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Hobby Estranho Abs Moraes I. Os cabelos ajustados com perfeição em um coque na parte anterior da cabeça da mulher no carro ao lado despertaram mais uma vez minhas imaginação e curiosidade. O monturo preto de brilho acetinado denotava correção a toda prova, indicava um comportamento quase compulsivoobsessivo com a aparência. Sim, a aparência. Num mundo regido pela extrema importância dada à superfície, muitas patologias perigosas passam desapercebidas. Seria o caso dela? Ao entrar no prédio de escritórios, cruzei com o boy da agência de turismo. Brincos e piercings adornando a cabeça que culminava num orgulhoso moicano ostentado à custa de paciência diante do espelho e uma quantidade perigosa de gel glicerinado. Na idade dele, o importante é pertencer a um grupo. Dentro de dez anos ele olhará constrangido para fotografias que documentarem suas tentativas de tribalizar-se, mas no momento em que nossas sombras se sobrepuseram no chão encerado do saguão do prédio, pude ler com clareza em seu sorriso metálico a opinião que tinha a meu respeito. Muito desabonadora, claro. Mas sarcasmo não é província exclusiva de adolescentes e “sorriso” é meu jeito eufemístico de demonstrar o meu, substantivando assim o esgar dúbio do rapaz. Mais uma vez a aparência é prevalente, mesmo que a patologia ainda não se tenha manifestado. Já acomodado em minha mesa e estudando gráficos e planilhas desenhadas na fosforência verde da tela do computador, não consegui deixar de olhar insistentemente a cabeça de um colega na mesa vizinha. Como um frenologista amador, senti a tentação de pedir-lhe permissão para apalpar seu crânio seminu, resultado de um corte de cabelo popular hoje em dia que, de muitas maneiras, é similar à tosa inflingida a animais domésticos para prevenção ou tratamento de doenças de pele. Seria o toque um instrumento eficaz na detecção de uma doença mental? Meus dedos formigariam em contato com cabelo tão curto quanto uma barba de três dias? Cabelos ou cortes de cabelo não são facilmente associados aos seus donos e suas idiossincrasias ou, pelo menos, àquelas que vão além da superfície.
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II. Hobbies nascem da necessidade de distração das agruras da vida diária e podem tornar-se tão massacrantes quanto elas, tão rotineiros e obsessivos quanto o coque perfeito da mulher no carro ao lado, à espera do sinal verde para o prosseguimento de seu percurso. O meu consistia da observação atenta dos outros, de seus tiques, hábitos e aparências e da comparação posterior dos dados levantados com arquétipos literários. Seu nascimento deu-se em minha fase cervejas-sexo-casual-escatologia-egargalhadas-altas que coincidiu com a descoberta da literatura polêmica e sexista de Charles Bukowski. A identificação inevitável ocorreu num quarto de motel barato, pós-coito, em que lia o inconsequente CARTAS NA RUA que relata, quase autobiograficamente, a relação do autor com uma ninfomaníaca. A descrição de minha parceira do momento (que se lavava no banheiro impessoal, usando miniaturas de sabonete e sachês de shampoo) no livro era perfeita da cabeça aos pés, externa e internamente, e não tinha sido escrita por mim. Daí por diante, não pude deixar de reconhecer o amigo louco, bêbado, infame e inteligente que correspondia ao Neal Cassady descrito por Kerouac em ON THE ROAD ou minha própria similaridade com os detetives de clássicos como Chandler, Hammet ou MacDonald. O salto perigoso entre literatura e realidade fora dado mas eu estava longe de entender o quanto uma pode afetar a outra.
