Introdução A Políticatexto Prof Clovis

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1 O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO

1.1 As origens Tem sido particularmente frutífero o questionamento teórico e filosófico a cerca do surgimento da sociedade política: o Estado. No decorrer do tempo várias teorias foram apresentadas, cada qual com seus méritos, com sua fundamentação e argumentos. Não é nosso objetivo aprofundar o estudo destas teorias, mas não podemos deixar de conhecer, ainda que de forma superficial os principais pensamentos a cerca da matéria. Iniciamos, evidentemente, pela mais antiga teoria, que vê no Estado o desenvolvimento e a ampliação da família. Esta teoria, conhecida como a Teoria da Origem Familiar do Estado, hoje adotada por poucos autores, sustenta que a primeira organização social humana é a família, grupamento cujos componentes são aparentados pelo sangue e cuja autoridade máxima é confiada a um chefe varão. Aqui estaria a origem do Estado: a derivação de um núcleo familiar; o Estado seria assim a ampliação da família patriarcal. Grécia e Roma tiveram esta origem, segundo a tradição; o Estado de Israel, exemplo típico, se originou da família de Jacó, segundo a Bíblia. Uma variante desta teoria refere-se a origem matriarcal. Para seus defensores, a primeira manifestação de vida coletiva do homem teria sido a horda. Nesta, o reconhecimento de vínculos de parentesco constituiria uma etapa muito posterior. O vínculo reconhecido seria a filiação materna. Desta forma, os filhos teriam a mesma condição social e religiosa da mãe, e a mulher gozaria de relativa hegemonia. A horda seria portando conduzida pela mulher, pela matriarca. Mas, como bem lembra Azambuja1, que a sociedade deriva da família não há quaisquer dúvidas, mas não se pode, contudo, aplicar o mesmo raciocínio ao Estado. É um equívoco identificar a origem da humanidade com a origem do Estado. É até possível que em alguma região do mundo o desenvolvimento de uma família tenha dado origem a um determinado Estado, este processo, entretanto, se ocorreu, não pode ser generalizado. A Teoria da Origem Contratual do Estado, é uma idéia que já esta presente na obras de Aristóteles e Epicuro, passa pelos grandes doutores da escolástica, especialmente São Tomás de Aquino mas ganha notoriedade e destaque com o 1

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre-Rio de Janeiro: Globo. 1991. p. 98.

iluminismo. O século XVII foi um período de grandes questionamentos. Nesta época, para justificar o Estado, a sociedade, o poder, a política, partia-se sempre do estado de natureza – situação em que vivia o homem antes de constituir a sociedade civil, sem nenhuma lei, sem proteção, mas sem obrigação a qualquer poder civil2. A descrição do homem no estado da natureza se divide claramente entre otimistas e pessimistas ou positivistas e negativistas. Para os primeiros, um estado de paz, liberdade, bem-estar, para os segundos um estado de guerra, violência, opressão e medo. Thomas Hobbes, em sua obra O Leviatã, (1651) defende radicalmente a segunda corrente. Para ele, no estado da natureza, não existindo leis, nem limites, a situação era de absoluto caos e desordem. A única salvação é a criação de um poder superior. Assim, por medo de seus semelhantes e da insegurança perpétua, o homem cria o Estado. John Locke em seu trabalho Tratado sobre o Governo Civil, I, II - (1689), também apresenta suas considerações sobre a formação do Estado. Para ele o estado de natureza não é essencialmente mau. Ocorre que, no estado de natureza, o homem era proprietário legítimo e inconteste de sua vida e de sua liberdade, mas carecia de segurança para preservar seus bens e direitos. Então, para garantir estes direitos os homens reúnem-se em sociedade e convencionam a criação do Estado. Assim, o Estado é criado, por força da razão, através de um ‘contrato’ entre os homens. A Teoria da Origem Violenta do Estado considera o Estado nascido da violência e da força, sustenta que o Estado é o resultado da dominação dos mais fortes sobre os mais fracos. Para Ward: “o Estado nasce com a conquista de um grupo pelo outro e com o progresso que constitui a escravidão e não mais a destruição do vencido pelo vencedor. Organiza-se assim a ordem política, fruto dos interesses econômicos do vencedor e da resignação do vencido”.3 Na mesma linha de pensamento está Oppenheimer, para quem o Estado, pela origem e pela essência, não passa daquela “instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões internas e agressões externas”4. Os críticos desta teoria concordam que a guerra e a 2

Ensina Bobbio que o conceito de estado de natureza não era desconhecido, mas foi Hobbes que fez dele um elemento essencial do sistema, adotando-o como ponto de partida; imitado depois por Pufendorf, Locke, Rousseau e tantos outros. BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2ª ed. Brasília: UnB. 1998. 3 WARD, L., Sociologie Pure, Paris: Giard Brière. 1906, p. 58, Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p 101. 4 OPPENHEIMER, Franz. Der Staat, 4a ed, Stuttgart, 1954, p 5, Apud BONAVIDES, Paulo Paes de Andrade. Ciência Política, 10a ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 64.

dominação dos povos é um modo de formação de novos Estados; não é, contudo, a origem do Estado. Todos os tratados de sociologia nos ensinam que nos primeiros estágios da evolução o vencedor sempre matava o vencido; era, na verdade, um rito religioso dos povos mais atrasados sacrificar aos guerreiros derrotados. Já em uma fase posterior, por interesses econômicos, que somente as sociedades relativamente desenvolvidas compreendem, os vencidos tem sua vida poupada em troca de seu trabalho para os vencedores. A exploração econômica dos grupos vencidos é um fato que somente se verifica em fases posteriores à evolução social. Pode-se falar ainda, mesmo que com extrema simplicidade, da Teoria da Formação Natural do Estado. Para seus adeptos, em toda sociedade primitiva, onde a autoridade de um chefe ou de um conselho de anciões se consolidou e começou a dirigi-la permanentemente, ali se formou originariamente um Estado. Evidentemente, somente passou a existir um Estado quando a população se fixou em um determinado território. Para Azambuja, “quando as sociedades primitivas, compostas já de inúmeras famílias, possuindo uma autoridade própria que as dirigia, se fixaram num território determinado, passaram a constituir um Estado. Este nasce, portanto, com o estabelecimento de relações permanentes e orgânicas entre os três elementos: a população, a autoridade ou poder político e o território”5. Entretanto, muitas sociedades até hoje são nômades e, portanto, não formaram Estado; outras, constituíram sociedades políticas que duraram séculos e desapareceram. Não houve, nem poderia haver uniformidade absoluta nos processos de formação do poder e do Estado. E, como ensina o professor Azambuja, somente um fato é permanente e dele resultam os demais: o homem sempre viveu em sociedade. A sociedade somente sobrevive pela organização que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a sociedade que alcança um determinado grau de evolução passa a constituir um Estado. Para viver fora da sociedade, o homem necessitaria estar abaixo dos homens e acima dos deuses, disse Aristóteles, e por estar ele vivendo em sociedade, natural e necessariamente, cria a autoridade e o Estado. Autores modernos têm defendido a Teoria da Formação Histórica do Estado, defendendo a idéia de que são três os modos pelos quais historicamente, se formam os Estados: Modo Originário, Modo Secundário e Modos Derivados. Para 5

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 107.

Maluf6, “extinguiram-se os agrupamentos primitivos oriundos de uma ordem natural primitiva e sobre seus escombros ergueram-se os Estados do modo atual. Na sua maioria, representam estes o renascimento ou a reformação dos velhos agrupamentos existentes, extintos, mas conservando muitas vezes o nome e as tradições, porém, ostentando nova configuração política”. Para estes pensadores, o Modo Originário de surgimento de um Estado, se confunde com sua própria formação social, mas se distingue em aspectos essenciais. Dar-se-ia quando, sobre um território que não pertencia a nenhum Estado, uma população se organizou politicamente, por impulso espontâneo de suas forças sociais e psicológicas. Atenas e Roma seriam exemplos típicos desta formação originaria. Evidentemente, no mundo atual é praticamente impossível este processo de formação. O surgimento pelo Modo Secundário pode ocorrer de duas formas: quando um Estado de divide, o que permite a formação de outros Estados (servem como exemplo os inúmeros Estados surgidos com a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS), ou quando dois ou mais Estados se unem para formar um novo Estado (como Zanzibar e Tanganica, que se uniram em 1964 formando o Estado da Tanzânia). Como Modos Derivados, temos o exemplo dos Estados Americanos que se formaram pela colonização da Espanha, Inglaterra e Portugal, dos quais se independizaram7. Existe ainda a Teoria da Formação Jurídica do Estado. Para os positivistas jurídicos, são inúteis aos juristas as indagações sobre as causas e circunstâncias que determinaram o nascimento do Estado. Para eles, o Estado nasce no exato momento em que é provido de uma constituição. Como diz Carré de Malberg8, “De tudo o que precede ressalta finalmente que o Estado deve antes de tudo sua existência ao fato de possuir uma Constituição. Eis por que é permitido dizer, em última análise, que o nascimento de um Estado coincide com o momento preciso em que ele é provido de uma Constituição”. Para Azambuja,9 do ponto de vista exclusivamente jurídico, ou melhor, formalístico, a teoria é aceitável, pois têm como objeto determinar com precisão o momento legal em que o Estado começa a existir como pessoa de 6

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 10ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias. 1989. Muitos autores, especialmente os internacionalistas, apresentam grande sub-divisão quanto aos modos de surgimento histórico dos Estados. O modo secundário, que seria pela União ou Divisão, está subdividido em União Real, União Pessoal, Federação ou Confederação. A Divisão de Estados se sub-divide em Divisão Nacional ou Sucessoral, enquanto que os modos derivados se sub-dividem em Colonização, Concessão de Direitos de Soberania ou Atos de Governo. 8 Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 111. 9 Idem. p. 112. 7

direito. Nesta linha, para o Direito Internacional Público o nascimento jurídico de um Estado se dá no momento em que os demais Estados o reconhecem como pessoa de direito internacional. Como se observa são inúmeras as teorias que buscam fundamentar a origem das primeiras sociedades politicamente organizadas, mas a formação do Estado pode estar vinculada a várias, e não necessariamente a apenas uma. Miranda simplificando todo questionamento lembra que no plano da antropologia histórica, revelam-se como processos mais importantes a conquista, a migração, a aglutinação por laços de sangue ou por laços econômicos ou a evolução social pura e simples para uma organização mais complexa e organizada. No plano do direito diz, basta observar-se o Direito Internacional e o Direito Constitucional comparado dos últimos duzentos anos, e será possível identificar processos como a elevação a Estado de comunidade dependente, a secessão, ou o desmembramento do Estado pré-existente10. Ainda, é importante observar-se que tais questionamentos refletem o pensamento ocidental, pois que os povos orientais não questionaram este tema. Não tinham, portanto, uma concepção definida de Estado, seus filósofos não se preocuparam com este aspecto da vida social. Antes de Maomé operar a unificação da península Arábica através do Islamismo, a região era extremamente fragmentada e nela coexistiam diversos reinos e povos autônomos com governos teocráticos. Podemos citar como exemplo de teocracia, o Reino de Sabá - cujas origens remontam ao século VIII a.C., constituído pela etnia dos Sabeus, em torno do seu Rei-Deus – O Reino Mineano, constituído também por volta do século VIII pela etnia dos Mineanos – O reino de Qataban estabelecido por volta do ano 600 a.C. – o Reino de Hadramaut – criado em torno de 450 a.C. e tantos outros, como o Reino de Petra, Reino dos Gassânidas, Reino de Hira, etc. Todos tendo como governantes um legítimo representante dos deuses, muitas vezes ele próprio um deus. Na Pérsia a situação era praticamente a mesma. O governo monárquico foi estabelecido pelo próprio Ormuz, os reis são seus descendentes e possuem a missão de praticar o bem em relação aos humildes e deserdados.

10

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2002. p. 21.

Na Índia, o Bramanismo hindu, embora desenvolvesse amplamente a idéia de pluralidade de existências, partiu da idéia de desigualdade entre os homens e os dividiu em castas – idéia referendada pelo próprio Brahman. A casta privilegiada é a dos Brâmanes, encarnação da justiça e designados por Deus para representá-la. Tudo lhes pertence, são senhores absolutos, mas para evitar rebeliões se colocam atrás de um rei, designado por Deus e ele mesmo um deus. Assim se trata de um Estado teocrático. O poder é de Deus e exercido por um deus. Uma rebelião não seria, portanto, contra o Estado e sim contra a própria divindade. Na China também não se encontram teorias específicas de política, mas sua filosofia possui inúmeros preceitos sobre a arte de governar e os deveres dos governantes. Kong-Fu-Tseu, o Confúcio, e Meng-Tseu, o Mencio, consideravam a política como uma parte da moral. Confúcio considerava o homem, por natureza, bom e possuidor do livre arbítrio. Segundo seus preceitos, a parte superior da sociedade (os governantes) deveriam possuir o amor paterno e a parte de baixo, a obediência de um filho. Para tanto, faz reiteradas recomendações ao príncipe: ele é o Senhor, não apenas quem reina. O príncipe deve ser um valor moral. A sua nobreza de alma é o que melhor o qualifica para as dignas e elevadas funções que exerce. Assegurada sua absoluta retidão pode-se até dispensar as leis, pois os seus desejos serão prontamente atendidos pelos súditos. Não precisa, portanto, intimidar ou atemorizar ninguém. Todos sentirão sua inequívoca força moral, prostrando-se frente a seu caráter superior. Como se observa, Confúcio não se preocupou com a origem do Estado, mas estabeleceu limites morais aos governantes que, para ele, devem acima de tudo ser a força moral que constrange o potencial negativo e anti-social do delinqüente, do malvado e do fraudador, cerceando-os e obrigando-os a seguirem as regram de bom convívio estabelecidas pela sociedade. A civilização egípcia distinguiu-se das demais civilizações dos tempos antigos por diversas características - como ser um Estado forte, centralizado e muito organizado - mas também era uma teocracia: o poder é de origem divina e o exerce um deus, conhecido como Faraó, proprietário nominal de todas as terras. As comunidades eram comandadas por monarcas com autonomia e independência que cooperavam entre si. Estes monarcas, embora autônomos, tinham autoridade limitada, pois o verdadeiro poder estava centralizado e era exercido por um deus: o Faraó. Havia outros deuses,

cada um governava invisivelmente certa atividade ou assunto. O Faraó era, pois, um deus entre os deuses, cuja vontade a classe sacerdotal era a única que sabia interpretar. Também uma teocracia era o Estado Hebreu. O povo de Israel, de acordo com a tradição religiosa judaica é descendente de Abraão. A família assume aspectos tribais com os doze filhos de Jacó e vem a se tornar um povo após a libertação destes do Egito, pelas mãos de Moisés. Mas é com a conquista de Canaã que os hebreus deixam de ser um povo nômade para se tornar um povo com uma terra e com Estado. Esta terra, que confunde-se com o Estado, se tornaria o elemento de união do povo já que foi dada pelo próprio Deus. Assim, o governo do Estado Hebreu era limitado por um lado, pelos preceitos da lei divina, e por outro, pela fiscalização dos chefes das doze tribos, que não permitiam que o rei se afastasse dos livros sagrados. É com os gregos que efetivamente inicia a ciência política, ainda que confundida com a moral. Contudo, a idéia grega de Estado, bem como seu próprio Estado, devem ser analisados com cautela. E, quando nos referimos a sua democracia devemos redobrar a cautela. Efetivamente existia na Grécia o reconhecimento do direito a participar ativamente na vida da cidade e na tomada de decisões políticas. Este direito, entretanto, estava restrito a um número muito reduzido de pessoas - somente os varões adultos, cujos progenitores também houvessem participado. O sistema excluía os demais filhos, as mulheres, os estrangeiros e os escravos, o que vale dizer: a maioria absoluta não tinha direito a participação, pois se sabe que somente os escravos compunham mais da metade da população. Devemos considerar ainda que os Estados gregos, por sua extensão territorial e população, não passavam de um município: eram na verdade cidades. A tendência à tirania era permanente e não se diferenciava a sociedade política da religiosa. Os gregos não conheceram a verdadeira liberdade política, o Estado os absorvia integralmente. Nos primeiros séculos o Estado Romano não se diferenciava do grego; também havia uma certa participação. Em Roma usava-se a palavra cidadania para indicar a situação política de uma pessoa e os direitos que esta pessoa tinha ou podia exercer. As pessoas eram classificadas para efeito de cidadania: estrangeiros e escravos estavam excluídos, enquanto os demais, ainda que cidadãos romanos, somente uma pequena parte possuía o direito a participar das decisões políticas através do voto e a

gozar de cargos públicos11. Com sua expansão territorial pela conquista de novas terras e populações, Roma se transforma em verdadeiro Estado. Contudo, a coragem dos romanos não foi suficiente para obstruir o nepotismo de seus imperadores que passaram a personificar o Estado. A decadência do Império Romano, devido às invasões bárbaras selou o fim do Estado na Europa ocidental. Os bárbaros, em suas invasões demolidoras, enterraram todo o passado Romano, reerguendo sobre os escombros uma nova ordem. Como ensina Maluf “Se alguma coisa sobreviveu ou ressurgiu, da velha Roma, ostentando um caráter vigoroso de eternidade, foi o direito romano, não sem antes passar pelo crivo dos glosadores germânicos”.12 Assim, os primeiros séculos da era medieval não foram próprios para o desenvolvimento político dos Estados. A fragmentação do Império Romano, a enorme convulsão social e política dali resultante, não permitiam o desenvolvimento de teorias e sistemas. A força domina e se impõe: a noção de Estado desaparece. As tradições romanas pouco ou nada influenciaram.

1.2 O Feudalismo Os reis bárbaros - francos, hunos, godos, estrogodos, visigodos, lombardos, vândalos, suevos, anglos e saxões - uma vez completada a dominação dos vastos territórios que integravam a órbita de hegemonia do extinto império Romano, passaram a distribuir cargos, vantagens e privilégios a seus chefes guerreiros, o que resultou na fragmentação do poder. Como eram imensos os territórios e impossível a manutenção de sua unidade sob um comando central único, criaram uma hierarquia imperial de condes, viscondes, marqueses, barões e duques, que dominavam determinadas zonas territoriais como concessionários do poder jurisdicional do Rei. Em compensação se comprometiam a defender o território, dar ajuda militar, pagar tributos e manter o principio de fidelidade ao Rei. O senhor feudal era o proprietário exclusivo das terras, e todos os habitantes seus vassalos. Exercia as atribuições de chefe de 11

Martin ensina que as instituições do Império Romano não faziam referencia a um modo de vida, e sim a uma relação bilateral estabelecida entre o individuo e a sociedade. “La ciudadanía romana contenia el presupuesto normativo básico de la condición civil moderna: reconocía la pertenencia del individuo a la comunidad en virtud de una relación bilateral de Derecho entre el ciudadano y el Estado, excluyente en la medida en que diferenciaba legal y politicamente al ciudadanos del no ciudadano, pero inclusiva en el sentido de que convivía con el resto de identidades colectivas participadas por la comunidad civil, que no debían ser necesariamente identidades universalistas”. (MARTÍN, Nuria Belloso. “Hacia una Ciudadanía Renovada”In Los Nuevos Desafios de la Ciudadania. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Burgos. 2001. p. 4) 12 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p.123.

Estado, decretava e arrecadava tributos, administrava a justiça, expedia leis, promovia guerras. Era um monarca absoluto em seus domínios13. Assim, um sistema de poderes superpostos e uma autoridade dividida dominou a ocidente (Europa) entre os séculos VIII e XIV, adotando várias formas. Segundo Held,14 provavelmente seja legítimo dizer que, em geral se distinguiu por uma rede de obrigações e vínculos vinculados a sistemas de governos fragmentados em várias pequenas partes autônomas. O poder político era local e personalizado e configurava um mundo social de pretensões e poderes superpostos. Alguns destes poderes e pretensões entravam em conflito entre si; e nenhum governante ou Estado era soberano no sentido de deter a supremacia absoluta sobre um território e uma população. O ponto de partida de todos os feudos foi a crise interior e exterior que pôs fim ao Império Romano, outro traço comum a todos foi a utilização de um direito romano vulgar, recolhido, adaptado, resumido e positivado, constituindo-se na primeira herança normativa que receberam os medievos ocidentais.15 O direito que os regulava se originava de diferentes fontes de produção jurídica e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos – que em geral eram originários e autônomos, como o dos feudos, das comunidades, das corporações. A jurisdição pertencia ao senhor da terra e era exercida sobre todas as pessoas que ali viviam. Não havia a noção de interesse público em punir os delitos, assim o direito acusatório pertencia a pessoa lesionada, ou, em caso de morte, a seus descendentes. O sistema processual era ‘acusatório’, dotado das seguintes características: necessidade de iniciativa por parte da vítima, igualdade de direitos entre as partes e formalismo, que se destinava unicamente a satisfazer o interesse individual do lesionado. Evidentemente estamos nos referindo aos nobres, aos cavalheiros e aos homens livres; os membros das classes servis estavam inteiramente submetidos a vontade de seus senhores e as medidas punitivas exercidas. 13

Analisando a estrutura jurídica do feudo, Pérez-Prendes refere-se a ‘necessidade’. Para ele, a fim de atingir a máxima estabilidade e segurança possível naquele tempo histórico, se unem naturalmente os vassalos, configurando o contrato do feudo, mediante mútua obrigação de fidelidade, porque não são os vassalos simples elementos, possuem o caráter de intensidade-estabilidade necessário para a relação que se instrumenta: o nascimento de um contrato bilateral, que cria obrigações para ambas partes. O vassalo deve tanta fidelidade e lealdade a seu senhor como este para com seu vassalo. ( PÉREZ-PRENDES, José Manoel. Instituiciones Medievales. Madrid: Sintesis, 1997, p. 53-54). 14 HELD, David. La Democracia y el Orden Global. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós, 1997, p. 54. 15 O conceito de direito vulgar foi introduzido por Enrique Brunner em 1880 quando ao estudar a história da documentação romana e germânica, aplicou ao direito uma analogia filológica, o latim vulgar falado nas províncias, que apresentava já muitos dos germes que dariam lugar mais tarde as línguas românicas. (PÉREZ-PRENDES, José Manoel. Instituiciones Medievales Op. Cit. p. 26-32).

