Darío Portela Núnez
Particularidades literárias em “O corvo” (O pais das uvas), de Fialho de Almeida. “O Corvo” não é bem um conto, chamá-lo de crônica ou fábula seria tipologizá-lo em qualquer classificação definitiva, destruindo justamente o que ele tem de melhor; a multiplicidade de gênero. O texto traz uma narrativa totalmente poética, mesmo com tantos realismos. Pode-se intitular tal narrativa de marinha, de cromo, ou ainda, de apólogo, pois de tudo isso possui um pouco. As canônicas e tradicionais classificações induzem, muita vez, em erro e, por escassez de meios, são impotentes para corresponder ao conteúdo, à significação e à simbologia das obras que classificam. Com Fialho de Almeida verfica-se, precisamente, a vanidade de tais classificações. Situado adentro de perspectivas históricas, Fialho de Almeida, prosador, deveria considerar-se talvez como realista com laivos de decadentismo como miraremos neste relato. E no entanto, a Fialho convém, por virtude da riqueza multimodal da sua obra e das variadas perspectivas por que pode ser encarada, as classificações de romântica, realista-naturalista, decadentista, impressionista, etc.1 Atopamos tintes de romantismo neste relato em assuntos como a alusão à força da natureza desatada que, à “noite”, tinha provocado o naufrágio do barco carregado de escravos (“A tormenta da noite esfalfara a seu turno os elementos e do galeão perdido nada restava mais do que um cadáver de escravo,...”), a sensação de soidade ante a imensidade e ante a grandeza da natureza da natureza como a clássica evocação de que o ser humano está desprotegido e vulnerável (“Para qualquer lado que se olhava não tinha termo...”) e como imagem que suscita o desajuste existencial. Nesse sentido há um quadro romantista de Friedrich muito adequado para esta situação: O caminhante sobre o mar de nuvens. É totalmente certo que as paisagens desérticas (“grande deserto de água”) e essa sensação de soidade apontam cara o sentido romântico da composição, ao trasladar ao lector cara uma paragem de “deserto e de infinito, sem uma sombra, sem uma vela.” Igualmente românticas são as comparações metafóricas dos do barco destruído e dos rochedos com fortificações medievais que mesmo semelham refletir quadros pictóricos. “[...] Sobre as águas se erguia, à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babujenta; por cima, as nuvens galopavam, embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.[...]”
Por outro lado, também o simbolismo vai jogar um papel preponderante nesta composição narrativa e tão poética ao mesmo tempo. Apesar da dose realista que pode ter este relato nalgumas descrições, temos que falar deste estilo bastante metafórico e sugestivo que dá toda sensação de perverter uma possível focalização mais objectiva. Nesse sentido, a figura do “corvo” funciona como encarnação do mal e todas essas descrições tétricas como constatação duma paisagem impregnada de qualidades maléficas e destrutivas associadas à voragem do ser humano. “[...] Mau grado o aspecto pacífico, aquela imensidade era sinistra; tintas de cólera passavam às vezes, como maus pensamentos, por baixo da epiderme glauca do oceano; via-se então escancarar covas na água, brotar um braço da espádua duma onda; e o eterno marulho abrir um eco, que estrugia metalicamente em cada palheta, e acordava no teclado das ondas o mais desconforme coro de rancor.[...]”
