Fialho De Almeida: Os Pobres

  • June 2020
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  • Words: 2,725
  • Pages: 5
Darío Portela Núnez

Traços naturalistas em “Os pobres” (O Pais das uvas), de Fialho de Almeida. 1.Cotidianidade e compromisso com a realidade O título do relato já nos remete a uma das chaves do movimento naturalista que, ademais, supõe uma das distinções que mantinha com o Realismo (recordemos que para uma parte importante da crítica, o Naturalismo é um passo adiante, uma evolução no Realismo). Referímo-nos aqui, dentro do tratamento do social que abordam os dois movimentos, à focagem nos desfavorecidos, os pobres. O Realismo propriamente dito ficava retratando o âmbito burguês. O Naturalismo vai mais lá ocupando-se também dum abano mais amplo da sociedade, sem deixar de lado aos párias. A vontade de intervenção social para a reverter iniciada trás as famosas Conferências do Casino fazia também agora que se fita-se para os desleixados, tratando assim de explicar o porquê das suas misérias, como veremos ao ir analizando-mos os diferentes aspectos. Aqui retrata-se a pobreza em um entorno campestre e vão-se criar as peripécias dum individuo que mostrar-nos-ão as doenças duma sociedade em decadência que provocar-ão no sujeito uma patologia que se vai erigir como assunto da trama argumental. Em Fialho, a preocupação literária pelo desfavorecido responde, por um lado, a fortes influências como as de Balzac (La Comedie Humane)1, mas também em Fialho, há um conhecimento bastante profundo deste submundo, como corroboram as próprias notas biográficas que do autor sabemos. “[...] Em 72 deixei o colegio, porque a nossa situação pecuniaria, em vez melhorar, tendia a decair, e ahi vou eu apodrecer numa botica, sete annos, uma botica que era a porjecção agravada da existencia do colegio, com uma enclausura mais rude, uma fadiga phisica mais forte, e peorias consideraveis de tratamento e convivio, de que ainda hoje me não posso lembrar sem ranger os dentes de despeito. A botica para mim teve a vantagem de me pôr em contacto absoluto com o povo, de me mostrar a esistencia dos bairros pobres, numa cidade onde o operario envelhece sem a menor ideia de conforto, e cumulativamente ensinou-me o manuseio de preparo de venenos, arte de que me tenho servido com exito para rebentar diversas ratazanas. Durante esses sete annos d`emplastos e de pilulas, ninguem pode imaginar os tormentos que eu passei.[...]” (Almeida: 1923)

Nesta ocasião refletir-nos-á a atmosfera paisagística e climática que envolvem a José, o protagonista. A ambientação campestre que impregna este relato tipicamente regional (Alemtejo), como indica Da Costa Pimpao (1968), insere-se numa tradição do “conto rústico” que tem referentes já em Herculano (O Pároco da Aldeia), Paganino (Contos do Tio Joaquim) ou em José Francisco Trindade Coelho, o máximo representante nesta matéria. O entorno nada tem a ver com a exaltação do entorno ruralizante mesmo podiamos encontrar uns séculos atrás com Rodrigues Lobo e a sua introdução ás Églogas. Com tudo, o rural que aqui se nos mostra em Almeida é um entorno hostil que pouco têm a ver com o locus amoenus dos clássicos2, como muito bem dizia o mesmo Castel Branco. “[...] Na margem não há azinheiras nem abrigos. De Verão, o sol calcina-lhe os saibros, reverberando cegueiras ao olhar de quem o fita. De Inverno, as enxurradas sulcam-no de barrancos, descarnam-lhe os pedregulhos das barreiras, e vê-se de roda o campo triste, cheio de estevais e mato curto, onde nem sequer palpitam asas.[...]”(“Os pobres”)

“[...] Felizmente que não esquecera o seu Alentejo de menino. Colhendo nas suas reminiscências de criança o contorno dos tipos e o desenho dos caracteres, a perspectiva da charneca e a luz dos montados, tudo quando via e sentia num plano de realidade sem transcendência anímica nem deformação esteticista, é que o autor dos Ceifeiros transcendeu o seu tempo e passou à posteridade[...]” (Gaspar Simões, 196?: 166) 1 O país das uvas/ Fialho de Almeida; introdução por Maria da Graça Orge Martins. Lisboa: Ulisseia, D.L. 1987. (pág.13) 2 O pais das uvas. Fialho d`Almeida.11ªed./ rrevista e prefaciada por Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa: Livraria Clássica, imp,1968. (pág.28)

