede aqui. Vem de Roma, antes dos outros que devem chegar, menos importantes, é claro, dos quais cuidaremos no devido tempo. — Má notícia — murmurou Wong-Fu. Agora, diga: que pretende de mim, concretamente? — A mercadoria. Ou já não trabalha para nós? — Suponhamos que não. — Uma suposição bastante azarenta para você. De que poderíamos acusá-lo, segundo imagina? — De nada, Thi-Siung. Quando era bom colaborador, não faz muito tempo, caí na desgraça da chefia e desde então se evaporaram as notícias. — Nós, os espiões, podemos estar aparentemente inativos, Wong-Fu, e você não ignora. Porém, ao reiniciarmos nossas operações, voltamos a ser os mesmos de sempre, caso não queiramos arcar com as consequências. Thi-Siung fez ligeira pausa, cogitando sobre o que diria, simplesmente para abalar os nervos de Wong-Fu. Voltou a falar em estilo erudito, como é costume entre os importantes chineses: — Serei cristalino: caso não se declare sob as ordens de Yen-Chia, chefe dos Serviços Secretos da China Nacionalista, correrá dois riscos. O primeiro está em minha presença aqui; o segundo, aquele que se depreende da presença da CIA. Além disso, não me seria nada difícil desfazer-me de você simplesmente delatando-o à turma de Morandi. Eles cairiam em cima de você. — Não fará isso! — 22 —

— Caso não me obrigue... — Quero pensar — murmurou Wong-Fu, com voz contida. — Claro que você pertence ao que se referiu... — E você também. Por conseguinte, somos aliados. Concorda? — Eu fui abandonado, Thi-Siung. — Não diga isso! — fingiu espantar-se Thi-Siung. — Nós simplesmente concedemos ao nosso valioso Wong-Fu um descanso temporário. Afinal, todos, até os espias, necessitam de repouso. — Um descanso que poderia ter durado anos caso eu não realizasse uma operação importante — rosnou WongFu. — Certo? — Talvez. — Está bem. Não me desconcertarei com o seu cinismo. Vocês me deixam de lado, me esquecem e, quando obtenho algo importante, reclamam a minha volta. Vou estudar a proposta, Thi-Siung. — Faça-o, Wong-Fu, mas não se alongue, porque corremos o risco da CIA localizá-lo antes do que está previsto. — Previsto?! Eu não esperava isso de... — Em nosso tipo de trabalho, temos de ser previdentes, não é verdade, meu nobre colega? — Onde lhe poderei dar a minha resposta, Thi-Siung? — Em lugar algum, Wong-Fu. Eu e somente eu estabelecerei os contatos entre nós. — Que teme? — Uma pergunta desnecessária, Wong-Fu — sorriu Thi-Siung. — Talvez imagine que me matando solucionará o problema e não é assim. Pelo contrário, os problemas se multiplicarão em verdadeira reação em cadeia. Assim,

— 23 —

permita-me continuar oculto, de modo a lhe poupar tantos problemas. — Muito prudente... — ironizou Wong-Fu. — Está voltando a falar a linguagem preferida em nossos serviços, Wong-Fu. Eu lhe telefonarei de novo. Thi-Siung desligou e sorriu, ao fazer um levantamento visual das iguarias à sua espera, que incluíam, entre outras coisas, as incomparáveis sopas de nadadeira de tubarão e salada de brotinhos de bambu. Como resistir?! *** O impacto do telefonema estava retratado no rosto de Wong-Fu, que pensava ativamente na nova situação, hesitando entre revelar ou não aos seus colaboradores o que estava ocorrendo. Concluiu que a revelação poderia criar temores e causar uma debandada, com o que ele ficaria sozinho, sem a menor possibilidade de escapar. O melhor seria dizer apenas meiaverdade, pois seria impossível silenciar. — Bem, — fez, arqueando as sobrancelhas delgadas. — As coisas se complicaram, porém ainda não sei até que ponto. O telefonema foi de um confidente. — De que se trata? — interessou-se muito Baugier. — Da CIA. A resposta foi uma bomba, especialmente para Tarika, que se mexeu nervosamente na cadeira, olhando para Baugier. Lembrou-se do que dissera ao seu colega no “tecoteco”: o resto do mundo não é constituído por débeis mentais. — De qualquer modo, ainda não é alarmante — prosseguiu Wong-Fu. — A delação foi muito oportuna. A — 24 —

CIA decidiu reorganizar-se em Tanger e o homem incumbido disso chegou ou está para chegar de Roma. É preciso localizá-lo e... é óbvio, evitar que comece a trabalhar, ou que continue trabalhando, caso já tenha iniciado a reorganização de sua rede. — Quem deu a informação? — quis saber Tarika. — É pessoa de confiança — disse Wong-Fu. evasivamente. — Como eu já disse, o trabalho consiste em localizar o homem da CIA, que se chama Morandi. E ganhar tempo, é claro. Só necessitamos de tempo. Baugier alisou o queixo. — Caso esse Morandi já tenha chegado, por certo se instalou em alguma parte — disse. — Em todo caso, podemos armar vigilância no aeroporto, sem deixar de investigar se já chegou. Além disso, devemos, simultaneamente, buscar indícios dos possíveis colaboradores de Morandi que já se encontrem em Tanger. — Equacionou bem o trabalho — aprovou Wong-Fu. — Enquanto isso, acelerarei o negócio que temos em mãos. Não devemos esquecer que nossa posição é a mais forte e, portanto, devemos registrar o caso CIA como pequeno incidente que eliminaremos sem maiores dificuldades. Comecem a trabalhar agora mesmo, enquanto mobilizo meus recursos para obter dinheiro rapidamente. Ninguém deverá impacientar-se ou ficar nervoso. De acordo? Seus colaboradores assentiram com a cabeça. — Vamos dividir-nos, ou trabalhar em grupo? — indagou a morena Tarika. Todos olharam para Wong-Fu e o sino-americano sorriu. — Será melhor se dividirem — decidiu. — Baugier e Berlano cuidarão do aeroporto e das vias marítimas; Laprade, Tarika e Zheyad investigarão os hotéis ou — 25 —

quaisquer outras partes nas quais possa instalar-se um recém-chegado. Creio que os homens da CIA ainda não dispõem de residência própria, visto não ser prudentemente utilizável a que foi deixada por seus antecessores. — São apenas nove horas — disse Baugier. — Berlano e eu começaremos imediatamente pelo aeroporto. Ainda chegarão três voos da Europa esta noite. — Ótimo — aprovou Wong-Fu. Os quatro homens saíram, mas Tarika permaneceu na sala com o chefe, que a olhou nos olhos. — Também seria oportuno indagar em hotéis escusos... — disse Wong-Fu, com malícia. Ela fingiu não entender a insinuação, indagando: — Bastará eliminá-lo, ou será melhor capturá-lo vivo? — O mais inteligente será capturá-lo vivo para ser interrogado, porém tudo dependerá dos riscos implícitos. Fica a seu critério, Tarika. — Está bem, Wong-Fu. Irei às casas de concessão — retribuiu. Wong-Fu acusou o impacto, mas sorriu à moda chinesa: frio. *** Eram quase doze e meia da noite, quando Tarika entrou numa cabina telefônica e discou rápido. — Sim? — atendeu o próprio Wong-Fu. — Já tenho — disse ela, empolgada. — Ótimo. Se necessita de ajuda para acabar com ele, posso... — Eu me expressei mal, Wong-Fu — interrompeu-o Tarika. — Antonio Morandi ainda não chegou a Tanger, porém descobri que tem uma suíte reservada no hôtel “Les — 26 —

Almohades”, em Avenue d’Espagne. Está, portanto, localizado e tudo será uma questão de espera. A reserva foi feita de Roma, porém não se sabe quando chegará. Tomara que seja em breve... — Tomara — repetiu Wong-Fu, sorridente. — Estabeleceremos forte vigilância. De início... — Fiz algo melhor, honorável Wong-Fu — cortou Tarika. — Arranjei duas maletas e me hospedei no “Les Almohades’’ como sendo a italiana Carla Varetta. Será tuna vigilância calma, cômoda e cordial: Morandi terá excelente recepção da tentadora Carla... O sino-americano deu uma risadinha. De fato, Tarika era uma morena tentadora. Até ele, cem por cento interessado em “negócios”, já havia notado. — Excelente idéia. Talvez fosse conveniente Berlano ou Laprade também se alojarem no hotel para lhe dar cobertura. — Não considero necessário, honorável. Claro que não imagino Morandi como um homem ingênuo, porém não creio, igualmente, que possa antever a surpresa que lhe reservo. Por outro lado, tenho outra idéia: colocarei um microfone indiscreto cm sua suíte para descobrir que homens entram em contato com ele. Descoberto isso, Morandi perderá a utilidade e acabarei com ele. — Aprovado. Darei a notícia a Baugier, recomendandolhe que continue a vigilância no aeroporto. Possivelmente Morandi será recebido por alguém. Você será avisada assim que o americano desembarcar. — Estarei esperando, honorável. — Bom trabalho, Tarika. Ela desligou, saiu da cabina e foi à recepção do hotel. Ali estavam suas maletas, com um boy mouro à sua espera

— 27 —

para levá-la à sua suíte. O recepcionista lhe estendeu a chave. Nesse instante alguém entrou no “Les Almohades”. Um sujeito agigantado, louro, desgrenhado, todo de branco e camisa azul turquesa, enxugando o rosto com um lenço enorme, da mesma cor. Parecia extremamente exausto, chateado, ao estender o braço para receber a chave. O recepcionista esqueceu por completo Tarika, para atender ao ilustre hospede recém-chegado, naquela manhã, de Paris: ao playboy multimilionário Horace Young Kirkpatrik, que honrava com a sua presença o “Les Almohades”. — Chato! — foi a primeira declaração do playboy. — Acho que desta vez a brincadeira não deu certo. — Inacreditável, monsieur Kirkpatrik! — ei clamou o recepcionista, servil, esfregando a mãos. — Se confiar em mim, talvez eu lhe posso sugerir alguns... “refrigérios” para um homem que já conhece tudo que há de bom e melhor. — Não, não... — negou Kirkpatrik, continuando a enxugar o rosto. — Obrigado, mas não sabe? Eu me sinto muito só. Não suporto a soli dão. Acho que não aguentarei a espera de meus amigos. A verdade é que não sei andar sozinho pelo mundo. Tudo me assusta. Caminhei com um autômato pela praia. É um espetáculo maravilhoso, mas somente quando se tem companhia — olhou de soslaio para Tarika, que não se impacientava. — Mas estou tão acostumado a te gente comigo que, se entrar no mar sozinho, morrerei afogado. Necessito do apoio dos demais. — Outra olhadela de soslaio para a morena. — Terrível! Resolverei depressa o problema do safai e chamarei todos os meus amigos. Eles me imaginam em Honolulu — sorriu estupidamente. Terão grande surpresa quando receberem

— 28 —

meus telegramas de Tanger, informando que estou aqui, com um safari organizado para eles. — Sim, será uma grande surpresa — confirmou o recepcionista, como um capacho. — Porém eu gostaria de lhe ser útil enquanto não tem início o safari, monsieur Kirkpatrik. O playboy lhe sorriu inexpressivamente e só então encarou Tarika, em cujos lábios bailava um sorriso desdenhoso, de superioridade. — Oh! Creio que estamos sendo deselegantes com mademoiselle... — Signorina — corrigiu Tarika. — Sou italiana. Ia pedir a este cavalheiro que nos apresentasse, signore Kirkpatrik? — Bem... — Não há inconveniente. Sou Carla Varetta. Com sua licença, subirei para a minha suíte. Kirkpatrik pigarreou como um garoto tímido diante da primeira conquista. — Signorina Varetta... acaba de me ocorrer algo... — balbuciou. — Operou-se um milagre! Já não me sinto só como antes... — Estou exausta, signore Kirkpatrik. Acabo de chegar e necessito de repouso. — Lamentável! Posso confiar em que nos veremos amanhã? — É bem provável, pois, apesar de maravilhoso, o “Les Almohades” não é precisamente um hotel grande. — Não me referi a uma casualidade, mas a um compromisso — protestou Kirkpatrik. — Quer levar-me à praia e banhar-se sem se sentir sozinho? — ironizou Tarika.

