L'OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum Ano XL, número 31 (2.067), sábado 1 de Agosto de 2009
EM PORTUGUÊS Non praevalebunt
Cidade do Vaticano
Preço ; 1,00. Número atrasado ; 2,00
No Angelus em Les Combes, o Papa recorda a missão de salvação confiada aos sacerdotes
Aborto e futuro
Os avós, depositários e testemunhas dos valores fundamentais da vida
A crise do dom
O Papa confirmou a sua intenção de ir na próxima Primavera a Turim, por ocasião do ostensão do Santo Sudário, assegurando-o ao Cardeal Severino Poletto, Arcebispo dessa Sede italiana, com quem almoçou no domingo 26 de Julho em Les Combes, depois do encontro com os fiéis que se reuniram numerosos para a oração do Angelus ao redor do chalé onde o Santo Padre transcorria as suas férias. Mais de cinco mil pessoas participaram no encontro que teve sabor de despedida, dado que no dia 29 Bento XVI se transferiu para a sua residência de Verão em Castel Gandolfo. Prezados irmãos e irmãs Bom domingo a todos vós! Encontramo-nos aqui em Les Combes, na acolhedora casa que os Salesianos põem à disposição do Papa, onde estou a terminar o período de descanso no meio das bonitas montanhas do Vale de Aosta. Estou grato a Deus que me concedeu a alegria destes dias marcados por um verdadeiro repouso – apesar do pequeno acidente que vós bem conheceis, e também visível. Aproveito o ensejo para agradecer com carinho àqueles que se preocuparam em estar ao meu lado com discrição e com grande dedicação. Saúdo o Cardeal Poletto e os Bispos presentes, em particular o Bispo de Aosta, D. Giuseppe Anfossi, a quem agradeço as palavras que me dirigiu. Saúdo cordialmente o Pároco de Les Combes, as Autoridades civis e militares, as Forças da ordem e todos vós, queridos amigos, assim como aqueles que estão unidos a nós mediante a rádio e a televisão. Hoje, neste domingo maravilhoso, onde o Senhor nos mostra toda a beleza da sua criação, a liturgia prevê como página evangélica o início do capítulo 6 de João, que contém primeiro o milagre dos pães – quando Jesus deu de comer a milhares de pessoas com apenas cinco pães e dois peixes; depois, o outro prodígio do Senhor que caminha sobre as águas do lago em tempestade; e enfim o discurso em que Ele se revela como «o pão da vida». Narrando o «sinal» dos pães, o Evangelista sublinha que Cristo, antes de os distribuir, abençoou-os com uma prece de acção de graças (cf. v. 11). O verbo grego é eucharistein e remete directamente para a narração da Última Ceia em que, com efeito, João não menciona a instituição da Eucaristia, mas sim o lava-pés. Aqui, a Eucaristia é como que antecipada no grande sinal do pão da vida. Neste Ano sacerdotal, como deixar de recordar que especialmente nós, sacerdotes, podemos reflectir-nos neste texto joanino, identi-
ficando-nos nos Apóstolos, quando dizem: onde poderemos encontrar o pão para toda esta multidão? E ao lermos sobre aquele jovem anónimo que dispõe de cinco pães de centeio e dois peixes, também nós dizemos espontaneamente: mas o que é isto para tamanha multidão? Com outras palavras: o que sou eu? Como posso, com os meus
limites, ajudar Jesus na sua missão? É o Senhor que dá a resposta: precisamente colocando nas suas mãos «santas e veneráveis» o pouco que eles são, os sacerdotes, nós sacerdotes tornamo-nos instrumentos de salvação para muitos, para todos! Uma segunda indicação de reflexão vem-me da hodierna memória dos Santos Joaquim e Ana, pais de Nossa Senhora e, portanto, avós de Jesus. Esta celebração faz pensar no tema da educação, que ocupa um lugar importante na pastoral da Igreja. Em particular, convida-nos a rezar pelos avós, que na família são os depositários e muitas vezes as testemunhas dos valores fundamentais da vida. A tarefa educativa dos avós é sempre muito importante, e torna-se ainda mais quando, por diversos motivos, os pais não são capazes de assegurar uma presença adequada ao lado dos filhos, na idade do crescimento. Confio à salvaguarda de Santa Ana e de São Joaquim todos os avós do mundo, concedendo-lhes uma bênção especial. A Virgem Maria, que – segundo uma bonita iconografia – aprendeu a ler as Sagradas Escrituras no colo da mãe Ana, os ajude a alimentar sempre a fé e a esperança nas fontes da Palavra de Deus.
