Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Movimento psicanálise, autismo e saúde publica
Em reação a uma série de manifestações que visam desqualificar a Psicanálise como linha de abordagem no tratamento de pessoas com autismo, profissionais de saúde mental decidiram organizar um movimento em defesa da aplicação de múltiplas abordagens no trabalho com essas pessoas. O movimento tem como objetivo refutar, baseado em pesquisas e estudos com rigoroso valor científico, tentativas de adoção, nas políticas de saúde pública, de modelos de tratamento exclusivos. O acontecimento que gerou a fagulha para o movimento foi um Edital lançado pela Secretaria de Saúde de São Paulo, em 04 de setembro de 2012, aberto para o credenciamento junto à SES de instituições de saúde mental trabalhando com autismo. O Edital permitia inscrição exclusivamente para as instituições que seguissem o método cognitivo-comportamental. Pouco tempo depois, o Centro de Referência da Infância e Adolescência - CRIA, ligado a Universidade Federal de São Paulo e de orientação psicanalítica, teve as suas portas fechadas, com base no argumento de que a psicanálise não possui base científica. Porém,
graças à reação de colegas e
instituições envolvidas no atendimento multidisciplinar de pessoas com autismo e de suas famílias, o fechamento do CRIA foi revogado e a instituição voltou a funcionar. O movimento, que se denominou "psicanálise, autismo e saúde pública", já conta com mais de 350 profissionais de todo o território nacional, representando 100 instituições. Contam-se entre elas instituições universitárias, instituições psicanalíticas de diferentes filiações teóricas, organizações não governamentais e instituições de tratamento. O movimento pretende reforçar a organização e a coordenação dos esforços que vêm sendo empreendidos no sentido de fornecer informações abalizadas e responsáveis, isentas de interesses politicos e ideológicos particulares, para subsídio da definição e implantação de políticas públicas de saúde mental e, em especial, para pessoas com autismo. Reflexo do crescente interesse que o tema suscita, o governo federal, a pedido de associações de pais de autistas, deu partida a processo público para o estabelecimento do documento “Linha de Cuidado para Atenção às Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde”, que sirva de referência à atuação de profissionais e gestores nas três
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esferas de governo. A elaboração do documento, cujo texto-base destaca a construção de de projetos terapêuticos singulares sem privilegio de qualquer abordagem teórica e o atendimento muldisciplinar, tem previsão de lançamento em 2 de abril de 2013 e está a cargo de um grupo de especialistas, que abriu consultas públicas no início de fevereiro. O MPASP promoveu duas reuniões em São Paulo, na sede da Associação Lugar de Vida – instituição voltada para o atendimento e a pesquisa no campo do autismo, com abordagem psicanalítica – e uma reunião na Faculdade de Educação da USP, organizadas por Maria Eugênia Pesaro e Cristina Kupfer, do Lugar de Vida, por Gabriela Xavier de Araújo do CRIA, por Claudia Mascarenhas, do Espaço Moebus, do Instituto Viva infância e do grupo de pesquisa Preaut Brasil e, Paulina Rocha, do CPPL, de Recife. Durante os meses de janeiro, fevereiro e março de 2013, os grupos de trabalho temáticos do Movimento reuniram-se de modo presencial nessas três reuniões e também em outras ocasiões, inclusive virtualmente, e discutiram seus temas para a Jornada de 22 a 24 de março, também em São Paulo. O objetivo da Jornada foi apresentar as produções dos 13 grupos de trabalho temáticos que se organizaram em torno de três grandes eixos: 1. Políticas públicas para o atendimento da criança com autismo; 2. Ciência e Psicanálise; 3. A clínica psicanalítica para crianças com autismo. As apresentações dos GTs tinham como foco tornar mais claro e real o conhecimento sobre a presença da psicanálise nos setores públicos e privados no Brasil e produzir um extenso e consistente material a ser divulgado ao público em geral. A Jornada contou ainda com três mesas redondas para iniciar diálogos e trocas com envolvidos na questão do autismo e da saúde pública e tornar pública a existência do movimento.
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 1 – Políticas Públicas
Políticas Públicas em Saúde Mental para a Infância
Efetuamos um resgate histórico e bibliográfico no subgrupo Políticas Públicas em Saúde Mental para a Infância, no intuito de mapear “onde estamos” no âmbito da garantia de direitos e das práticas clínicas voltadas para essa população; da mesma maneira, agregando diferentes saberes, pretendemos ser propositivos em relação ao rumo dessas políticas públicas, de modo que elas possam operar com o campo da subjetividade. A política pública para a infância constitui uma preocupação relativamente recente na agenda nacional, mesmo com dados apontando que a prevalência de transtornos mentais em crianças e adolescentes possa chegar até 20% dessa população (MS, 2005); soma-se a isso, a constatação de que muitos transtornos mentais de adultos terem início nessa fase da vida, sendo a intervenção precoce decisiva para um melhor prognóstico. Não obstante, as crianças com transtornos mentais ficaram por muito tempo aos cuidados de instituições assistenciais, sem perspectivas terapêuticas e muitas vezes com viés asilar. Faltavam políticas públicas para dar acolhimento adequado para aquela demanda. E hoje, faltam serviços, faltam conhecimentos de como enfrentar essa demanda, e falta avaliação consistente daquilo que já foi feito. A baixa na mortalidade infantil e os perfis de morbidade apontam para uma tendência mundial a esse cenário de alta demanda para atendimentos em problemas de saúde mental infantil, aliada a uma baixa capacidade de resposta dos sistemas de saúde e cuidados com a infância. Em relação à incidência e prevalência, discute-se se estamos utilizando métodos inadequados na sua aferição, ou as mudanças na classificação dos transtornos mentais na infância criaram essa realidade, ou ainda, fala-se em uma transformação das condições de vida da população infantil, que estaria vivenciando altas taxas de sofrimento psíquico.
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Existem nesse cenário algumas constatações importantes: 1) Reconhecer as crianças como sujeitos, e com direitos, e considerar a complexidade e diversidade psíquica desses sujeitos com transtornos do desenvolvimento dos mais graves (TEA) aos menos graves 2) saber que as políticas públicas demandam ações mais amplas e intersetoriais fundamentadas por concepções e práticas com as dimensões políticas, clínicas e éticas e 3) privilegiar a transdisciplinaridade e as intervenções precoces. A Saúde Mental da Infância e Juventude precisa ser colocada na agenda de prioridades das Políticas Públicas. A rede de saúde mental de crianças e jovens é questão de saúde pública e deve integrar o conjunto de ações do Sistema Único de Saúde (SUS). No Brasil, somente a partir de 2003, o Ministério da Saúde passa a orientar a construção coletiva e intersetorial das diretrizes de uma assistência para esta faixa etária de base comunitária, e em acordo com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Diferentemente da política de saúde mental dos adultos, que pôde avançar em suas propostas, apesar das dificuldades, a política nacional de saúde mental infantil precisou considerar as particularidades e necessidades da infância, desafios na construção de uma política nacional de saúde mental infantil, que propunha um redesenho do modelo anterior assistencialista para diretrizes, em que uma rede de cuidados de base comunitária e territorial fosse prioritária na atenção integral dos sujeitos, incluindo a inserção familiar, social e cultural. Diversos fatores contribuíram para as dificuldades da saúde mental infantil de ser incluída na agenda das políticas públicas de saúde mental, nacional e internacionalmente, a saber: “a extensa e variada gama de diagnósticos (transtornos globais do desenvolvimento, transtornos de conduta e de ansiedade, uso abusivo de drogas etc.), carência de estudos consistentes sobre frequência, persistência, prejuízo funcional e consequências na vida adulta, associadas aos transtornos mentais da infância e adolescência, falta de evidências empíricas de qualidade sobre a eficácia e efetividade de tratamentos para esses transtornos, e a particularidade do sistema de cuidado, pois, frequentemente, envolve várias disciplinas “(Couto, Duarte, & Delgado).1
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A Saúde Mental Infantil na Saúde Pública Brasileira: Delgado e Col.