III. Fui rejeitado, na adolescência, por todos os grupos aos quais quis pertencer. Minha falta de aptidão para os esportes foi um dos fatores determinantes para que isso acontecesse. A religiosidade de minha família, outro. Quando entendi que os adultos com que tinha contato não se interessavam por mim e minhas fantasias juvenis, resignei-me a atravessar esta fase da vida com o mínimo possível de contato humano (é claro que, com a chegada da puberdade, desejei todo o contato humano possível com o sexo oposto). Isso significou ter sempre à mão algo para ler nos intermináveis vinte minutos de recreio e não houve repelente mais eficaz contra os outros pré-pubescentes de plantão. Em casa, porém, o mesmo expediente não funcionava tão infalivelmente e, dentro de minha cosmologia maniqueísta em que tudo se devia à vontade combustível de Deus, agradeci aos céus quando o primeiro gato de rua fixou residência. Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 4
Seria mais preciso se dissesse gata e acrescentasse um adendo: recémparida, sua cria alojada numa das cestas de roupas da área de serviço coberta. Pareceu estranha a indiferença de minha mãe aos animais e foi bizarro descobrir que ela os alimentava e, depois de uns poucos dias, que transferiria a tarefa a mim. Sem impecilhos, sem é-pecado-e-você-vaiqueimar-no-inferno-por-isso. Eu cumpria satisfeito a nova obrigação. O animal adulto já havia se recuperado o bastante para desaparecer por horas a fio e o filhote, já quase desmamado, era gracioso com seus modos felinos e instintivos ainda não domesticados. Assim, ao descobrir que as pálpebras do bichinho amanheciam grudadas por uma secreção amarelada, dispusme, entre mordidas e arranhões, a limpá-los com água corrente e paciência até que pudessem ser abertos sem dor. Nos apegamos um ao outro e com o crescimento a panterinha passou a ser bem mais importante que qualquer outro animal que tive em qualquer outro momento de minha vida. Até, é claro, que o dito momento passou e como todos os gatos adultos suas prioridades mudaram de conforto e brincadeiras para conforto e procriação. Assim como as minhas, claro. O interesse crescente pelo que se escondia sob as saias de uniforme e shorts de ginástica das coleguinhas de escola foi só o primeiro sinal de mudança. O contato com o gato, claro, nunca saiu de minha memória. Na verdade, recentemente manifestou-se com muita força devido a uma associação livre de idéias decorrente de meu hobby.
IV. Há pouco mais de um ano comprei uma edição em inglês de contos e poemas de Edgar Allan Poe, meu companheiro mórbido, entre outros mais alegres, da hora do recreio. Relendo os contos aleatoriamente, fixeime na narrativa estranha e familiar de “The black cat”. Nela, conduzido por um narrador-personagem que fala de seu amor pelos animais e subsequente mudança comportamental atribuída ao consumo do álcool, descobri que meu hobby de equalizar pessoas e personagens era um tanto limitado. Quantos foram os indivíduos que passaram por grandes mudanças, extremas até, de comportamento que conheci em anos recentes? Um punhado? Dezenas? Mais, certamente muitos mais. Como, então, encontrar um que correspondesse ao narrador do conto de Poe? Eu não tinha os meios para isso e a frustração cresceu e tornou-se motivo de insônia e sonhos acordados. Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 5
A revelação veio com a percepção do corte padronizado de cabelo de meu colega de trabalho. Havia, então, um elemento comum, um elo de ligação entre todas as pessoas que deixaram convicções arraigadas de lado para adotar a imprudência suicida como novo modo de vida.
V. No mundo literário, no cerne da mimesis, tudo é perfeito, todas as engrenagens giram sem espaço para a aleatoriedade, o mecanismo do relógio universal cartesiano se realiza em todo seu potencial. No mundo de Poe, em particular, havia a necessidade de que o culpado fosse punido, mesmo que seu crime tivesse sido acidental. A narrativa funcionava com uma lógica interna própria, inalienável. O cadáver oculto no final de “The black cat” tornaria o crime do narrador perfeito, sem pistas, exceto que... isso não seria permitido. Se fosse, equivaleria no mundo real a ignorar a lei da gravidade sem o uso de nenhum aparato mecânico, pela simples força de vontade. O culpado comete o crime porque quer ser apanhado e, no fim, ao perceber que isso pode não acontecer, reage de modo a entregar as provas incriminadoras às autoridades. É assim em “The black cat” e em outras narrativas do mesmo autor. No conto citado, no entanto, o gato emparedado com a esposa assassinada funciona como alarme para a polícia. O gato era o padrão, descobri logo a seguir.