Após duas semanas passadas no Vale de Aosta
Bento XVI em Castel Gandolfo «Acabei de voltar da montanha. Não obstante o meu pequeno acidente, foram dias lindos. Mas agora sinto-me feliz por estar em Castel Gandolfo, nesta bonita cidade, e espero passar convosco algumas semanas», disse o Papa na tarde de quarta-feira 29 de Julho ao chegar à residência de Verão à margem do lago de Albano, proveniente do aeroporto de RomaCiampino, onde foi recebido por diversas autoridades religiosas e civis, depois de ter transcorrido 16 dias no Vale de Aosta. Sucessivamente, o Papa foi acolhido na residência pelos Cardeais Bertone, Secretário de Estado; Lajolo, Presidente do Governatorato; e Vallini, Vigário-Geral para a Diocese de Roma; por D. Viganò, Secretário-Geral do Governatorato; D. Semeraro, Bispo de Albano; D. Corbellini, Presidente do Departamento do Trabalho; o Pároco e o Presidente da Câmara Municipal de Castel Gandolfo; os Directores das
LUCETTA SCARAFFIA uas notícias recentes – a promessa de Obama de empenhar-se pela redução do número de abortos nos Estados Unidos e a aprovação pela grande maioria na Câmara dos deputados da Itália de uma moção a ser apresentada à Assembleia Geral das Nações Unidas contra o aborto como instrumento de controle demográfico – parecem indicar que está a terminar uma fase histórica, iniciada nos anos 70, quando se difundiu a opinião de que o aborto devia ser garantido como direito de liberdade das mulheres e, portanto, considerado uma possibilidade positiva no exercício de um direito individual. Como eco desta convicção – confirmada devido à propaganda ideológica radical e feminista – o aborto difundiu-se como meio de controle dos nascimentos nos países do Terceiro Mundo, inclusive por intermédio das agências internacionais, e foi propagado como instrumento para garantir a liberdade das mulheres, até quando era imposto pelo Estado. Hoje, a crise demográfica e as vozes de protestoque se levantaram, sobretudo por parte da Igreja católica – que sempre lutou para que nas conferências mundiais o aborto não fosse considerado oficialmente um método de contracepção e um sinal de libertação das mulheres – estão a suscitar uma reflexão sobre a questão, que também envolve o feminismo. De resto, já é evidente que não se realizou o que se divulgava como um bom motivo para apoiar a legalização do aborto, ou seja, a garantia de que deste modo o recurso à interrupção da gravidez diminuiria até ao seu desaparecimento, inclusive graças à difusão sem impedimentos dos anticoncepcionais. Não só os abortos continuaram a ser pratica-
D
CONTINUA NA PÁGINA 2
NESTE NÚMERO
Vilas pontifícias e do Observatório do Vaticano. O Papa cumprimentouos e depois apareceu à janela do Palácio pontifício para abençoar os fiéis reunidos na praça adjacente.
Página 2: Intervenção da Santa Sé sobre a pobreza e a falta de saúde. Página 3: Homilia do Papa na celebração das Vésperas, na Catedral de Aosta. Página 4: Considerações de G. Vallini a respeito da obra «Human smoke», de Nicholson Baker. Página 5: Interpretações e mal-entendidos da última encíclica, segundo G. Crepaldi. Páginas 6-8: A «Caritas in veritate» no discurso do Cardeal Bertone, no Senado da República Italiana. Página 9: Relatório do Cardeal Stafford sobre a figura do Cura d'Ars. Página 10: Conclusão dos trabalhos da XIII Assembleia Geral da KEK. Página 11: As Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.