Neste período a economia estava baseada na agricultura já que as invasões e as guerras internas tornavam difícil o desenvolvimento do comércio. Como conseqüência, a terra é enormemente valorizada, pois é de onde todos, ricos e pobres, poderosos ou não, tiram seu sustento. Assim lembra Dallari16, toda a vida social passa a depender da propriedade ou da posse da terra, o que fez desenvolver-se um sistema administrativo e uma organização militar estreitamente ligados a situação patrimonial. Todo o excedente estava sujeito a ser reivindicado pelo senhor feudal, que distribuía justiça e garantia proteção, e cujo poder somente era limitado pela Igreja que, em todo o período da Idade Media procurou impor uma autoridade espiritual sobre o poder senhorial, transferindo a suprema autoridade e sabedoria a Deus, ao qual também o senhor feudal deveria submeter-se. Neste sentido a igreja era a principal rival do feudalismo. Assim, quando a cristandade ocidental foi desafiada, especialmente pelos conflitos que deram origem ao surgimento dos Estados nacionais e a Reforma, tomou corpo a idéia de Estado Moderno, e se criaram as condições necessárias para o desenvolvimento de uma nova forma de identidade política – a identidade nacional. Na verdade, as condições começaram a criar-se a partir do século XI, com o aumento da produtividade econômica dos feudos e a expansão das vilas e cidades, que determinam uma nova dinamização das atividades e da vida social, oportunizando o crescimento do comércio e a organização dos ofícios em Corporações. O crescimento das cidades produz o desenvolvimento de jurisdições municipais, com regras próprias e outras formas de juízo. No período entre os anos 1000 e 1300, vão se formando vários elementos essenciais ao Estado Moderno. Foi se fortalecendo também o poder dos Reis que começaram a impor-se, inclusive na administração da justiça. Lembra Gonzaga17 que o meio inicial para dominar as cortes senhoriais consistiu na criação de recursos das decisões proferidas nos feudos; surge a apelação ao Rei, o que, desde logo, obrigou a adoção de processos escritos. Também neste período se desenvolve o intercâmbio com o oriente, especialmente a partir das cruzadas, o que dá início a uma nova classe social: a burguesia.

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DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 69. 17 GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 25.

As entidades públicas, ensina Strayer18, cada uma com seu núcleo básico de gentes e de terras, adquiriram legitimidade pelo fato de se manterem ao longo de muitas gerações. Estabeleceram-se instituições permanentes para assuntos financeiros e jurídicos. Surgiram grupos de administradores profissionais; nasce um organismo central de coordenação, a chancelaria, com uma equipe de funcionários extremamente qualificados. Estes administradores profissionais constituíam um número muito pequeno, mas eram auxiliados por funcionários eventuais – fundamentalmente por religiosos, barões de menor expressão, cavaleiros e ricos burgueses. Muitos estavam dispostos a trabalhar por um período como administradores de terras, agentes financeiros, administradores locais, registradores ou juízes, como forma de ganhar favores reais e aumentar seus rendimentos. Mas ao lado destes trabalhadores eventuais, havia homens que consagravam a maior parte de seu tempo à profissão de administrador público e seu número aumentou consideravelmente à partir do século XIII. Um período de esclarecimento toma conta do cotidiano das cidades, o que faz surgir centros de reflexão e distribuição de conhecimento como as Universidades de Bolonha – que no século XII ressuscitou o Direito Romano, ou seja, o direito imperial consolidado no Corpus Juris Civilis, que havia caído no esquecimento, o que fez com que os juristas compreendessem o quanto os costumes medievais eram rudimentares e inconfiáveis - Salamanca, Paris, Coimbra e Oxford. Mas, sem dúvida, o Cisma na igreja promovido por Urbano VI e Clemente VII (1378-1417), foi definitivo para o surgimento do Estado Moderno. Com a eleição, em 1378, de Urbano VI, apoiado e reconhecido pelo Imperador do Sacro Império e a eleição pelos franceses de Roberto de Genebra, que adotou o nome de Clemente VII e estabeleceu sua sede em Avigon, com cada Papa nomeando seus próprios cardeais, cada monarca se aliou a um Papa, visando essencialmente seus interesses políticos. Isto minou as bases do poder clerical, dando oportunidade ao surgimento de um novo poder, em especial com os acordos bilaterais firmados entre a Igreja e os Estados, onde a primeira reconhecia a soberania dos últimos, com isso diz Leal, “se institui uma sociedade de homens que já se movimentam com suas próprias pernas, independentemente do auxílio de Deus”19.

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STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969. p. 39-40. 19 LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 47.

Mas o período histórico era extremamente difícil. Lembra Strayer que os europeus criaram o seu sistema de Estados num momento particularmente crítico. A grande depressão econômica – a mais prolongada da história – tem início em 1280. A Europa tinha atingido o limite de suas possibilidades em matéria de produção agrícola, de trocas comerciais e de atividade industrial. Até que se descobrissem novas técnicas, novos mercados e novas fontes de abastecimento, a estagnação era certa e a regressão inevitável. O excesso de população exercia uma grande pressão sobre a terra; a fome e as pestes que acabaram por reduzir um grande número de habitantes, em nada contribuíram para melhorar a moral dos sobreviventes. A peste negra que irrompeu violentamente em meados do século, voltou a atacar em várias ocasiões, fazendo desaparecer vários governos locais. A insegurança física e econômica refletiu-se na instabilidade política. Nenhum governo poderia ter evitado a depressão, a fome e as pestes, porque os conhecimentos e as técnica necessárias ainda não existiam, mas poderiam evitar as longas e custosas guerras dos séculos XIV e XV, que vieram a aumentar em muito os sofrimentos e a desmoralização da população. Mas para Strayer20, estas guerras foram necessárias para completar o desenvolvimento de um sistema de Estados soberanos. A soberania implica na independência perante toda e qualquer potência estrangeira e na autoridade absoluta sobre os homens que vivem dentro de determinado território. Neste período não se sabia bem quem era independente e quem não era, pois não haviam limites claros e em muitas zonas as autoridades se sobrepunham.

1.3 O Estado Moderno Ao iniciarmos nosso estudo sobre o Estado Moderno, cabe a primeira interrogante. Por que a denominação de Estado Moderno? Para diferenciar de um Estado Antigo? A resposta é positiva. Não se pode negar a existência de Estados no mundo antigo. Como afirma Strayer, a polis grega era, inegavelmente um Estado, assim como o Império Han, na China e o Império Romano. Estes Estados dividiam-se, de um modo geral, em duas categorias: os impérios grandes, mas dificilmente integrados e as unidades pequenas, mas com um elevado grau de coesão, como as cidades-estados 20

STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969. p. 63-65.

gregas. Entretanto, estes Estados antigos, não foram influência para o moderno. Os homens que criaram os primeiros Estados modernos europeus, nada sabiam do Extremo Oriente e, embora conhecessem alguma coisa do Direito Romano e dos tratados aristotélicos, estavam muito longe, no tempo, da Grécia e de Roma. Assim, tiveram que inventar seu próprio modelo e “o tipo de Estado que criaram acabou por funcionar melhor do que a maioria dos antigos modelos”21. A denominação Estado Moderno é também defendida por Gruppi22. Para ele o Estado, como hoje conhecemos, dotado de um poder próprio e independente de quaisquer outros poderes, efetivamente começa a nascer a partir do século XV e apresenta algumas características que o diferem dos Estados antigos. A primeira referese à sua soberania – um poder que não admite e não permite nenhuma outra autoridade. A segunda é a distinção entre o Estado e a sociedade – o Estado se torna uma organização distinta da sociedade. Uma terceira distinção é perfeitamente visível em relação ao Estado moderno e aquele da Idade Média – o Estado medieval é propriedade do Senhor é, pois, um Estado patrimonial; o Senhor é identificado com o território e tudo que o integra. No Estado moderno, a identificação do Senhor é com a soberania, portanto com o próprio Estado. Strayer23 apresenta ainda outra importante característica: os Estados europeus combinaram, em certa medida, as virtudes dos impérios e das cidades-estado. Eram suficientemente vastos e poderosos para terem excelentes possibilidades de sobrevivência, e, ao mesmo tempo, não tão vastos a ponto de não manter a coesão. Assim conseguiram integrar, ou pelo menos envolver no processo político, boa parte de seus habitantes e criar, nas comunidades locais, um certo sentimento de identidade comum. Conseguiram mais de seus povos - quer no que diz respeito à atividade política, quer no tocante à lealdade - do que os antigos impérios, sem contudo, terem alcançado a participação total que caracterizava uma cidade como Atenas.

21

Idem. p. 16-17. GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. Porto Alegre: L&PM Editores. 1980. Apud STRECK, Lenio Luis e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2003. p. 24-25. 23 STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit. p. 18. 22

Então, a partir do século XV ao XVIII surgem novos regimes políticos: as monarquias absolutas, como na França, Espanha, Rússia e outros, e as monarquias constitucionais, como na Inglaterra e Holanda24. O Estado nasce, pois, como uma construção; é desse modo, um sujeito artificial, centralizador, institucionalizado, que se fortalece cada vez mais, na medida em que detém o monopólio da força e da burocracia. Se consolidou, como ensina Bobbio 25, mediante um duplo processo de unificação: 1) unificação de todas as fontes de produção jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano. Dessa forma, são gradualmente rechaçadas as fontes tradicionais do direito – aos costumes se atribuem efeitos jurídicos somente quando os reconhecer a lei; a ciência do direito é cada vez mais considerada unicamente como um complexo de opiniões que, mesmo valiosas, nunca são vinculativas; à jurisdição se reconhece o poder meramente secundário e derivado de aplicar as normas jurídicas de origem legislativa; 2) unificação de todos os ordenamentos jurídicos superiores e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja expressão máxima é a vontade do príncipe. Para Bobbio, este processo de unificação se desenvolveu em duas direções: na liberação operada pelas monarquias absolutas em relação aos poderes superiores e na absorção dos ordenamentos jurídicos inferiores. O ordenamento jurídico aparecerá, então, como produto desta nova realidade: o Estado. Será este novo poder, incontestável, quem dirá o Direito e o positivará. Este deixa de ser algo “natural” e passa a ser produto da racionalidade. Seu conteúdo deixará de ser inerente a natureza das coisas; passará a se produzido pelo poder soberano e aplicado por seus representantes. O Estado, portanto, se atribui e assume a obrigação de dizer o Direito e de dar a tutela jurisdicional. Passa, então, a harmonizar os conflitos, as tensões e as contradições da sociedade, a estabelecer os parâmetros para a ordem, o direito, a justiça, a segurança, a liberdade e a propriedade. Se transforma pois, em uma poderosa organização que regra a vida social, impelido pela racionalidade instrumental. Se constitui no arcabuz legal-institucional que mantém e articula o monopólio da racionalidade. Como ensina Held26, no centro da idéia de Estado Moderno se encontra 24

Se para alguns autores o Estado Moderno surge com o tratado de Westphalia, em 1648 pondo fim a Guerra dos Trinta Anos e consagrando o princípio da igualdade entre os Estados, por outro lado, não são poucos os que identificam em Frederico II de Suábia seu fundador, isto em razão de que ele ter implantado na Sicília, em pleno século XIII, um Estado que já apresentava características plenamente modernas: governo rigidamente centralizado, com burocracia complexa, superação da dispersão feudalestamental e com o monopólio do Estado na distribuição da justiça. 25 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 2ª ed. São Paulo: Mandariam. 2000. Op. Cit. p. 18-19. 26 HELD, David. La democracia y el orden global Op.Cit. p. 60.

uma ordem impessoal, legal ou constitucional, delimitando uma estrutura comum de autoridade, que define a natureza, a forma do controle e a administração de uma determinada comunidade.

1.3.1 O Absolutismo O absolutismo marcou uma forma de Estado baseada na absorção das unidades políticas menores, constituindo uma estrutura maior e mais forte, com capacidade de governar sobre um território unificado, um sistema legal efetivo e vigente em todo território e com a formação de um governo unitário, contínuo e efetivo, exercido por uma única cabeça soberana. Neste período, todos os defeitos e virtudes do monarca absoluto se confundiam com as qualidades do Estado. A legitimidade do soberano se baseava no direito divino e ele estava acima do sistema, seu direito ao poder era supremo e absoluto. As principais características deste Estado, segundo Wolkmer 27 são: a) centralização de todos os poderes na pessoa do rei; b) o Estado é territorial e nacional (surge a consciência de nação e nacionalidade); c) o Estado se reveste de um poder supremo e ilimitado; d) o processo da secularização, marcando a separação entre Estado e Igreja; e) se materializa um conceito de direito laicizado, produto da generalidade, dessacralização e racionalização burguesa; f) se desenvolve o mercantilismo econômico e a chegada da economia monetária. Para Weber, um único instituto serve para definir o Estado, assim como toda associação política: a força, e não seu conteúdo28. Todo Estado se fundamenta na força disse Trotsky, e Weber, citando-o de forma literal, lhe da toda razão, ressaltando, contudo, que a violência não é o instrumento único do Estado, mas lhe é específico. No passado sim - diz o pensador – a violência foi um meio inteiramente normal entre os mais distintos grupos.29 O Estado Moderno racionalizou o emprego da violência ao mesmo tempo em que o fez legítimo. Valendo-se de tais reflexões, Max Weber afirma que uma associação política obrigatória com uma organização contínua, se chamará ‘Estado’, nos termos em que sua equipe administrativa assume com êxito a monopolização do uso legítimo da força física para reforçar sua autoridade30, e o definiu como: “uma associação de domínio, que tratou, 27

WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25. Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Op. Cit. 29 Idem 30 WEBER, M., Basic concepts in sociology. New York: The Citadel, 1964, p. 119, In AGUIAR, Roberto. A. R. (de), Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 43. 28

com êxito, de monopolizar, dentro de um território, a violência física legítima como meio de domínio e que, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos de seu dirigente e expropriou todos os funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por direito próprio, substituindo-os pelas hierarquias supremas”. 31 A partir desta definição, Barroso32 retira alguns elementos para comentar, principalmente, o monopólio da violência física legítima. Para ele, isto revela um contraste com o anterior poder feudal, que era bastante fragmentado e dividido em vários centros políticos e jurídicos. Quando o Rei consegue reunir um exército forte, patrocinado em grande parte pela burguesia nascente, vai conseguir dominar um vasto território, colocando-o sob seu poder direto. Então, entende-se que com isso, ele passa a deter legitimamente o poder, porque é interessante que haja esta nova ordem, que é essencial para a formação do Estado moderno. Outro aspecto que se pode retirar da definição de Weber, diz Barroso, como conseqüência do primeiro elemento, é o fato de que existe, para a execução e garantia do sistema imposto, um corpo de funcionários, com a função de usar a violência física, quando seja necessário. Com isso pode-se verificar que a estrutura do Estado esta garantida por um tipo de Direito, ainda que um Direito primasiadamente punitivo, com o objetivo de garantir, de qualquer forma, a coesão do novo status quo do novo Estado. Então, no Estado absolutista, o direito era o poder da força, baseado em um tipo de dominação tradicional, legitimado pelo direito divino dos Reis. Neste Estado a ideologia existente pode perfeitamente resumir-se na famosa frase de Luis XIV “L’Etat c’est moi”. Diferentemente, estaria a dominação racional-legal, perpetrada por meio da lei, entendida como a expressão máxima da razão humana. Ainda que óbvio, é importante lembrar, alerta Barroso, que a passagem do mundo feudal ao mundo moderno não vai ocorrer de um modo rápido e instantâneo, é um fenômeno que não vai ocorrer em todos os lugares ao mesmo tempo, pelo que não se pode determinar una data exata para o nascimento do Estado moderno. Inclusive porque, na França pré-revolucionária existiam ainda instituições feudais. A França, que foi um dos primeiros Estados europeus, a aceitar o novo modelo - a consolidação do poder absoluto - ainda assim se encontrava a existência de poderes 31 32

WEBER, M. O Político e o Cientista. Lisboa: Presença, 1979, p. 17. BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 29.

feudais menores – não como anteriormente quando dispunham de exército e moeda próprios, e sim com uma estrutura administrativa tipicamente feudal. Isto se verifica porque, em toda passagem de um modelo para outro, a ruptura nunca é completa, há um período de convivência entre instituições antigas e instituições novas. Ademais, as velhas formas se mantém também para que não pareça, aos olhos da povo, que houve uma alteração tão grande, e vá assimilando aos poucos o novo modo de vida. É neste período de grandes transformações que surge uma nova doutrina orgânica e objetiva do Estado moderno, estabelecida por Maquiavel (1513). A idéia de uma ordem natural é abandonada e substituída por outro pressuposto da modernidade: a ordem política provém do poder e resulta da imposição de uma vontade: a vontade que a exerce. Desprezando qualquer escola filosófica ou política como referencial teórico33 e valendo-se somente da observação e desenvolvida psicologia humana, o escritor florentino, em O Príncipe, faz uma exposição das condições necessárias para que se possa construir um Estado forte e unitário. Maquiavel defende que, para a construção de um Estado, o poder deve ser absoluto, justamente para a manutenção da nova ordem, para que não haja uma tentativa de voltar a situação antiga por parte daqueles que foram derrotados. Sugere que as forças anteriores sejam dizimadas de modo a não poderem se reorganizar, caso contrário, pode ocorrer uma tentativa de rebelião “mediante conluio com alguns barões do reino, pois sempre se encontrarão descontentes e desejosos de mudanças” 34. Nas Repúblicas, diz Maquiavel, há maior ardor, maior ódio e mais sede de vingança, e a memória da antiga liberdade não dá tréguas. Assim, o meio mais seguro de dominá-las é aniquilá-las. Ao separar a política da ética, Maquiavel se desliga de todos os valores morais, tradicionais e princípios éticos, propagando o oportunismo e o cinismo como arte de governar. Aconselha o Monarca a mentir, a praticar toda sorte de crueldade ao mesmo tempo e dissimular fazendo crer que sua conduta é virtuosa. Ao apossar-se de um Estado, diz, o Príncipe deve “verificar todas as ofensas que precisa fazer; e fazê-las todas de uma vez, a fim de não ter que repeti-las todos os dias e poder, assim, não as repetindo, conquistar seus súditos”35. Recomenda ao Soberano pensar uma maneira de fazer com que os cidadãos, sempre e em qualquer circunstância tenham necessidade do Estado e dele, 33

“Maquiavel não parte de um sistema filosófico, como fará Hobbes, para explicar a natureza do homem. Incrédulo, ele não se baseia no pecado original e no dogma da natureza decaída” (CHEVALIER, J-J., História do Pensamento Político. Tomo I, Rio de Janeiro: Guanabara, 1982, p. 266). 34 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d. p. 52. 35 Idem. p. 72.

com o que lhe serão depois, sempre fiéis. Ao questionar-se sobre ser o Príncipe amado ou temido responde que deveria ser uma e outra coisa. Mas como isso é difícil de ocorrer, conclui que “é muito mais seguro ser temido” porque os homens em geral são ingratos, volúveis, dissimulados, ambiciosos, falsos e tementes ao perigo. O amor está vinculado à gratidão e este vínculo, por serem míseros os homens, rompe-no toda ocasião conveniente, ao passo que o temor é mantido pelo receio dos castigos. Assim os homens receiam menos ofender aquele que amam do que aquele a que temem.36 Então, “é necessário a um Príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom..”. Em suma, ao Príncipe tudo é permitido, inclusive a infâmia, a hipocrisia, a crueldade, a mentira, desde que consiga atingir seu objetivo. Todos os meios que lhe sejam úteis no exercício do poder são admissíveis e justificados. Fernández Pardo37, referindo-se ao pensamento de Maquiavel, disse que ele “faz da política um objeto de desejo e um palanque para a satisfação de suas paixões. Em suma, um espaço onde objetivar sua vontade”. É um político que faz da decisão a instância suprema do exercício político. Para Bobbio38, em termos políticos, o maquiavelismo, assim entendido, chega a formar parte da teoria da razão de Estado, que acompanhou a consolidação do Estado absoluto. Como ‘razão de Estado’, deve-se entender que o Estado possui suas próprias razões, que o indivíduo desconhece. Em nome de tais razões, o Estado pode atuar de maneira diferente daquela que o individuo deveria comportar-se nas mesmas circunstâncias. Dito de outro modo, a moral do Estado, ou seja, daqueles que detêm o poder supremo sobre os outros homens, é diferente da moral dos indivíduos comuns. O individuo possui obrigações que o soberano não possui. A teoria da razão de Estado é, portanto, outra maneira de firmar o absolutismo do poder do soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem as leis jurídicas nem as morais. Identificado inicialmente como um manual de técnicas de despotismo ou de defesa da tirania, e condenado pela Igreja, Maquiavel foi glorificado como herói nacional pelo povo italiano durante o movimento de unificação da Itália. Sua doutrina não foi somente o sustentáculo do absolutismo monárquico que surgiu no início do mundo moderno. Em pleno século XX ressurgiu nos Estados autoritários; Mussolini reconheceu em Maquiavel um precursor do fascismo, enquanto Gramsci via em suas teorias uma antecipação da teoria do partido do proletariado.