Também, como se nos indica nesta passagem de Estrada Larga, o que faz Almeida, e isto conecta-o por suposto com o resto do Naturalismo, é mostrar tipos como representantes duma colectividade, em tanto que neste conto o personagem principal encarna a face amarga dos pobres e o espaço pelo que se move igualmente responde a uns arquétipos ideológicos mas sempre sem se sair da representação realista. Não podemos deixar de lembrar tampouco o título da obra: O pais das uvas. É uma referência clara a uma associação de Portugal com o cultivo vinícola e com o retrato do mundo rústico que evocam esta e outras das suas composições. 2.Determinismo e hereditariedade É um elemento ineludível nesta peça contística como o protagonista é um produto das leis físicas e sociais (H.Taine) às que se viu sometido e sendo abocado à marginalização e à exclusão social mais absoluta. A forma em que o personagem é levado (ou mais bem é predeterminado) a sofrer esse estado de coisas desfavoráveis vem motivada por rações de nascença, de convivência que fão previsível o seu decorrer vital ao longo do discurso narrativo. Não ter conhecido aos progenitores e ter-se criado no seio duma família humilde e desestruturada não pode levar mais que a um futuro cheio de desgraça e de turbulências psíquicas e sentimentais. Ainda que ao final um se vai afazendo, ou quando menos é o que demostra o nosso protagonista. “[...] Queixas da vida não sabe. Reacções coléricas deliu-as no invectivar inútil doutras noites. E como do passado nada lhe vem que saiba a felicidade, as mais cruéis misérias lhe pareceram sempre coisas naturais. De feito, a sua retentiva não é capaz de registar, por quanto faça, outras cenas a mais que desconfortos, humilhações, penúrias, fomes... A mãe parira-o sobre as palhas dum telheiro, à volta duma feira, e fora deixá-lo à entrada do burgo, perto da fonte, onde umas rapariguitas o acharam depois, roxo de frio. No casebre do hortejo onde o criaram tudo sabia aos amargores duma pobreza quase trágica, a mãe cheia de filhos, pai bêbedo, pancadas, zangas, e ao derredor nada mais do que farrapos e imundícies.[...]”

Estas vicissitudes tinham-lhe reservado uma vida miserenta de solidão, errante e de confronto com o resto da hostil sociedade com a que choca frontalmente e com a que não encaixa volvendo-se um misantropo e um ser associal. Em Fialho, a convivência com uma disciplina científica e com professores imbuídos de determinismo, se não frutificou no campo meramente profissional (Medicina), teve repercussões decisivas na sua obra como nos informa Jacinto Prado Coelho em Estrada Larga (“Fialho e o determinismo”)3. Desde a inclusão de termos médicos (“misantropia”) até a abordagem, também característica do Naturalismo, duma patologia no indivíduo como consequência duma sociedade pervertida. A disfunção que presenta o sujeito em “Os pobres” insere-se no perfil prototípico de obra deste movimento. Concretamente neste nosso caso, o protagonista, e em base ao que lhe tocou padecer em vida como vimos dizendo, tem problemas com as relações pessoais e não é quem de interatuar com o sexo oposto. Em todo momento não se deixa de justificar estes desajustes com o seu passado, as suas origens e com o meio que o arrodeia. Há uma forte caracterização do personagem como um ser tremebundo e horripilante que reforça a tentativa de ilhar-se e de que o tenham apartado do mundo. Na obra presenta-se o problema como um trauma de difícil amanho acompanhado duma inseguridade e duns desequilíbrios psíquicos que vão ser, a fim de contas, o motor desta história. “[...] Destarte a solidão guardara nele, intacta, a primitiva índole sem laivos de cultura, e como vivera sempre à margem, inviolado na sua fealdade suja de monstro, esta misantropia o defendeu do amor como dum sentido supérfluo, adormecendo-lhe o sexo, como se ele fora um bicho para que não houvesse na natureza ser complementar.[...]”

3Estrada larga: antologia dos números especia, relativos a um lustro, do Suplemento “Cultura e Arte” de “O comércio do Porto”. Porto: Porto Editora, [196?] (pág. 193-194)

“[...] E é assim que envelhece e se inutiliza, lambendo os pés de todos e obrigado pela reclusão a considerar-se toda a vida um nefando. De não ter família nem casa resulta ser para ele o mundo um imenso erradouro, onde o seu papel é defender-se dos virotões que lhe arremessam. Noção de lar e presbitério, amizades de infância e folguedos de rapaz, a nenhuma destas monótonas memórias, que são o passado de todos, este infeliz poderia prender uma saudade.[...]”