VI. Durante as intermináveis horas de análise e consultoria contábil, costumo navegar pela rede inconsequentemente, um recurso funcional para manter-me em dia com o mundo além dos números, borderôs, faturas e planilhas. A informação que faltava para completar o quebra-cabeças angustiante em que meu hobby se transformara chegou a mim durante a leitura de notícias num site de divulgação científica. “O manipulador”, dizia o link em que cliquei quase porato reflexo. Assim aprendi rapidamente a respeito do Toxoplasma Gondii, o manipulador citado no cabeçalho do texto. Segundo pesquisadores da Universidade Carlos, em Praga, o toxoplasma é um parasita que, depois de infectar o hospedeiro, esconde-se do sistema imunológico no cérebro. Não era nenhuma novidade, haja visto que se trata de um dos parasitas humanos mais comuns no mundo, já tendo infectado entre 30 e 60% da população global. A opinião médica sempre insistiu que o toxoplasma é Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 6
quase sempre inofensivo, com potencial para afetar apenas mulheres grávidas e pessoas com o sistema imunológico enfraquecido. Ou era isso o que se pensava... Jaroslav Flegr e seus colaboradores descobriram que roedores, os “hospedeiros intermediários” do parasita, podem ser manipulados por ele de modo a comportarem-se mais imprudentemente, tornando-se mais ativos e menos temerosos de coisas novas e até sentindo atração por urina de gatos, o que os torna mais vulneráveis a ataques felinos, exatamente o que o “manipulador” quer. Afinal, o toxoplasma precisa infectar o gato, o “hospedeiro definitivo”, para completar seu ciclo vital e espalhar seus genes. Gatos. Mudança de comportamento. Padrão. Prossegui a leitura. A pista encontrada não validava minha teoria, não completava o quebra-cabeças, não me fazia sentir que o salto entre literatura e realidade de que consistia meu hobby fora dado. Faltava algo ou assim pensei até descobrir que a pesquisa se estendeu de ratos para homens. Apesar do pouco incentivo evolutivo que o toxoplasma teria na manipulação de cérebros humanos, os pesquisadores pensaram em como há semelhanças entre estes e os dos roedores e deram o passo mais lógico, passando a conduzir uma série de testes com voluntários, alguns com a infecção latente e chegando a um resultado assustador: os homens infectados reproduziam um aspecto da manipulação em roedores. Eles tendiam a ser mais independentes e ousados. A pesquisa se encerrava com a inevitável coleção de números. Flegr e equipe testaram amostras de sangue de 146 pessoas envolvidas em acidentes de automóvel, parcial ou totalmente responsáveis por eles, e de outras 446 pessoas num grupo de controle. Havia mais portadores do toxoplasma no grupo de acidentados. A ligação óbvia com a imprudência e tempo de reação retardado dos roedores foi como um estalo em minha cabeça. Todos os dados se alinhavam, todas as peças, finalmente, encontravam seu lugar na imagem que formavam. O narrador de Poe teria sido infectado pelo gato preto e, por isso, inconscientemente talvez, buscou vingar-se do animal? A pergunta foi feita, o salto, dado.
VII. “A por centagem alta me preocupa”, eu disse enquanto trabalhava em Edna. Por algum motivo ela não respondeu. Talvez tivesse a ver com a broca de furadeira elétrica partida e no meio do percurso em direção à sua massa encefálica, não sei dizer. Os espasmos musculares iam e vinham, mas eu não sabia se devia atribuí-los a algum desequilíbrio químico do cérebro causado pelo composto de controle mental do parasita, à broca, ou às marteladas que desferia contra sua cabeça na Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 7
tentativa de descobrir o manipulador escondido na matéria cinzenta. Edna, assim como suas auxiliares Ana Cristina, Érica, Michele e Juliana, era uma das pessoas mais dadas a mudanças de comportamento que conheci. Talvez isso se devesse ao cargo que ocupava e sua inépcia em coordenar os trabalhos, usando as outras como corroboradoras e disseminadoras de mentiras que culminavam com o prejuízo moral dos funcionários comprometidos com a empresa... era o que todos diziam. Ao investigá-la, logo depois de ter trabalhado em suas ajudantes, descobri que, como as outras, também tinha um gato. Tinha que ser a infecção. A tarefa a que decidi me dedicar depois da descoberta era mais interessante ainda que meu hobby, pois me deu um novo propósito e trabalho para a vida inteira. Eu livraria meus iguais dos sofrimentos trazidos pela influência do parasita. A possibilidade de ser apanhado foi uma de minhas preocupações quando resolvi levar a cabo minha missão. Mas eu tinha o álibi perfeito. Também possuíra um felino.
