Ginzburg - Os Andarilhos Do Bem - Resenha..docx

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GINZBURG, C. Os Andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Matheus Valdemir Germino. Graduando em História – UNESP/Assis. Carlo Ginzburg nasceu em Turim, Itália, no ano de 1939. Cresceu em um ambiente extremamente intelectual, sendo seu pai um ex-professor de literatura russa que lutou contra o fascismo, morto na prisão em 1944. Sua mãe uma celebre romancista, Natalia Ginzburg, foi fortemente reconhecida no âmbito literário italiano. Ginzburg estudou na Scuola Normale Superiore de Pisa, onde graduou-se em História e Antropologia. Foi durante muito tempo professor titular de História Moderna na Universidade de Bolonha, considerado um dos maiores intelectuais do século XX. Entre suas contribuições de grande impacto na historiografia cultural moderna, estão: Os Andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII (1966), O queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição (1976), História Noturna: Decifrando o Sabá (1991), Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História (1989), Relações de Força (2001), Olhos de madeira (2003), O fio e os Rastros (2007) e Medo, Reverência, Terror (2014), entre outros ensaios que compõem uma série de estudos desafiadores e inovadores acerca do sentido da história e do ofício do historiador. A obra, cujo titulo original, I benandanti: stregoneira e culti agrari tra cinquecento e seicento, publicada em 1966, fora traduzida com qualidade, mostrando uma fidelidade que poucas vezes se manifesta. A pesquisa surgiu para atender a uma grande lacuna da historiografia acerca das atitudes religiosas dos séculos XVI e XVII, e é bastante desafiadora na medida de seu arquétipo ser de método único, uma reconstrução de micro-história, que é realizada com fantástica erudição, possibilitando a compreensão de conjuntos de crenças folclóricas populares friulanas e como ocorre sua assimilação com as práticas de feitiçaria. “Trata-se de um episódio até hoje desconhecido, que lança muita luz sobre o problema geral da bruxaria e de sua perseguição” (GINZBURG, C. 1988. P. 7). Ginzburg utilizou como fonte uma série de documentos textuais, considerados tipologicamente processos inquisitoriais da região friulana, uma rica documentação que permitiu ao historiador reconstruir de forma reflexiva os modos de sentir e de pensar dos camponeses dos séculos XVI e XVII. Esta dividida em quatro capítulos, duzentas e cinquenta e cinco páginas, onde são desenvolvidas hipóteses acerca de “atitudes religiosas” ligadas a 1

“mentalidade coletiva”, e o exercício ritualístico de fertilidade, apresentando como apêndice os processos inquisitoriais contra Paolo Gasparutto e Batista Moduco (1575-1581). No primeiro capítulo intitulado As Batalhas Noturnas, são narradas como se iniciou um processo de investigação pelo Santo Ofício a respeito de Paolo Gasparutto, que supostamente seria capaz de curar enfeitiçados e afirmava “vagabundear” pela noite, juntamente a feiticeiros e duendes. Dessa forma, ao ser interrogado, Gasparutto afirma poder combater os malefícios causados por bruxas e feiticeiros e Na quinta-feira de cada um dos quatro tempos do ano, eles deviam andar junto com esses feiticeiros por diversos campos, como Cormons, diante da igreja de Iassico, e até pelo campo de Verona, onde combatiam, brincavam, pulavam e cavalgavam diversos animais e faziam diversas coisas entre si, e as mulheres batiam com caules de sorgo nos homens que estavam com elas, os quais só carregavam nas mãos ramos de erva-doce” (GINZBURG, C. 1988. P.19).

Pode-se observar como esses ritos possuíam um caráter agrário, compondo um conjunto de crenças folclóricas que estavam voltados para a fertilidade das colheitas de trigo. A construção de um discurso demonológico pelo Santo Ofício começa a ser arquitetado, devido à incredulidade dos depoimentos de Gasparutto, que se mostram contraditórios, em relação a outros interrogados. Battista Moduco, por exemplo, afirmou ser benandanti1 em praça publica e “costuma sair à noite, especialmente na quarta feira, para combater com os feiticeiros do mal”. Através de uma série de interrogações chegou-se a conclusão que todos tinham algo em comum em seus discursos, afirmavam ser benandanti e sair à noite em “êxtase” para combater os malandanti2, em prol de uma boa colheita, além disso, para ser uma benandanti era preciso ter nascido “empelicado”. Quanto ao “pelico”, que já declarou ser sinal distintivo dos benandanti, Moduco afirma tê-lo carregado sempre em torno do pescoço, até o momento em que, tendo-o perdido, deixou de sair à noite, já que “aqueles que têm o pelico e não o vestem não vão”. (GINZBURG, C. 1988, P. 31).

Ginzburg mostra ao longo de sua narrativa, que essas interrogações supostamente ocorreram em regiões muito próximas, apontando que muitos depoimentos tinham 1 2

Vocábulo utilizado referente a “andarilhos do bem”, praticantes dos ritos de fertilidade. Termo designado para “andarilhos maléficos” que remete aos feiticeiros que são combatidos pelos benandanti.

