Le Monde Diplomatique Beasil - Edicao-140.pdf

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ANO 12 / NÚMERO 140

FALTA DE PROGRAMA

R$ 14,90

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SEGURANÇA PÚBLICA

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ENTREVISTA

O QUE QUER A OPOSIÇÃO NA VENEZUELA?

O PACOTE DE MORO NASCE VELHO

A SOCIEDADE BRASILEIRA SEGUNDO NEY MATOGROSSO

POR JULIA BUXTON

POR MARCELO FREIXO

POR GUILHERME HENRIQUE

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O QUE PENSAM OS MILITARES

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VENEZUELA, ESTADOS UNIDOS E FRANÇA

© Bernardo França

Chegar ao fundo do poço... e continuar cavando? POR SERGE HALIMI*

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pior ainda não aconteceu a ponto de podermos dizer: isto é o pior.” Nos dias que correm, a diplomacia francesa lembra esse verso de Rei Lear. No fim do quinquênio de François Hollande, acreditávamos ter chegado ao fundo do poço;1 alguns previam mesmo um arroubo de orgulho. Afinal, como os Estados Unidos exibiam seu soberano desprezo pelas capitais europeias e seu desejo de fugir às obrigações do Tratado da Aliança Atlântica, por que não se aproveitar disso e deixar a Otan, renunciar à política de sanções contra Moscou e imaginar a cooperação europeia “do Atlântico aos Urais”, com que sonhava o general De Gaulle há sessenta anos? Enfim, livres da tutela norte-americana – e adultos! Ratificando a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino

da Venezuela, a pretexto de uma vacância da presidência que só existe em sua fantasia, Paris, ao contrário, voltou a se pôr a reboque da Casa Branca e deu seu aval ao que, aparentemente, não passa de um golpe de Estado. A situação na Venezuela é dramática: inflação galopante, fome, prevaricação, sanções, violências.2 E mais dramática ainda porque uma solução política se choca doravante com o sentimento de que tanto os que se insurgem contra o poder como os que o perdem podem acabar atrás das grades. Acaso os dirigentes venezuelanos não estariam considerando o caso do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, impedido de candidatar-se numa eleição presidencial que provavelmente venceria e condenado a 24 anos de prisão?

A decisão da França infringe a regra segundo a qual Paris reconhece Estados, não regimes. Ela insufla também Emmanuel Macron a encorajar a política incendiária dos Estados Unidos. É que a proclamação de Guaidó foi inspirada pelos homens mais perigosos da administração Trump, como John Bolton e Elliott Abrams (ver o artigo de Eric Alterman, na p.14). Ninguém mais ignora que o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, informou Guaidó de que os Estados Unidos o reconheceriam... na véspera do dia em que ele se proclamou chefe de Estado.3 Em 24 de janeiro, Macron exigiu “a restauração da democracia na Venezuela”. Quatro dias depois, chegou de ânimo leve ao Cairo, bem decidido a vender armas suplementares ao presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi,

autor de um golpe de Estado rapidamente seguido pelo encarceramento de 60 mil adversários políticos e pela condenação à morte de seu predecessor livremente eleito. Em matéria de política exterior que se pretende virtuosa, ainda poderemos fazer pior? *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Ver Dominique de Villepin, “La France gesticule... mais ne dit rien” [A França gesticula... mas não diz nada], Le Monde Diplomatique, dez. 2014. 2 Ver Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du chaos” [Venezuela, os motivos do caos], e Temir Porras Ponceleón, “Pour sortir de l’impasse au Venezuela” [Para sair do impasse na Venezuela], respectivamente, dez. 2016 e nov. 2018. 3 Cf. Jessica Donati, Vivian Salama e Ian Talley, “Trump sees Maduro move as first shot in wider battle” [Trump encara a atitude de Maduro como o primeiro tiro numa batalha mais ampla], The Wall Street Journal, Nova York, 30 jan. 2019.

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EDITORIAL

A guerra contra os diferentes

© Claudius

POR SILVIO CACCIA BAVA

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omo entender e superar esta polarização e violência que marcam nossa convivência como brasileiros e brasileiras nos dias de hoje? O primeiro passo é olhar para a situação real. Pelo lado do cidadão e da cidadã comuns, o que todos sentem na pele é o desemprego, a precarização do trabalho e das condições de vida, a violência, a discriminação, a frustração, a insegurança. Muitos estão endividados, angustiados, sem poder pagar suas contas. Ao tratarmos da situação atual, não podemos nos esquecer de que o Brasil é dos países mais desiguais do planeta e que 60% dos brasileiros vivem com um salário mínimo. Temos uma desigualdade estrutural, que vem desde os tempos da Colônia e da escravidão, e que não se altera mesmo se a economia for bem. A essa desigualdade estrutural se somam as políticas de austeridade, impostas em escala global pelo capitalismo financeirizado e que são a inspiração do atual governo brasileiro. O segundo passo é olhar para as crenças dos eleitores. Houve uma rejeição aos partidos políticos que dominaram a cena pública nas últimas décadas expressa na pífia votação do PSDB e do MDB nas últimas eleições. Nenhum deles, à exceção do PT, ultrapassou 5% da preferência do eleitor. A estigmatização do PT fazia parte da agenda de Bolsonaro, baseada nos elementos de corrupção denunciados desde o Mensalão e na acusação de

que é um partido de esquerda (?). Mas a corrupção é generalizada. No conjunto, todos os partidos grandes foram acusados de não atender ao que o povo precisa e de roubar descaradamente em prejuízo do bem comum. O tema do combate à corrupção e a luta contra o crime foram centrais para eleger Bolsonaro. Como ficam então os eleitores quando descobrem que a corrupção é praticada há muito tempo pelos Bolsonaros, com todo seu laranjal, e que estes estão profundamente envolvidos com as milícias, incluindo aquela que se supõe que tenha matado Marielle? A corrupção e o crime ocuparam um lugar central na campanha eleitoral para ocultar a imposição das políticas econômicas de austeridade que retiram direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Somada às discriminações e desigualdades históricas que castigam negros, mulheres e pobres de maneira geral, temos uma situação explosiva que atualmente é contida pela imposição do terror por parte de um Estado policial e violento. Os assassinatos e a violência policial que estão sendo postos em prática nas favelas de São Paulo e Rio de Janeiro, assim como nos assentamentos rurais, são expressão dessas políticas do novo governo. O governo atual tem como principal objetivo responsabilizar o PT e a esquerda de maneira geral pela situação de crise econômica e social que vivemos. Para ele, os grandes bancos não têm responsabilidade pela desigualdade existente, mesmo que quase a meta-

de do orçamento público se destine a pagar apenas os juros da dívida pública. E conclama seus seguidores a considerar seus compatriotas que não pensam como eles como inimigos a serem combatidos e mesmo exterminados. Bolsonaro convoca uma luta fratricida, considerando que essa é uma guerra que precisam vencer contra todos os diferentes. E manipulam as informações, criam fake news, para alimentar o ódio: ódio de classe, ódio de gênero, ódio à diferença, ódio ao projeto popular e democrático.1 Com a falência das expectativas e o colapso da confiança por parte das maiorias, ao que se soma o fechamento dos canais de diálogo, os atuais governantes destroem a política e a democracia como espaço de negociação de interesses entre os distintos grupos sociais, optam pela imposição, pela força de suas políticas e abrem espaço para mais violência e opressão. A TV e a grande imprensa, controladas pela elite, desencadearam há anos uma campanha que alimenta o ódio e ataca o PT. Seus programas abertos mostram um país constantemente ameaçado pelo crime organizado, com a população sendo vitimada todos os dias, com uma polícia que se torna a única salvação contra as ameaças cotidianas de quem sai todos os dias para trabalhar. Com medo, a população aceita a violência e os assassinatos praticados pelos policiais. E, como já não se acredita na política, nas verdades que levaram o povo a eleger seus representantes, então tanto faz se

é verdade ou fake news, o que importa é que as falas reforcem sua visão e suas preferências. Se a votação expressou que o povo não queria mais do mesmo, que há uma rejeição ao sistema político como um todo, como fica agora que a alternativa de apostar em Bolsonaro se revela um desastre? Se cabe aos policiais enfrentar o crime, cabe à política enfrentar o ódio. Segundo Jacques Rancière, só elaborando o ódio se poderá disputar terreno com essa lógica de guerra. A politização dessa descrença, dessa situação de mal-estar, “é o melhor antídoto contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros”.2 O caminho que Rancière aponta é o de questionar as causas desse desencanto e frustração, os processos e discursos que alimentam o ódio, e combater de fato o desemprego, as desigualdades e as discriminações. Ao lado disso precisamos encontrar novas formas de convivência, ampliando o espaço público, recuperando o lugar central da política como espaço de negociação, apresentando/ construindo alternativas para que possamos viver bem entre nós e com os diferentes. 1 Doris Rinaldi, “O discurso do ódio, uma paixão contemporânea”. In: Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente (orgs.), As escritas do ódio – Psicanálise e política, Escuta/Fapesp, São Paulo, 2018. 2 Jacques Rancière, “Como sair do ódio?” – entrevista publicada no blog da Boitempo em 10 maio 2016.

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Notas para entender os militares brasileiros na atualidade Ao dar de ombros a formas menos ortodoxas de compor um ministério e ao ignorar em larga medida o funcionamento do “presidencialismo de coalizão” e o mundo da política, o novo governo lançou uma proposta arriscada e suscitou na cabeça de muitos a questão “O que pensam os militares brasileiros hoje?” POR ALEXANDRE FUCCILLE*

istoricamente, a América Latina tem se caracterizado por ser uma região onde as relações civis-militares se desenvolveram de forma bastante atribulada. No caso da experiência brasileira, maior país e economia deste espaço geográfico, isso não foi diferente, particularmente no período republicano, nascido sob o signo da espada ainda no século XIX. Foi a partir da Guerra do Paraguai, também no século XIX, que as Forças Armadas brasileiras passaram a ter crescente importância política e militar. Militar porque as Forças, durante o conflito, verificaram a necessidade de dispor de novas técnicas e processos para que pudessem dar mais eficiência ao desempenho de suas múltiplas tarefas. Passou-se então a perceber a relação entre a organização militar e o grau de desenvolvimento econômico de um país como o nosso, onde eram tão incipientes as bases da industrialização. Até então, as Forças Armadas regulares eram vistas como uma reminiscência da dominação colonial. A percepção da importância de montar uma máquina bélica moderna passou a estar presente no pensamento militar durante os anos que se seguiram à guerra. A partir de então, a corporação militar assumiu uma progressiva influência política à medida que teve uma noção mais crítica de seu papel como a “mais nacional” das instituições de um país tão marcado pelos regionalismos, sem que a mes-

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ma contrapartida e preocupação se desse por parte dos civis. Passados mais de cem anos, o descaso continua, e uma das mais frequentes imagens no senso comum ao falarmos de Forças Armadas e democracia no Brasil pós-ditadura militar é o negligenciamento da questão militar como um plano resolvido e a quase automática vinculação entre a instituição militar e sua adesão aos ideários democráticos. Dada a histórica escassa produção de estudos sobre os militares brasileiros e o descaso que a sociedade nutre pelo tema, é compreensível a representação e aceitação – embora ambas perigosas, a nosso ver – do ideário da questão militar como um problema que não demandaria maiores considerações no contexto pós-autoritário por amplos segmentos da sociedade brasileira. Em uma breve digressão histórica, salta aos olhos – seja como “protetora” da sociedade e/ou do Estado – a proeminência militar ao longo de toda a sua existência independente, especialmente no período republicano. Assim, datas fundamentais da vida política nacional, como 1889 (Proclamação da República), 1893 (Revolta da Armada), década de 1920 (Tenentismo), Revolução de 1930 (fim da República Velha), 1937 (instituição do Estado Novo), 1945 (deposição de Getúlio Vargas), 1954/55 (suicídio de Vargas e contragolpe para a garantia de posse a Juscelino Kubitschek), até

© Rodrigo Leão

O LABIRINTO CASTRENSE

o assalto direto ao poder em 1964 – apenas para citarmos algumas –, não podem ser pensadas sem referência ao aparelho militar. É evidente que a nova realidade pós-1985 é substancialmente distinta da anterior, com a instituição militar no centro decisório do poder. Não obstante, cabe salientar que o término do ciclo militar-autoritário brasileiro decorreu, como sabemos, menos das pressões de uma forte e articulada sociedade civil exigindo o retorno à normalidade democrática do que do projeto distensionista elaborado por um setor das Forças Armadas. De outra parte, diferentemente de países como a vizinha Argentina, onde literalmente houve um colapso do sistema, a transição no Brasil foi negociada “pelo alto”, fazendo que isso viesse a se refletir no futuro modelo de relações civis-militares que temos até os dias de hoje. Ora, o que estamos querendo dizer com isso? As duas últimas décadas do século XX representaram momentos decisivos na trajetória da sociedade brasileira. O término da Guerra Fria, crises internacionais sucessivas e o avanço do processo de globalização/mundialização determinaram pressões que se traduziram numa drástica redefinição da agenda pública, notadamente no que se refere às características políticas e econômicas do país. “Transição” e “democratização”, programas de estabilização econômica, reformas neoliberais orientadas para o mercado e integração na ordem internacional globalizada tornaram-se as novas prioridades, traduzindo-se numa reorientação das políticas públicas que seriam postas em prática pelos governos do período pós-autoritário. Dadas as peculiaridades e singularidades da profissão militar, ao lado do forte esprit de corps1 que a instituição possui, muitas vezes o controle civil tem sido dificultado em nome de um conhecimento tecnocrático exclusivo que leva os militares a reclamarem autonomia perante qualquer controle externo. Aqui entra um problema fundamental. Por exemplo, mais do que apenas verificar se um dado país possui ou não um Ministério da Defesa (em nosso país, foi criado em 1999, sob

Fernando Henrique Cardoso, com a extinção do Estado-Maior das Forças Armadas e a transformação dos antigos ministérios militares em Comando do Exército, da Marinha e da Aeronáutica), há que estar atento aos moldes deste, ou seja, que áreas são por ele efetivamente controladas e com civis à frente. Em outras palavras, quem manda e em quais atividades. Nessa direção, o quadro da nova estrutura institucional brasileira é desolador, mesmo após duas décadas de sua criação.2 Contudo, ao menos desde o governo FHC (1995-2002) temos observado um maior destaque com respeito aos temas da caserna, ora com avanços, ora com recuos e/ou hesitações. Se por um lado sob FHC tivemos a aprovação da Lei dos Desaparecidos (importante passo, mas ainda insuficiente ajuste de contas com o passado), a publicação de uma inédita Política de Defesa Nacional (PDN) em 1996 e a criação do Ministério da Defesa em 1999 – apenas para citar os principais acontecimentos –, por outro assistimos a uma perigosa banalização das missões internas das Forças Armadas (rotineiramente empregadas em missões típicas de polícia)3 e a um acentuado processo de sucateamento de seus meios materiais, entre outros desatinos. No governo Lula (2003-2010), por seu turno, não foi muito diferente. Ao lado de admiráveis melhorias e iniciativas, como importantes programas de reaparelhamento e fortalecimento das Forças (na casa de alguns bilhões de dólares), recomposição de parcela importante dos soldos, orçamentos crescentes, a revisão da PDN e o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (END), em 2008, bem como o estabelecimento de parcerias estratégicas com outras nações e a iniciativa de criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), tivemos episódios lamentáveis, como a saída do ministro José Viegas Filho (em vez da demissão do saudosista comandante do Exército como seria o correto naquele episódio), um descaso com o fortalecimento da direção política civil sobre os militares que se refletiu na nomeação para a pasta de nomes absolutamente sem nenhuma familiaridade

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nem – ainda mais grave – desejo de conhecer a temática (José Alencar e Waldir Pires), emprego das tropas em questões de segurança pública em duração muito maior do que a desejável, e assim por diante. Já o primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), por sua vez, a despeito de ter tido na maior parte do tempo como ministro da Defesa o notável ex-chanceler Celso Amorim, foi frustrante sob vários aspectos ao não fazer avançar a agenda herdada de seu antecessor e padrinho político e levando-se em conta o histórico de vida pessoal da própria chefe de Estado e o que ela sofreu nos porões da ditadura militar. Do lado da sociedade civil, tampouco assistimos a qualquer tipo de pressão para a publicização e aprofundamento de uma agenda que contemplasse a questão do controle civil democrático sobre os militares, mesmo após a criação em 2011 da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que incomodou profundamente os militares. Antes, pelo contrário, continuamos a assistir a um lamentável crescente emprego das Forças Armadas em questões de segurança pública. Em seu segundo mandato (2015-maio/2016), já de início conflagrado por uma oposição golpista que não aceitava a derrota nas urnas, mais do mesmo. Todavia, apesar do perfil discreto dos militares ao longo do chamado processo de impeachment – o que não deve ser confundido como ausência de consulta a esses atores fardados, seja pela direita, seja pela esquerda –, maio de 2016 assinalaria um ponto de inflexão. Nesse mês, em uma “RESOLUÇÃO SOBRE CONJUNTURA” do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, menos de uma semana após o golpe e apeamento da Presidência da República da primeira mandatária de nossa história, num tardio e extemporâneo mea culpa dos treze anos de governo, líamos que “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de [...] modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista”.4 Apesar do diagnóstico correto, que muitos especialistas civis da área alertavam fazia tempo, estava dada a senha para o divórcio definitivo entre as Forças Armadas e o PT. A partir de então, com um governo impopular e de legitimidade contestada como o de Michel Temer, veríamos a influência militar crescer significativamente. Sob o governo Temer (2016-2018), os pontos altos seriam a recriação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – com status ministerial, muito mais fortalecido que a estrutura anterior (em especial na área de inteligência) e sob a direção do prestigiado e influente general Sérgio Etchegoyen –, a revisão dos documentos de alto nível

político atinentes à Defesa (Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional),5 a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro sob liderança militar de fevereiro a dezembro de 2018 e o orçamento e execução orçamentária num contexto de forte restrição fiscal e vigência da “PEC do Teto dos Gastos” na Defesa e nas três Forças de causar inveja aos reles ministérios civis (com seus custeios e investimentos fortemente contingenciados). Ou seja, a fatura estava sendo régia e rigorosamente paga em dia. Enfim, chegamos a 2018, ano de eleições presidenciais e data que não deixará melhores lembranças aos democratas e às forças progressistas. A preocupação central por parte da corporação militar foi, mais do que qualquer coisa, impedir a vitória de um candidato petista (fosse ele o ex-presidente Lula ou aquele que o acabou sucedendo na chapa presidencial, Fernando Haddad). Dos militares, sempre off the record, era comum ouvir que, em um eventual novo governo do PT, eles voltariam com “sangue nos olhos”, endossando um sentimento manifestado anteriormente pelo então comandante do Exército, o general Villas Bôas, e outros colegas de generalato.6 E assim eles agiram, seja por meio da famosa postagem do Twitter de 3 de abril de 2018, lida ao final do Jornal Nacional, a qual veladamente ameaçava as instituições na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula pelo Supremo Tribunal Federal (STF),7 seja no desembarque maciço na candidatura à Presidência do capitão reformado do Exército Jair Messias Bolsonaro.8 Em um processo eleitoral sui generis, marcado pelas fake news, pelo antipetismo exacerbado e pela ausência de um debate amplo com a sociedade, combinado a um atentado repudiável que blindou e humanizou o “capitão”, gerando-lhe enorme espaço de mídia positiva (em vez dos oito segundos de que dispunha em rádio e TV), Bolsonaro – com seu vice, o general Hamilton Mourão – sairia vencedor em outubro de 2018. De lá para cá, o anúncio da composição de seu governo, com uma proporção de militares no primeiro escalão considerada inédita mesmo levando em conta o período da ditadura militar e um entorno palaciano cuja única figura civil a ocupar um cargo de primeiro escalão é o cambaleante ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni,9 surpreendeu mesmo os mais céticos. Ao dar de ombros a formas menos ortodoxas de compor um ministério e ao ignorar em larga medida o funcionamento do “presidencialismo de coalizão”10 e o mundo da política, o novo governo lançou uma pro-

posta arriscada e suscitou na cabeça de muitos a questão “O que pensam os militares brasileiros hoje?”. Quando olhamos retrospectivamente, podemos perceber que, mais de meio século após o golpe que levou os militares diretamente ao centro do poder decisório, esses atores hoje são distintos. Fim da Guerra Fria, intensificação da globalização/mundialização acompanhada de desregulamentação financeira, entre outros atributos da atual era, parecem ter deixado no passado a ideia de “projeto nacional” tradicionalmente tão cara aos militares e/ou à defesa do Estado como indutor do desenvolvimento. Outro ponto a destacar é que, distintamente do que assistimos até o golpe de 1964, em que claramente tínhamos no interior das Forças Armadas brasileiras uma disputa entre “progressistas” versus “conservadores”, ou “nacionalistas” versus “entreguistas”, o expurgo subsequente11 e o controle férreo sobre o processo educativo não deixaram espaços para voltarmos a ter um “Almirante Negro” como João Cândido, um “Cavaleiro da Esperança” como o capitão Luís Carlos Prestes, um marxista da cepa do general Nelson Werneck Sodré, entre outros. Os militares atuais, notadamente do Exército, que têm tomado a liderança desse processo, são oficiais brancos, católicos e de orientação liberal, que veem pouco espaço para um protagonismo internacional maior por parte do país e parecem aquiescer com uma inserção subordinada no sistema internacional, a despeito de juras de amor eterno à nação e frases de efeito como “Brasil acima de tudo”.12 Nessa direção, em um governo com ministros civis extremistas e tresloucados, que carece de direção política, mas tem uma forte âncora no pilar econômico ultraliberal capitaneado pelo Chicago boy Paulo Guedes, os militares parecem jogar um papel de “poder moderador” e ofertar alguma previsibilidade às ações futuras de um chefe do Executivo visto como despreparado, de arroubos autoritários e sob forte influência de um entourage familiar perigoso. Nessa complexa equação e simbiótica relação, na qual Bolsonaro usou o Exército e tem sido usado por ele, os militares estão de volta, agora pela força do voto. A possibilidade de reescrever a história – em que se veem maculados pelo que chamam de “revanchismo”, que insistiria que houve golpe, ditadura, tortura e desaparecidos políticos, em vez de lhes agradecerem por terem impedido o Brasil de transformar-se numa “grande Cuba” –, garantir vultosos recursos aos programas estratégicos das Forças e preservar seus privilégios (como prerrogativas não condizentes com uma democracia madura – por exemplo, grande autonomia na atuação de seus

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serviços de inteligência –, além de suas precoces e generosas pensões) anima esses atores e está no centro dessa decisão de participar de um governo de extrema direita militarizado, num fenômeno que lembra, mas é distinto do que foi a tutela militar vivida no governo José Sarney (o primeiro civil após 21 anos de ditadura militar).13 A tentativa, por meios indiretos, de acabar com Lei de Acesso à Informação por Mourão quando esteve à frente do exercício da Presidência em janeiro último, permitindo a extensão de uma cultura de sigilo injustificável que ampliaria a funcionários comissionados e de segundo escalão o poder de impor sigilo a documentos públicos, mostra que eles não estão para brincadeira.14 Contudo, as cabeças oriundas da caserna – cartesianas por natureza e muitas vezes voluntaristas – terão dificuldades em moldar-se ao universo da política, um terreno movediço, plural, e de ética e gramática substantivamente distintas da militar. Os primeiros resultados da interação Executivo-Legislativo têm sido prolíficos nesse sentido. Enfim, toda a participação militar no governo Bolsonaro (além dos ministros já citados, cerca de uma centena de pessoas com boa formação técnica e origem nas Forças Armadas ocupando cargos de direção e assessoramento superior) é uma aposta arriscada, e, ciosos dos riscos que correm e do pensamento estratégico que orienta suas atividades profissionais ao longo de uma vida, esses atores fardados não parecem dispostos a comprometer a alta credibilidade de que goza o aparelho militar junto à opinião púbica. A despeito da gratidão explicitada na transmissão de cargo de ministro da Defesa, em 2 de janeiro, quando Bolsonaro afirmou ao general Villas Bôas que “o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, e recebeu como resposta um sorriso e aceno de cabeça do seu hoje subordinado que despacha no GSI (comandado pelo general Augusto Heleno), esse não parece ser um pacto de sangue. Mais ainda: o backup em caso de um eventual impedimento do presidente Jair Bolsonaro, com a posse do general Mourão,15 sairia muito mais ao gosto da alta oficialidade agora tendo um dos seus no comando direto da República. Ao mesmo tempo, nem o Exército nem as Forças Armadas são instituições monolíticas. Concretamente, ainda é muito cedo e difuso o cenário para definir o papel que caberá aos militares na condução do atual governo, recordando que o Estado é um complexo aparelho burocrático e normativo, com uma não desprezível rigidez e inércia quanto a novos processos e composto de três poderes (Executivo, Legislativo

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e Judiciário) nem tão independentes e tampouco harmônicos como pudemos acompanhar nos últimos tempos. O que é certo é que o núcleo duro do comprometimento do establishment para com a eleição de Bolsonaro e o desmonte do Estado e de políticas públicas inclusivas, acompanhado de uma perversa reforma da Previdência que tolherá direitos dos mais humildes e menos aquinhoados para a manutenção de um insaciável sistema financeiro, seguirá adiante, com o apoio da grande mídia e dos partidos da ordem (obviamente, com os militares em larga medida preservados em seus direitos e sua “missão” de protetores da nação). Em paralelo, a subordinação militar ao poder civil e à direção política sobre os fardados seguirá como uma tarefa pendente em nossa frágil democracia tupiniquim. Tempos nada alvissareiros se avizinham! *Alexandre Fuccille é doutor em Ciência Política e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed) de 2014 a 2016 e trabalhou no Ministério da Defesa de 2003 a 2005.

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1 Espírito de corpo corresponde à visão corporativa, de grupo, que transcende a corporação no sentido administrativo. O termo traduz uma visão de “alma” institucional. Huntington, em sua obra clássica da década de 1950, afirma que a corporatividade faz os militares pensarem em grupo, diferentemente dos profissionais civis, que pensam individualmente. Para mais detalhes, ver Samuel Huntington, O soldado e o Estado: teoria e política das relações entre civis e militares, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 1996, p.28 e seguintes. 2 Para piorar, de forma inédita, desde fevereiro de 2018 temos tidos militares – ainda que da reserva – como ministros da Defesa. 3 A base legal para tal emprego na segurança pública neste e em outros governos é parte do artigo 142 da Constituição Federal, que prevê que elas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Conceitos fluidos como “lei” e “ordem”, que variam enormemente conforme a perspectiva político-ideológica, podem representar um inapropriado risco à democracia, permitindo que o aparelho militar seja empregado em defesa do governo (vide a greve dos petroleiros de 1995 e os episódios de tentativa de invasão da fazenda dos filhos de FHC por parte do MST), e não do Estado, como deveria ser. 4 Disponível em: . 5 Aqui, em contraste com a orientação anterior de tais documentos, era relativizada a importância da América do Sul como entorno estratégico, e antigas parcerias estratégicas, como com os Estados Unidos e a Europa, eram apontadas como necessárias de serem reavivadas e incrementadas. 6 Vale a pena conferir “Mal-estar na caserna”, a reveladora entrevista de março de 2018 com o comandante do Exército e seus assessores, na Piauí. Disponível em: .

7 O habeas corpus foi negado por seis votos a cinco (cujo voto da ministra Rosa Weber surpreendeu em razão de posicionamentos anteriores). Posteriormente, em entrevista, o então comandante do Exército frisou: “Nós estivemos realmente no limite, que foi aquele tuíte da véspera da votação no Supremo da questão do Lula. Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite”. Todavia, ainda segundo Villas Bôas, o episódio rendeu críticas do “pessoal de sempre, mas a relação custo-benefício foi positiva”. Folha de S.Paulo, 11 nov. 2018. 8 Vale lembrar que o deputado fluminense em suas quase três décadas como parlamentar sempre foi tido como um político do “baixo clero”, com seu mandato basicamente centrado em demandas militares corporativas e reivindicando soldos maiores à sua categoria, com bom trânsito entre praças e graduados, mas sem penetração entre oficiais superiores e oficiais-generais, pelos quais era visto com suspeição dado seu fraco e folclórico desempenho parlamentar e prisão por indisciplina no passado. Efetivamente, essa leitura alterou-se ao longo de 2018. 9 Atualmente, dos 22 ministros de Estado, oito são militares, ou seja, mais de um terço do total. Mesmo à época do presidente general Ernesto Geisel, que chegou a ter dez ministros militares, é preciso recordar que entre estes estavam os quatro ministérios militares (Exército, Marinha, Aeronáutica e Estado-Maior das Forças Armadas), que foram extintos em 1999 com a criação do Ministério da Defesa, além do Serviço Nacional de Informações (SNI), extinto em 1990, que também tinha status ministerial. 10 Grosso modo, a expressão cunhada por Sérgio Abranches em 1988 sugere que o presidente da República forma seu ministério com integrantes dos partidos da coalizão de governo, de modo semelhante ao que ocorre no parlamentarismo.

Em contrapartida, os partidos oferecem os votos necessários para que o presidente aprove a agenda governamental no Congresso Nacional. 11 É interessante notar que os militares – e leia-se, os de esquerda – foram a categoria social mais perseguida proporcionalmente durante a vigência do regime autoritário de 1964-1985, com milhares expulsos em todos os níveis da hierarquia nas três Forças. Ver Paulo Ribeiro da Cunha, “A Comissão Nacional da Verdade e os militares perseguidos: desafios de um passado no tempo presente e futuro”, Acervo, v.27, n.1, 2014, p.137-156. 12 Esse brado (que recorda o Deutschland über alles, ou “Alemanha acima de tudo”, muito usado durante o nazismo), ainda comum nos quartéis de hoje, originalmente foi criado após a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, num contexto de perseguição aos “subversivos” e outros episódios de triste lembrança, pelo grupo de oficiais paraquedistas Centelha Nativista. Sua apropriação por Bolsonaro e Mourão, ambos com passagem pela Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército, acabou resultando no bordão de campanha “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. 13 “A tutela corresponde a uma manifestação específica do papel militar na preservação da ordem social num momento em que a corporação castrense não se encontra no exercício do poder de Estado, sem no entanto haver perdido a importância orgânica no conjunto dos órgãos do Estado”. Eliézer Rizzo de Oliveira (org.), Militares: pensamento e ação política, Papirus, Campinas, 1987, p.61. 14 A Câmara dos Deputados derrubou o Decreto Presidencial em 19 de fevereiro. 15 Antigo membro do Alto Comando do Exército, colegiado responsável pelas principais decisões da Força Terrestre e que reúne os dezesseis generais de exército/quatro estrelas do Exército brasileiro.