FIM
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Purificação Gian Danton Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador. Este mundo está podre. Bichas andando pelas ruas. Ecologistas clamando contra o direito sagrado de explorar a natureza. Tudo é podridão e decadência. Minhas mãos tremem quando o metal penetra na pele. Ela grita e a coisa... a coisa ruim em mim fica rija. Jovens se beijando impudicamente na frente de todos. Eu sou clemente e bondoso. Eu fecho seus olhos para que ela não veja o lixo... a podridão.. a decadência... ela grita como se tivesse um orgasmo... então eu desenho um retrato do mundo em sua pele. Sérgio regurgitou pedaços de cebola, pão e carne de hambúrguer. - Ah, droga! Eu não deveria ter comido aquele sanduíche... Carlos olhou à volta, incomodado com os curiosos. Chamou um policial e ordenou: - Diga para as pessoas se afastarem e isole a área. Os dois policiais estavam em um terreno baldio. No meio do mato, caída e despida, havia uma mulher morta. Sérgio pegou um lenço e limpou a boca. - E então, o que acha? Carlos coçou o cavanhaque. - Ele trabalhou nela durante toda a noite. Ela estava viva o tempo todo. Ele retirou as vísceras, mas teve o cuidado de não tocar em nenhum órgão vital. Ele a queria viva. Creio que ele não usou uma mordaça. - Às vezes me pergunto como você consegue descobrir essas coisas, como consegue entrar na mente desses doentes... Carlos sorriu. - Fui treinado para isso. - Por que ele costurou os olhos dela, e não a boca? Não seria mais racional fazer com que ela se calasse? - Não. O homem que fez isso tem um visão própria do mundo. Ele queria que o corpo dela fosse um reflexo de como ele vê a realidade. Mas não Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 10
queria que ela visse, por piedade. No entanto, ele sente prazer com o que faz e queria ouvir os gritos dela. Muitas vezes, a reação de alguém sentindo dor é parecida com a de uma pessoa tendo um orgasmo. Prazer e dor estão juntos desde o início da humanidade. Pinturas nas cavernas mostram um casal copulando e se espancando. Ele queria sentir o prazer de vê-la sofrendo. - Isso é doentio. – cortou Sérgio. - Isso significa que nosso homem tem um local isolado, onde ninguém pode vê-lo ou ouvir o que ele faz. Sérgio puxou o outro para longe do corpo. - Vamos sair daqui. Cibele vai fazer almôndegas e eu não quero perder o apetite. Precisamos ir para a delegacia. Vamos deixar o legista terminar o serviço. Rapaz, eu gostaria de saber o que está acontecendo com o mundo... Eu sei. Eu vi a face do mundo e conheci suas vísceras. Ele está podre por dentro. Eu vi um grupo musical fazendo propaganda da maconha. Eu vi mulheres defendendo o aborto. Eu vi um ex-guerrilheiro tornar-se ministro. Somos um país fraco. Fraco. Fraco. Agora todos podem falar, em uma orgia de opiniões. Ninguém manda. Ninguém dá ordem ao mundo. Os bons tempos se foram. Naqueles tempos, quem ousasse discordar, era cortado como um dedo com gangrena. Eu sei. Eu vi. Eu vi o caos para o qual estamos indo. Mas vou consertar as coisas. Eu sou o anjo purificador. Ele-ela se contorce sob meus instrumentos. Agora não há mais diferença entre homens e mulheres. São todos iguais e o caos toma conta do mundo. É o fim. É o fim. Eu via a face da morte. E vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador. Eu sou misericordioso e, além de seus olhos, costuro seu membro. Agora não é nem ele, nem ela. É apenas um corpo, pronto para ser purificado. Pego meu estilete e começo minha obra. - Oh, meu Deus! Ainda vou abandonar esse emprego. – disse Sérgio. Se não fosse pela aposentadoria... Carlos, antes era uma prostituta... agora um travesti... quem é o maluco que está fazendo essas coisas? O travesti estava aos pés deles. Seus cabelos longos e loiros se espalhavam pelo mato, tingidos de vermelho. Seus olhos costurados pareciam ter fitado a morte. Haviam se passado apenas dois dias desde que encontraram a prostituta. - Carlos, na época da ditadura as coisas eram muito mais fáceis. Estávamos lutando contra terroristas. Nós batíamos um pouco neles e eles falavam. Tudo se resolvia... - Você deve se acostumar aos novos tempos. Sérgio estava agachado, ao lado do corpo, examinando-o. Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 11