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Marcos históricos como a Constituição de 1988, com a criação do SUS e seus princípios de sistema público de saúde gratuito, preconizando universalidade, integralidade, equidade, controle social, descentralização e resolutividade; depois, a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), auxiliaram gradativamente na construção de um campo assistencial no âmbito da saúde. Começa a participação de vários atores: Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde, movimentos sociais de usuários, movimentos sociais dos trabalhadores de saúde mental, conselhos de saúde estadual e municipal e fóruns de saúde. Neste panorama histórico, com a vigência do SUS, em 1995, busca-se mais eficiência na prestação dos serviços públicos, dando ínicio às parcerias públicoprivadas, sendo então criadas formas de parcerias com as organizações sociais e as organizações do terceiro setor, ocasionando também a expansão do setor privado, com seus planos de saúde. Temos visto em nosso coletivo, que diferentes serviços conveniados e parceiros ao Estado realizam trabalhos fundamentais no âmbito da infância. Hoje, 60% do orçamento do SUS são destinados a pagar os procedimentos às empresas terceirizadas. Apesar da ampliação do atendimento à população pelo SUS, as insuficiências na rede, problemas quanto ao financiamento e as relações com o sistema privado são apontados pelos especialistas como entraves na melhoria dos serviços. Retomando, o tema central da política de saúde mental infanto-juvenil é a construção de uma rede de cuidados capaz de responder com efetividade às necessidades das crianças e adolescentes. Neste sentido, três ações foram implantadas: 1) os Centros de Atenção Psicossocial infanto-juvenil (CAPSi), em 2010 eram 128 CAPSi, sendo que são1620 CAPSs. 2) a articulação em rede dos serviços e dispositivos da rede de saúde, principalmente o apoio à Atenção Básica
3) a
construção de estratégias para articulação intersetorial da saúde mental com outros setores envolvidos como: a educação, a justiça, a assistência social etc. Do ponto de vista da organização assistencial, tem-se buscado investir na construção de uma “rede pública ampliada de atenção à saúde mental infanto-juvenil” com base territorial e comunitária, em que devem estar articulados serviços de diferentes setores, com graus diferenciados de complexidade e níveis distintos de
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intervenção. Se inicialmente, pensou-se que a atenção básica, por exemplo, seria a porta de entrada da Saúde Mental, e destinada aos casos mais leves, enquanto os CAPSis teriam a incumbência de tratar os mais graves (psicóticos, os estados autísticos etc.), hoje, temos norteadores para o trabalho com a subjetividade no referencial psicanalítico e outros organizadores das redes se colocam, sendo que a concepção de um trabalho em rede vai além do modelo da divisão de papéis pela hierarquização, e aposta no modelo de compartilhar papéis nos Projetos Terapêuticos Singulares. A despeito das diferenças hierárquicas e atribuições específicas de cada equipamento de saúde, constatam-se alguns princípios clínicos e éticos que estão postos e que devem operar nas novas redes de atenção de saúde mental. A transdisciplinaridade, que implica assumirmos a complexidade do trabalho com o sofrimento psíquico, a presença de Fóruns de Saúde Mental, com a finalidade de potencializar a rede intersetorial, o matriciamento, que apoiam a construção de projetos terapêuticos singulares e os encaminhamentos implicados. Por exemplo, é função da atenção primária a detecção e intervenção precoce, sendo de fundamental relevância a capacitação de todos os profissionais para esse tipo de serviço. Na rede pública, encontramos no Manual para os pediatras e no Caderno de Atenção Básica, orientações sobre o desenvolvimento psíquico. Além disso, um grupo de especialistas, a partir de uma demanda do Ministério da Saúde realizou a pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco (IRDE), instrumento importante, porque os indicadores psíquicos passaram a ser incorporados na ficha do desenvolvimento da criança. A disseminação dos indicadores para a detecção precoce e o acolhimento dos casos, criando uma rede de atenção articulada e integrada, exige a capacitação dos agentes da rede e da valorização do trabalho deles, referenciados de forma horizontal pelos especialistas. Ou seja, este funcionamento é matricial, modelo que supera a forma taylorista de divisão de papéis, e avança para a interdisciplinaridade, que sugere o compartilhamento de papéis caso a caso, no território. Essas estratégias sustentam o trabalho com a subjetividade. Em todas as regiões do país, as escolas, as creches, seguidas das ações das Equipes de Saúde da Família, mostram a importância desses serviços na construção de uma rede de cuidados de saúde mental ampliada e inclusiva.
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Com o olhar da subjetividade, as várias estratégias nos atendimentos clínicos das crianças vão incluí-las ativamente em todo processo de tratamento, não tomando uma queixa familiar ou escolar como um fim em si. Reconhecer a criança como sujeito envolve identificar suas potencialidades e os variados fatores que compõem a situação de sofrimento, buscando soluções em conjunto com os diferentes atores envolvidos. Se o trabalho terapêutico visa à emancipação social, o profissional da saúde não deve ficar como aquele que “sabe” sobre o sofrimento da criança e da família, pois essa postura tende a alimentar a dependência e o sentimento de impotência frente ao cuidador (Onocko Campos & Gama, 2008). Abrir espaço para o saber das crianças e familiares em sofrimento mental implica ajudá-los na sua singularidade, com tudo aquilo que os afeta em particular. Os recursos terapêuticos não devem, como em outrora, ser homogeneizantes e massificados, e sim pensados de acordo com as possibilidades do profissional e equipe, do próprio sujeito, do território em que se situam as redes afetivas etc. Nessa nova rede de cuidados, isso é denominado Projeto Terapêutico Singular (PTS), claramente ampliando a proposta de remissão sintomática do modelo biomédico. O acolhimento e o encaminhamento implicado (MS, 2005), práticas que vêm sendo propostas atualmente, sugerem que a postura dos equipamentos de saúde, através de seus profissionais, deve ser receptiva em relação à demanda de ajuda, mesmo que o tratamento em seguida não se processe na mesma instituição ou se estiver superlotada. Certas situações relativamente simples podem se cronificar se não acolhidas no momento, podendo ser desfeita a demanda, ou encaminhada de modo a garantir o tratamento em outra instituição mais adequada. O vínculo, em seguida, consiste num dos recursos mais importantes dentro de um tratamento, mesmo que seja uma “tecnologia humana”. A confiança construída junto ao profissional, que, de preferência, acompanha o caso no seu transcurso institucional, é fundamental para o êxito terapêutico. A relação transferencial, em linguagem psicanalítica, envolve “a existência de um sujeito disposto a falar sobre sua vida e suas inquietações e de um profissional atento, para quem o sujeito possa atribuir um saber capaz de ajudá-lo na tarefa de enfrentar os problemas da vida” (Projeto Casa da Árvore).