Assim, desenvolven-se toda uma sorte de sequências inquietantes (“...soturno troar que vem do 1 Estrada larga: antologia dos números especiais, relativos a um lustro, do Suplemento “Cultura e Arte” de “O Comércio do Porto”. Porto: Porto Editora, [196?] (pág. 184)
fundo do oceano, como a imprecação de todos os milhões de seres que ele afogou.”), dotadas duma forte carga negativa, bem em forma de qualidades humanas (“agonia”, “cólera”, “sagacidade cruel”, “raiva”, “rancor”, injúria”, “cólera inarrável”, “ódio”, “cobardia”, “vingança”, “impunidade”, “humilhação”, “injuria”,..) e sintagmas de toda índole sintáctica que portam uma clara evocação mórbida e mesmo nauseabunda como expressão da sordidez na que está sumida a existência humana baixo o punto de vista desta estética: “selo diabólico e maldito”, “orgia perpetrada”, “para lhe sorver os olhos”, “remoinho brusco”, “babosa escarpa”, “carne podre”, “que ele não via bem se vivia ou se estava morta”,... Ocorre em definitiva a sugestão do ambiente: cadáver, coisas excrementícias,... Fica claro, como tem indicado Jacinto Prado Coelho, a tendência simbolista que contem esta composição, pois de Baudelaire recebeu um sensualismo pagão, um culta da beleza mórbida, um gosta pela crueldade mística e uma procura instintiva do anormal.2 Durante a narrativa percebe-se a presença da água (re) criando o mar constantemente por associação similar, e por isso falávamos ao principio que uma das características era de composição marinha além do próprio cenário: “sobre as águas se erguia à maneira de torre, um grande ilhéu. . . a ressaca bramia. . . começou a esclarecer de manso o plano líquido. . . e a cabeça tão baixa metida na água . . .pondo na linha d’água. . . do fundo do oceano. . . De roda, as águas. . . cujos olhos corriam o mar . . . do escravo à tona d’água. . . lutar contra o impulso das ondas. . . em que o refluxo das águas. . . ao rés d’água . . . cada vez mais a cabeça sob a água. . . sobre um ombro náufrago... grande deserto d’águas sem fim das grandes águas.”... Esta técnica de repetição simboliza, na realidade, as pinceladas que formam o cenário marítimo, parte a parte, aqui e ali. Por outro lado, tal vez podamos atopar alguma coisa relacionada com o impressionismo. O ficcionista de “O corvo” pinta uma paisagem marítima entre um corvo e o cadáver de um escravo boiando à flor d’água e procede tal como os artistas impressionistas (ao ar livre) fixando os objetos como que dotados de relevo e cor por causa da luz solar que neles incide. O autor cria um narrador que acumula os pormenores plásticos a fim de apreender a impressão fugaz que as coisas, momentaneamente iluminadas, desencadeiam em sua sensibilidade. O espaço, como já foi citado, é o mar, é externo como o lugar de criação dos impressionistas. “[...] No conjunto destes textos predomina a intenção panteísta de conceder alma a todas as coisas e de as alterar através do visionarismo impressionista que tanto caracteriza a constituição literária de Fialho d´Almeida. Este age sobre o real, sobrepondo ao enredo as paisagens natural e humana, pormenorizadamente descritas através de expressivas sinestesias visuais e sonoras.[...]” (Orge Marins, 1987: 34)
Tal vez, e para rematar, podamos atopar um ponto de conexão nesta peça como o expressionismo que logo ver-iamos em Kafka (A metamorfose) mesmamente. Eu acho que esse vinculo vem dado por um lado pela situação de incomunicação que se gera no relato e, por suposto, as elevadas doses de fatalismo. Essa situação angustiosa de desproteção do homem no mundo lembra muito ao homem que se vira cascuda na obra kafkiana é que não é quem de evitar que o eliminem. Resulta todo muito cruel.
2 A influência da França na obra de Fialho de Almeida. Zokner, Cecília Teixeira de Oliveira. Curitiba: Imprensa da Universidade Federal de Paraná, 1974. (pág. 130)
Servimo-nos do seguinte material para a realização deste pequeno trabalho: O país das uvas / Fialho de Almeida ; introdução por Maria da Graça Orge Martins Lisboa : Ulisseia, D.L. 1987. O pais das uvas. Fialho d'Almeida. 11ª ed. / revista e prefaciada por Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa : Livraria Clássica, imp. 1968. Estrada larga : antologia dos números especiais, relativos a um lustro, do Suplemento "Cultura e Arte" de "O Comércio do Porto". Porto : Porto Editora, [196?] A influência da França na obra de Fialho de Almeida. Zokner, Cecília Teixeira de Oliveira . Curitiba : Imprensa da Universidade Federal do Paraná, 1974. http://literacomunicq.blogspot.com/