— 29 —

— Parece-me que tem mau conceito de mim Carla. Por que não me dá uma oportunidade par demonstrar que sou um pouco melhor, para mi conhecer... — Conhecer? Suas andanças estão cm toda as revistas mundanas. Além disso, acaba de dize que está organizando um safari e pretende chamar seus amiguinhos de farras, de modo que não pretendo atrapalhar seus planos. Boa noite. — Espere! — exclamou o playboy, súplice. — Nem tudo o que afirmam esses jornalistas mentirosos é verdade. Desejo convencê-la, Carla. — Talvez amanhã, signore Kirkpatrik. — Horace — corrigiu o playboy. — Pode me chamar Horace. — Vou procurá-la. Juro que vou. Ela sorriu. — Costumo ir à piscina bem cedo. A água está mais fria e há pouca gente. Certas coisas não podem ser partilhadas entre muitos. — Maravilhoso! Começamos a coincidir em pontos de vista! — Então, procure não dormir demais... Até amanhã, signore Kirkpatrik. — Horace. — Até amanhã, Horace. Tarika meteu-se num dos elevadores e Kirkpatrik voltou-se para o recepcionista, comentando: — Não tive sorte com ela! Vou ao bar me encher de uísque! Ah... Que sabe dessa bonita morena? É linda, não acha? — Lindíssima, monsieur Kirkpatrik. — Porém acaba de chegar e ainda não pude descobrir nada a seu respeito. — Sabe? as mulheres lindas são o meu fraco. — Tomarei a liberdade de avisá-lo assim que a veja pela manhã. — 30 —

— Obrigado, amigo. — Oh, que é isso, monsieur Kirkpatrik! Não há de quê! Será apenas mais um serviço para o nosso melhor e mais distinto cliente, aquele cuja presença eleva o nosso pobre hotel à categoria dos melhores do mundo. Kirkpatrik lhe dirigiu um sorriso besta e foi ao bar do hotel, pedindo uma garrafa de uísque. Escolheu a mesa mais em evidência, junto à qual havia original tina com uma planta tropical, entregando-se à bebida. Todos veriam que o infeliz playboy, a despeito de seus milhões, buscava consolo no álcool. Um estúpido. Estavam longe de supor que ele já se transformara em verdadeiro Androide e, de saída, descobrira algo interessante: Carla Varetta não era italiana e tampouco francesa. Carla era moura. Porém sua falsa personalidade não chegava ser um indício importante, visto ser grande o m mero dos que aportavam a Tanger usando nome e nacionalidades supostos, envolvidos nos mais variados negócios, nem todos limpos, naturalmente. Esteve cerca de uma hora no bar, aparentemente entorpecido pelo álcool, cuja maior parte t vera o cuidado de despejar na areia absorvem da tina com planta tropical. Subiu à sua suíte após cambalear vergonhosamente e acenar d igual para igual ao recepcionista, que se mostro preocupadíssimo com a sua bebedeira, ajudando-a entrar no elevador e apertar o botão. Tirou o paletó e a camisa e foi à varanda, com vistas para a longa praia mediterrânea. As praias atlânticas e as Grutas de Hércules estavam for de seu alcance visual. Olhou para a varanda contígua, que estava à escuras, solitária. Sorriu.

— 31 —

Tornou a entrar, desceu a cortina de palheta e se despiu para um banho. Pretendia dormir algumas horas naquela noite.

— 32 —

CAPÍTULO QUARTO Eles beberam juntos, em harmonia... Após receber o telefonema de Tarika, o sino-americano Wong-Fu pensou longamente e apertou um botão em sua mesa. Seu criado, vestido de árabe, entrou silenciosamente. — Senhor? — Vamos sair, Nafi. Dentro de cinco minutos, estarei na garagem. — Sim, senhor. Nafi se retirou e Wong-Fu vestiu o paletó branco, saindo quase atrás do mestiço. Pouco depois, seu “Mercedes” preto parava diante dele. — Para onde, senhor? — indagou Nafi. — Para a Ville Ancienne. Quero ficar junto às muralhas do Palácio do Sultão. — Sim, senhor. O carro partiu e Wong-Fu acendeu enorme charuto, meditando sobre sua incursão ao perigoso e infecto “Petit Socco”, lugar cheio de ruelas e temido até pelos nativos. Terminava o charuto, quando Nafi parou o carro e comunicou, impassível: — Chegamos, senhor. Wong-Fu jogou fora o charuto e desceu do carro. — Espere-me aqui — ordenou ao criado chofer. — 33 —

— Não necessitará de mim, senhor? — estranhou Nafi. O sino-americano olhou ao redor e murmurou: — Creio que não. Espere. Meteu-se por uma ruela formada por degraus, descendo a silenciosa Kaba até o “Petit Socco”, olhando sem interesse para as luzes das portas, muito fracas, indicativas de que, por trás delas, via “bocas de fumo”, os lugares de perdição onde se fuma ópio a preço de banana. Caminhou pelo labirinto como perfeito conhecedor do terreno e parou diante de uma porta, apertando o botão da campainha. A porta se abriu e ele entrou com grande naturalidade, não se deixando impressionar pelo quadro deprimente: casais devassos, jovens fumando naguileh, estrangeiros estirados, em catres, inteiramente entregues ao “quefe” de entorpecentes. Uma chinesa de idade indefinível, vestindo um fú chinês, isto é, uma espécie de pijama de cetim negro, arqueou as finas sobrancelhas ao ver Wong-Fu se aproximar. Expressou, surpresa: — Você em minha casa, Wong-Fu?! — Necessito de sua ajuda, Coral. — Compreendo. Entre... Um ocidental estranharia o convite, porém ele era sinoamericano e não se alterou, dando alguns passos até situarse fora do trajeto de uma cortina que se moveu dividindo em dois o compartimento daquele misto de “boca de fumo” e prostíbulo. Os chineses criam novos aposentos e reservados, em suas casas, com esse simples expediente. Coral saiu andando, seguida por ele, passando diante de várias portas, a maioria abertas e deixando ver os mais obscenos e contrastantes espetáculos do sexo e toxicomania. Chegaram a um pátio interno com várias saídas, que por diversa vezes tinham servido para “salvar as — 34 —

aparências’ livrando os clientes de vexames nas poucas ocasiões em que a Polícia havia decidido trabalhar. Atravessado o pátio, entraram em um pequeno gabinete no qual havia apenas, além da pequena mesa e um barzinho, dezenas de almofadões espalhados pelo chão. — Sente-se, Wong-Fu — convidou Coral. — Suponho que não veio repetir o falso “ou ai ni” ou mesmo “I love you” que me disse certa feita eu San Francisco, Califórnia. Wong-Fu umedeceu os lábios grossos. — Não, Coral. Isso pertence ao passado. Pen sei que você tivesse esquecido... — A mulher, por mais chinesa que seja, jamais esquece um homem que lhe tenha declarado amor, embora suas palavras tenham sido falsas. Contudo, não há rancor, Wong-Fu. Nossos caminhos se separaram e talvez tenha sido melhor. Agora precisa de mim e isso me alegra. Quero provar o que disse: não guardo rancor. — Obrigado, Coral. Você é compreensiva. Eu... Como não pode ignorar, escolhi um caminho perigoso, tendo preferido afastar de mim as pessoas que poderiam ter sofrido por minha causa. — Continua um espião? — Sim. — Ainda trabalha para Chiang-Kai-Shek? Wong-Fu sacudiu a cabeça negativamente. — Não mais — murmurou. — Abandonaram-me quando necessitava deles. — Entendo. Que deseja? — Seria melhor falarmos primeiro... — Direto ao assunto, Wong-Fu — cortou a chinesa. — Você mesmo disse que isso ficou no passado. Ele franziu atesta, mas foi explícito: — 35 —

— Quero...que você elimine um homem. — Está bem. Como se chama? — Thi-Siung, ou, pelo menos, diz ser esse o seu nome. É o que lhe posso adiantar. Contudo, ele chegou a Tanger há pouco e não pode andar longe dos bairros “discretos”. Indubitavelmente, um chinês recém-chegado a Tanger não poderá furtar-se de comer no “La Pagode”. Ele, por certo, considera-se desconhecido aqui e, se eu fosse procurá-lo, começaria por esse restaurante. — Está bem, Wong-Fu. Acharei esse homem. — Não faz outras perguntas? — Não. — Porém insisto em esclarecer que, depois de me abandonarem, os homens de Chiang-Kai-Shek exigem de mim algo que não estou disposto a entregar. — Não é justo... — De fato. Agora, Coral, falemos de compensações ... A chinesa se levantou, foi ao barzinho, serviu uísque e tomou a sentar-se, entregando um copo a Wong-Fu. — Ainda gosta dessa bebida inglesa? — É universal, Coral. Gosto muito. Olhou-a nos olhos e murmurou, muito sério, o brinde do ritual dos chineses quando bebem juntos: — Kan-pei. — Kan-pei. Beberam cerimoniosamente e Wong-Fu murmurou: — E quanto à compensação, Coral? — Já foi dada: bebemos juntos, em harmonia. após alguns anos sem nos vermos. — Não posso concordar que... — Por favor, Wong-Fu. Ela sorriu e Wong-Fu acabou concordando, mas, após hesitar um pouco, sondou: — 36 —

— Talvez algum dia nos vejamos de novo e... — Venha quando precise de mim — cortou Coral. — Oh, eu não me referia a isso. Virei excluir, amente para... — Poupe-se ao esforço, Wong-Fu. Com a nossa idade as criaturas devem ter senso de propriedade. Não podemos recuar no tempo em busca do que ficou para trás. Assim que Thi-Siung seja eliminado, eu lhe telefonarei ou lhe darei a informação por qualquer outro meio. — Obrigado, Coral, eu... Ela se levantou do almofadão e ele fez o mesmo, compreendendo que não devia insistir em futuras visitas despropositadas. Cumprimentaram-se apenas como velhos amigos e o sino-americano saiu. Na rua, Wong-Fu sentiu-se feliz. De um lado, Antonio Morandi, o figurão da CIA, já estava localizado; de outro, Thi-Siung, talvez o mais perigoso dos dois, estava com os minutos contados, Subiu a escadaria da silenciosa Kaba e pouco de pois entrou no “Mercedes”, ordenando, sorri' dente: — Para casa, Nafi. O carrão partiu do labirinto lindeiro ao Palácio do Sultão de Tanger. *** Conforme se propusera, Horace Young Kirkpatrik despertou quando o céu passava de escuro a azul, à primeira claridade do amanhecer. Levantou-se em plenas condições de atuar como “Androide” ou “77Z”, o frio agente internacional da CIA cujos chefões por vezes chegavam a supor um autômato em razão de suas atuações sobre-humanas. — 37 —

Vestiu calças e suéter de gola alta, pretos, e, caminhando como um felino, saiu à varanda, observando a da suíte vizinha, inteiramente sombria. Sorriu. Saltar a mureta que separava as varandas foi quase um simples gesto. Munindo-se do equipamento especial que trazia no bolso da veste negra. Trabalhou sem dificuldade, abrindo a porta envidraçada. Entrou e olhou ao redor. Uma de suas propriedades fantásticas sempre foi enxergar no escuro, como o melhor dos nictálopes. Sorriu de novo. Aproximou-se de uma das paredes mais longas, na qual havia, como adorno, um pequeno florão em forma de lírio, tão do agrado dos árabes. Retirou-o da parede e, movendose nas pontas dos pés descalços, saiu à varanda e fechou a porta envidraçada. Pouco depois, tornava a entrar em sua própria suíte, indo diretamente ao banheiro, onde já havia disposto uma pequena câmara escura portátil. Acendeu a luz vermelha da câmara escura, abriu o florão e retirou dele um filme, entregando-se ao trabalho de revelar a película. O florão era uma máquina fotográfica de microfilme, magistralmente disfarçada! Trabalhou ligeiro com os reveladores e deixou o filme em água pura, saindo à sala para fumar. Assim que terminou o cigarro entrou no banheiro e tornou a sair com o negativo, passando a observá-lo em um visor especial. Sacudiu a cabeça afirmativamente. Conforme esperava, ali estavam diversos instantâneos da falsa Carla Varetta, em diversas posições, na suíte reservada de Roma para Antonio Morandi. Em uma delas Carla estava abaixada, colocando algo sob uma poltrona. — 38 —