- Veja, há alguma coisa aqui. – pegou no corpo do cadáver e trouxe na ponta do dedo um pouco de pó amarelo. Cheirou. É enxofre. - Enxofre? Isso significa alguma coisa? - Havia enxofre no corpo da prostituta assassinada... Sérgio enrugou a testa. Carlos puxou-o. - Vamos sair daqui. Precisamos de um mapa da cidade. Foram até o carro. Carlos dirigiu até a delegacia. Sérgio parecia abalado e incapaz de dirigir. - Enxofre. – disse, depois de algum tempo. Parece que ele cometeu um erro... - Psicopatas nunca cometem erros. – corrigiu Carlos. Eles não deixam pistas. Só são apanhados quando querem... Talvez aquele rapaz que encontramos no mês passado tenha algo a ver com isso... Havia um grande mapa da cidade na delegacia. Eles o desenrolaram sobre uma mesa e começaram a marcar os locais em que haviam sido encontrados os corpos. A união dos três pontos formava um triângulo perfeito. Estou preparado para meu próximo ato. Minha próxima vítima. Ela gritará, contorcendo seu corpo flácido, prejudicado por anos de ócio. Eu posso ver o caos, posso senti-lo tomando cada canto deste mundo. Posso sentilo no ar. Eu sou o instrumento da ordem. O grito de minhas vítimas é como um hino. Um hino de horror. Eu vi a face da morte. E vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador e estou esperando, impaciente, pelo meu trabalho... Sérgio acordou com o telefone tocando. A mulher, ao seu lado na cama, roncava placidamente. Ele ligou o abajur e atendeu. - Alô, Sérgio? Aqui é Carlos. Desculpe incomodar a essa hora, mas acho que descobri onde está o nosso homem. Não era um triângulo. Era um A. O ponto que faltava era exatamente no meio para formar a letra A. Descobri que existe uma velha fábrica de pólvora nesse ponto. Para fazer pólvora é necessário enxofre, por isso as vítimas tinhas enxofre no corpo. Aquelas pessoas foram mortas na fábrica. Se nos apressarmos, talvez consigamos salvar uma vida. Sérgio foi de carro até o ponto marcado, mas não encontrou Carlos. Havia, de fato, uma velha fábrica abandonada. O policial pegou sua arma e entrou. Súbito sentiu uma pancada na cabeça. Então tudo ficou escuro.
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Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador. Acorde, vamos, acorde! Psicopatas não deixam pistas. Eles não se deixam apanhar. Minha vítima abre os olhos. - Você? Carlos, Meu Deus! Que brincadeira é essa? Me desamarre... Psicopatas deixam apenas rastros de pão ao longo do caminho... para que a vítima caía na armadilha. - Carlos, por que você está fazendo isso? Por favor, largue essa agulha! Eu vi a face do mundo. Eu olhei para o globo e vi seu rosto distorcido. Vi cabeludos drogados, vi homens que se vestem como mulheres, vi subversivos se tornando ministros e até presidentes, vi policiais esquecerem seu dever de manter a ordem e a paz. Você deveria estar do meu lado, SÉRGIO, cortando os membros cancerosos da sociedade. Mas não. Você se tornou complacente, deu ouvidos à libertinagem. Seu corpo está podre e eu vou tirar a podridão de você. Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador. O grito ecoou pela fábrica. Sérgio ainda sofreria muito antes de ser purificado.
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Paraíso Perdido Marcio Massula Jr.