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O uso de medicação, embora necessário e até imprescindível em determinados casos, não deve ser feito de maneira indiscriminada, e sim pensado à luz de cada caso, tendo no horizonte a perspectiva de que o sujeito possa cuidar de si, da maneira mais autônoma possível. Neste posicionamento ético que afirma a dimensão da subjetividade, almeja-se substituir as tecnologias duras (exames invasivos, medicações...) pelas tecnologias humanas e relacionais. Fazemos menção novamente ao trabalho em rede e no território, visto que na esfera pública temos a responsabilidade de não sobrepor cuidados, e de pensar junto a nossas crianças e familiares as melhores saídas para as situações de sofrimento. Isso implica, em larga medida, negociar com instituições que atravessam e influenciam diretamente na vida desses sujeitos, produzindo saúde ou adoecendo-os. “O trabalho dos serviços de saúde mental infanto-juvenil deve incluir, no conjunto de ações a serem consideradas na perspectiva de uma clínica do território, as intervenções junto a todos os equipamentos – de natureza clínica ou não –que, de uma forma ou de outra, estejam envolvidos na vida das crianças e dos adolescentes dos quais se trata de cuidar” (MS, 2005). Depois de alguns anos, verifica-se a necessidade da expansão da rede de atenção psicossocial. Além de sustentar a rede intersetorial, levando em conta as diferenças locais, estes trabalhos requerem, ainda, a qualificação e formação permanente dos gestores e profissionais, bem como a continuidade nos projetos implantados e na regularidade dos recursos financeiros. Encontramos em nossos locais de trabalho uma multiplicidade de ações, sem uma coordenação e articulação mais produtiva. Alguns especialistas enfatizam a importância dos Programas de Saúde da Família e o estudo de estratégias de atenção primária com tecnologias simples, mas com recursos humanos especializados. O Ministério da Saúde não aceita recortes por categorias e patologias, e demonstra que a perspectiva da política caminha na direção da qualidade dos serviços e na promoção dos direitos das pessoas envolvidas (Quality Rights). O debate, assim, ultrapassa os limites da argumentação médica e se insere no campo da cidadania. Em 2009, criou-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.Trata–se de pessoas com impedimentos de natureza fisíca, mental e intelectual. E em 27 de dezembro de 2012, com a reivindicação e mobilização dos
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familiares e portadores do espectro do autismo, especialistas e outros, foi promulgada a lei 12.764/12 que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. Esta lei reconhece as pessoas com TEA como pessoas com deficiência, e tem em suas diretrizes forte marco intersetorial. Em relação ao trabalho com a Saúde Mental Infantil e especificamente no trabalho com a clínica do Autismo, atualmente, temos o documento “Linha de cuidado na atenção integral às pesssoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no SUS” (MS e Col.)2, em que diretrizes importantes estão norteando a política pública, a saber: privilegiar a singularidade, a interdisciplina, a participação da família, incluir o contexto social, a detecção precoce, orientação para o diagnóstico e a qualidade do atendimento para a população e seus familiares. Consideramos necessárias a atenção e a participação de todos os envolvidos, para que a implantação nos serviços atenda aos princípios preconizados. Também queremos destacar o investimento em trabalhos com os familiares, para desmistificar equívocos que foram construídos ao longo dos anos, com críticas infundadas aos trabalhos da psicanálise, sobretudo abrindo espaços para a escuta de seus sofrimentos, suas experiências e participações. As conexões entre a clínica psicanalítica ampliada e as propostas de políticas públicas criam aberturas ao fazer clínico com as estratégias vigentes e com as que podem ser instituídas. Neste sentido, além de priorizar as estratégias CAPSi e PSF, pensamos em projetos inovadores sintonizados com as realidades locais. No Brasil, experiências inspiradas nos trabalhos de Dolto, Mannoni, Winnicott e outros psicanalistas podem ser multiplicados em outros contextos sociais. Para Benilton,3 “a construção de um sistema assistencial inspirado nos ideais da reforma, além dos saberes técnicos, exige que a imaginação, a criatividade e a reflexão crítica encontrem uma forma de delinear os desafios envolvidos neste campo. E na atualidade, todas as transformações na assistência à saúde mental no Brasil, já não defendem a hospitalização, mas as resistências aparecem, quando vemos a ênfase na hegemonia dos médicos no campo da atenção à saúde, na ênfase nos tratamentos biológicos como única forma efetiva de tratamento, na importação do modelo da 2
“Linha de Cuidado na Atenção Integral às Pessoas com Transtorno do espectro do autismo e suas famílias no SUS” 3 Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil: Benilton Bezerra JR.
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medicina baseada em evidências para a Psiquiatria, no abuso na utilização da nosografia descritiva dos DSMs, em detrimento da atenção às dimensões psicodinâmica, fenomenológica e psicossocial das psicopatologias. Deste modo, os debates atuais estão marcados por questões de natureza epistemológica, teórica e ética.” Enfim, com a dor do viver e com os impasses, ataques e angústias que sofremos no cotidiano dos nossos trabalhos, propomos o debate e o diálogo, para um trabalho de um coletivo que hoje, se articula no Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública.
Participantes e colaboradores diretos do texto: Maria do Carmo Vidigal (SEDES), Denise M. Cardoso Cardellini (SEDES), Wagner Ranna (SEDES, FMUSP), Paulina Rocha (CPPL), Eliane Berger Mantega (SEDES), Cassia Gimenes, Bruno Espósito (CRIA/Unifesp), Felipe Lessa (Faculdade de Saúde Pública USP), Sílvia Ribes (HU/USP), Isabel Kahn Marin (PUC/SP, SEDES, ABEBE), Cristina Abranches (CAIS/MG), Luana Amancio.