“77Z” sorriu amplamente. Um microfone indiscreto. Satisfeito com a confirmação de suas suspeitas, destruiu o negativo, mergulhando-o num produto químico especial, o qual despejou no lavabo, abrindo a torneira. Depois, voltou para a sala e refestelou-se na poltrona, fechando os olhos como se pretendesse cochilar. Tudo estava devidamente previsto por seu cérebro superior. Até o telefonema que lhe deram naquele instante. Deixou a campainha tocar bastante, antes de atender com a voz tomada, como quem é arrancado de profundo sono. — Alô!!! — Monsieur Kirkpatrik? Aqui é Pierre, da recepção. Conforme... — Que houve?! Fogo no hotel?! — Não, não é isso, monsieur. Eu lhe prometi telefonar avisando... — Vá para o inferno! — Monsieur! Mademoiselle Carla Varetta já se encontra na piscina. Eu lhe prometi... — Pois eu já disse: vá para o inferno! Estou dormindo! Desligou e, com uma risadinha, aproximou-se do janelão para, sem ser visto, observar Carla Varetta na piscina do “Les Almohades”. Lá estava ela, com o mínimo tolerável pela Lei em matéria de biquíni, simplesmente escultural, estendida numa vistosa toalha no gramado em que se encontrava a piscina. Apesar de acostumado a ver corpos maravilhosos, Kirkpatrik reconheceu estar vendo algo sensacional. Pena que o cérebro estragasse o corpo... Esperou até que ela, após dar uns mergulhos e se enxugar na toalha, vestisse a saída e se encaminhasse para a entrada lateral do hotel. Rápido, vestiu moderno calção de — 39 —

banho, uma camisa de pano de toalha, ambos brancos, calçou sandálias japonesas, desgrenhou os cabelos louros e saiu da suíte, metendo-se no elevador. Chegou à porta lateral justamente quando Carla entrava e quase se chocaram de peito. — Oh! Perdão, mademoiselle... Carla! — Ao que tudo indica, dormiu mais que a cama... — zombou a falsa italiana. — Sou um desastrado, um dorminhoco, um...! Na verdade, não acreditei que você pudesse levantar-se e descer tão cedo. — É o mal de não se acreditar no próximo. — Não é isso... Carla, eu... — Por favor, signore Kirkpatrik, preciso subir e... — Oh, não, não me faça isso, Carla! Podia voltar à piscina. Tenho uma idéia melhor: almoçaremos juntos. — Oh, nada disso, monsieur Kirkpatrik. Todos começam com um almoço informal, mas logo passam ao lanche, ao jantar e a uma ceia providencial, continuando assim até chegarem à única coisa em que estão verdadeiramente interessados. — Como pode pensar uma coisa dessas de mim! — quase gemeu o playboy, visivelmente ofendido. — Não é especificamente do senhor, mas do bicho homem. É o bicho mais perigoso e interesseiro que já veio a este mundo. Kirkpatrik fez a mais desconsolada das caras e murmurou: — Que estúpido! Não poderia almoçar nem jantar com você, porque já tenho compromissos. Assuntos de negócios. Horrível! Sabe, eu detesto falar de dinheiro, firmar contratos, comprar indústrias ... Detesto!

— 40 —

— Um sofrimento ao qual só estão sujeitos os homens que de há muito perderam a conta de sua fortuna — disse Carla, mordaz. — Normalmente, as pessoas comuns adoram falar dessas coisas; quando mais não seja, de dinheiro. Quando estão recebendo, é lógico. Ele ficou aparvalhado, como não tendo entendido uma só palavra, e Carla Varetta desejou, com uma risadinha maliciosa: — Aproveite bastante suas refeições com figurões, signore Kirkpatrik. E, antes que ele pudesse impedir, meteu-se no elevador. O playboy olhou em redor como quem busca apoio e o recepcionista do hotel se aproximou, ainda um pouco desconcertado pela repulsa que sofrera por telefone. — Em que posso ajudá-lo, monsieur Kirkpatrik? — Ah...? Oh, é você. — Monsieur, eu só lhe telefonei porquê... — Por favor, não prossiga. Eu sou o culpado. Bebi demais à noite, para sufocar a solidão em que me sinto, e quando bebo demais acordo de péssimo humor. Sei que você não mereceu. — Não tem importância, monsieur Kirkpatrik. Posso servi-lo em algo? — Sim, por favor. Uma genebra. Pura. Só isso acaba com as minhas ressacas. O recepcionista arqueou as sobrancelhas, mas deslizou pelo hall como se andasse de patins, voltando num instante com uma bandeja. Genebra dinamarquesa em garrafa de barro vidrado e uma taça. Serviu. Kirkpatrik sorveu nada menos que três taças de genebra e o milagre se operou diante dos olhos do recepcionista, que os arregalou de espanto.

— 41 —

— Agora, um mergulho na piscina e depois um bom uísque escocês. Não é uma boa receita, amigo Pierre? — Excelente, monsieur Kirkpatrik! — apressou-se a concordar o recepcionista. — Vejo que entende dessas coisas. Caminhando à vontade, desempenado, inteiramente livre da suposta ressaca, o playboy internacional se encaminhou para o gramado, entregando-se à mais espantosa ginástica ioga antes do mergulho. Pierre, espantado com a assombrosa musculatura do playboy, sacudiu a cabeça e murmurou, buscando uma justificativa para o que via: — Les millionares americains sont contme ça... *** De volta à sua suíte, sozinha, Carla se aborrecia bastante. Tinha no ouvido direito um “egoís-3” especial que lhe permitia ouvir tudo na suíte reservada para Antonio Morandi, o figurão da espionagem incumbido de reorganizar a rede da CIA em Tanger. As horas transcorreram chatíssimas para ela, sem que nada acontecesse, porém, as onze e meia ela se retesou na cama, atenta ao que começara a ouvir. Primeiro, o ruído da fechadura, depois alguns passos e comentários: — Coloque as malas nos devidos lugares, Oqba. — Sim, monsieur. — Segundo fomos informados, monsieur Morandi chegará esta tarde ou amanhã bem cedo. — Não lhe parece um hóspede um pouco estranho, monsieur? — Talvez um pouco mais exigente que os demais, porém nós, deste hotel, devemos estar preparados para tudo, — 42 —

Oqba. Jamais conhecemos perfeitamente os empresários que nos honram com a sua preferência. Ao que parece, monsieur Morandi lida com milhões de dólares como nós gastamos centavos de franco... — Dólares? Porém seu nome é italiano, monsieur. — Há muitos italianos nos Estados Unidos, Oqba. Tantos que se considera Nova Iorque a segunda cidade italiana, depois de Roma. — É espantoso, monsieur! — Verídico, Oqba. Allons. Saíram, ouviu-se o ruído da fechadura e depois os passos no corredor, seguidos do barulho do elevador. Carla tirou o “egoísta” do ouvido e ficou pensativa. Pelo visto, estava em condições de exercer uma vigilância mais segura, mais tranquila e mais eficiente. O diabo era aquele playboy americano, o qual, por certo, não desistiria de assediá-la, atrapalhando os seus passos. Queria estar inteiramente livre para agir. Meteu-se num banho de chuveiro. Envolta na toalha, pegou o fone e discou. — Sim? — Sou eu, Nafi. Quero falar com Wong-Fu. — Um momento, por favor, mademoiselle Tarika. Wong-Fu atendeu prontamente: — Fale, Tarika. — Chegará esta tarde ou amanhã bem cedo. Sua bagagem já está no hotel. Caso não chegue esta tarde, talvez eu me arrisque a revistar as suas malas. De qualquer forma, tudo se encontra sob controle. — Uma grande notícia, Tarika. Nossa parte também marcha satisfatoriamente. — Está bem, Wong-Fu. Por favor, tente descobrir ligeiro a quem mais devo eliminar... depois de Morandi. — 43 —

— Precisa de ajuda? — Por enquanto, não. Prefiro agir sozinha. Telefonarei, caso haja alguma novidade.

— 44 —

CAPÍTULO QUINTO O perigo do círculo de fogo... Fora um dia lento, abafado, para a belíssima Tarika. Morandi não chegara naquela tarde, não se devendo esperar que o homem destacado pela CIA para Tanger surgisse antes do dia seguinte. Portanto, à hora do jantar, Tarika vestiu-se segundo a mais atualizada moda italiana e desceu ao restaurante do “Les Almohades” com a idéia de, após a refeição, ouvir um pouco de música popular bem executada pela orquestra do hotel, bebericar um conhaque ou coisa parecida, certa de que o chato playboy Kirkpatrik não a importunaria, pois devia estar jantando com empresários internacionais. Foi o que fez e não se arrependeu, porque o restaurante estava lotado de gente simpática, aparentemente inofensiva, como boa parte dos que circulam por Tanger, muitos entregues aos mais sórdidos negócios. Este particular não interessava a Tarika, bastando que todos fossem simpáticos e, principalmente, que o playboy americano não lhe estragasse aquela noite agradável. Horas maravilhosas, pontilhadas de música alegre e flertes ocasionais com bonitões hospedados no “Les Almohades”. Porém, como até as coisas agradáveis acabam cansando, Tarika decidiu subir e meter-se na cama. Afinal,

— 45 —

Morandi chegaria às primeiras horas da manhã seguinte e ela devia estar em plena forma. Subiu, abriu a porta da suíte e, quando pôs o dedo no interruptor, a ordem ecoou seca: — Não acenda a luz. Tarika estremeceu, esforçando-se para ver quem falara. Acostumando os olhos à penumbra conseguiu distinguir o homem sentado na poltrona, de cara para ela. Era um árabe, vestido no estilo de sua raça. — Quem é você? — indagou com voz firme. — Aproxime-se e sente-se diante de mim. Procure não me incomodar com movimentos invulgares ... Tarika arrastou um tamborete e sentou-se diante do árabe, que perguntou: — Acha que podemos conversar tranquilamente? — Por que não? Se vamos apenas conversar... Porém eu gostaria de saber com quem falo. — Que importam os nomes? Sou Moulay BenMohammed. — De fato, o nome não significa nada para mira. — Eu também ignoro o seu, mas não me darei ao trabalho de perguntar. Trata-se de assunto mais importante do que meras apresentações. — Pode chamar-me Tarika. — Está bem, Tarika. Iremos diretamente ao assunto. Esta automática não é, em princípio, mais que uma precaução necessária. Graças a esta frase, ela, forçando a vista, conseguiu ver a pistola empunhada pelo árabe e sentiu frio na boca do estômago. Ele prosseguiu: — Talvez lhe pareça inverossímil, porém sei mais que você sobre Wong-Fu. Muito mais, Tarika.

— 46 —

— Verdadeiramente inverossímil — sorriu Tarika, cujos dentes alvos se destacaram na penumbra. — Que diferença faz? — Muita. Há quanto tempo se conhecem? — Creio que... há um ano. — Muita atividade? — Não... — Porém a última operação foi importante, não? — Talvez — murmurou Tarika, cautelosa. O árabe, que usava barbicha e óculos escuros, deu uma risadinha. — São inúteis quaisquer evasivas — asseverou. — Conheço de sobra essa operação, pois, de outro modo, não estaria aqui para lhe falar. Vejo que conhece o sinoamericano Wong-Fu há bem pouco tempo e lhe fornecerei boas informações a seu respeito. Ele foi agente dos Serviços Secretos da China Nacionalista de Chiang-Kai-Shek. Exercia tal atividade em San Francisco, Califórnia, Estados Unidos. Alguma vez colaborou com esses serviços, Tarika? — Não vejo interesse algum em tudo isso... — Calma — cortou o árabe. — Como deve saber, com a admissão da China de Mao nas Nações Unidas houve reação de muitos setores, especialmente dos chineses de Formosa, os quais se veem obrigados a ir abandonando posições diante da avalanche de países que estabelecem relações diplomáticas e comerciais com Pequim. A China Vermelha está reconhecida no mundo inteiro e muitos consulados de Formosa vêm fechando a; portas; seus diplomatas, quando não abandonam os países, mantêm atividades meramente simbólicas. — Uma lição de política que não lhe solicitei, Moulay — declarou Tarika, com atrevimento. Ele deu outra risadinha. — 47 —