36

Idem. p. 108. FERNÁNDEZ PARDO, C. A., (organizador) Teoria Política y Modernidad: del siglo XVI al siglo XIX. Buenos Aires: Entro Editor de América Latina, 1977. p. 12. 38 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Op. Cit. p. 23. 37

Assim, como ensina Wolkmer39, o Estado moderno surge inicialmente absolutista devido a condições ambientais necessárias para sua consolidação, evoluindo, posteriormente, para o chamado Estado Liberal Capitalista. Deste modo, o Estado Absolutista é um Estado em transição: sua estrutura prepara a chegada do Estado Liberal, fundada no modo de produção capitalista. Embora a organização absolutista comporte matizes marcadamente capitalistas, a burguesia não é ainda, a classe política e economicamente dominante. Se num primeiro momento houve uma aliança entre o Rei e a burguesia em função de interesses comuns, com o passar do tempo, tais interesses foram se afastando mais e mais uns dos outros. Roth 40 distingue o Estado Moderno do feudal por três elementos principais: primeiro, se institui a separação entre a esfera pública, dominada pela racionalidade burocrática do Estado, e a esfera privada, domínio dos interesses pessoais; segundo, o Estado Moderno dissocia o poder político (poder de dominação legítima legal-racional) do poder econômico (que possui os meios de produção e os meios de subsistência), que se encontravam reunidos no sistema feudal e, terceiro, o Estado Moderno realiza uma estrita separação entre as funções administrativas e políticas, fazendo-se autônomo da sociedade civil. Então, por volta do ano 1700, a Europa já tinha implementado e desenvolvido - ainda que embrionárias - as estruturas características do Estado moderno; estruturas que estão na base da maioria dos Estados atuais. É claro que aqueles Estados estavam longe do que hoje entendemos por Estado democrático, mas já não era um despotismo total. As ações de governo – salvo raras exceções – deviam ser explicadas e justificadas perante os membros das classes dominantes, além de seguir os preceitos legais. Finalmente, o que Strayer considera o mais importante: o Estado se convertera numa necessidade vital41. Conquistou a lealdade suprema dos seus súditos. A intensidade dessa lealdade era variável, mas sequer aqueles que se limitavam a uma obediência passiva, conseguiam conceber um mundo sem Estado. A Europa estava então preparada para o fortalecimento e a multiplicação das funções do Estado. As políticas podiam ser atacadas, e os governos derrubados; porém, as convulsões políticas, jamais poderiam destruir o conceito de Estado.

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WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25. ROTH, A-N, “O direito em Crise: Fim do Estado Moderno?” In Direito e Globalização Econômica. (Organizador: José Eduardo Faria) São Paulo: Malheiros. 1996,. p.16. 41 STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit.. p.115-116. 40

1.3.2 As idéias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau Tomas Hobbes (1588 – 1679). De privilegiada educação - estudou nos melhores colégios da Inglaterra - afastou-se da escolástica e manteve-se sempre próximo dos conhecimentos exatos e científicos, aproximou-se da lógica, física, matemática e geometria. Privou da companhia de Descartes, Galileu Galilei e outros grandes pensadores de sua época. Dedicou grande parte de seus estudos à questão do direito natural Preocupado com a já fragmentada unidade do Estado, em 1640 põese na defesa do Rei Carlos I contra um levante liberal sustentado por ricos comerciantes burgueses que contestam o poder aproveitando-se do conflito entre protestantes e católicos e a intromissão político-administrativa da coroa. É neste episódio que busca inspiração para sua obra Elementos da Lei Natural e Política. (somente publicada em 1650). Diante da manifestação dos revoltosos, Hobbes se vê obrigado a refugiar-se em Paris onde publica Sobre o Cidadão (1642) e O Leviatã (1651). Embora jusnaturalista, é considerado o precursor do positivismo jurídico, pois como explica Bobbio, Hobbes adota a doutrina do direito natural não para limitar o poder civil, mas para reforçá-lo. Usa meios jusnaturalistas para alcançar objetivos positivistas. “A mesma idéia pode ser expressa de outra forma, dizendo que Hobbes é um jusnaturalista ao partir e um positivista ao chegar”. 42 Ocorre, diz Leal, que Hobbes parte da assertiva de que antes da formação da sociedade política organizada, existia uma situação de caos e desordem entre os homens, inviabilizando a própria existência, o que o afasta dos teóricos que até então garantiam que o homem se caracterizou por seu um animal político e social por natureza43. Para Hobbes, ao contrário, o homem se distingue dos animais sociais, como as abelhas e as formigas, por exemplo, por não possuir instinto social. Ele não é sociável, afirma, e somente o será por acidente. Então, no estado da natureza a situação era de absoluto caos e desordem entre os homens, o que inviabilizava a própria existência. A natureza humana é perversa, egoísta e perniciosa diz, e todo homem é concorrente do outro; ávido de poder sob todas as formas. Concorrência, má-fé, desconfiança recíproca, avidez de glória e fama tem por resultado a guerra perpétua de cada um contra cada um e de todos contra todos. Para Hobbes, “homo homini lupus” – o homem é o lobo do homem, então 42

BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 41. LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 1997. p. 68 43

“bellum omnium contra omnes” – é guerra de todos contra todos. Não há qualquer possibilidade de criar-se uma sociedade organizada com o homem em estado de natureza. Mesmo existindo leis naturais, não há qualquer garantia de que serão seguidas. A única salvação para o homem é a criação de um poder superior, cada um deve renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas em favor de um soberano, que ao herdar o direito de todos terá um poder absoluto e ilimitado. Assim, por medo de seu semelhante e da insegurança perpétua, o homem desiste do direito total, de livre postura e livre agir, renuncia a seus direitos, transferindo-os a um soberano que em troca lhe garantirá segurança. Para Hobbes assim surgiu o Estado, que agarra para si o poder e a violência que os indivíduos detinham quando na natureza e, coercitivamente, impõe regras que irão nortear o campo social. O soberano cria o direito positivo e os indivíduos são obrigados a obedecê-lo. Isto significa que somente existe um direito: aquele imposto pelo soberano, o direito positivo. Assim, a segurança e as obrigações se tornaram eficazes: todos sabem que quem não cumprir a lei será punido. Bobbio resume assim o pensamento hobbesiano: “de uma concepção totalmente pessimista do estado da natureza, como a de Hobbes, só podia derivar uma exaltação do homo artificialis, isto é, do poder político, na qual o indivíduo resumir-se-ia no súdito, quase sem deixar resíduo”.44 O Estado de Hobbes, detém o monopólio do aparato legal, ele é fonte única do direito. Ele não reconhece direitos preexistentes, ele os cria. A única lei oriunda do direito natural que permanece é a de obedecer ao soberano. Este Estado, de poderes ilimitados, transforma-se no grande Leviatã45. John Locke (1632 – 1704) Filósofo e teórico político foi um defensor do liberalismo político e da tolerância religiosa; questionou também a questão da educação, onde propôs também um método de ensino que partisse dos fatos, embasado nas ciências da Natureza. Seguindo a tendência da época, John Locke – um jusnaturalista do princípio até o fim46 - apresenta suas considerações sobre a formação da sociedade política, partindo também dos referenciais de comportamentos existentes na natureza. 44

BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 172. Grande monstro mitológico devorador de homens – Crocodilo, descrito na Bíblia, Livro de Jó, cap. 4041. 46 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 75. 45

Mas suas conclusões são a princípio ambíguas. De início deixa claro que o estado da natureza nada tem a ver com o estado de guerra: “Temos aqui bem clara a diferença entre o estado da natureza e o estado de guerra, os quais, embora já tenham sido objeto de confusão por algumas pessoas, estão muito distantes um do outro: um é um estado de paz, benevolência, assistência e conservação recíprocas; o outro, um estado de hostilidade, maldade, violência e mútua destruição”47. Entretanto, mais tarde reconhece que “por falta de leis positivas e de julgamento por parte da autoridade a que se possa apelar, o estado de guerra, uma vez iniciado, perdura”48. Ocorre que Locke estava frente a duas fortes correntes: de um lado Hobbes – para quem o estado da natureza era um estado de guerra, de outro Pufendorf – para quem ao contrário, era um estado de paz. A posição de Hobbes era pouco aceitável e antipática aos teólogos, enquanto se a de Pufendorf fosse absolutamente verdadeira, porque os homens sairiam do estado da natureza? Diante desta dificuldade real, diz Bobbio49, é natural que Locke fosse tentar uma solução intermediária onde o estado da natureza não é um estado de guerra, mas pode tomar este rumo e ocorrendo tal transformação se torna difícil reconduzi-lo ao estado de paz original. Se os homens fossem sempre racionais bastariam às leis da natureza - que estabelecem que “ninguém deve prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou propriedade” - contudo isso nem sempre acontece; no estado da natureza, reconhece Locke, “algumas pessoas transgridem os limites, usurpando direitos de outrem, prejudicando-se mutuamente...”. Então, o estado da natureza não é essencialmente mau, mas apresenta inconvenientes. “Ao percebermos, em um certo ponto, que suas desvantagens superam as vantagens, torna-se necessário abandona-lo”. Daí conclui: “reconheço plenamente que o governo civil constitui o remédio apropriado”. Mas lembra que o homem, desde o estado de natureza foi proprietário legítimo e inconteste de sua vida e de sua liberdade – liberdade no sentido “de organizar seus atos e dispor de seus bens como julgasse conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”, - o que significa: o direito de agir à sua própria vontade, sem restrições nem coações. Os homens nascem iguais e nenhum tem poder sobre os demais, portanto os homens são livres para agir, tendo como único limite a lei da natureza. Esta e outras tantas situações preexistem ao Estado, portanto estão consumadas na ordem do mundo e não podem ser 47

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Cap. III, § 19 e Cap. IX, § 123. Apud BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 117-181 48 Idem 49 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 179.

alteradas. O poder civil, portanto, está impedido de alterar ou inovar neste campo, pois sua constituição ocorreu exclusivamente para satisfazer as necessidades humanas (de segurança e estabilidade) e assegurar os direitos do indivíduo. Ele foi criado de modo convencional, momento em que o homem abre mão de sua liberdade ilimitada para delegar poder à autoridade pública, que assume a tarefa de proteger os direitos naturais. Portanto este é o poder e o limite do Estado. Caso ele transgrida o limite de sua competência, perde a legitimidade, consequentemente sua função, pois os homens não abririam mão de seus direitos, seus bens e sua liberdade do estado de natureza colocando grilhões em si mesmos, sem a garantia de rompimento do acordo, para a preservação de seus direitos naturais, até porque os direitos que constituem a natureza humana são inalienáveis. Os homens renunciaram unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis fossem melhor garantidos. Em resumo, para Locke, (a) os direitos do homem derivam da lei da natureza, que é a expressão da vontade de Deus e são universais, isto é, estendem-se a todos os homens, independente de sua condição social; (b) Deus ofertou o mundo a todos os homens, em iguais condições. Os homens trabalharam e o fruto de seu trabalho é sua propriedade; (c) para preservar e garantir esses direitos os homens se reuniram em sociedade e convencionaram a criação do Estado; (d) a função do Estado é proteger e garantir os direitos naturais dos homens, não o fazendo, perde sua legitimidade e a convenção pode ser rompida. O que se observa é que para Locke, “a finalidade máxima e principal que buscam os homens ao reunir-se em Estados ou comunidades, submetendo-se a um governo, é a de salvaguardar seus bens; esta salvaguarda era muito incompleta no estado de natureza”50. O que se verifica é que ao contrário de Hobbes, para quem o Estado é a única fonte do direito, não reconhecendo direitos fora dele, sendo tudo uma convenção, para Locke o direito que o homem tem sobre si mesmo traz como conseqüência o direito sobre as coisas, sendo então naturalmente proprietário e não graças a uma convenção. Deve-se observar que o conceito de propriedade em Locke tem um sentido muito amplo, englobando não somente os bens materiais, mas o próprio corpo, a vida, a liberdade, a consciência. Assim, se para Hobbes o indivíduo acata o poder e entra em sociedade por medo de seu semelhante, para Locke isto se dá para garantir seus interesses, seus bens e 50

FERNÁNDEZ-LARGO. Antonio Osuna. Teoría de los Derechos Humanos. Conocer para practicar. Salamanca: San Esteban - Madrid: Edibesa. 2001. p. 91.

seus direitos. É claro que a primeira razão pela qual o homem abandona o estado de natureza e se reúne com os outros no estado civil, submetendo-se a uma autoridade é o desejo de conservar sua vida, um dos primeiros direitos naturais, mas o homem não constituiu o Estado somente para conservar sua vida, mas também para conservar outro direito natural fundamental que é a propriedade. O estado civil nasce, portanto, segundo Locke, do desejo que os homens tem de conservar os direitos naturais fundamentais, ou seja, a vida e a propriedade51. Assim Locke se opõe a Hobbes apresentando uma teoria antagônica ao absolutismo do Leviatã. O homem livremente agregou-se em sociedade para garantir segurança pessoal e proteger seus bens (vida, liberdade, propriedade) e este é o limite e a função do Estado. Para Dias52, o objetivo principal de Locke “era proteger o indivíduo contra o poder ilimitado do governo ou de outros indivíduos”. Usando o direito natural ele fixa os limites deste poder. Os homens devem ser livres para escolher sua forma de vida, seu governo e sua própria comunidade. Contudo, Hobbes e Locke estão de acordo que o interesse individual é, e deve ser o propulsor da sociedade. Concordam que a propriedade privada é a base de toda sociedade e que o único Estado legítimo é o que surge de um livre contrato entre os cidadãos e que a única razão de existir do Poder Estatal reside em assegurar o cumprimento da leis53. Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) Nascido em Genebra, em uma família calvinista de origem francesa, fica órfão de mãe ainda criança e é abandonado pelo pai aos 10 anos. Já adulto, peregrinou pela França e Suíça até que em 1741 instala-se em Paris, onde conhece Voltaire, Diderot e outros filósofos do iluminismo e tem a oportunidade de familiarizarse com os clássicos da época (Spinoza, Platão, Aristóteles, Montesquieu, Hobbes, Locke), o que formou sua base teórica. Embora tenha incursionado por diversos ramos do conhecimento como a música, educação, literatura e poesia, a filosofia de Rousseau encontra-se em dois discursos: Sobre as Ciências e as Artes e Sobre as Origens da Desigualdade. Como se disse, neste período recorrer ao estado de natureza é lugar comum para explicar a origem e as bases da sociedade. Mas para Rousseau, ensina 51

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Op. Cit. p. 60. DIAS, Maria Clara. Os Direitos Sociais Básicos. Uma investigação filosófica da questão dos direitos humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2003. p. 33. 53 ANTÓN, Joan et al. El liberalismo. Madrid: Tecnos. 1996. p. 193. 52

Leal54, o estado de natureza não tem a mesma função que seus predecessores. Para os iluministas, defensores do direito natural, os homens no estado de natureza são livres e iguais. Nenhum é dotado de poder de comandar os outros. Portanto a autoridade política não tem origem natural, ela deriva de uma convenção, da qual os homens se despojam de uma parte de sua soberania em benefício de um terceiro. Assim, diz Rousseau: “Uma boa constituição será aquela que garanta a liberdade e a desigualdade natural dos homens”. Pufendorf afirmava que os homens na natureza eram dotados de razão e sociáveis, por isso uniram-se para sair daquela condição infeliz; para Locke os homens se uniram para garantir direitos que já possuíam; Hobbes afirmava que o homem na natureza não era sociável, era ávido e orgulhoso em constante guerra com os outros assim, temendo seu semelhante, criou o Estado. Rousseau recusa estas concepções do estado de natureza. Para ele o homem no estado de natureza não é nem sociável, nem dotado de razão, nem egoísta ativo. Para Rousseau, os demais pensadores pecaram ao atribuir ao homem natural, características que só surgiram com a sociedade, como o egoísmo, a razão, a paixão, a sociabilidade. Para ele o homem natural é desprovido de todas as características do homem social; ele é solitário, independente e ocioso por natureza, somente se agita para satisfazer suas necessidades naturais, seus sentidos são proporcionais a suas necessidades; ele não tem sequer consciência de ser homem. “Na natureza não há nenhuma espécie de relação entre os homens, conseqüentemente não conheciam a vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo, não tinham a menor noção do teu, e do meu, nenhuma idéia de justiça”. Assim, nem a linguagem, nem a razão, nem a família, nem o trabalho, nem a propriedade, nem a moral são naturais ao homem; são criações posteriores. Paradoxalmente, o homem natural é superior aos animais apenas por sua nulidade, por sua ausência de determinações. Não possuindo nenhuma característica exclusiva, pode adquirir todas. Para construir a evolução do homem, Rousseau parte daqui acrescentando as duas características que julga distinguirem o homem dos outros animais: a liberdade da vontade e a perfectibilidade. A desigualdade entre os homens surge com os progressos no seio do próprio estado de natureza. A descoberta da metalurgia, o desenvolvimento da agricultura, a divisão de trabalho estão na origem da propriedade e da desigualdade. Mas, nesta fase o homem já está se desfigurando. O bom selvagem, o estado de natureza como um estado de bondade pura já não existe mais. A civilização arruinou o homem. 54

LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Op. Cit. p. 86

“No estado de natureza o homem não conhece mais que os prazeres simples e inocentes. O homem é bom por natureza; a sociedade o corrompe”. Agora a ganância, o ciúme, a inveja e a violência imperam. A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de guerra. Ricos e pobres possuem interesses conflitantes entre si e esta nova situação força os ricos proprietários a conceberem “um projeto de empregar a seu favor as próprias forças que os atacavam, de fazer seus adversários seus defensores de lhes dar instituições que lhes fossem tão favoráveis quanto eram contrárias ao direito natural.” A instituição desta proteção deu-se por um pacto de associação, feito, evidentemente, em favor de quem dos mais fortes, pois “o mais forte não será para sempre o amo e senhor se não transformar sua força em direito”.55 Assim, buscou-se encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com a força comum das pessoas os bens de cada associado onde, cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo e permaneça livre como antes. Esta associação, instituída por um ‘Contrato Social’, é que cria o Estado. Assim “o homem perde sua liberdade natural de direito ilimitado a tudo que deseja e ganha em troca a garantia e a segurança da liberdade civil e da propriedade que possui”56 Para Fortes57, a teoria de Rousseau é, sob vários aspectos, uma síntese de Hobbes e Locke, pois para Rousseau, o contrato social é “uma associação de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito da vontade geral”. O contrato social, ao considerar que todos os homens nascem livres e iguais, encara o Estado como objeto de um contrato no qual os indivíduos não renunciam a seus direitos naturais, mas ao contrário, entram em acordo para a proteção desses direitos, que o Estado é criado para preservar. Então, o Estado é a unidade, e como tal expressa a “vontade geral”, porém esta vontade é posta em contraste e se distingue da “vontade de todos”, a qual é meramente o agregado de vontades, o desejo acidentalmente mútuo da maioria. Ocorre que a institucionalização do convívio social, na verdade se consubstancia no processo de persuasão, desencadeado por aqueles que mais se beneficiam com esta associação: os ricos. Esta é a forma que Rousseau apresenta o surgimento do Estado.

55

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrat social ou principis du droit politique. Versão espanhola El Contrato Social. Barcelona: Edicomunicaciones. 1994. p. 31. 56 Idem. p.42. 57 FORTES, Luiz Roberto Salinas. In www.culturabrasil.pro.br. Acessado em 02.05.2006.

Thomas Hobbes O Leviatã (1651)

John Locke Tratado sobre o Governo Civil, I, II (1689) O Estado é a única fonte de direito Os direitos são naturais, anteriores ao Estado. O homem constituiu a sociedade O homem constituiu o Estado para (Estado) por medo de seu semelhante garantir suas propriedades e realizar seus interesses. Ao constituir o Estado o homem abriu O homem constituiu o Estado para mão de seus direitos garantir seus direitos

Jean-Jacques Rousseau Do Contrato Social (1762) A lei vincula a todos A vontade geral cria o Estado

Os ricos concebem um projeto para proteger suas posses Estado = Leviatã. Tudo pode. Sem O Estado tem como limite sua O Estado (governo) deve limites. finalidade = promover o bem buscar uma justiça que sirva a todos

Tradicionalmente se admite que o Estado Moderno tomou duas formas principais: o Estado Liberal e o Estado Social. Para Perez Luño58 é nas Declarações de direitos do século XVIII que se encontra presente o embrião dos princípios que formaram o substrato ideológico do moderno regime constitucional. Estes textos representam a síntese das idéias e tendências responsáveis por apagar os vestígios arbitrários do absolutismo e de encaminhar o Estado para a uma lenta e trabalhosa conquista dos princípios da liberdade e democracia. Segundo ele, o Estado absolutista foi substituído pelo Estado de Direito, que supõe uma delimitação e regulamentação das funções de poder e na adoção de formas representativas, tudo voltado diretamente para a defesa dos direitos dos cidadãos. O substrato teórico do Estado de Direito estaria na filosofia de Immanuel Kant que aceita, a principio, a tese do jusnaturalismo iluminista, de que o Estado é um meio e uma condição para assegurar a liberdade dos cidadãos. Mas, ao referir-se aos fins do Estado, rechaça qualquer paternalismo, para reivindicar como seu objetivo prioritário a garantia da liberdade através do direito. Para Kant, a situação dos cidadãos, considerada como situação puramente jurídica, se fundamenta, a priori, nos seguintes princípios: 1) a liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2) a igualdade dele, frente a qualquer outro, como súdito; 3) a independência de cada membro da comunidade, como cidadão. Kant concebe um Estado de Direito como um Estado da razão, isto é, como a condição primeira (exigência universal da razão) para uma coexistência livre através do direito, entendido, por sua vez, como normatividade racional “porque a razão constitui o único fundamento de qualquer

58

PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 2ª ed. Madrid: Tecnos, s/d. p. 212-245.

legislação positiva”.59 Para Perez Luño, o que se desprende da tese de Kant é que “é o direito, como condição de coexistência das liberdades individuais, que atribui o Estado, a garantia, mediante sua não ingerência, do livre desenvolvimento da liberdade”.60 Para Bobbio61, Kant reflete em sua obra a coexistência de uma noção de liberdade como autonomia de inspiração democrática, com um conceito de liberdade como não ingerência, de inequívoco sentido liberal. Seguindo o pensamento Kantiano, em 1792 Wilhelm Von Humboldt escreve “Ideen zu einem Versuch die Grenzen der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen” - Idéias para um ensaio a fim de definir os limites da ação do Estado, publicada apenas em 1852, 17 anos após sua morte. Esta obra, que discute a função do Estado, foi crucial para o desenvolvimento do liberalismo na Europa no século XIX, e teve influência direta em outro clássico do liberalismo “A liberdade” (1859) de John Stuart Mill. Jusnaturalista, é o indivíduo, não o Estado que está no centro do pensamento político de Humboldt. Defende que “as atividades humanas mais bem conduzidas são aquelas que mais fielmente lembram as operações do mundo natural”62. Ele parte do conceito do homem como um animal social, empenhado em progredir e desenvolver-se. Daí discute a ação do Estado no cerceamento da liberdade dos cidadãos e sugere instrumentos para frear este papel, pois “seria correto dizer que a liberdade da vida privada sempre cresce na exata proporção em que declina a liberdade pública” 63, assim, qualquer interferência do Estado em assuntos particulares deveria ser absolutamente condenada. Defende que o objetivo básico de todo governo é abster-se de buscar a felicidade e o bem-estar para os cidadãos. “A felicidade para a qual o homem está simplesmente destinado não é nenhuma outra além daquela que suas próprias energias buscam para ele”. O único setor onde o Estado faz-se necessário é na garantia da segurança individual, deve, portanto, limitar sua atuação ao que for necessário para a segurança interna e externa, não restringindo a liberdade individual sob nenhum pretexto. “O Estado deve abster-se de todo esforço por interferência positiva no bemestar dos cidadãos, e não dar nenhum passo além do necessário para garantir-lhes a segurança mútua e a proteção contra inimigos externos, visto que, nenhum outro 59

