A BELA E A COBRA Era uma vez um rei que tinha três filhas, uma das quais era muito formosa e ao mesmo tempo dotada de boas qualidades. Chamava-se Bela. O rei tinha sido muito rico, mas, por causa de um naufrágio, ficou completamente pobre. Um dia foi fazer uma viagem; antes porém perguntou às filhas o que queriam que ele lhes trouxesse. – Eu, disse a mais velha, quero um vestido e um chapéu de seda. – Eu, disse a do meio, quero um guarda-sol de cetim. – E tu que queres? – perguntou ele à mais nova. – Uma rosa tão linda como eu, respondeu ela. – Pois sim, disse ele. E partiu. Passado algum tempo trouxe as prendas de suas filhas, disse à mais nova: – Pega lá esta linda rosa. Bem cara me ficou ela! Bela ficou muito preocupada e perguntou ao pai por que é que lhe tinha dito aquilo. Ele, a princípio, não lho queria dizer, mas ela tantas instâncias fez, que ele lhe respondeu que no jardim onde tinha colhido aquela rosa encontrou uma cobra, que lhe perguntou para quem ela era; que ele lhe respondeu que era para a sua filha mais nova e ela lhe disse que lha havia de levar, se não que era morto. Depois disse ela: – Meu pai, não tenha pena, que eu vou. Assim foi. logo que ela entrou naquele palácio, ficou admirada de ver tudo tão asseado, mas ia com muito medo. O pai esteve lá um pouco de tempo e depois foi-se embora. Bela, quando ficou só, foi a uma sala e viu a cobra. Ia-se a deitar quando começaram a ajudarem-na a despir. Estava ela na cama quando sentiu uma coisa fria; deu um grito e disse-lhe uma voz: – Não tenhas medo.
Em seguida foi ver o que era e apareceu-lhe uma cobra. Ela, a princípio, assustou-se, mas depois começou a afagá-la. Ao outro dia de manhã apareceu-lhe a mesa posta com o almoço. Ao jantar viu pôr a mesa, mas não viu ninguém; a noite foi-se deitar e encontrou a mesma cobra. Assim viveu durante muito tempo, até que um dia foi visitar o pai; mas quando ia a sair ouviu uma voz que lhe disse: – Não te demores acima de três dias, senão morrerás. Ia a continuar o seu caminho e já se esquecia do que a voz lhe tinha dito. Chegou a casa do pai. Iam a passar três dias quando se lembrou que tinha de tornar; despediu-se de toda a sua família e partiu a galope; chegou lá à noite, foi-se deitar, como tinha de costume, mas já não sentiu o tal bichinho. Cheia de tristeza, levantou-se pela manhã muito cedo, foi procurá-lo no jardim e qual não foi a sua admiração vendo-o no fundo dum poço! Ela começou a afagá-lo chorando; mas, quando chorava, caiu-lhe uma lágrima no peito da cobra; assim que a lágrima lhe caiu a cobra transformou-se num príncipe, que ao mesmo tempo lhe disse: – Só tu, minha donzela, me podias salvar! Estou aqui há uns poucos de anos e, se tu não chorasses sobre o meu peito, ainda aqui estaria cem anos mais. O príncipe gostou tanto dela que casou com ela e lá viveram durante muitos anos. José Leite de Vasconcelos Contos Populares e Lendas
HISTÓRIA DO COMPADRE RICO E DO COMPADRE POBRE Moravam numa aldeia dois compadres. Um era pobre e o outro rico, mas muito miserável. Naquela terra era uso todos quantos matavam porco dar um lombo ao abade. O compadre rico, que queria matar porco sem ter de dar o lombo, lamentou-se ao pobre, dizendo mal de tal uso. Este deu-lhe de conselho que matasse o porco e o dependurasse no quintal, recolhendo-o de madrugada, para depois dizer que lho tinham roubado. Ficou muito contente com aquela ideia e seguiu à risca o que o compadre pobre lhe tinha dito. Depois deitou-se com tenção de ir de madrugada ao quintal buscar o porco. Mas o compadre pobre, que era espertalhão, foi lá de noite e roubou-lho. No dia seguinte, quando o rico deu pela falta do porco, correu a casa do compadre pobre e muito aflito contou-lhe o acontecido. Este, fazendo-se desentendido, dizia-lhe: «Assim, compadre! Bravo! Muito bem, muito bem! Assim é que há-de dizer para se esquivar de dar o lombo ao abade!» O rico cada vez teimava mais ser certo terem-lhe roubado o porco; e o pobre cada vez se ria mais, até que aquele saiu desesperado, porque o não entendiam. O que roubou o porco ficou muito contente e disse à mulher: «Olha, mulher, desta maneira também havemos de arranjar vinho. Tu hás-de ir a correr e a chorar para casa do compadre, fingindo que eu te quero bater; levas um odre debaixo do fato, e quando sentires a minha voz, foges para a adega do compadre e enquanto eu estou falando com ele, enches o odre de vinho e foges pela outra porta para casa.» A mulher, fingindo-se muito aflita, correu para casa do compadre, pedindo que lhe acudisse, porque o marido a queria matar. Nisto ouviu a voz do marido e correu para a adega do compadre, e enquanto este diligenciava apaziguar-lhe a ira, enchia ela o odre. Tinha-lhe esquecido, porém, um cordão para o atar, mas tendo uma ideia gritou para o marido: «Ah! Goela de odre sem nagalho!» O marido, que entendeu, respondeu-lhe: «Ah, grande atrevida!... Que se lá vou abaixo, com a fita do
cabelo te hei-de afogar!» Ela, apenas isto ouviu, desatou logo o cabelo, atou com a fita a boca do odre e fugiu com ela para casa. Desta maneira tiveram porco e vinho sem lhes custar nada, e enganaram o avarento do compadre. (Beira Baixa) Adolfo Coelho Contos Populares Portugueses