— Tem cabelo na venta, hem? Mas continuemos. Wong-Fu caiu em desagrado nos Estados Unidos e teve de abandonar o país. Os homens de Chiang-Kai-Shek, para os quais ele estivera trabalhando, resolveram esquecê-lo, abandonando-o à sua sorte. — E agora ele trabalha por conta própria. — Simples maneira de dizer, Tarika. Os chineses não lhe permitem esse luxo. — Wong-Fu é independente — discordou Tarika. — Nosso grupo é independente. — Foi, enquanto Wong-Fu se limitou a operações consideradas sem importância. — Bem. Vejo-me obrigada a admitir que, até à última operação, nada fizemos de realmente importante. — Perfeito. Pois essa última operação mobilizou mais gente do que você pode imaginar, Tarika. — Ignoro isso. — Eu sei. Mas estou disposto a atualizá-la a respeito. Diga: sabe de quem Wong-Fu recebeu o “sopro” de que um agente americano chamado Morandi reservou suíte neste hotel e se propõe reorganizar a rede da CIA cm Tanger? — Não me diga que também sabe disso! — exclamou Tarika, verdadeiramente espantada. — É evidente. Mas com todo esse espanto não respondeu à minha pergunta: sabe quem é o confidente de Wong-Fu? — Não. — Pois saiba que os Serviços Secretos de Formosa se interessaram pela última operação de Wong-Fu, exigindo dele a entrega da carga que vocês retiraram de bordo daquele pequeno cargueiro a caminho de Istambul. Os chineses usaram como intermediário um chinês chamado Thi-Siung, o tal confidente, que já está sob meu controle. — 48 —

Posso eliminá-lo no momento oportuno. Assim, caso se dê ao trabalho de refletir um pouco, entenderá uma coisa: a posição de Wong-Fu é delicada, de verdadeiro equilibrismo entre duas forças superiores a ele. A primeira é a CIA e a segunda está representada por Thi-Siung. Tarika estava empertigada, tensa, esforçando-se inutilmente para ver através dos óculos escuros do árabe, o qual parecia não encontrar dificuldade alguma para fazê-lo. — E como sabe de tudo isso? — indagou. Ele sorriu. — Sou a terceira força interessada, Tarika. Porém há notória diferença entre o que represento e as posições de Thi-Siung e Morandi. Estes tentarão até mesmo peia força mudar a situação a seu favor e não posso negar que tenho intenções parecidas. Porém há uma diferença fundamental: estou disposto a pagar; concretamente, a comprar. Ela se sentia confusa. — Pretende comprar... — murmurou. — Então, por que não abordou Wong-Fu? Ele deu uma risada. — Por acaso me supõe um estúpido? Wong-Fu está controlado pela CIA e por Thi-Siung, aproximando-se uma guerra, e, como é sabido, em qualquer guerra perde a cabeça o mais fraco. Sabe quem é o mais fraco? — Creio que... que seja Wong-Fu. — Exato. Assim sendo, não pretendo aproximar-me dele. Seria correr um risco absurdo porque desnecessário. — Compreendo. Porém, como sabe que...? — Não se surpreenda — cortou Moulay benMohammed. — Tenho meus próprios meios e não quero fazer tratos com Wong-Fu porque ele está cercado. ThiSiung e Morandi vão destruí-lo independentemente de se destruírem depois. Eles dispõem de forças semelhantes, ao — 49 —

que pude constatar. E sabe por que Wong-Fu não lhe contou e aos seus demais servidores o que se passa? — Bem... — Não force a cabeça: simplesmente por temor de que, sabedores da verdade, vocês o atraiçoem e o abandonem neste momento crucial para ele. Não foi leal com vocês, Tarika. Ela mordeu o lábio inferior, pensativa. Murmurou: — Por que me buscou e me revela tudo isso? — Muito simples: não consegui aproximar-me de seus colegas. Foi mais fácil abordá-la enquanto espera por Morandi. Sabe? Considero uma utopia sua a idéia de eliminar esse americano altamente experimentado em matéria de espionagem, porém não gosto de matar as ilusões de meus semelhantes. Mas saiba que a chegada de Morandi é o próprio sinal para o início da guerra, porque os demais elementos da CIA já se encontram aqui. — Eu... eu não suspeitava — admitiu Tarika, verdadeiramente impressionada. — Pensei que eliminando Morandi o trabalho estaria terminado. — Há um prazo que está sendo respeitado, Tarika: o prazo concedido por Thi-Siung a Wong-Fu, correspondendo exatamente ao tempo necessário para que Morandi chegue a Tanger. Estive pensando' demoradamente no assunto e concluí que você poderia aproveitar esse prazo. — Sugere que... devo trair Wong-Fu? — Que termo deselegante, Tarika! Digamos assim: Wong-Fu também foi desleal com vocês. A palavra seria: deslealdade. Irei direto à proposta: um milhão de dólares, na moeda que você preferir, pela mercadoria que obtiveram na última operação. Uma fortuna da qual você poderá desfrutar sozinha. Você me entregará a mercadoria, — 50 —

receberá seu dinheiro, fugirá e a CIA, juntamente com ThiSiung, destruirá Wong-Fu. E depois se destruirão, porém você já estará bem longe, a salvo. — Não deixa de ser uma traição perigosa, Moulay — disse ela, a meia voz, visivelmente balada. — Vejo que insiste em utilizar esse termo tão feio! Bem, terá algumas horas para refletir. Se continuar com Wong-Fu, talvez perca a vida sem benefício algum; caso aceite minha proposta, ganhará o equivalente a um milhão de dólares, sua própria vida e a liberdade. Não duvide: Wong-fu já está com um pé na cova. — Não sei... A verdade é que estou com medo. — Todos nós, alguma vez, temos medo. Porém há oportunidades que não devemos deixar passar. — E se você me estiver enganando? — Em que sentido? — Não sei... — Julga que minto sobre Thi-Siung? Telefone tara Wong-Fu e lhe fale desse chinês. Ficará surpresa com a reação de seu chefe. — Talvez eu faça isso. — Seria um meio de comprovar minhas palavras, mas também uma arma de dois gumes, uma vez que Wong-Fu se colocaria em guarda. — É... — Tarika, você está num círculo de fogo. Salte para fora dele por meu intermédio. — Quem você representa? — Sou árabe. — Quer dizer, com isso, que a mercadoria interessa aos árabes? — Interessaria a qualquer povo. — Ah... Quero... quero pensar. — 51 —

— Como queira, mas lembre-se de que dispõe de apenas algumas horas. Não estarei muito longe nem imprudentemente perto de você. Ela sacudiu a cabeça afirmativamente e murmurou, decepcionada: — Eu pensei que Wong-Fu fosse mais... sólido. — Não pode ser sólido um espião que se torna demasiadamente conhecido. — De fato. Todos o consideram dotado de uma inteligência extraordinária, porém ele jamais me impressionou — disse ela. O árabe se levantou. Era alto, corpulento, verdadeira massa. Aproximou-se de Tarika, estendeu o braço esquerdo e lhe acariciou o rosto. Ela, conquanto achando que o mais lógico seria sentir repugnância, gostou de ser acariciada por aquele homem tão senhor de si. — Você é belíssima e jovem, Tarika — murmurou o árabe. — Seria lamentável que fizesse a escolha errada. — Moulay, não é assim tão fácil fugir, encontrar segurança após cometer uma traição como a que me propõe. — Eu sei. Digamos que amplio minha proposta: fugiremos juntos. Ela sorriu. — Você poderá liquidar-me e economizar o seu milhão. — Claro que poderia, mas não o farei se fugir comigo. — Que garantias posso ter? — Minha palavra. Estamos perdendo tempo. Insistirei dentro de poucas horas. — Vou pensar. — Seja rápida. Acariciou-a de novo. — Perdoe esta pequena medida acauteladora, Tarika.

— 52 —

Uma pancada no queixo, magistralmente dosada, nocauteou Tarika. Ela caiu nos braços do árabe, que a transportou, colocando-a na cama. Moulay Ben-Mohammed contemplou a morena, admirando seus dotes físicos. Saiu.

— 53 —

CAPÍTULO SEXTO As sombras não diriam “Kan-pei...” O árabe desceu do táxi no “Petit Socco” e continuou a pé, demonstrando conhecer cada palmo das ruelas do perigoso bairro todo de casas de um andar e telhado horizontal, a maioria brancas e algumas rosa, desbotado pelo tempo. Em Tanger chove apenas em 70 dos 365 dias do ano; isto é, todas as horas de chuva, se somadas, equivalem a 70 dias e, por isso, os telhados não têm caimento algum. O “Petit Socco” é, para os árabes, Kaba, lugar pelo qual o misterioso árabe se deslocava muito à vontade após sua visita a Tarika no “Les Almohades”. Ele parou diante de uma porta baixa, abriu-a com a sua chave e entrou, caminhando ligeiro no pátio interno, muito escuro, numa demonstração de ser praticamente nictálope ou conhecer muito bem o ambiente. A casa estava distribuída ao redor desse pátio, ao qual iam ter todas as portas internas. Empurrou uma delas e a reação foi fulminante. Algo emitiu um lampejo e somente graças a isso o árabe não tombou atravessado por um punhal bem manejado. Moulay Ben-Mohammed era homem alerta. Empurrando a porta, prendeu o braço do agressor, surpreendendo-se de ver que era de mulher. Ouviu um — 54 —

gemido de dor e apertou com mais força até ver o punhal cair. Então, abriu a porta e deu um puxão na mulher, que saiu aos tropeções, indo estatelar-se contra a parede e despencar de joelhos, recurvada, sem forças para respirar. Aproximou-se dela, mas pôs-se em guarda, porque outra sombra se lançava sobre ele com um grito estridente. Sua automática provida de silenciador emitiu um chiado e o corpo da mulher amarela dobrou-se ao meio, com uma bala no ventre. Porém ainda não havia terminado. Outra mulher chinesa, igualmente munida de punhal, abalançou-se sobre ele com uma ferocidade imprevisível para uma criatura tão frágil. Moulay partiu-lhe o antebraço com tremenda cutilada de karatê e ela caiu ao chão, gemendo, sem forças. Outra cutilada, desta vez na nuca, deixou-a imóvel. Abrindo a porta, Moulay contemplou a primeira agressora, que continuava encolhida, gemendo. Agarrou-a pela munheca magoada e ela se ergueu de um salto para evitar a dor lancinante, mas tentou livrar-se de seus dedos férreos. — Quieta — rosnou Moulay, encostando-lhe o silenciador da automática embaixo do queixo. — Expliquese. A que se deve tão agradável surpresa? — Não... não era para você... — Ah... E para quem era? — Para um chinês chamado Thi-Siung. Pensamos que morasse aqui. Ele esteve no “La Pagode” e... Foi um engano. — Não conheço esse chinês, nem vocês, nem ninguém e quase acabaram comigo. — Repito que foi um engano. — Quem as mandou liquidar o tal Thi-Siung? — 55 —

A chinesa pareceu disposta a não revelar e ele não teve outro remédio senão ameaçá-la de uma tortura que aprendera no Irã: — Se não falar, será primeiro violentada, depois terá as mãos amputadas. — Trabalhamos para Coral — soltou a chinesa, de olhos muito arregalados. — E para quem trabalha essa Coral? — Para quem lhe paga. Moulay ben-Mohammcd sorriu. — Compreendo: alguém pagou a Coral para que mandasse suas pequenas feras sanguinárias liquidarem o chinês Thi-Siung. Devo felicitá-la por ter encontrado este esconderijo. — Conhecemos perfeitamente a Kaba. — Claro. — Que fará comigo? — Que mais fazem para essa Coral? — indagou ele, em vez de responder. — Tudo. — Não pode especificar? — Tudo. Eu disse tudo. — Sabe quem pagou a Coral para vocês matarem ThiSiung? — Ela nunca nos dá explicações. O árabe acreditou. Na verdade, não seria necessário grande esforço mental para compreender quem teria encomendado tal “serviço” de Coral, a cafetina e dona de “boca de fumo” do “Petit Socco” ou Kaba, como preferem os árabes. Atuando com rapidez, de modo imprevisível, deixou-a nocaute com uma cutilada de karatê na têmpora. Depois, aproximou-se de um monte de embrulhos que pareciam ter permanecido ali, abandonados, por muito — 56 —

tempo, apoderando-se de um deles, cuja poeira soprou com força. Saiu ao pátio, deu uma olhadela às suas supostas matadoras e pouco depois ganhava a ruela, tornando-se apenas mais um árabe de chilaba (*), rajado e turbante. Com um embrulho embaixo do braço. (*) Manto Árabe. Meteu-se na primeira cabina telefônica e discou. Nafi atendeu e ele exigiu, em árabe, falar com Wong-Fu. O sinoamericano atendeu, cauteloso: — Fale... — Está cometendo erros, Wong-Fu — disse Moulay, em chinês. — Erros muito graves. Houve ligeira pausa. — Você é Thi-Siung...! — De fato. Livrei-me facilmente de três assassinas profissionais e quero adverti-lo de que nem trinta iguais a elas poderiam liquidar-me. Deu um mau passo, Wong-Fu. — Está enganado, Thi-Siung. Eu...! — Chega. Essa mercadoria deve pertencer à China Nacionalista e por esse motivo estou aqui em Tanger. Além disso, você continua afeto a nós. Há laços dos quais só nós podemos livrar pela morte. — Vocês não me ajudaram quando mais necessitei de ajuda! Simplesmente me ignoraram! — Porém mudamos de opinião. — Não é assim tão simples. — O mais inteligente é tornar fácil aquilo que nos pareça complicado, Wong-Fu. — Escute, Thi-Siung, eu... — Você é quem vai escutar. As coisas estão mais complicadas do que imagina. Outro personagem entrou na disputa da carga. — 57 —