Minha mulher não falava comigo havia dias. Isso me incomodava. Era estranho passar uma semana sequer sem receber algum tipo de advertência do meu chefe, na verdade variações muito pequenas e nada sutis da frase “mais uma dessa e cê tá no olho da rua!”. Isso me incomodava. O dinheiro ficava cada vez curto. Era nosso aniversário de casamento e a única coisa na qual eu pude pensar que se encaixava na faixa de preço permitida pelas minhas posses era uma coletânea do TEARS FOR FEARS. Aquela que todo mundo tem. E eu nem sabia se ela gostava daquela música ou não. Isso me incomodava. Eu estava a ponto de explodir. O problema todo começou quando meu organismo, que a essas alturas do campeonato também estava contra mim, interpretou de maneira bastante subjetiva meu estado de espírito. Eu havia acabado de entrar no shopping, procurando desesperadamente pelo banheiro mais próximo. Passei, pelos meus cálculos, meia hora ali, sentado, reduzido a nada, descarregando toda a sorte de sentimentos “negativos” que havia dentro de mim da única maneira que me era possível. Dentro de uma privada. Isso, com certeza, me incomodava. Mas, pasmem, nem nesse momento de introspecção eu tinha paz! Vendo as coisas hoje, acho que era pedir demais mesmo. O cubículo ao lado também estava ocupado.
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Meu “companheiro de labuta”, se é que posso chamar assim, não conseguia simplesmente deixar que o sistema fisiológico agisse por conta própria. Não. Para ele, devia haver um ritual ou procedimento misterioso que envolvia uma sucessão infindável de grunhidos, tilintares metálicos, tossidos e mais um ou dois tipos de ruído que um ser humano pode emitir mediante potencial constrangimento. Ou foi isso que pensei na hora a respeito do meu mais novo inimigo. E isso me incomodava. Muito. Consegui sair antes dele. Fiquei ali, lavando minhas mãos por dois ou três minutos, aguardando o sacripanta abrir a portinha do cubículo. Sentia-me como um predador. Projetei minha consciência até as savanas africanas. Eu lá, majestoso, imponente, espreitando, aguardando a hora certa de dar o bote, enquanto uma equipe extasiada de fotógrafos e cinegrafistas da NATIONAL GEOGRAPHIC, protegidos pela distância proporcionada pelo zoom de suas máquinas, documentava toda a selvageria implícita numa simples refeição. Então, minhas preces foram atendidas. Eu queria dar uma olhada naquele homem, só uma. Ver pelo menos uma vez o brilho de seus olhos, antes de...antes de...bem, até aquele momento, eu ainda não havia decidido o que fazer com o cara. Ao que parece, ele não pensava da mesma maneira. Saiu e nem prestou atenção em mim. Como se isso não bastasse, não lavou as mãos. Fui atrás dele, o mais rápido que pude. Uma menina de blusa vermelha passou por mim e por alguns segundos, o olhar que recebi dela me distraiu da minha busca. Segundos esses mais que suficientes para que minha cabeça fosse atravessada por dois projéteis de fuzil (austríaco, calibre 5,56mm OTAN, modelo compacto, 30 projéteis no pente, 400 tiros por minuto, munição hollow point, a mais nova sensação entre os traficantes e ladrões de carro forte) que arrancaram boa parte do lado direito do meu crânio, assim como meu cérebro. Fui a segunda vítima, levando o segundo e terceiro tiros. Uma senhora já tinha sido alvejada antes, mas a providência fez com que o tiro pegasse num dos braços. Ela sobreviveu. Teve que amputar um braço, mas sobreviveu. Além de mim e da velha maneta, mais oito vítimas fatais e três mutiladas. O idiota estava tão alucinado que ainda tentou se suicidar com a arma Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 16
descarregada. Nem preciso dizer que assim que perceberam que o cara era, ou melhor estava, inofensivo, caíram em cima dele, como naquele filme que saiu há pouco tempo, aonde mais de cem caras sobem em cima de outro. Só que este cara não consegui jogar todo mundo pra cima. Desculpem, sinceramente não me lembro do nome do filme. Depois daquilo ficou meio difícil lembrar das coisas. O fato é: a vida após a morte não é, definitivamente, o que eu esperava. Nada de sujeitinhos de branco tocando harpas e trombetas enquanto você sobe por uma escada rolante, branquíssima, para chegar lá em cima e encontrar um velho barbudo e bonachão, também de branco, com um livro muito semelhante a um catálogo telefônico, sem páginas amarelas, claro, que encontraria seu nome, daria-lhe os parabéns, um tapinha nas costas e deixaria você