O SAL E A ÁGUA Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas por sua vez, qual era a mais sua amiga. A mais velha respondeu: – Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol. Respondeu a do meio: – Gosto mais de meu pai do que de mim mesma. A mais moça respondeu: – Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal. O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio de um rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza. Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha: – É porque a comida não tem sal. O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de
princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito, que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça de seu pai. Teófilo Braga Contos Tradicionais do Povo
SEMPRE NÃO Um cavaleiro, casado com uma dama nobre e formosa, teve de ir fazer uma longa jornada: receando acontecesse algum caso desagradável enquanto estivesse ausente, fez com que a mulher lhe prometesse que enquanto ele estivesse fora de casa diria a tudo: – Não. Assim pensava o cavaleiro que resguardaria o seu castelo do atrevimento dos pajens ou de qualquer aventureiro que por ali passasse. O cavaleiro já havia muito que se demorava na corte, e a mulher aborrecida na solidão do castelo não tinha outra distracção senão passar as tardes a olhar para longe, da torre do miradouro. Um dia passou um cavaleiro, todo galante, e cumprimentou a dama: ela fez-lhe a sua mesura. O cavaleiro viu-a tão formosa, que sentiu logo ali uma grande paixão, e disse: – Senhora de toda a formosura! Consentis que descanse esta noite no vosso solar? Ela respondeu: – Não! O cavaleiro ficou um pouco admirado da secura daquele não, e continuou: – Pois quereis que seja comido dos lobos ao atravessar a serra? Ela respondeu: – Não. Mais pasmado ficou o cavaleiro com aquela mudança, e insistiu: – E quereis que vá cair nas mãos dos salteadores ao passar pela floresta? Ela respondeu: – Não. Começou o cavaleiro a compreender que aquele Não seria talvez sermão encomendado, e virou as suas perguntas: – Então fechais-me o vosso castelo? Ela respondeu:
– Não. – Recusais que pernoite aqui? – Não. Diante destas respostas o cavaleiro entrou no castelo e foi conversar com a dama e a tudo o que lhe dizia ela foi sempre respondendo – Não. Quando no fim do serão se despediam para se recolherem a suas câmaras, disse o cavaleiro: – Consentis que eu fique longe de vós? Ela respondeu: – Não. – E que me retire do vosso quarto? – Não. O cavaleiro partiu, e chegou à corte, onde estavam muitos fidalgos conversando ao braseiro, e contando as suas aventuras. Coube a vez ao que tinha chegado, e contou a história do Não; mas quando ia já a contar a modo como se metera na cama da castelã, o marido já sem ter mão em si, perguntou agoniado: – Mas onde foi isso cavaleiro? O outro percebeu a aflição do marido e continuou sereno: – Ora quando ia eu a entrar para o quarto da dama, tropeço no tapete, sinto um grande solavanco, e acordo! Fiquei desesperado em interromper-se um sonho tão lindo. O marido respirou aliviado, mas de todas as histórias foi aquela a mais estimada. Teófilo Braga
Contos Tradicionais do Povo Português
COMADRE MORTE Havia um homem que tinha tantos filhos, tantos que não havia ninguém na freguesia que não fosse compadre dele e vai a mulher teve mais um filho. Que havia do homem fazer? Foi por esses caminhos fora a ver se encontrava alguém que convidasse para compadre. Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queria ser compadre dele. – Quero; mas tu sabes quem eu sou? – Eu sei lá; o que eu quero é alguém para padrinho do meu filho. – Pois, olha, eu cá sou Deus. – Já me não serves; porque tu dás a riqueza a uns e a pobreza a outros. Foi mais adiante; e encontrou uma pobre e perguntou-lhe se queria ser comadre dele. – Quero; mas sabes tu quem eu sou? – Não sei. – Pois, olha, eu cá sou a Morte. – És tu que me serves, porque tratas a todos por igual. Fez-se o baptizado e depois disse a Morte ao homem: – Já que tu me escolheste para comadre, quero-te fazer rico. Tu fazes de médico e vais por essas terras curar doentes; tu entras e se vires que eu estou à cabeceira é sinal que o doente não escapa e escusas de lhe dar remédio; mas se estiver aos pés é porque escapa; mas livra-te de querer curar aqueles a que eu estiver à cabeceira, porque te dou cabo da pele. Assim foi. O homem ia às casas e se via a comadre à cabeceira dos doentes abanava as orelhas; mas se ela estava aos pés receitava o que lhe parecia.
Vejam lá se ele não havia de ganhar fama e patacaria, que era uma coisa por maior! Mas vai uma vez foi a casa dum doente muito rico e a Morte estava à cabeceira; abanou as orelhas; disseram-lhe que lhe davam tantos contos de réis se o livrasse da Morte e ele disse: – Deixa estar que eu te arranjo, e pega no doente e muda-o com a cabeça para onde estavam os pés e ele escapa. Quando ia para casa sai-lhe a comadre ao caminho: -Venho buscar-te por aquela traição que me fizeste. – Pois, então, deixa-me rezar um padre-nosso antes de morrer. – Pois reza. Mas ele rezar; qual rezou! Não rezou nada e a Morte para não faltar à palavra foi-se sem ele. Um dia o homem encontra a comadre que estava por morta num caminho; e ele lembrou-se do bem que ela lhe tinha feito e disse: – Minha rica comadrinha, que estás aqui morta; deixa-me rezar-te um padrenosso por tua alma. Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse: – Pois já que rezaste o padre-nosso, vem comigo. O homem era esperto; mas a Morte ainda era mais; pois não era? (Beira Baixa) Adolfo Coelho Contos Populares Portugueses