Idem p. 217. Idem 61 BOBBIO, Norberto. “Kant e le due libertà” In Da Hobbes a Marx. Napoli: Morano, 3a ed. 1974, p. 147. 62 HUMBOLDT, Wilhelm Von. Os Limites da Ação do Estado. Liberty Classics. 2004. Rio de Janeiro:Topbooks. s/d. p. 135. 63 Idem. p. 136 60

objetivo deveria constituir motivo para imposição de restrição à liberdade”64. Depreende-se de seu pensamento que toda intervenção do Estado induz a uma artificialidade que leva a uma violação da originalidade natural. O desenvolvimento, a realização pessoal e a própria auto-estima são desvirtuadas. Em resumo, para Humboldt a razão não pode desejar para o homem qualquer outra condição além daquela em que cada indivíduo desfrute da mais absoluta liberdade para desenvolver-se a si mesmo a partir de suas próprias energias, em sua perfeita individualidade, restrito apenas aos limites de seus direitos. Para Perez Luño, é a partir de Humboldt que o Estado de Direito vai perdendo sua pretensão a um caráter formal-racional, para ir aproximando-se de um conteúdo político concreto e expressamente manifesto: a ideologia liberal.65

1.3.3 O Estado Liberal Surge como uma reação ao Estado absoluto e teve sua origem na Inglaterra. De acordo com Maluf66 o próprio termo liberalismo teve como origem o segundo Bill of Rights que o Parlamento impôs a coroa em 1689. Em um de seus treze artigos, que estabeleciam os princípios de liberdade individual, autorizava o porte de armas aos cidadãos para que pudessem defender seus direitos constitucionais. Foi precisamente este sistema de liberdade, defendida pelas armas, que recebeu, na época, a denominação de liberalismo. Especificando os direitos essenciais, o Bill of Rights firmava os seguintes princípios: (1) o Rei não pode, sem o consentimento do Parlamento, cobrar impostos, ainda que seja sob a forma de empréstimos ou contribuições voluntárias; (2) ninguém poderá ser perseguido por haver-se recusado a pagar impostos não autorizados pelo Parlamento; (3) ninguém poderá ser destituído de seus juízes naturais; (4) o Rei não instituirá, em hipótese alguma, jurisdições excepcionais ou extraordinárias, civis ou militares; (5) o Rei não poderá, em nenhuma circunstância, alojar em casas particulares, soldados ou marinheiros. Tais princípios passaram mais tarde a figurar nas constituições dos Estados Liberais que vão se constituindo a partir da implementação das idéias vitoriosas 64

Idem. p. 180. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit. p.212-245. 66 MALUF, Sahid., Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 139. 65

das revoluções (a americana, 1776, e a francesa, 1789, são os grandes exemplos). E se mantiveram definitivamente, em grande parte pela vontade de se criar uma esfera privada, independente do Estado, assim como pela preocupação de reformular-se o próprio Estado, isto é, liberar a sociedade civil – a vida pessoal, familiar, religiosa e econômica – de toda interferência política não necessária e, simultaneamente delimitar a autoridade estatal. O constitucionalismo, a propriedade privada e a economia de mercado, junto com um modelo de família patriarcal, se consagraram como pilares do Estado liberal67. Mas lembra Held que mesmo tendo o liberalismo celerado os direitos dos indivíduos, a vida, a liberdade, e a propriedade, foi o proprietário varão quem ocupou o centro de toda atenção; e as novas liberdades se atribuíram primeira e principalmente aos varões das novas classes médias ou da burguesia.68 Para ele, o mundo ocidental foi primeiro liberal e, somente mais tarde, depois de grandes conflitos, democrático liberal, isto é, somente com o tempo se obteve o sufrágio universal que permitiu a todos os adultos expressar sua opinião a respeito da atuação daqueles que os governavam. Do ponto de vista eminentemente político ensina Dallari69, o liberalismo se afirma como doutrina somente no século XIX, mais especificamente a partir de 1859, com a publicação da obra de John Stuart Mill, ‘A Liberdade’70. Adepto entusiasta do jusnaturalismo Mill, o maior filósofo inglês do século XIX, com inequívoca influência do pensamento de Humboldt, questiona a natureza e os limites do poder que a sociedade pode legitimamente exercer sobre o indivíduo. Defensor da liberdade individual, afirma que a interferência do governo nos assuntos privados é quase sempre equivocada e condenável. Para ele o único propósito aceitável de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade, contra sua vontade, é evitar dano aos demais. “Seu próprio bem, físico ou moral não é garantia suficiente”. Ninguém pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer algo por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio ou 67

Entre os traços que comumente identificam o Estado Liberal, Wolkmer cita: a) a ascensão social da burguesia enriquecida; b) consagração do individualismo e da tolerância; c) descentralização democrática e separação dos poderes; d) principio da soberania popular e do governo representativo; e) supremacia constitucional e o império da lei; f) doutrina dos direitos e garantias individuais; g) existência de um liberalismo econômico, movido pela lei de mercado e com a mínima intervenção estatal (Wolkmer, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica ao Estado. Porto Alegre: Antonio Sergio Fabris Editor. 1990. p. 25). 68 HELD, David. La democracia y el orden global Op. Cit. p. 21. 69 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado.Op. Cit. p. 275-278. 70 MILL, John Stuart. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo Martins Fontes. 2000.

mesmo acertado. No que diz respeito ao indivíduo, “sua independência é, de direito absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”.71 Para Mill, seja qual for a forma de governo nenhuma sociedade é livre se tais liberdades não existirem em caráter absoluto e sem reservas. Afirma que “cada um é o guardião adequado de sua própria saúde, seja física, mental ou espiritual. A humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante”.72 Referindo-se expressamente a doutrina de Humboltd ratifica a idéia de que cada indivíduo deve imprimir em seu modo de vida e na condução de seus interesses, algo do seu próprio julgamento, ou do seu caráter individual. Como conclusão, Mill apresenta três objeções fundamentais à interferência do Estado na sociedade: a) ninguém é mais capaz de conduzir qualquer negócio, ou determinar como ou por quem deverá ser conduzido, que aquele que tem interesse pessoal. Assim, “a coisa a se fazer será provavelmente mais bem feita pelos indivíduos do que pelo governo”; b) ainda que os indivíduos não realizem tão bem os negócios que desejam, ainda assim é melhor que eles o façam, não o governo, como elemento de sua própria educação; c) a que considera a mais convincente de todas, se refere ao grande mal de se aumentar o poder do Estado sem necessidade, pois, “toda função que se acrescenta às já exercidas pelo governo promove maior difusão de sua influência sobre as esperanças e medos, e transforma, mais e mais a parte ativa e ambiciosa do público em dependentes do governo, ou de algum partido que pretenda chegar ao governo”.73 Mas, o ponto principal da filosofia liberal, como bem lembra Barroso74, é, sem dúvida, o respeito ao direito de propriedade (entendido como direito natural). Nesta linha de pensamento, os direitos naturais dos homens, são limites naturais ao poder (sobretudo porque se foi pela segurança da propriedade que os homens constituíram o Estado, não poderiam aceitar limitações de nenhum órgão ao gozo deste direito) e este é, então, vigiado e cobrado, o que leva a apregoar a proeminência do legislativo sobre o Executivo75. Se o poder é um mal e deve ser 71

Idem. p. 18. Idem. p. 22. 73 Idem. p. 165-168. 74 BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 21. 75 As idéias do filósofo inglês John Locke (1632-1704) são fundamentais para as revoluções liberais do século XVIII. Sua influência é visível na teoria da separação de poderes de Montesquieu, no iluminismo francês e na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. (Ver MARTINS, C. E. e MONTEIRO, J. P. “Vida e Obra”. In LOCKE, John Ensaio acerca do entendimento humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996). 72

controlado para não impedir a felicidade dos homens, a melhor forma de fazê-lo é isolálo. Aí está a separação – elevado ao máximo, por razões liberais - entre o âmbito político, configurado no Estado, e o econômico, reino da liberdade dos indivíduos e da sociedade civil. Streck lembra também, que foi com o Estado liberal que se desenvolveu uma nova concepção da função jurisdicional, a partir de certos princípios que representavam a própria negação do que ocorria no período absolutista. Em lugar de juizes leigos, escolhidos dentre os nobres, juízes profissionais, capazes de dominar uma técnica elaborada; em lugar de juízes interventivos, quase sempre politicamente comprometidos, juizes reativos e imparciais. Esta nova postura reabilitou o Judiciário aos olhos do povo que deixa de considerá-lo uma longa manus da realeza e abriu o caminho para torná-lo um poder independente, ao lado do executivo e do legislativo. Tornando-se o Estado liberal uma realidade, com o mínimo de interferência na vida social, cria-se uma gama de inegáveis benefícios: ocorre um progresso econômico acentuado, onde surgem as condições para a revolução industrial; o indivíduo foi valorizado, despertando-lhe a consciência para a importância da liberdade do homem; desenvolvem-se novas técnicas de poder, surgindo a dominação legal em lugar da dominação pessoal. Mas, com a ascensão da burguesia surgiram também as críticas a este modelo, por transformar a cidadãos teoricamente livres em monetariamente escravizados. O que ocorre é que, com a revolução industrial surge um cidadão até então desconhecido: o operário de fábrica; e o aparecimento das máquinas produziu o desemprego em massa. Cada máquina introduzida na indústria, jogava na rua milhares de desempregados. O trabalho humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito a lei da oferta e da procura. O operário se vê compelido a aceitar salários ínfimos e a trabalhar quinze ou mais horas por dia para ganhar o mínimo necessário à sua sobrevivência. Por outro lado, fortunas imensas se acumulavam nas mãos dos dirigentes do poder econômico. Enquanto o Estado Liberal a tudo assiste de braços cruzados, limitando-se a cuidar da ordem pública. 76 76

Segundo Dallari, no Estado Liberal a valorização do individuo chegou ao ultra-individualismo que ignorou a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis, os mais audazes ou menos escrupulosos. Ademais, a concepção individualista da liberdade impede ao Estado de proteger aos menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não assegurava a ninguém o poder de ser livre. Na verdade, sob o pretexto de valorização e proteção da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os economicamente mais fortes. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 277-278).

Surge então a reação, primeiro com o socialismo utópico, apenas no campo literário, que alcança seu clímax com o Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1848. Neste manifesto, depois de afirmar que a história de todas as sociedades é a história das lutas de classes, Marx e Engels fazem uma análise da política econômicasocial então vigente, e denunciam que o sistema transformou a dignidade pessoal em um valor de troca, que as liberdades foram substituídas “por uma única e desalmada liberdade de comércio” e que se estabeleceu um “regime de exploração aberto, descarado, direto e brutal”. Concluem apoiando a união dos movimentos revolucionários de todo mundo contra o regime social e político imperante.77 Mais tarde, a partir da segunda metade do século XIX as correntes socialistas se cristalizam no marxismo, que dá inicio ao socialismo científico. Ainda que não se possa falar de uma teoria marxista de Estado - até porque o objetivo almejado pelo grande filósofo alemão era uma sociedade sem classes, depois da derrubada do Estado - se tem em seus trabalhos e nos de Engels, uma visão de peso sobre o Estado, em especial o liberal. Para ele, “Como o Estado surgiu da necessidade de pôr fim à luta de classes, mas surgiu também no meio da luta de classes, normalmente o Estado é a classe dominante, economicamente mais poderosa, que por seu intermédio se converte também em classe politicamente mais forte e adquire novos meios para submeter e explorar a classe oprimida”.78 Para Engels, que se vale de um argumento histórico para dar sustentação a tese socialista, nem sempre existiu Estado, assim como a propriedade privada não era conhecida entre os povos antigos. A partir do momento em que existe a apropriação de bens, surge a organização política para resguardar e garantir a propriedade. Nesta visão socialista, o fenômeno do poder, da dominação do homem sobre o homem, nasce junto com a apropriação privada dos bens materiais, em uma fase em que a exploração econômica permite a existência de excedentes e em que as guerras trazem como espólio dos vencidos, a escravidão humana. Então, a história não é nada mais que a sucessão dialética de classes de dominadores e de dominados, impulsionada pelas condições econômicas79. Assim, o Estado liberal se compreende como a dominação dos proprietários dos meios de produção (capitalistas) sobre os não 77

MARX, C. y ENGELS, F. Das Kommunistische Manifest. Edição espanhola El Manifiesto Comunista. Barcelona: Edicomunicación. 1998. 78 ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 11 Ed. São Paulo: Civilização Brasileira. 1987. p .196. 79 Idem p. 108.

proprietários, obrigados a vender sua força de trabalho (única mercadoria que dispõem) para garantir seu sustento mínimo80. Neste contexto, a igualdade jurídica é vista como uma falácia que permite mascarar a dominação de classes. Marx detecta a separação entre a vida econômica do homem (a posição do homem nas relações de produção) de sua figura jurídica de cidadão, o que faz desta uma abstração. As contradições do Estado Liberal apontadas pelo marxismo, são determinantes para sua transformação. Este modelo de dominação não teria lugar na nova realidade que se desenha com o fim do modelo político liberal no fim do século XIX. Como sucessores deste modelo, vão aparecer soluções muito diferentes. De um lado, o totalitarismo de esquerda, representado pela ditadura burocrática que se instalou na Rússia à partir da Revolução de 1917. De outro, o totalitarismo de direita, representado pelo nazi-facismo (anti-liberal e anti-comunista). E a solução encontrada pelos países do velho esquema liberal: a necessidade de regulação da economia pela atuação do Estado (uma grande heresia do ponto de vista do liberalismo clássico). A verdade é que o individualismo, assim como a neutralidade do Estado Liberal de Direito, não podiam satisfazer as exigências de liberdade e igualdade dos setores sociais e economicamente mais fracos. Para Perez Luño 81 a aparente neutralidade política que, ante as transformações sócio-econômicas, adotou o Estado Liberal de Direito, se traduziu em uma série de conflitos de classe que, a partir da segunda metade do século passado e no início do atual, mostraram ser insuficientes às liberdades burguesas quando se inibe o reconhecimento da justiça social.

1.3.4 O Estado Social A Segunda Guerra Mundial que marcou a derrota do nazi-facismo, também dividiu o mundo em dois grandes blocos: o capitalista e o socialista. Ao mesmo tempo nasce outro capitalismo, mais ‘organizado’, controlado pelo Estado, que intervém na economia não somente para regulá-la, mas passa a fazê-lo com o objetivo de 80

BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 23. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit. p. 223. 81

promover o crescimento dos Estados arrasados pelo conflito, que se deve ao investimento de políticas sociais e redistribuitivas. Assim começa o Estado Social de Direito que segundo Perez Luño82, teve uma origem híbrida, fruto de um compromisso entre tendências ideológicas opostas: por um lado representou uma conquista do socialismo democrático, por outro uma vitória do pensamento liberal mais progressista. Evidentemente que o surgimento deste novo modelo de Estado não ocorreu de um dia para outro, foi um processo de décadas e surgiu em um contexto determinado. Para muitos autores, seu início está na Constituição Mexicana de 1917, outros, como Quadros de Magalhães83 defendem o inicio do Estado Social na Constituição de Weimar, de 1919, que marca o inicio do Estado Social Alemão, e que serviu de modelo para diversos Estados europeus. Mas para Martinez de Pinsón84, foi a crise econômica de 1923 que evidenciou as limitações e contradições do primeiro capitalismo, um capitalismo selvagem, desigual e injusto, e a Segunda Guerra foi o momento ideal para testar novas estratégias que superaram o velho Estado liberal. E, mesmo reconhecendo a existência de antecedentes afirma que o Estado Social não seria possível sem o contexto de crise geral e global do capitalismo e sem as soluções propostas nos anos trinta para resolver os angustiantes problemas sociais, políticos e econômicos85. Percebe-se então que o Estado deve abandonar sua conduta abstencionista e passar a garantir os Direitos Sociais mínimos à população. Para que os direitos individuais possam realmente ser usufruídos por todos, deveriam garantir-se os meios para que isso se faça possível. Começam a despontar os instrumentos característicos do Estado Social, como: 1) proteção ao cidadão contra riscos individuais e sociais, como o desemprego, a doença ou a invalidez; 2) a promoção de serviços essenciais para os cidadãos como a educação, saneamento básico, habitação, acesso a cultura, e 3) a promoção do bem-estar individual no sentido moderno. Desta forma, na passagem do Estado Liberal ao Estado Social, uma das mais evidentes mutações operacionais que se observa é a atribuição ao Estado da tarefa de proporcionar aos 82

Idem QUADROS DE MAGALHÃES, J. L., Direitos Humanos: sua história, sua garantia e a questão da indivisibilidade. São Paulo: Juarez, 2000, p. 30. 84 MARTÍNEZ DE PISÓN, J., “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema 160. Colección Politeia. Madrid: Sistema, 2001, p. 75-93. 85 Referindo-se a teoria econômica de Keynes e o trabalho de Beveridge (1942) que definiu as bases de um modelo público de previdência social em substituição ao sistema privado de mutualismo. 83

cidadãos em geral, as condições necessárias e os serviços públicos adequados para o pleno desenvolvimento de sua personalidade, reconhecida não somente através das liberdades tradicionais, mas também a partir da consagração constitucional dos direitos fundamentais de caráter econômico, social e cultural; ao mesmo tempo o Estado Social assume a responsabilidade de reestruturar e equilibrar as contas públicas mediante o exercício de políticas fiscais. Neste novo Estado supõe-se a abolição da separação entre o Estado e a sociedade, e então, a possibilidade da exigência de que o Estado assuma a responsabilidade da transformação econômica-social no sentido de uma realização material da idéia democrática de igualdade. Implica também na superação do caráter negativo dos direitos fundamentais que deixam, deste modo, de serem considerados uma limitação ao poder do Estado para definir limites que o principio democrático da soberania popular impõe aos órgãos que dependem deles. Assim lembra Martín 86, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a crise econômica dos anos setenta, houve uma significativa redução das desigualdades sociais e econômicas, ao menos nos países desenvolvidos da Europa. Este Estado Social, também chamado Estado Intervencionista, de Bem-Estar-Social, Estado Providência ou Assistencial, começa a apresentar algumas características peculiares, bem identificadas por Wolkmer87: a) uma preponderância do Executivo sobre os demais poderes, o que gera uma crise de legitimidade; b) uma progressiva burocratização da administração pública. O Estado se transforma em uma máquina pesada. Iniciam as denúncias sobre os vícios da burocracia, em especial o grande número de funcionários públicos trabalhando em uma enormidade de institutos de assistência social. Dá-se a impressão que o dinheiro dos cidadãos é gasto para manter uma classe de funcionários ociosos. c) expansão do intervencionismo estatal na economia, na política sindical e nos fundos de pensão da Previdência Social. Ressurgem as objeções liberais contra o assistencialismo, principalmente a idéia de que a assistência serve para manter os pobres preguiçosos, castrando qualquer iniciativa econômica, criando legiões de mendigos e aproveitadores. Em vez de estimular a preguiça é necessário estimular o trabalho. Suprimindo a ajuda social todos buscariam

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MARTÍN, Nuria Belloso., “Igualdades Injustas o Igualdades Justas: Breves Apuntes Sobre el PostLiberalismo”, In Júris Poiesis, Revista Jurídica da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro:UES, 2000. p. 15. 87 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 26.

trabalho e produção. d) crescente complexidade dos conflitos sociais e aumento das demandas populares88. Por tudo isso, e especialmente pela impossibilidade de equilibrar os vultosos gastos públicos – pois o Estado Social criou direitos à aposentadoria, ao seguro desemprego, a saúde gratuita, ao ensino gratuito, a férias remuneradas, a um salário mínimo ou mínimo vital e quando aumentou o número de velhos, o desemprego, o custo da medicina, a carga do sistema de benefícios sociais se fez muito pesada. O Estado chegou ao limite de suas possibilidades e já não era possível aumentar os tributos, dando início aos debates sobre a extensão e os limites dos benefícios sociais. As demandas populares crescentes e a evolução gradual do capitalismo mercantil e industrial para a prática de um capitalismo financeiro e monopolista, sustentado por grandes corporações transnacionais, levaram ao fracasso as políticas de bem-estar social, causado em grande parte pelo custo do capital dirigido ao suporte dos gastos públicos que dificultava sua reprodução, aliado a eclosão do mundo soviético, que permitiu o surgimento dos velhos princípios do liberalismo, sob uma nova roupagem: o neoliberalismo. Neste sentido, lembra Martinez de Pisón89, que um dos aspectos mais surpreendentes da teoria e do debate político nos últimos tempos, é a coincidência entre conservadores, liberais, e a esquerda marxista na tese sobre a crise e o fim do Estado Social. Mas, considerando que as funções do Estado Social foram adequadamente cumpridas, isto faz com que seu desaparecimento não seja tão fácil, até porque ainda

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Julios-Campuzano explica que a fórmula política do Estado Social de Direito, supôs um crescimento espetacular das funções do Estado com o correspondente aumento das elites tecnocráticas na estrutura burocrática estatal. Na medida em que o Estado se expandia foi surgindo uma nova elite social de especialistas e tecnocratas cujo poder decisório na adoção de acordos e na execução de políticas públicas foi erosionando paulatinamente o princípio democrático e adonando-se do espaço reservado a legitimação das decisões na vontade majoritária. Tratou-se, certamente, de um dos efeitos mais perversos do Estado benfeitor que, no afã de virtualizar os espaços de liberdade com doses crescentes de igualdade, terminou afastando amplas zonas da liberdade que pretendia conquistar. E continua o professor Sevilhano, a conformação fortemente hierárquica dos partidos políticos permitiu que este processo se consolidasse, pois com freqüência, as estruturas partidárias foram blindadas frente as aspirações democráticas da militância e da cidadania. Deste modo, os mecanismos de representação da vontade popular ficaram obstruídos na medida em que se produziu uma fratura entre representantes e representados, pois a cúpula dirigente dos partidos, com freqüência, deixou de representar os interesses dos governados e se erigiu em porta-voz de um grupo reduzido, cada vez mais isolado do resto da cidadania, com interesses específicos da classe: a classe política enquanto setor diferenciado da sociedade. Esta mecânica de representação gerou uma fratura entre governantes e governados, entre a elite dirigente, que ocupava cargos políticos, e os cidadãos, cujas possibilidades de acesso democrático ao poder ficaram de fato, drasticamente limitadas.(Julios-Campuzano. Alfonso (de). En las encrucijadas de la modernidad. Política, Derecho y Justicia. Sevilla: Universidad de Sevilla. 2000, p. 129-171). 89 MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op. Cit., p. 75.

são visíveis e chocantes os efeitos de seu desmonte, dando lugar a um Estado mais débil e omisso.