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Bibliografia - Saúde Mental no SUS. As novas fronteiras da reforma Psiquiátrica. Relatório de Gestão. 20072010. Janeiro de 2011. - Caminhos para uma política de saúde mental Infanto-juvenil. MS, Brasília, 2005. - Lauridsen-Ribeiro, E.Tanaka, O. Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. Org. . Editora Hucitec, Saõ Paulo, 2010. -Campos, W.G. e col. Apoio matricial e equipes de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de saúde Pública, Rio de Janeiro, 23, numero 2, pp. 399, fev., 2oo7. - Ranna, W. A saúde mental da criança na atenção básica. Detecção e intervenção a partir do programa da saúde da família e do apoio matricial. Em: Atenção em Saúde Mental da Criança e do Adolescente no SUS. Edith Lauridsen-Ribeiro e Oswaldo Tanaka, org. Ed. Hucitec, São paulo, 2010, pp.170. - Onocko Campos, R., Gama, C. Saúde Mental na Atenção Básica. Manual de Práticas de Atenção Básica. Campos, G. & Guerrero, A. (org.). Editora Hucitec, São Paulo, 2008, pp.221246. - Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil / Ministério da Saúde. Cadernos de atenção básica nº 11. Secretaria de Políticas de Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2002. - Ministério da Saúde. Brasília- Manual do Crescimento e Desenvolvimento. 2001 - Delgado, P. Couto Maria Cristina, Duarte, Cristiane: A Saúde Mental Infantil na Saúde Pública Brasileira: situação atual e desafios, Rio de Janeiro, Rev. Bras. Psiquiatria 2008;30(4) : 390-8 - Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o desenvolvimento Infantil GNP Grupo Nacional de Pesquisa, 2000-2008 - Bezerra Jr, Benilton, “Desafios da reforma Psiquiátrica no Brasil” in Phisis, Rev. Saúde Coletiva, Rio de janeiro, 17920 243-250, 2007 - Milman, Lulli; Bezerra Jr, Benilton, in Casa da Arvore: uma experiência inovadora na Atenção à Infância, Rio de Janeiro, Ed Garamond - Caros Amigos, ano XVI, Edição Especial Saúde, no 059, novembro 2012
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 5 – Panorama Francês
PANORAMA DAS QUESTÕES ENVOLVENDO PSICANÁLISE E AUTISMO NA FRANÇA
Resumo: Este texto apresenta uma revisão do material francês sobre psicanálise e autismo. Ele foi realizado por um grupo de trabalho pertencente ao Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública. Em função da pluralidade de autores, o texto apresenta uma leitura singular sobre os fatos, que fala das relações de transferência de trabalho que os autores apresentam com os interlocutores franceses. Uma visão mais ampliada será feita em um trabalho futuro. O objetivo deste grupo de trabalho é refletir as polêmicas envolvendo psicanálise e autismo na França. Para isso, começaremos por uma breve revisão sobre a suposta crise da psicanálise na França, para chegar aos diversos fatos políticos e sociais que marcaram as discussões sobre autismo nos últimos anos. Um primeiro indicador de que tinha havido uma mudança neste novo século em relação à Psicanálise ocorreu já nos seus primórdios. Em 8 de outubro de 2003, na França, foi proposta a "emenda Accoyer", visando à regulamentação do exercício das psicoterapias. Graças à ação incisiva de Jacques-Alain Miller, Bernard-Henri Lévy e outros, um amplo debate teve início e a emenda, ao passar no Senado, levou os olhares a se voltarem para o que estava acontecendo com o Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (INSERM), que se tornou alvo da ira pública por ter tomado partido contra a Psicanálise, identificando novas tentativas de cerceamento de suas práticas. Paralelamente, o mercado das psicoterapias foi se tornando cada vez maior, levando o fenômeno psi a ganhar outros contornos sob as influências do discurso da ciência e do discurso do capitalista, com especial ênfase dada às TCCs, a partir de parâmetros pretensamente científicos.
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Aflalo (2012, p. 19) destaca que essas ações, sob a aparência de uma proteção aos cidadãos, destinavam-se a permitir que o Estado tomasse o poder e deliberasse em seu lugar, confiscando a liberdade dos sujeitos. Em 2 de outubro de 2003, o Ministério da Saúde francês anunciou a elaboração de um Plano Global de Saúde Mental, com base no Plano de Ações do doutor CléryMelin. Nas reuniões para a sua construção, foram excluídos os representantes da psicanálise, da psicologia clínica e das psicoterapias. O Plano complementava a "emenda Accoyer" e, no bojo de ambos, encontrava-se a proposta de submissão dos psicoterapeutas e psicanalistas aos médicos. A mobilização dos psicanalistas foi bastante intensa: até fevereiro de 2004, inúmeros fóruns psis ocorreram quinzenalmente, e grande parte dos intelectuais franceses participou dessas sessões, aprofundando cada vez mais essas discussões. Em novembro de 2003, surgiu um "Manifesto Psi" reunindo psis de todas as linhas e tendências: psicanalistas, psicoterapeutas, psicólogos clínicos e psiquiatras em torno da petição para que fossem suprimidos o Comunicado de 2 de Outubro e o bloqueio da “emenda Accoyer”. A base desse documento se assentava no atentado às liberdades individuais e à intimidade da vida privada. Nele, dois princípios foram propostos: o direito da pessoa em sofrimento de escolher seu psi sem a interferência do Estado, e o dever dos psis de apresentarem publicamente suas garantias, por meio de suas associações e escolas, (AFLALO, 2012, p. 20). Em meados de dezembro de 2003, Bernard Accoyer reconheceu que muitos pontos precisavam ser revistos, e Laurent Fabius pediu ao Primeiro-Ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, a retirada da Emenda e a discussão de um acordo. Mas o Ministério da Saúde solicitou que fossem entregues a eles os registros das instituições psicanalíticas. A Escola da Causa Freudiana não concordou desde o início com essa proposta, que acabou tendo o aval da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), a Associação Psicanalítica da França (APA), ambas filiadas à Associação Internacional de Psicanálise (IPA), fundada por Sigmund Freud em 1910. Outras instituições se incorporaram a elas também, como a Organização Psicanalítica de Língua Francesa (OLP), a Associação Lacaniana Internacional (ALI) e a Sociedade de Psicanálise Francesa (SPF). Como destaca Aflalo (2012, p. 21), foi a primeira vez que, na França, “o Estado, sem ter competência para isso, decidira imiscuir-se num debate entre sociedades eruditas.”.
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Em fevereiro de 2004, houve a publicação de uma avaliação do INSERM de três psicoterapias, das quais a psicanálise foi desqualificada e as psicoterapias cognitivocomportamentais ganharam lugar de destaque. Em fevereiro de 2005, Philippe Douste-Blazy, Ministro da Saúde, compareceu ao Fórum Psi e se mostrou favorável à Psicanálise de Freud e Lacan. Nesse mesmo ano, foi publicado O livro negro da Psicanálise, ao qual Bernard-Henry Levy e JacquesAlain Miller deram uma resposta, publicando um dossiê especial em La régle du jeu. Em fevereiro de 2006 foi publicado pela Editora Seuil O antilivro negro da psicanálise, composto por textos breves apresentados nos Fóruns Psis, no qual se fazia crítica documentada ao que acontecia na França. Em junho de 2005 o Ministro Philippe Douste-Blazy foi substituído, mas foram mantidos os encaminhamentos previstos pela “emenda Accoyer”. No fim de 2006 houve uma nova ofensiva no Parlamento por parte de Bernard Accoyer. Em seu documento que discutia uma lei que regulamentava medicamentos, ele propôs dois novos artigos para regulamentarem a formação de psicoterapeuta, os quais foram contestados posteriormente. No outono de 2007 o Instituto Nacional de Prevenção e Educação para a Saúde (INPES) lançou uma campanha de informação sobre a depressão do adulto, com grande foco nas mídias. No fim de junho de 2008 foi retirada a minuta do decreto da “emenda Accoyer”, fazendo recrudescer a batalha. Para Aflalo (2012, p. 27), um novo eixo se estabeleceu: “[...] a nova profissão de psicoterapeuta inventada pela minuta do decreto emanava de uma vontade obstinada de regulamentar a fala entre duas pessoas, a fim de, mediante o poder de Estado, impor o silêncio aos que sofrem.” . No dia 5 de março de 2009, uma nova emenda substituiu a “Accoyer”. A ministra da Saúde da época, Roselyne Bachelot, foi defendê-la na Assembleia e ela foi aprovada por unanimidade. Nessa proposta, estava expresso que: O acesso a essa formação é reservado aos titulares de um diploma no nível de doutorado, dando o direito de exercer a medicina na França, ou de um diploma no nível de mestrado, cuja especialização ou a menção é a psicologia ou psicanálise. (AFLALO, 2012, p. 154).