A crise do dom Lucetta Scaraffia
Duas notícias recentes a promessa de Obama de empenhar-se pela redução do número de abortos nos Estados Unidos e a aprovação pela grande maioria na Câmara dos deputados da Itália de uma moção a ser apresentada à Assembleia Geral das Nações Unidas contra o aborto como instrumento de controlo demográfico parecem indicar que está a terminar uma fase histórica, iniciada nos anos 70, quando se difundiu a opinião de que o aborto devia ser garantido como direito de liberdade das mulheres e, portanto, considerado uma possibilidade positiva no exercício de um direito individual. Como eco desta convicção confirmada devido à propaganda ideológica radical e feminista o aborto difundiu-se como meio de controle dos nascimentos nos países do Terceiro Mundo, inclusive por intermédio das agências internacionais, e foi propagado como instrumento para garantir a liberdade das mulheres, até quando era imposto pelo Estado. Hoje, a crise demográfica e as vozes de protesto que se levantaram, sobretudo por parte da Igreja católica que sempre lutou para que nas conferências mundiais o aborto não fosse considerado oficialmente um método de contracepção e um sinal de libertação das mulheres estão a suscitar uma reflexão sobre a questão, que também envolve o feminismo.
De resto, já é evidente que não se realizou o que se divulgava como um bom motivo para apoiar a legalização do aborto, ou seja, a garantia de que deste modo o recurso à interrupção da gravidez diminuiria até ao seu desaparecimento, inclusive graças à difusão sem impedimentos dos anticoncepcionais. Não só os abortos continuaram a ser praticados, também nos países onde a informação sobre os anticoncepcionais é vasta, mas o fenómeno envolve faixas etárias cada vez mais baixas.
Por que as nossas sociedades não conseguem debelar este mal? Este seria o momento adequado para formular tal pergunta e procurar respostas convincentes e não ideológicas. A este propósito, podemos encontrar uma ajuda para entender tudo isto no livro do psicanalista Claudio Risé (La crisi del dono. La nascita e il no alla vita, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2009, 160 páginas), segundo o qual "o aborto não nasce só da malvadez ou distracção individual, ou do oportunismo de grupos políticos inconscientes ou irresponsáveis. O aborto afirma o autor afunda as suas raízes num terreno psicológico, cognitivo e afectivo muito maior e é alimentado pela maior tentação regressiva, desde sempre presente na psique humana: a de matar o novo, o desenvolvimento, a mudança, quando começa a tomar forma. Antes que nasça e te obrigue a mudar com ele".
Com um longo percurso, que inicia nos mitos da época greco-romana para chegar à tradição judaico-cristã, o autor redescobre o significado do nascimento nas tradições religiosas, isto é, renovação e renascimento, ao qual frequentemente se opõe o medo: "Matar o nascente, parar o tempo, naturalmente é também um modo de pensar inconscientemente em vencer a nossa morte, detendo o tempo no qual ela está inserida".
Assim matam os recém-nascidos Cronos-Saturno (que paga esta pulsão negativa com a melancolia e o pessimismo) e Herodes, ambos com a intenção de manter o poder que julgam ameaçado, e também Medeia, que se sente omnipotente: porque sempre "do nascimento de um novo ser humano se produz no mundo uma cisão entre adesão e oposição à transformação". Com efeito, Jesus, que acredita e deseja a transformação, recebe com alegria e afecto as crianças, anunciadoras do mundo novo.
O modelo cultural da sociedade ocidental moderna, onde o aborto se tornou um direito, está fundado no controle das situações e na posse de pessoas e coisas, e olha com suspeita para a confiança e o acolhimento, isto é, o dom. Com frequência, renuncia-se à criança que nasce para possuir, "devorar, incorporar outras coisas: dinheiro, comodidade, carreira, status, diversões". Além disso, não é a primeira vez escreve Risé que "o homem constrói ídolos materiais, para se subtrair ao dom de si mesmo, que tem a sua imagem viva no filho, na criança que nasce"; mas depois, sempre impelido pela infelicidade e pela solidão, reabre o coração ao acolhimento.
Esperemos que as notícias citadas no início tenham resultado positivo e verdadeiramente sejam os primeiros sinais de uma inversão de tendência: rumo a uma abertura ao dom, à criança que nasce. E, por conseguinte, à esperança no futuro.
(©L'Osservatore Romano - 1 de Agosto de 2009)