STEINER, LEITURA(S) Cultura Contemporânea Artur Alves, 2001
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................4
CAPÍTULO I: DA PRESERVAÇÃO DA "BOA LEITURA" ...............................................................8
CAPÍTULO II: DA ESTRUTURA DA CULTURA: "METÁFORAS CONTÍNUAS" .....................15
CAPÍTULO III: A MEMÓRIA, A LEITURA E UMA ÉTICA ...........................................................20
CAPÍTULO IV: ...... A CULTURA CONTEMPORÂNEA REFERIDA À HISTÓRIA DO SÉCULO XIX - CURTO ENSAIO EM TORNO DE NO CASTELO DO BARBA AZUL ................................26
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................30
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................32
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INTRODUÇÃO When you are old and grey and full of sleep, And nodding by the fire, take down this book, And slowly read, and dream of the soft look Your eyes had once, and of their shadows deep; How many loved your moments of glad grace, And loved your beauty with love false or true, But one man loved the pilgrim soul in you, And loved the sorrows of your changing face; And bending down beside the glowing bars, Murmur, a little sadly, how Love fled And paced upon the mountains overhead And hid his face amid a crowd of stars. ("When You are Old" , W. B. Yeats) There is an art of reading, as well as an art of thinking, and an art of writing. (Isaac Disraeli) Somos «responsáveis por», somos «respondentes» à intimação, à voz e à presença que se aproximam de nós (...) (George Steiner)
O nosso país é, decerto, um país de contrastes indecisos. Contraste entre os desejos e aspirações, momentos de euforia generalizada e estranhos tempos de desconcerto. O grande desígnio da alfabetização do País parece abandonado à dinâmica da inércia dos ciclos demográficos, avançando à razão decadente da renovação de gerações. O que deixa uma marca indelével na estrutura cultural, no próprio tecido da cultura portuguesa e, claro, no desenvolvimento do País. Donde, sobra-nos a descrença perante irrealistas estatísticas de leitura que apontam para uma percentagem elevada de portugueses que lêem regularmente, embora objectos diversificados (recordo, nomeadamente, uma das intervenções de José Saramago durante a Feira do Livro de Lisboa de 2001 quando, confrontado com a cifra de 80% de portugueses que seriam "leitores regulares", lembra que a taxa de alfabetização nacional ronda essa percentagem - para além de que, claro, povo algum, mesmo com população completamente alfabetizada, atinge tais cifras de leitura). Ora, se grave é a reduzida taxa de alfabetização, muito mais graves seriam os números do analfabetismo funcional, conceito amplamente debatido e esclarecido; neste ponto do trabalho, interessa-nos particularmente esta realidade.
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A que se poderia referir este conceito que não às palavras de Isaac Disraeli? O analfabeto funcional sabe ler, escrever, fazer contas, mas não poderá "ver" e exercer a arte da leitura, do pensar ou da escrita. As responsabilidades de um sistema educativo são, recorde-se, preferencialmente apontadas a este nível: um sistema de ensino, segundo o Governo, tem a função de formar cidadãos e trabalhadores válidos, livres (vastíssima questão: a liberdade e a escrita) e plenamente conscientes do Mundo. Como se compreende, uma crise da leitura advém justamente da incapacidade de comunicar in absentia, da pura e simples recusa, por repulsa, do Outro autoritário (Steiner não deixa de nos lembrar que a palavra "autor" está presente em "autoridade"), seja porque o igualitarismo cria anticorpos contra esse "autoritarismo", seja por liminar rejeição da alteridade. Quer dizer: a arte de ler é algo que também é necessário aprender, sendo que tal aprendizagem me parece ser, por maioria de razões, indirecta, já que a pedagogia actual não procura, decerto, que tão poucos se dediquem à leitura. Voltar-se-á a este assunto, mais aprofundadamente, na Primeiro Parte deste trabalho. Acresce a esta problemática algo de ainda mais profundo: como tratamos a nossa linguagem? O que fazemos com ela? Como a preservamos, como a transmitimos, como a alteramos? Em Steiner, estas interrogações constituem como que um basso continuo, quando ele nos fala das "doenças da linguagem" e da "crise da educação", argumentando que, tendo a literatura e a escrita em geral contribuído para a formação e cristalização das línguas, perder a capacidade e o interesse pelos grandes autores equivale a virar costas, não apenas a um passado histórico a glorificar (fonte de abomináveis nacionalismos), mas sobretudo à herança mais sublime e mais humana, ao cimento comunitário de cada povo e, mesmo, a um imaginário comum verdadeiramente fundador da cultura. George Steiner afirma que há figuras, alusões, metáforas absolutamente universalizadas na cultura, enraizadas na poesia e na prosa, na escultura e na música, preservadas mesmo nas línguas, na sua estrutura gramatical e nas suas expressões mais coloquiais - e como tal, menos postas em causa -, realidades essas que são, cada vez mais, postas de parte, quando não completamente ignoradas e já perdidas para sempre por muitos. E essas "metáforas contínuas" da cultura, desde sempre transmitidas pelas artes, que são um pilar fundamental da civilização ocidental, de lugar- comum dos círculos da alta cultura europeia e da nata artística ocidental desde a Antiguidade, são condenados, por inaudita falta de audiência, às notas de rodapé cada vez mais chãs das
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nossas edições dos clássicos. Objectar-se-á, com alguma justiça, que a nossa cultura massificada está organizada em volta dos mass media, aos quais não se pode atribuir a responsabilidade de evitar esse desaparecimento. Na verdade, o que se poderia apontar aos mass media contemporâneos seria alguma falta de cuidado no uso da língua: se os olhos do mundo se encontram virados para eles, a questão pode ser posta ao nível mais pragmático possível, ou seja: os novos guardiães da norma linguística são eles - pelo menos para a mais substancial parte da população -, e isso torna-os, de facto, responsáveis, ainda que recusem tal responsabilidade em nome das lógicas de mercado... ou outras... A noção de responsabilidade aqui adoptada corresponde ao termo answerability, no sentido de answering answerability e de responsible response, usados por Steiner em Presenças Reais e traduzidos por Miguel Serras Pereira como «responsabilidade» (vide texto em epígrafe). Alude-se a um processo com dois momentos (1) à acção exercida por uma leitura, no sentido lato do termo (não meramente verbal), sobre o leitor/fruidor/espectador e (2) ao modo como este último toma o objecto como seu - a sua reacção/resposta posterior à leitura. Paralelamente, qualquer ser humano inscrito numa comunidade recebe dela algo que passa a ser "seu", i.e., passa a "responder por" isso. Não deverá ele assumir a "responsabilidade" de passar essa herança em toda a sua plenitude? A preservação da língua também passa pelos falantes. Já o acto de leitura propriamente dito é um acto solitário, uma manifestação de liberdade que ocorre em privado, ergo absolutamente não- comunitário no sentido presencial do termo. Na verdade, não se nega a co- presença de consciências, mas tal presença está obviamente relacionada com (1) uma suspensão da "presença física" de terceiros, ou pelo menos a suspensão da comunicação com um terceiro e (2) a aceitação da mais completa das alteridades, presentificada num objecto (livro - o carácter evocativo, mnemónico mas re- figurativo da escrita é justamente o tema do poema de Yeats em epígrafe), um "absolutamente Outro". A decisão pelo isolamento é um acto de liberdade, uma afirmação de escolha, tão afastada do plano da determinação empírica como o próprio acto de criação artística (no sentido em que ambos os actos poderiam simplesmente não ser, uma vez que são resultado de decisões autónomas). Não deixa de ser curioso que esta "identificação" da leitura e liberdade seja documentada por Steiner
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com o melhor dos exemplos possíveis, relacionado com a realidade da leitura em regimes democráticos (EUA) e regimes totalitários (URSS)1. A "boa leitura" é qualquer coisa bastante difícil de definir. Mas haverá, decerto, predisposições, mecanismos e "bagagem" cultural que determinem, em maior ou menor grau, a capacidade de aceder ao que um texto2 nos diz, ainda que o possamos perceber pela negativa: Steiner dedica um ensaio ao tema da dificuldade da leitura, tentando justamente definir o que se quer dizer quando se afirma «Este texto é difícil.», e desvelando diversos níveis ou tipos de dificuldade. Eu diria que uma leitura isolada nunca é fácil: alguém não muito dado à leitura que se vê obrigado a explorar uma obra sente-se, obrigatoriamente, desconsolado, sofrendo da solidão decorrente da obrigação. Só a familiaridade com a leitura e a temática própria da manifestação cultural presente perante nós permite alcançar os diversos patamares de significação e sentido da obra. Daí que não só pareça essencial o conhecimento de obras- chave da cultura como também a intuição da leitura como trabalho para e trabalho de - intimamente relacionado com a compreensão e interpretação. O alerta para a dificuldade, para a alteridade, o apelo ao exercício da liberdade positiva e da autonomia do sujeito mostram-nos que Steiner não pretende escamotear as problemáticas decorrentes do acto de leitura e interpretação. Parece recordar-nos permanentemente que também há uma ética para a leitura - evocando inclusivamente a Teoria da Recepção -, que há "presenças" a respeitar - se assim me é permitido exprimir. A chamada alta cultura, essa que é colada às elites sociais - tão erradamente e às universidades (necessariamente, este é um vasto tema que também desenvolveremos no corpo do trabalho), é para ele o espaço de movimento por excelência, para onde nos leva com o desígnio de mostrar o que de humano, de atraente e belo, mas também de difícil, de opaco e tenebroso pode haver na cultura ocidental. A escolha de uma abordagem "solta" e diversificada, se bem que ancorada nos conceitos usados por Steiner, foi feita de modo a permitir um "reenvio constante" a realidades bem presentes e a temáticas interpelantes da Cultura Contemporânea, muitos dos quais se referiram e/ou insinuaram durante as aulas. Temáticas idênticas, outra(s) perspectiva(s)... 1
Voltaremos a este ponto mais adiante. Trata-se de um assunto abordado no livro On Difficulty and Other Essays. 2 Quando aqui se fala de "texto "e "leitura", tem-se presente que, embora tendo como horizonte imediato o verbal, é possível alargar estes termos a outros códigos semióticos. Tenta-se ressalvar o carácter intersemiótico da cultura e das "metáforas contínuas".