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OS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA E A (IN)SUBORDINAÇÃO DOS MILITARES AO PODER CIVIL NO BRASIL

Somente para meus olhos Há uma dificuldade institucional e corporativa das Forças Armadas no Brasil em compreender e aceitar a subordinação ao poder civil. Isso se reflete no histórico engajamento político de militares e na relutância em conectar os serviços de inteligência do país aos três poderes, o que enfraquece nossas experiências democráticas POR LUCAS PEREIRA REZENDE*

subordinação dos militares ao poder civil é unanimidade nos estudos acadêmicos sobre relacionamento civil-militar em regimes democráticos. Não há democracia sólida se os militares não aceitarem e serem comandados de fato por um poder civil. A lógica é que as instituições civis, ao representarem o desejo popular, definem a política a ser seguida. Aos militares, cabe o papel de executar essas políticas, sejam elas quais forem. Esse balanço é o que garante o equilíbrio dos que controlam a estabilidade constitucional e a soberania nas democracias. Esse equilíbrio jamais ocorreu no Brasil – e agora se distancia ainda mais com a quantidade de militares ocupando cargos-chave no governo de Jair Bolsonaro. Nossos militares – originalmente a elite colonial e, posteriormente, imperial – sempre foram agentes políticos domésticos com forte engajamento, atuando como garantidores do status quo político. Ainda que essas ameaças não fossem assim tão claras, a percepção de “estabilidade nacional” vinda dos quartéis prevaleceu no processo de independência de Portugal, na proclamação da República, na implantação e desmonte do Estado Novo e no regime militar de 1964-1985, para citar apenas os principais envolvimentos diretos na política doméstica. Parece haver uma percepção de que existe um despreparo dos civis para a condução dos temas ligados à defesa nacional, o que demandaria uma “tutela” dessas questões pelos militares até que os civis, de fato, se mostrassem preparados. O problema é que esse momento parece nunca chegar – e não é por falta de preparo dos civis. Um dos exemplos disso é o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que reúne os órgãos federais de (contra)espionagem. Ainda que hoje, por decreto de 2018, o Sisbin seja composto por 39 órgãos federais, o principal deles é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), herdeira direta do Serviço Nacional de Informações (SNI), do regime militar. Criado em 1964, imediatamente após o golpe que depôs João Goulart, o SNI sobreviveu até depois do fim do regime. O órgão da ditadura foi dissol-

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vido apenas por Fernando Collor, que criou a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). A Abin foi institucionalizada apenas em 1999, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, no mesmo ano de criação do Ministério da Defesa. Nova no nome, mas velha nas práticas e no obscurecimento. Não que se espere que um serviço secreto seja absolutamente transparente, o que seria um contrassenso à sua atividade fundamental. O estabelecimento da Política Nacional de Inteligência, em 2016, da Estratégia Nacional de Inteligência, em 2017, e do Plano Nacional de Inteligência, em 2018, são passos importantes para a transparência das agências do Sisbin. Mas não são suficientes, em especial pela ausência de controle e supervisão dos serviços de inteligência das Forças Armadas. A falta de subordinação ao poder civil nesse campo é vista em elementos concretos, tais como ausência de supervisão dos gastos, de um marco legal de operação e limites das agências, de um controle contínuo e de uma prestação de contas aos poderes Legislativo e Judiciário. A Abin coleta as informações e as entrega ao Executivo federal, hoje, pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mas as informações ali chegam prontas, sem ciência de como foram coletadas – e o mais agravante: já previamente filtradas. As agências de inteligência brasileiras ainda parecem seguir a mesma política conduzida pelas Forças Armadas para o Ministério da Defesa: isolar e manter o controle. Apesar de todo o organograma, o ministério é ainda fraco institucionalmente e atua apenas nos espaços deixados pelos comandos independentes das três Forças. Exemplo disso é a incapacidade, mesmo já com duas décadas de existência, de controlar o orçamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que seguem operando independentemente uns dos outros, em larga medida. Essa liberdade dos serviços secretos é problemática porque a desconexão entre a prática de coleta de informações e o propósito político para uso delas as torna inócuas ou, pior, objeto de manipulação do poder. Não tendo ainda saído do espírito estabelecido pelo SNI e

sem uma clara definição e controle de alvos e coletas de dados, nossos espiões podem estar se dedicando muito mais à caça de “subversivos” (termo usado durante o regime militar para denominar todos os opositores domésticos ao governo) do que a agentes ligados ao crime organizado, por exemplo. Enquanto o limite, o escopo e os métodos de atuação dos espiões não forem claramente definidos, haverá uma névoa invisível perigosa à democracia. Há alguns anos, em fóruns anônimos na internet, nossos arapongas reclamavam da precariedade institucional, da falta de propósito e do saudosismo dos anos da ditadura que imperava na Abin. De lá para cá, mudou-se a ave mascote para o carcará. Novo bico, velhas penas.

Enquanto o limite, o escopo e os métodos de atuação dos espiões não forem claramente definidos, haverá uma névoa invisível perigosa à democracia A ausência de um claro controle civil no Ministério da Defesa e nas agências de inteligência reflete a inquietude da caserna brasileira em aceitar esse comando. Se o respeito à hierarquia é um dos princípios fundamentais da formação e atuação militar, esse respeito, em tempos recentes, tem parado no generalato, não chegando ao comandante em chefe e, por vezes, nem mesmo aos próprios comandos das Forças. Isso sem falar no ministro da Defesa, que, com raras exceções, tem papel esvaziado e pouco expressivo no comando dos militares. Exemplos de insubordinação não faltam nos anos recentes, sejam de alta ou de baixa patentes. O maior deles é do próprio vice-presidente da República. Enquanto ainda estava na ativa, em 2015, o general Hamilton Mourão foi demitido do Comando Militar do Sul pelo então comandante do Exérci-

to, general Eduardo Villas Bôas, em razão de declarações que fez chamando, entre outras coisas, de incompetente a então presidenta da República e comandante em chefe das Forças Armadas, Dilma Rousseff. Em 2017, o mesmo Mourão foi novamente desligado do cargo de secretário de Economia e Finanças do Comando do Exército por declarações sobre o “balcão de negócios” do presidente Michel Temer, seu superior constitucional máximo. À época, as reprimendas às insubordinações de Mourão foram criticadas por serem muito brandas, ao que Villas Bôas respondeu que não desejava criar um mártir. Não foi preciso criá-lo, pois o palco político de Mourão o levou (por ora) à Vice-Presidência da República. A mensagem passada à sociedade não poderia ser mais clara: a insubordinação militar e a atuação política na caserna são não apenas toleradas, como também compensam. Não é à toa que Mourão demonstrou tanto interesse em mudar a Constituição Federal, que proíbe a atuação política de militares da ativa e os obriga a respeitar a hierarquia de comando, hierarquia essa que deve ter obrigatoriamente, no posto máximo do Executivo Federal – e, portanto, comandante em chefe das Forças Armadas –, um civil. O princípio da subordinação dos militares ao poder civil não quer dizer que os civis sejam melhores que os militares, e sim o oposto: que os militares não são, per se, melhores que os civis. Essa é a mensagem urgente que deve ser compreendida tanto pela caserna quanto pela sociedade civil se desejamos recompor um regime democrático sólido em nosso país. E, se esse é o desejo, a desmilitarização dos serviços secretos brasileiros e a retirada de sua névoa antidemocrática parecem ficar agora mais distantes com o retorno dos militares ao poder e da militarização da política no Brasil. *Lucas Pereira Rezende é doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É autor de Sobe e desce: explicando a cooperação em defesa na América do Sul, Editora Universidade de Brasília, 2015.

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DIVÓRCIO IDEOLÓGICO ENTRE O MUNDO CIVIL E O MILITAR

A educação nas Forças Armadas Na maioria das escolas, a educação militar segue divorciada do restante da educação do país, o que afasta as Forças das demais instituições públicas e contribui para a instabilidade das relações entre civis, militares e Estado POR ANA PENIDO*

s propagandas eleitorais dos dois principais candidatos à Presidência em 2010, Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), exibiam algo em comum. Em seus currículos, uma história pessoal de combate ao regime militar. Dilma, torturada, e Serra, presidente da UNE quando do golpe. Naquele mesmo ano, o último do governo Lula, a turma de cadetes formandos na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), escola responsável pela formação dos oficiais do Exército brasileiro, homenageou o general Emílio Médici, presidente do período 1969-1974, considerado o de maior violência de todo o regime autoritário. Essa escolha evidencia um distanciamento ideológico entre o mundo civil e o militar, construído essencialmente no ambiente educacional. Tal divórcio quiçá seja a característica mais forte da educação militar. A Constituição de 1988 estabelece que a educação é um direito de todos os cidadãos, sendo dever do Estado e da família promovê-la, devendo ser incentivada a colaboração da sociedade. No artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n. 9.394/1996), por sua vez, consta que “o ensino militar é regulado por lei específica, admitida a equivalência de estudos, de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino”. Isso deu autonomia às Forças Armadas para a elaboração de sua política educacional, proporcionando garantia legislativa para que a educação militar mantivesse formulações distintas e até mesmo antagônicas do restante do sistema educacional brasileiro. Esse domínio reservado é autorregulado, uma área central dos militares para a formação de si próprios. O correto é dizer que cada uma das Forças tem um sistema educacional próprio, formulado de maneira autônoma. Ou seja, temos no Brasil o sistema de ensino da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, e o sistema de ensino civil, o que traz obviamente problemas para qualquer atuação interagências. Existem iniciativas de intercâmbio, mas o principal momento em que os cadetes se encontram são os jogos esportivos militares e outros eventos

© André Valias

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em que se mantém a mesma separação entre as três Forças e é estimulado o espírito de competição entre elas. Tal autonomia foi justificada com o argumento de que o preparo militar não depende do regime político, mas do problema de defesa que porventura exista. Em outras palavras, o que determina como devem ser formadas as Forças Armadas é o tipo de ameaças que pairam sobre a sociedade. Essa é uma visão equivocada! Uma política educacional reveste-se, como seu próprio nome expressa, de caráter político, social e econômico. Assim sendo, a definição de temas, currículos e orientações carrega em si visões de mundo. É inegável o cuidado que as Forças Armadas têm com seu sistema educacional. Muito mais que o ensino, as escolas possibilitam a manutenção de redes corporativas e de valores profissionais. Há um componente formal e oficial, composto de planos de estudos, currículos, horários e perfis, cujo processo de aprendizagem acontece essencialmente na sala de aula. Esse é um processo de ensino, algo mais restrito que a educação. Por outro lado, também existe um componente informal, mas igualmente efetivo, caracterizado, entre outras coisas, pela exposição permanente a situações com forte carga simbólica, da relação com colegas da mesma patente, submissão às ordens de superiores, entre outros. A aprendizagem do “ser militar” é concomitante à diferenciação e separação do mundo civil. Nesse processo, o cadete adquire ferramentas técnicas pa-

ra a administração da violência e os valores para viver toda uma vida militar. Há dúvidas sobre o estudo propriamente do Brasil na educação militar. O amor à pátria é extremamente trabalhado, as tradições são exaltadas, elementos simbólicos como o hino e a bandeira são cultivados. Porém, essa valorização subjetiva do Brasil não é acompanhada na mesma proporção por um estudo objetivo da realidade do país, que aborde a formação do Estado brasileiro, as raízes culturais e raciais do povo, a estrutura econômica e a própria participação dos militares na construção dessa história. Essa defasagem contém três riscos. O primeiro é a ideia de uma pátria ideal, distante da que existe de fato. O segundo é considerar o país insuficiente e incompleto diante de outras potências mundiais, pois sua realidade é vista de forma descontextualizada de seus interesses e de sua história. O terceiro é a não identificação da corporação com o povo do território que ela defende, o que dificulta a construção de uma cultura de defesa efetivamente nacional e abre espaço para todo tipo de conduta autoritária. Existem alguns exemplos de espaços de aprendizagem divididos por civis e militares, como o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME), mas são absolutas exceções. Essa separação também se torna menor com o decorrer da carreira, quando alguns ambientes de exercícios ou estudos de pós-graduação são compartilhados.

Entretanto, essa interação na pós-graduação é de mão única – apenas os militares podem fazer escolas civis e ter a equivalência de ensino. Na maioria das escolas, contudo, a educação militar segue divorciada do restante da educação do país, o que afasta as Forças das demais instituições públicas e contribui para a instabilidade das relações entre civis, militares e Estado. Por fim, a educação militar é fortemente impactada pela diversidade de funções que o oficial é chamado a cumprir atualmente. As dificuldades técnicas no manejo das diferentes funções são um problema menor do que, por exemplo, a exigência de discernir e classificar cada ambiente profissional para posteriormente acionar o conjunto de conhecimentos a ser aplicado em cada situação. O exercício de classificação demanda uma necessária formação crítica, em que o soldado precisa entender a especificidade de sua tarefa enquanto tem conhecimento da totalidade da missão. Em outras palavras, é uma tarefa bastante difícil “deixar de lado” os conhecimentos adquiridos para a guerra quando se é empregado, por exemplo, em uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), expediente facultado pelo artigo 142. Resta constatar que uma profissionalização para o futuro precisa ser pensada com base em um novo paradigma das relações entre civis e militares, em que se discuta a concepção de controle público sobre assuntos de defesa. Nesse caso, a educação militar não funcionará de forma apartada do restante. Na realidade, mais do que educação militar, será possível falar em educação para a defesa, destinada a civis e militares, especialistas ou não. Talvez nesse novo paradigma seja possível construir uma cultura estratégica de defesa efetivamente brasileira, na qual o primeiro aprendizado é a importância da ação coletiva e cooperativa entre os cidadãos do próprio Estado, civis e militares, e o trabalho conjunto com outros países da América do Sul nos assuntos de defesa. *Ana Penido é doutora em Relações Internacionais (Unesp) e mestre em Estudos Estratégicos (UFF).

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UM MILHÃO DE PESSOAS JÁ PASSARAM PELOS CAMPOS DE REEDUCAÇÃO

A repressão contra os uigures no controlado mundo do “sonho chinês” Se é difícil avaliar o número de uigures presos ou que passaram pelos centros de reeducação – fala-se em 1 milhão –, é certo que um sistema de vigilância sem precedentes persegue os muçulmanos do Xinjiang, punidos não pelo que fizeram, mas pelo que podem fazer. Xi Jinping promove essa política de repressão como um modelo de segurança POR RÉMI CASTETS*

que está acontecendo no Xinjiang, no extremo oeste da China? Em setembro de 2018, a organização Human Rights Watch alertou sobre violações dos direitos humanos de uma amplitude sem precedentes contra os uigures – população turcófona e muçulmana –, e também contra cazaques, uzbeques etc.1 As autoridades chinesas negam e falam em combate ao “radicalismo” e ao “terrorismo” alimentado pela oposição diaspórica uigur e pelas potências estrangeiras. Entre os países muçulmanos, silêncio total. O certo é que um programa denominado Transformação pela Educação, criado na década de 1990 para “reeducar” os seguidores da seita Falun Gong, foi adaptado e ampliado no Xinjiang para todos os indivíduos oriundos de minorias muçulmanas cuja lealdade ao regime desperte a mais remota dúvida. Na falta de dados oficiais, é impossível quantificar precisamente o número de pessoas atingidas. Segundo o pesquisador Adrian Zenz, que se baseia no exame de contratos públicos para a construção ou expansão de instalações de detenção, mais de 10% da população uigur, o equivalente a 1 milhão de pessoas, ou teria passado por esse programa, ou estaria presa.2 Ao contrário do que ocorre nos campos de reforma pelo trabalho (laogai), aqui os suspeitos não vão para o tribunal e podem ficar presos por períodos indeterminados. Os trabalhos de Zenz e os relatórios das organizações de direitos humanos mostram que a mecânica repressiva tem diversos níveis, incluindo desde aulas abertas de reeducação até centros fechados com disciplina de ferro. Baseados na patologização do pensamento contestatário, esses dispositivos pretendem “erradicar os vírus ideológicos” e tratar os indivíduos de acordo com seu grau de recalcitrância. POLO ENERGÉTICO ESTRATÉGICO

De forma protocolar, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos solicitou direito de acesso. As autoridades

© Tulipa Ruiz

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chinesas acabaram reconhecendo a existência dessas estruturas, apresentando-as como lugares de educação patriótica e centros de formação profissional destinados a promover a integração das minorias. Ali se combinam sessões de educação patriótica e de autocrítica, interrogatórios e cursos de idiomas para pessoas que não ficam tão à vontade em mandarim. Mas testemunhos na mídia estrangeira dados por pessoas que fugiram do país após serem libertadas compõem um cenário mais sombrio do que aquele descrito pela mídia chinesa: eles descrevem condições severas de detenção, forte pressão e até mesmo atos de tortura

psicológica e física. Em meados de fevereiro, o governo turco, leal defensor dos uigures, sentiu-se obrigado a emitir uma declaração de protesto. Essa nova onda de repressão, de altíssima intensidade, é mais uma na história de um Xinjiang muitas vezes agitado por violentas revoltas, sempre enfrentadas com uma resposta repressiva ainda maior – engrenagem da qual os dirigentes chineses não conseguem sair. Cercada por altas montanhas, a região foi por muito tempo um ponto crucial da rota da seda. Na virada do primeiro milênio de nossa era, ela passou por intervalos de dominação chinesa, sob as dinastias Han, Sui e Tang.3 Todas

tentaram evitar que as confederações das estepes, as quais ameaçavam os flancos setentrionais do império, pudessem tirar proveito do maná gerado pelo controle dessas rotas comerciais. Após os portugueses estabelecerem a rota marítima contornando a África, o gradual abandono das rotas terrestres em prol dos caminhos pelo oceano marcou o início de um longo declínio para esses oásis. Quando, em meados do século XVIII, esses territórios, convertidos ao islamismo entre os séculos X e XVII, foram conquistados pela dinastia Qing (1644-1712), eles já haviam perdido sua centralidade. O fechamento da China, o isolamento da região e, em seguida, o conflito sino-soviético acabaram por torná-lo um enclave estratégico aos olhos do poder central chinês. Essa província, uma das mais pobres do país, voltou a se desenvolver à medida que foi recuperando sua importância na configuração regional e internacional. Após a instalação das tropas de Mao Tsé-tung, em 1949, ela foi integrada ao restante do país por meio de investimentos públicos, que se intensificaram no início dos anos 2000, com a Política de Desenvolvimento do Grande Oeste. Isso foi acompanhado por um fluxo maciço de pessoas da etnia Han, majoritária na China, o que fez surgir novas cidades no norte, nos anos 1950-1960, e, nas décadas posteriores, deu novos contornos aos velhos oásis do sul. Hoje o Xinjiang é atravessado e conectado ao restante do país por uma malha de rodovias de alta qualidade e por uma rede ferroviária ligada a linhas de alta velocidade. Graças ao impulso das empresas estatais e das unidades de produção desenvolvidas pelas colônias do Corpo de Produção e Construção,4 a província se especializou na mineração e na produção agrícola (algodão, tomate, frutas). Esse território três vezes maior do que a França tornou-se um polo energético estratégico – ele abriga um quarto dos hidrocarbonetos e 38% das reservas nacionais de carvão. Como a

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China deseja limitar sua dependência das importações, as empresas do país extraem dali um sexto da produção nacional de petróleo e quase um quarto da de gás natural. Oleodutos e gasodutos ligados às regiões centrais e costeiras foram rapidamente instalados, a partir dos anos 1990-2000, para transportar as torrentes de hidrocarbonetos que alimentaram o crescimento chinês. Agora as autoridades apostam em infraestruturas de carvão liquefeito e na geração de energia eólica, solar e hidrelétrica. Após a implosão da União Soviética e depois com o lançamento do projeto das novas “rotas da seda” (Belt and Road Initiative, BRI), de iniciativa do presidente Xi Jinping, a abertura do espaço da Ásia Central fez do Xinjiang um trunfo na estratégia de projeção do poder chinês na Ásia. Fazendo fronteira com o Paquistão, o Afeganistão e países da ex-União Soviética, ele abriga um nó de eixos de transporte ferroviários, rodoviários e energéticos com os quais a China conta para garantir seu abastecimento e expandir sua economia em direção à Europa. A estabilidade desses espaços vizinhos parece vital para o regime, que os considera terrenos muito propícios, se não estiverem sob um cuidado rigoroso, para o desenvolvimento do islamismo, ou de uma pesada influência norte-americana. Embora o Estado chinês tenha gradualmente consolidado sua soberania na região, a lembrança de insurreições que culminaram em breves episódios de independência,5 a recorrência de rebeliões e, mais recentemente, a proliferação de ações violentas, até atos terroristas, causam preocupação. Esse território centro-asiático de domínio turcófono, outrora chamado pelos geógrafos ocidentais de Turquistão Oriental, ou Turquistão Chinês, é marcado por fortes particularismos e por uma instabilidade que sempre preocupou os imperadores chineses. Quando os Qing quiseram fazer dele sua “nova fronteira” (significado de xinjiang em mandarim), os círculos nostálgicos da teocracia sufi, que, até então, exerciam autoridade ali, fizeram da defesa do islã uma ferramenta de mobilização contra um poder sino-manchu não muçulmano. No início do século XX, passam a se distinguir as áreas de predomínio nômade cazaque e quirguiz, no norte e nas montanhas do Pamir, e oásis povoados de sedentários uigures, no sul e no leste. Após o colapso do império, em 1912, os sucessivos senhores da guerra chineses enfrentaram o crescimento de uma oposição autonomista ou separatista inédita. Ela contava com uma nova geração de militantes, representada, à direita, por um movimento panturco e, à esquerda, por uma cena comunista apoiada e manti-

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da pela União Soviética até o final da década de 1940. A vitória de Mao Tsé-tung e dos comunistas, em 1949, e em seguida as políticas repressivas que precederam e acompanharam a Revolução Cultural (1966-1976) desativaram essas redes. A VIRADA DE 1989

Nos anos 1980, porém, com a chegada ao poder do setor reformista do Partido Comunista Chinês (PCC), o partido e a administração estatal foram buscar representantes das minorias para tentar envolvê-las no aparato de Estado. Surgiram espaços de liberdade cultural e religiosa, e uma esfera militante nacionalista “anticolonial”6 se regenerou nas universidades e nos círculos intelectuais uigures. Após os anos de proscrição da Revolução Cultural, parte da sociedade voltou-se novamente para o islã e, no sul, reconstituiu uma rede de madraças na qual foram criados círculos de talips (estudiosos da religião). Alguns defendiam a islamização das normas sociais e até a instauração de um Estado islâmico independente. Foi o caso da tentativa de insurreição em Barin, em 1990,7 de uma rede estruturada alguns meses antes, o Partido Islâmico do Turquistão Oriental.

Baseados na patologização do pensamento contestatário, esses dispositivos pretendem “erradicar os vírus ideológicos” Em 1985, 1988 e 1989, em Urumqi e outros oásis, manifestações denunciaram a colonização demográfica, a discriminação e a desigualdade étnica, e a falta de autonomia política. Lideradas por associações estudantis, às vezes ao lado de círculos religiosos, elas degeneraram na depredação de prédios públicos, especialmente no início de 1989. Nesse ano, enquanto o Tibete era sacudido por violentos tumultos em março e Pequim era abalada pelos eventos na Praça da Paz Celestial em junho, o partido temia que a situação saísse do controle no Xinjiang, ainda mais quando a implosão da União Soviética abriu caminho para a independência de povos turcófonos primos dos uigures. O retorno da ala conservadora do PCC fez desaparecer, entre os círculos autonomistas ou separatistas, qualquer esperança de negociação sobre as políticas colocadas em prática na região. O partido, a Associação Islâmica do Xinjiang (uma organização de in-

termediação representante dos muçulmanos), a administração regional, as estruturas de ensino religioso, a escola, a universidade, tudo foi pouco a pouco sendo posto sob controle. Os quadros não muito dóceis, excessivamente religiosos ou considerados muito complacentes com o autonomismo ou com o separatismo foram afastados ou até punidos. Entrou em ação uma política de progressivo enrijecimento do controle sobre a sociedade. Para evitar a prisão, os militantes nacionalistas mais engajados se uniram às diásporas uigures da Ásia Central, da Turquia e do Ocidente, outrora pró-comunistas ou panturcas, com o objetivo de fomentar, dentro das organizações locais, uma luta pelos direitos humanos no modelo tibetano. Essa estratégia não violenta ganhou definitivamente os nacionalistas em 2004, quando suas organizações se uniram e fundaram o Congresso Mundial Uigur, sediado em Washington. No Xinjiang, à medida que a repressão se espalhava, as tensões aumentavam. Multidões uigures enfurecidas tomaram as ruas, como em Khotan, em 1995, e Yining, em 1997. Com o desmantelamento das madraças do sul, parte dos círculos islâmicos nacionalistas consideravam que o partido estava em guerra contra o islã e contra a identidade islâmica dos uigures. Talips e algumas células nacionalistas mergulharam na clandestinidade. Eles formaram grupelhos defensores da ação violenta, até mesmo do terrorismo. Entre 1990 e 2001, de acordo com as autoridades chinesas, foram perpetrados “duzentos incidentes terroristas, com 162 mortos”.8 Mas pouco a pouco esses grupos foram desmantelados. Em março de 1996, o PCC estabeleceu uma lista de orientações rigorosas para erradicar as atividades potencialmente subversivas.9 Foram realizadas várias campanhas “Mão Pesada” (1997, 1999, 2001), levando ao desenvolvimento de sessões de educação patriótica, a uma proliferação de leis definindo o espectro das práticas subversivas e a grandes ondas de prisões. O mesmo documento destacava a necessidade de incentivar a entrada de pessoas da etnia Han no Corpo de Produção e Construção. A questão era limitar severamente a construção de mesquitas, impor líderes que tivessem “amor à pátria” na direção dos locais de culto e organizações religiosas, registrar todos os indivíduos que tivessem alguma formação em escolas religiosas sem autorização e tomar “severas medidas” para evitar que a religião viesse a intervir nos assuntos sociais e políticos.10 A Anistia Internacional estima que foram feitas pelo menos 190 execuções entre janeiro de 1997 e abril de 1999.11

MAIS DE TREZENTAS VÍTIMAS DE TERRORISMO

Nessa época, um punhado de militantes islâmicos nacionalistas que haviam se reunido em áreas paquistanesas e afegãs estabeleceram conexões com as redes talibãs do comandante Jalaluddin Haqqani. Esse grupelho, chamado pela China de Movimento Islâmico do Turquistão Oriental, penou para atrair a atenção das ricas redes da Al-Qaeda recentemente instaladas no local. Com recursos limitados, ele tinha dificuldades para se projetar em um Xinjiang onde as redes adormecidas haviam sido amplamente esmagadas. Aproveitando o contexto pós-11 de Setembro e a captura de elementos do Movimento Islâmico do Turquistão Oriental por forças norte-americanas durante sua intervenção no Afeganistão, as autoridades chinesas elaboraram a retórica das “três forças” (sangu shili): terrorismo, separatismo (étnico) e extremismo religioso. Assim, conseguiram colocar no mesmo saco círculos democráticos nacionalistas ou autonomistas não violentos, interessados em promover os valores do islã no campo social e político; jihadistas do Movimento Islâmico do Turquistão Oriental; e, mais amplamente, todos os espíritos contestatários. Nessa década, as redes do Movimento Islâmico do Turquistão Oriental, ou o que restava delas, recuadas no Vaziristão, assumiram o nome de Partido Islâmico do Turquistão (PIT), após sua integração na internacional jihadista da Al-Qaeda. Eles usaram as redes sociais para incitar a violência. Embora a amplitude do monitoramento da internet realizado pela China dificulte o acesso a suas publicações, após um longo período de calma o sul do Xinjiang e sua capital, Urumqi, passaram por uma série de atentados. Esta começou em 2008, com a aproximação dos Jogos Olímpicos, e ganhou impulso em 2009, quando violentas rebeliões opuseram uigures e hans em Urumqi,12 fazendo oficialmente 197 mortos – pelo menos três quartos deles hans. A região ficou sob forte pressão. A internet foi cortada durante vários meses, mas os ataques se multiplicaram. Alguns desses atos parecem ter sido premeditados por células ligadas ao PIT, como os ataques em Kashgar, em 2011, mas muitos deles, como agressões com arma branca contra policiais ou civis, parecem mal preparados e cometidos por uma juventude que simplesmente assistiu aos vídeos do PIT ou de outros movimentos jihadistas. Muitas ações violentas chocaram a opinião pública chinesa, às vezes ultrapassando as fronteiras do Xinjiang: o atentado com um automóvel na Praça da Paz Celestial em outubro de 2013 (cinco mortos, dois turistas e três atacantes), o da faca na

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estação de Kunming, em março de 2014 (31 mortos e 143 feridos), e o de maio de 2014 em um mercado de Urumqi (43 mortos e mais de noventa feridos). Seguiram-se outros atentados de menor escala, e 2014 foi um ano sombrio, com mais de trezentas vítimas do terrorismo, contra apenas um punhado por ano durante a primeira década do milênio. Mais ou menos ao mesmo tempo, a implantação do PIT no Afeganistão, ao lado do Talibã, e principalmente na Síria, onde conseguiu estabelecer redes, deixou os chineses ainda mais preocupados. O envolvimento do PIT no conflito sírio fez crescer seus efetivos e seu apoio. Depois de mostrar serviço em combate ao lado dos outros componentes da Frente Al-Nusra, e agora de Hayat Tahrir al-Sham, no noroeste da Síria, ele foi equipado com material pesado e conseguiu mobilizar centenas de combatentes. O PIT era uma ameaça aos interesses chineses em algumas regiões onde podia projetar ações – Paquistão, Afeganistão, Oriente Médio –, mais do que no próprio Xinjiang. Na verdade, a sociedade uigur parecia pouco inclinada a aderir à sua interpretação rígida do islã, e a “Grande Muralha de Aço”13 desejada por Xi continuava a limitar significativamente sua margem de manobra na China. No entanto, para a população um limite foi ultrapassado com a onda de detenções e condenações (incluindo a pena capital), após as rebeliões de 2009. Para muitos, estava encerrada a idade de ouro dos anos 1980, quando conflitos entre comunidades ainda podiam ter mediadores. O ressentimento contra o poder central chinês se transformou em um ressentimento contra os hans, entendidos como colonizadores arrogantes que consideravam os outros como indivíduos de segunda classe, cuja única opção era submeter-se e sinizar-se, para se tornarem aceitáveis. O “viver juntos” proposto pelo governo central baseava-se em uma homogeneização demográfica e cultural sinizadora e em um forte controle das instituições da região autônoma pelos quadros hans. Enquanto a língua uigur dava lugar ao mandarim nas escolas, e o controle da polícia e da administração era incessantemente reforçado, a implantação han seguia seu curso e exacerbava na população local a sensação de estar sendo afogada pelos chineses.14 No início dos anos 2010, os hans representavam 40% dos 22 milhões de habitantes da região (contra 6% em 1949), e os uigures, mais de 45% (contra 75% em 1949). Essa supremacia na administração e na economia, junto com a desconfiança dirigida aos nativos, contribuiu para manter no ponto

mais baixo na escala social uma parcela significativa dos uigures. Embora o Estado garantisse mais da metade do orçamento regional e por muito tempo tenha permitido um crescimento de dois dígitos por meio de investimentos maciços, os uigures, com menos educação ou simplesmente discriminados mesmo tendo diploma, não tiraram grandes benefícios desse crescimento.

uma Família: funcionários hospedam-se regularmente com os habitantes, às vezes por vários dias, para identificar comportamentos subversivos, pressionar para que sejam feitas denúncias e realizar educação patriótica. Mais de 1 milhão de funcionários estariam envolvidos, especialmente nas áreas rurais do sul. ESTUDO DE COMPORTAMENTOS “INCOMUNS”

Tais medidas têm uma dimensão intrusiva: foi proibido ter a barba considerada “anormal” e usar o véu em locais públicos... Como novo homem forte do país, o presidente Xi prometeu erradicar pela raiz a ameaça terrorista, redefinindo a abordagem de segurança. Organismos de contraterrorismo foram reestruturados e colocados sob uma supervisão mais estreita do governo. O controle de minorias e assuntos religiosos, antes sob a responsabilidade de diversas administrações, além de associações religiosas ditas “representativas”, passou ao encargo do centralizador Departamento do Trabalho da Frente Únida do Partido.15 O aparato jurídico também foi remodelado. Em novembro de 2014, a Assembleia da Região Autônoma do Xinjiang já aprovara uma lei reformando as regulações religiosas regionais de 1994, com o acréscimo de dezoito artigos para modernizar o sistema de acreditação dos imãs, de controle das mesquitas e do que restava das estruturas de ensino religioso, que já sofriam intensa vigilância.16 Em 2017 foi lançado um novo pacote de medidas em nome da luta contra o “extremismo religioso”. Para muitos muçulmanos, tais medidas têm uma dimensão intrusiva: foi proibido ter a barba considerada “anormal” e usar o véu em locais públicos... As coisas ficaram ainda piores desde que Chen Quanguo assumiu a frente do PC local, em 2016, com as mesmas funções que exercia na região autônoma do Tibete. Segundo Adrian Zenz,17 o orçamento destinado à segurança explodiu. Forças policiais especiais e equipamentos de contenção de revoltas foram reforçados. O recrutamento atingiu o pico entre meados de 2016 e de 2017, com mais de 90 mil policiais, doze vezes mais que em 2009, com o objetivo de implantar uma antena dos Escritórios de Segurança Pública em cada vila ou povoado. Chen também fortaleceu o programa Como

Além disso, o Xinjiang tornou-se um vasto campo de teste das joias da vigilância high-tech e da segurança de big data.18 Smartphones podem ser submetidos a verificação a qualquer momento nos postos de controle policial e nos diversos checkpoints montados ao longo das estradas. O extenso sistema de vigilância por vídeo com reconhecimento facial foi aprimorado. A maioria dos uigures teve de entregar seu passaporte, reduzindo a zero as esperanças de quem sonhava em fugir para o exterior. Para o poder chinês, a questão não é mais monitorar a sociedade e punir quem comete irregularidades. A coleta de dados por meio da Plataforma Integrada de Operação Conjunta, combinada com o estudo de comportamentos “incomuns”, tem o objetivo de antecipar e classificar os indivíduos de acordo com seu nível de lealdade e do risco de segurança que representam. Entre os numerosos critérios de identificação, figura a estadia em um dos 26 países “de risco”.19 Falar com estrangeiros ou com pessoas que tenham ido para o exterior, baixar o aplicativo de comunicação proibido WhatsApp, ter barba, não beber álcool, não fumar, comer alimentos halal, guardar o Ramadã, não comer carne de porco, querer dar aos filhos nomes muçulmanos considerados subversivos, como o do profeta: são muitos os sinais suspeitos. Universitários renomados, artistas e até atletas famosos desapareceram de repente – possivelmente internados – ou foram postos em prisão domiciliar. Nos últimos meses, condenações às vezes muito pesadas foram executadas. Por exemplo, o ex-diretor do Escritório de Supervisão Educacional do Xinjiang e o ex-reitor da Universidade do Xinjiang foram condenados à morte por “tendências separatistas”. Após ser preso em 2014, o economista e escritor Ilham Tohti, uma das últimas figuras críticas dos círculos intelectuais uigures, foi condenado à prisão perpétua. As autoridades celebram a redução da violência nos últimos meses. Mas, mesmo na China, muitos observadores estão preocupados – embora não ousem dizê-lo publicamente – com os níveis de frustração gerados por essas políticas a longo prazo. Dirigentes locais, imãs ou intelectuais que ainda querem aparar as arestas já não têm recursos para isso. A cegueira do Esta-

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do ao crescimento das tensões prepara o caminho para novas explosões de violência. *Rémi Castets é doutor no Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris e diretor do Departamento de Estudos Chineses da Universidade Bordeaux Montaigne.