1.3.5 O Estado Neoliberal Como observamos, o Estado deve ser encarado como um processo histórico a par de outros processos históricos. Bem lembra Miranda que o Estado, quer como concepção jurídica ou política, quer como sistema institucional, não se cristaliza nunca numa forma acabada; está sempre em contínua mutação através de várias fases de desenvolvimento progressivo (às vezes regressivo) para melhor atingir os fins que lhe compõem. 90 O neoliberalismo é o modelo mais recente, ao menos em sua aplicação real. Assim como no século XIX o liberalismo serviu para justificar a dominação do comércio mundial pela Inglaterra, o neoliberalismo justifica a ascensão do poder comercial dos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial. Prega, em resumo, uma diminuição drástica das funções do Estado, centrado basicamente na segurança dos indivíduos (entenda-se: propriedade), para permitir uma maior liberdade dos intercâmbios comerciais, em escala mundial. É o capitalismo ‘desregulado’, sem fronteiras, sem pátria. São exemplos as políticas levadas a efeito nos anos oitenta por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra, de desmonte do Estado Social. Giddens91 apresenta como principais características do neoliberalismo: a) governo mínimo, b) sociedade civil autônoma, c) fundamentalismo de mercado, d) mundo do trabalho desregulado, e) aceitação da desigualdade, f) nacionalismo tradicional, g) Estado de bem-estar como rede de segurança, h) modernização linear, i) fraca consciência ecológica e, j) teoria realista da ordem internacional. A oposição ao Estado de Bem-Estar é uma de suas principais características. O Estado Social é visto como a origem de todos os males, assim como foi o capitalismo para a esquerda revolucionária. “Lembraremos o Estado de Bem-estar com o mesmo tom depreciativo que hoje lembramos da escravidão como meio de 90

MIRANDA. Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Op. Cit. p. 23. GIDDENS, Anthony. La tercera via. La renovación de la socialdemocracia, Madrid: Taurus, 1999, p 18. 91

organizar um trabalho eficaz e motivado”92. Isto porque, segundo Marsland,93 o Estado de Bem-Estar inflige um dano enormemente destrutivo em seus supostos beneficiários: os fracos, os marginalizados, os excluídos..., pois debilita o espírito empreendedor e valente dos homens e mulheres e põe uma carga de profundidade de ressentimento explosivo sob os fundamentos de nossa sociedade livre. Cruz94 lembra que esta crítica possui dois aspectos: um deles é o gasto público gerado pela intervenção estatal. O financiamento da seguridade social absorve a poupança interna impedindo sua utilização na atividade produtiva. O outro aspecto é mais filosófico, já que entende o Estado de Bem-Estar como uma ameaça à liberdade individual ou, pelo menos, inibidor da livre iniciativa. Os cidadãos, ao se acostumarem com a ampla proteção do Estado, perdem a capacidade de competição e o estímulo ao trabalho e tornam-se menos aptos para assumir os riscos e obterem vantagens num mundo competitivo. Na década de noventa a receita neoliberal foi imposta aos países periféricos e semi-periféricos, como condição inevitável de modernização, de avanço, de ingresso no mundo desenvolvido, portanto, de sobrevivência. Para Correas95, “o neoliberalismo se parece e se diferencia do velho liberalismo. Se parece quando ambos usam a mesma prestigiosa palavra – liberdade. Mas se diferenciam quando aquele a usava para referir-se a todas as manifestações da vida humana, a liberdade de propriedade em primeiro plano, é claro. Enquanto o modelo contemporâneo a usa exclusivamente para falar de comércio e de circulação ampliada de capital”. O neoliberalismo, que tem sido apresentado como uma teoria econômica, como utopia, como ética ou como filosofia do ser humano, é, na realidade, uma filosofia que se apresenta como teoria econômica, com todo o valor científico que o mundo atual atribui a economia. É uma utopia, mas que pretende estar fundamentada na ciência pura. Defende a liberdade de mercado por entender que somente esta assegura a justiça nas relações humanas; estabelecida na liberdade de negociação, todos os problemas serão superados. Assim tende a destruir os coletivos, que servem para defender aos indivíduos. A meta é deixar o indivíduo isolado no mercado “é cada um 92

“Um escritor”, citado por Giddens, Anthony. Op. Cit. p. 24. MARSLAND, D. Welfare or welfare state? Basingstoke: Macmillan, 1996, p. 197. 94 CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. 3ª ed. Curitiba: Juruá. 2005. p. 234-235. 95 CORREAS, Óscar. “El neoliberalismo en el imaginario juridico” In Direito e Neoliberalismo. Elementos para uma leitura interdisciplinar. Agostinho Ramalho Marques Neto et all, Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 7. 93

por si”, daí seu ataque ao Estado. Para o neoliberalismo o ideal seria um Estado reduzido a função de polícia: que se limita a defender os direitos de propriedade. Como comumentemente dizia Reagan: “Não temos problemas com o Estado, mas o Estado é o problema”, Entretanto nos lembra Martínez de Pisón96, que as políticas neoliberais de desmantelamento do Estado Social produziram, sem dúvida, um alto desenvolvimento econômico nos países ocidentais, mas, ao mesmo tempo, um vertiginoso aumento da desigualdade social. Para Comblin97, obstinado crítico do neoliberalismo, “a liberdade de mercado não significa que os Estados Unidos querem abrir o seu mercado a todas as nações, mas que todas as nações devem abrir seus mercados aos Estados Unidos”. Enquanto a receita imposta aos demais Estados, se refere principalmente a desestatização de empresas públicas, entregando-as à iniciativa privada; a privatização também dos serviços públicos como aposentadoria, saúde, educação transportes, correios; redução ou supressão dos sindicatos e organizações de trabalhadores e desintegração de associações independentes. Para o modelo, segundo Comblin, somente o indivíduo isolado é realmente livre. O modelo chega à América Latina na década de 90 como um furacão. Liberto dos regimes autoritários, os povos americanos se viram envolvidos por governos populistas que após uma série de fracassos e aventuras econômicas levaram a uma inflação altíssima, ao desemprego e a recessão, causando perturbações de toda ordem. A população, preocupada e nervosa, busca tranqüilidade e estabilidade e, em eleições diretas e democráticas manifesta seu apoio ao novo modelo. Assim ocorreu com a eleição e reeleição de Fujimori, em Peru98, eleição e reeleição de Menem, na Argentina, eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, eleição de

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MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op. Cit. p. 83. 97 COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 18-24. 98 Depois da renuncia de Fujimori, foi eleito, em 03 de junho de 2001, Alejandro Toledo, obstinado defensor do livre mercado, da política neoliberal e da globalização.

Jorge Batlle no Uruguai99, inclusive a eleição de Vicente Fox100 no México, isto somente para citar os principais Estados do continente. Para Comblin101, este apoio popular tem várias razões, e cita especialmente a frustração provocada pelos governos populistas e porque na América Latina as expectativas populares são fracas; os pobres não esperam nem exigem muito das autoridades, o Estado de Bem-Estar nunca foi completo. Mas estas conclusões valem para América Latina e ainda assim com reservas, não justificam a eleição de Batle no Uruguai, onde a economia sempre foi estável nem a eleição de neoliberais no Chile, país com os melhores índices econômicos da América Latina102; tampouco justificam o expressivo apoio popular ao neoliberalismo na Europa. No início deste novo século, a América Latina encontra-se em uma encruzilhada e se divide. De um lado governos ditos de esquerda - como Brasil, México, Colômbia e Uruguai – que, na busca de estabilidade financeira e desenvolvimento, tem adotado políticas ortodoxas tipicamente liberais: ajuste e equilíbrio fiscal, atração de investidores estrangeiros, aumento da exportação, redução de despesas públicas..... De outro lado, também sob um intenso clamor popular, ressurgem os caudilhos populistas/nacionalistas, como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Ollanta Humala no Peru, Rafael Correa no Equador e até mesmo Kirchner na Argentina.

99

O Uruguai era a única exceção na onda de privatizações que varreu a América do Sul nos anos 90. Em 19 de janeiro de 2001, o presidente Batle publicou por decreto a chamada Lei de Urgência, feita para desregulamentar setores da economia e desmontar os monopólios nas mãos do Estado. A lei abriu o capital das estatais a investidores privados, inclusive estrangeiros e distribuiu concessões públicas em áreas como telefonia, combustíveis, portos, ferrovias e cassinos. E, não se pode esquecer que, diferentemente de muitos países as estatais uruguaias eram motivo de orgulho da população, a maioria possuía índices de aprovação superior a 70%. (“Um país a Venda”. In Revista Veja, Ed. 07 de março de 2002, p.56). 100 No México, o Partido Revolucionário Institucional – PRI manteve-se no poder por 71 anos, embora acusado de inúmeras fraudes eleitorais. Trata-se de um partido que se proclama centro-esquerda, entretanto seus últimos governantes, em especial Ernesto Zedillo (1994-2000), sempre adotaram políticas econômicas neoliberais. Em 02 de julho de 2000, foi eleito Vicente Fox, pelo partido de Ação Nacional (centro-direita). Embora Fox tenha demonstrado simpatia pelos rebeldes Zapatistas (grupo guerrilheiro de tendência marxista), e ser um político comprometido com as causas sociais, em seus discursos sempre deixou muito claro sua tendência de manter a política econômica do país – liberal. 101 COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Op. Cit. p. 72. 102 Desde a década de 70, enquanto os regimes de força instalados na América Latina (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia y outros) apregoavam uma política protecionista e nacionalista, o Chile de Pinochet se abria (economicamente) ao mundo. Com a saída do ditador, os governos democráticos que o sucederam, mantiveram a política econômica neoliberal. Apesar do sonho frustrado de converter-se em um tigre econômico, as sinais de prosperidade no Chile são visíveis: Seu PIB cresce em media 7% al ano desde o inicio dos anos 90; neste período mais de 2 milhões de chilenos deixaram a linha de pobreza, o que representa uma ascensão social de 15% da população; o analfabetismo caiu de 6,3% a 4,5%, a mortalidade infantil foi reduzida em 1/3 do que era na década de 80 e a esperança de vida equivale a do primeiro mundo (75 anos).

Contudo, parece que a ideologia neoliberal tende a prosperar e tornarse a ideologia dominante neste novo século, talvez com uma pequena preocupação social, face às pressões de grupos organizados, mas não se vislumbra num futuro próximo qualquer modelo alternativo. Assim também pensa George 103 quando afirma possuir sérias dúvidas de que, nas próximas décadas, um sistema político-econômico mundial alternativo possa competir razoavelmente com a economia de mercado global, quer no terreno teórico quer no prático. O que ocorre é que as pessoas, em sua maioria, crêem fervorosamente que podem melhorar sua vida. Assim, o capitalismo não é uma mera doutrina econômica ou um logro intelectual, é sim uma forma revolucionária e milenar e uma fonte de esperanças. A aspiração ao bem estar material aqui e agora é mais poderosa – por que não dizer mais veraz – que as promessas do comunismo ou da religião, que prometem a gratificação em um radiante futuro ou em outra vida. Nestes confrontos, a reação e o estrondo do mercado sempre ganhará dos coros terrenos ou celestiais do paraíso prometido104. Ao menos, um pouco nos tranqüilizam e nos confortam as palavras de Bobbio: “o Estado Liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado Democrático”, para concluir que “é pouco provável que um Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais”.105 Neste sentido também Reynold afirma que “O liberalismo e a democracia nasceram juntas. Ele é o espírito, ela é a forma. Só se separam artificialmente, graças às confusões sobre os sentidos dos dois termos, às distorções infringidas à história”. 106 Assim,

com

uma

política

neoliberal

dominante,

com

a

internacionalização cada vez más acelerada da economia e a interdependência mundial, torna-se volátil a tradicional definição de soberania estatal, sendo que os governos detêm o poder de fato muitas vezes menor que o dos grandes conglomerados industriais e financeiros, ficando a mercê das ondas de investimentos destes oligopólios, completamente reféns do ritmo do mercado o que tem levado muitos países a bancarrota. 103

GEORGE, Susan. Informe Lugano, Barcelona: Içaria-Intermón Oxfam, 2001, p. 22 Idem, p. 23. 105 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma defesa das regras do jogo. Trad.de Marco Aurélio Nogueira, São Paulo: Paz e Terra, 5ª ed. 1992, p. 20. 106 In CORRÊA, Oscar Dias. O Sistema Político-Econômico do Futuro: O Societarismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994. p. 36. 104

Evidentemente que isso não significa o fim do Estado como apregoou Engels, independentemente do juízo de valor positivo ou negativo que tenhamos do Estado, sendo ele um mal necessário ou não. Mas, parece-nos que a sociedade civil, sob a forma de sociedade de livre mercado, segue com a pretensão de restringir os poderes do Estado ao mínimo necessário. Neste sentido, obra moderna de notável impacto é Anarchy, State and Utopia, de Robert Nozick, que utiliza a teoria do contrato social para questionar a legitimidade do Estado moderno, que utiliza seu aparato coercitivo-jurídico para conduzir os cidadãos e violar seus direitos. Tece severas críticas aos modelos constituídos que, fruto do contrato social, o desrespeitam, em detrimento das liberdades individuais. Defende a idéia de um Estado-mínimo, com a única função de proteger os direitos individuais e não para obter condições de igualdade entre os indivíduos, nem mesmo para alcançar objetivos políticos de uma maioria, com a limitação dos direitos individuais. Seguindo o pensamento de Locke, propõe um direito natural reduzido a “inviolabilidade da pessoa”. Pretende limitar as possibilidades e faculdades do Estado, que não possui o direito de erigir-se em estado socializador de bens nem mesmo promotor da justiça social, uma vez que ele não possui possessão natural sobre nada ou ninguém, pois todos os títulos residem exclusivamente no ser humano. Em suas conclusões Nozick afirma que somente um Estado mínimo respeita os direitos invioláveis das pessoas, com a dignidade que isso pressupõe. “Tratando-nos com respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite individualmente ou em conjunto com aqueles que escolhemos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e nossas concepções de nós mesmos…”107. Em seu entendimento qualquer outro modelo de Estado, que não o Estado-mínimo, viola os direitos da pessoa. Para Nozick os direitos naturais têm sempre absoluta prevalência sobre os poderes do Estado. Assim, “somente um Estado-mínimo é moralmente legítimo, inspirador e certo ... nenhum Estado mais extenso poderia ser moralmente justificado, pois qualquer um deles violaria (violará) os direitos do indivíduo”.108 Em resumo: todo Estado que ultrapasse as fronteiras do Estado mínimo é imoral e ilegítimo; em termos práticos, redistribuir a riqueza é um ato imoral. Quanto aos direitos humanos são os direitos de liberdade, mas sem garantia de defesa nem proteção. A jurisdicidade destes direitos somente acontece através da organização política, que não é produto de um hipotético contrato, mas de uma complexa e progressiva organização por parte de grupos que vão introduzindo 107 108

NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1994. p. 357. Idem

instituições de proteção jurídica com sucessiva complexidade, até chegar a formação do Estado que, formalmente, não é mais que um organismo de proteção e segurança mas todo o conteúdo dos direitos humanos deriva da situação pré-estatal e está fundado na radicalidade do indivíduo e de sua liberdade.

Estado Liberal

Estado Social

Estado Interventivo Sociedade Assistida Intervenção Estatal na Economia Redução da desigualdade social Estado: Função do Estado: Bem Estar Social Direito nacional-social

Estado neoliberal

Estado Omisso Sociedade Livre Economia de Mercado Nacional A desigualdade é natural

Estado Mínimo Sociedade Autônoma Economia de mercado global Aceitação da desigualdade

Função do Segurança Direito Natural

Função do Estado: Garantias Mínimas Direito Internacional Lex Mercatória

3 A CRISE DO ESTADO MODERNO109

109

CRISE, como define Gramsci, “consiste justamente no fato de que o velho não morre e o novo não pode nascer”. Ensina Barroso que é uma situação intermediaria entre dos modelos, portanto, possui como característica a transitoriedade. É sempre um rito de passagem que, por conseqüência, não é pacífico nem tranqüilo, daí ligar-se a idéia de ruptura, de quebra da ordem. Convivem ao mesmo tempo o velho, em decadência e o novo, em gestação. Uma crise pode ter graus variados de intensidade. Assim será operatória se restringe-se ao funcionamento de um determinado sistema, ao passo que se estrutura, quando recai sobre a própria natureza do sistema. De qualquer maneira, as crises são sempre contextuais e relacionais, o seja, não ha uma crise isolada em um determinado setor que não tenha reflexo em outros domínios. (AGUIAR, R. A Crise da Advocacia no Brasil, 2 a ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1992, p. 17; BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 31-32.)

3.1 A globalização110 Mudanças extraordinárias vêm ocorrendo nas últimas décadas em várias partes do mundo e em diferentes dimensões da vida humana. O fim da guerra fria e o colapso do comunismo levaram o presidente norte americano George Bush a anunciar, em 11 de setembro de 1990, no Congresso, uma nova ordem internacional. O fim do antigo regime, cuja característica principal era a bipolarização, inicia na década de 80. Para Ricupero,111 os anos fatídicos são 1979 e os três seguintes, durante os quais vimos consternados a derrota do Xá e as humilhações da invasão da embaixada dos Estados Unidos em Teerã, a vitória sandinista na Nicarágua, a solidificação do Solidariedade na Polônia, a inflação norte-americana que chegou, em 1981 aos escandalosos níveis de 13% e as cotações dos produtos primários desabaram a níveis inferiores aos da depressão de 30. A partir de 1985 surge, na URSS, a vigorosa liderança de Gorbachov e abre perspectivas de reforma no regime socialista. Duas palavras novas incorporam o léxico Mundial: “glasnost” e “perestroika”. Sobre os países do leste Europeu se abate então um formidável vendaval que conduz a lutas emancipacionistas e raciais, culminando com as declarações de independência de Estados como a Ucrânia, Letônia, Lituânia e tantos outros; Na Polônia, a vitória do Solidariedade e a formação do primeiro governo não-comunista em 40 anos; na Hungria, o pluralismo partidário e a adesão dos comunistas à Internacional Socialista; na Alemanha Oriental, a queda de um regime sinônimo de rigidez e imobilismo e a derrubada do Muro de Berlim; na Bulgária e Checoslováquia, a substituição dos dirigentes de linha dura. A debilidade une os líderes dos dois blocos: Reagan y Gorbachov mantém quatro encontros de cúpula, onde decidem pela eliminação dos mísseis 110

Muitos autores tem discutido o termo “globalização”. Surgem definições terminológicas distintas, análises lingüísticas e a defesa de termos como “internacionalização”, “mundialização”, “transnacionalização” e outros. Optamos por manter o termo globalização por entender que é o mais acertado. Ademais, trata-se apenas de uma discussão terminológica sobre o mesmo processo. Em uma única página da internet encontra-se 274 menções ao termo “globalização” em diversas obras publicadas. O problema, diz Martins, é que esta literatura parece estar produzindo mais desentendimentos que avanços conceituais. Estes desentendimentos vão desde a definição da natureza e da importância do fenômeno à desqualificação do que possui de novo e até a simples e pura negação de sua existência. Não há dúvidas que existe um uso ideológico da globalização, mas isto não significa que o fenômeno se destitua de originalidade histórica ou que não exista. (MARTINS, L. “Globalização: a importância do fenômeno”. In A Globalização entre o Imaginário e a Realidade. Serie Pesquisas, São Paulo: Fundação Adenauer Konrad. 1998. p. 47). 111 RICUPERO, Rubens. “A década de 80 e a crise da América Latina”. In MOISÉS, José Álvaro (org.) O Futuro do Brasil. A América Latina e o fim da guerra fria. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. p. 17

intercontinentais, a retirada de Exército Vermelho do Afeganistão, cortes nos investimentos de defesa e a redução de armas estratégicas e forças convencionais112. Com a decaída econômica dos blocos imperialistas e a distinção entre poder militar e seu suporte econômico, surgem potências militares economicamente fracas (URSS) e potências econômicas sem força militar (Japão). Inicia também, a formação de blocos comerciais, provocando um progressivo desequilíbrio do centro de gravidade econômica do mundo. O surgimento do Japão - como a primeira potência financeira - e dos “tigres asiáticos” (Coréia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Cingapura) seguidos da Malásia e Tailândia, provocou a mudança do eixo econômico-comercial do Atlântico para o Pacífico. Também surge a nova Europa. Acaba a separação artificial e anti-econômica entre Europa Ocidental e Oriental. A nova Europa ganha importância e conquista seu macroespaço econômico, bem estruturado. Para Fonseca113, são estas transformações radicais que, unidas a outras forças poderosas decorrentes da revolução tecnológica (processamento, difusão e transmissão de informações, inteligência artificial, engenharia genética) e a crescente interligação e interdependência dos mercados financeiros em escala planetária que formam o fenômeno que chamamos de globalização. A idéia de globalização não é nenhuma novidade, e não se trata de uma palavra da moda mas a síntese do que vem ocorrendo no mundo a partir dos anos 90. Afinal o comércio é tão velho como o mundo, os transportes intercontinentais rápidos existem a várias décadas e as empresas multinacionais prosperam a mais de um século e a televisão, os satélites e a informática são invenções dos anos 40/50.114 112