— Impossível! Pretende convencer-me de que o mundo inteiro sabe de minhas atividades, que estou sendo sitiado, encurralado... Impossível! — Você devia ter dito que lhe parece impossível e não que o seja verdadeiramente, Wong-Fu. Posso revelar quem mais entrou no assunto. Trata-se de um árabe chamado Moulay ben-Mohammed, o qual está aqui com o seu grupo e disposto, como eu e como Morandi, a se apoderar do material que você roubou. — Mentira! Está querendo me assustar! — Não diga bobagens. Para assustá-lo basta a minha presença em Tanger. Agora, preste atenção: a chegada desse árabe exige um acordo entre nós. É um ultimato e você terá poucas horas para se decidir, Wong-Fu. — E se eu discordar? — Vou mostrar a importância de entrarmos num acordo. Moulay Ben-Mohammed já deu provas de grande inteligência, atacando um de seus pontos mais fracos. Refiro-me a Tarika, a moura que você postou no “Les Almohades” à espera de Morandi. — Você... você sabe de tudo! — gemeu Wong-Fu. — Evidentemente. Justamente por isso quero alertá-lo quanto ao perigo de Tarika ceder à pressão desse árabe. Ele lhe ofereceu uma fortuna para ser conduzido à mercadoria, devendo-se esperar que Tarika ceda à ambição, o que seria muito humano, mas desagradável para nós, Wong-Fu. — Não! Isso, não! Tarika não me faria uma coisa dessas! — Eu não me arriscaria a submeter à prova a lealdade de ninguém em affaire tão sério, Wong-Fu. Tão importante que você, neste momento, está controlado pela CIA, por um grupo árabe e... por mim, naturalmente. Com a diferença de que apenas ao grupo árabe não interessa a sua cabeça caso — 58 —

não tenha êxito em se apoderar da mercadoria, ou mesmo com a mercadoria nas mãos. Como vê, está em má situação e somente eu posso ajudá-lo. — Talvez eu consiga safar-me sozinho... — Seu otimismo, em tais circunstâncias, atinge as raias da imbecilidade — cortou o falso Thi-Siung. Vou arrematar o assunto: sabe quem chegará a Tanger com o nome suposto de Morandi? — Não. — “Andróide”, o “Máscara Negra” ou “77Z”, o indestrutível, imbatível e inimitável espião internacional da CIA. — Na...não! — gemeu Wong-Fu. sentindose arrasado. — Compreende, agora, que devemos coligar-nos para não morrermos estupidamente nesta disputa? — Estou tão confuso... Que... que devemos fazer? — Em primeiro lugar, lembre-se de que existe um árabe chamado Moulay Ben-Mohammed disposto a dar uma fortuna a Tarika para ser conduzido à mercadoria e de que... poucos resistem a um milhão de dólares. — Um mi...! Cadela de rua! — Telefonarei novamente, Wong-Fu. Será a última vez, se você falhar na primeira iniciativa encorajadora de um acordo entre nós. O árabe desligou e voltou pelo mesmo caminho até chegar a uma pracinha na qual havia uma porta suficientemente grande para dar passagem a um “Peugeot 404”. Abriu, colocou © embrulho no assento do carona, sentou-se ao volante e partiu devagar, demandando o setor moderno da cidade para dirigir mais à vontade. Ponderava sobre o local onde se processaria sua nova ação. — 59 —

*** Quando o árabe desligou, Wong-Fu sentia as palmas das mãos úmidas e os dedos gelados. Estava cercado. Completamente sitiado. Mas como?! Aquela amaldiçoada moura pretendia atraiçoá-lo justamente agora que as coisas estavam péssimas! Apertou o botão da campainha e Nafi surgiu, impávido, de chilaba branco. — Senhor? — Chame Zheyad e Berlano. Rápido! — gritou. — Sim, senhor. Assim que Nafi saiu, Wong-Fu sentou-se para meditar, decidindo eliminar paulatinamente todas as sombras que o rodeavam ameaçadoramente. Retorcia as mãos, com raiva, quando seus homens entraram. — Tarika pretende nos trair — foi logo dizendo. Berlano e Zheyad se olharam, perplexos. — Mas... é impossível! — protestou Berlano. — Estou certo! — O senhor afirma que Tarika está decidida a colaborar com a CIA? Como, se Morandi ainda não chegou a Tanger? — Eu também estou meio confusa... — admitiu WongFu. — Não se trata dos americanos, mas de um árabe chamado Moulay ben-Mohammed. Deixemos isso para depois. Devemos agir rápido porque a traição está para ocorrer a qualquer momento e vocês deverão impedir. Preciso das instruções?... Zheyad apertou os lábios, com raiva, e Berlano respondeu, lançando chispas de ódio pelos olhos: — Ela não nos trairá!

— 60 —

— Rápido. Outra coisa: deverá ser substituída na vigilância a Morandi. — Eu me incumbirei disso — ofereceu-se Berlano. — Ótimo. Novamente Wong-Fu omitia qualquer referência ao perigoso e onipresente Thi-Siung, preferindo ocultar de seus homens que Morandi não era outro senão o eletrizante “Máscara Negra”. Resolveria cada problema de per si, a começar por Tarika, seguindo-se o árabe, depois uma cilada contra Thi-Siung e... Ah, se o “Androide” não estivesse metido no assunto...! Os dois homens saíram e Wong-Fu serviu-se de uma dose avantajada de uísque, sorvendo-a desesperadamente. Desta vez não disse: “Kan-pei...” Afinal, estava bebendo sozinho. Melhor dito: com as sombras que o sitiavam e não beberiam com ele nem o saudariam em chinês.

— 61 —

CAPÍTULO SÉTIMO A mais espantosa metamorfose... Moulay Ben-Mohammed teve o cuidado de certificarse de que Tarika continuava passeando no jardim do “Les Almohades”, entre palmeiras, após lhe telefonar marcando um encontro discreto naquele lugar. A moura lhe pareceu tensa, preocupadíssima, assustada com a idéia de trair Wong-Fu e ser descoberta. Sorriu e entrou no hotel, usando a porta lateral. Subiu pelas escadas ao primeiro andar e chamou o elevador, metendo-se nele. Era a melhor forma de despistar possíveis observadores, ao desembarcar no terceiro andar. Munido de uma gazua, abriu facilmente a porta, como da outra vez que ali estivera, e, sem acender as luzes, desapareceu de vista. A espera já se estava tornando monótona, quando começaram a escarafunchar a fechadura e Moulay sorriu. Trabalho de principiante... Pouco depois, duas sombras entravam e fechavam a porta e uma delas comentava: — Tomara que ainda não tenha fugido... — Não creio, Zheyad. Vamos surpreendê-la aqui e seremos rápidos. Os dois estavam juntos e o árabe, vendo-os de costas, julgou chegado o momento de agir. Naturalmente,

— 62 —

empunhando a automática. Surgiu de trás de uma poltrona e ordenou: — Não se mexam. Berlano virou-se ligeiro, tentando anular a vantagem inicial do desconhecido, porém este já havia previsto tal reação e, após dar a ordem, se deslocara para outro ponto da sala. As mãos de Berlano ficaram vazias. Zheyad, sobrepondo-se à surpresa, sacou lindo punhal e tentou arremessá-lo contra o desconhecido, porém não chegou a fazê-lo porque uma bala, bem dirigida, abriu-lhe um furo na testa, interrompendo-lhe o raciocínio e os instintos. Berlano tentou sacar a automática, mas o árabe provou ser mais ágil e, com veloz movimento da mão armada, deulhe um golpe de automática no pomo de Adão, deixando-o sufocado por espasmo da glote. Ao segundo golpe, na têmpora, caiu de joelhos, com a sensação de estar girando vertiginosamente. Moulay segurou-lhe o pulso direito até que ele soltasse a automática, ordenando: — Quieto. — Quem...? — Nada de explicações. A vida de Tarika me interessa o suficiente para que eu não vacile em matar. — Então... é verdade! Ela...! — Provou ser inteligente e sairá ganhando. Revoltado, Berlano se debateu e chegou a vislumbrar a vitória ao conseguir libertar o pulso, mas suas esperanças se esfumaram quando ele sentiu no pescoço fina tira de couro áspero e falta de ar. — Nada mais fácil que estrangular um imbecil — rosnou Moulay. Berlano se imobilizou, compreendendo que morreria facilmente nas mãos do árabe e, nesse instante, a porta se abriu. Tarika acendeu a luz e ficou galvanizada, de olhos — 63 —

arregalados. Seu olhar passeou ligeiro do cadáver de Zheyad a Berlano, que tinha a cara arroxeada e os olhos esbugalhados. — Pretendiam acabar com você — explicou Moulay, afrouxando a tira de couro. — Por quê?! Por quê, Berlano?! — Ainda pergunta, sem-vergonha?! — rosnou Berlano, com a voz alterada, tentando uma vez mais livrar-se do árabe. Moulay Ben-Mohammed esperou que ele introduzisse os dedos das duas mãos entre a tira de couro e o pescoço e só então começou a apertar. Berlano esperneou, emitiu roncos abafados e se imobilizou. Morte por asfixia. Tarika ficou perplexa diante de tamanha frieza, conseguindo balbuciar: — Você matou... Foi por sua culpa... — Talvez — sorriu Moulay. — Você deve ter inventado mentiras para que eles me perseguissem e eu me colocasse do seu lado. — Não fiz nada disso — mentiu cinicamente Moulay. — Vim esperá-la a fim de saber qual a sua resposta e, ao perceber que forçavam a porta com uma gazua, ocultei-me atrás da poltrona. Os dois falaram sobre liquidá-la e, como devemos entrar num acordo, decidi eliminá-los. — Eu ainda não resolvi... — Acredito, mas agora tornou-se uma questão de tempo. Meu carro está lá embaixo, Tarika. Vamos? — E... e esses cadáveres? Quando descobrirem... — Pretende carregá-los às costas para lhes dar sumiço? Ela se desconcertou, murmurando: — Oh, se eu pudesse acreditar em você! Ele se impacientou:

— 64 —

— Agora não se trata de acreditar ou não, Tarika: tratase de fugir o quanto antes. Descerei primeiro, esperando por você num “Peugeot 404” escuro que está na pracinha do hotel. Terá alguns minutos para recolher seus pertences imprescindíveis. E não esqueça o biquíni azul que lhe assenta muito bem... Virou-se e saiu, disposto a aproveitar aqueles minutos para realizar algo importantíssimo. Desceu pelo lado do hotel e meteu-se no carro, desembrulhando o volume que recolhera no “Petit Socco”. Tratava-se de potente transceptora mitiaturizada. Operou os “mandos”, fazendo a chamada. Atenderam prontamente: — É você, Horace? Tudo bem? — Até o momento sim, Eddy. Está preparado? — Na gruta que você já sabe. — Com o dinheiro? — Naturalmente... — Será conveniente mostrá-lo a essa mulher. Dentro de uns trinta minutos estarei aí com ela. lá sabe qual a sua missão. — Fique tranquilo. — Até já, Eddy. Cortou a comunicação, tornou a embrulhar a transmissora e jogou-a no assento traseiro, acendendo um cigarro “Abdullah”. Começava a se impacientar, quando Tarika surgiu na porta lateral com uma maleta de courpin cereja. Atraiu-a com a buzina do carro. — E agora? Aonde vamos? — quis saber a noura. — Ao meu refúgio. Não quero que corra o menor risco e nesse lugar estará segura, com muito dinheiro nas mãos. Claro que terá de me conduzir à mercadoria roubada por