1 “‘Eradicating ideological viruses’. China’s campaign of repression against Xinjiang’s Muslims” [“Erradicando vírus ideológicos”. A campanha de repressão chinesa contra os muçulmanos do Xinjiang], Human Rights Watch, Nova York, 9 set. 2018. 2 Adrian Zenz, “‘Thoroughly reforming them towards a healthy heart attitude’: China’s political re-education campaign in Xinjiang” [“Uma verdadeira reforma em busca de sentimentos saudáveis”: a campanha chinesa de reeducação política no Xinjiang], Central Asian Survey, Abingdon-on-Thames, set. 2018. 3 A dinastia Han durou de 206 a.C. a 220 d.C.; a Sui, de 581 a 618; e a Tang, de 618 a 907. Mas seu domínio sobre o Xinjiang não necessariamente se manteve ao longo de todo o reinado. 4 Essas brigadas, criadas em 1954 e mantidas sob comando militar, são responsáveis tanto por colonizar como por proteger as fronteiras. 5 Emirado de Kashgar de Yacoub Beg, entre 1864 e 1877; Emirado de Khotan, depois República Turca Islâmica do Turquistão Oriental em Kashgar, em 1933-1934; República Pró-Soviética do Turquistão Oriental nos três distritos do norte do Xinjiang entre 1944 e 1949. 6 Dru Gladney, “Internal colonialism and the Uyghur identity: Chinese nationalism and its subaltern subjects” [Colonialismo interno e identidade uigur: o nacionalismo chinês e seus sujeitos subalternos], Cahiers d’études sur la Méditerranée orientale et le monde turco-iranien (Cemoti), n.25, Paris, jan.-jun. 1998. 7 Formados no modelo afegão, os jihadistas batalharam por mais de dez dias. 8 “East Turkistan forces cannot get away with impunity” [Forças do Turquistão Oriental não podem sair impunes], People’s Daily, Information Office of State Council, Beijing, 21 jan. 2002. 9 Cf. “China: State control of religion, update number 1” [China: controle estatal da religião, dados atualizados 1], Human Rights Watch, mar. 1998. 10 “Devastating blows: Religious repression of Uighurs in Xinjiang” [Golpes devastadores: repressão religiosa sobre os uigures no Xinjiang], Human Rights Watch, 11 abr. 2005. 11 “China: Gross violations of human rights in the Xinjiang Uighur autonomous region” [China: brutais violações dos direitos humanos na região autônoma uigur do Xinjiang], Anistia Internacional, 31 mar. 1999. 12 Ler Martine Bulard, “Quand la fièvre montait dans le Far West chinois” [Quando a temperatura subiu no extremo oeste da China], Le Monde Diplomatique, ago. 2009. 13 Instalações de defesa construídas sob as montanhas. Cf. Tom Phillips, “China: Xi Jinping wants ‘Great Wall of Steel’ in violence-hit Xinjiang” [China: Xi Jinping quer “Grande Muralha de Aço” contra violência no Xinjiang], The Guardian, Londres, 11 mar. 2017. 14 Gardner Bovingdon, The Uyghurs in Xinjiang: Strangers in Their Own Land [Uigures do Xinjiang: estrangeiros em sua própria terra], Columbia University Press, Nova York, 2010. 15 Jérôme Doyon, “Actively guiding religion under Xi Jinping” [Empenho no controle da religião por Xi Jinping], Asia Dialogue, 21 jun. 2018. Disponível em: . 16 “The modern Chinese State and strategies of control over Uyghur Islam” [O Estado chinês moderno e suas estratégias de controle sobre o islã uigur], Central Asian Affairs, v.2, n.3, Washington, DC, 2015. 17 Adrian Zenz, op. cit. 18 Josh Chin e Clement Bürge, “Twelve days in Xinjiang: How China’s surveillance State overwhelms daily life” [Doze dias no Xinjiang: como o vigilante Estado chinês domina a vida cotidiana], The Wall Street Journal, Nova York, 19 dez. 2018. 19 Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão, Cazaquistão, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Indonésia, Irã, Iraque, Líbia, Malásia, Nigéria, Paquistão, Quênia, Quirguistão, Rússia, Somália, Síria, Sudão do Sul, Tailândia, Tadjiquistão, Turquia, Turcomenistão, Uzbequistão.

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AS CIÊNCIAS SOCIAIS A SERVIÇO DA “CONTRAINSURREIÇÃO”

Retrato do intelectual como soldado Desde a invasão do Iraque em 2003, o Exército norte-americano vem financiando novas tecnologias para detectar “insurgentes”. Baseadas nas ciências sociais e na coleta de dados digitais em massa, essas ferramentas encontram aplicações muito além das zonas de guerra

© Rodrigo Leão

POR OLIVIER KOCH*

iante de uma tela, um soldado pilota um drone. A milhares de quilômetros do centro de controle, ele abre fogo contra pessoas no solo. Essa cena agora comum acontece no Iraque, no Iêmen e na África como parte da luta contra a Al-Qaeda no Magreb islâmico e contra o Boko Haram. Como identificar o inimigo? Os militares não têm mais como alvo um indivíduo identificado pela inteligência humana, mas um estereótipo comportamental: uma estrutura de dados que caracteriza um comportamento anormal. Se os analistas julgam que aquele que corresponde a isso é perigoso, podem considerar sua “neutralização”. Muitas vezes, sua identidade e seu nome não são conhecidos antes que ele seja condenado à morte. O que importa, sobretudo, é a coleção de vestígios e de dados em massa capazes de compor uma “assinatura” comportamental: o que ele faz? Quem ele visita diariamente? Aonde vai? Programas de computador, em seguida, desenham perfis e isolam aqueles que se desviam da norma. A informatização do campo de batalha remonta à década de 1940 e ao

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nascimento da cibernética. Ela se desenvolveu nos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã (1955-1975) graças a pesquisas realizadas no âmbito da Agência para Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa (Darpa). Desde então, o Exército vem usando computadores e dados em massa para guiar armas e pilotar mísseis remotamente. Mas a ocupação do Iraque marca um ponto de virada. De uma forma sem precedentes, o Pentágono mobilizou a computação conectada para guiar os exércitos no “terreno humano” – um eufemismo militar para designar a população. Em 2003, a guerra regular, após causar a queda do regime de Saddam Hussein, deu lugar a um conflito assimétrico que opunha as forças da coalizão internacional a grupos armados. O Exército norte-americano ligou isso na ocasião à arte da contrainsurreição já colocada em prática no Vietnã. Com uma dupla intenção tática: distinguir o combatente do não combatente e limitar o apoio de civis a grupos armados. Nessa lógica de guerra centrada na população, os exércitos de ocupação usaram um novo mapeamento social. Nele não constam nem monta-

nhas, nem planícies, nem cursos de água. Em vez disso, essas ferramentas geolocalizam “insurgentes” em redes sociais. O que os moradores fazem, seus deslocamentos e seus relacionamentos com outras pessoas são rastreados e visualizados nas telas de controle. O inimigo (o “insurgente”) aparece nesses mapas como o nó de uma rede que é preciso eliminar. “CONSTELAÇÕES DE SENTIMENTOS-ALVO”

Os softwares da contrainsurreição se baseiam em modelos comportamentais cuja concepção e funcionamento recorrem a dois tipos de recurso: pesquisadores de ciências sociais, que examinam as sociedades autóctones, e uma vigilância estreita das populações. Em 2008, a Seção de Pesquisa e Engenharia do Departamento de Defesa criou um programa de modelagem do comportamento: o Human Socio-Cultural Behavior Modeling Program (HSCB), no qual foi desenvolvido o projeto de Radar Social. Esse software processa megadados extraídos dos meios de comunicação, de redes sociais e da inteligência militar. Trata-se de detectar os movimentos de coração e da opinião que, entre as populações, poderiam in-

fluenciar o curso dos conflitos: um impulso de simpatia por um novo líder contestador, por exemplo, ou, ao contrário, uma manifestação de antipatia em relação aos exércitos de ocupação. Para conseguir isso, esse radar combina a análise de conversas on-line e a análise de sentimentos. Ele identifica os principais tópicos discutidos pelos usuários da internet e os associa aos sentimentos expressos. Dessa forma, desenham-se “constelações de sentimentos-alvo”1 que o ocupante explora então por meio de campanhas de propaganda ou de operações psicológicas (Psyop). Enquanto os radares que equipam aeronaves e navios detectam corpos em áreas de confronto, o Radar Social busca penetrar a espessura psicossocial das sociedades para nela detectar mudanças em tempo real. O moral dos civis esteve no centro das preocupações políticas e militares e, portanto, das propagandas do Estado, ao longo dos séculos XIX e XX. Uma guerra, seja ela contrainsurrecional ou convencional, é difícil de ganhar sem seu apoio, e as ciências sociais e humanas têm sido usadas regularmente para tentar conquistá-lo. Seus conhecimentos foram mobilizados para aperfeiçoar as técnicas de persuasão. Psicólogos, sociólogos ou cientistas políticos trabalharam para desenvolver esse tipo de tecnologia de controle das sociedades pelos Estados. Os instrumentos de radiografia social que surgiram no Iraque pertencem a essa tradição, mas diferem dela em pelo menos dois pontos. Há ali uma ambição, próxima à fantasia, de automatizar a detecção de insurreições e de instabilidades sociais. Máquinas e computadores são substitutos aqui para a análise humana. O tempo “real”, do imediatismo, deve substituir o longo tempo das observações e da interpretação. Saem os especialistas que murmuram visões contraditórias ao ouvido do senhor da guerra: a automação colocou de lado, tanto quanto possível, os intérpretes e suas conjecturas. Em contrapartida, ela mobiliza pesquisadores em ciências sociais e outros especialistas em comportamento humano, que assinalam regularidades observadas nas sociedades, as quais serão convertidas, de perto ou de longe, em um algorit-

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mo. Seu trabalho para por aí; a máquina assume então. A automação da previsão foi colocada em prática durante a contrainsurreição no Iraque. Como parte do programa de modelagem do comportamento humano, o Pentágono está financiando um sistema de alerta de crise iminente: o Integrated Crisis Early Warning System [Sistema Integrado de Aviso Antecipado de Crise] (Icews). Esse sistema explora dados sobre vários países e suas populações. O oráculo é um autômato, uma máquina de processamento de dados agregados por meio da mídia e das redes sociais. Nessas previsões, apenas a gestão segura dos movimentos sociais conta. O justo e o injusto não são pontos essenciais nos mapas da vigilância automatizada. O programa mapeia as sociedades do globo de acordo apenas com as polaridades do estável e do instável. No entanto, apesar de todas as tecnologias usadas no Icews ou no Radar Social, a previsão automatizada funciona mal. Como se trata de prever distúrbios por meio dos discursos veiculados pela mídia e pelas redes sociais, ou a crise já está declarada (e, portanto, a previsão é literalmente nula), ou se manifesta de outra forma, sem aparecer, nesse caso, nos radares dessas máquinas. Assim, as revoltas árabes de 2011 e 2012 escaparam dos radares algorítmicos, cujos programadores parecem ignorar que as insurreições não começam no Facebook ou no Twitter, mas off-line, em áreas carentes, como foi o caso no Egito e na Tunísia. Outra fraqueza do instrumento de medição: os meios de comunicação escaneados por essas ferramentas de computador nem sempre oferecem uma leitura fiel da realidade, em particular quando são controlados pelo regime em vigor ou por interesses econômicos poderosos. O Departamento de Defesa pôs em prática vários projetos para desenvol-

ver a pesquisa aplicada à guerra centrada nas pessoas. Com isso, o mundo universitário tem contribuído ativamente para a criação da nova engenharia de dados socioculturais. Conduzida sob os auspícios da Minerva Research Initiative [Iniciativa de Pesquisa Minerva], nome dado em homenagem à divindade romana da guerra e da estratégia, essa militarização das ciências sociais permitiu o financiamento, dentro mesmo das universidades, de trabalhos sobre a sociologia e a psicologia das redes “terroristas” e a modelagem de comportamentos estereotipados de “insurgentes”. Convertido aos imperativos táticos do Pentágono pela irresistível virtude dos dólares, o mundo do conhecimento concordou em transformar o contraterrorismo e a contrainsurreição, tarefas ligadas diretamente ao Estado, em objetos de pesquisa científica.

Além do mercado militar e antiterrorista, a detecção e a previsão automatizadas da instabilidade social seduzem os profissionais de segurança A mobilização dos saberes, no entanto, vai além do quadro universitário. Em 2011, o Cultural Knowledge Consortium [Consórcio de Conhecimento Cultural] (CKC) foi criado para congregar pesquisas públicas e privadas. Pesquisadores especializados atuam ali ao lado de especialistas que trabalhavam com os mesmos assuntos em associações, indústrias privadas ou no Departamento de Defesa. O objetivo era colocar em rede o conhecimento sobre as sociedades autócto-

nes e torná-lo acessível a todos os membros do consórcio em um portal on-line. O projeto foi concluído em 2013, mas a Global Cultural Knowledge Network [Rede Global de Conhecimento Cultural] (GCKN) assumiu as rédeas em 2014. Essa organização visa “reunir toda a capacidade intelectual dos Estados Unidos para as futuras missões do Exército orientando o conhecimento sociocultural para a tomada de decisões”.2 GUERRA E MARKETING

Com essa virada cultural da guerra, novos setores estão surgindo dentro do complexo militar-industrial. Além da GCKN e do programa de modelagem do comportamento humano, o departamento investe em “métodos computacionais para modelar [...] sistemas sociológicos”, em “análise científica de dados” e “desenvolvimento em algoritmo”.3 Essa reorientação também é observada entre provedores privados. Criadora, desde 1958, de ferramentas de defesa aérea, a Mitre Corporation, por exemplo, vem desenvolvendo desde a segunda metade dos anos 2000 programas de computador de análise de redes sociais em contextos de contrainsurreição. Seu slogan: “Resolver problemas para um mundo mais seguro”. Da mesma forma, a Aptima, empresa especializada em “engenharia centrada no ser humano”, vem conduzindo desde 2006 uma série de pesquisas financiadas pelo Departamento de Defesa sobre detecção e previsão de comportamentos suspeitos usando estatísticas e ciências sociais computacionais. A modelagem de comportamentos entra em uma fase industrial. Além do mercado militar e antiterrorista, a detecção e a previsão automatizadas da instabilidade social seduzem os profissionais de segurança. Em 2013, a empresa norte-americana Navanti, por exemplo, desenvolveu o programa

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Native Prospector para pesquisar populações no norte da África e na África Oriental. O objetivo era conter a expansão da Al-Qaeda na região. Em 2017, utilizando as mesmas tecnologias, a Navanti ofereceu seus serviços para empresas que desejassem se desenvolver na região ou no Oriente Médio. Outros estão convertendo as ferramentas inicialmente desenvolvidas na ótica antiterrorista em ferramentas de marketing supostamente capazes de sondar a mente dos consumidores. Criada em 2007 para fornecer ao governo dos Estados Unidos “soluções inovadoras em ciências sociais” – como diz seu site –, em matéria de segurança ou de defesa, a empresa NSI expandiu depois de 2011 sua clientela para empresas comerciais. Afinal, mapear e prever “insurreições” envolve o mesmo raciocínio de previsão comportamental do marketing. A ocupação do Iraque funcionou como um laboratório no qual foram experimentadas formas de controle social automatizado e capaz de fazer previsões destinadas a rastrear “insurgentes”. Esse modus operandi continuou nos anos 2010 em outras zonas de conflito, particularmente na África Subsaariana. Eles estão agora migrando para o campo civil: a engenharia de dados socioculturais, afinal, não passa de uma modalidade de gestão populacional. *Olivier Koch é professor pesquisador.

1 Barry Costa e John Boiney, “Social Radar” [Radar Social], Mitre Corporation, Mc Lean, Virgínia, 2012. Disponível em: <www.mitre.org>. 2 “Global Cultural Knowledge Network” [Rede Global de Conhecimento Cultural]. Disponível em: . 3 “Socio-cultural analysis with the reconnaissance, surveillance, and intelligence paradigm” [Análise sociocultural com reconhecimento, vigilância e paradigma de inteligência], Centro de Desenvolvimento de Pesquisa de Engenharia do Exército dos Estados Unidos, 2014. Disponível em: .

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QUEM É ELLIOTT ABRAMS?

A sombria carreira do enviado especial norte-americano à Venezuela Há alguns anos, o cáustico Elliott Abrams amava apresentar-se como um velho sábio, um expert em diplomacia sempre preocupado em dar sua opinião informada. Encarregado por Donald Trump de “restaurar a democracia na Venezuela”, ele voltou aos negócios. Olhando sua ficha, os habitantes que vivem onde será sua missão podem começar a se preocupar...

© Daniel Kondo

POR ERIC ALTERMAN*

anúncio pelo secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, da nomeação do neoconservador Elliott Abrams ao posto de enviado especial à Venezuela, no dia 25 de janeiro de 2019, não passou despercebido. A imprensa interpretou a decisão de confiar a esse homem a missão de trabalhar para a destituição do presidente Nicolás Maduro como uma declaração de independência de Pompeo em relação ao presidente Donald Trump. Seu desafortunado predecessor, Rex Tillerson – ex-CEO da ExxonMobil –, esperava de fato recrutar Abrams. Mas Trump se opôs, apesar do lobby do doador de extrema direita Sheldon Adelson – que parece conseguir tudo o que quer do presidente. O motivo da recusa? Abrams se uniu a outros neoconservadores para criticar Trump durante a primavera republicana de 2016. Até os esforços do genro do presidente, Jared Kushner, se revelaram em vão diante de seu conselheiro na época, Steve Bannon, que convenceu o chefe da Casa Branca de que a reputação de “mundialista” de Abrams o desacreditava.

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De acordo com a revista Bloomberg, essa promoção revela um “giro”: “suas posições são representativas de uma política externa que Trump condenava durante sua campanha – notadamente o apoio à Guerra do Iraque, que ele critica há tempos. Mas Abrams, assim como o presidente, parece ter mudado”.1 Essa ideia de que “as pessoas mudam” figura igualmente entre as explicações dadas por Abrams para limpar sua participação no escândalo do Irangate – quando a administração do presidente Ronald Reagan financiou seu apoio aos “contras” antissandinistas na Nicarágua pela venda de armas secretas a Teerã –, apresentado como insignificante. Apesar de envolvido no caso, Abrams culpou dois promotores de dissimular informação no Congresso. Ele foi expulso da ordem dos advogados de Columbia, antes de ser perdoado pelo presidente George H. W. Bush. “Não acho que isso tenha a menor importância. Não nos interessa o que aconteceu em 1980, e sim o que acontece em 2019”, comentou Abrams. 2

MASSACRES E GENOCÍDIOS

A julgar pelo passado de Abrams, o ano de 2019 corre o risco de ser desastroso para o povo venezuelano. Assistente subalterno no Congresso antes de sua nomeação durante a administração Reagan a uma série de cargos relacionados a direitos humanos na América Central e ativo novamente na segunda administração de George W. Bush, em seguida desempenhou um papel militante no seio de um think tank, o Council on Foreign Relations [Conselho de Relações Exteriores], e de várias organizações judaicas conservadoras. À exceção de Henry Kissinger e Dick Cheney, poucos altos funcionários norte-americanos fizeram tanto pela promoção da tortura e de mortes em massa em nome da democracia. Depois do Irangate, sua progressão nas altas esferas da política externa norte-americana, beneficiária de um tratamento midiático que o faz passar por uma personalidade respeitável, esclarece a realidade de seu pequeno mundo – em particular sua falta de preocupação pelos valores que os políticos norte-americanos geralmente defendem.

No início de sua carreira, a serviço dos senadores democratas Henry “Scoop” Jackson e Daniel Patrick Moynihan, Abrams contribuiu com os esforços neoconservadores para converter o Partido Democrata dos anos de 1970 ao intervencionismo em situação de guerra. Contudo, afastados dos altos postos da administração pelo presidente Jimmy Carter, eles terminaram por mudar de lado. “Éramos de fato excluídos. Obtivemos apenas um cargo insignificante: negociador especial. Não para a Polinésia nem para a Macronésia, e sim apenas para a Micronésia”, reclama Abrams.3 Depois de construir um confortável ninho no seio da administração Reagan, ele gravitou rapidamente pelos altos escalões do Departamento de Estado. Passou pelo cargo de secretário de Estado adjunto às organizações internacionais, depois – ironicamente – pelos “direitos humanos” e, por fim, pelas questões interamericanas. Nesse último cargo, protegeu o secretário de Estado, George Shultz, de investidas de reaganianos desejosos de entrar em guerra com a União Soviética, envolvida em uma série de conflitos na América Central. A extrema direita latino-americana nunca havia contado com um aliado norte-americano tão enérgico quanto Abrams. Mesmo quando a polêmica girava em torno de massacres, como o dos milhares de camponeses inocentes em El Salvador, Nicarágua, Guatemala e até no Panamá (que George H. W. Bush terminou por invadir), ele sempre soube como atuar como um emissário que mascara a responsabilidade de Washington perante jornalistas, militantes pela justiça e até mesmo vítimas. Em março de 1982, o general guatemalteco Efraín Ríos Montt chegou ao poder por um golpe de Estado. Então secretário de Estado adjunto de direitos humanos, Abrams se apressou em felicitá-lo por ter “levado a progressos consideráveis” na questão dos direitos fundamentais e insistiu no fato de que “o número de civis inocentes assassinados diminuiu progressivamente”.4 Ao mesmo tempo, contudo, segundo

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um documento desclassificado, o Departamento de Estado recebia “alegações fundamentadas relacionadas a massacres em grande escala de homens e mulheres, crianças e indígenas perpetradas pelo Exército em uma zona remota”. Isso não impediu que Abrams pedisse ao Congresso que aprovasse o fornecimento de armas aperfeiçoadas aos militares guatemaltecos, argumentando que “o progresso deve ser recompensado e encorajado”. Em 2013, a Comissão pelo Esclarecimento Histórico, criada sob os auspícios das Nações Unidas, reconheceria o general Ríos Montt culpado por “atos de genocídio” durante o encontro dos Maias Ixil no Departamento de Quiché. CITAÇÕES IMAGINÁRIAS

Promovido em 1985 ao posto de secretário de Estado adjunto de questões interamericanas, Abrams não parava de condenar as organizações que denunciavam os assassinatos em massa perpetrados pelo general-ditador Ríos Montt, e depois seus sucessores, Oscar Mejía Víctores e Vinicio Cerezo Arévalo. Em abril de 1985, a militante guatemalteca Maria Rosario Godoy de Cuevas, dirigente do Grupo de Apoio Mútuo, uma organização que reunia mães de desaparecidos, foi encontrada morta em um carro acidentado com seu filho de 3 anos e seu irmão. Não contente de apoiar a versão (pouco crível) do regime de que havia sido uma fatalidade, Abrams perseguiu na justiça os que tentaram abrir uma investigação processual sobre o caso. Quando o New York Times revelou uma carta aberta contestando os números do Departamento de Estado em relação aos assassinatos em massa, redigido por uma mulher ela mesma testemunha de uma execução sumária que havia ocorrido em plena luz do dia em Guatemala City sem que a imprensa divulgasse uma nota sequer, ele escre-

veu uma carta descaradamente mentirosa ao redator-chefe. Chegou a citar um artigo imaginário, publicado em um jornal que não existia, a fim de provar que esse assassinato havia sido, sim, reportado pelos meios de comunicação. Em 1982, o New York Times e o Washington Post publicaram artigos evocando um massacre cometido um ano antes por tropas formadas e equipadas pelos Estados Unidos na região de El Mazote, em El Salvador. Imediatamente se posicionando em defesa dos assassinos, Abrams declarou diante de uma comissão no Senado que os artigos “não eram confiáveis” e que “visivelmente” se tratava de um “incidente instrumentalizado” pelas guerrilhas. Em 1993, a Comissão pela Verdade das Nações Unidas concluiu que 5 mil civis foram “deliberada e sistematicamente” assassinados em El Mazote. Em 1985, quando o ditador panamenho Manuel Noriega ordenou a tortura e o assassinato por decapitação do guerrilheiro Hugo Spadafora, Abrams interveio junto ao Departamento do Estado e diante do Congresso para impor o silêncio sobre esse caso. “[Noriega] nos ajudou muito [...], ele não representa um verdadeiro problema. [...] Os panamenhos prometeram nos ajudar a combater os ‘contras’. Se você persegui-lo na justiça, não poderemos contar com eles”, explicou.5 Abrams estava envolvido no escândalo Irangate em vários níveis. Em 1986, um piloto mercenário norte-americano foi abatido enquanto transportava armas ilegais destinadas aos “contras” nicaraguenses. Abrams apareceu na CNN para certificar que o governo norte-americano não estava de nenhuma forma envolvido com aqueles voos. “Seria ilegal. Não temos o direito de fazer

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isso e não fazemos. Definitivamente não foi uma operação do governo norte-americano. [...] Se as coisas aconteceram dessa forma, se os norte-americanos foram mortos e seus aviões abatidos, é porque o Congresso não agiu [para financiar os ‘contras’]”, afirmou em cadeia mundial. Diversas vezes, assegurou no Congresso que “a função do Departamento de Estado [em termos de ajuda aos ‘contras’] não era arrecadar fundos, e sim de obtê-los do Congresso”. Era tudo mentira. As entregas de armas eram financiadas pelo tenente Oliver North e pela CIA. Quando fez essas afirmações, Abrams retornava justamente de Brunei, onde havia arrecadado fundos para os “contras”. Em 1991, a revelação dessas falsificações lhe valeu uma condenação por dissimulação de informação no Congresso.

manentes em 2009, conferindo-lhe uma legitimidade de “especialista”. Esse prestigioso think tank somente manifestou algum embaraço quando sua nova equipe foi repreendida pelo presidente Barack Obama por ter designado ao posto de secretário da Defesa Charles Hagel – um “antissemita” que “parece ter problemas com os judeus”, segundo o ex-presidente (Rádio Pública Nacional, 7 jan. 2013). Nenhum membro parece, por outro lado, ter se incomodado por sua contribuição nas manipulações eleitorais, massacres ou genocídios. Sua nomeação ao Conselho de Relações Exteriores e, atualmente, ao posto de enviado especial dos Estados Unidos à Venezuela denota a intenção dos conservadores em relação à política externa dos Estados Unidos.

LEGITIMIDADE DE “EXPERT”

*Eric Alterman é jornalista.

Abrams não se envolveu com a administração de Bill Clinton, mas foi recrutado por seu sucessor, George W. Bush, para trabalhar no Conselho Nacional de Segurança em questões relacionadas a Israel e Palestina. Seu grande êxito na época, revelado pelo jornalista David Rose na Vanity Fair, foi impedir as eleições de 2006 de terminarem com um governo de coalizão entre Hamas e Fatah na Cisjordânia e em Gaza, conspirando com o segundo para obrigar o governo eleito, dominado pelo Hamas, a se exilar em Gaza.6 Essa manobra selou uma divisão sem fim entre essas duas facções, atualmente incapazes de negociar uma paz duradoura com Israel (se é que Israel estaria disposto a isso). Finalmente, segundo uma investigação do jornal britânico The Guardian,7 Abrams teria encorajado em 2002 o golpe de Estado militar na Venezuela contra o governo democrático de Hugo Chávez (revertido após imensa mobilização popular). Nenhum desses fatos impediu o Conselho de Relações Exteriores de acolher Abrams entre seus membros per-

1 Jennifer Jacobs e Nick Wadhams, “‘Never Trumpers’ can get State Department jobs with Pompeo there” [Contrários a Trump podem conseguir trabalho no Departamento de Estado com Pompeo lá], Bloomberg, Nova York, 31 jan. 2019. 2 Citado em Grace Segers, “US envoy to Venezuela Elliott Abrams says his history with Iran-Contra isn’t an issue” [Enviado norte-americano à Venezuela, Elliot Abrams, diz que caso do Irã e os contras não é uma questão], CBS News, 30 jan. 2019. 3 Citado em Samuel Blumenthal, The Rise of the Counter-Establishment. The Conservative Ascent to Political Power [O levante do contrassistema. A ascensão conservadora ao poder político], Union Square Press, Nova York, 2008 (1. ed.: 1986). 4 Citado em Samuel Totten (org.), Dirty Hands and Vicious Deeds. The US Government’s Complicity in Crimes Against Humanity and Genocide [Ações violentas e mãos sujas: a cumplicidade do governo norte-americano em crimes contra a humanidade e genocídios], University of Toronto Press, 2018. 5 Citado em Stephen Kinzer, Overthrow: America’s Century of Regime Change from Hawaii to Iraq [Derrubada: o século norte-americano de mudanças no regime, do Havaí ao Iraque], Times Books, Nova York, 2006. 6 David Rose, “The Gaza bombshell”, The Hive, 3 mar. 2008. Disponível em: <www.vanityfair.com>. 7 Ed Vulliamy, “Venezuela coup linked to Bush team” [O golpe na Venezuela ligado ao time de Bush], The Guardian, Londres, 21 abr. 2002.

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UMA DIREITA INTRANSIGENTE

O que quer a oposição na Venezuela? Golpe de Estado, locaute, boicote das eleições... A ala radical da oposição venezuelana tentou de tudo para derrubar Hugo Chávez e depois Nicolás Maduro. Agora que o caos social e político a favorece, ela sabotou as tentativas de diálogo com o poder em 2018 e conta cada vez mais com uma intervenção norte-americana para atingir seus objetivos POR JULIA BUXTON*

oderia o inimaginável ter ocorrido na Venezuela? Uma oposição paralisada pelos ressentimentos e pelas divergências estratégicas parece ter conseguido se unir. A ideia de que a reeleição do presidente Nicolás Maduro em maio de 2018 carecia de legitimidade ajudou a construir pontes para além dos antagonismos que até então pareciam intransponíveis. Majoritariamente antimaduristas, os deputados da Assembleia Nacional entraram em entendimento para considerar que o presidente tinha “usurpado” seu posto, o que justificava invocar a Constituição Bolivariana de 1999, que prevê que o presidente do Parlamento tome as rédeas do país. Portanto, no dia 23 de janeiro, Juan Guaidó autoproclamou-se “presidente interino” e estabeleceu para si a tarefa de liderar um governo “de unidade nacional” encarregado de organizar uma eleição presidencial no prazo máximo de um ano. Nos dias que se seguiram, ele foi reconhecido por cerca de cinquenta países, entre eles os Estados Unidos, o Brasil, o Equador e a maioria dos países da Europa Ocidental. Muitas vozes, incluindo a do intelectual norte-americano Noam Chomsky, denunciaram um golpe de Estado.1 O ex-relator independente nas Nações Unidas, Alfred de Zayas, acredita que as sanções dos Estados Unidos (que não pararam de endurecer desde 2017) significam “crimes contra a humanidade”,2 já que agravam a situação econômica e social do país, por si só muito difícil.3 Mas a esperança de que as pressões norte-americanas precipitassem uma mudança de regime fracassou. Apesar dos apelos à rebelião, as Forças Armadas continuam fiéis a Maduro. A Rússia e a China também o apoiam, ainda que esta última tenha iniciado conversas com a oposição sobre a dívida de US$ 75 bilhões que Caracas contraiu com ela.4 O convite para encontrar uma solução negociada, defendida pelo México e pelo Uruguai, cortou as asas de Guaidó. Impulsionado por Washington, este último recusou convites para o diálogo, preferindo exigir um agravamento das sanções, sem descartar a ideia de uma

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intervenção militar liderada por seus patrocinadores do Norte. Apesar da união circunstancial dentro da oposição, uma pergunta permanece: que país ela pretende construir? No momento, ela não fornece nenhuma resposta precisa. E por uma boa razão: divisões violentas continuam a separar os oponentes de Maduro. Sua coesão, apressadamente consolidada nos últimos meses, ameaça rachar quando se trata de organizar o poder, distribuir cargos e definir orientações.