Os encontros de cúpula para desarmamento iniciaram na década de 70 com Nixon e Brezhnev, entretanto, se intensificaram e produziram resultados positivos a partir do Reagan e Gorbachov. 113 FONSECA, Eduardo Gianetti. Caderno Especial do Jornal Folha de São Paulo. Edição 02.11.1997. p. 3. 114 Para o sociólogo Octávio Ianni, a história mostra haver raízes da globalização no Império Romano. Para ele o exemplo mais apropriado é o cristianismo, pois o Papa até hoje percorre o mundo para reafirmar o projeto de globalização da Igreja Católica. (palestra realizada no Instituto Latino Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). A mesma opinião manifesta o economista argentino Juan Carlos Cachanosky: “globalização é um termo novo para algo tão antigo que remonta ao Império Romano”, ressaltando que a diferença é a tecnologia (Entrevista ao Correio do Povo. ed. 11.11.1997, p. 18). Também o antropólogo Renato Ortz afirma que “a globalização é um processo que tem raízes no passado, mas no presente mostra sua originalidade, tendo no neoliberalismo sua ideologia predominante” (“A globalização tem raízes no Império Romano”. Correio do Povo. ed. 28.04.1997. p. 13). A verdade é que a história do ocidente mediterrâneo e da cristandade medieval está cheia de tentativas imperialistas com pretensões mundiais – mundo aqui entendido como delimitado pelos limites conhecidos e ocupados pelas potências dominadoras do momento. Os Romanos, a Santa Sé, os Estados nascentes da Idade Média, Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, tiveram todos, a seu tempo,

A novidade é o perecimento do único sistema que disputava com o capitalismo liberal e que não permitia que esse existisse em escala planetária. O desaparecimento do comunismo permitiu globalizar de fato o capitalismo. E, com a queda das barreiras político-militares-ideológicas, inicia-se um processo capitalista jamais visto. Agora o produtor compra matéria-prima em qualquer lugar do mundo, onde seja melhor e mais barata. Instala sua fábrica nos países onde a mão-de-obra custa menos, não importa se no Vietnã ou no Paraguai e vende sua mercadoria para o mundo inteiro. É este fenômeno que chamamos de globalização. Também neste sentido é o pensamento de Moore115, diretor geral da Organização Mundial do Comércio. Para ele “globalização não é algo novo. A novidade são as transações financeiras feitas de um lado a outro do mundo ao toque de um botão. Desde que o homem é homem há trocas comerciais. Não estamos inventando a roda. No começo dos anos 30 o volume do comércio internacional em relação ao PIB mundial era maior que o de hoje”. Ferrandérry116 esclarece que a globalização a que nos referimos é um conceito que apareceu em meados dos anos 80, nas escolas de negócios norteamericanas e na imprensa anglo-saxônica. A expressão designa um movimento complexo de aberturas de fronteiras econômicas e de desregulamentação, que permite que as atividades econômicas capitalistas estendam seu campo de ação a todo o planeta. O surgimento de instrumentos de telecomunicações extremamente rápidos e eficientes possibilitou a viabilidade deste conceito, reduzindo as distâncias a nada. O fim do bloco soviético e o triunfo mundial do modelo neoliberal no início dos anos 90, deram a este fenômeno uma validade global.

tais pretensões (ARNAUD, A-J, O Direito entre a modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro: Renovar. 1999. p. 7). Não podemos deixar de lembrar aqui as palavras de Marx e Engels em seu Manifesto Comunista de 1848: “Graças a exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita a produção e ao consumo de todo mundo. Arrancaram a indústria de sua base nacional.... As velhas industrias nacionais foram destruídas e estão destruindo-se continuamente. São suplantadas por novas industrias, cuja instalação se converte em um problema vital para todas as nações civilizadas, por industrias que já não empregam matéria prima do país, mas matérias primas ventidas nas mas longínquas regiões do mundo e cujos produtors não são consumidos somente no próprio país, mas em todas as partes do globo”. (MARX, K. y ENGELS, F. Das Kommunistische Manifest. Op. Cit. p.100). 115 MOORE, Mike. “Entrevista Especial”. Revista Veja. Edição 1.653. 14 de junho de 2.000. p. 11 116 FERRANDÉRRY, J.L. Le point sur la mondialisation. Paris: Presses Universitaires de France. 1996. p. 3.

A globalização nos remete a um processo social, econômico, cultural e demográfico que se instala no coração das nações e as transcende ao mesmo tempo, de tal forma que uma atenção limitada aos processos locais, as identidades locais e as unidades de análises locais, faz incompleta a compreensão local. Assim estamos de acordo com Pacheco117, para quem “globalização não é um fenômeno que possa ser explicado linear ou unilateralmente. A ele convergem muitos e diversos fatores; é um processo em marcha, não finalizado, um processo em transição a uma nova fase do capitalismo, cujo significado esta muito longe de ser unívoco”. Então, a globalização não é uma ideologia, nem tampouco um programa econômico a defender-se, é sim, um fenômeno que está ocorrendo no mundo. Assim também é o entendimento de Thesing118, o conceito de globalização descreve um processo. Outra coisa é globalização. Para ele, “globalização designa a crescente integração de nações e regiões. Globalização significa, sobretudo, uma revolução econômica e estrutural. A economia mundial encontra-se em transformação, e cresce em conjunto, formando uma rede. No mundo todo, surgem mercados gigantescos, ofertas de produtos e de trabalho e modernas possibilidades de comunicação. Nos diferentes países, os mercados e a produção tornam-se cada vez mais interdependentes. Através da dinâmica do comércio de bens e serviços e através dos movimentos de tecnologia, surgem no mundo todo novas estruturas de poder”. Também neste sentido é o pensamento de Macedo Júnior119, que descreve a globalização como uma nova fase para onde caminha o capitalismo mundial, marcada pela transformação dos arranjos institucionais (econômicos e políticos), hábitos, cultura e apreensão teórica de um mundo anteriormente inexistente. Aldo Ferrer120, ensina que há uma visão fundamentalista da globalização, segundo a qual a economia atual responderia a forças inexoráveis que 117

PACHECO, P.M., “Transformaciones económicas y función de lo político en la fase de la globalización” In Mundialización econômica y crisis político-jurídica,. Anales de la Cátedra Francisco Suárez. Universidad de Granada, n° 32/2005. p. 103. 118 THESING, Josef. “Globalização, Europa e o Século 21”. Conferência proferida em 18.11.1997 na Academia Teológica Católica de Varsóvia, Polônia. In A Globalização entre o Imaginário e a realidade. Série Pesquisas. n° 13. São Paulo: Fundação Adenauer Konrad. 1998. p. 5. 119 MACEDO JUNIOR. Ronaldo Porto. “Globalização e Direito do Consumidor” In Direito Global. (coordenadores: Carlos Ari Sundlfeld e Oscar Vilhena Vieira). São Paulo: Max Limonad. 1999. p. 227. 120 In CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la Globalización? Santiago de Chile: LOM. 1999. p.31.

estão fora de controle dos sistemas políticos e dos Estados nacionais. Estar-se-ia na presença de uma nova ordem natural e o acatamento destas leis é o fundamento da racionalidade. Segundo esta visão fundamentalista: l. A globalização da ordem mundial atual, não tem antecedentes históricos, pois a revolução tecnológica que estamos vivendo provocou uma ruptura no desenvolvimento histórico da humanidade; 2. Nesta nova situação, os espaços nacionais ficaram dissolvidos na ordem global. A acumulação de capital, a produção e a distribuição de bens e serviços se realizam hoje, predominantemente, no mercado mundial; 3. Por isso, o desenvolvimento econômico e a concorrência alteraram sua natureza, o que obriga às políticas nacionais a seguir as expectativas do mercado global; 4. Hoje em dia a desregulamentação plena dos mercados é a única ordem possível e nesta nova ordem a mão invisível se encarregará de contabilizar os diversos interesses. Efetivamente

são

inúmeras

as

alterações

impostas

pela

globalização. Entre as principais se destacam: 1. Alteração dos padrões de produção e do mercado de trabalho. Os novos sistemas de especialização flexível e a fábrica global tornaram mais fáceis a produção local em muitas partes do mundo, o que permite a terceirização e a subcontratação, dando surgimento a uma nova relação de trabalho. As empresas, mais dinâmicas e o mercado cada vez mais integrado tendem a usar unidades autônomas, de produção, menor, mais flexível, mais especializada e sub-contratam grande parte do trabalho de outras empresas. Esta utilização de mão de obra mais flexível implica também uma tendência de tornar o emprego de tempo parcial e inseguro.

2. União de mercados financeiros: a criação de mercados de capitais unidos globalmente facilita o livre fluxo de investimentos através de fronteiras e escapa totalmente ao controle dos governos. 3. Aumento da importância das empresas multinacionais: devido ao fato das grandes multinacionais estarem agora capacitadas a expandir tanto a produção como outras operações por todo mundo, além de mudar as fábricas de um país para outro, seu potencial de negociação aumentou consideravelmente. Cada importante grupo industrial ou financeiro tem, hoje, estratégias para atuação em todas as regiões do mundo. O número destas empresas multinacionais aumentou vertiginosamente nas últimas décadas e o forte deste crescimento ocorreu pelo aumento de organizações multinacionais de tamanho médio, não por mega-empresas como a General Motors ou a Toyota121. 4. Aumento da importância do intercâmbio e crescimento dos blocos regionais de comércio: as transações internacionais aumentaram sua proporção no PIB da grande maioria dos Estados. As barreiras de comércio vêm diminuindo aceleradamente. O conceito de comércio se ampliou e abarca serviços e a propriedade intelectual. As regras internacionais que promovem o livre comércio de mercadorias, bens e serviços têm efeitos diretos na legislação interna dos Estados, que se adaptam às regras internacionais. 5. Expansão da democracia liberal e dos conceitos neoliberais – dando ênfase ao mercado privado, a redução do papel dos Estados e o livre comércio influenciaram substancialmente toda a política não apenas ocidental, mas da antiga União Soviética e da própria China. 6. Ajuste estrutural e privatização: todo o antigo bloco soviético e quase a totalidade do mundo em desenvolvimento sofrem fortes pressões para estabilizar a macroeconomia e reduzir o envolvimento direto do Estado na economia. Esta situação aumentou consideravelmente a eficiência da produção, mas também 121

Segundo Capella Hernández, nos anos setenta o número de empresas multinacionais não passava de umas poucas centenas. Em 1997 eram mais de 40.000. As duzentas multinacionais mais importantes possuem um volume de negócios superior a quarta parta da atividade econômica mundial, ainda que empreguem apenas 18,8 milhões de pessoas, o que é menos de 0,75 da mão de obra do planeta. Ademais, em 1992, apenas setenta destas empresas interviram na metade das vendas em todo o mundo (CAPELLA HERNÁNDEZ, J.R. Transformaciones del derecho en la mundialización. Op. Cit. p. 94).

atacou os salários e aumentou o desemprego. A retirada do Estado da economia agravou principalmente o problema dos mais pobres que viram reduzir os subsídios concedidos aos produtos básicos como transporte e alimentos e o corte de muitos serviços de bem estar social. Em resumo: favorecida pelas comunicações modernas, a grande indústria se encaminha para uma produção pulverizada, ao redor do mundo, segundo suas conveniências de custo, assim como o grande comércio adota uma política de vendas voltada para tantos mercados nacionais quanto possível e a grande finança paira acima das fronteiras. Para Lamounier globalização é a culminação de um processo histórico essencialmente benfazejo: a possibilidade de concretizar, finalmente, aquela promessa de interdependência e desenvolvimento com que sonharam e a que tão enfaticamente se referiram os grandes economistas e filósofos do século XVIII. O que eles anteviram não foi nada menos que a superação das carências materiais mais agudas da humanidade e a definitiva planificação do mundo, graças ao comércio e a divisão de trabalho. Esta utopia ganhou outra dimensão importante no século XIX, notadamente através do marxismo: a idéia de que esta formidável expansão de forças produtivas exigia a prévia e concomitante redução das desigualdades sociais existentes dentro de cada país122. A globalização é hoje o tema central nas discussões entre cientistas sociais e políticos, e lembra Andrade123, que há uma forte tendência de crer que o mundo passa por uma fase histórica e que caminha para a união e integração de vários Estados e nações. Os arautos da globalização prenunciam que a nova ordem mundial caminhará até a formação de uma aldeia global, onde sob a autoridade de uma única autoridade – o mercado – todos os povos se confraternizarão e viverão felizes, em níveis sócioeconômicos e em situações políticas ideais. Alcançar-se-ia um novo estágio da modernidade, onde a sociedade abandonaria suas tradições e crenças e se integraria psicológica e culturalmente. É verdade que o mundo nunca foi tão pequeno e encolhe cada vez mais por causa da tecnologia. A indústria da informática e da telecomunicação vive uma 122

LAMOUNIER. Bolívar. Gazeta Mercantil. p. A-3. ed. 26.11.99 ANDRADE, Manoel Correia de. Apud DANTAS, I. Direito Constitucional Econômico: Globalização & Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 1999. p. 108. 123

explosão sem precedentes, o que acarreta baixo custo e sua conseqüente popularização. Paralelamente se começa a esboçar uma convergência entre a infra-estrutura de comunicação e a indústria, à medida que ambas se digitalizam. É essa a conjunção que torna possível um mundo globalizado, o que condenará à morte a localização geográfica. Com os novos satélites, desaparecerão os pontos negros de comunicação, o planeta inteiro estará apto a comunicação por celular. As teleconferências progredirão, as pessoas participarão interativamente de congressos internacionais sem sair de sua casa, se fará cirurgias a distância, se dará consultoria, aulas, notícias de qualquer ponto do planeta. Tudo isso, evidentemente, tem um custo, como veremos a seguir.

3.1.1 A crise econômica Contudo, a globalização também apresenta uma face perversa. Enquanto a economia mundial está em processo de integração e de enriquecimento global, a distribuição de riquezas está cada vez mais desigual. Assevera Chonchol 124, que cada vez mais são as grandes empresas multinacionais as principais criadoras e controladoras de tecnologias e do capital e que essas são cada vez mais preocupadas com seus interesses que com suas responsabilidades. Longe de buscar uma solução ao problema da disparidade crescente entre ricos e pobres, as estruturas de seus negócios e investimentos aumentam ainda mais estas distâncias. E, segundo o Relatório do Programa de Desenvolvimento Humano da ONU os perdedores não estão somente nos países pobres. Mais de 100 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza nos países desenvolvidos. Em alguns países, como na Inglaterra e EUA, esse número tem aumentado. Os países da União Européia ficaram mais ricos nos últimos anos, num percentual de 50% a 70%. A economia cresceu muito mais que a população. Mas, para onde foi este aumento da riqueza? Nos Estados Unidos o crescimento econômico somente beneficiou os 10% mais ricos da população. Estes 10% ficaram com 96% do aumento da riqueza. Na Alemanha os benefícios às empresas aumentaram, desde 1979 em 90%, enquanto que os salários médios aumentaram em 6%. Entretanto, os impostos incidentes sobre os salários dobraram nos últimos 10 anos, enquanto que os impostos por atividade 124

CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 11.

empresarial foram reduzidos à metade: somente representam 13% da arrecadação global; em 1980 representavam 25% e antes, em 1960, 35%125. Mais assustadora é a revelação de Martin & Schumann: no final de setembro de 1995, no hotel Fairmont, em São Francisco, Califórnia, realizou-se uma reunião a portas fechadas, onde estavam aproximadamente 500 representantes da elite mundial (cientistas, líderes políticos, mega-empresários). Dentre as autoridades que se sobressaiam estavam: Michail Gorbachev, George Bush, Margaret Thatcher, Ted Turner, John Gage, David Packard, representantes de Cingapura, Pequim, Saxônia, além de grandes nomes da informática e das finanças mundiais, os sacerdotes da economia, os maiores pensadores de Stanford, Harvard e Oxford. Em uma reunião de três dias debateram as perspectivas do mundo para o próximo século. A avaliação foi devastadora e pode ser resumida como “20 por 80”. Vinte por cento da população em condições de trabalhar no século XXI, bastará para manter o ritmo da economia mundial. Mão de obra adicional não será necessária. Um quinto de todos os candidatos a emprego poderá produzir todas as mercadorias e prestar todos os serviços qualificados que a sociedade mundial poderá demandar. Assim estes 20% participarão ativamente da vida e do consumo, seja em que pais for. Outros 1% a 2%, admitem os debatedores, poderão ser agregados, por herdarem alguma fortuna. Os restantes, em torno de 80% das pessoas aptas a trabalhar, terão enormes problemas e deverão contentar-se com um pouco mais que pão e circo. A discussão é como manter os supérfluos 4/5 da população entretidos, às custas do esforço de 1/5 de privilegiados. Está absolutamente fora de questão o engajamento social das empresas privadas, já sobrecarregadas pela concorrência mundial. Outras organizações que cuidem dos desempregados. Os debatedores esperam uma forte colaboração de fundações beneficentes, dos voluntários de serviços sociais, das comunidades de bairros e grêmios desportivos de toda espécie, assim como de eventuais alianças entre estes grupos126. A concorrência internacional para atrair investidores, aumentar os empregos e manter a arrecadação, gerou, nas últimas décadas uma guerra fiscal entre os Estados, que reduziram impostos e obrigações a níveis insuportáveis, além de 125

Fonte: BECK, Ulrich. Que és la Globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós. 1999. p. 21. 126 MARTIN, H-P & SCHUMANN, H. A Armadilha da globalização. São Paulo: Globo. 1997. p. 7-12.

conceder isenções e subvenções inimagináveis a algumas décadas. Esta tendência tem como marco 1986, quando os EUA reduziram os impostos sobre a renda das sociedades de capital, de 46% para 34%, estabelecendo um novo padrão internacional, pois com o passar dos anos a maioria dos países precisaram acompanhar o modelo. Isto ocorre, lembra Aguirre127, porque os Estados necessitam lutar para que as grandes empresas multinacionais se instalem em seu território e ainda lutar para que suas próprias empresas não se mudem para outros Estados que lhes ofereça vantagens mais competitivas. Esta situação conduz a alianças entre as empresas multinacionais e os Estados e supõe uma ruptura no modelo tradicional de diplomacia. As grandes empresas possuem alta tecnologia, velozes sistemas de comunicações e acesso aos grandes mercados consumidores e toda essa capacidade interessa aos Estados. Como bem demonstram Martin & Schumann128, na Europa esta concorrência assumiu formas grotescas. A Bélgica oferece, desde 1990, para empresas ativas em mais de 4 países, a instalação do que chama “centros de coordenação”. Nestes centros, as empresas podem concentrar todos os tipos de prestação de serviços - publicidade, marketing, assessoria jurídica e seus próprios negócios financeiros - isentas de impostos sobre os lucros obtidos desta maneira. O modelo se transformou em grande êxito; multinacionais, como a Esso, a Mobil, a Continental, a Opel, a Volkswagen, a BMW, estão entre as beneficiadas. Graças a generosidade belga, as filiais locais tornaram-se as mais lucrativas do mundo. Mais atrativa ainda é a oferta da Irlanda que oferece aos que administram seus negócios a partir de um escritório nas docas de Dublim. De cada dólar ganho formalmente, através de uma sucursal na Irlanda, apenas 10 centavos vão para o erário. Nos palácios de vidro que circulam o antigo porto da cidade, se instalaram as filiais de mais de 500 empresas multinacionais: a Mitsubishi, o Chase Manhattan, todos os grandes bancos e seguradoras européias, até a administração da incalculável fortuna da Associação Creditícia Evangélica ocupa lugar ali. Até 1994, somente empresas alemãs deixaram de pagar ao fisco Alemão mais de 25 bilhões de marcos utilizando a atalho da Irlanda. A perda da arrecadação ocorre em todos os Estados. O império Siemens recolhia até 1991, praticamente a metade de seus lucros aos cofres públicos 127 128

AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. Barcelona: Acaria. 1995. p. 22/25 MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 275/281.

dos 180 Estados onde mantinha filiais. Em 4 anos, esta quota encolheu para apenas 20%129. O ressecamento do tesouro nacional através da economia globalizada não ocorre somente pelo lado das receitas. A nova economia impõe também gastos crescentes ao caixa estatal. A concorrência por tributos mais baixos vem acompanhada de generosas subvenções: a oferta gratuita de terrenos e de toda infra-estrutura urbana, incluindo luz e água, representa o padrão mínimo mundial. Onde quer que uma empresa deseje se instalar uma unidade de produção, os planificadores de custos poderão contar sempre com subvenções e contribuições de todos os tipos.130

Assim, lembra Aguirre131, as empresas com capacidade

internacional podem hoje aproveitar as melhores condições para pesquisar (nos paises mais avançados), produzir (onde seja mais benéfica a relação entre a capacitação da mão de obra, o preço da mesma, a pressão política e social dos sindicatos, a conflituosidade social, as políticas impositivas do Estado ou a região, a situação geográfica dos recursos naturais, o regime de investimentos e as normas ambientais) e comercializar (nos mercados mais abertos e com maior capacidade aquisitiva, com melhor infra-estrutura e onde se obtenha preços melhores. O que se observa com isso, é que os governos democraticamente eleitos, não conseguem mais decidir sobre o valor da tributação no Estado, são os próprios negociantes de produtos, serviços e capitais, que estabelecem a contribuição que desejam dar para atender aos encargos sociais, Isto modifica visivelmente a estrutura de poder do Estado. Ademais, o fortalecimento das mega-corporações as 129

131

Idem. p. 279 130 A multinacional coreana Sansung, por exemplo, recebeu do Ministério da Fazenda Britânico 100 milhões de dólares para a instalação de uma indústria eletrônica no norte da Inglaterra, investindo 1 bilhão de dólares. Isto saiu muito barato ao governo britânico. Estados e regiões que desejam receber unidades industriais terão que investir muito mais. Para a instalação da fábrica de carros pequenos da Mercedes-Benz em Lorena, os contribuintes da União Européia e da França se comprometeram com 1/4 dos investimentos por meio de subvenções diretas. Se adicionarmos as isenções fiscais, a participação do Estado chega a 1/3 do investimento total, e sem direito a voto na administração da empresa. No Alabama, EUA, a Mercedes-Benz pagou somente 55% dos custos incidentes para a instalação de uma nova unidade de produção, mas comparando com a isenção total de impostos por 10 anos que a General Motors negociou em 1996 chega a ser modesta a participação do Estado. A Índia não somente oferece aos empresários estrangeiros salários baixos, como facilita o acesso aos satélites, autoriza sem problemas qualquer produção, concede isenções fiscais por varias décadas e permite, inclusive, a diminuição de garantias sociais. MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização. Op. Cit. p. 280/285.

AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op. Cit. p. 65.

torna muitas vezes, ao menos economicamente, mais fortes que os Estados. De fato, na história do capitalismo nunca houve uma concentração tão acentuada de capital. Apenas para ter-se uma idéia, as 200 maiores empresas do mundo faturam 1/3 do PIB mundial, estimado em 24 trilhões de dólares132. Nos aspectos econômicos da globalização, assume um papel altamente relevante o capital internacional, mais precisamente o fluxo dos investimentos internacionais. Como declara Johanpetter, o irreversível processo de globalização da economia, impacta diretamente na vida das pessoas e das empresas e do funcionamento de todos os mercados. O fluxo de investimentos migra para os setores de alto crescimento e onde a mão de obra propicia maior produtividade e maior flexibilidade nas relações de trabalho.133 Isto implica em uma reformulação das relações entre o Estado e o mercado. O Estado abandona uma série de funções que havia assumido e se organiza para lidar com a economia globalizada. As empresas públicas são privatizadas. As taxas aduaneiras são reduzidas ou, em muitos casos, abolidas. As políticas econômicas nacionais são coordenadas em escala internacional. Como conseqüência, a noção de soberania, mais uma vez é submetida a uma revisão. Para Seitenfus e Ventura134, duas características da globalização devem ser destacadas: primeiro, que é de sua própria essência que o processo desconheça fronteiras nacionais, introduzido a desteriorialização das atividades de produção e consumo. Em segundo, as decisões do mundo global se devem a centros de interesses privados, independentes, autônomos e dotados de um poder real, cuja natureza e intensidade, transcende o tradicional poder dos Estados. A globalização, lembram, contesta a exclusividade do exercício da soberania do Estado sobre um determinado território. A lex mercatória, os códigos de conduta e os acordos multilaterais para a proteção de investimentos e de patentes estrangeiras, por exemplo, podem incorporar-se, na prática, a todos os Estados, inclusive aqueles que não participaram de sua realização. Externamente, a globalização obriga ao Estado a adotar uma agenda distinta para suas atividades internacionais. O Estado, segundo o modelo clássico, representava politicamente o país. Ao conceder exclusividade à 132

RAMOS. Alexandre Luiz. “Direitos Humanos, neoliberalismo e globalização” In SILVA, Reginaldo Pereira (org.) Direitos humanos como educação para a justiça. São Paulo: Ltr. 1998. p. 68 133 Guilherme Johanpetter In “Globalização e Competitividade”. Zero Hora. Caderno de Economia p. 2. 17.03.1996. 134 SEITENFUS, R. e VENTURA, D. Introdução ao Direito Internacional Público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 1999. p. 183.

economia e privatizar as atividades produtivas remanescentes dos Estados, a globalização conduz as relações externas de concorrência, de cooperação ou de afrontamentos, para uma arena onde as forças privadas predominam. Assim “o Estado-nação está cada vez mais impotente para controlar a política monetária, decidir seus investimentos, organizar a produção e o comércio, arrecadar tributos sobre a sociedade e cumprir seus compromissos de proporcionar assistência social”135. Em suma, perdeu a maior parte de seu poder, porque os fluxos de mercadorias, serviços e capitais, o deslocamento da produção, o poder das gigantes multinacionais, tem seu centro cada vez mais em todas as partes e em parte alguma. Para Cassem isto representa um grande perigo à democracia, pois está fora de controle do Estado certos fatores decisivos para a vida dos cidadãos. Quanto mais aberta está economicamente uma entidade política, mais dependente é de mercados exteriores para suas exportações e de centros de decisão estrangeiros para suas importações e estratégias em todos os setores de alta tecnologia e, menos controle sobre si mesma, converte sua governabilidade democrática em um sério problema136. E como bem lembra Chonchol137, o pensamento dominante hoje é o pensamento globalizante e neoliberal, cujas idéias básicas são: (1) o crescimento máximo do produto interno bruto é essencial para o desenvolvimento da economia, através dele se resolvem todos os problemas econômicos e sociais dos países; (2) neste crescimento o papel do governo é secundário, pois depende fundamentalmente do dinamismo do mercado global e das atividades do setor privado; (3) sendo o governo ineficiente por natureza, deve privatizar todas as empresas que controla, inclusive os serviços que anteriormente tinha como sua responsabilidade como saúde, educação, correios, obras públicas, etc.

135

CASTELLS, M. La era de la información: Economía, Sociedad y Cultura. Volumen II. Madrid: Alianza. 1998. p. 282. 136 CASSEN, B. “Vivier son el GATT” Cuatro Semanas/Lê monde diplomatique, junio 1993, p. 13. Apud AGUIRRE, Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Barcelona: Icaria Antrazyt. 1995. p. 151. 137 CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 63.

(4) deve-se abrir ao máximo as fronteiras para os negócios, os capitais e os fluxos financeiros do exterior. Isto permitirá que as empresas sejam competitivas e de alta produtividade. As empresas ineficientes desaparecerão; (5) a atração de capital estrangeiro é fundamental (especialmente para países em desenvolvimento). Isto permitirá aumentar os investimentos, o emprego e uso de novas tecnologias; (6) também é necessário para ativar a economia aumentar as taxas de juros, que são necessárias para incentivar o investimento privado; (7) é importantíssimo flexibilizar ou suprimir a rigidez de origem política e institucional, tal como o poder dos sindicatos, as legislações protecionistas, a intervenção estatal, os custos excessivos dos programas sociais, etc. Neste sentido, o sociólogo Robert Heilbroner, em sua obra Visios of the future. The distant past, yesterday, end tomorrow138, afirma que o capitalismo será a forma principal de organização socio-econômica ao longo do século XXI - ao menos nos países desenvolvidos - uma vez que não existem pistas de um possível modelo sucessor. Para o autor é plausível que todos os capitalismos imagináveis do futuro possuam as três características que estabeleceram a identidade da ordem social na história: (a) uma ampla confiança nos mercados como mecanismo que guia a atividade econômica privada; (b) a presença da sociedade em dois âmbitos distintos um reservado para as funções governamentais e o outro para a atividade econômica privada - e, (c) combustível global, uma dependência da expansão dos capitais privados. Esta realidade acaba reduzindo o novo papel do Estado a uma função exclusiva de guardião dos equilíbrios macro-econômicos. São guardiões que se tornam prisioneiros de sua própria armadilha, e impotentes ou incapazes de definir prioridades e implementar políticas de incentivo setorial a competitividades, de oferecer proteção social a suas populações, de dar os serviços públicos básicos ou de garantir a ordem e o respeito às leis.

138

HEILBRONER, Robert. Visiones del Futuro. El pasado lejano, el ayer, el hoy y el mañana. Barcelona –Buenos Aires-México: Paidós. 1996.

Tudo isso leva a sociedade a dar alguns passos para trás quanto aos avanços alcançados nas relações de trabalho no curso do último século: a semana de 40 horas, aumento dos salários de acordo com o custo de vida, o direito a férias remuneradas, aposentadoria, assistência social, inclusive a um salário mínimo. Como lembra Aguirre139, em nome da modernização e adaptação às novas circunstâncias, se modificam as leis para cortar o seguro desemprego, as pensões, facilitar a contratação por curtos períodos de tempo e aliviar as responsabilidades dos empregadores; trata-se de uma transformação regressiva do Estado Social. Ante esta tendência, os sindicatos reagem com uma política de resistência, tratando de defender, em primeiro lugar, aos que tem emprego. Ocorre que os orçamentos públicos seguem uma linha decrescente, só que aumentam, ao invés de diminuir, as tarefas do Estado. Novas tecnologias encarecem a manutenção da infra-estrutura, danos ambientais exigem medidas abrangentes, a elevação crescente da expectativa de vida da população exige maiores gastos com assistência médica e aposentadorias. O que resta aos Estados senão encurtar a oferta de serviços públicos? Os países que até agora pagavam pensões, tratam de reformar o sistema, diminuindo os benefícios e conduzindo as pessoas que estão em idade de trabalhar a contratar seguros privado 140. O que se vê é que os Estados estão impotentes frente aos fenômenos da globalização, e se adaptam às linhas econômicas impostas pelo mundo globalizado. Acontece, diz Estefanía, que a essência da globalização é o processo pelo qual as economia nacionais se integram progressivamente à econômica internacional, de modo que sua evolução dependerá, cada vez mais dos mercados internacional e menos das políticas econômicas governamentais141. Em resumo, o que se vê é que a globalização é, ao mesmo tempo, uma fonte de acumulação de riquezas e um dínamo de produção de pobreza e marginalização social. O mercado globalizado exclui imensa parcela da população mundial não só na África ou na América Latina, mas também na Ásia, na Europa e no próprio EUA. 139

AGUIRRE. Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op. Cit. p. 147/148. 140 MARTIN, Hans-Peter & SCHUMANN, Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p.287. 141 ESTEFANÍA, J. La nueva economia.. La globalización. 1996. p. 14. Apud DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Econômico: Globalização & Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 2000. p. 114.

Para Chonchol a nova ordem mundial, a do capital, está desestabilizando países inteiros e a ordem social pré-existente. Em não se tomando medidas urgentes, a nunca estabelecida ditadura do proletariado será substituída pela ditadura do mercado mundial. Ademais, lembra, a economia de mercado e a democracia não são irmãos de sangue inseparáveis, que buscam juntas a prosperidade de todos. Hoje o equilíbrio entre ambas é muito frágil, e faz com que nos Estados mais fracos, a balança se incline mais para o lado dos poderosos142. De maneira radical e contundente, Beck entende que a globalização não pretende somente eliminar o poder dos sindicatos, mas também o poder do próprio Estado nacional. Para ele a retórica dos representantes econômicos contra a política social estatal revela suas reais intenções: “pretendem, definitivamente desmantelar o aparato e as tarefas estatais com vistas a realização da utopia do anarquismo mercantil do Estado mínimo”.143 Mas para muitos pensadores, as desigualdades e injustiças sociais não são conseqüências da globalização. Isto tem a ver com condutas equivocadas dos governantes, com as guerras, com a taxação injusta de impostos, com a falta de educação e com os privilégios de grupos internos. Assim é o pensamento de Lewis144. Para ele, é demagogia política dizer que o desenvolvimento econômico, crescente, o aumento da produtividade, a globalização e a abertura dos mercados, são bons apenas para a classe média e para os mais ricos e que nada trazem de positivo para os pobres. A evidência é contrária. É a de que o progresso beneficia aos pobres numa taxa ao menos igual senão pouco maior que os ricos. O que determina quem terá maior proveito das oportunidades de crescimento são as políticas internas adotadas. Lafontaine e Müller, depois de apresentar uma série de vantagens e benefícios da globalização para a Alemanha e para seus trabalhadores concluem: “A globalização não é nenhuma

142

CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 96. BECK, Ulrich. Qué es la globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización.. Op. Cit 144 Lewis, B. Diretor Presidente da McKinsey Global Intitute, cuja função e produzir estudos comparativos do funcionamento do mercado em diferentes países e regiões do mundo. Nos últimos 10 anos, o instituto entrou nos segredos de dezenas de economias nacionais entre elas a do Japão, Coréia, Brasil, Polônia, Estados Unidos, Suécia, Canadá e Dinamarca. Seus economistas visitam fábricas, prédios em construção, bares de esquina, feiras livres, grandes companhias de produção, para entender as razões do crescimento ou da resistência ao desenvolvimento dos países. Lewis é foi assessor especial do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América no governo Klinton e está entre as pessoas que mais conhecem a economia mundial. Revista Veja. ed. de 14.06.200l. p. 11. 143

desgraça. A globalização oferece aos países mais oportunidades que riscos. Por isso afirmamos: nenhum medo da globalização”145. Entretanto, como se observa o poder econômico acaba sobrepondo-se ao poder político e acaba determinando os âmbitos de decisão democrática nas políticas nacionais, até o ponto de fazer do âmbito político uma esfera dependente das pulsações da economia internacional. Com isso, o destino dos cidadãos fica cada vez mais a mercê de forças que não podem controlar, porque não são sequer identificáveis.

3.1.2 As Resistências As lutas, as manifestações e alianças contra a globalização são absolutamente estéreis, pois se trata de negar o óbvio, geralmente por aqueles que estão contra o que desconhecem inteiramente. Como dissemos a globalização não é uma ideologia ou um programa econômico e sim um processo e que não apresenta nenhuma novidade já que quando o primeiro grupo sedentário procurou manter relação com outro grupo sedentário, para intercâmbio, comércio ou aliança, iniciou a globalização, apenas acelerada neste século pelos avanços tecnológicos que permitiram a transmissão de informações com extrema rapidez. Repetimos Mirc: “Não suporto mais as estimativas intelectuais, as hipocrisias e as ambigüidades da extensa legião de políticos, industriais, universitários e romancistas, prontos a lutarem contra a evidência, como essas crianças que insistem em negar a força da gravidade. Em matéria de economia, o princípio galileano equivale a um postulado muito simples: a globalização está aí”.146 Evidentemente que se deve controlar e restringir o “capitalismo de rapina”, aquele capital que como disse o ex-chanceller alemão, Helmut Schmidt, “realiza as anexações hostis de empresas, planta boatos, participa da ciranda financeira desenfreada, ganha rios de dinheiro sem levar em conta as conseqüências de suas decisões”. Também o “capital andorinha”, que é aquele que, sem restrições, migra sem 145

LAFONTAINE, Oskar & MÜLLER, Christa. No hay que tener miedo a la globalización. Bienestar y trabajo para todos. Madrid: Biblioteca nueva. 1998. p. 311. 146 MIRC, Alian. As vantagens da Globalização. Rio de Janeiro: Bertran Brasil. 1997. p. 7.

outro propósito a não ser o de aproveitar as vantagens dos sistemas bancários e monetários, podendo desestabilizar completamente qualquer país. Mas também se deve combater o desemprego, a violência, a injustiça e a miséria gerada pela má distribuição de riquezas147. Mas isso tem mais a ver com a política interna adotada pelos Estados muitas vezes equivocada, injusta e beneficiadora de grupos - do que propriamente com a globalização. O que ocorre é que há uma confusão propositadamente gerada, seja pela paixão, pela emoção ou por má fé, que atribui o mesmo conceito à globalização e à política econômica pregada pelo neoliberalismo A adoção de uma política liberal pelos Estados facilita o fenômeno da globalização, assim que vemos sempre juntos globalização e neoliberalismo. Mas ambos mesmo sendo irmãos, não são siameses inseparáveis, e se trata de ingenuidade o ataque generalizado. Todo conflito se dá porque há uma tendência generalizada de confundir os efeitos da economia mundial com os da globalização. Muitos lhe atribuem os principais males do presente, como a crise social, o desemprego, a ruptura das solidariedades, a proliferação da criminalidade, o aniquilamento de culturas e dos valores tradicionais e a destruição do Estado-nação. Esta visão tende a conceber a globalização como um fenômeno unilateral e negativo, imposto por empresas transnacionais e pelo neoliberalismo, violando o direito dos povos. O que ocorre é que quando se fala de globalização quase a totalidade das pessoas pensam exclusivamente nas transformações econômicas, esquecendo-se dos fenômenos de globalização pouco ou nada econômicos. (e a globalização do conhecimento? da solidariedade? da democracia? dos direitos humanos?). Höffe148 divide estes fenômenos não econômicos da globalização em três grupos. O primeiro, efetivamente representa uma ameaça ao bem-estar humano e se refere a violência, a criminalidade em escala mundial e aos danos ecológicos que não se detêm entre fronteiras nacionais. Mas neste grupo também se inclui a ‘memória crítica mundial’ que não se esquece dos grandes atos violentos e criminosos, contribuindo assim para prevenir futuros atos semelhantes. 147

Não se pode esquecer que até o século XVIII a riqueza produzida pelo mundo dobrava a cada 500 anos. No século XIX dobrou a cada 40 anos e no século XX a produção de riquezas alcançou um ritmo jamais imaginado. O PIB Global vem dobrando a cada 25 anos. 148 HÖFFE, O. Derecho Intercultural. Madrid: Gedisa. s/d. p. 219-246.

O segundo grupo se compõe dos fenômenos que estão a serviço do bem-estar individual e coletivo, onde se encontram não somente o mundo da economia e das finanças, o mercado de trabalho, os sistemas de transporte, comunicações e o turismo, aqui também se incluem as ciências – e não somente as ciências naturais, medicina ou a técnica – mas todas as ciências humanas e os sistemas escolar e universitário. Para ele, estes fenômenos a muito tempo já se difundiram no mundo. Inclui-se ainda neste grupo, a democracia liberal, já que dela emana uma forte pressão para a globalização e, ainda que as violações aos direitos humanos não sejam combatidas com igual intensidade em todo mundo, são ao menos objeto de protestos mundiais e, em alguns casos, se observa inclusive, um esforço de intervenção humanitária. Os fenômenos do terceiro grupo são conseqüências da nova fase mundial. Lembra Höffe que a comunidade global não pode ser confundida com um grupo de amigos, muito ao contrário. Em todos estes âmbitos reina uma feroz concorrência, atribuindo especial importância a luta e a vitória nacional e regional. Daí a importância de alguns elementos, como as políticas fiscais e a densidade de ajuste, o nível de educação e formação, a infra-estrutura e o valor do tempo livre. A concorrência não somente estimula estes elementos como deles espera uma riqueza coletiva, tais como o esforço, o risco e a criatividade. Mas, tudo isto tem um custo, que em alguns casos, como o surgimento de greves, são problemas de economia interna e noutros, como de contaminação ambiental, são de índole econômica externa. E, com as conseqüências externas da economia, se chega aos fenômenos do terceiro grupo, que se constituem nos grandes movimentos migratórios e de refugiados, cujas causas pode-se buscar principalmente na religião, na política e na economia; nas guerras civis, em muitos lugares conseqüência da colonização ou descolonização ou ainda como resposta a corrupção e a má administração e, por último, nas catástrofes naturais, na fome, na pobreza no sub-desenvolvimento econômico incluindo o cultural e o político. Na mesma linha Vieira apresenta uma nova visão distinguindo, por um lado, os propósitos subjetivos das empresas transnacionais e governos que instrumentam a marcha da globalização e, por outro, os aspectos mais profundos do processo, que expressam necessidades irreversíveis do gênero humano, como a democratização e a universalização dos direitos humanos, a solidariedade dos movimentos sociais, novas

necessidades de desenvolvimento, maior cooperação e regulação mundial. A partir da compreensão desta diferença, apresenta quatro razões positivas do fenômeno: (1) o processo de globalização é fundamentalmente o resultado de forças materiais e espirituais que não podem ser revertidas sem causar custos econômicos, sociais, ecológicos e culturais maiores que os causados pela globalização; (2) a deteriorização ecológica do planeta, as condições mundiais de salubridade, extrema pobreza e marginalização dos países mais pobres, além da explosão demográfica impõem a necessidade de maiores níveis de cooperação internacional, desenvolvimento tecnológico e investimentos mundiais, o que requer uma reorientação da globalização e não sua reversão; (3) a pesar de sua forma atual, é a própria globalização que deve fortalecer o crescimento econômico, a democratização política, o saneamento ambiental, e a internacionalização dos movimentos sociais dos países em desenvolvimento e, (4) a globalização é a precondição objetiva das transformações futuras para um mundo solidário e pacífico149. Evidentemente não foi a globalização que inventou a desigualdade, tampouco a injustiça social no planeta. É imperioso ressaltar que tais fenômenos a precederam. Ela, a globalização, é o fenômeno dominante do nosso tempo que, por inexistência de um modelo alternativo e coerente lhe faça sombra, tornou-se a vilã da modernidade.