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Havia também um item mais específico relacionado aos psicanalistas, que seriam “[...] regularmente registrados nos anuários de suas associações (que) podem se beneficiar de dispensa total ou parcial da formação em psicopatologia clínica.” (AFLALO, 2012, p. 154). Como se pode notar, havia evidente encaminhamento da lei na direção de um enquadre universitário e das instituições psicanalíticas. Sem mencionar os embates no interior da própria psicanálise, tais como as propostas espúrias de Daniel Widlöcher, que tenta estabelecer uma leitura psicanalítica nos moldes de uma ciência cognitivista comportamental. Como destaca Aflalo (2012, p. 39), para ele, “[...] o inconsciente se torna um pensamento; o desejo também se torna um pensamento; e ocorre o mesmo com a pulsão, a angústia, os afetos, a transferência, a interpretação. Com ele, tudo isso se torna pensamento.”. Partindo desse panorama, que lança questões à prática do psicanalista de um modo geral, passaremos agora a discutir alguns pontos que fizeram questão à prática da psicanálise no campo do autismo. O autismo como deficiência Diante de diversas contestações e queixas de associações de pais, em 1996, um deputado da região do Loire, Jean François Chossy, consegue aprovar, na Assembleia Nacional, a lei que estabelece o autismo como uma deficiência (handicap), lei Chossy (Loi 96, 1076). Essa promulgação vem na esteira da mesma definição proposta pelo Congresso Norte-americano, ou seja, a partir de então, não se trata mais de uma questão de saúde mental, mas sim, de deficiência. Desse modo, o autismo é considerado como um handicap especifico e necessita da construção de estruturas especificas para o tratamento, fornecidas pelo Estado. Essa discussão parte do argumento de que se nasce e se morre com autismo (“autiste un jour, autiste toujours”) e que o autismo não pode ser considerado uma doença da qual alguém pode se curar. Diversas associações familiares consideram pejorativa e depreciativa a expressão “doença mental”, próxima à noção de loucura, e preferem a ideia mais neutra de handicap. Essa questão revela uma discussão importante da psiquiatria, dado que esta assume um campo especial do saber médico. As doenças mentais, contrariamente aos demais campos médicos, não se determinam pela ação de um agente que cria um sintoma e pode ser eliminado.
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Uma doença, por definição, é um processo evolutivo, ligado a um ou mais agentes patológicos, conhecidos ou desconhecidos, que mesmo podendo ser em determinado momento considerado como incurável, pode, de fato, ter uma suposta cura em um momento onde se encontrará um remédio. Ela tem a vocação de ser tratada. Uma deficiência é um desvio fixo a uma norma, composto de um déficit e de uma incapacidade mais ou menos definidas, que deixam o sujeito em desvantagem, atrapalhando sua adaptação ao meio e podem somente ser compensadas. Ela convoca uma reabilitação, quer dizer, um reforço da utilização das capacidades restantes, o desenvolvimento de novas capacidades e uma adaptação do entorno. (HOCHMANN, 2009, p.415) A modificação de estatuto do autismo, entretanto, para além dessa discussão sobre o saber psiquiátrico, delibera novas diretrizes para o tratamento do autismo, que não é mais de responsabilidade do campo psi, e sim, do campo educativo. No momento da promulgação da lei (e talvez ainda hoje), a maioria dos estudos demonstrando eficácia no tratamento do autismo tinha suas origens em tratamentos educativos (como o método ABA). Em nova lei, de 2005, se estabelece da seguinte forma a deficiência: “[...] Toda a limitação de atividade ou restrição de participação à vida social por uma pessoa em razão de uma alteração substancial, durável ou definitiva de uma ou mais funções psíquicas, sensoriais, mentais, cognitivas ou psíquicas, de uma deficiência múltipla ou de um transtorno de saúde invalidante.”. A discussão a respeito de doença mental versus deficiência física reacende o antigo e obtuso debate sobre a etiologia do autismo, psicogênica ou genética. Golse (2008) lembra que, ainda que ninguém conteste que o autismo representa uma “deficiência existencial”, é preciso pensar que “[...] em francês, o termo handicap assume, de forma mais ou menos implícita, a ideia de uma lesão neurológica e de um entrave ao exercício de tal ou tal função, entrave que é preciso inicialmente constatar antes de tentar remediar por abordagens educativas ou de reabilitação”. (GOLSE, B.; DELION, 2008) Partindo desse pressuposto, diversos psicanalistas e psiquiatras infantis se manifestaram contra esse novo estatuto: Laznik (1996) aponta que a deficiência deve ser
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tomada como a consequência do que não se instala no autismo; Hochmann (2009) destaca que, mais do que a discussão acerca do sentido do termo, é preciso atentar para o sentido político e filosófico que carrega esse novo estatuto, “[...] que visa impor uma visão única, politicamente correta, sobre o autismo e seu modo de tratamento.” Essa modificação de estatuto de doença mental para deficiência pode ser localizada e compreendida como um marco, que inaugura uma nova fase de diretrizes em relação ao tratamento do autismo e que colocam muitas questões para a psicanálise. Na sequência deste novo estatuto, surge também do Estado, articulado com órgãos científicos e com grupos de pais, o pedido para elaboração de um documento de estabelecimento de diretrizes para o tratamento de autismo. A seguir iremos analisar mais detidamente alguns dos seus aspectos.