A situação parece favorável às alas radicais, que extraem grande parte de seu apoio do exterior Podemos identificar esquematicamente três grandes tendências. A primeira gira em torno do Vontade Popular (VP), o partido de Guaidó, fundado por Leopoldo López (atualmente em prisão domiciliar por incitação à violência e conspiração durante motins em 2014),5 assim como María Corina Machado e Antonio Ledezma, adversários de sempre do falecido Hugo Chávez. Os atores-chave da operação são todos oriundos dessa nebulosa, cuja marca é sua imprecisão em torno de suas convicções ideológicas, bem como seu comportamento de clã. Com fraca representação na Assembleia Nacional (catorze assentos de um total de 167), o VP parece estar sozinho na manobra. Na oposição, esse partido encarna a ala mais radical, a mais próxima de Washington, a mais desprovida de base social e a menos aberta a compromissos. Se ocorresse a Guaidó a ideia de abrir a porta para uma reconciliação com os venezuelanos – ainda numerosos – que defendem o chavismo, ele se arriscaria provocar a ira de seus militantes, que seu partido se dedica a fomentar há anos.

REVANCHE OU RECONCILIAÇÃO

Essa ala radical sempre considerou que a participação em eleições tendia a legitimar um poder autoritário, contribuindo para fragilizar a democracia. Em contato permanente com a diáspora que vive nos Estados Unidos, ela desfruta de acesso privilegiado aos setores mais conservadores do aparato político norte-americano e, em particular, ao senador Marco Rubio, da Flórida. Com o apoio de think tanks bem estabelecidos (Conselho das Américas, Fundação Carnegie), bem como da ajuda significativa da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e da Fundação Nacional para a Democracia (NED), essa equipe está inundando a mídia com suas admoestações em relação aos defensores do diálogo, com seus apelos a uma intervenção militar norte-americana e seus cenários de transição. Aproveitando a antipatia generalizada dos eleitores venezuelanos pelos partidos centralizados, os radicais se apoiam em “redes populares” com contornos indefinidos, na mídia on-line e na mobilização de estudantes de uma linha mais dura, ainda que pouco numerosos. Mas eles estão pagando o preço por seu elitismo. Oriundos de grupos sociais privilegiados, educados nos Estados Unidos, com tez de alabastro, seus líderes se distinguem dos venezuelanos que cultuaram Chávez. Suas manobras para derrubar o presidente – sobretudo uma tentativa de golpe em 2002 – foram vistas como tentativas desesperadas de uma minoria de indivíduos ricos desejosos de impor suas preferências. Enquanto a Revolução Bolivariana acumulou sucessos em termos de redistribuição de riqueza e redução de desigualdades entre raças, classes e sexos, a aproximação dessa pequena equipe com os neoconservadores de Washington contribuiu para lhes conferir a imagem de um grupelho antinacional e antipopular. As outras duas alas do antichavismo se mostraram mais dispostas a participar dos processos eleitorais, dialogar e apostar na “reconciliação”.

Sua influência nas diversas coalizões formadas pela oposição desde a eleição de Chávez, em 1998, variou de acordo com o peso relativo dos radicais. Quando foi coroada de sucesso, como nas eleições regionais de 2008 e nas eleições legislativas de 2010, sua estratégia eleitoral inflou as velas “centristas”. As derrotas, como a de Henrique Capriles contra Maduro nas eleições presidenciais de 2013, galvanizaram os defensores do boicote às urnas, que preferem as mobilizações de rua. A posição centrista está associada aos dois maiores partidos da oposição: Primeiro Justiça (PJ, 27 dos 109 assentos da oposição na Assembleia) e Ação Democrática (AD, 25 assentos), ainda que alguns líderes tenham o tempo todo feito um vaivém entre os dois. O PJ nasceu de várias campanhas em favor de uma reforma política durante os anos 1990. Ele foi inscrito no registro dos partidos políticos em 2000. O AD, por sua vez, continua sendo o maior partido histórico do país. Ele compartilhou o poder com a formação democrata cristã Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei), entre o retorno à democracia, em 1958, e o início da Revolução Bolivariana, em 1999. Nesse grupo, acredita-se que Capriles, líder do PJ, rompeu com a estratégia inicial de boicote que permitira a Chávez dispor do poder nos níveis nacional, regional e municipal entre 2000 e 2006. Pragmático, ele estimulou a Mesa da Unidade Democrática (MUD), uma coalizão de oposição formada em janeiro de 2008, a assumir um posicionamento menos de direita. Sob seu impulso, os documentos da MUD continuaram a evocar a “necessária reativação” econômica, a “indispensável reconstrução” democrática das instituições e a “urgência de uma recomposição” social do país. Mas eles também reconheceram o apoio popular de que Chávez se beneficiava e a necessidade de continuar com alguns de seus programas sociais.6 As eleições legislativas de 2010 favoreceram a posição dos centristas. O episódio cimentou a unidade da MUD em torno da candidatura de Capriles à elei-

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Juan Guaido, líder da oposição venezuelana que se autodeclarou presidente do paístodeclarou presidente do país ção presidencial de 2012. O candidato adotara então um programa de centro-esquerda: promover a iniciativa privada e levar em conta as questões sociais. A evolução não teve nada de anedótico para alguns membros da oposição que anteriormente tinham pleiteado a perda de peso de um Estado considerado obeso, o retorno a uma economia de mercado e a privatização da economia, aí incluído o setor petrolífero. Enquanto os radicais falavam apenas de processos judiciais contra membros do governo, Capriles enfatizava a reconciliação e a unidade nacional. “BUCHA DE CANHÃO”

Em 2012, Chávez venceu com facilidade, com uma margem de 11%, mas sua morte em 2013 precipitou outra eleição, que Capriles perdeu por apenas 0,7% contra Maduro. Essa sucessão de fracassos, no entanto, fortaleceu o domínio dos radicais. Novamente, Capriles mergulhou na sombra de López na esteira de disputas de tal forma violentas que a revista Foreign Policy acredita que elas despertaram na mídia “a mesma excitação que as séries nacionais água com açúcar da televisão”.7 Descrito por um telegrama do Departamento de Estado norte-americano em 2011 como “pronto a aguçar divisões”, “arrogante, vingativo e faminto por poder”, mas dotado “de uma popularidade a toda prova, de carisma e de talento para a organização”,8 López se juntou ao partido Um Novo Tempo (UNT), outra divisão do AD formada em 1999, que se dedicou sobretudo a soprar as brasas das mobilizações estudantis do final dos anos 2000. Ele fundou o VP em 2009. Forçado a renun-

ciar aos mandatos que exerceu após acusações de corrupção, tornou-se o opositor mais temido do campo chavista, elevado à categoria de herói nas alas mais radicais da oposição. Esse status lhe rendeu as humilhações do poder e uma pena de prisão. Em tal contexto, Capriles representava aos olhos dos mais desenfreados nada mais que um melro um pouco insípido comparado ao tordo López. Uma nova convergência de entendimento, no entanto, logo permitiria unir as duas posições opostas, sob a forma de uma fusão das estratégias: uma insurreição apoiada na reivindicação de um processo eleitoral. Nas eleições legislativas de 2015, a MUD ganhou com 56% dos votos, obtendo a maioria dos assentos. Mas, se por um lado os membros da coalizão entraram em acordo sobre a necessidade de chegar ao poder, por outro eles não elaboraram nenhum plano para quando estivessem lá. Além de seu desejo declarado de derrubar Maduro “dentro de seis meses”, suas reivindicações se resumiam à libertação de “prisioneiros políticos” – em particular López – e à suspensão de alguns dos programas sociais mais populares do país. Em um contexto de caos econômico, escassez e insegurança desenfreada, as prioridades dos parlamentares de novo não foram ao encontro daquelas da população. Ao longo desse período, as pesquisas de opinião atestaram a ascensão em poder dos “nem nem”, isto é, daqueles que rejeitam tanto o poder madurista quanto a oposição. Segundo as pesquisas, esse grupo representava quase metade da população em 2017.9

No mesmo ano, a MUD implodiu. Maduro acabava de criar a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) para contornar o órgão legislativo tradicional, nas mãos da oposição, cuja legitimidade ele contestava sob o pretexto de suspeitas de compra de votos que pesavam sobre três deputados do estado do Amazonas. A ANC não foi reconhecida nem pelos Estados Unidos nem pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A situação parecia favorável às alas radicais, que extraem grande parte de seu apoio do exterior. Mas cinco governadores eleitos sob a bandeira da MUD finalmente prestaram juramento diante da nova assembleia. Mais uma vez, apareceram as fraturas na oposição. As fileiras dos partidários da via eleitoral aumentaram com o reforço dos chavistas – às vezes ex-ministros do presidente desaparecido – e, mais genericamente, de militantes socialistas que a corrupção, o autoritarismo e o caos econômico levaram à ruptura. Na eleição presidencial de maio de 2018, eles apoiaram a candidatura de Henri Falcón. Este sofreu as mais fortes críticas até dentro da oposição: María Corina Machado descreveu seu esforço de conciliação como “repugnante e indigno”.10 Maduro o venceu com 68% dos votos e uma participação raquítica de 46%. O novo fracasso dos moderados deixou inebriados os radicais, na primeira fila dos quais está um certo Juan Guaidó. A autoridade deste último na nebulosa da oposição permanece, no entanto, frágil. Poucos dias antes do discurso em que se autoproclamou presidente, Capriles denunciou as ten-

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tativas de passagem pela força de “alguns” membros da oposição, que segundo ele pareciam estar dispostos a transformar a população venezuelana em “bucha de canhão”.11 Depois de uma união de fachada nos dias que se seguiram ao esforço de Guaidó, os críticos endureceram novamente, uma vez que o objetivo inicial, a rápida derrubada de Maduro, não foi alcançado. Em 15 de fevereiro, um artigo do Wall Street Journal constatou que, apesar da convicção do VP e de seus aliados norte-americanos de que “o regime do presidente Nicolás Maduro entraria em colapso logo que Washington começasse a privá-lo de seus apoios militares para apressar sua partida, as coisas não seguiram esse caminho”.12 Mais uma vez, a incapacidade da oposição de chegar a um acordo sobre uma estratégia de tomada do poder colocou em segundo plano sua fraqueza principal: o fracasso em propor um projeto político coerente e capaz de convencer a maioria dos cidadãos. Enquanto Maduro ainda consegue mobilizar parte da população, a persistência das lógicas de clã na oposição compromete a busca de uma solução pacífica para a crise atual. *Julia Buxton é professora de Política Comparada da Universidade Centro-Europeia de Budapeste, Hungria. 1 “Open letter by over 70 scholars and experts condemns US-backed coup attempt in Venezuela” [Carta aberta de mais de setenta acadêmicos e especialistas condena tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos na Venezuela], 24 jan. 2019. Disponível em: . 2 Michael Selby-Green, “Venezuela crisis: Former UN rapporteur says US sanctions are killing citizens” [Crise na Venezuela: ex-relator da ONU diz que as sanções dos EUA estão matando cidadãos], The Independent, Londres, 26 jan. 2019. 3 Ler Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du chaos” [Venezuela, as razões do caos], Le Monde Diplomatique, dez. 2016. 4 Kejal Vyas, “China holds talks with Venezuelan opposition on debt, oil projects” [China mantém conversações com a oposição venezuelana sobre dívida, projetos de petróleo], The Wall Street Journal, Nova York, 12 fev. 2019. 5 Ler Alexander Main, “Au Venezuela, la tentation du coup de force” [Na Venezuela, a tentação do golpe], Le Monde Diplomatique, abr. 2014. 6 “Lineamentos para el programa de gobierno de unidad nacional (2013-2019)” [Diretrizes para o programa de governo da unidade nacional (20132019)], MUD, Caracas, 23 jan. 2012. 7 Roberto Lovato, “The making of Leopoldo López” [A construção de Leopoldo López], Foreign Policy, Washington, DC, 27 jul. 2015. 8 Idem. 9 Yesibeth Rincón, “Crecen los ‘ni ni’ ante falta de soluciones a crisis” [Crescem os “nem nem” diante da falta de soluções para a crise], Panorama, Maracaibo, 2 jan. 2017. 10 Orlando Avendaño, “Machado sobre candidatura de Henri Falcón en presidenciales de Maduro: ‘Es repulsiva e indignante’” [Machado sobre candidatura de Henri Falcón nas presidenciais de Maduro: “É repugnante e ultrajante”], PanAm Post, 5 mar. 2018. Disponível em: <espanampost.com>. 11 “Quién es el enemigo de la Asamblea Nacional?” [Quem é o inimigo da Assembleia Nacional?], 13 jan. 2019. Disponível em: . 12 David Luhnow e Juan Forero, “Risk of stalemate mounts in Venezuela” [Risco de impasse cresce na Venezuela], The Wall Street Journal, 15 fev. 2019.

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SEGURANÇA PÚBLICA

O pacote de Moro nasce velho Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”. Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado? POR MARCELO FREIXO*

á havia anoitecido quando Jhonata Alves, de 16 anos, saiu da casa do tio, no Morro do Borel, na Tijuca, para voltar para a Usina, na zona norte carioca, onde vivia com a mãe e os quatro irmãos. Ele fora buscar saquinhos de pipoca para a festa junina da creche do caçula, que aconteceria no dia seguinte. Mas Jhonata nem sequer conseguiu sair da favela. Quando descia o morro, foi assassinado com um tiro de pistola na cabeça disparado por um PM da UPP do Borel. O policial teria confundido os pacotes de pipoca com drogas. O crime ocorreu no dia 30 de junho de 2016. História semelhante se repetiu dois anos depois, em 17 de setembro de 2018, no Morro do Chapéu Mangueira, favela da zona sul do Rio. O garçom Rodrigo Serrano foi assassinado a tiros por um PM que confundiu o guarda-chuva que ele carregava com um fuzil. A execução de Rodrigo lembra a morte do supervisor de supermercado Hélio Ribeiro, de 47 anos, assassinado no Andaraí no dia 19 de maio de 2010 por um cabo do Batalhão de Operações Especiais (Bope) enquanto instalava um toldo na laje de sua casa. O policial achou que a furadeira que Hélio segurava era uma metralhadora. O pacote apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, com medidas para supostamente enfrentar a violência me fez recordar as histórias de Hélio, Jhonata e Rodrigo. Isso porque, ao abordar a legítima defesa, Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”. Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado? Você concordaria que o PM que disparou à queima-roupa contra Jhonata tivesse sua pena extinta caso dissesse que agiu sob “violenta emoção”? Ou que o policial que confundiu o guarda-chuva de Rodrigo com um fuzil não fosse punido porque alegou que naquele momento estava submetido a “escusável medo”? Medidas como essa não diminuirão a violência. Pelo contrário. Permitir que

© Daniel Kondo

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agentes de segurança pública não sejam responsabilizados por homicídios cometidos sob argumentos tão subjetivos certamente nos levará a uma situação nefasta: mais acobertamento de execuções, impunidade e aumento da violência policial. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, no governo Marcello Alencar (1995-1999), com a chamada gratificação faroeste: policiais eram premiados por bravura, o que levou agentes a matar e a morrer mais, sem que isso reduzisse a criminalidade. Moro tem dito que o pacote estabelece segurança jurídica ao definir as circunstâncias em que o policial pode agir. Não é verdade, pois se trata, no fim das contas, de segurança jurídica para a prática de execuções. Até porque não existe vácuo legal em relação à legítima defesa. A legislação atual prevê que não há crime quando o policial usa a força de maneira proporcional, inclusive de forma letal, para proteger a própria vida ou a de outra pessoa. Ao contrário do que dá a entender a proposta de Moro, não há perseguição a policiais que matam em serviço, e sim leniência do Ministério Público e do Poder Judiciário. Fui relator da CPI dos Autos de Resistência na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), encerrada em 2016. Ali, indica-

mos a responsabilidade do Judiciário, que entre 2005 e 2007 arquivou 99,2% dos processos sobre homicídios ocorridos em operações, segundo pesquisa do sociólogo Michel Misse. Discursos populistas e modificações legais que incentivam maior violência policial não valorizam a polícia nem seus profissionais. Eles fazem apenas que trabalhadores da segurança se lancem numa guerra insana, matando mais e morrendo mais, porque na guerra é matar ou morrer. E, no nosso caso, não há nem haverá vencedores, muito menos avanços na diminuição da criminalidade. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 a polícia matou catorze pessoas por dia em todo o país, totalizando 5.144 homicídios – um aumento de 20% em relação a 2016. No mesmo ano, 367 policiais foram assassinados, um por dia, em média. A polícia matou e morreu muito, e isso não teve nenhum efeito sobre a redução da violência, como demonstram os dados gerais de homicídios de 2017, quando ocorreram 63.880 assassinatos, 3% a mais do que no ano anterior. Existem duas questões, uma de fundo ético e outra de fundo prático. Do ponto de vista da ética, o Estado não pode encobrir crimes de seus

agentes sob o argumento de combater a criminalidade. É uma contradição horrenda. O argumento prático pode ser assim resumido: se a violência policial resolvesse, o Brasil seria o país mais pacífico do mundo. Os problemas relativos à legítima defesa não se restringem às ações policiais. A proposta prevê que os mesmos argumentos valham para civis. Façamos um exercício de fabulação. Imagine um jovem de família humilde, morador de uma cidadezinha do interior do país. Nesse mesmo município vive um próspero fazendeiro. E, sempre que passa pelo farto pomar do latifundiário, nosso protagonista lança os olhos compridos para as árvores carregadas de tangerinas. De vez em quando, ele pula a cerca e pega algumas frutas. Revoltado, o fazendeiro um dia dispara e mata o rapaz. Caso a proposta de Moro estivesse valendo, o assassino poderia alegar que agiu sob “violenta emoção” e não ser punido. À exceção do desfecho trágico, o relato é inspirado em fatos. Matéria da BBC News Brasil de 16 de janeiro de 2019 contou a história do período em que as famílias Bolsonaro e Paiva, do deputado Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar, conviveram em Eldorado Paulista, em São Paulo. O jovem que surrupiava tangerinas era Bolsonaro. E o fazendeiro, o patriarca Jaime Paiva, que chegou a escalar um vigilante para desencorajar os meninos. Se o jovem Bolsonaro tivesse sido atacado pelo fazendeiro, que benefícios isso traria à segurança? Nenhum. Outro exemplo. Pensemos numa mulher que é frequentemente agredida pelo marido, mas nunca registrou o crime – ninguém sabe o que ocorre em sua casa. Se num dia ela resolver reagir aos ataques e for morta pelo cônjuge, o homicida poderá alegar que agiu sob “violenta emoção” e não ser punido. No que se refere à segurança pública, Moro comete o erro elementar de apostar em iniciativas que fracassaram ao longo dos últimos anos e nos levaram ao descalabro que vivemos hoje. Isso não ocorre somente em relação à medida que abre brechas para o agravamento da violência policial. O ministro propôs modificações legais para, em suma, prender mais e soltar

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menos. A consequência dessa escolha é óbvia: o sistema prisional, que já é caótico, vai explodir. E não é preciso ser especialista em segurança para concluir que o fato provocará efeito contrário ao esperado: a violência tenderá a aumentar por meio do fortalecimento de facções criminosas cujas bases estão no sistema penitenciário. O Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) não surgiram e se organizaram nas ruas, mas dentro das cadeias e graças à barbárie dentro delas. Medidas que agravem a superlotação tornarão a situação ainda mais delicada. O país precisa discutir de maneira menos populista o sistema prisional. Entulhar pessoas em masmorras e submetê-las a maus-tratos em celas superlotadas pode satisfazer nossos sentimentos imediatos de vingança, mas não nos ajuda a melhorar as condições da segurança. Por uma razão muito simples: as prisões não são um mundo à parte da realidade; a violência dentro delas alimenta a violência nas ruas. Não se reduz a criminalidade simplesmente encarcerando em massa. Vejamos os dados: entre 1990 e 2016, a população penitenciária cresceu 707%, chegando a 726 mil. A criminalidade diminuiu? Meu argumento não é só humanitário, ele também é fruto de uma preocupação prática com a eficácia do sistema. Os presídios brasileiros são lugares caros para tornar as pessoas piores. Evidentemente, criminosos que representam riscos à vida das pessoas precisam ter a liberdade restringida. Mas esse não é o perfil majoritário da população carcerária, até porque a taxa de homicídios elucidados no Brasil é baixíssima. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2016, publicado pelo Ministério da Justiça, crimes contra a vida, como homicídio e latrocínio, correspondem a 14% dos detentos. Além disso, em 2017 havia 247,8 mil pessoas presas sem julgamento definitivo, o que equivale a 37% da população carcerária. Além de apostar no que fracassou, Moro se omite sobre a ausência de políticas de ressocialização, como se não fossem centrais para a segurança pública. De acordo com o mesmo Infopen, apenas 12% dos detentos brasileiros estudam e somente 15% trabalham. Ao passar ao largo desse problema, o pacote mostra que a política para o sistema prisional continua sendo não ter política alguma. O ministro também se equivoca ao tratar as milícias de maneira superficial, assemelhando-as ao narcotráfico. Não se enfrentam milicianos e traficantes com as mesmas estratégias. Presidi a CPI das Milícias na Alerj em 2008. O trabalho foi um marco no en-

frentamento ao crime organizado: pedimos o indiciamento de 226 pessoas; possibilitamos a prisão dos chefes das quadrilhas, entre eles deputados e vereadores; apresentamos à União, ao estado e ao município do Rio, bem como aos três poderes, 58 propostas para combatê-las de forma inteligente e eficaz, mas pouco se avançou. Por que essa omissão? Talvez porque as milícias, que não são problema exclusivo do Rio de Janeiro, interessem a muita gente. Ao contrário do tráfico, milícia é uma máfia bastante enfronhada nas estruturas do Estado. Milicianos conseguem transformar seu domínio territorial em capital eleitoral. Em outras palavras, o projeto das milícias é econômico e político. É o Estado leiloado. As quadrilhas ajudam a eleger vereadores, deputados, prefeitos, senadores. Por isso, chama a atenção que Moro trate o assunto de forma tão ligeira, mesmo diante de tanta informação produzida. Na realidade, o pacote não é sobre segurança pública, mas sobre o processo e a execução penal, que, apesar de serem assuntos correlatos, estão longe de dar conta da complexidade do problema. Não há uma linha, por exemplo, sobre o que fazer para melhorar o setor de inteligência das polícias, algo fundamental para revertermos a baixíssima taxa de elucidação de crimes contra a vida. O jornal O Globo publicou em 18 de fevereiro que apenas 0,5% da verba de segurança nos estados e no Distrito Federal foi investida em inteligência. No governo federal, o volume foi de apenas 9%, em média, nos últimos cinco anos. Moro ignorou essa questão. O ministro também passou longe das urgentes melhorias nas condições de trabalho dos agentes de segurança e do aprimoramento das instituições policiais: treinamento adequado; valorização da carreira e dos salários para que os trabalhadores não precisem recorrer a bicos, algo que está na origem das milícias; promoção da saúde no trabalho, principalmente no que se refere à saúde mental por causa dos altos níveis de estresse; revisão das jornadas de trabalho extenuantes, essencialmente dos praças, para que eles tenham mais tempo para a família e o lazer; integração das polícias estaduais e federal; definição dos papéis de cada ente federativo no trato da segurança pública – como viabilizar o cumprimento das responsabilidades dos municípios, do estados e da União, como manda a Constituição? Esses desafios receberam de Moro somente o silêncio. Esta análise não poderia deixar de fora a relação das propostas do ministro com o decreto presidencial que na prática liberou a posse de armas de fogo. A combinação é explosiva. De um lado,

facilita-se que mais pessoas adquiram armas. Do outro, abre-se brecha jurídica para que assassinatos sejam enquadrados como legítima defesa. Permitir que mais pessoas se armem pode até reduzir a sensação individual de insegurança, mas não diminuirá a violência. O decreto é tão demagógico e ineficaz quanto o estímulo à violência policial e ao encarceramento em massa. Na prática, o presidente Jair Bolsonaro está declarando a falência do Estado no trato do problema e repassando aos indivíduos, que não têm nenhum preparo para tal, a responsabilidade de enfrentar o crime. Se policiais morrem aos montes ao serem surpreendidos por bandidos, que será dos cidadãos comuns? Presidi a CPI do Tráfico de Armas e Munições na Alerj em 2011. Constatamos à época que o problema maior não está nas fronteiras, mas nas armas fabricadas no Brasil e que foram desviadas para a ilegalidade dentro do território fluminense – elas corresponderam a 82% das apreensões entre 2000 e 2010. Assim, ampliar a circulação de armamentos significa também fortalecer o mercado clandestino que alimenta a violência, diminuindo inclusive o preço, já que aumenta a oferta. Moro também se omite sobre isso. Sabemos que o poder público não tem conseguido apresentar soluções reais para o crescimento da criminalidade. Mas não podemos deixar que nossa angústia, por mais compreensível que seja, nos leve a namorar medidas populistas num salvacionismo ilusório de recrudescimento da ação policial, endurecimento penal, facilitação do acesso a armas e extinção de garantias constitucionais. Precisamos de mais diálogo e políticas responsáveis. Afinal, existem propostas concretas a serem discutidas, algumas delas apresentadas aqui. Infelizmente, Moro elaborou esse pacote sem nenhum debate anterior e permanece resistindo a conversar com pessoas e entidades que acumulam experiência sobre o tema e muito poderiam contribuir. Sem a abertura ao diálogo e a viabilização da participação da sociedade, não conseguiremos avançar, principalmente num Congresso dominado pelo lobby da indústria das armas. A bancada da bala não tem nenhum compromisso com a redução da violência – nela prevalece somente a lógica econômica em detrimento da vida das pessoas, inclusive dos policiais lançados à guerra e dos cidadãos mais angustiados e propensos a acreditar em ilusões armadas. Se aprovadas como estão, as propostas do ministro para a segurança pública agravarão ainda mais nosso drama. *Marcelo Freixo é professor de História e deputado federal (Psol-RJ).

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O olhar da cidadania

Na luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável.

Quartas, às 17h, Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM Ribeirão Preto: 107,9 FM)

Quartas, à meia-noite TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Vivo Fibra e 186 da Vivo.

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DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE

Políticas da morte e seus fantasmas As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de variadas ordens. Confira o segundo artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019 POR ADRIANA VIANNA*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chamados simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobilizam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente

Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

é importante notar que ele não cobre ou extingue tudo o que foi visto, sabido e experimentado. As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de variadas ordens. Como argumenta Vera Telles no primeiro artigo deste dossiê, vivemos “sob a égide das obsessões securitárias e da lógica bélica e militarizada de gestão das populações indesejadas”.1 Nesse quadro, os mortos continuamente borrados sob a capa da irrealização que termos como “traficante” ou “terrorista” produzem são figuras paradoxais da hipervisibilização e do apagamento. Seguem sem nomes, apenas como “suspeitos”, tornados indistintos em corpos racializados e territorializados como negros, periféricos, favelados, estrangeiros. Sua singularização é impossibilitada não por qualquer semelhança de fato entre eles, mas por estar assentada nas imagens espectrais que os contornam: o selvagem, o outro incivilizado, o bárbaro. Como lembra Fanon, são aqueles que habitam a cidade do colonizado, espaço onde vivem e morrem não se sabe como.2 Para combatê-los não deve haver economia material ou discursiva, uma vez que é o próprio excesso que garante o sucesso das tecnologias de terror colonial.3 Máscaras com imagens de caveira; blindados que entram nos territórios favelados anunciando que vieram buscar almas; rastros de sangue que têm de ser lavados por vizinhos. Tiros que vêm às centenas do céu, dos blindados aéreos que ceifam vidas que permanecem anônimas em sua maioria e que às vezes, só às vezes,

ganham a singularização do rosto de menino em camisa escolar, como no caso de Marcus Vinícius, assassinado na Maré em 2018. A presença de sua mãe, Bruna Silva, segurando a camisa escolar suja de sangue rompeu a invisibilização que cobriu todos aqueles que, ao contrário do menino que seguia para a escola, podiam permanecer no campo dos “suspeitos” ou possíveis “envolvidos”. Assim como Bruna, tantas outras mães, Dalva, Ana, Debora, Edna, Ana Paula, Fátima, Fatinha, Vera e muitas mais, vêm carregando as fotos de seus filhos para as ruas e para dentro das malhas do Estado, buscando romper o apagamento dessas mortes e dessas vidas. Basta, porém, confrontarmos as estatísticas para percebermos que se trata de um percentual muito pequeno diante daqueles que seguem anônimos. Em 2018, no Rio de Janeiro sob intervenção militar, foram registradas oficialmente 1.532 mortes cometidas por policiais. Este ano de 2019 mal começou e os números seguem impressionantes: cento e sessenta mortos apenas no mês de janeiro,4 incluindo a brutal execução de quinze pessoas no Morro do Fallet, sendo dez delas em uma mesma casa. Se movimentos sociais se empenham em denunciar e evitar o apagamento dessas ações brutais sob o manto dos registros variados de “confronto”, um deputado recém-eleito – o mesmo que fez questão de se exibir rasgando a placa em memória da vereadora Marielle Franco – defende a homenagem aos policiais encarregados da ação. Afinado a ele, o governador do estado, Wilson Witzel, declarou de imediato que a ação policial era legítima. Há muitos corpos a serem removidos e há também disputa em torno de suas marcas. Há o san-

[...] os que sabem o que aqui se passou devem dar lugar àqueles que pouco sabem, ou menos que pouco. E por fim nada mais que nada [...] Wisława Szymborska, “Fim e começo”, Poemas, Companhia das Letras. São Paulo, 2011.

esquecimento, como nos diz o poema de Szymborska, é matéria não apenas do trabalho do tempo, mas também das mãos que removem os entulhos que ficaram no meio do caminho como marcas físicas da guerra: vigas a serem erguidas, portas que precisam ser postas em seus caixilhos, vidros estraçalhados a serem repostos. Em meio a tantas tarefas de refazer a vida ordinária – o varrer, o limpar, o cozinhar e o cozer – estão também a remoção dos corpos e mesmo a abertura das vias para que por elas passem os caminhões que os levam. E, mais que tudo, o sepultamento não só de corpos, mas de seus vestígios e mesmo de suas lembranças. Limpar, polir, deixar de falar. Substituir a narrativa por gestos e reticências que, ao mesmo tempo que lembram, parecem querer afastar a lembrança. O fim e o começo que dão título ao poema não estão assegurados pelo armistício, mas são fruto desse trabalho íntimo e coletivo de não lembrar, de fazer esquecer, de deixar que o ruído dos dias e o passar das gerações produza o fim em meio a novos começos. Se o silenciar pode ser condição fundamental de refazer tanto a vida coletiva quanto as vidas individuais, protegendo não só os corpos, mas também os laços de afeto e a própria sanidade,

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aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de conflitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.

gue que deixam nas paredes encharcadas da casa ou nos caminhos por onde desceram; há os registros burocráticos que buscam desencarná-los e há as categorias discursivas que tingem as posições e perspectivas políticas dos que as escolhem. Nunca é rápido ou simples fazer que a guerra seja esquecida e se possa deitar no chão com o capim entre os dentes, como no verso final do poema de Szymborska. As operações em torno do dizer ou não dizer, do recordar ou do esquecer não são exatamente binárias, porém. Elipses, alegorias, gestos, ambivalências e silêncios de grande capacidade expressiva inscrevem-se nos meandros das coisas que parecem findas, mas que talvez nunca o sejam. Acompanhando há alguns anos redes militantes de familiares de pessoas mortas por forças policiais, vejo nas imagens em torno da maternidade algo que supera em muito o potencial de uma metáfora. A dor no útero que não cessa, o cheiro de menstruação que acompanhou a mãe todo o dia antes de saber da morte do filho, a ligação espiritual que não se rompe porque a carne chama, o sangue puxa e a condição materna se faz perene. É no corpo e por meio do corpo que circula esse vínculo que a morte não desfaz e que, sobretudo, o soterramento estatal sob categorias administrativas como “auto de resistência” e similares não consegue encerrar. Carne, espírito, memória e afeto criam uma copresença entre mortos e vivos que tem forte alcance político. É por essa copresença que são costuradas memórias privadas e espaço público, produzindo ruídos no silêncio que cerca suas mortes. As mães apresentam-se como figuras do trauma político, marcadas pelo que a antropóloga Grace Cho denomina de