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Capítulo I: DA PRESERVAÇÃO DA "BOA LEITURA" There is creative reading as well as creative writing. (Ralph Waldo Emerson) A criação estética é em supremo grau inteligência. (George Steiner)
Seguindo na esteira das palavras de Ralph Waldo Emerso, o leitor é coroado criador do seu próprio método de leitura, actualizado permanentemente em função de estímulos exteriores (a escrita alheia - e em vias de se tornar sua) e motivações pessoais: eu leio o que leio, quando não por puro "vício"/prazer, com motivações definidas e dignas de consideração. Não se fará neste trabalho uma taxinomia ou uma tipologia das leituras, porque nada indica que diferentes motivos para alguém ler não possam, a priori, ser condicionados por variadíssimos factores contextuais e pessoais. Importa, para a abordagem assumida por este trabalho, simultaneamente mais abrangente e centrada em torno da figura e pensamento de Steiner, pensar sobretudo o modo de ler no campo das referências gerais da cultura ocidental. Quando se fala de "referências gerais", pretendo interpelar sobretudo os marcos indeléveis e consensuais da arte literária da Europa, de Homero a Joyce, de Bach a Bartók, de Giotto a Van Gogh, e os novos "modos de ver" instituídos na nossa visão do mundo (Weltanschauung) por este movimento contínuo da cultura. George Steiner fala-nos da perenidade da visão proposta por estes criadores. A ocasião apresenta-se propícia à evocação de Ricoeur e do seu conceito de "mundo do texto": «Ce qui est en effet à l'interpréter dans un texte, c'est une "proposition de monde", d'un monde tel que je puisse l'habiter pour y projeter un des mes possibles les plus propres. C'est ce que j'appelle le monde du texte, le monde propre à ce texte unique.»3 Estas propostas do possível - do contingente, mas possível - que se nos apresentam sob a forma de arte (haveria outra forma?), remetem-nos já para a questão da existência dessa mesma arte: a sua existência é já um dizer, um manifesto de algo, em suma, um dizer/estar no mundo que, por direito próprio, acede às consciências. A obra de arte poderia não ser, como as grandes realizações humanas poderiam nunca ter sido feitas. Ambas são respostas de uma vontade, ambos os tipos de manifestação constituem, em certo sentido, respostas aos desafios, às questões, do mundo humano. 3
In Ricoeur, Paul, Du texte à l'Action, Essais d'Herméneutique, vol. II, Paris, Seuil, 1986, pág., 115
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Por ser pura realização, pura construção humana, a obra de arte - não podemos ainda, e talvez não seja de utilidade indiscutível, delimitar definitivamente o campo a qualquer dos ramos da arte - é propriamente a manifestação do humano, do «dur désir de durer». «Num sentido perfeitamente concreto, as linhas que delimitam [a arte] são uma extensão desconhecida na direcção do futuro.»4 A liberdade do Homem é, assim, projectada no futuro, cada vez mais indefinidamente à medida que a capacidade dos dispositivos mnemónicos da Humanidade aumenta exponencialmente. Retenhamos deste último ponto a ponte entre a arte e o desejo de perdurar na memória dos homens. Afirma Steiner: «Não há literatura, arte ou música estúpida que perdure.»5 A questão, na realidade, não se afigura assim tão simples... O problema da distinção entre "boa" arte e "má" arte não se coloca ao nível chão (e ridículo) da comparação entre uma música (?) de Zé Cabra e uma ária de Puccini, mas é grave e perdura por décadas quando se pretende comparar ou avaliar os génios de Wagner e Verdi, por exemplo (toda uma geração de melómanos nacionalistas alemães e italianos contemporâneos dos compositores se digladiaram ao som de Aïda e de Tannhäuser com considerações estéticas, filosóficas e políticas de toda a sorte). Não haverá nada, a não ser talvez a evolução das audiências de determinada obra ao longo do tempo (e mesmo esse será, de todos os critérios, o mais usado e menos consensual), ou a persistência do fascínio por um dado objecto artístico, que nos indique a qualidade imutável da arte. Obras largamente apreciadas hoje não passarão de sombras amanhã, memórias distantes de manchas de criação lavadas pelo tempo, enquanto, por estranho efeito purificador e decantador do mesmo, esquecidas obras- primas verão sua qualidade exaltada, colocadas solenemente no panteão da Arte. Na minha opinião, as artes podem produzir prolixamente mas, para a enorme torrente daí resultante, os abstractos factores da liberdade e criação humanas acabam por ser as pedras de toque da resolução do estatuto da obra de arte: a criação mais original, a obra mais rica e mais livre - ou seja, mais aberta e sensível àquilo que o mundo tem para dar ao Homem como criador - perdura. São, de facto, inteligência de. Igualmente, a boa leitura, ainda que de boas obras se diga, é algo de mui difícil análise. Donde, por um lado, o próprio surgimento da crítica como actividade literária, metatextual e, por outro, a acumulação e estratificação, quando não simples "soterramento" da obra original, dos comentários mais variados no estilo e no sentido. 4 5
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág.35 idem, pág.22
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Este seria um problema fácil de resolver, dessem os próprios artistas as chaves para a sua obra ao leitor; enfim, se alguns o fizeram, não foi decerto a maior parte, e desses poucos ainda menos terão deixado mais do que simples marcos miliários no caminho da interpretação. Uma vez que o mundo imaginário proposto por Steiner, «uma sociedade na qual toda a discussão sobre as artes, a música e a literatura fosse proibida (...)[na qual] qualquer discurso, oral ou escrito, sobre livros ou quadros ou obras musicais de valor seria considerado palavreado ilegítimo.»6, nunca poderia passar de fantasia, a interpretação da obra de arte não só se encontra confinada à busca de si mesma - das metodologias que lhe permitam aceder à "boa leitura" - mas também está condenada a erigir marcos miliários periclitantes em tal senda. Acompanhemos Steiner quando nos apresenta a execução (leia-se: interpretação) de uma obra musical como o paradigma da "leitura". De facto, neste caso está bem estabelecido um cânone de diversos níveis, um dos quais nos permite identificar a obra em questão como a obra A do compositor B, o que desde logo limita muito o universo do que pode ser considerado uma boa leitura dessa obra. Neste sentido, "boa" interpretação alude à fidelidade à partitura - ao texto. Mas há mais: « Em pintura e escultura, como em literatura, a luz concentrada tanto da interpretação (a hermenêutica) como da apreciação (nível crítico- normativo) reside na própria obra. São arte as melhores leituras de arte.»7 As conclusões que podemos derivar desta argumentação são decisivas para o avançar deste capítulo. Desde logo, percebemos que os artistas são, em elevado grau, conhecedores do universo de referências e alusões em que a cultura se move, ou de que a cultura artística se faz (a isto chamar-se-á doravante "metáforas contínuas" - metáforas porque trata de um mecanismo do tipo comparativo, co- presencial e co- referencial relativamente aos objectos evocados; contínuas por serem elementos omnipresentes e perenes na cultura), objectos que, de resto, "contaminam" as diversas artes através dos tempos; um exemplo, que consideramos riquíssimo: «If thou beest he - but ho, how fallen! How changed From him who, in the happy realms of light, Clothed with transcendent brightness, didst outshine Myriads, thought bright! (...)»8