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semelhanças e particularidades. No segundo capítulo As Procissões dos mortos, o autor vai mostrar como esse conjunto de crenças remetia ao contato com os mortos, e como pessoas que habitavam a região do Friul serão interpretadas como praticantes de Feitiçarias, pois o “falar com os mortos” foi acrescentado às viagens, em êxtase, noturnas realizadas pelos benandanti sendo associado a uma prática ligada ao demônio. Dessa forma o conjunto de crenças vai sendo direcionado pelo discurso Clerical, que faz a ligação de que “[...] quem vê os mortos, quem caminha com eles, é um benandanti”. (GINZBURG, C. 1988. P.61). É possível perceber claramente como essas crenças populares, simbólicas, que pertenciam a uma determinada região foram interpretadas de acordo com uma mentalidade do tribunal do Santo Ofício, ou seja, não estavam configuradas nos moldes do cristianismo, por isso eram vinculadas ao pacto com o demônio. “[...] O mito dos benandanti liga-se, portanto, por múltiplos laços, a um conjunto de tradições, mais vasto, largamente difundidas durante quase três séculos, numa área bem delimitada (...)”(GINZBURG, C. 1988. P. 83). O historiador Jean Delumeau, em um grande estudo, História do Medo no Ocidente: 13001800, uma cidade sitiada, acrescenta de forma evidente como a figura do demônio foi construída no imaginário coletivo, despertando uma onda de concepções “assustadoras” dentro da Europa ocidental. Delumeau destaca o papel da imprensa nesse processo de compilação imagética do demônio. Todavia, na obra de Ginzburg essa interpretação é realizada através do discurso retórico, da pressão, tortura e um psicologismo intimidador do Santo Ofício, levando a construção demonológica das crenças friulanas. Essa questão será abordada no capítulo três, Os benandanti, entre inquisidores e bruxas, engendrando uma série de hipóteses, que irão relacionar os benandanti como adeptos dos rituais de orgia dos feiticeiros. O Santo Ofício se via obrigado a encontrar nas confissões dos benandanti realizações heréticas, desse modo, num curto período de tempo as crenças relacionadas aos benandanti se difundem já com as unificações incorporadas, mostrando o forte poder do discurso do Santo Ofício, no sentido de penetrar na “mentalidade coletiva”. Ginzburg explica as associações às crenças populares através de um “intercâmbio” cultural entre as comunidades das regiões, e as resignificações que as crenças sofrem, modificadas pelo discurso de demonolatria empreendido pela ação do Santo Ofício. No Quarto capítulo, Os benandanti no sabá, o autor faz referência à configuração das crenças e sua associação com o sabá, mostrando como mulheres (Ginzburg aborda abertamente a demonização que ocorre em relação à mulher) são acusadas de praticar a cura com a ajuda de práticas “diabólicas”, e o papel do Santo Ofício na elaboração “representativa” 3

da mulher como feiticeira. O estudo de Ginzburg referente à construção da bruxaria e sua associação com o sabá é “esclarecido” metodologicamente em outra obra: História Notura: decifrando o sabá. O próprio autor reconhece que no momento de seu estudo referente aos Andarilhos do bem, ainda não tinha maturidade conceitual e teórica necessária para engendrar apontamentos mais “refinados” acerca da problemática da bruxaria. Só com a pesquisa já bem adiantada encontrei, na base de tentativas, a justificação teórica do que andara fazendo durante anos. Ela está contida em algumas daquelas reflexões extremamente densas que Wittgenstein fez a respeito do Ramo de ouro de Frazer: “A explicação histórica, a explicação como hipótese de desenvolvimento é apenas um modo de coletar os dados a sua sinopse”. É igualmente possível ver os dados em sua relação recíproca e resumi-los numa imagem geral que não tenha a forma de um encadeamento cronológico. (GINZBURG, C. 2012. P. 31.)

Com História Noturna observa-se o aprofundamento teórico, no que diz respeito às atitudes mentais de camadas subalternas, analisadas de forma ampla, como camponeses e mulheres, mostrando os retalhos de crenças, refletindo sobre os mitos que culminaram na reconstrução de um sistema de signos, a partir das “raízes folclóricas do sabá”, focando num arquétipo mitológico que remonta a Grécia arcaica e traça sua sobrevivência no imaginário coletivo da Idade Moderna. Cabe ressaltar o esclarecedor estudo do historiador inglês Keith Thomas, A religião e o declínio da magia: Crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII, que construído através de um método que engloba: 1) antropologia funcionalista, 2) psicológico-social (explicando os motivos pelos quais os participantes do conjunto simbólico dos rituais aceitavam realiza-lo), é considerado um sólido trabalho historiográfico, investigando as particularidades da Inglaterra e sua relação com a bruxaria. Thomas deixa explícitas as diferenças entre os conceitos “feitiçaria” e “bruxaria”, argumentando que essas denominações são aplicáveis a determinados tempo e espaço, assim as práticas de “bruxaria” devem ser analisadas como um desdobramento do conceito de feitiçaria. Se comparado à construção realizada por Ginzburg, o trabalho de Keith Thomas é diverso, entre método e narrativa, esclarecendo como o ofício de historiador realiza-se com observação, crítica, sensibilidade e criatividade, tornando possíveis percepções a diferentes problemáticas regionais de “mentalidade coletiva” e religiosidade. Interessante reconstrução a respeito da temática fora realizada também por Robert Mandrou, na obra intitulada Magistrados e Feiticeiros na 4

França do século XVII, mostrando como fervorosas legislações foram promulgadas pela Inquisição francesa para combater a bruxaria, levando a interrogatórios e torturas, buscando encontrar contatos com o demônio e ligações com práticas de feitiçaria. Fica explicita uma reconstrução que apresenta nova perspectiva, com diferente objeto de um mesmo tema, em determinado espaço e tempo. Os estudos de Ginzburg, nesse sentido, são enriquecedores para a historiografia referente à religiosidade, e para o campo da História Cultural, na medida em que aponta caminhos para a ampliação do problema. Muitas reconstruções referente à bruxaria e feitiçaria, ainda estão para ser realizadas pelos historiadores, que podem encontrar nas considerações do célebre micro-historiador um instigante ponto de partida.

Bibliografia

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GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrérios nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras. 1988.

________________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéais de moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

________________. Hisória noturna: Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.

MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva. 1979.

THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: Crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.

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