Jogos De Linguagem

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JE

OGOS DE LINGUAGEM

nsaio em torno de conceitos de Searle e Wittgenstein

Artur Alves, 2003 Ciências da Comunicação Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

ÍNDICE 1. Introdução...................................................................................................3 2. Definição e delimitação do conceito..........................................................4 3. Searle, Wittgenstein e o background. ........................................................7 4. Considerações finais...................................................................................9 5. Bibliografia................................................................................................11

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1. INTRODUÇÃO

O

conceito de jogo de linguagem, introduzido por Wittgenstein, mostra-se essencial

para uma filosofia da linguagem, bem como para uma filosofia da comunicação. Sobre ele assentam, aliás, uma série de concepções centrais para toda o conjunto de formulações elaboradas em torno das perspectivas pragmáticas da comunicação. Linguistas devedores de Wittgenstein, como Austin, Searle e Grice, situam-se nesta linha - cada um deles construindo uma formulação própria do conceito de jogo de linguagem - apresentam uma interpretação desta noção exposta por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas. Assim, esta ideia está presente no conceito de acto de linguagem, ou speech act. O pano de fundo destas ideias é constituído pela ideia que a linguagem é um acto, uma acção, em que estão envolvidas dimensões comportamentais, psicológicas e mentais, tanto conscientes como inconscientes. Assim, afirmar o jogo de linguagem é negar a deficiência de teorias como a de Russel e Quine (e também, embora de modo diferente, do Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus), baseadas em concepções semânticas, em que a linguagem é tomada como reflexo do valor de verdade do mundo e, assim, privilegiam a função descritiva da imagem. A alternativa é reflectir sobre o valor performativo da linguagem, i.e., sobre a dimensão ilocutória que subjaz a grande parte da comunicação linguística. A função constativa da linguagem tem, assim, pouco interesse para uma teoria comunicacional, face à relevância da interacção e transacção de sentido intencionais presentes nos actos de linguagem. Neste curto ensaio, serão desenvolvidas duas questões. A primeira diz respeito à definição e delimitação do conceito de jogo de linguagem, na concepção de Ludwig Wittgenstein exposta ao longo das Investigações Filosóficas. Aqui, é de particular importância a noção de regra ou norma de uso, como “indicadores” que instituem o uso e aprendizagem da linguagem. A segunda parte será dedicada à exploração das noções de forma de vida e background, nas formulações do filósofo austríaco e de John Searle, sendo particularmente relevante para tal estudo a abordagem das interdependências e interacção na construção de uma comunidade linguística.

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2. DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DO CONCEITO

O

através do qual Wittgenstein chega à ideia de jogo de linguagem é extremamente interessante. O seu famoso exemplo de uma linguagem usada por dois pedreiros (A e B) constituída apenas por nomes (simultaneamente usados como ordens), é usado em toda a primeira parte das Investigações Filosóficas. Prosseguir no estudo da linguagem através de exemplos é, aliás, tido como um dos métodos didácticos preferenciais. Assim, desde o início do livro, Ludwig Wittgenstein toma de Santo Agostinho a ideia de que a linguagem se aprende ao longo da vida, embora não exclusivamente de modo ostensivo. Há, contudo, certos aspectos da citação da §1 das Investigações1 que são de extrema importância para a definição dos jogos de linguagem, ainda que se possam relacionar também com uma teoria da aprendizagem linguística e comunicacional. método

Na concepção de Santo Agostinho, tal como para o Wittgenstein do Tractatus LogicoPhilosophicus, a linguagem tem um valor maioritariamente denotativo, ou proposicional, repousando sobretudo nessa relação entre as palavras e os objectos designados, que permite o uso de uma didáctica ostensiva. Ou seja, apenas por existir tal relação é possível apontar para algo e dar-lhe um nome - «Isto (em frente à ponta do meu dedo) é (aquilo que se designa como) um copo». Pode dizer-se que este é um modo simultaneamente verbal e não-verbal de aprendizagem de uma língua. Contudo, nada nos diz acerca da construção do significado: apenas nos indica um uso possível para uma palavra. Afinal de contas, o que é o significado, senão o uso? É o próprio W. quem o afirma, na §43: «Para uma grande classe de casos - embora não para todos - do emprego da palavra “sentido” pode dar-se a seguinte explicação: o sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem»2. Ou seja, não é necessário procurar uma explicação para o significado das palavras que não passe pela sua aplicação pragmática numa determinada forma de vida. Mas voltemos ao exemplo de ostensão; este é já, por si mesmo, um jogo de linguagem, cujo sucesso pedagógico depende da compreensão de um conjunto de mecanismos, i.e., de regras. São regras que definem o uso - passível de compreensão, ou seja, o uso correcto - de uma palavra, conjunto de palavras, ou de uma língua natural completa, cada qual com seu grau de complexidade. O que significa que, de algum modo, o jogo de linguagem de ostensão ou nomeação é apenas um jogo de correspondências, e não explica como é possível compreender a própria ostensão (o apontar e designar). De facto, tal perspectiva parece assumir uma espécie de gramática prévia, imanente, à maneira de N. Chomsky.