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idem, pág. 16 idem, pág. 27 8 in Milton, John, Paradise Lost, Londres, Penguin Books, 1996, pág. 9, 84-87 7
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Neste breve trecho da obra maior de John Milton, encontramos, sem margem para dúvida, claras referências a outro marco do género épico - a Eneida, de Virgílio -, bem como ao livro de Isaías, da Bíblia: do primeiro, uma imitação da exclamação de Eneias ao fantasma de Heitor, mutilado por Aquiles: «quantum mutatos ab illo / Hectore»9, do segundo, uma referência óbvia: «Como caíste dos céus, / ó astro brilhante, Filho da Aurora?».10 Só um conhecimento alargado e, na realidade, uma memorização e interiorização de tais obras da tradição clássica e judaico- cristã (em boa verdade, os dois pilares da cultura ocidental) poderia permitir tal entrelaçamento e recombinação de elementos dessas obras. Pelo lado da recepção, também é verdade que só o leitor culto, informado e conhecedor pode aceder à profundidade de significação e referência evocativa de tais versos. Assim, chegamos ao segundo ponto deste capítulo. O papel da memória na "boa leitura" é óbvio. A compreensão de grandes obras da tradição ocidental (em português, Os Lusíadas são indubitavelmente a grande obra que vem à lembrança) depende, em grande parte, de uma prévia aquisição de conhecimentos e, mesmo, de uma in- corporação, no sentido literal do termo, dos elementos formais e estilísticos e dos topoi atravessados. A riqueza multifacetada de textos como Paradise Lost encontra-se, pois, verdadeiramente inacessível a quem não possui esta "bagagem". Uma sociedade cujos elementos não acedam a este nível de conhecimento e cultura perde a memória da sua herança cultural e, mesmo, da língua e literatura próprias. Esse "lastro da identidade" que é constituído pelos fragmentos incorporados da cultura através da memória individual (um poema decorado, uma música conhecida de cor) é pura e simplesmente perdido quando se deixa de prestar a devida atenção a esse ruído de fundo que são as referências da cultura. Logo, com o afastamento do indivíduo relativamente à sua própria envolvente, ele fica muitíssimo mais vulnerável a manipulações e arbitrariedades de toda a sorte, desde logo porque não possui qualquer sentimento de pertença a uma comunidade de valores e referentes: «As questões que aqui se levantam são políticas e sociais no sentido mais pleno. As memórias alimentadas e cultivadas em comum mantêm uma sociedade naturalmente em contacto com o próprio passado. Mais ainda, a memória salvaguarda o núcleo da 9
in Virgílio, Eneida, II, 274-75 in Isaías, 14, 12. A referência é bem mais rica que a nota de rodapé da edição da Penguin nos dá a entender. Is., 14, 12 é parte de uma «Sátira contra o Rei da Babilónia», um cântico contra o opressor finalmente tombado e um hino à liberdade do povo de Israel. A designação de «Filho da Aurora» é, naturalmente, sarcástica, coincidindo com um segundo nível de sentido que Milton quer conferir à interpelação de Satanás por parte de um dos seus companheiros, derrotado como ele na contenda que moveu contra Deus.
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individualidade.»11 Para uma sociedade em que o individualismo é tido como dominante, parece-me acertado dizer que muito poucos alcançam este grau de "autonomia", que permite, seguindo a argumentação de Steiner, conservar a individualidade para além dos ataques, das solicitações e do desgaste do mundo contemporâneo; trata-se de elementos constitutivos da atitude pessoal do indivíduo perante o mundo, autênticos definidores da personalidade que fornecem pistas para a sua formação. Podemos recuar, como é sabido, até Platão para encontrar o primeiro momento de crítica aos dispositivos de armazenamento de memória exteriores ao ser humano. Como o filósofo grego sabia, a "letra morta" de nada serve, enquanto o Homem é, num sentido muito próprio, memória viva. Existe uma grande diferença entre saber de cor passagens da Ilíada, quando não toda a obra, e ler a Ilíada distraidamente, como curiosidade intelectual; conhecemos com algum rigor a importância destes textos para a pedagogia ateniense, o que torna possível imaginar o contributo desta memorização colectiva de uma herança cultural comum para a formação de uma identidade. Talvez seja exactamente isto o que define uma comunidade: pertença, cultura, referências comuns em permanente evocação (eventualmente inconsciente, manifestada a priori pelos membros dessa comunidade). Logo, uma ausência a este nível só pode ser percebida por Steiner como um risco, mas há mais... «(...) subtlety and self- sustaining intensity of debate which permeates Soviet intellectual life and which, to an extent largely unregistered in the West, has survived the recurrent terrors. But this essential bookishness goes much beyond ideology and schooling. If it is the medium of power and official discourse, it is, no less, that of opposition. (...) the subversive poem, novel, satirical comedy, underground ballad has always been, is, will continue to be, the primary act of insurgency »12 A sociedade marxista, com a forte influência livresca do judaísmo e do comentário, e as próprias tradições da escrita russa combinavam-se, na ex- URSS, para dar origem a este tipo de situação, em que a literatura é tratada como qualquer coisa de absolutamente central, realmente colocado na plenitude da sua relevância para a vida da sociedade. Isto, enquanto os sistemas educativos ocidentais eliminam o aprender de cor enquanto instrumento de aprendizagem. Tal permissividade é, na argumentação de Steiner, o perigo que advém em ambientes nos quais se considera a literatura algo de 11 12
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 21 in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 6
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exótico, destinado à guarda dos sectores iluminados e cultos, mais ligados a essa "alta cultura": não foram sempre poucos os guardiães dessa cultura? Pensar a literatura e a música como algo de exterior resulta num empobrecimento, numa perda da riqueza que as obras de arte podem trazer à vida humana e à vida em comunidade. Afinal, aquilo que distingue sem tais elementos passa a ser uma questão de consumo, de "exteriorização" e não de "interiorização", de afirmação. O problema não se põe politicamente, como é óbvio; não é uma questão de regime político, mas sim de valores e de valorização da memória e da liberdade de pensamento. Nunca se insistirá demasiado neste ponto: a cultura encontra-se perdida quando é recusada sistematicamente, quando a recusa ou indiferença atinge um ponto de ruptura em que já não é possível qualquer sensibilidade estética à arte e, mais grave ainda, se deixa de reconhecer a liberdade pela arte. Esta hierarquia de valores "bibliófila" encontra-se largamente erodida, mesmo tendo constituído, até esta época histórica, o modo de construção e desenvolvimento da cultura. O sentido de equilíbrio e fruição estéticos que perdurou desde a Antiguidade clássica até ao século XIX, reflectidos no conhecimento - e, mesmo, familiaridade - com as pedras angulares da literatura ocidental, é hoje remetido para um elitismo retrógrado ou reaccionário13, excepto no caso das Universidades. Steiner alerta-nos para este novo risco: apesar da riqueza do comentário e da glosa ser uma realidade, ela fica sempre devedora do texto, para além de dever sempre instituir-se em nova obra, mais do que um mero operar de um reconhecimento crítico do texto em análise. Há um modo próprio de comentar, de interpretar, de ler, que consiste em manter um espírito aberto, como que um convite a entrar em nossa casa a um Outro. Perder de vista a obra original é deixar o estudo enrolar-se sobre si próprio, desconsiderar o que temos diante de nós. Há algo de totalitário e obsessivo na leitura, tanto por parte do texto em si como por parte do leitor: «Self- bestowal on a text, the vertigo of attention which bends the scholar's back and blears the eye, is a posture simultaneously sacrificial and stringently selfish. It feeds on a stillness, on a sanctuary of egotistical space, which exclude even those closest to one.»14 Logo, o que resulta de uma verdadeira leitura é o produto de uma dedicação extremamente exigente, pelo que