“perda da perda”.5 A impossibilidade de realizar plenamente o trabalho do luto soma-se à ruptura brutal com o futuro imaginado, acalentado, configurando um trauma que, ainda segundo Cho, não se localiza apenas no passado, mas se movimenta também em direção ao futuro, sendo transmitido transgeracionalmente e espraiando-se, portanto, para circuitos maiores. Não poucas vezes ouvi, seja em falas públicas, seja em falas mais íntimas, essas mulheres contarem não só dos filhos mortos, mas também dos netos que não chegariam a ter. Esse futuro perdido segue com elas, corre misturado ao presente, inscreve-se no cotidiano como uma espécie de devir ao avesso. São aniversários que se acumulam e idades que se cumprem sem serem cumpridas de fato. Mas são também outras datas que se amontoam: das audiências realizadas e não realizadas, dos julgamentos que raras vezes chegam, das mortes de outros meninos que trazem de volta ao corpo as mesmas sensações de quando eles, os seus, se foram. Essas presenças fantasmáticas não devem ser pensadas apenas no âmbito das relações familiares ou dos afetos diretos. Elas se inscrevem como tecnologias de governo em territórios inteiros, passam por gerações, reencarnam nas novas mortes, nas chacinas, nas imagens replicadas que não dão conta dos números chocantes que configuram as estatísticas oficiais. Fazem-se presentes sob a forma de medos, cuidados, vergonhas e raivas que conduzem os vivos em suas andanças pelo mundo. O silêncio em torno desses mortos é, em verdade, ensurdecedor. Como no caso de tantas outras figuras contemporâneas, sejam os prisioneiros sujeitos à detenção indefinida em Guantánamo ou os refugiados que não podem retornar nem seguir em frente, esses vivos-matáveis existem em condição de irrealização contínua. Estão presentes e não estão. São evocados de maneira espectral quando se fala na necessidade de eliminá-los, formando um corpo coletivo e sem rosto definido que se materializa de súbito naqueles que foram (ou devem ser) alvo de snipers e drones, em uma fantasia de tons simultaneamente futuristas e nostálgicos. Ou que, em uma evocação animalizante e desumanizadora, devem ser “abatidos”, ou, ainda, que caem sufocados por seguranças terceirizados na porta de um supermercado. Bandido bom é bandido morto, reza o bordão, mas sabemos que a necropolítica também pode se tornar necrodestino na medida em que é sua morte que os produz inequivocamente como bandidos. A natureza do silêncio que os cerca não está na falta de informações ou notícias, mas em outro tipo de interdi-

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Carne, espírito, memória e afeto criam uma copresença entre mortos e vivos que tem forte alcance político

ção, a que envolve a impossibilidade de reconhecer que exista de fato perda nessas vidas ceifadas. Essa natureza ambígua de perda não perdida é o que garante sua presença espectral, como algo que, mesmo que não descrito plenamente, está sempre presente e prestes a irromper quando uma cena parece puxar outra mais subterrânea. O corpo sufocado no chão. O corpo atado ao poste e espancado. A mulher chicoteada pelo policial. Imagens que guardam outras imagens em si, encapsulando e insinuando um longo rastro de relações historicamente construídas de dominação. Uma vez mais, sugiro que pensemos na força produtiva e ao mesmo tempo críptica de termos como “traficante”, “envolvi-

do”, “terrorista” ou mesmo “suspeito” – termos que parecem descrever algo que em verdade encobrem, que simulam dizer enquanto impedem que se diga. Que falam de corpos negros, de territórios de favela, de uma ordem de controle da riqueza e do poder atravessada pelas punições corporais. Um mundo em que a disciplina do trabalho nunca esteve desembaraçada nem do suplício – as surras públicas, as humilhações – nem do controle doméstico e discricionário. Talvez uma das coisas mais atordoantes no Brasil hoje seja justamente lidar com a equação ética e estética que se alardeia sem pudores em torno desses tropos coloniais que tão profundamente nos conformam enquanto sociedade. O gozo com o suplício, a defesa estridente da execução sumária, a vociferação do desejo de “banir” as diferenças indesejadas mostram-nos que há uma aposta cênica de grande rentabilidade política que envolve diretamente os modos como lidamos coletivamente com vida e morte ou, para ser mais precisa, com vivos e mortos, e, consequentemente, com seus vestígios, marcas e presenças. Em outubro de 2018, o deputado que agora enaltece os policiais da maior chacina em mais de uma década no Rio de Janeiro protagonizava a já mencionada cena de rasgar a placa em homenagem a Marielle Franco. Replicada estratégica e exaustivamente em diversas mídias, a fotografia encenava uma batalha política e estética com fortíssimas marcas de gênero, sexualidade, raça, classe e territorialidade. Vestindo camisetas com as imagens do então candidato Jair Bolsonaro, os dois homens brancos sorriam triunfantes com a placa rasgada nas mãos. Em seu apoio nos meios de comunicação veio Flavio Bolsonaro, defendendo que sua atitude visava apenas “restaurar a ordem”,6 trocando o nome da vereadora, mulher negra, lésbica, favelada e de esquerda, covardemente assassinada em 14 de março desse mesmo ano, pelo que seria a placa original. A praça voltaria, assim, a ser a Praça Floriano, homenageando o marechal Floriano Peixoto, que permanece ali imobilizado sob forma de estátua, mesmo que ninguém conheça por esse nome a famosa Cinelândia. Achille Mbembe, ao discorrer sobre os monumentos coloniais, propõe que estes pertencem a um “duplo universo da necromancia e da geomancia”,7 estando, portanto, atravessados simultaneamente pela celebração constante aos mortos e pela tentativa de adivinhação do futuro por meio das marcas que deixam na terra. Diz-nos ainda que “essas estátuas funcionam como ritos de evocação dos defuntos, aos olhos dos quais a humanidade negra nunca contou para nada – razão

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pela qual jamais tiveram quaisquer escrúpulos em fazer, por nada, verter seu sangue”.8 Se seguirmos esse raciocínio, a ruptura da placa como “restauração da ordem” não deixa de fazer parte de uma batalha por meio dos mortos e, mais que isso, por meio da busca por ressuscitar alguns mortos e sepultar definitivamente outros. Ou, indo além, de uma batalha pela oportunidade de festejar a matança como parte central de nossa matriz colonial de dominação, controle e acumulação de poder. Recentemente, já em 2019, soube-se que o deputado exibia metade da placa rompida em seu gabinete na Assembleia Legislativa estadual. Como troféu ou, mais precisamente, como fetiche, ela ali condensava camadas de sentido, saturava-os pela exibição exaustiva, pelo excesso, pela obscenidade. Mas os sentidos, como os fantasmas, não se deixam aprisionar tão facilmente. Em resposta à placa rasgada, foram feitas e distribuídas na mesma praça (que segue não sendo chamada de Floriano), mais mil placas. O rosto de Marielle permanece estampado em muros, em silhuetas, projetado em imagens, corporificado nas três mulheres negras de sua mandatA que foram eleitas e em mais tantas e tantas outras que a têm como referência. A exacerbação do desejo pela morte como forma de governar territórios e populações negros, periféricos e favelados – a cidade do colonizado, o sertão, o “lá” – que transparece na legitimação das chacinas ou na “restauração” da ordem pode e deve ser entendida como parte da geomancia colonial de que fala Mbembe. São atos que se pretendem divinatórios, imaginando ler nos sinais o mundo que, em verdade, buscam reencenar exaustivamente. Um chamado ao passado que se pretende futuro. Mas esse não é o único mundo possível, da mesma forma que os mortos monumentalizados não são os únicos que permeiam nosso mundo. E os mortos, como os vivos, não param quietos. *Adriana Vianna é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ.

1 Vera Telles, “A violência como forma de governo”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019. 2 Frantz Fanon, Os condenados da terra, Editora da UFJF, Juiz de Fora, 2005. 3 Michael Taussig, Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1993. 4 Dados do ISP – Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, www.isp.rj.gov.br. 5 Grace Cho, Haunting the Korean Diaspora. Shame, secrecy and the forgotten war [Assombrando a diáspora coreana. Vergonha, segredo e a guerra esquecida], University of Minnesota Press, 2008. 6 Exame, 4 out. 2018. 7 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, N-1 Edições, 2018, p.226. 8 Ibidem, p.227.

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200 MILHÕES DE GREVISTAS CONTRA NARENDRA MODI

Na Índia, os “bons dias” vão ter de esperar Entre abril e maio, 850 milhões de indianos irão às urnas escolher os membros da Câmara, que por sua vez designará o próximo primeiro-ministro. Ninguém arrisca qual será o impacto eleitoral das greves gerais que sacudiram o país em janeiro, uma das mais poderosas manifestações populares dos últimos anos © Daniel Kondo

POR NAÏKÉ DESQUESNES*

nquanto o Bharatiya Janata Party (BJP), o partido nacionalista hindu no poder, busca renovar suas chances nas urnas na primavera, as ruas não esperaram: em 8 e 9 de janeiro, em toda a Índia, entre 150 milhões e 200 milhões de pessoas deixaram o trabalho para sobrecarregar as cidades com sua cólera. Ônibus nas garagens, bancos fechados, crianças em idade escolar em férias forçadas, rodovias bloqueadas, imagens do primeiro-ministro queimadas: em toda parte, a economia foi perturbada. Dezenas de ativistas foram detidos pela polícia e trabalhadores foram gravemente feridos, com fraturas expostas e golpes na cabeça, particularmente no estado do Rajastão. “Os bons dias estão chegando”, proclamava em 2014 o slogan de campanha de Narendra Modi, o atual primeiro-ministro. Cinco anos depois, os dias ruins não parecem prestes a terminar. É verdade que o crescimento, de mais de 7%, permaneceu robusto, dando origem a recentes cumprimentos do FMI.1 Mas os números do desemprego são tão calamitosos que, desde 2016, o Ministério do Trabalho não divulga mais estatísticas. Jovens migrantes vindos do campo estão inchando os centros urbanos, prontos para aceitar tudo. Até quem tem diploma encontra dificuldade para conseguir emprego. Em 2018, a companhia ferroviária abriu 63 mil vagas – 19 milhões de pessoas se candidataram! Modi iniciou a privatização do setor ferroviário e dos bancos. Já cortou o orçamento da saúde – que não repre-

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sentava mais que 1,2% do PIB em 2018 – e o da educação – 0,6% do PIB.2 O do Programa de Assistência ao Emprego Rural, o subsídio para cantinas escolares, que fornecia uma refeição grátis para todas as crianças, planos de água potável e missões para a alfabetização estão também em processo de corte. Também estão sendo questionadas as 44 leis nacionais sobre o trabalho, que introduziram a semana de trabalho de 48 horas – oito horas de trabalho por dia, um dia de descanso por semana – e a obrigação de uma autorização administrativa para as demissões econômicas; um patamar de proteção arrancado com muita luta no momento da independência, fruto de um compromisso com os empregadores e as forças reformistas, e muito invejado pelos vizinhos asiáticos. As leis serão substituídas por quatro regras que reduzem os direitos dos empregados em favor dos empregadores e entravam as liberdades sindicais: tão logo seja votada a Emenda 2018 à lei de 1926 (India Trade Union Act), as autoridades regionais terão novos poderes de ingerência nos sindicatos, tanto para seu reconhecimento oficial como em seus conflitos internos, os quais poderão arbitrar. Por exemplo, no Rajastão, que serve como um laboratório para a política do governo central, será preciso haver 30% de sindicalizados em uma empresa (contra 15% hoje) para que um sindicato possa ser reconhecido. EFICIÊNCIA INCERTA

A “simplificação” da lei sobre os conflitos na indústria (Industrial Dis-

putes Act), de 1947, também permite que fábricas que empregam até trezentos funcionários decidam o fechamento administrativo sem autorização do governo (contra cem funcionários anteriormente). “Agora, 86% da indústria está nessa condição e pode, portanto, explorar livremente os trabalhadores graças a essa cláusula”, comenta Amarjeet Kaur, secretária-geral do Congresso dos Sindicatos da Índia (Aituc), filiado ao Partido Comunista da Índia (PCI). Os contratos com duração determinada, antes reservados à indústria têxtil, foram estendidos a todos os setores, em nome da flexibilidade. E mais: a lei trabalhista diz respeito apenas ao setor formal, ou seja, 7% da população ativa, ele próprio com um índice de sindicalização de apenas 2%. Outros setores permanecem muito difíceis de organizar. No entanto, a greve de janeiro viu a convergência, modesta, mas cada vez mais visível, do setor público e do setor informal (trabalhadores da construção civil, trabalhadores domésticos, condutores de riquixá e taxistas...). Sem mencionar os camponeses e os empregados do setor agrícola. No entanto, essa ampla mobilização pode realmente ameaçar as forças antissociais no comando do país? Nada menos seguro que isso. A Índia está acostumada a grandes marchas simbólicas e greves gerais; a de janeiro é a terceira do quinquênio Modi, depois das de setembro de 2016 e de setembro de 2015. Dessa vez, cerca de uma dúzia de sindicatos se reuniu em torno de

uma plataforma comum, e aqueles afiliados a diversas forças comunistas eram, como sempre, a maioria. Mas a central social-democrata, o Congresso Nacional Sindical Indiano (Intuc), foi colocada em primeiro plano, apenas para dar credibilidade como força de oposição ao Partido do Congresso, ao qual está ligado. Já a oposição comunista – o PCI, o Partido Comunista Indiano Marxista (PCI-M) e o Partido Comunista Indiano Marxista-Leninista (PCI-ML) – não está preparada para forjar um movimento político comum que representaria as aspirações dos mais desfavorecidos: trabalhadores, mulheres, muçulmanos, populações tribais, dalits. Enquanto isso, os intelectuais militantes – estudantes, professores, jornalistas etc. – sofrem pressões e prisões. Um “macarthismo à moda indiana”, para retomar as palavras do escritor Anand Teltumbde, assediado pela polícia.3 Muitos, inclusive na esquerda radical, esperam a vitória nas eleições da primavera de uma coalizão liderada pelo Partido do Congresso, símbolo de um neoliberalismo com uma face mais humana... *Naïké Desquesnes é jornalista.

1 “India’strong economy continues to lead global growth” [A forte economia da Índia continua a liderar o crescimento global], FMI, Washington, DC, 8 ago. 2018. 2 Business Standard, Nova Déli, 4 fev. 2018. 3 Anand Teltumbde, “McCarthyism in Modi’s India” [Macarthismo na Índia de Modi], Jacobin, 23 out. 2018. Disponível em: <www.jacobinmag.com>.

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PROTESTOS DOS BÁLCÃS À HUNGRIA

Revoltas na periferia da Europa Desde 8 de dezembro, milhares de sérvios se manifestam todo fim de semana contra o regime de Aleksandar Vucic. Na Albânia, estudantes fazem tremer o governo social-democrata de Edi Rama, enquanto a cólera aumenta na Hungria de Viktor Orbán. Para além das diferenças nacionais, as populações da Europa Central se mobilizam contra as mesmas políticas POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E SIMON RICO*

Sérvia está oferecendo a si mesma uma nova primavera no inverno. Como em 1996-1997, quando dezenas de milhares de cidadãos protestaram contra o regime de Slobodan Miloševic, os cortejos serpenteiam pelas ruas de Belgrado todos os sábados. Surgido em 8 de dezembro de 2018, o protesto contra a política autoritária e antissocial do presidente Aleksandar Vucic agora se estende a todas as cidades do país. Em Belgrado, a longa coluna faz uma parada em frente à sede da Radiotelevisão da Sérvia (RTS), símbolo do controle do poder sobre os meios de comunicação. Entre as reivindicações que unem o movimento: conseguir “cinco minutos de tempo no jornal da RTS”... Os manifestantes também exigem a verdade sobre o assassinato do opositor sérvio do Kosovo, Oliver Ivanovic, morto em 16 de janeiro de 2018, ou ainda sobre a renúncia do ministro do Interior. “Faz trinta anos que os cidadãos da Sérvia são forçados a tomar as ruas para exigir liberdade e justiça. Este movimento é nossa última chance, caso contrário este país desaparecerá”, lançou no final de janeiro Branislav Trifunovic. O ator arregimenta a multidão no início de cada cortejo de Belgrado, acrescentando um aviso severo aos líderes dos partidos – divididos – da atual oposição parlamentar, que, de resto, se mostram discretos. “As pessoas rejeitam todos os partidos que estiveram no poder, manchados por casos de corrupção”, reconhece Borko Stefanovic, chefe da Esquerda da Sérvia (Levica Srbije), que sofreu um ataque com barras de ferro, em 23 de novembro, o qual serviu como estopim do movimento. A rejeição vai ainda mais longe: os vários partidos da oposição “democrática”, no poder nos anos 2000, levaram a cabo políticas neoliberais semelhantes àquelas seguidas por Vucic hoje. Oriundo da extrema direita racista e belicista, e que há uma década se converteu em defensor da integração europeia, o novo senhor de Belgrado controla o país, apoiando-se em um círculo restrito de pessoas que lhe devem favores e são por ele protegidas. Despojados de qualquer referência ideológica e ansiosos por enriquecer rapidamente, seus tenentes colocaram o país sob um rígido controle,

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lançando mão tanto da repressão quanto do clientelismo. “Esse movimento está reduzindo o medo. Na Sérvia, as pessoas receiam perder o emprego se criticarem o regime... Essa é a capa de chumbo que está rachando”, avalia a jornalista Jovana Gligorijevic, do semanário Vreme, um dos últimos títulos da oposição. “Os países da União Europeia, embora saibam muito bem como Vucic governa a Sérvia, pensam, no entanto, que ele é o único capaz de garantir a estabilidade do país e da região. Entendemos que não podemos contar com o apoio deles.” Desse ponto de vista, a situação não é muito diferente daquela que prevalecia em 1996: na época, logo após a assinatura dos Acordos de Paz de Dayton, que em dezembro de 1995 haviam colocado um fim à guerra na Bósnia e Herzegovina, Slobodan Miloševic também contava com o apoio dos ocidentais. Estes esperam que Vucic resolva a questão do Kosovo, concluindo um acordo “histórico” com seu homólogo de Pristina, Hashim Thaçi. O chefe de Estado sérvio excede na arte de aumentar as apostas com eles, mostrando sua proximidade com a Rússia de Vladimir Putin, que ele recebeu com grande pompa em meados de janeiro. Vucic acelerou sobretudo a virada neoliberal da economia sérvia, desmantelando a lei trabalhista desde sua chegada aos negócios, em 2012, como vice-presidente do governo. “Queremos viver em um país normal. Hoje, todo mundo busca o exílio porque é impossível encontrar um emprego ou iniciar um negócio sem ter a carteirinha do Partido Progressista”, explica-nos um estudante de Belgrado, com o colete amarelo do serviço de manutenção sobre os ombros. Como todos os países balcânicos, a Sérvia é atingida por uma nova onda de emigração que toma ares de êxodo.1 O governo da primeira-ministra Ana Brnabic continua a alardear um crescimento em alta e a criação líquida de empregos. Mas esses resultados só são obtidos com muita ajuda pública a empresas estrangeiras, que captam esses incentivos antes de partir para outros lugares. O exemplo mais recente: a empresa de cabos de energia sul-coreana Yura, que transferiu parte de sua produção para a Albânia depois de receber 7 mil euros em

ajuda direta para cada trabalho criado em sua fábrica de Leskovac...2 Nessas oficinas de mão de obra, que estão aumentando nos Bálcãs, a legislação trabalhista é geralmente desconhecida, a flexibilidade é sistêmica e a renda real dos empregados dificilmente excede 200 a 300 euros por mês. Em dezembro, a Albânia experimentou os maiores protestos estudantis desde a queda do comunismo. O aumento da mensalidade escolar, que desencadeou essas reações, é consequência de uma lei – adotada no ano anterior pelo governo social-democrata de Edi Rama e saudada pela União Europeia – que previa a colocação em concorrência das universidades e sua abertura ao mercado. Rama, que chegou ao poder em 2013, só conhece uma receita para “modernizar” a Albânia: a das parcerias público-privadas, fonte de enriquecimento rápido para um círculo de empresários próximos do Partido Socialista (PS). O descontentamento estudantil teve como alvo explicitamente essa mudança, rejeitando com o mesmo ímpeto os dois partidos que se sucedem no poder desde a queda do regime comunista stalinista em 1991: o PS e seu “irmão inimigo” de direita, o Partido Democrata (PD). Após um quarto de século em que se denegriu tudo que era público, enquanto o setor privado era adornado com todas as virtudes, muitos observadores viram no movimento estudantil o surgimento de uma geração “pós-transição”. Rama teve de recuar, cedendo a várias reivindicações estudantis e demitindo metade de seu governo em 28 de dezembro de 2018. Enquanto a Albânia não deixa de ver partir suas forças vivas – os albaneses lideram os pedidos de asilo na França –, os estudantes em revolta exigem poder viver e trabalhar em seu país. Na Republika Srpska, a “entidade sérvia” de uma Bósnia e Herzegovina ainda dividida, milhares de pessoas rotineiramente desafiam o regime de Milorad Dodik a exigir justiça e verdade para David Dragicevic, jovem assassinado em circunstâncias obscuras na noite de 17 para 18 de março de 2018. No final de dezembro, as autoridades proibiram todas as reuniões, prenderam dezenas de pessoas e en-

viaram unidades policiais especiais para expulsar aqueles que ainda queriam colocar velas na neve. Há muito apoiado pelos ocidentais, Dodik3 não hesita em denunciar qualquer crítica a seu poder como uma tentativa de “desestabilização” da entidade sérvia. A estratégia é compartilhada pelos partidos nacionalistas bósnios e croatas: todos entram em acordo para fomentar crises permanentes, fazendo reinar um clima de medo cujo único propósito é marginalizar qualquer protesto. Os cidadãos de todos os países dos Bálcãs estão cansados dessa retórica nacionalista e bélica. Desde o movimento dos plenums na Bósnia e Herzegovina em 20144 até o início da não concretizada “revolução das cores” na Macedônia em 2016, a mesma aspiração profunda é expressa em todos os lugares: o fim da marginalização econômica e social na Europa e a possibilidade de viver decentemente em seu país. Porque o êxodo continua. Muitos sonham em ir para a Europa Ocidental, mas têm de parar na Hungria, na Eslováquia ou na República Tcheca, países que se transformaram nos últimos anos em periferias manufatureiras, com a proliferação de fábricas terceirizadas oferecendo aos empresários ocidentais salários reduzidos e uma lei trabalhista muito “flexível”... A revolta contra essas políticas poderia muito bem se espalhar por toda essa região, cujos cidadãos não suportam mais ser vistos como europeus de segunda classe, destinados à exploração e condenados ao declínio. *Jean-Arnault Dérens e Simon Rico são jornalistas no Courrier des Balkans. 1 Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, “Cet exode qui dépeuple les Balkans” [O êxodo que despovoa os Bálcãs], Le Monde Diplomatique, jun. 2018. 2 Cf. Nikola Radic, “Serbie: les Sud-Coréens de Yura (re)délocalisent en Albanie [Sérvia: os sul-coreanos de Yura transferem suas empresas (de novo) da Albânia], Le Courrier des Balkans, 26 set. 2018. 3 Presidente da Republika Srpska de 2010 a 2018, Milorad Dodik foi eleito membro da presidência colegiada da Bósnia e Herzegovina em outubro de 2018, mas continua a ser o senhor indiscutível da entidade sérvia, mesmo não mais exercendo um mandato eletivo. 4 Ler Jean-Arnault Dérens, “La Bosnie enfin unie... contre les privatisations” [A Bósnia finalmente unida... contra as privatizações], Le Monde Diplomatique, mar. 2014.

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AS ELITES DIANTE DOS “COLETES AMARELOS”

A filosofia do desprezo Desde sua posse, o presidente francês, Emmanuel Macron, associou diversas vezes as classes populares a um grupo de preguiçosos incultos e chorões. Assim, ele rompe com a duplicidade dos últimos chefes de Estado em relação aos menos favorecidos: compreendê-los no discurso, mas negligenciar suas reivindicações, e, sobretudo, ignorar a dominação estrutural de que são objeto POR BERNARD PUDAL*

© Flavia Bomfim

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e vous hais, compris?”:1 um dos slogans escritos com caneta hidrográfica em muitos coletes amarelos condensa em uma fórmula a atitude de Emmanuel Macron e a célebre frase do general De Gaulle, modelo exemplar do discurso duplo dos políticos. Para além das múltiplas reivindicações sociais e fiscais dos “coletes amarelos”, se há uma constante, é sua convicção de que as “elites” desconhecem suas condições de existência, seu modo de vida e, ainda por cima, os desprezam. Nas rotatórias das estradas em que os manifestantes se reúnem, nos lembramos constantemente das “pequenas frases” com as quais Macron revelou sua visão do “povo” francês: trabalhadores “analfabetos”, destinatários de contribuições sociais que custam “uma grana alta”, “preguiçosos”, “cínicos”, “extremistas”, “pessoas que não são nada”, “basta atravessar a rua para conseguir um emprego” etc. À eterna pergunta “O que é o povo?”, o presidente responde: “São aqueles que se devem educar, até mesmo reeducar, aqueles que são refratários, que se devem guiar, aqueles que se queixam em vez de tomarem conta de si mesmos e assumirem responsabilidade, aqueles que, com muita frequência, ‘não são nada’”. Não saberíamos agradecer-lhe o suficiente por ter expressado de forma tão grosseira a filosofia social do mundo a que ele pertence, do mundo em que ele se formou, uma filosofia social geralmente eufemizada ou reservada aos círculos de seus pares. É essa mesma visão que Cédric Lomba, por exemplo, encontra em seu estudo das fábricas de Cockerill, na Bélgica, submetidas por mais de trinta anos a sucessivos planos sociais. Os gestores e os engenheiros se opõem ali aos trabalhadores que eles têm por missão dirigir, enviar para a pré-aposentadoria ou deslocar. Durante as reuniões ou refeições, eles regularmente evocam o arcaísmo dos trabalhadores, sua intransigência, as paralisações de trabalho por ninharias, sua agressividade diante das reestruturações, mas também sua imaturidade e sua imoralidade quando “gritam”, ameaçam, es-

tacionam de qualquer maneira ou não respeitam as medidas de segurança. Eles condenam práticas como o roubo (incluindo de eletrodomésticos em refeitórios ou de equipamentos), as brincadeiras infantis (passar graxa na maçaneta das portas, encher capacetes com água), a sujeira (nas pias e banheiros), a devassidão moral (a exibição de fotografias eróticas nos banheiros e a leitura de revistas pornográficas nos refeitórios) e a imprevidência (a alta proporção de trabalhadores que têm deduções por dívida na folha de pagamento).2 Esses executivos “que falam mais que a boca”, como diz um trabalhador, têm todo o interesse em alimentar essa visão uniformemente negativa dos operários como grupo social, evitando o transtorno que poderia resultar de um entendimento mais realista. Qualquer desejo de entender iria minar sua crença na legitimidade de sua participação ativa nas reestruturações industriais. O desprezo e o mal-entendido condicionam, assim, a cegueira

socialmente necessária à sua missão. E é essa filosofia do desprezo que os “coletes amarelos” recusam. FALTA DE TRAQUEJO POLÍTICO

A cristalização de um ressentimento como o atual contra Macron resulta em parte da fraqueza de seu capital político. Ele foi eleito graças a uma combinação de circunstâncias: dois presidenciáveis, François Hollande e François Fillon, sem condições de vencer; uma Frente Nacional no segundo turno que obrigou muita gente a votar em Macron por falta de opção; uma abstenção maciça (10,5 milhões de pessoas no primeiro turno das eleições presidenciais; 24,5 milhões no primeiro turno das eleições legislativas)... É um político sem traquejo político que chegou ao poder. Ter traquejo político é, pelo menos, tentar “enquadrar” com uma retórica mais ou menos eficaz as humilhações sociais que se inflige, fingir simpatizar com o sofrimento dos mais pobres, com as dificuldades com que muitos

têm de lidar. É prometer colocar um fim na “fratura social”, como fez Jacques Chirac em seu tempo, ou abraçar o ponto de vista daqueles que “só podem contar consigo mesmos” – tão numerosos nas classes populares que muitas vezes essa infelicidade é encarada como um “ponto de honra” –, comprometendo-se a apoiar seus esforços, à maneira de Nicolas Sarkozy, que isentou de imposto as horas extras e não parava de elogiar aqueles que “se levantam cedo”. “Sei que aconteceu de eu magoar alguns de vocês com minhas afirmações”, admitiu Macron. Essa falta de traquejo político também caracteriza muitos deputados do partido no poder, A República em Marcha (LRM). Como destacou Christophe Le Digol, dos 521 candidatos do LRM nas eleições legislativas de 2017, 281 nunca haviam exercido um mandato. Todo o recurso de que dispunham era um capital social que pouco os predispunha a compreender os “coletes amarelos”: eles pertenciam às categorias socioprofissionais mais elevadas, eram

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líderes empresariais, exerciam uma atividade de consultoria...3 As discussões entre “coletes amarelos” testemunham sua forte percepção desse necrotério social. Como a parlamentar Élise Fajgeles, que não tem a menor ideia, nem mesmo aproximada, do valor do salário mínimo (CNews, 3 dez. 2018). Ou a ativista pró-Macron que alegava que “não se pode morar em um universo extraordinário, com o gramado, as montanhas, uma vista incrível, e ter um hospital ao lado e uma farmácia no térreo de casa”.4 Você tem o campo, não venha reclamar... Sem traquejo, eles dizem o que pensam. De “classes perigosas” a “multidões furiosas”, de “maus pobres” a “escória”, de “desclassificados” a “marginais”, a conceituação de desprezo pelas classes populares tem uma longa história. Mas, se ela legitima aos olhos dos gestores, e de muitos outros, suas múltiplas empreitadas de reeducação e de enquadramento, não é sem efeitos perversos. Ela os proíbe, em particular, de entender as racionalidades que são a base do estilo de vida popular. Foi, aliás, a insensibilidade em relação ao lugar ocupado pelo carro no cotidiano de porções inteiras das classes populares – insensibilidade baseada em uma dupla incompetência, política e social – que foi sancionada pela explosão do movimento dos “coletes amarelos”. Multiplicação de radares, velocidade limitada a 80 km/h, aumento no preço da gasolina, imposto chamado de “ecológico” sobre os combustíveis, controle técnico mais caro e mais rigoroso, restrições ao diesel: ao reduzir a liberdade de deslocamento, foi toda uma economia material, de lazer e de sociabilidade, especialmente nos chamados mundos rurais, que o poder inconscientemente perturbou. Tomadas por um presidente arrogante e interpretadas por aqueles que foram afetados como uma negação adicional de seu ser social, essas medidas dirigidas ao automóvel liberaram uma raiva até então contida, ou não muito visível, que se atualizou e cristalizou na rejeição, na exigência de renúncia de Macron. Qualquer grupo social ergue fronteiras simbólicas para valorizar as qualidades de que considera ser depositário, para avaliar nessa medida os comportamentos dos grupos dos quais procura se diferenciar, acima ou abaixo, e interpretar a visão que estes últimos têm dele. Desse ponto de vista, as classes populares sofrem um tratamento convergente de todos aqueles que as tomam por “objeto”, na escola, no trabalho, em seus lugares de residência, em seu lazer, na vida social mais comum. Essa redução do outro popular ao status de “objeto ruim” estrutura o conjunto de nossa vida social. Pierre Bourdieu sempre nos lembrou da necessidade de questionarmos os efeitos simbólicos de nosso sistema

escolar. Em vez de dissertar sobre as chamadas fraturas culturais que opõem graduados e não graduados, trabalhadores braçais e não braçais, ou, em outras palavras, aqueles que seriam “fechados” e aqueles que seriam “abertos”, aqueles que teriam um espírito crítico e aqueles que seriam privados dele, as vítimas da globalização e seus beneficiários, seria melhor levar em conta o que provoca essa época de “escolarização total”5 em um sistema escolar não apenas desigual, mas acima de tudo dedicado à manutenção da ordem social.