— 65 —

Wong-Fu. Vamos desaparecer e você virá conosco. Vá pensando durante o trajeto. Partiram em silêncio e somente após meia hora de viagem o “Máscara-Negra” falou: — Estamos chegando. É uma gruta. — Quanta gente com você? — Oh, isso é apenas o... quartel-general para esta operação. Meus homens estão distribuídos e lugares convenientes. Procure relaxar a tensão nervosa, Tarika. Embicou o carro para fora da estrada e, após alguns solavancos, parou diante da gruta. — Acho... acho que estou fazendo algo insensato — murmurou Tarika, antes de descer do carro. — Discordo: Wong-Fu já está fedendo a defunto. — É possível, mas... — Seja prática. Venha. Entraram na gruta às escuras e a moura ainda arriscou: — Suponhamos que eu lhe dê a informação você me dê o dinheiro prometido e eu desapareço sozinha. — Seria uma boa idéia, caso eu não pretendesse constatar a veracidade da informação, Tarika. É dificílimo alguém me enganar, até mesmo em se tratando de uma criatura deliciosa com você. Dê-me a mão. Ela obedeceu e caminharam no escuro. — Ismail! — gritou Moulay e as luzes se acenderam. Diante deles, vestindo chilaba branco e o capuz vermelho, um árabe alisava um respeitável bigode. — Meu lugar-tenente — disse Moulay. — Começará a falar, ou prefere ver o dinheiro antes? — O dinheiro. “Máscara-Negra” fez um sinal e Eddy, o falso: Ismail, recolheu de uma cavidade uma bonita maleta tipo executivo

— 66 —

castanho claro, abrindo-a diante dos olhos de Tarika, que se arregalaram. — E agora? — indagou Moulay. — O material roubado está num submarino... — Local. — Há uns dez quilômetros daqui existem umas enseadas entre penhascos. Deve encontrar-se em uma delas. — Quantos homens formam a tripulação? — Quatro. Laprade, o comandante, costuma sair, porém Baugier toma seu lugar. — Que sabe sobre o material roubado? — Nada. Wong-Fu é quase tão misterioso quanto você. — Se é um elogio, obrigado. — Ignoro de que se trata, mas começo a compreender que é importante, dado o número de interessados. — Uma peça cobiçadíssima, Tarika. Confio em que venha ter às nossas mãos. Não obstante, sua informação me parece um tanto incompleta. Não acha? — Sim, mas... é difícil conhecermos a posição exata do submarino, quando não nos é fornecida pelo comandante — arriscou uma olhadela para a potente transceptora de Eddy. Moulay compreendeu, indagando: — Poderia entrar em contato com ele? — Sim; creio que sim. — Ótimo. — Devo chamar agora? — Não quero precipitar os acontecimentos. Tomarei antes algumas medidas de segurança, agrupando meus homens. Chamará quando eu mandar. — Enquanto isso, ficarei aqui? — sondou Tarika. — Com Ismail. Saiba que ele não a deixará fugir, Tarika. — Não pensei em me arriscar. — 67 —

— Meus parabéns. Seria desagradável encontrá-la morta. Fique atento, Ismail. Uma respeitável Luger provida de silenciador apareceu brotar na mão direita de Eddy, que sorriu, recurvando o bigodão, e indicou a Tarika, om a arma, um recesso da gruta. “Máscara-Negra” trocou um olhar com ele e saíu, caminhando diretamente para o seu carro. Abriu o portamalas e trabalhou ligeiro na mais surpreendente metamorfose. Minutos depois era o próprio Thi-Siung, um chinês enorme, corpulento, com o hábito de entrelaçar os dedos diante o grande ventre. Um chinês vestido à ocidental, sentou-se ao volante e pisou fundo o acelerador. O “Peugeot 404” partiu como um foguete, com os pneus cantando.

— 68 —

CAPÍTULO OITAVO Tantas, que ele próprio se confundia... A impaciência de Wong-Fu parecia formar uma atmosfera densa ao seu redor. Por fim, entrou Baugier, que se aproximou dele, intrigado: — O senhor me chamou? — Algo ocorreu a Tarika. Serei mais exato: tive notícias de que ela nos traiu. Mandei Zheyad: Berlano darem um jeito nela, porém eles não voltaram. Vá descobrir o que se passa. — Devo ir ao hotel?! — Claro, mas seja cauteloso. Onde está Larade? — No submarino. — Seja rápido porque, conforme o que tenha ocorrido no hotel, nossa situação poderá tornar-se bem difícil. Baugier franziu a testa, arqueando as sobrancelhas. — É difícil pensar isso de Tarika, senhor. — Rápido! — Sim, senhor! Preocupadíssimo, Baugier saiu, deixando Wong-Fu sozinho na sala. O sino-americano começava a considerar boa idéia refugiar-se no submarino, onde estaria a salvo das investidas de Thi-Siung, Moulay ben-Mohammed, “Mascara-Negra” e outros inoportunos. — 69 —

— Senhor. Wong-Fu assustou-se, indagando de mau-humor: — Que houve, Nafi?! — Um cavalheiro entrou na quinta, senhor. — Que cavalheiro? — Um chinês, senhor. Afirmou chamar-se Thi-Siung e insistiu em lhe falar. Veio em seu próprio carro. Wong-Fu sentiu frio no estômago. — Tem certeza? — Tenho, senhor. Ele espera no vestíbulo. — Mande-o entrar, porém fique atento a qualquer sinal meu, porque... Bem, talvez nos interesse que ele saia vivo, mas também que jamais saia daqui, entendeu, Nafi? — Perfeitamente, senhor. Nafi saiu e voltou pouco depois, introduzindo ao escritório um chinês alto, volumoso, de pequenos olhos escuros, oblíquos. — Pensei que talvez gostasse de me conhecer pessoalmente — foi logo dizendo Thi-Siung. Wong-Fu apertou os lábios, antes de indagar: — Não acha que sua presença intempestiva constitui uma insolência que lhe poderá custar caro? Breve sorriso de Thi-Siung desconcertou bastante Wong-Fu. — Vou confiar em sua inteligência, embora ultimamente ela não se tenha mostrado... digamos cintilante, Wong-Fu. De fato, entrei em sua casa, porém tive antes o cuidado de postar meus homens em lugares bem convenientes. Devia ter previsto, Wong-Fu. — Está bem. Que deseja? — Não me convida para sentar? Pelo que vejo, também está perdendo a famosa cortesia oriental.

— 70 —

Desconcertado, o sino-americano lhe indicou a poltrona diante de sua mesa e sentou-se, antes que ele o fizesse. — Seremos francos — declarou Thi-Siung. — Você deixou de ser interessante, porém as coisas mudaram. — Tenho a minha própria organização — jactou-se Wong-Fu. — Seja realista, Wong-Fu. No pequeno mundo da espionagem, você não passa de um homem queimado, um personagem demasiadamente conhecido. Seria o mesmo que trabalhar de espião, levando um letreiro na testa para que ninguém duvidasse... — Não necessito de ninguém. Conheço o motivo de sua visita e me apresso a declarar que não lhe entregarei a mercadoria. Eu... — A precipitação também não é virtude dos bons espias — cortou Thi-Siung. — Antes de lhe concedermos o direito a um ostracismo temporário, você se chamava Dagobert Horrall, gozava da cidadania norte-americana e residia em San Francisco da Califórnia. — Que tem isso a ver com o assunto? — Muita coisa, Wong-Fu. A quem pensava vender a mercadoria? — Thi-Siung, você cometeu lamentável deslize entrando em minha casa. — Não estávamos falando nisso. Especificamente, Wong-Fu, a quem pretendia vender os bloqueadores de controle remoto? Wong-Fu semicerrou os olhos. — Sabe muito mais do que eu imaginava. — Muito, mesmo, Wong-Fu. Jamais empreendo uma operação às cegas. Porém seu comentário também não responde à minha pergunta.

— 71 —

— Como sabe que são bloqueadores de controle remoto? Realmente se trata de algo novo, desconhecido em todo o mundo. Um engenho perfeito. — Exato. Porém há algo mais, Dagobert Hor-rall: você desbaratou uma operação da CIA em favor da paz mundial. Sabia? É óbvio que sim. — E daí? — Não lhe importa que estoure a III Guerra Mundial? — Talvez não. — É lamentável... — sorriu Thi-Siung. — Não ignora que se espalha um clima de guerra pelas regiões Norte e Noroeste da China Continental. Estão sendo realizadas grandes manobras, verdadeiros preparativos bélicos, nos territórios de Helun-Kiang, Liaoning, Kiring, Mongólia Interior, Kanshu, Senshu e Sinkiang. São territórios ao longo das fronteiras soviéticas. Além disso, além dos militares, as populações civis participam ativamente das manobras. Em suma, foram detectados preparativos que fazem antever a eclosão do conflito de um momento a outro. — Não é de minha conta. — Creio que sim, Wong-Fu, porque você, conquanto o ignore, poderia tornar-se um dos artífices de uma guerra capaz de engolfar o mundo inteiro. — Não me considero tão importante — zombou WongFu. — E não o é, porém, talvez sem tal propósito, esteja pondo a paz em sério risco. Esses bloqueadores de controle remoto que a CIA transportava para a Ásia tinham fins pacifistas. — Deveras? — sorriu Wong-Fu, ainda mais irônico e zombeteiro. — Deveras — repetiu Thi-Siung. — Explicarei em que consistem esses fins. Conforme © nome indica, os — 72 —

bloqueadores de controle remoto servem para impedir os disparos de foguetes teleguiados dirigidos por controles remotos. Um exemplo: a Rússia resolve disparar seus teleguiados contra a China Vermelha, ou vice-versa, o que, naturalmente, marcaria a deflagração de um conflito mundial; pois bem, esses bloqueadores impedem tais disparos. Na verdade, eles vão impedir possíveis disparos fratricidas. — Vejo que conhece o assunto a fundo, Thi-Siung. — De fato. Como deve ter entendido, o retardamento dos disparos dará tanto a russos como aos chineses, ou a qualquer outro possível agressor, tempo suficiente para reconsiderar seu ato, garantindo à humanidade uma esperança de sobrevivência. Naturalmente, a CIA não tomou essa iniciativa num arroubo de bondade, mas levando cm conta que os Estados Unidos estarão automaticamente envolvidos em qualquer conflagração mundial. — Gente precavida... — Sabe o que a CIA imaginou ao ter notícia do roubo da preciosa carga e de que sua rede em Tanger fora destruída? — Confesso que não. — Que a China Nacionalista estivesse diretamente por trás disso. — Como assim?! — Caso estourasse uma guerra entre a Rússia e a China Continental, o generalíssimo Chiang-Kai-Shek teria sua única oportunidade de saltar de Formosa para o continente. Pelo menos segundo seu modo de ver as coisas. Que outra oportunidade lhe sobrou? — Uma dedução lógica.