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As razões para tal quebra, para esta perda de valores centrais na civilização tal como a conhecemos, são demasiado numerosas e ramificadas para o propósito deste trabalho. 14 in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 10
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me parece que, perante as solicitações do mundo actual não hajam condições ideais para conseguir tal dedicação. O que de facto acontece é que a cultura - fala-se aqui em cultura enquanto manifestação e produto, enquanto objecto criado - é relegada para os especialistas da universidade, que tratam de estudar, dissecar e conservar entre paredes aquilo que deveria ser cultura viva. A mumificação da cultura, da arte, ocorre pelo comentário e crítica desenfreados que, tarde ou cedo, deixarão para trás a própria obra que os originou. Ora, não só não é possível interpretar verbalmente uma peça musical, como ainda é duvidoso que se possa verter em paráfrase um texto literário, analisar um poema em toda a sua profunda liberdade - mas «Toda a arte, música ou literatura séria é um acto crítico.»15. A primazia da obra sobre o comentário é uma constante na argumentação de Steiner. No último ponto deste capítulo, resta lembrar que estas leituras secundárias que são as críticas têm responsabilidades em qualquer possível secundarização da obra primeira - desde logo porque a liberdade do recenseador não o compromete para com a sua obra crítica, enquanto que uma interpretação em forma de obra de arte em sentido estrito (como a execução de uma sonata) é algo em que o intérprete investe o seu Ser. Não se limita a julgar, mas actualiza, dá-lhe novo sentido. Esta é, quanto a mim, a diferença decisiva, operada no diferimento entre obra e comentário; trata-se, como facilmente se percebe, do ponto fulcral de um novo "estilo" de cultura, que "arruma" as obras - que pertencem à rua, à comunidade que os recusa para passar a trabalhar infinitamente no comentário, e no comentário do comentário, mundo autofágico e empobrecido. Não é um retorno à origem - como já vimos, resultado desse movimento de glosa, citação e autoridade, a cultura constitui aquilo que se poderia designar, na esteira de Derrida, como uma cadeia de suplementos -, mas sim da compreensão da realidade subjacente à interpretação: para lá e antes do ruído, a música!
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in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 22
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Capítulo II: DA ESTRUTURA DA CULTURA: "METÁFORAS CONTÍNUAS" As coisas excelentes são raras e difíceis. (Bento de Espinosa) A disseminação da cultura escrita a partir do mundo mediterrânico determinou não só as formas da inteligibilidade vividas e documentadas do nosso postulado histórico do indivíduo e da sociedade, como engendra, informa, as nossas religiões, mitologias, investigações filosóficas, as nossas literaturas e as nossas artes. (George Steiner)
A dificuldade das coisas excelentes é a pedra de toque de tudo o que foi escrito neste curto ensaio. O trabalho de leitura, difícil, penoso e exigente, é de molde a ser rejeitado pelas veleidades facilitistas e imediatistas da nossa sociedade. Ainda que as metáforas contínuas tenham vivido com e pelos leitores e artistas ao longo de centenas de anos, o risco de as perder no pó dos séculos e nas memórias mortas das letras esteve sempre bem presente. Não que a sua perda completa estivesse em causa; o que aparece como risco é a própria separação entre o Homem e a arte, entre o ser humano e a cultura. Como se se tivesse perdido de vista o apelo dos sofistas: «Nada de humano me deve ser estranho.» Curiosa vida, a das referências culturais clássicas. Surgidas em tempo e lugar bem determinados, da fonte da cultura escrita e livresca que se desenvolveu no Mediterrâneo (Jerusalém, Atenas, Roma, Alexandria, Bizâncio, Florença, Génova, Veneza), determinaram fortemente todo o futuro desenvolvimento das artes. O modelo estava estabelecido nas suas principais linhas e topoi e, sendo tão rico, oferecia possibilidades de criação e de profundidade de interpretação reconhecíveis em obras como Ulisses de James Joyce ou no Hamlet de Shakespeare. Os recursos disponíveis permitem, como vimos no capítulo anterior, níveis de interpretação de profundidade inalcançável pela linguagem coloquial (que, ela mesma, se encontra já enquadrada nesta vida e movimento das metáforas contínuas). Os simbolismos e metáforas que persistem, como a associação do loureiro ao deus Apolo, às artes, à glória alcançada pelo indivíduo - aparece na cabeça dos imperadores romanos, mas também na de Luiz Vaz de Camões e de Dante Alighieri -, não morrem completamente, bem entendido; mas perde-se a origem: o vencedor dos Jogos Píticos de Delfos (santuário de Apolo) - que incluíam provas desportivas e concursos musicais e dramáticos -, na Grécia Antiga, era coroado de louros. A árvore de Apolo é referida continuamente na poesia e pintura ocidentais,
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mas podemos estar certos de que muito poucos percebem verdadeiramente o alcance histórico e metafórico da referência. A persistência das metáforas contínuas é, então, o campo onde se joga a arte e a sua riqueza. Ademais, não nos podemos esquecer de que este nunca será um campo estanque, com novas referências e metáforas criadas com cada acto de liberdade de criação, novos significados e profundidades alcançadas na busca da plenitude de expressão. Steiner relembra, contudo, um aspecto deste tipo de literacia: floresceu em ambientes não, ou mesmo anti- democráticos, com fortes tendências de totalitarismo, bem enquadrado política e culturalmente e, claro, sempre foi raro: «Creative literacy was always the disciplined, authoritatively transmitted possession of the few. The general gloss which it gave to society, between the Enlightenment and the crisis of the mid- twentieth century, sprang from power- relations, from pretences, from silences form the majority which our present world is no longer prepared to put up with.»16 Bem entendido, sempre foram poucos os que alcançaram um grau de excelência elevado na sua criação, e continuam sendo poucos aqueles que entendem o próprio vocabulário usado pelos grandes poetas - já não falando da compreensão que interessa, aquela que penetra no próprio poema, nas profundidades da criação. O trabalho de elucidação pode ser, de facto, uma tarefa gigantesca, mas existem no próprio mundo do conhecimento os instrumentos para o realizar. Voltaremos ao aspecto da dificuldade intrínseca à leitura e interpretação mais adiante. Estamos agora em condições de aprofundar mais o conceito de metáfora contínua. Já vimos que a própria referência à metáfora é já metafórica; neste momento, voltar-nos-emos para os temas recorrentes no mundo da arte e no mundo da vida que incluímos também neste conceito vago e nebuloso. Vejamos o caso bem conhecido do uso dado ao Rei Édipo de Sófocles: depois de Freud, assistimos à representação desta tragédia com um ponto de vista feito e refeito a partir das novas referências e concepções - o imaginário e os mitos - surgidas no século XX. Não há dúvida que hoje em dia se fala muito mais desta tragédia do que, por exemplo, no século XIX. Steiner afirma, aliás, que a universalidade do Édipo afirmada por Sigmund Freud não é completa (aliás, de outro ponto de vista, o mesmo é defendido por Deleuze e Guattari no célebre Anti- Édipo), contrapondo-lhe a realidade apresentada por uma outra tragédia: Antígona. «Mas há milhões e milhões de pessoas que não sabem uma palavras de grego, que nunca ouviram falar de Sófocles, mas viram com os seus próprios olhos e viveram