Não importa o esforço que os professores possam fazer, o mundo da escola não poupa hoje em dia os filhos das classes populares Não importa o esforço que os professores possam fazer, o mundo da escola não poupa hoje em dia os filhos das classes populares, forçados a se submeter à ordem das legitimidades culturais e enviados, na sua falta, à sua “miséria” moral e cultural. Uma das dimensões da generalização da educação secundária e superior, um processo histórico de longo prazo que se acelerou consideravelmente desde os anos 1980, não é outra senão a aprendizagem por muitos de sua indignidade. Foi isso que ressaltou Pierre Bergounioux, escritor de esquerda e professor universitário: “Em vez dos benefícios esperados, eles [os estudantes] tiraram disso lucros bastante medíocres e o sentimento de indignidade que é sua modalidade subjetiva. A experiência é hereditária. Quem quer que conclua o sexto ano, aos 11 anos de idade, sem estar familiarizado com os valores e as práticas da escola, é condenado a ser lembrado todos os dias, várias vezes ao dia, de sua insuficiência, de sua mediocridade”.6 Não se mede provavelmente a que ponto o “fracasso escolar” pode humilhar, em especial porque, como eliminação adiada ou mascaradas relegações escalonadas, ele agora acompanha o conjunto do percurso. Essa negação pode se infiltrar nas situações mais cotidianas. Já nos anos 1960, o sociólogo Paul-Henry Chombart de Lauwe entrevistou trabalhadores altamente qualificados que haviam acabado de ser demitidos. Eles sentiram que não tinham nenhuma importância. Um deles observou que sua madrasta, se por um lado estava orgulhosa de um de seus genros, “de-

signer industrial”, por outro o apresentava a seus conhecidos como “toneiro [sic] alguma coisa”. Esse torneiro-fresador estava convencido de que nos Correios, quando as pessoas se dirigiam a ele, elas “não o olhavam”...7 Uma das dimensões das culturas populares reside nesse pensamento que interpreta o tempo todo os mil signos, detalhes ou anedotas, afirmações ou atitudes corporais pelas quais, como na situação colonial, a “individualidade” lhe é negada. No entanto, nossa vida social multiplica situações em que as classes populares estão em interação desigual com outros grupos sociais: na agência de emprego do governo, na administração pública, nas relações com os professores de seus filhos, nas relações conflituosas com todos aqueles que simbolizam para eles o desgosto de suas práticas. CLASSES POPULARES ENCURRALADAS

Essa percepção tem sido afirmada e transformada há meio século, com a generalização – inacabada, caótica e segregacionista – do ensino médio e superior, e com a crença cada vez mais compartilhada no desaparecimento das classes populares, quando na verdade estas representam mais da metade da população... O campo político, em todos os seus componentes, tem ele próprio se estruturado cada vez mais sobre essa negação, a ponto de que somente os membros das classes altas e das classes médias intelectuais, e seus interesses, mesmo contraditórios, estão agora ali representados, enquanto as classes populares são relegadas à inexistência. Essa orientação foi até mesmo reivindicada em 2011, em um relatório da Fundação Terra Nova que propunha à esquerda socialista fazer o funeral de seu “povo”.8 O Partido Comunista Francês (PCF), que por muito tempo conseguira dignificar as classes populares, sobretudo “a” classe operária, não consegue mais desempenhar esse papel. Entaladas entre um pensamento conservador fiel à sua tradição e uma esquerda convertida à doutrina econômica da direita, as classes populares não sabem a que santo recorrer. A extrema direita fascista finge abraçar esse ressentimento. O imigrante não é o único inimigo que ela oferece a ele como alimento. Os professores, os “jovens meio intelectuais, meio de esquerda”, as “elites” (palavra empregada com uma geometria variável), os ecologistas, os militantes sindicalistas..., todos são igualmente inimigos que ela mira por meio de suas diversas mobilizações. O ódio à escola, aliás, atinge picos nas Memórias de Jean-Marie Le Pen: “Depois de ter aumentado a idade e o nível das escolaridades obrigatórias, pretende-se ensinar os deficientes profundos, os

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loucos, os imigrantes, os doentes, os prisioneiros, os estrangeiros em nossa casa, na casa deles, antes de sua profissão, durante sua vida, após sua aposentadoria. Esse louco sonho de hegemonia escolar é o fruto paradoxal da ‘revolução’ de maio de 1968, que dedicou a função de ensinar à limpeza dos banheiros. A prostituta não está cansada, como um moloch feminino que se fortalece com armas viradas contra elas. A Alma Mater fortalece a ditadura dos peões”.9 Se por um lado é necessário se opor ao assédio simbólico do qual são vítimas as classes populares tentando entender as racionalidades que determinam suas visões de mundo e suas práticas, de outro não se trata de forma alguma de inventar um “povo” ideal, que simplesmente não existe. As classes populares, como tantos trabalhos recentes10 demonstraram, estão em plena reconfiguração e não formam de maneira alguma um bloco homogêneo. No entanto, hoje como ontem, é do trabalho político de representação11 que resultarão as relações de força no seio das quais elas inscreverão seu futuro, para pior ou para melhor. *Bernard Pudal é professor de Ciência Política da Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense. Autor, com Claude Pennetier, de Le Souffle d’Octobre 1917. Pourquoi ont-ils cru au communisme? [O sopro de outubro de 1917. Por que eles acreditaram no comunismo?], Éditions de l’Atelier, Ivry-sur-Seine, 2017. 1 “Eu os odeio, entendem?” – trocadilho com a famosa frase do general De Gaulle, “je vous ai compris” [“eu entendi vocês”]. 2 Cédric Lomba, La Restructuration permanente de la condition ouvrière. De Cockerill à ArcelorMittal [A reestruturação permanente da condição de trabalho. De Cockerill a ArcelorMittal], Le Croquant, Vulaines-sur-Seine, 2018. 3 Christophe Le Digol, Gauche-Droite: la fin d’un clivage? Sociologie d’une révolution symbolique [Esquerda-direita: o fim de uma divisão? Sociologia de uma revolução simbólica], Le Bord de l’Eau, Lormont, 2018. 4 “Le moment Meurice”, France Inter, 3 dez. 2018. 5 Joanie Cayouette-Remblière, L’École qui classe. 530 élèves du primaire au bac [A escola que classifica. 530 alunos da escola primária ao ensino médio], Presses Universitaires de France, Paris, 2016. 6 Pierre Bergounioux, École: mission accomplie [Escola: missão cumprida], Les Prairies Ordinaires, Paris, 2006. 7 Paul-Henry Chombart de Lauwe, Maurice Combe, Henri e Paule Ziegler (dir.), Nous, travailleurs licenciés. Les effets traumatisants d’un licenciement collectif [Nós, trabalhadores demitidos. Os efeitos traumáticos de uma demissão coletiva], 10/18, Paris, 1976. 8 Olivier Ferrand, Romain Prudente e Bruno Jeanbart, “Gauche: quelle majorité électorale pour 2012?” [Esquerda: que maioria eleitoral para 2012?], Fundação Terra Nova, Paris, 10 maio 2011. 9 Jean-Marie Le Pen, Mémoires. Fils de la nation [Memórias. Filhos da nação], Muller Éditions, Paris, 2018. 10 Cf. Yasmine Siblot, Marie Cartier, Isabelle Coutant, Olivier Masclet e Nicolas Renahy, Sociologie des classes populaires contemporaines [Sociologia das classes populares contemporâneas], Armand Colin, Paris, 2015. 11 Cf. Lorenzo Barrault-Stella e Bernard Pudal, “Représenter les classes populaires?” [Representar as classes populares?], Savoir/Agir, n.34, Vulaines-sur-Seine, dez. 2015.

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Se “atraso”, “reforma” e “abertura” constituíram as palavras-chave do pensamento dominante dos últimos trinta anos, as fake news parecem resumir sua obsessão atual. Um fio vermelho une, aliás, os dois períodos: apenas as notícias falsas que visam ao partido da reforma e da abertura deixam indignados os jornalistas profissionais e os líderes liberais. Nos Estados Unidos, na Alemanha e na França, estes últimos estão elevando a luta contra esse tipo de notícia ao status de prioridade política. “A ascensão das notícias falsas”, explicou Emmanuel Macron em sua fala à imprensa em janeiro passado, “hoje é totalmente gêmea desse fascínio nada liberal.” Durante esse tempo, a desinformação tradicional prosperou. Seu eco repercutido o tempo todo lhe confere um caráter de verdade – sem estimular o ardor das agências de checagem.

FAKE NEWS OFICIAIS

Viagem nas falsas verdades POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*

© Allan Sieber

BERNARD-HENRI LÉVY

Colunista do Le Point, Bernard-Henri Lévy iguala todos aqueles que lhe desagradam – a lista é infinita – a nazistas.1 Em dezembro de 2010, feliz demais para checar o fato, ele confundiu o jornalista do Le Monde Diplomatique Bernard Cassen com o panfletário antimuçulmano de extrema direita Pierre Cassen. O semanário recusou a publicação de um direito de resposta; ele foi condenado a fazê-lo pela 17a Câmara Correcional (acórdão de 23 de abril de 2013), a qual, destacando “a insuficiência de rigor e a falta de substância” de Bernard-Henri Lévy (“BHL”), “a gravidade e a virulência” de sua difamação, considerou que “o benefício da boa-fé não poderia ser concedido” e também impôs ao Le Point o pagamento de 3.500 euros de multa. No entanto, no mesmo jornal, o mesmo falsificador lançou a ideia, em 7 de fevereiro, de um hall of shame (hall da vergonha), que “listaria em tempo real as fake news que fossem mais globalmente devastadoras”. BHL

convida “as pessoas da web a propor o texto, o vídeo, a obra cujo poder de verdade ou de comicidade destruiria as fake news mais nocivas”... Significa, para Bernard-Henri Lévy, correr um risco... Em vez de recordar a lista de suas imposturas – uma página deste jornal não seria suficiente2 –, vamos nos limitar às suas últimas palhaçadas. Sua obra L’Empire et les cinq rois [O Império e os cinco reis] acaba de ser traduzida nos Estados Unidos, no momento em que os líderes daquele país procuram sufocar o Irã. Ano passado, jornalistas ou colunistas franceses tão preocupados com a precisão e a checagem dos fatos quanto Patrick Cohen (na Europe 1, em 30 de março), Ali Baddou (na France Inter, num 1o de abril) e Laurent Ruquier (na France 2, em 7 de abril) o deixaram vender “uma história incrível que muito poucas pessoas conhecem”. Em 1935, contou o ensaísta, “a Alemanha nazista ofereceu aos persas o acordo do século. Ela disse a eles: ‘Vamos fazer [...] uma ótima aventura comum, vamos dominar o mundo’. E

os iranianos aceitaram o acordo”. E é por isso que, segundo ele, a Pérsia mudou de nome para se tornar o Irã, terra dos arianos. Vários especialistas do Irã reclamaram imediatamente, a tal ponto que, alguns dias depois, BHL invocou outros, e alguns destes, horrorizados por estarem envolvidos nessa perigosa farsa, desmentiram as análises que o cronista lhes atribuiu.3 Publicada em fevereiro passado, a edição em inglês de seu livro acrescenta em consequência um elemento de prova que o autor considera irrefutável: “um artigo do New York Times de 26 de junho de 1935”. Mas o artigo em questão fala de uma “sugestão” da embaixada alemã, sem basear essa explicação da mudança de nome – a propósito, bastante vaga – em nenhuma fonte. De qualquer forma, ele certamente não falou, como afirmou BHL, “em uma ordem de Berlim para a embaixada iraniana que foi transmitida ao xá”. E esse artigo do New York Times, publicado na seção Viagens-Cruzeiros-Excursões do jor-

nal, relata o caso iraniano entre muitos outros – Santo Domingo tornou-se Ciudad Trujillo; Esmirna, Izmir; Christiania, Oslo etc. Basta dizer que a força probatória do pedaço de texto (150 palavras) ao qual Bernard-Henri Lévy se agarra como um mexilhão à sua rocha é nula. Seu autor está morto, e nosso autoproclamado especialista em Irã não é capaz de citar precisamente sua prova, já que a informação do New York Times, destinada a seus leitores que eram viajantes frequentes, foi publicada em 26 de janeiro de 1936, e não em 26 de junho de 1935.4 E qual é a relação, de fato, entre a decisão do xá de 1935 e a atual República Islâmica do Irã, alvo dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e de Israel? Uma ligação clara, de acordo com BHL: o aiatolá Ruhollah Khomeini teria se recusado a retomar o nome “Pérsia” quando assumiu o poder porque havia ao seu redor três “teóricos que viviam no fascínio absoluto pelo pensamento heideggeriano”. Como ele sabe? Graças a “um dos cinegrafistas do meu filme,

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um intelectual curdo iraniano dotado de uma sólida cultura filosófica”. Desde 1978, todos os presidentes franceses, sem exceção, receberam e ouviram Bernard-Henri Lévy. Uma vez que agora ele elogia Macron com a regularidade de um metrônomo, este último faria bem em lhe confiar uma missão de averiguação das fake news. ROBERT MENASSE

Escritor austríaco, vencedor do Prêmio do Livro Alemão em 2017 pela obra La capital [A capital] (Verdier, 2019), Robert Menasse luta por uma Europa livre dos arcaísmos nacionais. Mas o romancista também é um ensaísta que há anos detalha suas convicções em artigos publicados pela imprensa de referência em língua alemã. Assim, em um texto inflamado escrito em coautoria com um cientista político e intitulado “Viva a República europeia”, publicado em 24 de março de 2013 no Frankfurter Allgemeine Zeitung e, no mesmo dia, nas colunas do Die Presse sob o título “Manifesto para a fundação de uma república europeia”, Menasse escreve: “O primeiro presidente da Comissão Europeia, Walter Hallstein, um alemão, declarou: ‘A abolição da nação é a ideia europeia’”. Antes de adicionar, numa bravata: “Uma frase que nem o atual presidente da Comissão nem o atual chanceler alemão ousariam pronunciar. Sem dúvida, eles nem ousam pensar nisso. E, no entanto, essa frase é a verdade, mesmo que ela tenha sido esquecida”. Problema: Hallstein, que morreu em 1982, nunca pronunciou essa frase. Em outubro de 2017, o grande historiador Heinrich August Winkler expressou suas dúvidas no semanário Der Spiegel e desafiou Menasse a citar fontes. Em vão. Na esteira de outras observações atribuídas por Menasse a Hallstein, destaca-se: “O objetivo é e continua sendo organizar uma Europa

pós-nacional”, ou ainda: “O objetivo do processo de unificação europeu é a superação dos Estados-nação”. Haja! “Não só não existe prova alguma de que essas frases foram pronunciadas, como elas contradizem diametralmente o que Hallstein de fato afirmou.”5 Definitivamente inventivo, o ensaísta-romancista também disse que Hallstein, em 1958, pronunciou seu primeiro discurso como presidente da Comunidade Econômica Europeia em Auschwitz. “É um fato”, martelava Menasse, ansioso para demonstrar quanto “a Comissão Europeia é a resposta para Auschwitz”. Era falso.6 Para Winkler, essas adulterações são “produto de uma visão pós-factual da história”.7 Fake news ainda mais graves porque, apesar das advertências do historiador, elas são regularmente retomadas por figuras políticas e intelectuais, como o fez, em novembro passado, Manfred Weber, presidente do grupo conservador no Parlamento Europeu e candidato à presidência da União Europeia. No início deste ano, a notícia falsa de que os signatários do tratado franco-alemão de Aix-la-Chapelle de 22 de janeiro último pretendiam entregar a Alsácia-Lorena à Alemanha foi imediatamente negada pela mídia francesa, e seu autor, um deputado europeu do partido Debout la France, ridicularizado. Finalmente destacadas e levadas a sério pela imprensa alemã mais de um ano após serem lançadas, as fake news de Menasse não abalaram nem os jornalistas franceses, que não pouparam elogios a elas, nem o próprio falsário. “Do ponto de vista científico, as aspas foram um erro”, admitiu este último após ter invocado um filósofo relativista para justificar sua falsificação (Die Welt, 5 jan. 2019). Em 19 de janeiro, ele recebeu a Medalha Carl-Zuckmayer, uma distinção literária outorgada pelo ministro-presidente da região da Re-

nânia-Palatinado, o qual saudou “a luta engajada em favor da ideia europeia” por parte do falsificador.8 FRANCE INTER

Em 7 de fevereiro, Nicolas Demorand e Léa Salamé, cuja antipatia pelos “coletes amarelos” é evidente, receberam na France Inter um professor do Collège de France, Patrick Boucheron, que também não gosta muito dos manifestantes. Os três também comungam no ódio às notícias falsas. Durante a entrevista, Boucheron defendeu a “pequena insurrecional” dos intelectuais favoráveis aos “coletes amarelos” e citou um desses negociadores, especialista em movimentos populares: “Achei interessante ouvir Gérard Noiriel dizer: ‘É uma jacquerie’ [revolta camponesa do século XIV], enquanto outros historiadores medievalistas diziam: ‘Não, não é a jacquerie’”. No entanto, algumas semanas antes, Noiriel havia sido questionado se a “comparação do movimento dos ‘coletes amarelos’ com as jacqueries ou pujadismo [movimento corporativista com tendências reacionárias da classe média] era justificada. E ele respondeu: “Nenhuma dessas referências históricas realmente tem sentido. Falar, por exemplo, de jacquerie em relação aos ‘coletes amarelos’ é tanto um anacronismo quanto um insulto. [...] A grande jacquerie de 1358 foi uma explosão desesperada de mendigos prestes a morrer de fome, num contexto marcado pela Guerra dos Cem Anos e pela peste negra”.9 Em seguida foi a vez da revista de imprensa da France Inter. Claude Askolovitch dedicou uma grande parte à denúncia das fake news de Donald Trump e da mídia russa, e então emendou: “E, no Le Monde Diplomatique, o teórico do movimento Nuit Debout, Frédéric Lordon, acha que [o canal russo] RT, mesmo fazendo uma propaganda putiniana um pouco excessiva,

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é ‘a única mídia audiovisual respeitável’”. Existem apenas dois probleminhas na citação da France Inter. Primeiro, não é um artigo do Le Monde Diplomatique, mas do blog de Frédéric Lordon no site do Le Monde Diplomatique. Segundo, seu texto foi falsificado. Lordon na verdade escreveu isto: “A vergonha do jornalismo francês é medida por esse paradoxo totalmente inesperado de a RT ter se tornado quase a única mídia audiovisual respeitável!”. Graças à principal rádio pública francesa, o “paradoxo totalmente inesperado”, o “quase” e o ponto de exclamação (destinados a enfatizar o paradoxo inesperado) desapareceram.10 Uma semana depois, Demorand só precisa lembrar as virtudes de sua profissão para os ouvintes de seu programa matinal: “Estamos lidando com jornalistas, pessoas cujo negócio principal é produzir fatos verificados e hoje fazer a checagem dos fatos para lutar contra o fluxo de notícias falsas”. *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é da direção do Le Monde Diplomatique. 1 Ler Serge Halimi, “Tous nazis” [Todos nazistas], Le Monde Diplomatique, dez. 2007. 2 Ler nosso volumoso dossiê on-line “L’imposture Bernard-Henri Lévy” [A impostura Bernard-Henry Lévy]. Disponível em: <www.monde-diplomatique.fr>. 3 Ardavan Amir-Aslani, “N’en déplaise à BHL, la Perse n’est pas devenue l’Iran pour faire plaisir à Hitler!” [“Sem ofensa a BHL, a Pérsia não se tornou o Irã para agradar a Hitler!”], L’Opinion, Paris, 23 maio 2018. 4 Oliver McKee Jr., “Change of Santo Domingo to Trujillo City recalls others” [Mudança de Santo Domingo para a cidade de Trujillo lembra outras], The New York Times, 26 jan. 1936. 5 Heinrich August Winkler, Zerbricht der Westen? Über die gegenwärtige Krise em Europa und Amerika [O oeste está quebrado? Sobre a atual crise na Europa e na América], CH Beck, Munique, 2017. 6 Patrick Bahners, “Menasses Bluff” [O blefe de Menasses] e “Fall Menasse. Psicopathologue” [A queda de Menasse. Psicopatológico], Frankfurter Allgemeine Zeitung, 2 e 6 jan. 2019. 7 Der Spiegel, Hamburgo, 21 out. 2017 8 Der Spiegel Online, 7 jan. 2019. 9 Le Monde, 28 nov. 2018. 10 Depois de ser denunciada nas redes sociais, essa falsificação desapareceu da retranscrição da crônica no site da France Inter.

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Estratégia europeia para a esquerda Mais do que sobre os problemas comuns da União Europeia, as eleições de maio do bloco justapõem 27 votações sobre política interna. Na maioria dos Estados, os eleitores pronunciam-se sobretudo contra ou a favor do governo local. Mas a margem de manobra desses poderes é bastante reduzida pelos tratados continentais. Nessas condições, o que fazer? E para a esquerda, como escapar? POR FRÉDÉRIC LORDON*

m fantasma assombra a esquerda: a Europa. Ele assombrará os “coletes amarelos” a partir do momento em que eles se colocarem concretamente a questão das políticas alternativas – o que, de fato, já é o caso. É que toda a ideia de fazer “outra coisa” está condenada a se chocar com o muro dos tratados. Afrouxar as políticas de austeridade que destroem os serviços públicos, acabar com a anomalia democrática de um Banco Central independente sem a menor legitimidade política, desfazer as estruturas que permitem a dominação das finanças sobre as empresas e sobre os governos ao acabarem com a concorrência realmente deformada (pelo dumping social e ambiental) ou

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com as deslocalizações sem controle, reconquistar a possibilidade de auxílios do Estado: tudo isso, que passa necessariamente por uma política de justiça social, tornou-se formalmente impossível em razão dos tratados. “Refaçamos, então, os tratados!” De acordo com a “Europa social”, “o euro democrático” é a ilusão de mudança que permite à “esquerda inconsequente” rejeitar mais uma vez o momento de enfrentar o problema europeu. De Yanis Varoufakis (ler seu artigo na p.30) a Benoît Hamon, passando por Raphaël Glucksmann, todo mundo quer “refazer os tratados”. Digamos logo a eles: nada será refeito. Os tratados só são um “erro” para os que consideram que uma comuni-

dade política não pode ser malfeita o bastante para impedir a si mesma de decidir novamente a respeito da moeda, do orçamento, da dívida ou da circulação de capitais, ou seja, para amputar voluntariamente políticas que têm um peso maior sobre a situação material das populações. Mas os tratados são perfeitamente funcionais para o outro pequeno número que, ao contrário, segue o projeto que mal esconde perenizar políticas econômicas favoráveis a um certo tipo de interesse. Com um adicional, para encerrar a questão: o investimento desequilibrado específico de um país que se diz há mais de meio século que a ortodoxia monetária e orçamentária é sua única muralha contra o nazismo...

Eis, então, como se encontra o impasse europeu: 1. Subtrair, como fazem os tratados, os conteúdos substanciais de algumas das mais importantes políticas públicas, nas deliberações de uma assembleia ordinária, para perenizá-las em tratados que respondem apenas a procedimentos extraordinários de revisão, é uma anomalia que desqualifica radicalmente qualquer pretensão democrática. 2. Somente uma revisão dos tratados apropriada para instituir um verdadeiro Parlamento, ao qual seriam dados todos os domínios de decisão atualmente fora de alcance de qualquer nova deliberação soberana, está totalmente à altura do projeto de tornar a Europa democrática.

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3. Infelizmente, do jeito que vão as coisas, uma revisão como essa seria objeto de, no mínimo, uma recusa categórica: a da Alemanha. É que justamente ela condicionou sua participação no euro à perenização de sua ortodoxia nos tratados. Se fosse minoria nesse assunto, ela preferiria a integridade de seus princípios a pertencer à União. O dilema sobre o qual a “esquerda europeia democrática” vai ter de chegar a um acordo é o seguinte: democratizar (realmente) o euro supõe refazer os tratados, mas refazê-los significará sem sombra de dúvida a saída da Alemanha... e a quebra do euro. Obviamente, quando a realidade é extremamente difícil de ser enfrentada, há sempre a solução do refúgio no sonho – no caso, acalentar “o euro democrático”. INTERNACIONALISMO SEM NEOLIBERALISMO

No entanto, para os que aceitam ver a contradição e escolhem as políticas progressistas contra o fetichismo do euro, o problema não é menos agudo. Assim, para Stefano Palombarini,1 a perspectiva de saída do euro não poderia ser vista nos limites do bloco eleitoral de esquerda atualmente constituído, do qual algumas frações clamam pelo “recuo nacional” diante do enunciado dessa única ideia. De certo ponto de vista, ele tem razão. O debate da esquerda sobre o euro, desde 2010, mostrou suficientemente que divisões ele atravessava. E é exatamente esse reflexo à flor da pele que testemunha a persistente quimera do “outro euro”, com a qual o desastre grego não bastou para acabar – e cujos erros obstinados em busca do “Parlamento do euro” são a expressão mais patética. Aliás, a questão europeia é exatamente se ele é o único obstáculo que fez oposição à retirada de Hamon em favor de Jean-Luc Mélenchon após o primeiro turno das eleições presidenciais de 2017, exatamente por preferir a humilhação a uma vitória da esquerda. Ora, existe toda uma parcela da opinião da esquerda que, desaprovando, às vezes com veemência, os conteúdos particulares das políticas europeias e as obrigações que delas resultam sobre a conduta das políticas nacionais, se revolta também contra a ideia geral, no entanto consequente, de romper com o euro. Essa parcela discursa repetidamente contra a “Europa austeritária”, mas, logo que lhe é proposto sair dela, responde: “De maneira alguma!”. Enquanto esse impasse continuar sem solução, a esquerda não chegará ao poder. É que terá sempre o que fazer com a classe educada, que é o ponto nevrálgico dessa situação. Acreditando ser a ponta de lança da racionalidade na sociedade, essa classe é, de fato, seu ponto de incoerência por excelência, pois é

justamente ela que, mais do que qualquer outra, é atormentada pelos sentimentos de medo, sublimados no humanismo europeu e em posturas internacionalistas abstratas que lhe permitem, acredita, ocupar o primeiro lugar – qualquer que seja o preço econômico e social (para os outros). É justamente ela, entretanto, que não para de buscar no “euro democrático” e em seu “Parlamento” uma resolução fantástica para suas contradições internas. E, então, é com ela, como observa Palombarini, que, para sua infelicidade, uma estratégia política de esquerda deve contar. Como, então, manter um arco de forças que reúna desde classes populares, que experimentam em primeira mão o desgaste das políticas europeias e, por isso, são menos atormentadas com preciosos escrúpulos do europeísmo, até a burguesia educada de esquerda, cuja sensibilidade ferida faz de qualquer ideia de romper com a Europa um motivo de crise histérica? Não há a menor dúvida de que às primeiras será preciso dar a saída do euro, pois elas vivem o problema concreto. Já à segunda é preciso reservar um tratamento especial – ou seja, encontrar algo para lhe conceder. Em que consistiria, portanto, a contribuição do internacionalismo real para a resolução do dilema europeu para a esquerda? Em não deixar a classe educada órfã da Europa e lhe dar uma perspectiva histórica europeia de mudança. Ou seja, convencê-la de que abandonar seu objeto transnacional, o euro, não a priva de tudo, permite-lhe ainda acreditar no que ela ama acreditar e no que, de certo ponto de vista, ela tem razão de acreditar: de forma muito geral, o esforço de descentralizar os povos nacionais, de aproximá-los o máximo possível, a começar, logicamente, pela escala europeia. Mas também não de qualquer maneira nem a qualquer preço, isto é, deixando passar, sem refletir, esse desejo internacionalista bem fundamentado nas piores proposições do economismo neoliberal – o internacionalismo da moeda, do comércio e das finanças. Sem reduzir o esforço para convencê-la de que não haverá “outro euro”, que “o euro democrático” não existirá, é preciso então dizer para a classe educada, que em boa parte, de fato, tem a sorte de uma hegemonia de esquerda em suas mãos, que ela não tem de renunciar ao europeísmo genérico que a segura pelo coração. E, portanto, lhe fazer uma nova proposta sobre esse assunto – uma proposta suficientemente forte para substituir a promessa em decadência do euro, pela qual a burguesia de esquerda continua, no entanto, a se interessar porque tem um enorme medo do vazio. A promessa de uma espécie de “novo projeto euro-

peu”, ao qual se trata de dar a consistência de uma perspectiva histórica. Trata-se do que é possível reaproximar dos povos europeus por outras vias que não sejam a da economia: estudos universitários e, por que não, liceus, artes, pesquisa, oficinas sistemáticas de traduções cruzadas, historiografias desnacionalizadas, tudo é bom para ser intensamente “europeizado” – e, por isso, “europeizante”. Entretanto, não se é obrigado a continuar no registro das intervenções em direção à “Europa da cultura”, da qual se sabe bem que classes sociais são suas principais beneficiárias. Na realidade, a Europa tem um famoso passivo a absorver junto às classes populares. Ela teria um grande interesse em se lembrar disso, não em nome de uma economia do perdão ou da redenção, mas porque decisivamente existe seu próprio interesse político em ter essas classes com ela – sua hostilidade, perfeitamente embasada, digamos, não terá sido sua cicatriz lancinante desde o Tratado de Maastricht? Se, então, essa nova Europa, desembaraçada do euro, quiser restabelecer algum vínculo com essas classes, ela terá interesse em se dirigir muito diretamente a elas – e fundamentalmente em sua linguagem: aquela, concreta, da intervenção financeira. Para ela, não há forma mais simples de tornar desejável que se substituam os Estados em declínio, abandonados por ela durante todo o reinado da moeda única: grandes programas de recuperação dos bairros afastados, planos de melhoria dos meios de comunicação digitais, fundos de reindustrialização, financiamento de redes de educação popular e apoio às organizações associativas são as ideias que faltaram e com as quais a Europa conseguiria seriamente recuperar uma “notoriedade”. E, como as ideias não devem faltar, os meios também não. Na verdade, é aqui que se vê a diferença entre as palavras ao léu e a consistência de um projeto político, cuja ambição se mede muito claramente pelos recursos que utiliza, avaliados muito simplesmente de acordo com um objetivo quantitativo global indicando uma trajetória a médio prazo visando a uma meta orçamentária de 3% e, em seguida, por que não, de 5% do PIB europeu – em vez do ridículo 1% de hoje. Não a partir do nada e como se nenhuma dessas coisas ainda não existissem – Erasmus [European Region Action Scheme for the Mobility of Universitary Students (Plano de Ação da Comunidade Europeia para a Mobilidade de Estudantes Universitários)], Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Feder) etc. Mas é preciso ampliar consideravelmente seu campo e também os destinatários, principalmente as classes até agora total-

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mente abandonadas; é preciso dar a todas essas ações uma amplitude inédita, reuni-las em um discurso de alcance histórico e, para lhe dar mais crédito, prever novas e visíveis expressões institucionais. Aliás, expressões necessárias, pois ele precisará de uma instância que decida áreas, volumes e distribuição das intervenções. O que pode ser senão uma Assembleia? De imediato, qualquer outra coisa diferente do “Parlamento do euro”, simulacro democrático destinado a acobertar a irremediável falta de democracia da união monetária. No ponto em que nos encontramos, é possível começar a esperar que, mesmo a burguesia educada que se vê como a melhor em matéria de inteligência, quando, na verdade, é na maior parte das vezes uma confusa ilusão política, possa compreender que é urgente salvar a Europa dela própria e que isso só será feito à custa de uma mudança radical. Porém, não por alguma “transformação” da moeda única, congenitamente, e durante muito tempo ainda ordoliberal, mas precisamente por seu próprio abandono. A Europa não ganhará novamente os favores dos povos que lhes entregaram tudo o que ela os impediu até agora. E principalmente o direito democrático fundamental de experimentar, de avaliar, de tentar outra coisa. Com a retirada da camisa do euro, tudo é possível de novo, evidentemente de acordo com a autodeterminação soberana de cada organismo político. E uma vez que se trata de pensar em uma estratégia para a esquerda: reavaliação das finanças de mercado, socialização dos bancos, maior poder acionário, propriedade social dos meios de produção... É bem possível explicar aos mais inquietos que persistir na via do euro significará o túmulo de qualquer esperança da esquerda; que a ideia de uma comunidade política europeia não demanda, portanto, ser retirada da paisagem; que ela poderá ser salva, contanto que seja consentido lhe oferecer suas condições de possibilidade histórica, como o coroamento de uma longa aproximação, mas desta vez realmente “cada vez mais estreita”, entre os povos do continente, para o qual o “novo projeto europeu”, desintoxicado do veneno liberal da União atual, enfim, fornecerá seu tempo, seus meios e suas possibilidades. *Frédéric Lordon é economista e filósofo. Diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e autor de La Condition anarchique [A condição anárquica], Seuil, Paris, 2018.

1 “Face à Macron, la gauche ou le populisme?” [Diante de Macron, a esquerda ou o populismo?], blog de Stefano Palombarini, 10 jul. 2017. Disponível em: .