Contudo, a patologia que lhe imprime esse medo ás mulheres não será suficiente para que, ao final do relato, chegue a consumar o acto com uma moça que atopa à noite numa casa abandonada na que se vai refugiar das inclemências do tempo. Nessa noite produze-se, dalguma forma, uma espécie de ruptura com o passado angustioso e desalentador que se nos veio refletindo constantemente. Essa rutura tem, desde logo, os seus inconvenientes pois a doença e os seus complexos de inferioridade, ademais de anteriores experiências dramáticas com mulheres que aí rememora, são muito fortes como vemos nos momentos prévios a manter relações. “[...] E a recorda-se dos seus trinta anos de vida vagabunda (noite sinistra, açaima os teus latidos!), do seu rolar no enxurro humano, escarnecido pela fealdade de macaco, enrodilhado pelo desprezo geral da sua força (ventos, não lhe acordeis o plácido aconchego!); e do amor nem trago que dessedentá-lo à beira da procriação universal, de que ele em toda a vida não mais do que a resignada testemunha![...]”

Repare-se, nesse sentido, na representação do medo com uma imagem fatal como confirmando o pior dos seus temores: “[...] O espectro da deformidade física paralisa-o, susta-lhe a audácia um vago horror de que o repilam: e fica-se ali, de olhos perdidos, alagado em delírio, e entre ele e ela deitado o demónio do escárnio, preservando os dois vagabundos da lascívia...[...]”

Mas, finalmente, e ajudado pela escuridão da noite na casa em trevas, chega a evitar esse demo que o levava toda a vida atormentando, ainda que seja apenas nesse momento. Afasta a visão da sua fealdade e vai-se ir botando a ela porque “ronca-lhe no peito uma fúria de sexo escachoante”. Cabe dizer que outro elemento que colabora na superação dos temores é que se nos define à fêmea como “alma irmã”. Pelo tanto entendemos que é uma personagem que se encontra numa situação de desespero vital e emocional similar ao que padece o protagonista. Sem estas ajudas, tal vez, o homem não daria feito. 3.Descritivismo profundo e estilo barroquizante. Mais do que uma parte considerável do relato, e como é regra na obra naturalista, está adicada às digressões e à descrição pormenorizada dos elementos que têm a ver com o sujeito e com todo aquilo que o rodeia com o objectivo de explicar a sua sorte. Como vimos no apartado anterior, a peça está marcada pelo pensamento determinista e isto vai motivar o estilo pois acarreia-lhe ao narrador fazer finca-pé e deter-se em certos aspectos que noutro tipo de obras resultariam, possivelmente, anecdóticos. Este determinismo vai ser de base pessimista e ateia até. E aparece uma subtil crítica à igreja e á hipocresia religiosa, quando se menciona a “filha do manajeiro da Casa Branca (...) que afinal fugiu com um prior”. Este estilo está marcado por uma caracterização muito forte, e muito relevante para entender o conto, onde mesmo o narrador procede a efetuar uma conscienciosa analepse para explicar o estado actual de “José”. Sem esta olhada ao seu passado dificilmente teríamos encontrado sentido a uma existência tão convulsa que mesmo tinha revertido na famosa e característica patologia de tipo sexual já mencionada. Por isso o narrador não duvida em adicar várias linhas, e mesmo parágrafos inteiros, a este efeito. “[...] É um desses tipos de expulso a que as raças regressam, como anojadas da cópula bestial que lhes deu causa, monstros da fauna humana, que a natureza recalca em sofrimento, envilecendo-os de propósito, na idade em que a

forma animal, transcorrendo da adolescência estrem à pubertade, reveste em todos os seres linhas de força e musculaturas de nobre estatutária.[...]”

“[...] Uma tristeza alvar alonga-lhe ainda mais os prognatismos barbosos da queixada, tem olhos doces, de cão expulso, mal empregados, tão longe! - mas, não obstante a sua mansidão passiva, desinteressa: as raparigas receiam, não sei porquê, desse gorila casto, uma cilada; os homens, no fundo, inquietam-se dos monossílabos com que ele responde cerce às assuadas;[...]”