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até ao fundo do coração o drama de Antígona. (...) Nem o próprio problema da inumação dos corpos, no seu aspecto mais concreto possível, está resolvido: enterram-se alguns cadáveres e votam-se outros ao horror e à desgraça de não poderem ser reconhecidos pelos pais, pelos irmãos e pelas irmãs que tentam desesperadamente honrar o seu morto. (...) Nem por isso se trata de uma revolta contra a autoridade, mas o que está em causa é o estatuto do morto na família, a sua representação para o ser amado. (...) Antígona não admite esta diferença; recusa, em nome de uma ética do amor que não traz o selo da revolta, a certeza de que o juízo de além- túmulo será o nosso. Não pode existir uma cultura em que este problema se não ponha.»17 Tal universalidade fora já tomada como motivo para Steiner dedicar um estudo publicado em livro sobre as manifestações deste fenómeno da Antígona; Refiro-me justamente ao seu livro Antígonas, escrito em 1984 e que tem como subtítulo, justamente, «A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais». Vemos Antígonas na Praça de Tianamen, nos lutos dos muçulmanos bósnios após Milosevic, no desespero dos judeus exilados nos EUA após a Segunda Guerra Mundial e os campos de concentração nazis, nas margens do rio Douro em Castelo de Paiva. O futuro encontrase comprometido, preso a uma dívida de luto ao passado, em todos os sentidos - só a resolução deste problema pode permitir voltar a usar no discurso o Futuro gramatical, voltar ao quotidiano, uma vez apaziguada a memória. A figura de Antígona nas artes é apenas um exemplo de muitos outros que poderíamos encontrar. Mas, por razões de economia de espaço, desenvolvamos um pouco o uso da personagem de Sófocles (que, justamente, é mais do que mera personagem) na arte ocidental: da tradução de Hölderlin, passando pelas peças teatrais de Eurípides, Cocteau e Anouilh e pelas músicas de Honegger e Orff, até Bertolt Brecht, o filme de George Travellas, o bailado de Theodorakis e Cranko. De todos nos fala Steiner, em todos se coloca a tragédia em cena de modo distinto mas abrangente, decidido a captar a visão evolutiva do problema profundo que se põe às personagens. O mundo vive mesmo esta tragédia, diariamente e em todos os seus recantos. Hegel, Kierkegaard e Heidegger abordaram este problema nos seus projectos filosóficos. Pensar a metáfora contínua é estudar o próprio modo de ser do pensamento ocidental, compreender o desenvolvimento dos padrões e conceitos usados para pôr em
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in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 16 in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda, 2000, págs. 129-130 17
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prática, para efectivar uma reflexão sobre o mundo segundo problemas colocados necessariamente. Ou seja, a inevitabilidade do surgimento destes temas, a universalidade das referências obriga a não passar ao lado da questão. Daí que o filosofia e arte do nosso mundo se encontrem impregnados por estas figuras a um nível bem mais profundo do que a mera aparência. Portanto, daqui se pode entender que a preservação das metáforas contínuas não é algo que possa ser assegurado pelos «nossos sistemas sociais permissivos», pela ideologia pseudo- democrática que dá prioridade a esquemas de aprendizagem desajustados. Logo, se «este tipo de incorporação e referência, consciente ou inconsciente, mimética ou polémica, é [como vimos] uma constante em arte.»18, e dado que a arte na arte tem origem, pode esperar-se uma certa degenerescência nas referências artísticas em circulação na nossa sociedade. Os sistemas educativo e mediático, ligados como nunca, não são de molde à preservação das metáforas contínuas. O ritmo de circulação muito veloz e o prazo de validade demasiado reduzido da maior parte da produção simbólica actual contribuem para esta queda dos valores livrescos. Já não nos referimos à qualidade da produção, mas ao ritmo da recepção - a velocidade de rotação dos livros nas grandes cadeias de livrarias são um fiel indicador deste fenómeno A educação de massas é muito pouco propícia a contrariar tal estado de coisas, em favor de valores considerados tão retrógrados. As metáforas contínuas são, portanto, relegadas da apreciação estética para o intelectualismo mumificador - vide Capítulo I - com as consequências que daí advêm para a identidade social, cultural e política de uma comunidade ou indivíduo. Com esta visão do estado de coisas não podemos, assim, evitar partilhar a visão de Steiner: a glosa e a alusão superficial das notas de rodapé fazem a arte correr o risco de soterramento ou subserviência, quando o seu pleno desenvolvimento parece depender de condições de liberdade e conhecimento muito para além da superfície do imediato. A coragem necessária para, contra a corrente do tempo, afirmar a necessidade das condições - já caracterizadas - de produção artística é inversamente proporcional ao igualitarismo histérico das instituições- chave da sociedade de consumo. Privilegia-se a mera alusão à verdadeira intertextualidade. Recordo-me de um crítico de cinema português, que apontava o "piscar de olho" de um determinado filme «ao público mais cultivado» como um ponto negativo - sendo que, como acontece habitualmente no cinema norte- americano, as referências à chamada «alta cultura», ou
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cultura clássica, dificilmente poderiam ser tidas como mais do que alusões. Voltemos ao fragmento de Paradise Lost (vide pág. 7); o tipo de intertextualidade que aqui ocorre é mais profundo e variado; não só ocorre uma alusão, mas também uma verdadeira citação, uma glosa de um tema rico e de origens múltiplas (greco- latinas e judaicocristãs), cuja compreensão integral exige o conhecimento (pelo menos) da Ilíada, da Eneida e da Bíblia (especificamente, do livro do Profeta Isaías). O que se pode passar hoje em dia é algo como: mesmo que as referências sejam feitas por conhecedores, artistas livres e responsáveis, o problema colocar-se-ia na recepção, lugar para o qual se encontram perdidas ou distantes as chaves da detecção das alusões e, a posteriori, da compreensão da profundidade intertextual da obra. Naturalmente, não se exige o conhecimento integral da produção escrita mediterrânico- clássica, mas tão-só se faz um apelo à percepção das exigências de uma boa leitura e da atenção exigida pelas subtis metáforas contínuas.