— 73 —

— Isso porque a CIA ignorava que você se arvorara em chefe supremo de um serviço de espionagem e furtos muito pessoal. Wong-Fu acusou o impacto. Apertou os lábios grossos, alegando: — Muita gente está metida nisso. Não sou só eu. — Mas foi você quem desencadeou a sarabanda, WongFu. Agora, que já perdemos tanto tempo com palavras, responda: que pretendia fazer com os bloqueadores de controle remoto? — Vendê-los. — A quem? — Há outros focos de discórdia por este mundo, ThiSiung. Por exemplo, o Oriente Médio. Especialmente os árabes gostariam de contar com os bloqueadores para controlarem os foguetes israelenses, empregando os seus para esmagar Israel. — Se não tomou partido político no Oriente Médio, está simplesmente agindo como um mascate — soltou ThiSiung, fazendo Wong-Fu se contrair na cadeira. — Já entabulou negociações a respeito? — Não. — Por quê? — Muito simples: ganhar tempo. O affaire ainda está muito recente e devo ocultar-me até me convencer de que poderei negociar em segurança. — Em outras palavras: não me quer entregar os bloqueadores? — Custou para entender o que lhe venho declarando desde o começo. Soou a campainha do telefone e Wong-Fu atendeu, franzindo a testa. — Sim! — 74 —

— Más notícias, senhor — falou Baugier. — Seja rápido. — Encontrei os cadáveres de Zheyad e Berlano na suíte de Tarika, porém nenhum sinal dela. Wong-Fu apertou os lábios. — Deve procurá-la! Já! Preste atenção, que talvez lhe ajude: ela nos traiu com um árabe chamado Moulay benMohammed. Ponha de sobreaviso os do submarino, porque os árabes não agem sozinhos nem para ir ao banheiro! Avise Laprade. Desligou, furioso, acalmando-se ou fingindo acalmarse ao encarar Thi-Siung, que sorriu e, continuou como se nada tivesse ouvido: — Caso o roubo tivesse sido praticado por gente de Chiang-Kai-Shek, haveria certa lógica, aceitável em termos políticos; mas que tenha sido obra de um pirata moderno... — Vou avisar o pessoal do submarino! — exclamou Wong-Fu, que parecia nem ter escutado essas palavras de Thi-Siung. — Eu, em seu lugar, não aproximaria a mão desse pequeno comando eletrônico, Wong-Fu — disse Thi-Siung secamente. Sem que Wong-Fu percebesse, pusera uma piteira entre os dentes e agora fingia escolher um cigarro em bela cigarreira de prata. O sino-americano hesitou, murmurando: — Ainda não demonstrou a conveniência de voltar para vocês. — Uma demonstração que possivelmente daria um agente de Chiang-Kai-Shek — respondeu Thi-Siung, mordendo a piteira. Wong-Fu recuou a mão, indagando: — Quem é você, afinal? — 75 —

— Sabe? Por vezes custo a me identificar. Digamos que neste instante sou Thi-Siung, mas também Moulay BenMohammed e até o “Más-cara-Negra”, o qual também é conhecido como “Androide” e “77Z”. Qualquer um ficaria bastante confuso, não está de acordo? Wong-Fu tornou-se amarelo limão e, num gesto desesperado, tentou alcançar um dos botões do painel eletrônico para solicitar a ajuda de Nafi. O “Máscara-Negra” soprou a piteira como se pretendesse cuspir através dela e um jato semelhante ao dos aerossóis atingiu os dedos de Wong-Fu, carbonizando-os instantaneamente. O sino-americano soltou um urro e se encolheu de dor, com o que seu fiel criado árabe Nafi entrou em cena, empunhando longo punhal. “77Z” só não foi atravessado pela longa arma simplesmente por ser “77Z”. Desviou-se magistralmente para o lado e Nafi, com o impulso que trazia, esbarrou violentamente na mesa de seu amo, dobrando-se sobre ela, oportunidade que o “Máscara-Negra” aproveitou para dar outra sopradinha na piteira. O jato causticante atingiu o pescoço de Nafi, que se encolheu e caiu ao chão, onde rolou aos gritos até perder a voz, com a traqueia devorada pelo cáustico e, menos de um minuto depois, imobilizar-se para sempre. — Ainda se considera capaz de vencer o adversário? — indagou “Máscara-Negra”, agora personalizando o abrutalhado Thi-Siung. Wong-Fu apertava o pulso direito, tentando com isso atenuar a dor nos dedos carbonizados. Sacudia a cabeça, incrédulo. — Agora, que já sabe estar diante de “Androide”, “Máscara-Negra” ou “77Z”, seja inteligente e responda sem subterfúgios, para não ter a cara carbonizada: de que meios — 76 —

se valeu para causar a morte de “Estambul-3”. Eu me refiro aos meios de transporte aéreo. — Tenho um pequeno avião, um “teco-teco”. Meu piloto foi morto. Chamava-se Zheyad. — Ah... E onde está esse “teco-teco”? — Apertando aquele botão fará abrir-se a porta do hangar camuflado na encosta ao lado de minha vila. Posso... — Nada disso! Eu mesmo cuidarei do botão. Agora, diga: além desse tolo — indicou Nafi —, quem mais está guardando sua vila neste momento? — O guarda do portão de grade. — Ninguém no hangar? — Ninguém. — Ótimo. Apertarei o botão e, se algo andar errado, descarregarei todo o cáustico desta piteira em sua cara, Wong-Fu. Se estava tentando enganar-me, será melhor corrigir seu erro enquanto é tempo. — Eu disse a verdade. — Vejamos... O falso Thi-Siung pousou o indicador esquerdo no botão indicado pelo sino-americano e quase lhe tocou o rosto com a piteira mortífera. Apertou o botão. Nada aconteceu. — Ótimo. Darei uma olhadela. Sempre atento aos menores movimentos de Wong-Fun e empunhando a automática provida de silenciador, foi à janela e olhou para a colina. O luar lhe permitiu ver levantada a grande porta do hangar camuflado. — De que meios se vale para entrar em contato com o submarino? — Da única transceptora de que disponho. Faz parte do avião. — 77 —

— Entendo. Venha. Wong-Fu levantou-se e, segurando a mão magoada, caminhou mansamente sob a mira da automática de “Máscara-Negra”. Saíram ao gramado da vida e caminharam até o hangar, que estava às escuras. Lá estava o “teco-teco”, moderno Executive americano de seis lugares. — Ponha-se de cara na parede, Horrall — ordenou o homem fantástico da CIA, sendo prontamente obedecido. Desse modo, Wong-Fu não pôde testemunhar os movimentos felinos de “77Z”, que subiu à cabina do avião, introduziu a mão sob o painel de instrumentos e arrancou as conexões da transceptora, deu partida ao motor e saltou, aproximando-se do sino-americano a tempo de ouvi-lo ponderar: — ...fugir no meu avião ainda terei uma oportunidade... — Não pretendo fazer isso, Wong-Fu. Venha. Sempre de costas. — Que pretende...? — Continue recuando. — Seria tolice tentar... Wong-Fu teve a frase e a cabeça cortadas pela hélice do avião. Nem sequer gritou. Com absoluta frieza, o “Máscara-Negra”, deixando ligado o motor do “teco-teco” e o mancho de decolagem em ponto-morto, saiu do hangar, encaminhando-se para o gradil da vila. Os barrotes de ferro não estariam eletrificados porque ele tivera o cuidado de avariar o painel de controle eletrônico antes de sair com Wong-Fu ou Dagobert Horrall de seu gabinete para eliminá-lo. Seu cérebro especial se ocupava agora da segunda parte do plano que traçara para aquela missão: recuperar os bloqueadores de controle remoto. — 78 —

Saltou o gradil e meteu-se no “Peugeot 404“. sem ser visto pelo guarda do portão.

— 79 —

CAPÍTULO NONO Bem melhor deitar-se com um homem... O “Peugeot” aproximou-se da gruta em que se encontrava Tarika sob a vigilância do falso árabe Ismail. Parou à certa distância, operando-se a seguir nova metamorfose, tão espantosa quanto a anterior, graças à qual o chinês Thi-Siung voltou a ser o árabe Moulay benMohammed, que entrou e foi direto ao recesso no qual havia luz indireta de uma potente lanterna de pilhas. Sorriu ao constatar que Ismail empunhava uma automática. Claro que o fiel Eddy desejara certificar-se de que se aproximava o seu chefe Kirkpatrik antes de acolher quem se aproximava. Tarika permanecia no mesmo lugar cm que se encontrava quando Moulay saiu. Foi logo indagando: — Ainda vamos ficar por muito tempo aqui? — Nem um minuto mais — sorriu o árabe. — Tudo está preparado para eu entrar em ação. Pode comunicar-se com o submarino. — Que devo dizer? Se eles desconfiarem, entrarão em contato com Wong-Fu e... — Mais que duvidoso, Tarika. — Por quê? — Muito simples: Wong-Fu já entregou a alma ao diabo. — Você...?! — 80 —

— Não direi que foi propriamente uma satisfação. Afinal, de que se espanta? Menos um com quem se preocupar enquanto estiver gozando seu milhão de dólares. Vamos, entre em contato com o submersível! Tarika franziu a testa. Aquele árabe parecia ter mais poderes até que a própria CIA em Tanger. Aproximou-se da transceptora, indagando a meia-voz: — E que devo dizer? — Ordene que subam, de modo a se tornarem visíveis, e aguardem novas ordens de Wong-Fu. — É uma ordem que só ele poderia dar, Moulay. — Disse bem: poderia. Agora quem pode é você. Peçalhes a posição exata do submersível e declare que Wong-Fu viu-se obrigado a sair às pressas a fim de avistar-se com compradores, devendo ir com eles a bordo para mostrar a mercadoria. Dará novas ordens quando chegar com os compradores. Ela começou a manipular os botões da transceptora e Kirkpatrik fez um sinal a Eddy para que se afastasse um pouco, murmurando: — Prepare a outra parte, Eddy. Eddy olhou ligeiramente para Tarika e indagou, preocupado: — Que aconteceu na vila de Wong-Fu? — Um acidente: o chinês, por imprudência, aproximouse da hélice de seu “teco-teco e teve a cabeça esfacelada. Seu secretário particular arqueou as sobrancelhas, sussurrando: — Então, só resta o assunto do submarino... — Sem dúvida. Quando Tarika e eu nos prepararmos para sair, faça como eu lhe disse. — E se ela não aceitar sua companhia? — Creio que aceitará. Está muito assustada. — 81 —

— Está bem. Perceberam que Tarika conseguira entrar em contato com o submersível e silenciaram para ouvir. — A ordem de Wong-Fu é subir e fornecer a posição exata, Laprade. — Não entendo por que não se comunicou pessoalmente. Que novidade é essa, Tarika? — Uma boa novidade, Laprade: conseguiu compradores. Saiu às pressas para ultimar os entendimentos e pretende visitar com eles o submarino para mostrar a mercadoria. Negócio praticamente fechado. — A melhor notícia dos últimos tempos! — exclamou Laprade, pelo alto-falante da transceptora. — Quanto mais cedo nos livrarmos desta bomba que temos a bordo melhor. Como vão as coisas a respeito de Morandi? — Tudo sob controle. Êxito na operação. — Meus parabéns, Tarika. Que alívio! Algo mais? — É só. — Aí vão as coordenadas. Laprade ditou a latitude e a longitude correspondentes à situação do submarino, as quais Tarika anotou num papel e Kirkpatrik registrou mentalmente. — Obrigada, Laprade. Suba e aguarde a visita de Wong-Fu com os compradores. Corto. Cortou a comunicação e voltou-se para Moulay, que lhe sorriu quase paternalmente, afirmando: — Concluída a sua importante missão, Tarika. Não foi fácil? — Sim. Creio que, com isso, mereço apoderar-me do dinheiro... — Oh, naturalmente! Onde está a maleta, Ismail?