1 2

Wittgenstein, 2002:171-173. Op. cit., pg. 189.

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Compreender o significado de uma palavra e aprender uma linguagem parece, assim, depender de mais do que uma relação de correspondência. A função das palavras não é somente designar. Tudo o que elas são, tudo aquilo para que elas servem está contido nos usos que são convencionados, que são atribuídos pelos falantes de uma linguagem: a linguagem é um instrumento com funções extremamente diversificadas. O uso é também aprendizagem. Dizer que a palavra “copo” designa este objecto à minha frente não descreve o uso. Este pode ser melhor apreendido com uma exploração gramatical (expressão também usada por Wittgenstein), uma enumeração dos usos possíveis da palavra, ou das situações em que tal palavra pode, hipoteticamente, ser usada. Como refere o autor, o facto de uma palavra poder ser usada com tantos sentidos, em tão diversas situações, confunde-nos quanto ao significado e aplicação que podem ter. É importante ter em conta que as palavras que parecem possuir apenas um sentido complexo podem ter mais do que um uso possível. Saber quais são esses usos é conhecer o sentido das palavras. Portanto, possuir melhor “treino” no uso das palavras, maior conhecimento dos jogos de linguagem, é ter um melhor conhecimento da linguagem. A aquisição destes conhecimentos pode ocorrer das mais diversas formas - desde a ostensão, o exemplo, a repetição, até as lengalengas e melopeias, ditados e canções da infância e das culturas orais. O conceito de jogo de linguagem pode referir-se a todos eles, a linguagens primitivas, ou mesmo até a linguagens completas. A pura memorização parece ter um papel extremamente importante: é a partir dela que a criança vai aprendendo os sons, olhando para os objectos presentes e ausentes, até que, por fim, poderá compreender o conteúdo, o uso de cada uma das palavras. De certo modo, a repetição é uma forma de compreensão: o uso mecânico é um prenúncio de um uso compreensivo, com sentido. Para Wittgenstein, toda a linguagem é constituída e aprendida através deste tipo de jogos de linguagem; ou melhor: o uso da linguagem e a sua aprendizagem quotidiana dependem do desenrolar contínuo das capacidades de uso. Se a competência de uso da linguagem é comum ao género humano, a performance é construída pelo indivíduo, ao longo da vida. Esta é, aliás, uma problemática bem explorada pela Linguística e filosofia da comunicação, mas que não pode ser, para bem da necessária brevidade, abordada neste curto ensaio. O facto de a linguagem poder ser usada sem o domínio dos conceitos envolvidos torna os jogos de linguagem bastante semelhantes aos jogos clássicos: é necessário seguir regras de comportamento bem definidas, para que o uso seja reconhecido como legítimo e adequado. Quando se aprende xadrez, por exemplo, as regras vão sendo aprendidas com o uso das primeiras partidas. Ao longo do tempo, todavia, o jogo torna-se mais fácil e fluido, deixando de ser necessário prestar atenção às regras individuais - passa a haver mais “uso” espontâneo e

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menos cumprimento auto-consciente das regras. E assim, é possível um conjunto virtualmente infinito de movimentos, de variações e de partidas, reunidas, como é dito por Wittgenstein, numa «actividade ou forma de vida»3. As regras, por seu lado, são convencionais. Têm de ser apreendidas, por assim dizer, tal como são, sem discussão. Nos jogos de linguagem, as regras de uso são expostas e “embebidas” na própria cultura - cada fragmento de linguagem responde a um propósito específico. Talvez isso explique a dificuldade em entender o processo de aquisição de uma linguagem e a possibilidade de criação e manutenção de uma forma de vida.