3.1.3 O fim do Estado-nação? Para Lamounier,150 a globalização implica em graves riscos para o Estado-nação, vale dizer, para o sistema mundial de Estados, que é o arcabouço mediante o qual a humanidade conseguiu, após séculos e séculos de problemática evolução, organizar, bem ou mal, a coexistência não beligerante das sociedades humanas. Na balança do poder do mundo, o Estado enfraquece diante do sistema 149 150

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 2ª ed. São Paulo-Rio de Janeiro: Record. 1998. p. 102. LAMOUNIER, Bolívar, Gazeta Mercantil, Edição de 26.11.1997. p. A-3.

financeiro. Um sistema maior, porque disseminado, além de um governo ou país, enfim, globalizado. Mesmo assim, afirma Dallari que, no presente, não há elementos concretos que permitam afirmar que caminhamos para a extinção do Estado. Um mundo sem Estados não é plausível, sendo apenas um ideal utópico e sem apoio na realidade151. Em entrevista à Folha de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso reconheceu que a globalização limita efetivamente o poder dos Estados nacionais, mas, “a globalização ainda não é o fim do Estado”.152 A verdade é que o Estado e seu governo continuam sendo a única instância junto à qual os cidadãos e eleitores podem reivindicar justiça e reformas. Mesmo a idéia de que o condomínio de empresas mundiais possa assumir funções de governo não passa de ilusão. Nenhum diretor de empresa, por mais poderoso que seja, desejaria assumir a responsabilidade por processos que ocorrem fora de sua alçada. Ele não é pago para isso. Diz Cardoso, com experiência de chefe de Estado, que “os líderes empresariais são os primeiros a exigir intervenção governamental quando as coisas pegam fogo”. Assim também pensa Campilongo153. Para ele seria um erro imaginar que o processo de internacionalização da vida atual tenha eliminado ou descartado a importância do Estado-nação. Os acontecimentos do Leste Europeu em 1990, a guerra na Iugoslávia em 1991 e a luta das Repúblicas Soviéticas servem para exemplificar o quanto é contínua e importante a afirmação dos nacionalismos. Em termos ideológicos, interessante a conclusão a que chegaram Cruz e Sirvent154. Destacam que os autores tidos como de ‘esquerda’ são os mais ‘estatalistas’ no sentido de preservar o Estado que outros mais identificados com a ‘direita’. Este posicionamento, lembram, é contraditório, pois foram os liberais capitalistas os maiores beneficiados pelo Estado moderno. Os socialistas apenas se instalaram nas estruturas públicas, mas não se pode dizer que estas funcionaram a seu favor. Mas, reconhecer a importância do Estado-nação não significa que o conceito de soberania a ele inerente não tenha sofrido o forte impacto da globalização. A 151

DALLARI, Dalmo de Abreu. O Futuro do Estado. São Paulo: Saraiva. 2001. p. 95. Jornal Folha de São Paulo, edição de 02.11.1997. Caderno Especial. p. 9. 153 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 98. 154 “Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional moderno”. Trabalho desenvolvido pelo Prof. Paulo Márcio Cruz a partir das pesquisas realizadas durante seu estágio de Pós-doutoramento junto à Universidade de Alicante, Espanha, com a colaboração do Prof. José Francisco Chofre Sirvent. 2006. Inédito. p. 8. 152

soberania una, indivisível, inalienável e imprescritível, apontada por praticamente todos os estudiosos155, é incompatível com a realidade contemporânea. Qualquer concepção de soberania que a tome como uma forma indivisível, ilimitada, exclusiva e perpétua do Poder Público está morta156, pois como bem diz Knoerr, “o Estado moderno não é mais soberano, mas um sócio, um parceiro do capital privado”.157 Contudo, deixamos claro que não há a negação da soberania, há sim uma adequação a algo superior. Assim também pensa Pereira: “entramos na fase em que se faz necessário uma reforma do aparelho do Estado”. E, esta reforma, “provavelmente significará reduzir o Estado, limitar suas funções como produtor de bens e serviços e, em menor extensão, como regulador, mas implicará também ampliar suas funções no financiamento de atividades que envolvam externalidades ou direitos humanos básicos e na promoção da competitividade internacional das indústrias locais” 158. O processo de globalização exige ainda, segundo Chanial 159, uma reflexão sobre a definição das formas de cidadania e da própria concepção de democracia, uma vez que o enfraquecimento do Estado, enquanto instituição democrática, dá-se também pela rapidez e agilidade das transformações: a discussão democrática é incompatível com o tempo dos negócios, decorrendo daí o fugimorismo, quando não a defesa pura e simples dos regimes autoritários, ou a íntima relação (corrupção) entre autoridades públicas e grupos financeiros, pois, afinal, não se pode perder tempo com estéreis discussões democráticas.

3.1.4 As Ameaças ao sistema Nosso entendimento é que a globalização é um progresso para a condição humana. É uma alternativa à manutenção a qualquer custo da soberania do 155

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 69 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. . 157 KROERR, Fernando Gustavo. “Representação Política e Globalização” In FONSECA, Ricardo Marcelo (org). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum. 2004. p. 176. Apud Paulo Márcio Cruz e José Francisco Chofre Sirvent. “Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional moderno”. Op. Cit. .p. 13. 158 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. “Gestão do Poder Público: Estratégia e Estrutura de um novo Estado”. In Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 21/38 159 CHANIAL, Philippe. “Todos os direitos por todos e para todos: Cidadania, solidariedade social e sociedade civil em um mundo globalizado”. In A Nova ordem social: Perspectivas da solidariedade contemporânea. Paulo Henrique Martins Ferreira Nunes, e outros (Organizadores) Brasília: Paralelo 15, 2004. p. 61. 156

Estado, ao serviço militar obrigatório, a ameaça de destruição do planeta em uma guerra nuclear, à subordinação dos interesses individuais aos dos governantes sem que fosse possível neutralizar este poder. Com a globalização há uma maior liberdade e oportunidades de realização. Mas há, ainda um longo caminho a percorrer e quando se fala da ‘aldeia global’ se está fazendo um diagnóstico simplificador. Contudo, segundo a maioria quase absoluta dos cientistas políticos, filósofos, economistas, políticos, pensadores das mais diversas áreas do conhecimento, o mais provável é que, ao longo das próximas décadas, a globalização e o neoliberalismo sejam a forma principal de organização socio-econômica, uma vez que não existem pistas de um possível sucessor. As ameaças à globalização, não provêm, como se poderia pensar, da união dos excluídos, dos desempregados, dos pobres, dos famintos, da esquerda radical ou dos sindicatos. Por mais paradoxal que possa parecer, a maior ameaça ao sistema é o próprio sistema: aquecimento global, degradação ambiental explosão demográfica, tudo isso provoca o surgimento de novas enfermidades, o debilitamento do ser humano e do planeta. Para George160, o perigo é muito maior do que comumente se crê, e apresenta o que julga serem as maiores ameaças ao sistema neoliberal global: 1) A ecologia – A natureza é a maior ameaça para o futuro do sistema de livre mercado. Negar as enormes pressões que exercem sobre a natureza as economias capitalistas é uma insensatez. Os cálculos econômicos tratam o consumo dos recursos renováveis e não renováveis como se fossem aportes e contribuições para o crescimento. As atuais técnicas de descrição, cômputo e contabilidade não dizem o que necessitamos saber. São ferramentas inadequadas porque as contabilidades empresariais e nacionais são construções matemáticomecânicas e partem do pressuposto de que a economia atua com independência da natureza. Assim, subestimam os bens e serviços obtidos da biosfera ou não os valorizam em absoluto; a contaminação, os resíduos e o calor que se devolve a biosfera não são medidos como custos. Neste sistema, uma floresta cortada e vendida, sob qualquer forma, somente figura na coluna de crédito nos livros contábeis. A destruição do capital natural e dos ‘serviços’ que está presta como sua capacidade de absorver o gás carbônico, estabilizar o solo, dar abrigo a várias outras 160

GEORGE, Susan. Informe Lugano. 3a ed. Barcelona: Acaria. 2002. p. 22-36.

espécies, não aparece em lugar algum. O ar, a água e o solo são considerados gratuitos, não se reconhece nem se calcula seu valor em função de sua escassez. A diminuição das reservas de pescado, da camada superficial do solo, dos minerais, da camada de ozônio, de espécies animais e vegetais, são consideradas como investimentos ou se compensa com subvenções para que estes mesmos produtores sigam provocando sua diminuição. As tensões ecológicas poderão levar a uma maior estabilidade política e ao aumento dos conflitos armados: 70% da população vive em zonas onde a água é escassa. Para George, os eco-conflitos ocorrerão primeiro no Oriente Médio, na África e na Ásia, depois afetarão outras regiões, o que trará resultados imprevisíveis para a economia. Parece que os teóricos do neoliberalismo globalizado estão cegos ante este perigo ecológico, comportando-se como se quanto menos se falar do assunto melhor, ou temem que revelar ou analisar esta importante contradição do sistema, vá em detrimento de sua manutenção. Para que o sistema alcance êxito a longo prazo, esta é uma atitude suicida. 2) O crescimento pernicioso – Outro paradoxo é a constatação de que a economia de livre mercado está ameaçada pelo crescimento. O que ocorre é que o crescimento é o motor de nossas economias, portanto não crescer significa parar e cair. Quem não crescer será eliminado do mercado. Assim, o crescimento se converteu na eterna busca do sistema, não obstante, grande parte do que se toma por crescimento reflita tendências não somente contraproducentes, mas também daninhas e destrutivas. A fabricação de dispositivos anti-roubos, produtos de defesa pessoal, a construção de prisões, centros de reabilitação para drogados, e até reconstruções de atentados terroristas figuram como ‘crescimento da atividade econômica’ no PIB dos Estados. George ironiza: “Assim, provavelmente a forma mais eficaz de aumentar rapidamente o PIB seja fazer uma guerra”161. O crescimento deve possuir estreita relação com os aumentos do conjunto de bem-estar e não como se tem apresentado. O crescimento econômico atual está provocando cada vez mais fenômenos sociais que a maioria das pessoas poderia prescindir. É o crescimento pelo crescimento, que despreza o bem-estar, que desconsidera os custos ecológicos e sociais. Este é um crescimento pernicioso.

161

Idem

3) Os extremos sociais – Para George, o futuro do livre mercado depende também de que recebe os benefícios do crescimento. Se os lucros vão para a metade inferior da população, esta imensa maioria de pessoas relativamente pobres usará seu dinheiro para o consumo, consequentemente manterão a demanda, o que gera mais produção. Se, ao contrário, os bônus do crescimento se destinar somente a camada superior da escala social, os beneficiados colocarão somas ainda maior nos mercados financeiros ao invés de adquirir bens e serviços. Como conseqüência a demanda cairá, trazendo consigo o aumento das ofertas, a superprodução e o estancamento da economia. Assim, a forma de distribuição dos benefícios do sistema, é crucial para sua manutenção a longo prazo. Este é também um perigo real, pois como vimos a globalização, com suas economias desreguladas e competitivas, ao mesmo tempo em que beneficia muitos, beneficia sobretudo os ricos. Para se ter uma idéia, em 1960 os ricos ganhavam 30 vezes mais que os pobres; em 1994, sua renda era 78 vezes superior a dos 20% mais pobres. Os 20% mais ricos, possuíam 86% de tudo o que havia sido produzido no mundo. No período pós-guerra, o comércio mundial cresceu 12 vezes, chegando a U$ 4 trilhões por ano na década de 90, mas foi também o vilão que mais acentuou as desigualdades entre países pobres e ricos. Com 10 da população do planeta, os países mais pobres do mundo detêm apenas 0,3% do comércio mundial, isto é metade do que tinham a 20 anos. Esta extrema divisão social constitui uma autêntica ameaça ao sistema. Na Europa, onde os extremos sociais são menos flagrantes, o desemprego crônico, o estancamento dos salários, o predomínio dos empregos temporários e o grande número de trabalhadores pobres, já provocam ressentimento e temos. Na América Latina, onde os extremos de pobreza e riqueza sempre foram a norma, os benefícios da prosperidade já manifestam por seus inconvenientes. A segurança privada tornou-se indispensável, filhos de pais ricos temem ir a escola desacompanhados por medo de seqüestros, empresas pagas subornos de proteção, as mulheres não podem portar jóias nas ruas, correr ou andar de bicicleta em parques públicos é quase impossível, mesmo tomar um transporte público é tarefa arriscada. Nos Estados Unidos, embora a grande separação social existente, parece haver ainda capacidade de absorver os conflitos sociais não obstante a existência de milhares de condomínio privados, autosuficientes, murados e vigiados o que revela um profundo temor. Por quanto tempo ainda poderá durar esta relativa tranqüilidade? Em escala global há poucos vencedores e muitos perdedores. A ira dos pobres aumenta em todas as partes,

fomentada pelos meios de comunicação que exigem mais e mais consumo, mostrando opulentos estilos de vida. Milhões de pessoas crêem nestas publicidades e crêem que uma minoria se apropriou injustamente das riquezas, e que a maioria também a merece. Alerta George que estas grandes massas de excluídos, cedo ou tarde procurarão compensar a situação. Os meios que escolherão podem ser diversos: desde o suicídio individual à migração maciça, desde protestos políticos e manifestações pacíficas à criação de milícias armadas e ao terrorismo aberto. Assim os excluídos – que são maioria absoluta – poderão invariavelmente, desestabilizar o sistema. 4) O gansterismo – O crime em grande escala é uma ameaça a atividade econômica legítima. A alguns anos, desde o fim do império soviético e da adoção da China de alguns aspectos da economia de mercado, que as máfias – ou como prefere George, o capitalismo gangster – tomou o controle de grandes zonas mundiais e ameaçam tomar muito mais. Esta ‘economia paralela’, baseada no narcotráfico, no contrabando, na lavagem de dinheiro e na corrupção de todo tipo, manipulam bilhões de dólares e atraem novos adeptos a cada minuto. Segundo Martin & Schumann162, somente dentro do G 7, as sete nações mais ricas do mundo, de 1970 a 1990, cresceu mais de 20 vezes o volume de venda de heroína e 50 vezes o comércio de cocaína. Quem sabe vender drogas tem condições de dominar qualquer outro mercado ilegal. Cigarros, armas, automóveis roubados, imigrantes ilegais disputam com o tráfico de drogas a posição de principal fonte de renda da economia clandestina. Na Europa, o desenvolvimento do contrabando do cigarro é uma prova concreta do poder das multinacionais do crime. Até o início da década de 90 a evasão de impostos sobre o tabaco era principalmente um problema italiano. A partir de então surgiram organizações rigidamente administradas no mercado interno Europeu. O déficit em arrecadação de impostos em toda Europa é calculado hoje entre 7 e 9 bilhões de dólares. O crime organizado está hoje no ramo da economia que mais rápido se expande no mundo gerando lucros anuais superiores a 700 bilhões de dólares e estudos realizados demonstram a tendência de aumento especialmente nos crimes de tráfico de trabalho escravo, aluguel ilegal de mão de obra, receptação de automóveis roubados e extorsão de taxas de proteção. Segundo dados da ONU, desde a década de 80 o crime organizado é a indústria que mais cresce no mundo. No 162

MARTIN, Hans-Peter & SCUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 288-289

10° Congresso para a Prevenção ao Crime e Tratamento dos Criminosos, realizado em Viena, de 10 a 14 de abril de 2000, sob o patrocínio da ONU, representantes de 188 países tomaram conhecimento de estudos realizados pela ONU que concluíram que o crime internacional organizado movimenta mais de l trilhão de dólares por ano. Sua espantosa disseminação em escala planetária se deve em grande parte à globalização, às políticas liberais e aos avanços tecnológicos em áreas como as telecomunicações. O delito mais lucrativo continua sendo a tráfico de drogas, que fatura em torno de 400 bilhões de dólares/ano. Apesar de seu fantástico poder financeiro e de dominação de consciências, não é esta, segundo estudos da ONU, a modalidade criminosa de mais rápida disseminação no mundo. O maior incremento aponta para o tráfico de seres humanos, particularmente de crianças e mulheres, para a escravidão econômica e a prostituição. O delito de maior potência é, sem dúvida o digital, via internet. Dele se pode afirmar que apenas está dando os primeiros passos ainda que já movimente algo em torno de 500 milhões de dólares anuais163. Com tudo isso formam-se impérios clandestinos, que já dominam regiões do mundo, fora da jurisdição de qualquer Estado. Podem contratar qualquer mão de obra que necessitem, inclusive exércitos privados. Assim vão adquirindo não somente poder econômico, mas também militar e estratégico, a ponto de afrontar ao próprio Estado. George lembra a existência de rumores de que um poderoso barão da droga chantageou a um Estado sul-americano, ameaçando abater aviões civis/comerciais com mísseis comprados no mercado negro, caso seguisse a ‘pressão’ do Estado contra suas atividades164. É assim que a desregulamentação, um fim desejável em si mesmo, poderia frustrar sua própria finalidade. O grande capital acumulado pelo crime organizado pode converter-se em algo autenticamente explosivo, um perigo claro e presente para o sistema legal de mercado. Se o capital gangster suplantar o das empresas legítimas, as normas de concorrência tradicionais cairão por terra e o terrorismo empresarial estará implantado. Como se observa, são ameaças presentes e reais, mas ameaças à manutenção do sistema por um longo período, não para sua implantação, que já é presente.

163

“A globalização do crime” Zero Hora. 11.04.2000. p. 16. Segundo o Instituto Small Arms Survey, o comércio legal de armas pequenas e armamento leve, gira em torno de U$ 4 bilhões ano, mas a estima que outro tanto é comercializado no mercado paralelo. 164

3.1.5 A Terceira Via Por fim, a globalização está aí, não há como negá-la. Os arautos da modernidade trombeteiam a chegada de uma nova era, que combinara a estabilidade política com a abundância econômica – a era da globalização. Os nostálgicos do socialismo soviético lamentam a chegada de uma nova era, que combinara a hegemonia das potências capitalistas com a pobreza das massas trabalhadoras – a era da globalização. Estão de acordo que a nova era marca uma profunda mudança no Estadonação, sua submissão e dos territórios nacionais às forças internacionais da globalização. É neste cenário que surge uma ‘terceira via’, expressão comum nos anos 20 entre grupos de direita, mas a usaram também os social-democratas e os socialistas. No período pós-guerra, os social-democratas estavam convencidos de que haviam encontrado um caminho distinto e alternativo ao capitalismo norte-americano e ao comunismo soviético. A internacional socialista, no momento de sua fundação (1951) também se referia expressamente a terceira via com este sentido. Durante os anos 70 a terceira via tinha a conotação de um socialismo de mercado. Ao final dos anos 80 os social-democratas europeus muito se referiam a ela como uma importante renovação pragmática. A terceira via, portanto, representava um marco de pensamento e políticas práticas que buscavam adaptar a social-democracia a um mundo que mudava muito rapidamente e tornava-se mais pragmático. Como diz Giddens “é uma terceira via enquanto tentativa de transcender, tanto a antiga social-democracia como ao neoliberalismo”165. Trata-se, portanto, de uma política de meio termo, não liberal nem paternalista. Enquanto a social-democracia clássica considera a criação de riquezas quase como um acessório de suas preocupações básicas de segurança, e redistribuição econômica, por outro lado os neoliberais se preocupam exclusivamente com a competitividade e a geração de riquezas; mas a política de terceira via, sugere uma economia mista – diferente da antiga economia mista que implicava na separação do Estado e os setores privados, e com uma grande parte da indústria sob o controle público. A nova economia mista, diz Giddens, busca um ponto comum entre setores 165

GIDDENS, Anthony. The third way. Op. p. 37

públicos e privados, aproveitando o dinamismo dos mercados, mas tendo em conta o interesse público166. Requer um equilíbrio entre regulação e desregulação, tanto a nível nacional como transnacional e local e um equilíbrio entre o econômico e a vida social. Também deve a terceira via ajudas aos cidadãos a conduzir-se com segurança neste novo mundo, tendo em vista principalmente a globalização, as transformações da vida pessoal e as relações do homem com a natureza. Seus valores: a igualdade, a proteção aos mais fracos, liberdade com autonomia, nenhum direito sem responsabilidade, nenhuma atividade sem democracia, pluralismo cosmopolita e conservadorismo filosófico. Nesta nova política, a globalização seria vista como um fenômeno positivo; responderia ao protecionismo econômico e cultural – discurso da extrema direita – que vê a globalização como uma ameaça a integridade nacional e aos valores tradicionais. É evidente que a globalização econômica pode trazer alguns efeitos destrutivos a auto-suficiência local, mas o protecionismo não é nem sensato nem desejável. Entretanto, pelo perigo que apresenta ao poder social e cultural, não se aprovaria a globalização em qualquer circunstância, suas conseqüências mais gerais seriam sempre examinadas. Em resumo, a globalização não seria identificada unicamente com o livre comércio, o social e o cultural também devem participar. Não se podem negar as enormes transformações na vida pessoal moderna; a política de terceira via teria que preocupar-se com a justiça social e com o Estado de Bem-estar, mas avaliando suas críticas, especialmente as da direita. Abandonando o coletivismo, apresentaria uma nova relação entre o indivíduo e a comunidade – redefinindo direitos e deveres. Nesta nova sociedade, que teria dois lemas – o primeiro: nenhum direito sem responsabilidade - o Estado assume uma série de responsabilidades para com os cidadãos, mas ao contrário da antiga social-democracia, estes direitos não seriam exigências incondicionais. O cidadão, por sua vez, deve ser ativo, por exemplo, em caso de desemprego, tem a obrigação de buscar ativamente um novo trabalho. O Estado deverá criar mecanismos para que o sistema de Bem-estar não desestimule a competitividade. Na política de terceira via os benefícios seriam estendidos a todos e não – como comumente pensa a direita – somente aos que necessitam de Bem-estar. O segundo lema seria: nenhuma autoridade sem democracia. 166

Idem. p. 119.

Políticos e pensadores de direita sempre defenderam que sem tradição e formas tradicionais de respeito, a autoridade desmorona. – as pessoas perdem a faculdade de diferenciar entre o que esta certo e o que esta errado. A terceira via se oporia a esta concepção. Em uma sociedade onde a tradição e o costume estão perdendo forças, o único caminho para restabelecer a autoridade é a democracia. O novo individualismo não coroe a autoridade, mas exige que se configure em uma base participativa. Quanto a relação homem x natureza, reconhece a terceira via que o processo de modernização é essencial, mas a modernização em todas as áreas, em especial a modernização ecológica, que é a consciência dos problemas e limites dos demais processos modernizadores. A modernização não é o oposto do conservadorismo, a nova sociedade deverá usar as ferramentas da modernidade para poder conviver em um mundo que está além da tradição e do outro lado da natureza, onde o risco e a responsabilidade formam uma nova mescla. Bill Clinton e Tony Blair referiram-se expressamente a terceira via em suas campanhas eleitorais. Luis Inácio Lula da Silva e outros líderes de esquerda a denominaram ‘governança progressista’. No poder, Clinton se esforçou para acabar com o pouco do sistema de Bem-estar que ainda havia em seu país, afinando sua política com a dos conservadores neoliberais. Por sua vez o novo trabalhismo de Blair preservou e aprofundou a política econômica de Thatcher, enquanto Lula, em seus discursos segue defendendo os interesses pragmáticos de governo. Ao que parece, razão total aos críticos desta nova alternativa: em sua nova versão, a terceira via é apenas um neoliberalismo requentado.

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