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in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 27
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Capítulo III: A MEMÓRIA, A LEITURA E UMA ÉTICA Quando o texto já não responde, então tem um autor, e não já um locutor. (Paul Ricoeur) A leitura é um fenómeno social e obedece a certos padrões e, por conseguinte, sofre de limitações específicas. (idem) A imagem que os grandes poetas sugerem , e também emerge em Heidegger ou nos pensadores pré- socráticos, é a a de um acolhimento aberto ao pensamento, ao amor e ao desejo dos outros, através da prática da leitura, da audição da música e do conhecimento da arte. (George Steiner)
O entrelaçamento de conceitos e temáticas começa, neste ponto, a fazer com que tenhamos de usar termos já desenvolvidos para caracterizar realidades cuja distintividade é mais aparente do que real. A divisão dos capítulos nunca poderia ser estanque ao abordar tais assuntos. Daí o aparecimento de repetições temáticas, como o da responsabilidade e da resposta, do respeito, da memória. Retoma-se agora o fio, num outro ponto, para abordar e justificar uma ética da leitura. Não é preciso relembrar tudo o que aqui se disse acerca do que poderia ser considerado uma boa leitura para concordar com a afirmação de que uma boa leitura implica respeito pela obra de arte. Trata-se de um ponto de partida incontornável. Tal respeito, entenda-se, não assume as características servis de uma crítica interessada não é um servilismo, não é um "temor reverencial" perante a criação. É muito mais do que isso; a referência de Steiner neste campo parece ser Charles Péguy, ao afirmar: «[Uma leitura bem feita] é uma leitura que implica uma responsabilidade, e neste termo contém-se o de resposta. Trata-se portanto de responder a um texto, à presença e à voz de outrem. E isso tornou-se difícil senão impossível numa cultura onde o ruído é constante, que não tem de reserva uma praia de silêncio ou sequer de paciência. Entendo paciência na sua acepção do século XVII, quando a etimologia prevalecia em certas fórmulas dando a "paciência" ou a "sofrer" um sentido que hoje se desvanece. Ler não é sofrer, mas, falando com propriedade, estarmos prontos a receber em nossa casa um convidado, ao cair da noite.»19
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in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda, 2000, págs. 129-130
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As implicações desta elucidação são profundas. Como é sabido, há culturas em que a hospitalidade é absolutamente sagrada. Na Grécia, os visitantes eram tradicionalmente considerados enviados de Zeus (vide Odisseia), sendo por isso tratados o melhor possível, sob pena de serem castigados pelo pai dos deuses. Tal como Steiner diz em relação à leitura, tal visita não era considerada um fardo, mas sim uma benção, uma oportunidade de mostrar magnanimidade e amizade. Ora, parece-me ser este exactamente a modalidade de recepção de um convidado literário: respeitar a obra implica estar disposto a abrir as portas dos sentidos e da razão, mormente deixando de lado ocupações e alternativas - a bem dizer, tudo o que existe de exterior à obra defronte do leitor tem de ser posto momentaneamente de lado para tal tipo de leitura, único modo de permitir a atenção e paciência exigidas. O silêncio, a solidão, a postura curvada sobre a letra, são exigências próprias da leitura, e formam como que um ritual de respeito, de dedicação, mesmo um rito propiciatório. O diálogo interior intensifica-se com o silêncio exterior que rodeia a leitura, e esse mesmo diálogo transforma-se, após uma leitura, num valor acrescentado a vários níveis (vocabular, gramatical, conceptual, etc.) para o monólogo interior. A leitura, no seu sentido mais lato, não é um acolhimento sem riscos. O visitante é, de facto, recebido por nós, mas só explica porque ali está se quiser (isto se, como Steiner diz, não nos roubar ou incendiar a casa). Existe um risco ao tentar aceder à obra que não é de modo algum desprezável. Decorar um poema, ou interiorizar uma sinfonia, é trazer para habitar connosco um elemento que jamais se separará de nós e, por outro lado, é algo que nada nem ninguém nos conseguirá tirar. Passa a fazer parte de nós, e nenhum autoritarismo o poderá alguma vez apagar. Recordo aqui o filme de François Truffaut, «Fahrenheit 451» (1966), em que os livros são sistematicamente queimados, restando ao Homem como suporte da memória... ele próprio: a memorização integral das obras é, então, realizada por homens- livro (cada pessoa memoriza um livro), que recitam para grupos de pessoas, resistindo assim à destruição dos livros e da memória. Este tipo de preservação da cultura e da leitura não é - congratulo-me por tal necessário. Mas há problemas muito reais relativos à conservação e preservação da cultura. Aquilo que surge como a aversão às dificuldades postas pela leitura, o comodismo e a inércia avassaladora da cultura de massas, revela-se bem mais temível adversário para a leitura em sentido lato. Esta sociedade ocidental prepara-se para conseguir níveis de incultura e desinteresse que autoritarismo algum logrou sonhar: a cultura é enviada, bizantinamente, para as quatro paredes das universidades, onde o
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máximo respeito pela obra de arte é uma citação, no meio de um estudo crítico entre muitos.20 Não é a mesma coisa. A própria problematização da hermenêutica romântica não enveredou pelas sendas que Steiner pretende explorar. No ensaio «On Difficulty», de 1978, Steiner desenha uma tipologia da dificuldade, distinguindo quatro tipos de obstáculos que nos podem levar a afirmar que determinado fragmento de texto é difícil: «Contingent difficulties aim to be looked up; modal difficulties challenge the inevitable parochialism of honest empathy; tactical difficulties endeavour to deepen our apprehension by dislocating and goading to new life the supine energies of word and grammar. (...) Ontologocial difficulties confront us with blank questions about the nature of human speech, about the status of significance, about the necessity and purpose of the construct which we have, with more or less rough and ready consensus, come to perceive as a poem»21. Dificuldade de contingência, dificuldade modal, dificuldade táctica e dificuldade ontológica, apesar do que a sua divisão pode fazer parecer, podem coexistir numa suprema dificuldade múltipla de certos textos. A primeira pode ser resolvida através da "cultura geral", procurando num bom dicionário a chave para o problema semântico ou de referência (mitológica, por exemplo); situa-se a um nível que permite uma resolução relativamente rápida e simples. Não nos esqueçamos, no entanto, que quando tudo é dificuldade de contingência, todo um poema se torna um quebra- cabeças (isto pode acontecer, por exemplo, na leitura de um texto em língua estrangeira. Voltaremos mais à frente à questão da tradução), completamente inextrincável com os instrumentos habituais. Uma leitura não deve ser interrompida por constantes buscas no dicionário... Na dificuldade modal deparamo-nos com o problema da experiência pessoal e do mundo do texto que se esconde sob o manto vocabular (claro que o problema da dificuldade de contingência é central sob todos os aspectos, permitindo aceder ao contacto com outro tipo de problemas). O que se procura aqui é uma espécie de conhecimento dissimulado ou insinuado no texto, repleto de simbolismo, de subtilezas derivadas do uso indirecto de calão ou gírias, a um nível não completamente explícito no texto. Mais uma vez, a dificuldade é inacessível por instrumentos de estudo directos, 20
Não caiamos em generalizações extremistas: é óbvio que a crítica e o comentário crítico são extremamente úteis. O que aqui se critica é a cegueira que este sistema parece ter imposto: perde-se de vista a obra da arte porque se prefere o comentário crítico em ciclo infindável à nova criação artística de resposta. Este problema já foi abordado com maior desenvolvimento no Capítulo I. 21 in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, págs. 40-41
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sendo necessários conhecimentos históricos, filosóficos, biográficos, etc. (até botânicos e, naturalmente, etimológicos), para resolver os nós que se nos deparam - as respostas já não podem ser encontradas em dicionários, mas são derivadas de associações e jogos retóricos. A distância histórica e epistemológica entre autor e leitor pode tornar inviável a resolução desta dificuldade, ao ponto de certas referências se encontrarem completamente perdidas, ao ponto de passar a não ser possível localizá-las. Já a dificuldade táctica deriva de escolhas do autor, ou de uma inadequação entre aquilo que ele pretende transmitir e os mecanismos usados para o fazer. Certas necessidades estilísticas ou contingências históricas podem criar este tipo de dificuldade, que podem inclusivamente levar à criação de "linguagens" artísticas absolutamente diferentes (no sentido em que apontam para uma renovação ou "purificação" do vocabulário corrente), que mascaram ou reduzem à imperceptibilidade o paradoxo decorrente do facto de a linguagem se situar num ponto de fronteira entre o individual e o público, entre a impossibilidade de transmissão integral do sentido e a necessidade imperiosa - o impulso de criação livre - de comunicar.«The contradiction is insoluble. It finds creative expression in tactical difficulties.»22. Eis, então, chegado o momento de explorar a noção de dificuldade ontológica. A tentação de citar Steiner neste ponto, sem mais, é forte, pois deparamo-nos aqui com algo difícil de explicar. Recuemos até ao Romantismo, movimento histórico em que há um forte apelo para a individualidade, o egotismo, a fuga para o interno; o artista põe em exercício o seu direito ao mais completo individualismo, no sentido em que são as suas referências pessoais o que passa ao papel, por assim dizer. O uso massificado da linguagem torna-a, assim, inadequada, tornando verdadeiramente avassaladora a frustração de ter de usar tal linguagem para comunicar a experiência pessoal. Insinua-se aqui a necessidade (patente em Mallarmé e Heidegger) de um retorno a um «passado arcaico» em que a linguagem se encontrasse perto do Ser. É precisamente da conversão ou tradução do Ser em linguagem, em comunicação, aquilo de que se trata na arte, muito particularmente na literatura. Operase uma reelaboração do mundo, uma reacção à realidade "imediata" construída pelo intelecto humano de um modo idiossincrasias. A criação, ou re- criação, é primária e simultaneamente um acto de amor e um acto de egoísmo e de afirmação (que nega o espírito da análise formal e da paráfrase crítica inútil), para além de surgir de uma sensibilidade estética que é, ela própria, criação evolutiva derivada da Weltanschauung