entrar por uma porta alvíssima e muito brilhante, terminando assim, de forma digna, ma carreira de bons serviços prestados a humanidade. É claro que nunca tive coragem de admitir isso enquanto eu era vivo. Você sente a dor. Então, tudo escurece. Então, você acorda novamente, no meu caso, em um beco escuro no centro da cidade. Estava chovendo, não havia ninguém na rua. Eu me levantei e fiquei ali, sem saber o que fazer. Então, aparece um cara e me chama pelo nome. Pergunta se sou eu mesmo, ao que respondo “sim”. Então o cara me vem com um papo de que eu já tinha morrido, coisa e tal, mas como não tinha sido um bom menino, nada de “descanso” (assim mesmo, bem irônico). Eu ia ter que ficar por aqui mesmo enquanto minha situação era reavaliada. Então, óbvio, perguntei o que ele queria dizer com descanso. E ele me disse que não fazia a mínima idéia. Um adendo: Suas tripas estavam expostas, penduradas na cratera que havia em sua barriga. E o mais incrível é que aquilo não incomodava. Não do jeito normal, quero dizer. Nos poucos momentos que passamos juntos, tentei tomar coragem e perguntar como ele fazia para não tropeçar nos intestinos, mas em nome dos bons modos, deixei a idéia de lado. Outro adendo: O tempo, depois que você passa dessa pra melhor, ou melhor, daquela pra essa, não funciona exatamente da mesma maneira. Bem, o que importa é que estávamos em meu enterro. O caixão estava fechado. Segundo ele, aquela era a última chance que eu teria de ver todas as pessoas pelas quais eu sentia alguma pontada de amor ou simpatia. Esses momentos de catarse-atávica-coletiva funcionam como uma espécie de droga para nós. Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 17
Uma droga que você experimenta apenas uma vez. Tudo depende da proporção de pessoas para quem você foi de alguma forma importante. Se foi bem quisto pelos parentes e amigos, ótimo. Se ninguém vai ao seu enterro, o problema é seu. Mais um dos estranhos mecanismos que rege o lado de cá. Próximo passo: diversão. Embora eu esteja, tecnicamente, pagando meus pecados, alguns direitos básicos ainda me são garantidos. Um deles é assombrar o cara que me matou. Depois do tiroteio e do suicídio fracassado, o cara foi preso e a televisão transformou tudo num circo, como sempre. Algo fez com que o rapaz, jovem, profissional liberal e rico ficasse com um parafuso solto e passasse os últimos dois meses antes do tiroteio no shopping alvejando mendigos e traficantes (palavras dele) pela cidade. E ninguém se deu ao trabalho de ligar os pontos até que o sujeito metralhou algumas pessoas numa área nobre cidade. Coisas da vida. Virgílio - esse era o nome do extripado que me acompanhou. Bêbado profissional. Morto por um casal de Pit Bulls entediados - disse que eu não precisava fazer muito. Só meu aspecto, que era o de quando morri (já disse isso?), já seria suficiente para fazer o cara se borrar todo. Eu resolvi ir um pouco mais além. Costumo visitá-lo todos os dias. É uma técnica bem simples. Eu sou cordial e calmo num dia, e no outro me transformo numa aparição bestial (a flexibilidade ectoplásmica em ação) e sádica, saída do próprio inferno (figura de linguagem). Não tem erro. As vezes trago notícias do lado de fora, sobre a família que o ignorou, sobre as famílias que ele destruiu, etc. Não funcionou muito das primeiras vezes, ele se preocupava mais em gritar e chamar os enfermeiros do que ouvir o que eu tinha a dizer. Depois, com o tempo, parece que ele foi se acostumando com a idéia e limitava-se a ficar encolhido num canto, chorando, tremendo e rezando. Ah! E não sou apenas eu que visito o cara. Lembram da menina da blusa vermelha? O engraçado é que realmente o cara surtou na época dos assassinatos, ou seja, foi um caso de insanidade temporária. Não, eu não sei os detalhes técnicos.
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Ele, teoricamente, está são nesse momento, mas digamos que minhas visitas contribuíram para que os enfermeiros e psiquiatras pensassem diferente. E agora até o próprio sujeitinho está pensando que pirou. Vocês podem até achar que é maldade minha, que ele já está pagando pelo que fez, que ele pirou e etc. e tal, mas a verdade é que não há muito o que fazer aqui. Bem senhoras e senhores, é isso.Desculpem a minha tagarelice, mas eu não costumo ver muita...gente por aqui, ainda mais assim, em grupos. O ônibus caiu aonde mesmo? Bem, divirtam-se, mais tarde eu encontro vocês, certo? Agora, tenho uma visitinha a fazer...