Leitura crítica do documento da HAS “Recomendações para a boa prática no tratamento de crianças e adolescentes com autismo” Em março de 2012, a Haute Autorité de Santé (HAS), órgão científico criado em 2004 com o objetivo de garantir o controle da boa qualidade do sistema francês de saúde pública, em parceria com a Agência Nacional de avaliação e da qualidade dos estabelecimentos e serviços sociais e médico-sociais (Anesm), publicou um documento no qual descrevia em detalhes as condutas a serem seguidas pelos profissionais de saúde que atuavam na clínica do autismo. Esse documento foi intitulado “Recomendações para a boa prática. Autismo e outros transtornos do desenvolvimento: Intervenções educativas e terapêuticas dirigidas a crianças e adolescentes”. Esse documento foi elaborado no decorrer de 2010 e se configura como um dos pontos estratégicos de trabalho da Secretaria dos Deficientes, chamado Plano de autismo 2008-2011, o qual visava lançar novas medidas de tratamento do autismo. A
psicanalista
Geneviève
Haag,
membro
fundador
da
Coordination
internationale de psichothérapeutes e psychanalyste s´occupant de personnes avec autisme (CIPPA), foi convidada para integrar a equipe responsável pela elaboração do documento. Contudo, constatou-se posteriormente que suas sugestões relativas ao tratamento do autismo, fundamentadas na prática psicanalítica e psicomotora, foram desconsideradas na elaboração final do documento. O documento deixava clara a prioridade de condutas cognitivas e comportamentais em detrimento de aspectos psicopatológicos, fato que levou um grupo
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de psicanalistas, coordenados pela própria Geneviève Haag, a propor uma releitura crítica desse material, com o objetivo de evidenciar os aspectos psicodinâmicos da patologia do autismo, que haviam sido ignorados ou desconsiderados no documento. Passamos a indicar agora alguns pontos em relação às condutas de tratamento e intervenções propostas no documento do governo francês, contrapondo-as à leitura psicanalítica proposta pela psicanalista Geneviève Haag, respeitada na França como uma das maiores especialistas em autismo. Primeiramente, quanto à definição de autismo, o documento parte das três grandes classificações oficiais: O CID-10, o DSM-IV e a CFTMEA-R, segundo a Classificação Francesa de Transtornos Mentais da Infância e da Adolescência (revisada em 2000). A respeito dessa última, Haag chama a atenção por eles não considerarem sua versão mais atualizada, feita em 2010, na qual se distinguem as psicoses precoces dos TID. Sobre os dados epistemológicos, é interessante observar, no subitem “patologias/transtornos associados”, que o documento da HAS tende a considerar como o único transtorno importante associado à síndrome autística o distúrbio de sono, com uma prevalência que varia entre 45 a 86%. Geniéve Haag propõe uma leitura inversa e original, ao enfatizar que muitas patologias psiquiátricas têm, na realidade, pontos em comum com os traços específicos do funcionamento da patologia autística, o que, por consequência, abrangeria o leque de transtornos associados ao autismo. Como exemplo, ela enfatiza que os distúrbios de ansiedade, a fobia e os distúrbios da atenção, bem como a síndrome autística apresentam falha no processo de constituição da imagem corporal em decorrência da existência de um eu cindido. Haag enfatiza também a importância de se discutir de que maneira o termo “psicose” é tomado na categoria da nova classificação do espectro autístico, já que ele tende a ser compreendido como uma simples classificação de um autismo atípico, ao passo que, para o referencial psicopatológico, são quadros distintos. A mesma autora destaca as dificuldades de se detectarem distúrbios somáticos nos pacientes autistas, dada a sua incapacidade de manifestarem seus sentimentos em relação à dor por uma via que não seja a da agressividade ou de um fechamento autístico. Quanto ao futuro do paciente autista, Haag destaca a importância de se acompanhar a pessoa com autismo na passagem da adolescência para a vida adulta. Ela lembra que o agravamento do quadro autístico – muito comum nesse período – deve-se
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à força do impacto da puberdade sob os aspectos associados a uma imagem corporal fragilizada e comprometida. E além disso, Haag enfatiza que nesse período do desenvolvimento, se torna mais evidente a dificuldade da evolução dos aspectos associados à reciprocidade social dada a um comprometimento das construções identitárias. Nesse sentido, parece pertinente observar qual seria o impacto do tratamento psicanalítico na evolução desse aspecto na pessoa com autismo, uma vez que constatamos que, apesar de haver uma leve evolução no quadro da socialização das emoções, a sintomatologia presente nas interações sociais pouco se alteram. Quanto ao “ao funcionamento dos pacientes com TID”, Haag sublinha a importância de se acrescentar o testemunho de crianças e adolescentes em seus tratamentos psicoterápicos de cunho psicanalítico, uma vez que serviriam como dados importantes sobre transformações e evoluções das vivências subjetivas desses pacientes. Ainda sobre o funcionamento sensorial, o documento relata que pacientes com autismo apresentam particularidades no que diz respeito à percepção, comprometendo sua capacidade de associar a parte ao todo. Acrescenta ainda que, graças à análise retrospectiva de vídeos de bebês que se tornaram autistas, é possível constatar precocemente traços da patologia do autismo manifestado por um comprometimento anormal da psicomotricidade (hipotonia, distúrbios de expressão facial, posturas de hipoatividade em geral). A respeito dessas constatações, Haag sublinha a falta de referências bibliográficas de trabalhos de cunho psicanalítico que enfatizam o impacto do transtorno da imagem corporal no desencadeamento de certas anomalias. Ela lembra a importância de considerar as expressões motoras como uma representação do eu corporal, sendo este um ponto em comum para o estabelecimento de um diálogo entre as ciências cognitivas, a neurofisiologia e as observações psicodinâmicas. O manual de recomendações cita que o déficit da atenção compartilhada é predominante em crianças com autismo, uma vez que elas não teriam a capacidade de associar a palavra ao objeto e interpretar os gestos de comunicação. No entanto, relatos de tratamento analítico de crianças autistas demonstram que estas têm plena capacidade de desenvolver sua atenção compartilhada quando vivenciam um sentimento de continuidade e de continência como efeito do tratamento analítico. Ainda em relação à função de comunicação, o documento afirma que as crianças autistas teriam uma dificuldade de imitar, o que iria de encontro às novas pesquisas
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sobre o assunto realizadas por J. Nadel, nas quais ele comprova que as imitações espontâneas do tipo precoce não estariam comprometidas nas pessoas com autismo, mas sim, a imitação quando solicitada. Quanto às funções emocionais, é importante ressaltar que o manual apresenta uma leitura simplista e organicista, ao afirmar que distúrbios sociocognitivos de aprendizagem da pessoa com autismo ocorrem graças à hipoativação de zonas cerebrais, associadas à percepção das emoções, as quais estariam comprometidas desde o início da vida e impossibilitam a compreensão das emoções e a capacidade de dividir e harmonizar a percepção emocional do sujeito. Em contrapartida aos trabalhos de abordagem psicodinâmica, como os de Trevarthen (1989) “[...] as relações entre autismo e desenvolvimento sociocultural normal: argumentos em favor de um transtorno primário de uma regulação do desenvolvimento cognitivo pela emoção.”, sublinham que a desregulação emocional seria própria do funcionamento autístico, o que implica associar o autismo “[...] a uma dificuldade de regulação primária, e não, propriamente, a um déficit.”. Trabalhos neurofisiológicos que mostram efetivamente uma hipoativação na relação da troca do olhar e uma hiperativação quanto aos mecanismos de evitação, revelam uma diferença do funcionamento dos circuitos neurológicos entre o sujeito normal e o sujeito autista, reforçando, desse modo, a necessidade de promover um espaço de diálogo entre clínicos de abordagem psicodinâmica, pesquisas cognitivistas e pesquisas em neurofisiologia. Quanto ao processo da avaliação do diagnóstico precoce do autismo, o manual toma em consideração apenas sinais gerais, tais como: ausência ou raridade do sorriso, recusa do olhar, ausência de brincadeiras. Essas observações já estão presentes na caderneta de saúde da criança do sistema de saúde público francês. No entanto, nenhuma observação sobre a pesquisa Preaut (Laznik et al. 1998) é feita. Essa pesquisa de abordagem psicanalítica foi realizada em diversas regiões da França, e toma como um dos sinais importantes do autismo precoce a ausência de trocas jubilatórias entre mãe e bebê, dada uma falha no fechamento do circuito pulsional da criança. Ainda sobre a avaliação diagnóstica, o manual enfatiza que o diagnóstico dos TID e do autismo permanece ainda como de caráter clínico, mas seria importante contar também com o auxílio de certos instrumentos internacionais, por meio dos quais se
