FACULDADE DE DIREITO DE ITU
A crise do senado articulada à idéia do mito fundador Professora Cida Madureira Aluno: José Alberto Amerise de Souza - 1º C 16/11/2009
Pode parecer um tanto destoante do tema proposto, iniciar este texto com uma definição de memória. É fundamental a máxima atenção do leitor, e que seu exercício de reflexão seja holístico, para que, com a união das idéias aqui apresentadas, este escrito cumpra seu papel. A memória é coletiva. Recordações mais íntimas de um indivíduo só são possíveis dado pelo grupo de referência a que esse indivíduo pertence, pela tradição em que se inscreve e pela linguagem que o faz humano. A memória não é um passivo retorno de um passado intacto, mas um processo de reconstrução deste passado, feito a partir de elementos e interesses do presente. Ela é um processo ativo de evocação do passado, um trabalho posto em marcha voluntariamente e, nesse sentido, diferencia-se da reminiscência. Desenvolvendo-se sobre fundo de esquecimento, a memória pressupõe a seleção de determinados conteúdos e a supressão de outros tantos, o que confere ao seu trabalho uma tensão adicional, e põe em evidência a importância do recalcamento na manutenção e construção histórica de uma cultura. É através da memória coletiva que se analisa historicamente uma sociedade, e tal análise tem o seu objetivo que é, através do passado, explicar o presente e preparar o futuro. Uma sociedade que não tem cultura, não tem memória. E quem não tem memória não tem história. Não uma história viva, construída na articulação das dinâmicas sociais. Tem uma história de fatos e nomes que “fizeram a história pela importância da origem, do ato heróico, do nome ilustre”. O cidadão que se sente assim, não sabe quem é, nem para onde vai, não se percebe como sujeito histórico. A estrutura hierarquizada, a cultura senhoril, o patrimonialismo – os “donos do poder”, o clientelismo, a tutela, o favor e a privatização do que é público são, desde o início da sociedade brasileira, reatualizados pela classe dominante, no sentido de bloquear o desenvolvimento dos espaços públicos, impedindo ao grupo social da classe dominada a expressão de seus interesses e necessidades. O mito construído em torno da origem do país influencia diretamente a relação da sociedade brasileira com a história e as instituições políticas. É comum ouvir dizer que o Brasil é uma “terra abençoada por Deus”, com uma riqueza natural sem igual. Por outro lado, historicamente, os recursos do nosso território pouco beneficiaram a maioria da população, ficando os frutos de sua exploração na mão de poucos. Costuma-se também elogiar o povo brasileiro pela sua simpatia e criatividade, assim como pela riqueza da nossa cultura popular, baseada na combinação de elementos brancos, negros e indígenas.
Infelizmente, não é possível esquecer que o “encontro” destas três raças foi marcado pela exploração e pela violência, por meio do extermínio, da usurpação das terras nativas e da escravidão. É bom lembrar que o Brasil não estava “deitado eternamente em berço esplêndido” à espera de Cabral para ser “descoberto”. Sem dúvida, uma terra ainda não vista nem visitada estava aqui. Mas Brasil é uma invenção histórica e uma construção cultural. O Brasil foi instituído como colônia de Portugal e inventado como “terra abençoada por Deus”, à qual, se dermos crédito a Pero Vaz de Caminha, “Nosso Senhor não nos trouxe sem causa”. A construção e o desenvolvimento dessa idéia constituem o Mito Fundador do Brasil. A função do mito para os gregos, não era de devaneio, nem de produção fantástica, alegoria prazerosa, mas uma forma de interpretar o mundo por meio de uma mediação (no caso, usavam eles da arte). Uma mediação entre o fato e a tentativa de entendê-lo, digeri-lo. Diante da grandiosidade do mundo, das questões humanas e sociais mais significativas os gregos buscavam forma de compreendê-las, não de buscar a sua verdade essencial. Ele não é um articulador das verdades nem estabelece seus pressupostos. Talvez por isso, seja não cotidianamente, um recurso ideológico significativo, adquirindo caráter de valor, estabelecendo conceitos que são incorporados à cultura como legítimos e definitivos. Uma representação ideológica que serve aos interesses dos que mandam e sempre mandaram em nosso país. Uma idéia que permite, por exemplo, a alguém afirmar que os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças. Alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com as chacinas dessas crianças ou com o desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde o seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna.” Uma das repercussões deste mito fundador se deve à sagração do governante e incide sobre a representação política, que assume o caráter de paternalismo e clientelismo, funcionando como “mola propulsora” à vertente populista na política brasileira. Do mesmo modo que o Rei é o representante direto de Deus, também excelentíssimos cidadãos eleitos no cenário republicano figuram como representantes do Estado, e veiculam favores e privilégios aos seus representados. Assim, o mito fundador é uma representação ideológica que serve única e exclusivamente aos interesses dos que mandam, e sempre mandaram em nosso país.