3

Idem, pg. 204.

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3. SEARLE, WITTGENSTEIN E O BACKGROUND

A

pesar de serem impostas como parte de um sistema comunicacional, as regras de uso de jogos de linguagem, i.e., a forma de usar eficaz e compreensivelmente um jogo de linguagem, evoluem. Transformam-se com as gerações, moldando a própria vitalidade da língua. Os jogos modificam-se com elas, aparecendo novas formas de uso, novos conjuntos e famílias de jogos completamente distintos: ou seja, são criados sentidos. Aliás, Wittgenstein relaciona as palavras “linguagem” e “inventar” no conceito de forma de vida, enquanto entidade ou instituição - por assim dizer - na qual as regras são forjadas. No livro Intencionalidade, John Searle apresenta uma possível explicação para o modo como esses jogos de linguagem permeiam o indivíduo e a sociedade. Sendo a comunicação uma necessidade de qualquer comunidade, pode ser tido como normal uma certa exigência “plástica” das formas em que se verte. Não esqueçamos, também, o carácter histórico, mutável, dos conteúdos. Contudo, subjacente a este conjunto de factores está um certo número de crenças básicas, bastante rígidas, das quais não temos consciência. Estas crenças básicas formam o background, elemento essencial para a construção de representações linguísticas e comunicacionais. Ora, a grande dificuldade que se nos coloca é justamente como delimitar conceptualmente esta noção. Se é fácil dizer que se trata de um conjunto de estados pré-intencionais, não é possível dar um exemplo coerente, que não seja, ele próprio, uma representação evocando um background prévio, etc. Esta mîse-en-abyme é também o grande problema de regressão infinita de que Searle fala na página 191 e seguintes da sua obra. Indo de encontro àquilo que já dissemos acerca da aprendizagem do jogo de xadrez, podemos dizer que as regras do jogo são comparáveis ao background quando se tornam absolutamente transparentes - quando a prática do jogo se afirma de modo total sobre o cumprimento das regras. Ou seja, passa a haver apenas jogo. Mas de onde surgem as regras? Segundo Searle, o «(...) background deriva, de facto, de toda a série de relações que cada ser biológico- social tem com o mundo à sua volta»3. A hesitação em chamar-lhes representações do funcionamento do mundo pode dever-se a uma noção predominantemente “física” de representação. Não obstante, ao contrário de uma representação clássica (um símbolo, por exemplo), que se deixa sempre ver como medium, o background é a própria condição de possibilidade de constituição da experiência. Aqui incluímos, naturalmente, a interacção com outros seres humanos, que institui a comunidade enquanto tal. Os jogos de linguagem instalam-se dentro dessa comunidade de partilha, sendo o backgroundessa espécie de estados, crenças, hábitos e práticas - pré-intencionais - que é comum

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ao conjunto de pessoas. É, para Wittgenstein (que usa a designação de “forma de vida”) o fundo sobre o qual os jogos de linguagem são executados, partilhados e compreendidos. O seu dinamismo subjaz ao dinamismo dos próprios jogos e respectivos usos. Se assim não fosse, a comunicação intersubjectiva numa dada forma de vida teria uma função puramente fática, em que os usos são estáticos. A própria existência do background atesta de uma relação mais ou menos específica com o Mundo, com a realidade. É, de certo ponto de vista, a própria condição da possibilidade do realismo: «Parece que eu nunca poderia mostrar ou provar que há um mundo real independente das representações que tenho dele. Mas claro que nunca poderia mostrar ou provar isso, dado que qualquer acto de mostrar ou provar isso, dado que qualquer acto de mostrar ou provar pressupõe o Background, e o Background é a concretização do meu comprometimento com o realismo»�. Perante a inacessibilidade do Mundo, são estes estados não-intencionais que permitem falar da realidade, afirmando a necessidade de uma adequação da linguagem com o Mundo. São também a pré-condição de estados intencionais, essenciais para a comunicação. A dificuldade de definição deve-se, como Searle nos recorda, ao uso de uma «linguagem intencionalista» desadequada para falar de questões da ordem da pré-intencionalidade. Esta limitação é, evidentemente, determinante: os jogos de linguagem que usamos são insuficientes quando passamos para além da sua própria fronteira. Assim , a pragmática de Searle e Wittgenstein depara-se com aquilo que, sendo essencial para a construção e partilha de uma linguagem e experiência em comunidade, só muito dificilmente pode ser abordado. Uma situação prática em que as diferenças de background poderia surgir em toda a sua dimensão convencional e contingente seria a de interpretação ou tradução radical. Quine, analisando o problema, chega à tese da indeterminação da tradução radical, afirma que a ostensão não é suficiente para dar uma tradução exacta. Mas, mais do que isso, devemos deixar de pensar numa correspondência um-para-um entre palavras de linguagens diferentes. A verdade é que as Weltanschauungen e os mundos da vida das duas formas de vida são incomensuráveis, e o sentido imediato não é apreensível a partir de uma perspectiva exógena. Assim, a interpretação e tradução - dir-se-ia que também a comunicação - dependem da partilha pelos interlocutores de um conjunto de estados pré-comunicacionais. Até eles estarem estabelecidos, a correcção do sentido de uma dada tradução é indeterminável.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