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pessoal. Isto cria vários tipos de problemas, nomeadamente na Literatura, que estão ligados à interpretação e à tradução. A tradução é, por si, um dos grandes exercícios de interpretação. Steiner não refere tanto a segunda como a primeira, mas podemos facilmente passar de uma para a outra. Uma interpretação é uma tradução, no sentido em que é paráfrase de, e uma tradução tem de ser uma interpretação, que vê entre as línguas de partida e de chegada uma «terceira língua». Se o impulso / liberdade de criação se sentem impotentes ao tentar verbalizar a crítica a uma obra e tendem a efectivar a sua resposta sob a forma artística, há algo que se manifesta, indubitavelmente, na tradução: trata-se da descoberta dessa terceira língua. O exemplo mais admirado por George Steiner é Hölderlin, de quem fala nos seguintes termos a propósito da questão da tradução: «(...) Hölderlin, mostrando demasiada audácia na apreensão da interzona entre as línguas [sic] não pôde voltar a entrar em si próprio»23 (recorde-se que Hölderlin traduziu tragédias de Sófocles para alemão). O que parece dar-se durante a tradução é um cruzamento de línguas e planos poéticos na pessoa do tradutor, topos de uma luta e fusão entre valores e ideias de culturas diferentes mas que, contudo, responde com uma nova criação. Os grandes tradutores, segundo Steiner, são os grandes leitores das grandes obras, transformando-se em palco da realidade de mundos do texto e Weltanschauungen distintos. A tradução é, também, um acto de amor, de entrega e de recepção, um manifesto estético e compreensivo. Cada grande tradução reflecte toda uma teoria da tradução e, simultaneamente, uma visão nítida, naturalizada, das linguagens em cena. Tal como as grandes obras nacionais, também as grandes traduções podem ajudar a delinear as normas linguísticas - esta sendo uma das grandes responsabilidades do escritor: ao escrever em Português, tem-se por predecessores D. Dinis, Gil Vicente, Camões, Vieira, Garret, Eça de Queiroz, Saramago. As línguas são, de certo modo, definidas pelos seus grandes artistas. Como foi dito na Introdução, a perda das referências literárias e culturais da nação empobrece a identidade nacional, do mesmo modo que a infiltração ou melhor, invasão - cultural massificada corrói o cerne do que deve ser uma política da língua e da literatura: o estudo e conhecimento aprofundado, simultaneamente pedagógico e cultural, das principais referências literárias e artísticas em geral. Ou seja, descurar o papel desses "grandes" é o mesmo que perder um pouco do que ajudou a
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op. cit., pág. 35 in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda, 2000, pág. 157 23
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construir um passado e um presente - e, mais importante ainda, deixa-nos impotentes face a desafios futuros com que a identidade nacional ou individual será necessariamente confrontada. Há um "empobrecimento cultural" generalizado subjacente às teses de Steiner aqui exploradas, que ocorre neste preciso momento sob a forma da redução da diversidade linguística, também derivada da globalização ou uniformização da cultura que se transforma, precisamente, na cultura de massas. A redução efectiva do número de línguas em uso no mundo tem também paralelo no reduzir do caudal da corrente de consciência, da linguagem interior, por puro e simples estrangulamento de estímulos significantes. Quando tudo é estímulo e solicitação, a nada se dá resposta. O ruído comporta essa dimensão silenciadora, porque esmagadora, do Eu, cuja melhor resposta pode muito bem ser o fechamento e a recusa. Perdidas podem então ficar essas "presenças reais" que circulam no "espírito da cultura", as metáforas contínuas que constituem a tessitura do mundo do espírito. Presenças na linguagem a vários níveis, inclusivamente gramatical, que se movem entre as áreas da moral, da ética, da política e da sociologia, reflexos de tempos e espaços variados, mas que permanecem presentes mesmo quando tudo parece ausência - leia-se: quando estão perdidas para nós. Um positivismo algo selvagem põe em causa a metafísica, mas institui uma nova modalidade de metafísica, com pressupostos novos supostamente derivados da filosofia do sujeito, deixando que a objectivação que daí advém faça perigar a essência humana das manifestações linguísticas e artísticas. Falar de algo, intervir no mundo é pôr-se em jogo, assumir a responsabilidade de actos e palavras. Afirmar o humano é afirmar a contingência. Há riscos a correr. Mas é exactamente na assunção desses perigos que reside a capacidade de resistir, de efectivar «le dur désir de durer»: «Sermos responsáveis pelos nossos actos até ao fim dos tempos é o verdadeiro juízo final com que temos de nos confrontar.»24
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op. cit., pág. 110
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Capítulo IV: A CULTURA CONTEMPORÂNEA REFERIDA À HISTÓRIA DO SÉCULO XIX - curto ensaio em torno de No Castelo do Barba Azul Por detrás da nossa actual atitude de dúvida e auto- acusação há a presença, largamente inobservada por tão esquiva, de um passado muito particular, de uma «Idade de Ouro» característica. A nossa experiência do presente, os juízos, tantas vezes negativos, que fazemos acerca do nosso lugar na história, vivem continuamente contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar o «mito do século XIX» ou o «jardim imaginário da cultura liberal.» (George Steiner)
No seguimento do que foi dito acerca das condições de produção e preservação da cultura nos nossos dias, parece adequado reflectir um pouco mais acerca do tempo presente. Steiner opta por, a propósito das Notas para a Definição de Cultura de T.S. Eliot (1948) escrever um ensaio em que retoma, critica e re- elabora as considerações do autor acerca do estado do mundo de um pós- guerra muito curto. No Castelo do Barba Azul, editado em português pela Relógio d'Água em 1992 (a tradução é do inevitável Miguel Serras Pereira), traz a marca do texto de Eliot na temática, mas demarca-se logo no início da abordagem proposta por ele. O que se pretende neste capítulo não é um resumo, mas antes um percorrer de alguns topoi que podem trazer alguma luz sobre os capítulos precedentes, nomeadamente ao uso de palavras como "decadência", "perda" ou "ausência". Não poderia deixar de sublinhar que a avaliação moral e política que transparece nestas palavras usadas não deriva de preconceitos inamovíveis ou dogmas inultrapassáveis, mas antes de uma tentativa de pôr em perspectiva (necessariamente subjectiva), usando conceitos disponibilizados e moldados por George Steiner, problemas que me parecem centrais na cultura actual. Uma vez que as comparações estabelecidas ao longo deste trabalho assomam sem um dos termos (normalmente o termo maior) - comparações "coxas", portanto -, pôr a cultura contemporânea em perspectiva referida ao século XIX, como Steiner faz no Capítulo I do seu ensaio, afirma-se como o melhor modo de expor a razão de ser da "comparação" canónica do estado actual da cultura com "algo", "época de ouro" essa que aparece sempre difusa e remota. Mais um vez, relembro que procuro definir melhor o "onde", "quando" e "como", sendo que o "porquê" é questão demasiado longa para ser aqui desenvolvida do modo como a curiosidade e sede de respostas exigem. No ensaio de Steiner, a "época de ouro" situar-se-ia no século XIX, terminando justamente com o eclodir da Primeira Grande Guerra. O liberalismo político vigente em