— 82 —

— Aqui mesmo. Ela não a apanhou antes porque não quis — disse Eddy, entregando a maleta a Tarika, que a apertou contra o peito quase com amor, sorridente. — Creio que será conveniente continuar conosco até situar-se bem distante daqui — sugeriu Moulay, com doçura. — Não, obrigada. Cumpri a minha parte, você cumpriu a sua e pronto. Cada qual seguirá seu caminho. Não acha melhor assim, Moulay? — Como queira. Eu só estava querendo protegê-la... digamos, como uma retribuição por sua valiosa colaboração. — Já retribuiu... — disse ela, batendo de leve na maleta que continuava apertando contra o peito. — Não quero morrer agora. Moulay Ben-Mohammed deu uma risada, no que foi imitado, com vergonhoso servilismo, pelo bigodudo Ismail. — Já lhe disse que não sou sanguinário, Tarika. Cumprimos um acordo comercial altamente vantajoso para ambos, não havendo motivo algum para que qualquer de nós queira desfazer-se do outro. Saiba que esse milhão nem de longe afetou minhas finanças. Além disso, aquela carga me proporcionará muitas vezes o que já possuo. Jamais a liquidaria para recuperar essa migalha. — Uma migalha que me fará extremamente feliz. — Ótimo. — Vejo que fui insensata. Por que liquidar-me depois, se não teriam dificuldades alguma em fazê-lo agora e aqui? — Garota inteligente. Uma vez que caiu na realidade, talvez aceite um conselho amigo: antes de buscar um rumo definitivo, recolha-se a um lugar discreto e seguro para repousar e meditar calmamente sobre o que fará com a sua pequena fortuna. Conheço um lugar assim. — 83 —

— É uma idéia. Onde fica? Moulay sorriu e segurou-a pelo braço, dirigindo-se para a saída da gruta, enquanto explicava: — É um sobradinho na Praia Grande, nos limites de Tanger. É de minha propriedade e você ficará lá o quanto quiser... sem me pagar aluguel — sorriu. — Se acha que ainda necessita de algo, trate de dizer, porque quando nos despedirmos não tornaremos a nos ver. — Será melhor assim. Entraram no carro, que logo partiu. Tarika, no assento do carona, continuava aferrada à maleta tipo executive, antegozando o desfrute do milhão de dólares. Mortos Wong-Fu, Zheyad e Berlano, e com Laprade com a vida por um fio, só restaria Baugier, o qual por certo estaria tão preocupado com sua própria segurança que jamais se lembraria dela, imaginando-a também liquidada pelo inimigo. Enquanto isso, Eddy se entregava a uma verdadeira faxina, removendo todos os vestígios da ocupação temporária. Dispunha de um Citroen “Sapo”, alugado, devidamente oculto a uma pequena distância da gruta. *** O “Peugeot 404” parou diante do sobradinho, que era verdadeiramente encantador, todo branco, de estilo francês. — Aí está o seu diminuto palácio, temporário ou definitivo, segundo você decida afastar-se ou não de mim. Tarika virou-se ligeiramente no assento. — Não o imaginei capaz de ser tão cavalheiresco. — Não costumo misturar trabalho com amor — disse ele, passando o braço por cima do encosto para segurar delicadamente a nuca da moura. — Conquanto a operação — 84 —

ainda não esteja concluída, creio que já posso dedicar algum tempo à admiração do verdadeiramente belo. — Obrigada... — Está certa de que...? — Pretendo aproveitar este dinheiro em liberdade, Moulay. Os homens de nossa raça são dominadores e absorventes. Você não deve constituir uma exceção. — De fato... Bem, pode se instalar no sobradinho. Ela abriu a porta e seu coração bateu com força. Tinha o pressentimento de que seria eliminada antes de alcançar o portão da casa. — Adeus, Moulay. — Adeus, Tarika. A moura caminhou tensa, esperando ouvir a detonação e sentir o impacto da bala nas costas. Porém chegou ao portão, entrou no pequeno jardim, meteu na fechadura a chave que lhe entregara o árabe e chegou a estremecer, dizendo-se mentalmente: “É agora!” Nada aconteceu. Entrou, fechou a porta e ouviu o ruído do motor se afastando. Deu um gritinho de alegria. Um bom aliado, um sobradinho discreto no qual repousaria antes de sumir de Tanger e... um milhão de dólares. Acendeu a luz e gostou do ambiente mobiliado com gosto europeu. Teve ímpetos de abrir a maleta, espalhar os dólares pelo chão e caminhar por cima deles para se sentir uma rainha, mas soube controlar-se. Não podia agir como criança... Subiu ao primeiro andar e acendeu as luzes, sempre aferrada à maleta, adorando o banheiro. Deixou a maleta na cama de casal e sorriu à idéia que lhe veio à cabeça: muito melhor dormir com um milhão de dólares do que com o melhor homem do mundo.

— 85 —

Despiu-se e se deliciou com um banho tépido. Enxugou-se e voltou para o quarto, nua em pelo, atirandose em cima da cama com o olhar fixo na maleta. Agora, passaria horas namorando sua fortuna, até adormecer de exaustão amorosa. Abriu a maleta. Algum milagre evitou que seus olhos saltassem das órbitas. Impossível! A maleta era aquela e ela vira o dinheiro! Eram dólares! E se tivesse enlouquecido com o delírio de riqueza? Sacudiu a cabeça e olhou de novo, só então reparando no pequeno objeto de plástico, cinzento, com o formato de uma caixinha de fósforos das menores. Parecia colado à parede interna da maleta e era bem semelhante a um diminuto radinho de pilha. Segurou-o com todo o cuidado e conseguiu removê-lo, percebendo que devia ter estado ali sob forca magnética. Levou um susto, porque o aparelhinho começou a emitir uma voz: “Aqui fala o Máscara-Negra. Caso prefira, Antonio Morandi, ou Thi-Siung, ou, ainda, Moulay benMohammcd. Apresento os motivos pelos quais vai morrer. É acusada... eu a acuso de assassinar vários agentes da CIA, em Tanger, especialmente Estambul-3, o chefe de nossa rede aqui. Além disso, devo acusá-la de haver participado de uma operação, junto com Wong-Fu, que poderia ter comprometido seriamente a paz mundial. São coisas que o Máscara-Negra jamais perdoa.” Tarika se encolhia cada vez mais, parecendo hipnotizada pelo diminuto gravador. Não tanto por causa das acusações e da condenação, mas pela voz. Reconheceua de imediato: a voz do playboy Horace Young Kirkpatrik!

— 86 —

Aterrorizada, atônita, perdeu várias palavras, mas ouviu nitidamente as últimas: “... e por tudo isso eu a condeno à morte. Tem apenas três segundos de vida.” Terminou o playback. A moura estava boquiaberta. O playboy! Só podia ser uma brincadeira. Tic-tac, tic-tac, tic-tac, BUUUM! Foi um estampido seco de horripilante eficácia. Até no gramado do jardim havia pedaços de Tarika junto com cacos das vidraças. Perto dali alguém deu partida a ura motor e o carrinho francês se afastou ligeiro. Seu chauffeur tinha assuntos muito sérios a resolver ...

— 87 —

CAPÍTULO DÉCIMO Ele não podia ver sangue... Quando Kirkpatrik entrou na gruta, Eddy foi ao seu encontro, ansioso por notícias. — Então? — Perfeito. — Eu... eu me sinto culpado de um homicídio! Kirkpatrik deu uma risadinha, batendo carinhosamente no ombro de seu fiel secretário particular. — Esqueça isso, Eddy. Você se limitou a trocar as maletas. Além disso, deverá compreender que foi necessário. Não tornarei a usá-lo desse modo. Acontece que não dispunha de outros colaboradores ou de contatos em Tanger. Nossa rede foi dizimada. — Eu compreendo, Horace, mas... — Esqueça e passe ao que importa: focalizou “Roma1”? — Claro. Ele estava aguardando a comunicação. — Ótimo. E então? — Forneci todos os dados necessários e estava esperando informações sobre o desenvolvimento da operação. — Falhamos num ponto capital, Eddy. — Qual?!

— 88 —

— Trouxemos cigarros, mas esquecemos do uísque e da geladeirinha portátil. Eddy sorriu com ares vitoriosos e desviou o foco da lanterna para um recesso da gruta. Ele não falhava. — Sabe, Eddy? O sistema inventado pelos nossos laboratórios para criar frio sem motores e compressores é simplesmente genial. Um brinde aos nossos colegas cientistas. Servira uísque para ambos. Sentaram-se numa pedra a fim de saborear a bebida enquanto aguardavam a chamada de “Roma-1”. Já haviam terminado a terceira dose quando ouviram o sinal de chamada e Eddy saltou para atender, porém Kirkpatrik demonstrou uma vez mais sua agilidade, apoderando-se dos comandos antes dele. — Fale, “Roma-1”. Aqui é “77Z”. — É uma honra cumprimentá-lo! — É sempre uma honra cumprimentar um colega. Passe ao relato da operação. — Pusemos a pique o submarino, não sem antes, é claro, baldear a carga para o nosso navio camuflado. Tivemos êxito na intervenção. O mais engraçado é que os tripulantes do submersível foram muito amistosos quando os abordamos. Não entendo! — São coisas da vida... Agora, “Rotna-1”, direto para Istambul. Nossa rede saberá como conduzir a carga ao seu destino. — E se houver contratempos entre Istambul e...? — Nossa responsabilidade cessa em Istambul, “Roma1”, a menos que sejamos chamados a intervir. — É confortador... — Também acho. Boa viagem.

— 89 —

— Saiba que me sinto seguro sabendo que você faz parte de nossa rede internacional. — Saiba que me sinto seguro sabendo que há rapazes como você em nossa rede internacional, “Roma-1”. Se ficarmos rasgando seda, acabarão pondo a pique o nosso barquinho. Ciao! Cortou a comunicação e virou-se para Eddy, que sorria amplamente. — Dê sumiço à transceptora e siga para Paris; de lá, direto para casa. Enviarei o relatório para Washington. — Sabe, Horace? Vou inaugurar aquelas iscas artificias japonesas que você me deu. Chegarei bem no início da temporada das trutas. — É... — Fez o “Máscara-Negra”, com nostalgia. — Vai ter início à temporada das trutas. — Bom proveito, Eddy. Bye-bye. Tenho de ir ao “Les Almohades” fazer uma de minhas cenas. — Horace... você... não correrá perigo? — O estupidarrão Horace Young Kirkpatrik pode correr algum perigo? — É verdade... Kirkpatrik saiu da gruta após desvencilhar-se do maravilhoso disfarce, que Eddy se incumbiu de queimar, meteu-se no “Peugeot 404” e partiu imediatamente para o centro de Tanger. *** — Oh, foi terrível, foi simplesmente terrível, cavalheiros! — dizia o playboy, com visíveis sinais de náuseas, o escandaloso blusão desabotoado e os cabelos desgrenhados. Estava sendo entrevistado pela imprensa local. — 90 —

— Afirma-se que o senhor viu os cadáveres — falou um dos repórteres. — Vi! Eu vi! Horrível! Não quero mais falar no assunto! Sangue me embrulha o estômago, me dá vontade de... com licença! Correu para fora do hotel, pela saída lateral, apoiandose numa palmeira. Pouco depois voltou, tapando a boca com UIB lenço. Ergueu a mão espalmada para indicar que não mais atenderia à imprensa e meteu-se no elevador para subir. — Horace! — chamou uma mulherzinha sensacional, entrando com ele no elevador. — Não tente fugir de mim, porque tenho um assunto importante a discutir agora mesmo. — Assunto? — repetiu o playboy, aparvalhado. — Não posso. Agora não posso. — É importante, Horace. Na verdade, são dois assuntos. Primeiro, o safari para o qual nos convidou. — Tudo acabado. Não terei forças... — E que faremos sem você, Horace? — Não sei. Não quero saber. Ai, o meu estômago! — Reaja, Horace. Afinal, eu sou mulher e também vi os cadáveres. — Os cadáveres! Está acima de minhas forças! — Está bem, querido, não falemos mais nisso. Agora, outro assunto. — Ainda tem outro assunto? — O principal: descobri seu segredo. Horace Young Kirkpatrik arregalou os olhos. — Meu segredo?! — Foi o que eu disse. Descobri seu segredo. Horace, você é pintor. Não negue. Sei até que pinta o nu. Ele deu uma risadinha de falsa modéstia. — 91 —

— Sou um principiante. — Não foi o que me disseram. Horace, quero ser retratada. — Nua? — Assim... Desprendendo as alças, a francezinha Nicole deixou o vestido ligeiro cair aos pés. Não usava soutien e seu biquíni cor-de-rosa não podia ser menor. — Que tal? Não sou um bom modelo? Já estavam no corredor e Kirkpatrik olhou para os dois extremos, desconcertado. — Nicole, os hóspedes podem não gostar. — E você? Só me interessa saber se você está gostando. — Estou. Ótimo modelo. — Então, vai me retratar, Horace?! Ele olhou-a uma vez mais de cima abaixo e sorriu. — Claro. Mas depois. Agora entre: quero estudar certos detalhes. Todo pintor deve sentir seu modelo... Abriu a porta e Nicole recolheu o vestidinho do chão, entrando, entusiasmada. — Estude, Horace, estude à vontade. Quero ser muito estudada. Ele murmurou, enquanto fechava a porta: — São os cavacos do ofício... — Que disse, querido? — Ah? Oh... Eu disse que vou estudar. — Que bom!

FIM

— 92 —

A seguir: ABC — MORTE TOTAL — Aquele casal de alemães, separados pela guerra e reunidos na Suíça, poderia fabricar a maior arma do mundo. A morte estava em leilão... e Kirkpatrik precisava evitar a batida do martelo! Não percam a nova e espetacular aventura do agente 77Z!

— 93 —

— 94 —

— 95 —

— 96 —

— 97 —

— 98 —

Related Documents


More Documents from ""

Candlesong -basix-ssatb
November 2019 78
Ferretto.txt
May 2020 25
June 2020 71
June 2020 37