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Lâmina na névoa Josiel Vieira A escuridão vai esmaecendo, torna-se pardacenta e vira uma névoa entremeada de ventos e chuviscos. Está chuviscando; olho para meu reflexo numa poça d’água. Estou de terno. Eu sei que sou um professor e estou vindo da aula. Engraçado; há alguns momentos poderia jurar que eu era outra pessoa. Mas sou um professor. Sinto as gotas geladas batendo em meu rosto, sinto o vento de vez em quando tentando arrancar meu chapéu. Ouço o ecoar metálico dos meus sapatos lustrosos na calçada. Mas o vento pára e de repente um gigantesco silêncio se abate sobre as coisas. Está tudo tão silencioso que tenho dificuldade até para respirar. Olho ao redor; estou dentro de um parque. Vejo o estilo do coreto e dos bancos, em art noveau. As árvores de tronco negro salpicado de líquens brancos e rosas formam uma única abóbada verdejante sobre mim; a folhagem move-se lentamente, e algumas gotas caem. Mas não há ruído algum. Deus, o que está acontecendo com o mundo? Sinto o ar opressivo; por uns instantes tenho uma vertigem a desabo num banco de ferro pintado de branco. Estava molhado, e os fundos de minhas calças se molham de maneira bem desagradável, como a me chamar para a realidade. Mas sequer sei se é manhã ou tarde. Meu coração começa a bater com força; trinco os dentes e olho ao redor, desesperado. Tenho a sensação de fim de mundo. Acho que me matei há pouco. Em que ano estou? Quantos anos eu tenho? Meus pulmões são feras dentro do meu peito, acuadas pelas dúvidas que iam brotando à minha frente. As dúvidas sempre foram pessoas para mim, pessoas que nunca me abandonaram na minha miséria pelo existir. O verde das árvores tem refulgências cristalinas, e começa a me ofuscar. Com a visão embaçada, vejo uma pessoa se aproximar – antes duvido realmente que esteja vendo uma pessoa. Mas ela se senta ao meu lado. Eu não esboço nenhuma reação; não a cumprimento nem nada. Só o suor e a agonia saem de meu rosto de dentes entrecerrados. Sinto a pessoa desabotoar meu paletó e ajeitar meus cabelos molhados. Olho para ela. É uma menina bem jovem, tem uns dezoito anos, e veste um vestido branco que vai até os pés. — O senhor está melhor? — Estou... obrigado. Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 21
— É professor? — Sim, como soube?... ah, claro, são os livros que eu carrego. Olho para ela, ainda com a visão embaçada. O vestido dela era muito bonito, mas não parecia... digamos... atual. Bem, o que importa? Como seu o meu terno fosse moderno! Quanto mais eu me esforço para parecer um adulto, usando roupas sérias, mais eu pareço um moleque. E odeio isso. — Não deveria odiar tanto as coisas – ela disse vendo o quanto eu amassava inconscientemente os livros de psicologia entre a palma da mão – além disso, você parece ser atormentado por dúvidas. — Como sabe? – eu pergunto olhando o pequeno crucifixo dourado no pescoço sensual dela. Eu gostaria que essa garota fosse algum fantasma do século passado ou retrasado; ou então que eu tivesse voltado ao passado. Porque eu gostei realmente dela. Daria tudo para chupar aquele pescoço. Mas conforme eu tentei dialogar com ela, a minha voz se tornou um murmúrio de bêbado e minha língua se enrolou de uma forma análoga à maneira como o corpo dela foi se enrolando no vestido branco até virar um apavorante casulo. Eu estava sentado ao lado de um casulo que abrigava um bicho ignorado. Apanho os meus livros e o meu chapéu e vou-me embora, como se fosse a coisa mais normal do mundo deixar para trás da gente uma incógnita. Algo cortante... uma lâmina na névoa. Quando pequeno , quando questionavam se eu sabia de cor a lição, eu costumava dizer que deu um “branco”. E dizia assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo, responder às dúvidas com o esquecimento. P.S: talvez no outro dia alguém leia no jornal sobre o cadáver de uma menina embrulhado em seu próprio vestido. Talvez...
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