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pode chegar a uma precisão diagnóstica da patologia do autismo, tais como o ADI e o ADOS. Embora o documento cite o teste psicomotor de Bullinger, que leva em conta o desenvolvimento psicomotor da criança segundo um viés psicodinâmico, não se menciona a grade de avaliação clínica das etapas da evolução do autismo (HAAG, 1995), nem tampouco, testes projetivos psicodinâmicos, tais como o Rorschach e o Scenotest. Quanto ao programa de inclusão escolar de pessoas com autismo, o manual faz referência à igualdade de direitos quanto ao acesso à saúde, a educação e a vida social e ao campo do trabalho, tal como explicita a lei de 11 de fevereiro de 2005, na qual as crianças autistas, na condição de deficientes, podem usufruir de todos os direitos dos cidadãos comuns. No que concerne às propostas de intervenções, tanto individuais quanto institucionais, com pessoas com autismo, o documento faz referência ao trabalho psicanalítico, embora se constate uma preferência a uma leitura orgânica e educativa. Nesse sentido, percebe-se uma grande incoerência quanto à elaboração do documento final e a sua proposta inicial, pois, segundo a HAS, o objetivo principal da elaboração desse documento era fundamentar diretrizes de base para o tratamento do autismo, independentemente das posições teóricas e ideológicas. E, assim sendo, como explicar que o resultado desse documento científico seja marcado por uma forte inspiração biológica, na qual se explicita claramente a preferência por intervenções de caráter educativo e cognitivo, ao mesmo tempo em que se consideram outras práticas de tratamento como obsoletas? Como enfatiza o psicanalista Claude Bernard (2010), da Universidade de Lyon, esse documento que compõe o Plano do autismo 2008-2011, nada mais é do que o reflexo da psiquiatria atual, sustentada por indústrias farmacêuticas e regida pela lógica econômica dos planos de assistência de saúde, dos quais, se esperam resultados rápidos e eficazes. Bernard acrescenta ainda que esse documento denuncia a maneira como a psicanálise tem sido transmitida à nova geração de profissionais, isto é, como uma ciência ultrapassada e com poucas produções científicas capazes de demonstrar sua eficácia no tratamento do autismo. E Bernard denuncia que a comissão científica do Plano Autismo priorizou, arbitrariamente, bibliografias psiquiátricas recentes (a partir do ano 2000) e apenas
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aquelas de origem anglo-saxônica, as quais se caracterizam, particularmente, por excluírem psiquiatras de orientação psicanalista de seus comitês de leitura, além de rejeitarem publicações de trabalhos atravessados por uma leitura psicanalítica e psicodinâmica. Nesse sentido, todas as observações clínicas profundas, as teorizações e os resultados acumulados durante meio século por psicanalistas de inúmeros países são, indiretamente, ignorados pelos profissionais que fundamentarão seu trabalho segundo as normas sugeridas pelo manual. Enfim, como enfatiza o psicanalista P. Delion, esse documento da HAS responde mais aos interesses políticos e econômicos dos lobistas farmacêuticos do que efetivamente ao interesse das pessoas com autismo. Assim, paralelamente às Recomendações da HAS, o campo do autismo foi palco de novos embates políticos. Lei do deputado Fasquelle Em janeiro de 2012, foi entregue à presidência da Assembleia Nacional Francesa o projeto de lei4 elaborado pelo deputado Daniel Fasquelle. Esse projeto visa ao “[..] impedimento das práticas psicanalíticas no acompanhamento das pessoas autistas, a generalização dos métodos educativos e comportamentais e a realocação de todos os financiamentos existentes para esses métodos.”. Envolvido com a causa do autismo, esse deputado solicitava à assembleia, desde 2008, que o autismo se tornasse causa nacional. Esse pedido foi aprovado pelo Primeiro-Ministro em 2012. Como sustentação dessa proposição, o deputado Fasquelle destaca que a psicanálise já foi abandonada como método de tratamento para o autismo em diversos países anglo-saxões e que é muito pouco referida na grande maioria dos estudos científicos. Em seu texto, ele se apresenta uma leitura particular da proposição da HAS, destacando que ali se leria um aconselhamento ao abandono desse método. No texto do projeto de lei, o deputado apresenta sua indignação ao constatar que, na
França,
as
práticas
psicanalíticas
são
frequentemente
encontradas
nos
estabelecimentos hospitalares e médico-sociais, e que esses serviços são financiados pela segurança social. Aponta o projeto que esse método, além de ser muito custoso para o Estado, não apresenta resultados significativos que justificassem o dispêndio de
4
Cf: http://www.assemblee-nationale.fr/13/propositions/pion4211.asp
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seu elevado custo. O político Thierry Sibieude, assim como Daniel Fasquelle, também é pai de uma criança com autismo, e respondeu com veemência a esse projeto de lei. Sibieude é vicepresidente do Conselho Geral responsável por pessoas com deficiência e aponta, em carta aberta, que muitas das discussões atuais escondem um grande lobby de interesses bem diversos do que aqueles dedicados ao atendimento e ao alívio do sofrimento de crianças com autismo e de suas famílias. Nesta carta,5 Sibieude destaca que, para aumentar as chances de melhora, é desejável que se favoreçam os trabalhos pluridisciplinares, e lembra ainda que o dever dos atores públicos deve ser a vigilância, a pluralidade e a diversidade. “[...] Certamente não é a lei que deve se pronunciar sobre a pertinência ou não de um método, mas sim os experts e cientistas de tal domínio.” Concluindo a carta, o deputado afirma que “[...] ouso afirmar que a exigência dos pais de crianças autistas, seu desejo mais caro, é o poder escolher a melhor solução para seu filho, de compreender o que lhe é proposto para atingir a felicidade de seus filhos.”. Esse projeto de lei não foi aprovado até o momento. Hochmann, em artigo6 publicado no jornal Le Monde, questiona a legitimidade de um projeto de lei interditar um método de investigação. Ele destaca que, de fato, certas linhas da psicanálise têm “[...] atribuído a patologia da criança a um disfuncionamento inconsciente da mãe”. Entretanto, aponta que essa ideia já foi corrigida graças a recomendações da HAS e, nesse sentido, não seria mais necessário um projeto de lei. O filme “Le mur ou la psychanalyse à l'épreuve de l'autisme” (O muro ou a psicanálise à prova do autismo)7 O filme realizado por Sophie Robert, em parceria com a Associação de pais Autisme sans frontières, foi projetado pela primeira vez em Paris, em 7 de setembro de 2011. O filme, que se pretende um documentário, contém diversas entrevistas com psicanalistas franceses renomados, tais como: Bernard Golse, Pierre Delion, Danon Boileau, Alexandre Stevens e Genevieve Loison, dentre outros, em relação a pesquisas 5
Cf: http://www.thierry-sibieude.com/article-lettre-au-depute-daniel-fasquelle-a-l-issue-des-journeesparlementaires-de-l-autisme-le-12-janvier-99321232.html. 6 http://www.lemonde.fr/m_helene_hochmann. 7 http://www.youtube.com/watch?v=-yXGnPL39IA.