A exemplo desta tese faz-se oportuno tecer um breve comentário sobre a vida pública do atual presidente do Senado e na crise instaurada naquela Casa. O Senhor José Ribamar Sarney está, desde 1962, em cargos públicos adotando as mesmas práticas. Lá no início de sua carreira patrocinou a maior grilagem de terras públicas do Maranhão. Basta ler o livro do Padre Victor Angelim, editado pelos franciscanos naquela época. Depois disso, assumiu de corpo e alma a ditadura civilmilitar. Construiu a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do regime, no Nordeste. Então, de simples oligarca rural e regional, montou um império de comunicação. É proprietário de diversos jornais, rádios e, claro, é sócio da Globo. Seu afilhado, o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) é acionista do SBT. Ao ver cair a ditadura, Sarney mudou de lado para continuar no poder. Virou presidente da Republica, substituindo o então falecido Tancredo Neves. Em São Luís, apropriou-se do Convento das Mercês, patrimônio histórico público, e colocou em nome de sua fundação, a qual preside. E lá pretende ser enterrado. O mausoléu e a lápide já estão prontos para visitação do público. Fez isso tudo com dinheiro público, inclusive da Petrobras. Depois, desgastado com um dos piores governos que esse país já teve, foi candidatar-se senador pelo Amapá, Estado que jamais havia visitado, quanto mais morado. E a Justiça eleitoral aceitou sua candidatura. Lá fez carreira com seus métodos. Conseguiu através de parcerias naqueles tribunais que cassassem o governador João Capiberibe do cargo de senador, para abrir espaço para um outro afilhado seu. Alegação: o senador Capiberibe teria usado R$ 36 para comprar o voto de duas empregadas domésticas, que negaram a acusação nos tribunais. Em abril deste ano, conseguiu tirar do cargo, após mover pedras e montanhas, o governador legitimamente eleito no Maranhão, Jackson Lago. Chegou a ameaçar publicamente pelos jornais o advogado do governador, por ser seu afilhado político. A acusação que conseguiu tirar o cargo de Lago: participou de um comício em Imperatriz (MA), em abril de 2006, fora de época eleitoral, junto com o então governador, que era afilhado do Sarney, mas o havia traído. E, finalmente, sua filha pode retornar ao Palácio dos Leões, sede do governo estadual em São Luís. Voltou a ser presidente do Senado duas vezes. Agora, na última, com apoio de senadores do PSB e PT, mesmo contra a candidatura do senador do PT do Acre, Tião Vianna. Os tais atos secretos da mesa diretora do Senado foram instituídos desde sua primeira gestão, há seis anos. Milhares de funcionários foram contratados. O senado gasta ao redor de R$ 2 bilhões por ano. Gasta mais do que a maioria dos ministérios.
O velho presidente do senado foi acometido também por uma grave falta de memória. Esqueceu alguns seguranças do Senado protegendo sua casa em São Luís. Esqueceu de colocar na declaração de renda uma pequena casa de R$ 4 milhões que possui em Brasília. Esqueceu de avisar os demais correntistas e retirou R$ 2 milhões de suas contas do Banco Santos, 12 horas antes do Banco Central fechá-lo. Há no Maranhão mais de 40 edifícios de órgãos públicos que levam nomes da família e inclusive um colégio estadual com nome dado a sua bisneta, quando a menina tinha apenas 5 anos. Já o Tribunal de Contas do Estado, que deveria fiscalizar isso tudo, se chama Governadora Roseana Sarney. Tudo isso é proibido pela Constituição. Mas nenhum jornal paulista ou carioca denunciou. E se Sarney tivesse apoiado a candidatura de José Serra, certamente a grande mídia não teria se interessado em denunciar suas falcatruas. Os sucessivos escândalos envolvendo o Senado e seus principais dirigentes vêm revelando uma trama de corrupção e desrespeito com a coisa pública típicos de uma sociedade oligárquica e patrimonialista, onde os donos do poder tratam os assuntos públicos como se fossem assuntos privados, domésticos. Pagamentos de horas extras não trabalhadas, nepotismo através de empresas terceirizadas e sonegação fiscal. Um neto do senador José Sarney operando crédito consignado dos funcionários do Senado e o próprio presidente do Senado recebendo R$ 3.800 por mês como auxílio moradia mesmo possuindo residência em Brasília. Pelo menos 663 decisões não publicadas, secretas. Entre elas, nomeações de pelo menos 10 agregados e parentes de José Sarney. Os acontecimentos que observamos ferem todos os princípios fundamentais da administração pública estabelecidos pelo Artigo 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Exemplarmente, o caso dos atos secretos, longe de ser mero detalhe é fato gravíssimo, pois a publicidade dos atos é condição básica para sua eficácia. Observem que as leis não passam a valer na data de sua votação pelo parlamento, nem pela sanção do chefe do executivo, mas somente valem a partir da sua publicação. Isto também é válido para os atos administrativos. Portanto, são mais de seiscentos atos administrativos que precisam ser anulados com a identificação dos responsáveis por ressarcir os cofres públicos dos salários e contratos pagos ilegalmente. O nobre senador Sarney é a cara da classe dominante brasileira. A cara dele é a cara de todos os exploradores do povo brasileiro, nesses 500 anos de existência que, no entanto, são mais “espertos” e hipócritas. Enquanto realmente não tivermos uma consciência do que somos, sem os disfarces convenientes que mantém a realidade como está, não poderemos evoluir enquanto povo, como também ficaremos sempre a mercê de pseudos “salvadores da pátria”. A ciência histórica e o entendimento do que é legal e ético, não podem ser
considerados apenas na concretude do papel onde suas máximas são redigidas, mas como alertas para que os homens não voltem acometer os mesmos erros.