Um traço muito destacável neste sentido é a animalização à que é sometido o protagonista. O protagonista é constantemente bestializado, de facto seu nome próprio não aparece até quase o fim do relato. Além da descrição do seu corpo, que enfatiza as suas patologias físicas (“Só no corpo dele a adolescência quase que tem estigmas servis, cifoses de trabalho nos ossos longos, incurvações nas pernas, a espinha giba, os braços bambaleantes, e tais espessamentos de pele, rugosidades, lanugens que diríeis um orangotango doméstico, prógnato horrível, barbirraro nos beiços, hirsuto, torvo, mas em cuja fronte baixa luzissem lâmpadas cristãs nos olhos tristes.”) ao longo de toda a história é referido como “orangotango doméstico”, “bicho”, “burro”, “cão expulso”,” gorila casto”, “mastodonte”, “monstro”, “besta sofredora”, “chacal”,” macaco”... A mulher que tem o encontro com ele, por ser da sua mesma condição humilde e desgraçada também vai ser exposta a essa desumanização (“fêmea”, “procurando-se, de rastos como cobras”). Por outro lado, já mais contra o principio do relato, encontramos representações das teorias evolucionistas de Darwin, especialmente na relação do protagonista com os irmãos, onde está clara a primacia do mais forte sobre o fraco: “[...]antes de a sua mão poder agarrar as saias da madrasta, outras enclavinhadas mãos ferozes, de verdadeiros filhos, lá contravêm ciumentas a expulsá-lo [...]” (O Pais das uvas) Outro aspecto destacável na obra almediana é o modo particular de focar a paisagem e os encontros humanos de tipo festivo que não estão dotados dum estilo barroquizante como peça angular da sua pluma.4 Proliferam as frases muito longas e complexas que lembram, em certo modo, a obras de Otero Pedraio na Galiza. É digna de menção o retrato etnológico exaustivo que faz neste relato sobre festas e costumes populares na aldeia alemtejana. Tudo como escusa para remarcar a solidão do protagonista no meio da gentalha. “[...] Pelas adiafas da ceifa, ou em Fevreiro, quando se acaba na lagariça a mastuga da azeitona, se o é bizarro, mata-se na herdade um chibato barbão para ensopado, vêm raparigas da aldeia e montes perto, e é um dia de feste entre a <>.[...]”

São um retrato fiel da vida rústica em comunidade, das suas celebrações, colheitas e que mesmo inclui a plasmação em verso dos cânticos e peças entoadas nesses tempos de folgança. “[...] O rouxinol quando bebe, Na fonte d´auga corrente, Tira penas com que escreve, Cartas ao amor ausente...[...]”

A obra acusa, por outro lado, em quanto ao tratamento da paisagem e das inclemências climáticas, dum inusitado panteísmo e duma acumulação de forças naturais que (mesmo personificadas) fão do entorno um lugar muito adverso (“Essa noite hostil...”) que se volta contra o protagonista e serve de elemento enfatizador das suas misérias e desavenências. 4 Estrada larga: antologia dos números especiais, relativos a um lustro, do Suplemento “Cultura e Arte” de “O Comércio do Porto”. Porto: Porto Editora, [196?] (pág. 189)

“[...] O vento fala-lhe : primeiro um som de seda rasgada, sibilante, que vai por extensões quilométricas, escarneando nas ramas, té encontrar barulhos novos: após rumores cavos, de águas fervendo, estalos de troncos, troar da solidão martirizada enchendo a noite e a natureza de blasfémias! Todas aquelas vozes espantam-no, e o pobre de pé, sob as bátegas de chuva, parece perguntar o que pretende dele a tempestade.[...]”

Para esta tarefa botou-se mão das seguintes obras: O país das uvas / Fialho de Almeida ; introdução por Maria da Graça Orge Martins Lisboa : Ulisseia, D.L. 1987. O pais das uvas. Fialho d'Almeida. 11ª ed. / revista e prefaciada por Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa : Livraria Clássica, imp. 1968. Estrada larga : antologia dos números especiais, relativos a um lustro, do Suplemento "Cultura e Arte" de "O Comércio do Porto". Porto : Porto Editora, [196?] A influência da França na obra de Fialho de Almeida. Zokner, Cecília Teixeira de Oliveira . Curitiba : Imprensa da Universidade Federal do Paraná, 1974. Á Esquina. Fialho de Almeida; Livraria Clássica Editora. Lisboa: 1923.

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