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grande parte da Europa, a expansão económica e o domínio europeu sobre o Mundo, as grandes potências coloniais e o seu orgulho contribuíram não só para um desenvolvimento económico e social real, mas também para o estabelecimento de bases infraestruturais para a disseminação de uma cultura comum, uma "alta cultura" que, emanava de cidades como Paris e Viena. «Há ainda hoje muita gente para quem o célebre Verão sem nuvens de 1914 é a abertura de um passado a que corresponde um mundo mais civilizado, mais confiante, mais humano do que tudo o que depois dele conhecemos. É contra esta memória viva desse longo Verão, e em função do nosso conhecimento simbólico desse mundo, que hoje sentimos frio. «Se nos detivermos para observar as fontes do saber que temos a seu respeito, verificaremos que não raro são puramente literárias ou artísticas, que o nosso século XIX interior é uma criação de Dickens ou Renoir.»25 Se recuássemos para esse Verão passado, perceberíamos que, de facto, nos encontrávamos numa ilusão de um mito edénico. Na realidade, como acontece em todas as épocas históricas, não faltariam problemas, angústias e factores que iriam propiciar a "queda" bélica posterior, autênticos germes de destruição interiores que desencadeariam forças que nunca mais o Mundo poderia esquecer. O que se passou durante o século passado mostrou que as raízes profundas de todo o desenvolvimento e brilho social, económico e cultural da Europa assentavam numa lógica dogmática de dominação pela força de vastas regiões do globo - havia grandes contradições neste Éden, tal como no outro. A «longa paz do século XIX», entre a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte e o início da Primeira Grande Guerra., serviu de palco para, debaixo da tessitura social exterior europeia, se ensaiarem e avaliarem os prenúncios do fim dessa mesma paz. Que a convivência nunca terá sido completamente pacífica, sabemo-lo; como também compreendemos os laços familiares que uniam as monarquias europeias, que não terão deixado de ser, mormente no reinado da Rainha Vitória, factores de estabilidade. A complexidade que atingiu esta paz, o nível da neurose que parecia afectar (de uma perspectiva póstuma, claro) a generalidade da população transformou-se numa acumulação de "energias negativas", se assim podemos dizer. Como se reflecte então nesta sociedade tal negatividade? Steiner encontra sinais de desilusão e ironia relativos a todo o optimismo civilizacional nas manifestações culturais da segunda metade do século XIX. A tais 25
in No Castelo do Barba Azul (algumas notas para a redefinição da cultura), Lisboa, Relógio d'Água, 1992, págs. 16-17
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sinais e manifestações, enquanto conjunto ou processo, atribui o autor a designação de ennui, conceito que ele situa entre o tédio e a ociosidade corrosivos, cujo ponto máximo ele viria a situar no grito verdadeiramente profético de Théophile Gautier: «Plutôt na barbarie que l'ennui!». Esse grand ennui viria a encontrar o seu fim com a chegada do conflito - um fim bélico que viria a transformar em violência tudo o que se encontrava reprimido nas consciências inquietas do século XIX: a barbárie seguir-se-ia de facto ao ennui, mas numa dimensão completamente inesperada, prolongada e irracional - como se houvessem contas a ajustar com o racionalismo e o optimismo reinante na Europa nas décadas anteriores, os povos europeus consumiram-se nas duas guerras do século XX, em sentido mais do que figurado. O impacto social, demográfico, cultural e económico sofrido pela Europa seria tão traumatizante como as piores manifestações dos limites alcançados pela barbárie. Os séculos anteriores tinham criado grandes imagens de destruição, idealizado modos de canalizar impulsos libidinais para fora da esfera das convenções sociais que caíam na esfera do desvio - fora portanto do que poderia ser estritamente considerado criação. Multiplicam-se, na arte e no pensamento europeus, estranhas tendências e imagéticas de destruição e degradação do ser humano. Procurar tais imagens e enumerá-las também não é objectivo deste trabalho. As gravuras dos cárceres de Piranesi introduzem-nos em locais onde tudo é ruína: congelados e destruídos pelo tempo, os carceri são, antes de ruínas de estilo neoclássico e exercícios de proto- arqueologia, um esmagamento do ser humano pela arquitectura que ele próprio criou; podemos ainda pensar em tais gravuras como ilustrações do efeito do tempo sobre a obra do Homem. A devastação futura não seria operada pela acção dos elementos e do tempo, mas pelas bombas e pela política humana. O grande paralelo é encontrado no Marquês de Sade. Os níveis de degradação e desconsideração da humanidade e dignidade da pessoa prosseguem na corrente profunda do desejo intenso de subversão de convenções e aparências, que a arte vanguardista europeia mais recente incarnava. Do sentimento e desejo de devastação, passa-se à vida devastada, durante não menos de trinta anos: Auschwitz e Hiroshima actualizam as imagens em realidade: não mais precisaremos de procurar arte e imaginação para encontrar morte, destruição, cidades arruinadas. Encontra-se nestes locais o reflexo do futuro do passado século XIX, juntamente com a determinação do pensamento futuro acerca da inumanidade do Homem. O modo como a questão é analisada intersecta transversalmente o pensamento, e tem implicações profundíssimas
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na cultura contemporânea; daí a importância da remissão às origens da problemática, no século XIX. Não estou certo de que o procedimento e argumentação de Steiner acerca das consequências morais e políticas de Auschwitz e do horror que viria a determinar o resto do século XX seja isento. As suas origens judaicas não lhe permitem colocar a Shoah senão como (mais) uma marca judaica perene na História da Humanidade. Na realidade, as alterações às realidades a ter em conta na avaliação moral, ética e psicológica dessa História que foram introduzidas pelo modo como se processou a Solução Final são vastíssimas. Não desejamos colocar na Segunda Guerra Mundial o fulcro dos acontecimentos posteriores, mas a verdade é que ocorreram alterações fundamentais na cultura e nas suas manifestações - do tipo de uma mudança de paradigma -, que poderiam levar a questionar se nossa época não enfrenta agora um fantasma novo, o qual consistiria na negação do paradigma que conduzira ao negro panorama dos conflitos do século XX. Através de novas manifestações e formas de viver a cultura (a pop e o rock, a cultura do ruído e da artificialidade da fruição estética), o mundo do pós- guerra reage ao mundo da paz podre anterior à guerra, tentando com a sua recusa apagar marcas que aparecem todos os dias, como ícones, nas televisões de todo o mundo - o campo de concentração e Hiroshima.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Quem vive sem loucura não é tão sábio como se julga. (La Rochefoucauld)
Os pontos focados neste trabalho foram, decerto, algo vagos e dispersivos. Procurou-se transmitir uma visão das leituras feitas de e por Steiner acerca da relação entre leitura e cultura. A perspectiva crítica adoptada aponta para a necessidade de pensar a História recente como o palco onde se jogou essa aparente mudança paradigmática, a qual resulta na diferença de atitudes relativamente à "alta cultura" clássica europeia - cujo ponto alto teria sido precisamente no ponto (século XIX) em que se começava a desenhar nas consciências o fim desse estado de coisas (vide Capítulo IV. É no nosso tempo que, segundo Steiner, corre mais riscos a preservação das referências culturais dos nossos antecessores. Nunca, até hoje, o grau de desinteresse e rejeição da noção tradicional de cultura, atingiu o núcleo da vivência quotidiana das pessoas. Creio que o mais escandaliza Steiner pode muito bem ser a perda da capacidade de procurar no texto lido essas referências, a falta de vontade e possibilidade de identificar e penetrar a profundidade do significado humano da obra de arte. Usando palavras alheias, o que aqui temos é «um diagnóstico perfeito sem proposta de tratamento», acompanhada por tentativas de tomada de posição política e moral (no sentido lato) irredutíveis. Subjacente a tudo isto, encontra-se - possivelmente - a intenção de preservação de um mundo próprio, de um espaço de crescimento onde o próprio Steiner se inscreve e do qual, como qualquer um de nós relativamente ao seu espaço, não pode, não quer e, claro, - para bem de todos nós, seus admiradores - não deve abandonar. Há relações claras entre a preservação da cultura e das línguas, entre a leitura e a possibilidade de recuperar para a vida as metáforas contínuas, arrancando-as à realidade poeirenta de bibliotecas e universidades. O lugar da arte é no mundo da vida - o mundo do texto faz parte do mundo da vida -, tem um papel essencial, em íntima conexão com o verbo. Perder a arte é também deixar longe da vida os elementos constituintes do mundo que nos rodeia, pôr de lado a possibilidade de compreender o desenvolvimento da identidade comunitária e individual de povos e pessoas. Mostrar o que há de génio na loucura pode ser um objectivo da arte e da linguagem; mas, se podemos aceder a uma melhor compreensão da cultura linguística verbal pela arte, apercebemo-nos claramente
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das limitações da primeira relativamente à segunda. Há locais em que a linguagem verbal não pode ser suficiente para comunicar: é isso que George Steiner designa como "monólogo interior". Um estudo histórico da riqueza deste mundo interior da linguagem revelar-nos-ia sem dúvida as mutações operadas nos últimos cem anos. Da cognição à comunicação, o papel da arte na cultura contemporânea resulta do encantamento da linguagem pelo mundo, e vice- versa. As questões que se colocaram não poderiam nunca ser desenvolvidas na sua plenitude potencial neste humilde trabalho.
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BIBLIOGRAFIA •
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