História e "Estória" da cidade ALBERTO VIEIRA
A cidade foi na Idade Média um espaço de libertação da burguesia das peIas das oligarquias rurais. Na época moderna afirma-se como um espaço de subjugação, por casualidade, do meio rural. Aqui, a cidade domina o espaço, torna-se no centro nevrálgico para onde convergem todos os interesses gerando à sua volta uma forte teia de dependências. A cidade não é um espaço de habitação, mas acima de tudo um centro de negócios, político e religioso. O titulo de cidade confere à vila um especial estatuto. No século dezasseis as vilas davam lugar às cidades não porque obedeciam a determinados requesitos - como na actualidade - mas sim, porque os monarcas assim o entendiam. Era um estatuto de diferença em relação às demais vilas que pretendia premiar alguns serviços, ou, então, uma aposta da Coroa para a criação de um novo pólo de desenvolvimento. Sendo assim, as cidades fazem-se para sedes dos bispados, do poder político, centros portuários e negócio. É nesta perspectiva que deverá entender-se a criação em 1508 da Cidade do Funchal. A vila conquistou este novo estatuto porque, no entender do monarca, na moradia de "muytos fidalgos cavalleyros e pessoas honrradas", espaço de "grandes fazedas" e "gramde trauto", e, também, "aveemdo respeyto ao muyto serviço que reçebemos dos moradores". O rei refere que esta decisão não teve por origem qualquer reivindicação dos funchalenses, pois concede tal mercê "sem elles nem outrem por elles nollo pedir nem requerer nos de noso moto propeo poder Reall e absoluto...". Estas palavras do monarca D. Manuel, na carta de criação da cidade do Funchal, atestam bem da intenção que estava subjacente, aqui definida um prémio pelo progresso social e económico, prova de reconhecimento dos benefícios concedidos ao erário régio e uma aposta no futuro promissor. A cidade do Funchal, como centro de negócios, político e religioso surge como corolário desta iniciativa. Daqui resulta que a situação de cidade a uma determinada vila era a abertura a um futuro promissor, o mecanismo mestre de afirmação dos grandes centros, dominando uma ampla periferia, criando-se entre eles relações de interdependência. Na Madeira a criação da cidade do Funchal foi um travão ao progresso e afirmação doutras vilas, como foi o caso de Santa Cruz ou Machico. Na verdade, esta situação veio a acabar em definitivo com a pretensão de na sede da capitania de Machico criar-se e manter-se um pólo de desenvolvimento idêntico ao Funchal. Em certa medida, a actual macrocefalia, que tanto aflige os munícipes e os autarcas, resulta dessa situação de a coroa apostar apenas na criação de um só pólo de desenvolvimento na ilha. Uma só cidade foi a solução para fazer da ilha um importante centro, mas também, o principio de uma situação que iria ser geradora de inúmeros problemas no futuro. Mas, como os homens quase sempre definenm as políticas e soluções a pensar no presente e raras vezes, a antever o futuro, eis o resultado disso que tanto nos preocupa, em termos de presente e futuro.
Daqui resulta que a compreensão dos actuais problemas da nossa cidade passa também pelo conhecimento da sua História. E, neste dominio nota-se uma preocupante lacuna. Os trabalhos de António Aragão desde 1979 revelaram-nos alguns aspectos desse percurso histórico. Foi algo de pioneiro no estudo da História das cidades que, todavia, tal como o seu título indica ficou-se pelos "pequenos passos da sua memória" que é como quem diz, pelos aspectos artísticos e urbanísticos que marcaram os momentos dourados da cidade. Desde então pouco mais se avançou. Surgiram estudos esparsos sobre alguns aspectos, com maior incidência para os artísticos, talvez por razões da sua valorização de acordo com ideias e políticas inovadoras materializadas no actual conceito de património artístico. Perante isto poderão perguntar-se se esta cidade foi apenas um centro de arte, concebido para a nossa actual veneração. Na verdade, não foi bem isso que sucedeu, pois para existirem estes monumentos foi necessária riqueza e esta não é espontânea, sendo fruto do engenho e arte do homem. É, por isso, necessário dar vida a esse homem funchalense que ergueu palácios e igrejas, traçou novas ruas e animou as praças e logradouros comuns. São, homens de negócio, trabalhadores, escravos, que convivem no dia a dia com o numeroso clero, políticos e senhores. É esta vivência e quotidiano que procuramos arrancar, em estudos esparsos a partir das Vereações funchalenses dos séculos XV a XVII. Note-se que este valioso núcleo documental, um dos mais completos do país e o mais antigo do espaço atlântico. E a memória colectiva desse palpitar quotidiano da cidade. Na actualidade a História das Cidades é um tema de moda, multiplicando-se estudos sobre Lisboa, Santarém e Porto. É desta última que surgiu recentemente uma obra pioneira, coordenada pelo Prof. Oliveira Ramos. Tendo em conta esta realidade seria de todo o interesse avançar-se também com um estudo sério - e não qualquer aventura historiográfica - sobre a Cidade do Funchal. Esta é uma necessidade tão premente para a cidade como para toda a ilha-, pois, tendo em conta a sua macrocefalia poderá afirmar-se, sem margem para erro, que a História da Madeira se confunde com a do Funchal. Sendo assim, compreender e conhecer a História da cidade é meio caminho andado para o passo decisivo da total compreensão da História da ilha.