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Por uma “Primavera Europeia” em maio A eleição do próximo Parlamento Europeu acontece entre os dias 23 e 26 de maio. O quadro geral é sombrio: as condições do Brexit permanecem confusas, a relação com os Estados Unidos é marcada pelas humilhações deliberadas de Washington, a extrema direita vai de vento em popa e a esquerda não chega a um acordo sobre um projeto europeu POR YANIS VAROUFAKIS*

crise financeira planetária de 2008 – a de 1929 de nossa geração – desencadeou uma reação em cadeia em toda a Europa. Em 2010, ela já tinha destruído os alicerces da zona do euro, levando os membros do establishment a transgredir suas próprias regras a fim de salvar os investimentos de seus amigos banqueiros. Em 2013, a ideologia neoliberal, que até então tinha legitimado a tecnocracia oligárquica da União Europeia, espatifou-se, após ter jogado na miséria milhões de pessoas aplicando políticas oficiais: o socialismo para os detentores do capital financeiro e uma austeridade implacável para o maior número de pessoas. Essas políticas foram conduzidas tanto pelos conservadores quanto pelos sociais-democratas. Durante o verão de 2015, a renúncia do governo do partido Syriza, na Grécia, teve como consequências a divisão e a desmoralização da esquerda. Ela acabou com a esperança efêmera de ver progressistas que surgiram das ruas e das praças modificarem as relações de força na Europa. Desde então, a cólera exacerbada pelo desespero deixou um vazio, rapidamente preenchido de um extremo a outro da Europa pela misantropia organizada por uma Internacional nacionalista que encanta o presidente norte-americano Donald Trump. Chumbada por um establishment que lembra cada vez mais a infeliz República de Weimar, assim como pelo racismo que as forças deflacionárias engendram, a União se fende. A chanceler alemã se dirige para a saída, o projeto europeu do presidente francês se mostra natimorto e as eleições para o Parlamento Europeu no próximo mês de maio oferecem a última oportunidade para os progressistas terem peso no nível pan-europeu. Desde seu nascimento, em 2016, o Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEM25) teve como objetivo aproveitar essa chance.1 Em um primeiro momento, preparamos nosso programa, o “New Deal for Europe” [Novo Acordo para a Europa]. Em se-

A VIDA PODE MELHORAR NAS REGRAS ATUAIS

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Yanis Varoufakis em reuinão do DiEM25 em Lisboa guida, convidamos outros movimentos e partidos para enriquecer e criar conosco nossa “Primavera Europeia”, primeira lista transnacional de candidatos que defendem um programa comum de escala europeia. Antes da discussão desse projeto, a esquerda deve encarar de frente dois pontos cruciais que a dividem e enfraquecem um pouco os progressistas em todo o continente: o problema das fronteiras e a questão da União Europeia. Uma coisa muito curiosa ocorreu nos últimos anos: um grande número de cidadãos de esquerda foi levado a pensar que fronteiras abertas prejudicavam a classe operária. “Jamais fui favorável à liberdade de instalação”, afirmou diversas vezes Jean-Luc Mélenchon (do movimento França Insubmissa). Fazendo uma intervenção no Parlamento Europeu em julho de 2016 sobre a questão dos trabalhadores deslocados provisoriamente para outro país da União Europeia, ele declarou que, cada vez que um deles chega, “rouba o pão dos trabalhadores que se encontram no lugar” – afirmação pela qual, posteriormente, pediu desculpas, mesmo que sua análise quanto aos efeitos das migrações sobre os salários internos não tenha mudado.

Esse debate não é novo. Em 1907, Morris Hillquit, fundador do Partido Socialista da América, propôs uma resolução visando acabar com “a importação deliberada de mão de obra estrangeira a baixo custo”, defendendo que “os migrantes constituíam, sem estar conscientes disso, um veio de furadores de greve”. O novo, hoje, é que uma boa parte da esquerda parece ter se esquecido da crítica muito viva de Lenin, formulada em 1915 nestes termos: “Acreditamos que não é possível ser internacionalista e ao mesmo tempo favorável a tais restrições... Esses socialistas, na realidade, são chauvinistas”. Em um artigo de 29 de outubro de 1913, Lenin forneceu o contexto: “Não há dúvida alguma de que somente a pobreza extrema pode obrigar as pessoas a abandonar sua terra natal e que os capitalistas exploram os trabalhadores imigrantes das maneiras mais vergonhosas. Mas somente os reacionários podem se recusar a ver o significado progressista dessa migração moderna das nações. O capitalismo atrai massas de trabalhadores do mundo inteiro. Ele quebra as barreiras e os preconceitos nacionais e une os trabalhadores de todos os países”.

O movimento DiEM25 retoma a análise de Lenin: os muros que entravam a livre circulação das pessoas e das mercadorias são uma resposta reacionária ao capitalismo. A resposta socialista consiste em derrubar os muros, permitir ao capitalismo se autodestruir enquanto organizamos a resistência transnacional à exploração. Não são os migrantes que roubam os empregos dos trabalhadores locais, mas as políticas de austeridade dos governos que se inscrevem na luta de classes engajada em benefício da burguesia nacional. Esse é o motivo pelo qual não permitimos que uma forma “alijada” de xenofobia contamine nosso programa. Como diz Slavoj Žižek, o nacionalismo de esquerda não é uma boa resposta para o nacional-socialismo. Nossa posição sobre os novos imigrantes defende igualmente dois pontos: nos recusamos a fazer uma triagem entre migrantes e refugiados e demandamos à Europa que os deixem entrar (#LetThemIn). Companheiros de diversos países nos consideram utópicos. Segundo eles, a União Europeia não pode ser reformada. Se eles tiverem razão, a melhor resposta dos progressistas é trabalhar para o “Lexit”, ou seja, uma campanha da esquerda para uma desintegração controlada da União? Eu guardo com emoção uma lembrança de minhas intervenções na Alemanha diante de salões lotados no dia seguinte da capitulação do Syriza perante Angela Merkel e a Troika.2 As pessoas presentes explicaram que o que havia sido feito na Grécia não tinha sido em nome delas, em nome do povo alemão. Eu me lembro de como elas ficaram aliviadas em saber que o DiEM25 tinha feito um apelo para criar um movimento transnacional a fim de tomar o controle de instituições da União – Banco Europeu de Investimento (BEI) e Banco Central Europeu (BCE) – e de redesenvolvê-las de acordo com os interesses de todos os cidadãos.

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Tenho também na memória a alegria de nossos companheiros alemães quando lhes foi apresentada a ideia de lançarem, para as eleições europeias, candidatos gregos na Alemanha e candidatos alemães na Grécia. Trata-se de mostrar que nosso movimento é transnacional, que ele entende se apropriar, aqui e agora, das instituições da ordem neoliberal. Não para destruí-las, mas para colocá-las a serviço de um número maior de pessoas em Bruxelas, Berlim, Atenas e Paris. Em toda parte. Agora, imagine o que, ao contrário, teriam sentido se eu lhes tivesse feito o seguinte discurso: “A União não é reformável e deve ser dissolvida. Nós, os gregos, devemos nos voltar para nosso Estado-nação e tentar construir o socialismo lá. Vocês deverão fazer o mesmo aqui na Alemanha. Em seguida, uma vez que tivermos ganho, nossas delegações se encontrarão para discutir a colaboração entre nossos novos Estados progressistas soberanos”. Sem dúvida alguma, nossos companheiros alemães teriam perdido seu entusiasmo e voltado para casa desanimados com a perspectiva de enfrentar o establishment alemão enquanto alemães e não como membros de um movimento transnacional. Se minha análise estiver correta, pouco importa saber se a União é reformável ou não. O que conta é levar adiante proposições concretas sobre o que faremos com as instituições europeias. Não proposições extravagantes ou utópicas, mas descrições completas de quais seriam nossas ações esta semana, no próximo mês e no ano que vem, considerando as regras atuais e os instrumentos existentes. Por exemplo, como redefiniremos o papel do mal denominado Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), como reorientaremos a política chamada de “flexibilização quantitativa” (quantitative easing) do Banco Central Europeu, como financiaremos imediatamente e sem novos impostos a transição ecológica ou uma campanha de luta contra a pobreza. Por que propor um programa tão detalhado? Para mostrar para os eleitores que existem soluções, mesmo no interior de regras estabelecidas para servir aos interesses do 1% mais favorecido. Evidentemente, ninguém – e sobretudo nós – espera que as instituições da União se juntem às nossas proposições. O que queremos é que os eleitores vejam o que poderá ser feito em lugar do que é feito, de modo que eles desmascarem o establishment sem se voltarem para a direita xenófoba. É a única maneira, para a esquerda, de superar seus limites atuais e construir uma grande coalizão progressista. O “New Deal for Europe” tem exatamente esse objetivo: em primeiro lugar, mostrar que a vida da maioria dos cidadãos pode ser melhorada a curtís-

simo prazo, mesmo com as regras e as instituições existentes. Em segundo, delinear a transformação dessas instituições e, ao mesmo tempo, planejar o processo para a convocação de uma Assembleia Constituinte que, a longo prazo, levaria a uma Constituição Europeia democrática pela qual todos os tratados existentes serão substituídos. Em terceiro, demonstrar como os mecanismos que introduziremos desde o primeiro dia poderão nos ajudar a juntar os cacos se, apesar de todos os nossos esforços, a União se desintegrar. Muitos são os que falam da importância da transição ecológica. Mas eles não dizem de onde virá o dinheiro nem quem a planejará. Nossa resposta é clara: entre 2019 e 2023, a Europa precisa investir 2 trilhões de euros nas tecnologias verdes, na energia solar, eólica etc. Propomos que o BEI emita durante quatro anos um volume de bônus suplementares da ordem de 500 bilhões de euros. Ao mesmo tempo, o BCE anuncia que, se o valor desses bônus cair, ele os comprará no mercado secundário de títulos. Considerando esse anúncio e a superabundância de poupanças em todo o mundo, o BCE não terá de desembolsar um único euro, uma vez que todos os títulos serão imediatamente vendidos. Com base no modelo da Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE) – precursora da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, criada em 1948 para distribuir os créditos do Plano Marshall, uma nova Agência Europeia de Transição Ecológica canalizará esses fundos para projetos “verdes” em todo o continente. Cabe observar que essa proposta não necessita de nenhum imposto novo, pois se baseia em um título europeu existente (por exemplo, os bônus do BEI) e é plenamente legal de acordo com as regras em vigor. O mesmo ocorre com outras propostas de nosso “New Deal” sobre as medidas a serem tomadas imediatamente. Por exemplo, nosso fundo antipobreza. Propomos que bilhões de lucros do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), principalmente os lucros dos ativos no contexto de flexibilização quantitativa, sejam utilizados de modo a garantir alimentação, habitação e energia para todos os cidadãos. Outro exemplo é nosso plano de reestruturação da dívida pública da zona do euro. O BCE servirá como mediador entre os mercados financeiros e os Estados para reduzir o fardo de sua dívida total sem precisar emitir moeda e sem que a Alemanha tenha de pagar ou garantir a dívida pública dos países mais endividados. Como mostram esses exemplos, nosso “New Deal” faz uma combinação entre medidas que necessitam de

uma alta competência técnica, aplicáveis considerando as regras existentes da União, e uma ruptura radical com a austeridade e com a lógica de “salvamento” imposta pela Troika. Além disso, prevê instituições que preparem o terreno para um futuro europeu pós-capitalista. É o caso de uma proposta de socialização parcial do capital e dos lucros provenientes da automatização: o direito de grandes empresas operarem na União será subordinado à transferência de uma porcentagem de suas ações para um novo Fundo Europeu de Ações. Os dividendos dessas ações financiarão, em seguida, uma renda básica universal a ser paga para todos os europeus, independentemente de outros benefícios sociais, seguro-desemprego etc. UNIÃO DA ESQUERDA É CRUCIAL

Outro exemplo da radicalidade de nossas propostas: a reforma do euro. Antes de mergulharmos nas mudanças a serem feitas nos estatutos do BCE, temos um projeto de criar uma plataforma digital pública de pagamentos em todos os países da zona do euro. Os contribuintes terão possibilidade, então, de comprar créditos fiscais digitais utilizáveis para efetuar transações entre eles ou para pagar futuros impostos com um desconto substancial. Esses créditos serão feitos em euros, mas somente poderão ser transferidos entre contribuintes de um mesmo país, o que impedirá brutais fugas de capitais. Ao mesmo tempo, os governos poderiam criar uma quantidade limitada desses euros fiscais e destiná-la aos cidadãos que passam por dificuldades básicas ou para financiar projetos públicos. Os euros fiscais permitiriam aos governos sob pressão estimular a demanda, diminuir sua dívida e, enfim, reduzir a força esmagadora do BCE e evitar o custo de uma saída ou de uma desintegração do euro. A longo prazo, essas plataformas digitais públicas de pagamento poderão constituir um sistema regulado de euros específico a cada país, que funcionará como uma câmara de compensação internacional. Seria uma versão modernizada da visão de John Maynard Keynes do que veio a ser o sistema de Bretton Woods, mas que infelizmente ele não estava mais vivo para ver. Para resumir, nosso “New Deal for Europe” é um projeto global para: a) redesenvolver, com perspicácia, de acordo com os interesses da maioria, as instituições existentes; b) fazer o planejamento de um futuro pós-capitalista, radical e verde; c) nos prepararmos para recuperar a saúde da União Europeia se ela sofrer um colapso. A esquerda tem dois inimigos: a desunião e a incoerência. A união é crucial, mas não deve ser feita à custa da

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coerência. Tomemos, como exemplo, o estado do Partido da Esquerda Europeia atualmente. Como seus membros podem batalhar pelos votos dos eleitores no próximo mês de maio se, na Grécia, é representado por um partido que, quando no governo, implementou o mais brutal programa de austeridade da história do capitalismo e, em países como a França e a Alemanha, um grande número de seus dirigentes é eurocético? Amigos de esquerda bem intencionados nos perguntam por que o DiEM25 não faz uma aliança com o movimento França Insubmissa, encabeçado por Jean-Luc Mélenchon e, na Alemanha, com o movimento Aufstehen, liderado por Sahra Wagenknecht e Oskar Lafontaine. A razão é simples: porque nosso dever é construir a unidade que tenha como base um humanismo radical, racional e internacionalista. Isso significa um programa radical comum para todos os europeus e uma política em favor de uma Europa aberta que considera as fronteiras como cicatrizes no planeta e dá boas-vindas aos imigrantes. Essa é a plataforma mínima. Nosso apelo à unidade se baseia em uma ideia simples: o DiEM25 convidou todos os progressistas para serem coautores de nosso “New Deal for Europe”. Nosso apelo foi ouvido. Génération-s (França), Razem (Polônia), Alternativet (Dinamarca), Democrazia e Autonomia (Itália), MeRA25 (Grécia), Demokratie in Europa (Alemanha), Wandel (Áustria), Actúa (Espanha), Livre (Portugal) se juntaram a nós. Outros estão prestes a fazê-lo. Juntos, constituímos a coalizão “Primavera Europeia”, que lançará candidatos para as eleições no próximo mês de maio. Nossa mensagem para o establishment europeu autoritário é a seguinte: resistiremos a vocês por meio de um programa radical, que é bem mais sofisticado tecnicamente que o de vocês. Nossa mensagem para os xenófobos fascistas: combateremos vocês em todos os lugares. Nossa mensagem para nossos companheiros da esquerda europeia, do movimento França Insubmissa etc.: podem contar com nossa infindável solidariedade, na esperança de que, um dia, nossos caminhos vão se convergir a serviço de um humanismo radical e transnacional. *Yanis Varoufakis é economista, ministro das Finanças da Grécia entre janeiro e julho de 2015 e fundador do Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEM25).

1 O ano de 2025 corresponde ao prazo final fixado pelo movimento “Para fazer que a Europa se torne plenamente democrática e funcional”. [Nota da redação.] 2 FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. [Nota da redação.]

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QUANDO O TRIBUNAL SE FAZ DE PSICÓLOGO

A justiça transfigurada pelas vítimas Desde sempre, a intensidade dramática de certos casos criminais desafia a serenidade da justiça. Essa tensão própria do processo penal cresce com a deificação contemporânea das vítimas. O tribunal não precisa mais simplesmente punir um culpado, ele deve reparar os sofrimentos. Assim, vítimas tornam-se procuradores, e as penas ficam mais pesadas POR ANNE-CÉCILE ROBERT*

or muito tempo, as vítimas e seu sofrimento foram negligenciados por uma justiça que tinha por objetivo prioritário sancionar o criminoso e proteger a sociedade. Progressivamente, elas viram seus direitos serem reconhecidos e o surgimento de um estatuto, o que tornou possível, em muitos casos, uma reparação mais justa do dano sofrido. Os movimentos feministas e as associações humanitárias contribuíram muito para isso nas duas últimas décadas. Seus esforços permitiram que o Conselho da Europa adotasse diversos relatórios sobre a ajuda e a indenização que as vítimas podem, a partir de agora, receber. Na França, esse foi o objeto da lei de 15 de junho de 2000. O Canadá, por sua vez, dispõe desde 2015 de um código dos direitos das vítimas que garante a estas um lugar na administração da justiça. Elas são ouvidas independentemente de sua contribuição para a manifestação da verdade.

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Pouco a pouco a vítima se torna o elemento central do processo, que, no entanto, tem como função principal julgar o acusado. E ela é cada vez mais solicitada, mesmo estando numa posição difícil para conseguir apreciar serenamente os fatos. Os testemunhos, principalmente se são impressionantes, aumentam o risco de perturbar a reflexão dos jurados e de alterar seu julgamento a respeito de uma pessoa cujo futuro está em jogo. “É legítimo que a vítima tenha todo o seu espaço no processo. Mas não se deve ceder à tentação de transformá-la, segundo os termos do decano Jean Carbonnier, ‘de sujeito passivo do delito em agente marcial da repressão’”, advertia o ex-presidente da Corte de Apelação de Paris, Jacques Degrandi, em um discurso de 2013. “Atenção! Progressivamente, a vítima se torna o centro do processo penal e de suas consequências [...] Levar longe demais uma lógica que lhe dá, mesmo que indiretamente,

a condução do processo vai se voltar contra ela, cedo ou tarde.” Criada em 1998 pelo Estatuto de Roma, a Corte Penal Internacional (CPI) é exemplar dos processos em andamento. O processo prevê que a vítima participe ativamente da administração da prova. Sua contribuição não se limita mais às fronteiras probatórias do desenvolvimento, explica a advogada Francesca Maria Benvenuto.1 Diante da CPI, ela apresenta elementos de prova com o objetivo de explicar e justificar a lesão sofrida, mas também para estabelecer a culpa do acusado. Este se encontra, a partir de então, diante de dois acusadores: não existe mais igualdade das armas. NARRATIVAS ESPETACULARES

Ainda que a justiça nunca tenha sido totalmente impermeável aos movimentos de opinião, ritmados pela mídia que adora notícias populares, essa tendência se generaliza. “Quando vejo

o que está acontecendo nos Estados Unidos e no Canadá, fico espantado com a evolução que acelerou o endurecimento dos costumes penais e penitenciários. A vítima, diretamente presente nas comissões, pode ser ouvida mesmo em um debate sobre uma revisão de pena”, conta o magistrado francês Denis Salas. “Ela também pode produzir um vídeo, dar qualquer informação, com a seguinte legitimidade, que merece reflexão: ‘A sentença é muito pequena, vista a gravidade do crime que eu sofri’.”2 O tribunal se torna um local de reconhecimento dos sofrimentos, mesmo que a expressão das vítimas não provoque de maneira nenhuma um avanço na busca pela exatidão dos fatos e não contribua para determinar a responsabilidade do acusado. O processo não é mais simplesmente o espaço em que a sociedade decide sobre o destino reservado a um indivíduo sobre o qual pesam suspeitas; ele deixa de ser principalmente o meio para que a sociedade reflita sobre o risco potencial que um indivíduo apresenta para a coletividade. O tribunal se torna um espaço de expressão, de gestão e, principalmente, de reparação do sofrimento das vítimas. E nada é mais perigoso para o equilíbrio dos debates do que adotar a dor como um critério de avaliação da culpa. Uma velhinha que tem seu gato assassinado, único ser vivo que lhe fazia companhia, vai sofrer muito. Mesmo uma pena pesada não estará à altura de sua dor. No entanto, ressalta Éric Dupond-Moretti, “o processo penal não é o anexo de um consultório de psicologia nem um escritório de Talião”. “O tribunal”, acrescenta, “se reúne para julgar um indivíduo a quem a sociedade pede explicações por um crime do qual é acusado. O objetivo é este: um homem diante do julgamento da comunidade de homens. O sistema, por mais imperfeito que seja, foi concebido assim, para substituir a prática da vingança individual.”3 A centralidade da vítima e a intensidade do barulho midiático propagado em torno dela podem perturbar a serenidade da justiça. “Em média, cada reportagem sobre uma notícia a respeito de um crime divulgada nos jornais televisivos

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das 20 horas aumenta em 24 dias a duração das penas pronunciadas no dia seguinte pelos tribunais”, estima o Instituto das Políticas Públicas de Paris.4 A vítima, real ou presumida, desvia o julgamento judiciário. Circunstâncias atenuantes e princípio de individualização das penas se apagam em proveito de sanções pesadas quase automáticas. O erro judiciário do qual foi vítima Loïc Sécher encontra sua origem na emoção suscitada pelo testemunho de sua alegada vítima. Acusado de estupro por uma adolescente, esse trabalhador agrícola foi inocentado, depois de anos na prisão, pelo novo testemunho da mesma mulher, agora maior de idade, que reconheceu ter inventado tudo. Como no caso de Outreau, em que diversas pessoas foram condenadas erroneamente por pedofilia, a justiça encontrou as maiores dificuldades em voltar atrás sobre uma decisão equivocada, tomada sob influência de narrativas tão imaginárias quanto espetaculares, e com a preocupação, bem legítima, de proteger menores de idade.5 Nem é preciso dizer que as simplificações midiáticas, o culto do “tempo real” e as redes sociais não favorecem a serenidade nesses casos delicados. Em nome do sofrimento, autêntico, das vítimas, esquece-se o princípio de individualização das penas, essa conquista das sociedades democráticas graças à qual se julgam os atos, mas também uma pessoa, com sua história e suas características. Mas, ouve-se então como refutação, o criminoso se abstrai da humanidade; por consequência, a sociedade pode se abstrair dela também. Com a única diferença, replica Dupond-Moretti, que “não basta bater no autor de um crime para diminuir a dor das vítimas. Não é no tribunal que se vive o luto, é no cemitério”.6 Por sua longa observação do desenrolar dos processos da CPI, Maria

Francesca Benvenuto conclui que o processo penal internacional se aproxima cada vez mais de um percurso terapêutico. Segundo alguns juristas, a justiça seria uma “etapa na necessária reconstrução da vítima”,7 e o novo lugar obtido no processo, uma “primeira resposta pertinente a seus múltiplos traumas”.8

E nada é mais perigoso para o equilíbrio dos debates do que adotar a dor como um critério de avaliação da culpa Os eventuais desvios de processo penal se revelam ainda mais fáceis quando o crime é grave ou quando o dano sofrido (por exemplo, quando de um acidente de transporte que fez dezenas de vítimas) é imenso. Instala-se facilmente não apenas a ideia de que o castigo deve ser à altura do dano, mas de que é preciso encontrar um culpado, mesmo quando não há. As catástrofes naturais nem sempre têm responsáveis diretos ao alcance da justiça, pois aqueles que causam o aquecimento global raramente vivem nos locais onde suas consequências se sentem com mais força. No entanto, as vítimas reclamam por “justiça”. Depois das inundações assassinas causadas pela tempestade Xynthia na costa oeste da França, em 2010, o tribunal, sob a pressão dos queixosos e da mídia, deu provas de uma extrema severidade perante os acusados. Os eleitos locais que tinham dado a autorização de construção ou a quem se censurava, por vezes legitimamente, por não terem tomado as

medidas de proteção necessárias foram acusados de todos os males, inclusive os que iam para além deles, como as consequências da fúria da natureza. Os magistrados insistiram no dano sofrido pelas vítimas, sem consideração séria das cadeias causais, e difamaram as pessoas em questão. O veredicto, acompanhado de considerações morais, foi pesado: o ex-prefeito de La Faute-sur-Mer, especialmente, foi condenado a quatro anos de prisão em regime fechado, uma pena de uma severidade inédita para um delito não intencional, já que a sanção mais pesada até então tinha sido de dez meses de prisão com sentença suspensa. Em segunda instância, a sanção foi finalmente reduzida para dois anos de prisão com sentença suspensa por “homicídios involuntários”. A pressão penal exercida sobre os eleitos pela palavra das vítimas também pode ser percebida como uma compensação à sua irresponsabilidade política crescente: nas democracias representativas em crise, a justiça se torna um meio de atingir os dirigentes que as instituições deixam fora do alcance. A Constituição da Quinta República, por exemplo, concede poderes importantes para o presidente e sua maioria parlamentar, mesmo que estes tenham sido eleitos em condições calamitosas, como foi o caso em 2017, quando Emmanuel Macron conseguiu apenas 43,61% dos inscritos no segundo turno da eleição presidencial, enquanto a abstenção nas eleições legislativas atingia 57,36% dos inscritos. As leis adotadas em tais circunstâncias não são igualmente aplicadas em todas as áreas (fiscal, social, securitária etc.). A responsabilidade dos eleitos deixa então o terreno eleitoral e passa para o terreno penal. Foi assim que o escritor Édouard Louis censurou pessoalmente o presidente Jacques Chirac, o primeiro-ministro Alain Juppé e o ministro Xavier Bertrand, sobre as

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disposições regulamentares que, segundo ele, contribuíram para a deficiência permanente de seu pai, vítima de um acidente do trabalho. Quando o sofrimento vem de uma ordem social ou das lógicas de um sistema que privam uma pessoa de seus direitos fundamentais, a ação se impõe, e não a compaixão. A transferência do favor popular do herói para a vítima diz muito sobre o dolorismo atual e o sentimento de impotência que o acompanha. Os cidadãos se estimam tão despossuídos dos meios de agir em seu cotidiano e sobre seu destino que se sentem mais próximos de uma pessoa que sofre o mal do que daquela que luta para vencê-lo. *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le Monde Diplomatique.

1 Francesca Maria Benvenuto, “La Cour pénale internationale en accusation” [A Corte Penal Internacional em acusação], Le Monde Diplomatique, nov. 2013. 2 Denis Salas, “Le couple victimisation-pénalisation” [A dupla vitimização-penalização], Nouvelle Revue de Psychosociologie, v.2, n.2, Paris, 2006. 3 Éric Dupond-Moretti (com Stéphane Durand-Souffland), Directs du droit [Diretas do direito], Michel Lafon, Paris, 2018. 4 Aurélie Ouss e Arnaud Philippe, “L’impact des médias sur les décisions de justice” [O impacto da mídia sobre as decisões da justiça], Instituto de Políticas Públicas, nota IPP n.22, jan. 2016. Disponível em: <www.ipp.eu>. 5 Ler Gilles Balbastre, “Les faits divers, ou le tribunal implacable des médias” [As notícias populares, ou o tribunal implacável da mídia], Le Monde Diplomatique, dez. 2004. 6 Philosophie Magazine, n.116, Paris, fev. 2018. 7 “Nicole Guedj: ‘Non, je ne suis pas inutile’” [Nicole Guedj: “Não, eu não sou inútil”], Le Monde, 30 set. 2004. 8 Julian Fernandez, “Variations sur la victime et la justice pénale internationale” [Variações sobre a vítima e a justiça penal internacional], Amnis, Aix-en-Provence, jun. 2006. Disponível em: .

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A CRISE POLÍTICA QUE DIVIDE A ÁFRICA

No Congo, o candidato derrotado... é eleito Organizadas com dois anos de atraso, as eleições na República Democrática do Congo resultaram em um arranjo político sem relação com a realidade das urnas. Esse epílogo suscitou divisões inéditas na África. Eclipsando as habituais reações da “comunidade internacional”, tais fraturas lançam luz sobre as transformações políticas do continente

xcepcionalmente, a manipulação das eleições gerais de 30 de dezembro de 2018 na República Democrática do Congo (RDC) abriu uma fratura na África: de um lado, aqueles que queriam fazer prevalecer a verdade das urnas; do outro, aqueles que, com a África do Sul à frente, privilegiaram a decisão “soberana” do país. Inédita, essa divisão revela as novas relações de força no continente e os debates que o atravessam. O anúncio dos resultados provisórios pela Comissão Eleitoral Nacional Independente (Ceni) em 10 de janeiro suscitou imediatamente a polêmica. Depois de ter pedido uma nova contagem dos votos, a União Africana teve de se inclinar diante do veredito do Conselho Constitucional de 20 de janeiro de 2019. Contra a evidência, Félix Tshisekedi, candidato da coalizão Rumo à Mudança (CACH – Cap pour le Changement), foi proclamado vencedor com 38,57% dos votos, à frente do candidato da outra coalizão de oposição, Lamuka [“Acordem”], Martin Fayulu (34,8%) e do sucessor do presidente Joseph Kabila, Emmanuel Ramazani Shadary (23,84%), ao final dessa eleição uninominal com um único turno. Diante desse resultado, não poderia haver dúvida. Entretanto, relatório publicado em 18 de janeiro pela bem informada e respeitada Conferência Episcopal Nacional dos Bispos Congoleses (Cenco)1 revelou, na base de uma amostra representativa de 13,1 milhões de eleitores, um pódio bem diferente (Fayulu, 62,11%; depois Tshisekedi, 16,93%; e, por fim, Ramazani Shadary, 16,88%). O método utilizado para essa contagem provou-se correto em Gana (em 2011 e em 2016), na Nigéria (em 2011 e em 2015), na Tunísia (em 2014), assim como em Burkina Faso e na Costa do Marfim em 2015.