E

xplorar todos os conceitos e questões levantadas, ainda que ao de leve, nestas páginas seria, pura e simplesmente, o equivalente a procurar uma teoria da comunicação e da linguagem, percorrendo caminhos já visitados por Habermas, Searle e Wittgenstein. Por isso, sendo o nosso objectivo o de, modestamente, encontrar um sentido para a noção de jogo de linguagem - ou seja, explorar o conceito de modo a Ter uma ideia mais precisa daquilo que ele significa e implica. Assim, depois destas páginas, é possível compreender a íntima relação entre os jogos de linguagem e a forma de vida em que eles se integram e, de algum modo, ajudam a formar. Aliás, não podemos deixar de considerar que o ideal de comunicação racional de Habermas - uma situação ideal de fala em que todos os interlocutores partilham um conjunto de regras ou critérios e cujo objectivo último é o consenso - só seria verdadeiramente exequível dentro de uma comunidade que partilha o mesmo background e um conjunto de jogos de linguagem. No famoso exemplo do pedreiro e do servente, temos uma comunidade e um jogo de linguagem extremamente restrito, que mostra como um número limitado de relações com o Mundo (a construção, com os seus materiais, ordens, leis da Física, hierarquias, hábitos, etc.) se reflecte no uso comunicacional da linguagem. Isto prova, sem dúvida, que a didáctica adoptada por Wittgenstein resulta: é um método que, ainda que não muito sistemático, deixa entrever simultaneamente a complexidade dos fenómenos e os mitos explicativos que os ofuscam. A compreensão linguística não é um processo mecânico, de correspondência clara e delimitada. Como o filósofo austríaco afirma, tem muito a ver com processos não conscientes. Searle adopta esta mesma perspectiva, afirmando que o uso e aprendizagem dos jogos de linguagem só faz sentido se um background for partilhado. Por isto, não é possível uma linguagem privada, solipsista: no mínimo, são necessárias duas pessoas para que algo semelhante possa ter lugar. Consequentemente, isto permite-nos pensar que, numa situação de tradução radical, a dificuldade reside tanto na apreensão (“absorção” parece ser uma palavra mais adequada) de Weltanschauung e Lebenswelt que sejam estranhos - uma alteridade radical do sujeito com que nos confrontamos, como na decifração e utilização adequada dos significados. Só então passamos a uma comunicação “real”, que se dá no uso sem pensar (intencionalmente) nas regras que o tornam possível.

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5. BIBLIOGRAFIA

MURPHY, John P. (1992) – O Pragmatismo - de Peirce a Davidson (Or. Pragmatism, 1990), Trad. Jorge Costa, Lisboa, Edições Asa, 191 pp.; SEARLE, John R., (1999) - Intencionalidade - um Ensaio de Filosofia da Mente (Or. Intentionality - an Essay in the Philosophy of Mind, 1983), Trad. Madalena Poole da Costa, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 346 pp.; WITTGENSTEIN, Ludwig (2002) - Investigações Filosóficas (Or. Philosophical Investigations, 1953), Trad. M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 450 pp.

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