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UM ARRANJO IMPROVÁVEL

O resultado oficial foi na verdade negociado no último momento entre Kabila e Tshisekedi. Confrontado ao fracasso de seu sucessor, Kabila prefe-

Eleições presidenciais na República Democrática do Congo riu entrar em acordo com aquele que se encontrava no segundo lugar, confiando a ele sua cadeira, enquanto eleições legislativas, organizadas ao mesmo tempo e validadas pela Ceni, acordavam aos partidários do presidente uma confortável maioria de mais de trezentos deputados em quinhentos. Menos brilhante e carismático que seu pai, Étienne Tshisekedi, figura da vida política congolesa morto em 2017, Félix Tshisekedi parecia mais maleável que seu concorrente que se encontrava em primeiro lugar. Sem recursos financeiros nem diplomas, ele tinha tentado diversas vezes uma aproximação com o campo de Kabila. Fayulu, por sua vez, antigo executivo da ExxonMobil, com uma carreira política sem comprometimentos – nem com o regime de Joseph Mobutu (que reinou no país de 1965 a 1997) nem com a dinastia dos Kabila –, parecia incontrolável. O apoio que lhe davam duas personalidades muito populares – Moïse Katumbi, ex-governador de Katanga, e Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente – aumentava ainda mais sua capacidade de perturbação. A escolha do poder se impôs rapidamente. Fato novo: em um continente onde as autoridades frequentemente co-

brem com um véu de pudor as manipulações eleitorais,2 uma circunspecção inabitual acolheu esse arranjo improvável. Um debate a distância a respeito da atitude a ser adotada começou a existir entre as autoridades congolesas, as organizações continentais e potências regionais como a África do Sul. Nesse diálogo interafricano, as críticas sobre os números oficiais emitidas pelo ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, foram rapidamente colocadas em segundo plano. Depois da publicação dos resultados provisórios, em 10 de janeiro, Edgar Lungu – presidente da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDAA), da qual faz parte a RDC, e chefe de Estado zambiano – emitiu publicamente “sérias dúvidas” e estimou “que uma recontagem permitiria que se tranquilizassem tanto os vencedores quanto os perdedores”. Ao mesmo tempo, Denis Sassou Nguesso – presidente da Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), da qual a RDC também é membro, e dirigente do Congo-Brazzaville – aconselhou em Kinshasa a “considerar uma recontagem dos votos a fim de garantir a transparência dos re-

sultados”. Por sua vez, a União Africana manifestou suas reservas e anunciou sua intenção de enviar para Kinshasa, em 21 de janeiro, uma delegação conduzida por seu presidente, o chefe de Estado ruandês Paul Kagamé. Única voz discordante, e não menos importante, nesse concerto de reações céticas: a do presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, que imediatamente felicitou os partidos congoleses por terem garantido um processo eleitoral pacífico “sem ingerência nem pressões”. Em 14 de janeiro, o ministro sul-africano das Relações Exteriores e da Cooperação, Lindiwe Sisulu, apelava para que a “comunidade internacional” “respeitasse os processos internos legais”. Em 20 de janeiro, véspera da visita anunciada de uma delegação da União Africana, a Corte Constitucional Congolesa apitava o fim do jogo, proclamando a vitória definitiva de Tshisekedi. Logo após a África do Sul, todos os países africanos então reconheceram o novo chefe de Estado congolês. Chocante do ponto de vista dos valores democráticos, essa vitória do fato consumado se explica pela história movimentada e dolorosa da RDC. O país não conheceu uma alternância democrática desde sua independência, em 1960, um ano antes do assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba pelos serviços secretos belgas. Segundo a Constituição, Kabila – no poder desde 2001 – deveria ter deixado o poder em dezembro de 2016, mas a eleição presidencial foi adiada por dois anos, oficialmente em razão de “problemas materiais”.3 Em tal contexto, a manutenção, mesmo que contestável, do resultado pode aparecer como um alívio... enquanto se espera por dias melhores. Diante do imperativo democrático, foi a preocupação em manter a estabilidade da RDC que ganhou no final. Por seu tamanho e sua situação no coração do continente, esse país tem, de fato, para toda a África, uma importância capital, ainda maior pela importância de seus recursos. Maior fon-

© Monusco / Sylvain Liechti

POR FRANÇOIS MISSER*

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te de água do continente, dotada do maior potencial hidrelétrico, maior produtor mundial de cobalto, produtor importante de cobre, ela poderia se tornar “a Arábia Saudita do lítio”, o metal empregado na fabricação das baterias dos carros elétricos. Mas esse gigante econômico ainda carrega as feridas dos dois conflitos que o destruíram em 1997 e em 2002. Implicando os Estados vizinhos (Ruanda, Uganda e Angola, em especial), mas também os mais distantes (Namíbia, Chade e Zimbábue), eles são significativamente qualificados como “guerras mundiais africanas”. Os países limítrofes conservam o pavor de que uma degradação da situação de segurança e humanitária na RDC provoque um afluxo de refugiados em seus territórios. E seus temores não são infundados. Nas províncias de Kivu, a instabilidade provocada por uma miríade de grupos armados, nacionais e estrangeiros, mas também por elementos indisciplinados das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC), é tal que as operações eleitorais não puderam acontecer em todo o território. Nas circunscrições de Beni e de Butembo, no Kivu do Norte, a eleição simplesmente não aconteceu. No Kivu do Sul, os rebeldes burundeses das Forças Nacionais de Libertação (FNL) enfrentam de tempos em tempos o Exército oficial de Bujumbura. Os trabalhadores humanitários estimam o número de deslocados internos em mais de 4,5 milhões, 1,3 milhão apenas na região do Grande Kasaï, no centro do país, onde os enfrentamentos com as FARDC teriam feito 3 mil mortos desde 2016. Algumas centenas de milhares de habitantes do Kasaï fugiram para Angola, onde as concessões de diamantes das províncias do Lunda Norte e do Lunda Sul foram invadidas pelos garimpeiros congoleses. Invocando o direito de proteger seus recursos minerais, Luanda expulsou entre setembro e dezem-

bro de 2018 mais de 400 mil pessoas, na maioria congoleses, quando de uma operação batizada de Transparência. Oriundo da etnia dos Lubas do Kasaï, Tshisekedi suscita no país a esperança de uma regulamentação pacífica dessa crise. No final de janeiro, menos de uma semana depois da posse do novo presidente, cerca de seiscentos milicianos, reconhecíveis pelo lenço vermelho que lhes cinge a cabeça, depuseram armas: fuzis AK47, fuzis de caça, machados, bastões, flechas e até mesmo fetiches ou amuletos. Vinte vezes menos povoado do que a RDC e seus 80 milhões de habitantes, o Congo-Brazzaville vigia como se fosse leite fervente a situação do outro lado do Rio Congo, atemorizado pelo fantasma de uma onda de refugiados que o afundaria. A vontade de controlar os fluxos migratórios já se traduziu na expulsão brutal de mais de 179 mil cidadãos da RDC em situação ilegal na Operação Mbata ya Bakolo [“o tapa dos mais velhos”], em 2014. Esse temor foi despertado novamente em dezembro de 2018 pelos enfrentamentos dos Yumbi, na província de Mai-Ndombe, onde as operações eleitorais foram também suspensas. Ao menos 890 habitantes teriam sido assassinados e 16 mil pessoas se refugiaram no Congo-Brazzaville, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Essa mesma preocupação de prevenir um êxodo proveniente da RDC existe em Ruanda, que hospedaria, no final de dezembro de 2018, mais de 79 mil refugiados congoleses, chegados em diversas ondas.4 Nesse jogo, a África do Sul joga sua própria partida. Ao validar o processo eleitoral congolês, ela reafirma seu vínculo ao princípio da soberania dos Estados e uma diplomacia hostil à ingerência de tipo imperialista. Eleita membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU para 2019-2020, ela contribuiu, em nome do princípio de não ingerência, com a

sabotagem da reunião organizada pela França em 4 de janeiro sobre as eleições na RDC, impedindo a adoção de um comunicado comum. Pretória recebeu o apoio dos dois outros membros africanos dessa instância da ONU: a Costa do Marfim e a Guiné Equatorial. A ÁFRICA DO SUL SE DEFENDE

Essa atitude não está isenta de um certo cinismo. O arranjo com Tshisekedi mantém em efeito a influência de Kabila. Durante dezoito anos, o presidente congolês foi um parceiro cômodo para a África do Sul. Em 2013, um tratado internacional concedeu à companhia sul-africana de eletricidade Eskom mais de 2.500 megawatts provenientes da futura barragem de Inga III,5 ou seja, mais da metade de sua potência. Kabila outorgou a diversas empresas sul-africanas autorizações petroleiras sem licitação. Uma delas obteve duas concessões na Bacia do Congo, invadindo o Parque Nacional da Salonga. Segundo fornecedor comercial da RDC, em diversos produtos, depois da China, a África do Sul protege sua posição. Quase todo o cobre e o cobalto congoleses transitam ainda pelos portos sul-africanos, apesar da concorrência crescente dos corredores de Benguela, em Angola, e de Walvis Bay, na Namíbia. Para a União Africana, o desenlace da novela congolesa é incontestavelmente uma afronta. Em 2002, quando sucedeu à Organização da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, ela afirmou que “eleições transparentes e críveis constituem um elemento-chave que permite a garantia do direito fundamental e universal do governo participativo e democrático”.6 Ela prevê inclusive missões de observação encarregadas de avaliar a independência das comissões eleitorais nacionais, o bom desenrolar das eleições e a utilização dos fundos públicos. No entanto, na prática, na maioria das situa-

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ções, ela prefere deixar esse papel para as organizações sub-regionais. A implicação da União Africana nas eleições congolesas representa então uma tentativa inédita (mas abortada) de resolução da crise, sem dúvida ligada à personalidade de seu presidente, Kagamé. O chefe de Estado ruandês não é um grande fã de Kabila. Ele o critica principalmente por acolher os rebeldes hutus em seu território. Foi sem dúvida para conseguir seu apreço que Kabila entregou ao poder de Kigali o coronel Ignace Nkaka, porta-voz das Forças Democráticas de Libertação da Ruanda (FDLR), e o tenente-coronel Théophile Abega, responsável pelas informações militares da organização rebelde, ambos presos em 15 de dezembro pelo Exército congolês em Bunagana (Kivu do Norte). No fim das contas, todo mundo, tanto na África como fora dela, se acomoda com a vitória de um candidato que provavelmente não conseguiu mais do que 17% dos votos. Mas será que a população congolesa vai aceitar o que Fayulu qualificou como um “golpe eleitoral”? *François Misser é jornalista.

1 Ler “L’Église congolaise contre Kabila” [A Igreja congolesa contra Kabila], Le Monde Diplomatique, abr. 2018. 2 Ler Tierno Monénembo, “En Afrique, le retour des présidents à vie” [Na África, o retorno dos presidentes à vida], Le Monde Diplomatique, dez. 2015. 3 Ler Sabine Cessou, “Transition à haut risque en République démocratique du Congo” [Transição de alto risco na República Democrática do Congo], Le Monde Diplomatique, dez. 2016. 4 “République du Congo. Les expulsions collectives de ressortissants de la RDC pourraient constituer des crimes contre l’humanité” [República do Congo. As expulsões coletivas dos cidadãos da RDC poderiam constituir crimes contra a humanidade], Amnesty International, 2 jul. 2015. 5 Ler François Misser, La Saga d’Inga. L’histoire des barrages du fleuve Congo [A saga de Inga. A história das barragens do Rio Congo], L’Harmattan/ Museu Real da África Central, Paris/Tervuren (Bélgica), 2013. 6 Declaração dos princípios regentes das eleições democráticas na África, OUA/UA, Durban, 8 jul. 2002.

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ENTREVISTA

“Sociedade brasileira é hipócrita e preconceituosa”, diz Ney Matogrosso Aos 77 anos, ícone da cultura nacional fala ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre momento político do país, relação com as drogas e religião POR GUILHERME HENRIQUE*

“N

ão falo de política”, afirmou Ney Matogrosso ao sentar-se no sofá de seu amplo apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, em uma tarde abafada de fevereiro. A frase saltou da boca do artista como se fosse um bom-dia, acompanhada por um semblante amistoso, mas firme. Vestindo branco da cabeça aos pés, as pernas cruzadas, cercado por quadros, Ney Matogrosso não está preocupado em agradar ninguém. “Não sou hipócrita”, diz algumas vezes ao longo da conversa. A máxima de não falar de política acaba rapidamente, ao esclarecer que nenhum partido político lhe interessa e que só a liberdade vale a pena. Em seu livro de memórias (Ney Matogrosso – Vira-lata de raça), lançado no fim de 2018, Ney se define como livre e subversivo. Ninguém há de esquecer o que ele, João Ricardo e Gerson Conrad fizeram no início dos anos 1970, com o Secos & Molhados. “Eu subia no palco querendo trepar com as pessoas”, relembra. Aos 77 anos e quase meio século de carreira, a forma de reivindicar mudou: “Quando vejo a notícia de que 50 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, eu canto ‘Tem gente com fome’ no meu show”, salienta. O já conhecido estilo provocador e autêntico ganha força a cada análise. A sociedade, para ele, vive um período delicado, na linha tênue entre o temor e o atraso. “Não quero ser âncora do medo e não saberia viver desse jeito”, esbraveja. Ao vasculhar a própria história, Ney Matogrosso vai se desvencilhando das camadas que o formam. Fala do uso de drogas com naturalidade. O amor e a loucura parecem ter a mesma importância, sem que nenhum dos temas seja discutido com pudor. “Desde o começo digo a verdade, sabendo que não teria rabo para as pessoas pisarem”, ressalta. Entre memórias e revelações, Ney Matogrosso faz de sua vida um grande novelo. Fios longuíssimos estão co-

nectados, ainda que nem todos estejam à mostra. O Le Monde Diplomatique Brasil foi ao seu encontro para puxar uma das pontas. LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Há uma frase no seu livro de memórias que diz que “a parte masculina ou feminina que as pessoas enxergam em mim é reflexo delas próprias”. Como, por meio do seu trabalho, é possível fazer uma análise da sociedade? NEY MATOGROSSO – Sempre achei a sociedade brasileira muito preconceituosa e hipócrita. Sempre me coloquei contra a hipocrisia, assumindo a verdade desde a primeira entrevista que dei. Não sabia o que dizer, mas tinha a certeza de não querer viver escondido como muitos artistas brasileiros viviam à época, ocultos atrás de uma fachada. Isso não me interessava, porque seria compactuar com a hipocrisia. Desde o começo digo a verdade, sabendo que não teria rabo para as pessoas pisarem. Antes que elas falem de mim, eu já falei tudo. Sobre isso de artistas se esconderem, tenho a impressão de que os artistas de antigamente se expunham mais, talvez pelo período político. Qual é sua avaliação do período atual? Existe uma novíssima geração que contesta o tempo todo. Não sou uma pessoa acomodada também. Estou fazendo um show que as pessoas estão considerando político, mas não há política partidária. Quando vejo a notícia de que 50 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, eu canto “Tem gente com fome”, e isso não significa que eu esteja defendendo partido político, porque nenhum deles me interessa nem nunca me interessaram. Quero ter liberdade para falar de todas as coisas. Quando se parte do pressuposto de que você tem um partido, é preciso aceitar todos os erros daquele partido e falar mal dos outros. Então prefiro não ser de nenhum partido. Sou um ser humano que pretende usar a liberdade de expressão.

Como foi aquela situação com o MBL, em que o Kim Kataguiri tirou uma foto com você e postou nas redes sociais? Foi um episódio bobo; tentaram me usar naquele momento. Mas entrei na justiça e ele foi obrigado a tirar qualquer referência ao meu nome nas redes dele. Uma bobagem, porque depois de três ou quatro dias ninguém lembrava mais. É que ali estava no calor da situação, e ele se guiou por uma entrevista que eu tinha dado para um jornal estrangeiro sobre ser a favor ou contra o impeachment da Dilma. Disse que, se houvesse culpa, ela deveria sair. Mas eu não torcia pela queda dela, como não torço pelo mal desse que está aí [Bolsonaro]. Não sou assim. Posso discordar, mas respeito o voto das pessoas.

“Quando se parte do pressuposto de que você tem um partido, é preciso aceitar todos oserros daquele partido e falar mal dos outros”

Recentemente, você disse que “não queria ser âncora do medo ao falar do Brasil”. Sim, porque todo mundo estava apavorado, e eu não quero ter medo. Nunca tive medo de nada, por que vou me agarrar no medo neste momento? Como você se blinda? É você se colocar mentalmente. Não tenho medo, e aí? Isso não significa que eu esteja imune a nada. Mas eu não quero ficar nessa energia de temor. Isso é um atraso, péssimo. Não saberia viver desse jeito. Mesmo em tempos de ditadura? Mesmo naquele período. Se eu tivesse medo, não tinha nem mostrado a cara.

Durante seu documentário, você diz que é no palco que você se liberta. Da minha loucura, porque sempre temi a loucura. Estou falando isso do Secos & Molhados, que foi um momento de catarse pra mim. Eu não tinha um rosto, lembre-se disso... Quando deixei de ter um rosto, algo jorrou de dentro de mim. Enfrentei todo o medo da loucura que eu tinha. Da loucura em que sentido? Vou te dar um exemplo: nas décadas de 1950 e 1960, eu andava de ônibus diariamente. Ia pagar para o trocador e ele dizia que não tinha troco. Antes disso acontecer, eu já imaginava a seguinte cena: vou entrar no ônibus, o trocador vai dizer que não tem troco, e eu me via pendurado no corrimão enfiando o pé na cara dele, quebrando tudo. Era muito louco, e eu tinha horror disso se concretizar. Aí veio a cara pintada do Secos & Molhados. Fui com tudo. Eu era muito agressivo, então talvez precisasse exercitar a agressividade. Temia a agressividade, e ela foi exercitada via arte. Acho que todas as pessoas, em todas as profissões, deveriam praticar qualquer tipo de arte. A doutora Nise da Silveira sacou isso. Colocar sua loucura para fora pela arte, ultrapassar os limites e impedimentos das fantasias negativas. E aí você chega à década de 1980 com shows mais formais, de terno... Mas não foi pra limpar a barra, e sim por uma necessidade de experimentar aquilo. Mas em que momento, depois do Secos & Molhados, essa loucura que aparecia por meio da arte acabou? A arte é útil pra mim até hoje. É o que me realiza como ser humano, e eu não saberia ser outra coisa senão artista. Mas não pra exorcizar loucura. Não pra exorcizar loucura, mas, naquele momento, foi. Era um mo-

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Como o público responde a seu comportamento no palco, antes e agora? No começo peguei umas barras bem pesadas, de agressão. Mas, a partir do momento em que eu fui mudando, isso foi se alterando também. Hoje em dia não quero agredir ninguém, quero acariciar. Antigamente queria trepar com todos eles. Minha sorte foi nunca ter reprimido nada, mesmo que fosse agressividade.

© Guilherme Henrique

Você está cantando “A Cara do Brasil” no seu show, que diz: “A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho / Ninguém precisa consertar / Se não der certo a gente se virar sozinho / decerto então nunca vai dar”. Essa é nossa sina? Há quem acredite que precisamos criar algo enquanto país. Sim, concordo com ele. Mas, para isso, precisamos voltar lá atrás, respeitar os índios, os negros, a natureza. Porque há, por exemplo, uma dívida histórica com os negros que ainda não foi resolvida. A gente precisa entender qual é nosso jeito, mas não sei se viverei pra ver. Enquanto o Brasil que eu idealizo não acontece, vou vivendo minha vida, me distanciando desses focos de podres poderes.

mento de extrema violência do governo, e eu fui muito agressivo. Entrava no palco agredindo antes de dar oportunidade para alguém me agredir. Via fotos daquele período e não entendia como poderia ser eu, porque não me reconhecia na época do Secos & Molhados. Não sabia que aquilo estava dentro de mim, porque aí o assunto é o inconsciente. Era algo que vinha e eu deixava acontecer, protegido por uma máscara que fortalecia o resto. Como o uso de drogas aparece nessa história? As drogas aconteceram antes do Secos & Molhados. No dia que começou minha carreira no grupo decidi que não deveria usar nada no palco. Fumei maconha uma única vez para fazer um show, na primeira vez que fomos a Belo Horizonte. Lembro de estar em um campo de futebol e alguém da plateia falou “bota pra quebrar, Ney, porque nós não podemos”. É a única memória do show. Eu não gosto de não ter memória. Você acha que seria um artista diferente sem utilizar drogas? Não sei, porque, como nunca subi no palco sob efeito de nada, minhas experiências foram anteriores ao Secos. Estou falando de LSD puro, que abre as portas da percepção. Não é usar droga para dançar em boate. Eu ia para praias desertas no final da década de 1960, com roupa branca, uma es-

pécie de ritual. Droga era um veículo para alcançar outro estágio. Tomei o santo-daime por um ano e meio nos anos 1980 e parei porque estava ficando meio acelerado. No livro, você diz que se considera uma pessoa estranha para a média da população. Porque penso esse tipo de coisa que estou te falando [risos]. As pessoas nem atinam para essas possibilidades. Acredito no que não vejo, sou muito intuitivo e acredito na minha intuição. Acredito em vida em outros planetas. É ridículo acharem que somos o ápice de todos os universos e da criação. Estamos longe disso e de qualquer ápice. Se o ápice destrói seu hábitat, rouba, assassina, que ápice é esse?

“Enquanto o Brasil que eu idealizo não acontece, vou vivendo minha vida, me distanciando desses focos de podres poderes”

Por que não refletimos sobre isso? Porque não somos ensinados, não falam disso na escola. Porque nossos pais não incentivam e porque eles também não sabiam. Não deram o

pulo do gato pra eles. Esse pensamento te leva a independer de qualquer igreja ou religião. Seu relacionamento com Deus é direto. Ele não é um senhor que fica lá no céu apontando o dedo para mim dizendo que eu errei. Deus, para mim, é um princípio amoroso. Qual foi seu pulo do gato? Entender que quem comanda é o coração, não a cabeça. Compreendi isso ao tomar o daime. Tudo ia para minha cabeça, e eu ficava esquematizando tudo, julgando, “que gente esquisita, esses crentes”. Em determinado momento, pensei: “Idiota, para de olhar para fora e olha para dentro de você”. Árduo trabalho, tá? Até que um dia entendi que não estava na cabeça e comecei a exercitar isso. Este é o pulo do gato que ninguém dá: você tem que se guiar pelo seu coração. Eu não era amoroso com as pessoas, não sabia receber carinho. Na minha casa, ninguém nunca se beijou. Saí de casa aos 17 anos e fui viver minha vida independente, fosse tendo o que comer ou não. Optei por ser livre e nunca me fiz de coitado. Isso me endurecia, porque estava sozinho contra o mundo. Depois, com o daime, fui entendendo que poderia ser mais manso, mesmo discordando de tudo. É uma questão de amor próprio, outra coisa que as pessoas não entendem. Gostar de si, se respeitar. Devo ter limites, ainda que sejam mais elásticos [risos].

Como você avalia a presença da ministra Damares Alves, com um discurso evangélico, no ministério que contempla direitos humanos e temas relacionais a religião e sexualidade? Bom, primeiro de tudo, o Estado é laico. Nenhuma religião deve comandar nada. Isso já é errado. E o Bolsonaro? Moderou um pouco o discurso. Espero que ele entenda que existe muita coisa para se preocupar no país. E não adianta achar que os gays vão acabar, porque as pessoas nascem e continuarão nascendo. Se ele não está informado, que saiba: ninguém vira nada, as pessoas nascem desse jeito. Deixa cada um viver sua vida e vai governar. Não se meta na vida de ninguém. Há uma entrevista sua recente à Folha de S.Paulo em que você questiona esse papel de ser o representante do movimento gay. Por que você acha que as pessoas o colocam nesse lugar? Porque talvez eu tenha sido o primeiro que teve coragem de se expor. Não vejo por outro ângulo. Eles estão me ouvindo falar há 45 anos sobre tudo, e será que ainda não entenderam minha mensagem? Ou não querem entender? É conveniente. Eu apoio todos os movimentos. Eu sou muito mais que isso, não me satisfaço só com isso e penso muito além disso.

*Guilherme Henrique é jornalista.

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MISCELÂNEA

livros

internet POLÍTICAS TERRITORIAIS, EMPRESAS E COMUNIDADE – O NEOEXTRATIVISMO E A GESTÃO EMPRESARIAL DO “SOCIAL” Henri Acselrad (org.), Garamond

A CRISE DO VALOR DE TROCA Robert Kurz, Consequência

O

público brasileiro ganha tradução inédita de um texto fundador da crítica do valor (wertkritik), assinado por aquele que foi seu principal expoente, Robert Kurz. O ensaio A crise do valor de troca foi publicado originalmente em 1986 no primeiro número da revista Marxistische Kritik – o editorial do número acompanha o volume como anexo. Vemos nesse texto como o pensamento de Kurz ganhou impulso por meio da observação das transformações históricas do capitalismo, que o autor tinha sob seus olhos: “o objetivo deste texto consiste em apresentar [...] o limite lógico absoluto e o limite histórico do capital como consequência do mais recente e qualitativamente novo estágio de socialização capitalista” (grifo meu). As crises advindas ao longo da década de 1970 anunciavam o fim da concertação econômico-estatal que parecia ter estabilizado as contradições da sociedade capitalista. Entre essas crises, destacava-se a do trabalho, o desemprego em massa como consequência do processo de automatização das tarefas produtivas, agora alçado a novo patamar qualitativo com a invenção da microeletrônica. Enquanto muitos se limitavam a discutir essas transformações sob o limitado prisma da política, Kurz debruçou-se sobre a cientificização do trabalho para entender suas contradições mais profundas. Percebeu, então, que as transformações em curso traziam o aparecimento de uma forma de trabalho materialmente produtivo, porém improdutivo quanto à criação de valor. Essa modificação histórica tornava mais visível aquela que seria a contradição essencial da história do capital: “a contradição entre produtividade material, por um lado, e o caráter do valor ou de mercadoria, por outro”. Nascia assim uma teoria crítica que percebia na discrepância entre a forma-valor e a produtividade material o limite objetivo do capitalismo. Assente na redução do trabalho vivo, a expansão da produção significaria inversamente uma redução constante da massa de mais-valia, razão pela qual a teoria de Kurz se tornaria cada vez mais uma teoria da crise – bastante distinta das antigas teorias do colapso – e que vemos se desenvolver no segundo texto que compõe esse volume: “Tudo sob controle no navio a pique: superacumulação, crise da dívida e política” (1989). O livro é o primeiro de uma série de novas traduções de Robert Kurz que sairão pela editora.

A

[Gabriel Ferreira Zacarias] Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

[Gustavo Schiavinatto Vitti] Geógrafo e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ).

ruptura da barragem da mina Córrego do Feijão, da empresa Vale, colocou em discussão toda a estrutura de regulação dos impactos de grandes empreendimentos. Esse desastre político revelou, mais uma vez, o descaso com que empresas mineradoras tratam as populações locais, ignorando os alertas de defensores de direitos socioambientais e deixando ao abandono as próprias vítimas dos desastres, como já sabido no caso da Samarco. O que o livro pretende discutir são as políticas empresariais adotadas para lidar com as comunidades atingidas por seus projetos extrativos. Se essas comunidades são desconsideradas em seus direitos após os desastres, o que dizer das políticas “sociais” das empresas adotadas antes deles? Em que medida as políticas empresariais com relação às comunidades não estariam comprometendo a capacidade da sociedade de debater livremente as condições de implantação de tais negócios e de prevenir seus riscos? Em que medida as atividades empresariais destinadas a antecipar e pretensamente “resolver” os conflitos desencadeados por seus empreendimentos não estariam neutralizando, em seu nascedouro, as condições democráticas de ocupação dos territórios, no respeito aos direitos básicos das populações atingidas por tais projetos e na prevenção de desastres? Os trabalhos reunidos nessa coletânea discutem tanto a expansão dos projetos extrativos no mundo como o poder excepcional assumido pelas empresas multinacionais da mineração na esfera política, ao ponto de elas interferirem nas atribuições próprias aos Estados-nação e nos modos de vida das comunidades atingidas. As interferências nas máquinas estatais são aquelas que têm resultado na facilitação imprevidente da concessão de licenças de instalação e operação, em adequações casuísticas da legislação ambiental, na diminuição do valor de multas, na precarização das ações de fiscalização etc. A gestão empresarial do “social”, associada a discursos de “governança”, “responsabilidade social” e “investimento social privado”, tem, por sua vez, configurado formas de “governo indireto” que tendem a enfraquecer a disposição do Estado e da sociedade civil de discutir e influir na concepção dos projetos de mineração, assim como no tipo de desenvolvimento que eles encarnam. Essas questões de grande atualidade são, nesse livro, discutidas tendo por base estudos de caso da empresa Vale e de outras empresas mineradoras no México, na Argentina, no Peru e na República Democrática do Congo.

NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem o seu tempo

SEM AÇÚCAR Antonio Rodríguez Estrada é um fotógrafo madrilenho entusiasta da alimentação saudável. A forma que encontrou para juntar suas paixões foi um projeto em que tira fotos de alimentos ao lado do que seria a quantidade de açúcar em cada um deles, empilhada em torrões. A indústria de alimentos, sem dúvida, é uma das responsáveis pela epidemia de obesidade nos países ocidentais. Um alerta antes de entrar no site: talvez você pense duas vezes antes de comprar um refrigerante, um achocolatado ou um iogurte. <www.sinazucar.org> DETOX DIGITAL Em meia hora, ou menos, por dia, você estará a caminho de uma vida digital mais saudável e sob controle. Essa é a proposta do Data Detox Kit, feito pelo Glass Room London em 2017, com a curadoria do Tactical Technology Collective e apresentado pela fundação Mozilla – essa mesma, do navegador Firefox. A ideia é que você perceba a intersecção entre tecnologia, direitos humanos e liberdades civis, e como tudo isso faz parte do seu dia a dia na rede. Segurança digital, privacidade e ética dos dados não são levados muito a sério em nenhuma parte do mundo, e talvez menos ainda no Brasil. Um bom começo é você saber quais são suas pegadas digitais. TREEPEDIA Restam poucos governantes no mundo que ainda duvidam do aquecimento global. Assim, cidades no mundo todo têm buscado aumentar suas áreas verdes, com diferentes estratégias – não apenas para salvar a espécie humana, mas porque trazem incontáveis benefícios e qualidade de vida aos habitantes. O Massachusetts Institute of Technology (MIT) criou um índice capaz de comparar o verde visto nas cidades do mundo. Ele mede a área verde no nível nas ruas, e não parques e grandes bosques urbanos. Por enquanto, apenas algumas cidades do mundo estão mapeadas. São Paulo é uma delas, com 11,7% no Green View Index. A título de comparação, Nova York tem 13,5%; Amsterdã, 20,6%; e Paris, 8,8%.

[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.

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CANAL DIRETO

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SUMÁRIO LE MONDE BRASIL

Roteiro da resistência Parabéns, Silvio! Belo editorial. Precisamos de uma imprensa realmente livre e que seja capaz de resistir ao golpe que foi dado à nossa democracia e contra os direitos constitucionais. Não vamos aceitar o fascismo. É preciso resistir. A principal forma de resistência será com o povo na rua. Será necessário, a cada momento em que algo fira direitos individuais ou coletivos, ir à praça pública. Denunciar. Gritar. Não ter medo. A principal arma do povo, juntar-se e ir para a rua em todas as cidades do nosso país. Uacai Lopes

Por que o sistema educacional brasileiro nunca adotou Paulo Freire na prática? Ora, não há o que estranhar. O tipo de educação que interessa à plutocracia é a que forma analfabetos políticos, pessoas conformadas com o sofrimento, nunca uma educação para a liberdade, como pregava o Freire. Simples assim. José Mário Ferraz

O que querem os militares brasileiros? Casamento esse que está fadado ao fracasso. Já podemos ver os primeiros atritos entre o Ministério da Agricultura, representando o intervencionismo estatal, e o Ministério da Fazenda, levando o neoliberalismo. Rodrigo Santos

Edição 139 Parabéns, Le Monde Diplomatique Brasil! Desde que conheci o teor de suas reportagens não parei mais de ler. Continuem esclarecendo, informando nesse teor de comprometimento. Embora haja um segmento cego às notícias sérias, sigam informando quem busca não só leitura, mas conhecimento. Lizete Rizzotto Tonello Capa sensacional, como sempre, e conteúdo igualmente bom. Bruno Henrique Todo começo de mês eu fico na expectativa da capa do Diplô. Sempre fantástica. Davi de Carvalho

diplomatique Ano 12 – Número 140 – Março 2019 www.diplomatique.org.br

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VENEZUELA, ESTADOS UNIDOS E FRANÇA Chegar ao fundo do poço... e continuar cavando? Por Serge Halimi

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EDITORIAL A guerra contra os diferentes Por Silvio Caccia Bava

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Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas críticas e sugestões para [email protected] As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação. Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico. Capa: © Rodrigo Leão

UM MILHÃO DE PESSOAS JÁ PASSARAM PELOS CAMPOS DE REEDUCAÇÃO A repressão contra os uigures no controlado mundo do “sonho chinês” Por Rémi Castets

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AS CIÊNCIAS SOCIAIS A SERVIÇO DA “CONTRAINSURREIÇÃO” Retrato do intelectual como soldado Por Olivier Koch

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VENEZUELA A sombria carreira do enviado especial norte-americano Por Eric Alterman O que quer a oposição? Por Julia Buxton

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SEGURANÇA PÚBLICA O pacote de Moro nasce velho Por Marcelo Freixo

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DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE Políticas da morte e seus fantasmas Por Adriana Vianna

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Intelectuais de internet chegam ao poder: a luta de classes do saber O que pensar de um país que considera nossos professores e professoras bandidos, que vibra ao ver esses profissionais sendo massacrados pela polícia, mas defendem a greve dos caminhoneiros, “pois são pais de família e trabalhadores”? Como se os professores não tivessem família ou não trabalhassem. Essas eleições confirmaram que a ignorância e a imbecilidade dominam este país! Otto Mendes

CAPA Notas para entender os militares brasileiros na atualidade Por Alexandre Fuccille Somente para meus olhos Por Lucas Pereira Rezende A educação nas Forças Armadas Por Ana Penido

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200 MILHÕES DE GREVISTAS CONTRA NARENDRA MODI Na Índia, os “bons dias” vão ter de esperar Por Naïké Desquesnes PROTESTOS DOS BÁLCÃS À HUNGRIA Revoltas na periferia da Europa Por Jean-Arnault Dérens e Simon Rico AS ELITES DIANTE DOS “COLETES AMARELOS” A ilosoia do desprezo Por Bernard Pudal FAKE NEWS OFICIAIS Viagem nas falsas verdades Por Serge Halimi e Pierre Rimbert REFAZER A UNIÃO EUROPEIA Estratégia para a esquerda Por Frédéric Lordon Por uma “Primavera Europeia” em maio Por Yanis Varoufakis

DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves Editor Luís Brasilino Editor-web Cristiano Navarro Editores de Arte Adriana Fernandes e Daniel Kondo Estagiária Taís Ilhéu Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins Assinaturas Viviane Alves Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – [email protected] Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis. Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 [email protected] www.diplomatique.org.br Assinaturas [email protected] Tel.: 55 11 2174-2015 Impressão Plural Indústria Gráfica Ltda. Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001 MISTO

Distribuição nacional DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda. Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte – Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624 LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY

QUANDO O TRIBUNAL SE FAZ DE PSICÓLOGO A justiça transigurada pelas vítimas Por Anne-Cécile Robert

Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI

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A CRISE POLÍTICA QUE DIVIDE A ÁFRICA No Congo, o candidato derrotado... é eleito Por François Misser

Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT

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ENTREVISTA “Sociedade brasileira é hipócrita e preconceituosa”, diz Ney Matogrosso Por Guilherme Henrique

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MISCELÂNEA

Redator-Chefe Philippe DESCAMPS

Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France [email protected] www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525

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