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e tratamentos do autismo. No filme, as entrevistas são entremeadas por depoimentos de pais e de crianças autistas que descrevem e legitimam a ineficácia da psicanálise em comparação aos resultados tangíveis e rápidos dos métodos cognitivo-comportamentais. Os discursos dos entrevistados são cortados, e misturados com narrativas de Sophie Robert que interpreta, segundo seu ponto de vista, o que escolhe apresentar de cada depoimento. A ênfase é atribuir a culpa aos pais e ao necessário distanciamento desses, para que o tratamento se efetive. Desse modo, a edição do filme demonstra claramente um posicionamento militante da realizadora, que pretende comprovar a ineficácia do método psicanalítico e o perigo que a França estaria correndo, já que 80% dos psiquiatras da infância são psicanalistas. As repercussões foram imediatas e de grande impacto. Associações de pais se reuniram e juntaram esforços para divulgar amplamente o filme, não apenas na França, mas, também, no exterior. Os psicanalistas entrevistados, por sua vez, entraram na justiça contra Sophie Robert, alegando que seus depoimentos haviam sido deturpados em seu propósito após os cortes, e exigindo que o material fosse confiscado. Após meses de tramitação, Sophie Robert é condenada e a exibição do filme é proibida em território francês. Além dessa posição legal, alguns dos psicanalistas entrevistados apresentaram respostas em um dossiê da CIPPA, intitulado “Alerte aux méconnaissances concernant la psychanalyse et l'autisme”8 (Alerta aos mal-entendidos referentes à psicanálise e ao autismo). Golse, Delion e Dannon-Boileau (2011) relatam como a edição do documentário
e
os
cortes
realizados
pela
realizadora
nas
entrevistas
de
aproximadamente duas horas que eles realizaram modificaram radicalmente o conteúdo de seus depoimentos, tendo como resultado um filme incompreensível e ridicularizador da psicanálise. Todos referem terem sido cortadas partes dos depoimentos em que eles declaravam a importância da multidisciplinaridade no trato do autismo, enfatizando ser fundamental a integração de métodos educativos, pedagógicos e terapêuticos, para que um tratamento seja realmente efetivo. A respeito desse episódio, Golse alerta para um fenômeno que ele nomeia “contaminação do autismo”. Segundo ele, é como se os profissionais passassem a
8
http://old.psynem.org/Cippa/Ressources/cippa.pdf.
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funcionar de modo autístico, fechando-se para outras abordagens do fenômeno, o que pode levá-los ao fracasso, pois para o autor, qualquer método único para a abordagem do autismo é ineficiente. As crianças com autismo têm dificuldades em generalizar os aprendizados, em fazer sínteses das diversas percepções sensoriais e, diante desse quadro, tal clivagem de conhecimentos só pode prejudicar. Respostas dos psicanalistas aos ataques Diante das deliberações do governo francês e do ataque constante da mídia à psicanálise e a seu método aplicado no tratamento do autismo, psicanalistas começam a expor seus posicionamentos. Dentre esses, está Jacques Hochmann, que publica cartas nas quais dialoga com a interdição proposta e faz um levantamento de possíveis razões para essa onda sistemática de ataques. Partindo da concepção de que o diagnóstico do autismo caracteriza-se como um consenso internacional que agrupa sintomas – como isolamento social, particularidades da comunicação e interesses restritos e estereotipados –, Hochmann discute a importância e a influência de cada método de investigação na construção de tal diagnóstico. A amplidão dessa categoria nosológica torna difícil detectá-lo, e permite que o diagnóstico varie muito a depender do profissional envolvido. Portanto, a assistência à pessoa com autismo é fortemente atravessada por diversos fatores e influências. Nesse contexto, assistimos ao crescimento da rivalidade entre abordagens teóricas e métodos que, partindo de visões bastante distintas do fenômeno sobre o qual se debruçam, tentam revogar para si a detenção da verdade. O aumento da valorização popular das técnicas cognitivo-comportamentais na França e os consequentes ataques à psicanálise devem ser analisados, segundo Hochmann, levando em conta fatores econômicos e sociais. Dentre os fatores econômicos, ele destaca o fortalecimento do poder das indústrias farmacêuticas e a mudança da política de seguros de saúde. Tais setores têm grande poder político na sociedade francesa e valorizam resultados rápidos e visíveis, o que vai ao encontro dos valores da cultura contemporânea. Assim, a consequência é o favorecimento
de
tratamentos
educativos
que
promovem
modificações
no
comportamento em curto prazo. Além disso, Hochmann destaca que a angústia vivida pelas famílias é amenizada no momento em que o diagnóstico é dado. A partir de então,
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a família sente-se reconhecida em seu sofrimento e, de certa forma, compensada pela classificação do autismo como uma deficiência. Vale também salientar que as técnicas cognitivo-comportamentais incluem uma participação ativa dos pais, que admitem uma função fundamental no tratamento. Eles aprendem métodos educativos a serem aplicados com seus filhos com o intuito de reforçar comportamentos desejáveis e eliminar os indesejáveis. Dessa maneira, os critérios
diagnósticos
foram
crescendo
e
o
número
de
casos
aumentou
consideravelmente. Conforme Hochmann (2009) “[...] os primeiros estudos epidemiológicos estimavam a prevalência do autismo infantil puro, tal como Kanner descrevera, em menos de 5 casos em 10 mil (0,0005%). Atualmente, a associação americana coloca perto de 10 casos por 1000 (0,01%) (ou seja uma multiplicação por vinte).”. O autor propõe que tal inflação do número de crianças com diagnóstico de autismo seja analisada criticamente. Tendo em vista a fragilidade da construção de um diagnóstico de autismo por parte dos profissionais envolvidos na assistência, não seria mais eficaz incentivar a pluralidade de teorias, métodos de investigação, pesquisas e tratamentos? Não seria esse o momento de incentivar a troca e o diálogo entre os saberes com o intuito de aprimorálos? “[...] Como desde já impor um pedestal de conhecimentos único para compreensão de um fenômeno cuja frequência varia de um a dez, a depender do observador?” (HOCHMANN, 2010). Em resposta a diversos desses acontecimentos, em 2005, é criada a Coordenação internacional de psicoterapeutas e psicanalistas que se ocupam de pessoas com autismo9 (CIPPA), por Genevieve Haag e Dominque Amy. Em 2010, essa associação se abre para que outros membros – como médicos, psiquiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, dentre outros – que se ocupam de autismo possam se tornar membros associados. Em suas diretrizes, têm-se como objetivos a partilha e a troca entre seus membros em relação às pesquisas sobre suas práticas e avaliações destas; articulação entre psicanalistas e outros profissionais implicados nos cuidados das pessoas autistas; reflexão sobre as melhores maneiras de ajudar as famílias das crianças com autismo, instalando entre elas e os profissionais uma parceria; e ligações com os outros domínios
9
http://www.psynem.org/Hebergement/Cippa.
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científicos relacionados ao autismo. Roudinesco, em artigo publicado no jornal Liberation,10 levanta alguns pontos sobre essa grande discussão em torno do autismo e da psicanálise, lembrando que, enquanto cada grupo se pense como sendo o único a ter uma solução milagrosa para o autismo, não haverá discussão possível. Entretanto, em vez de colocar a psicanálise como vítima dessa história, Roudinesco destaca que, de tanto se fechar sobre si mesmos, os psicanalistas viraram os principais inimigos da psicanálise. Acreditamos que os acontecimentos na França podem servir para levantar diversas questões. Para além de nós, os psicanalistas, nos considerarmos como vítimas, não seria interessante refletirmos um pouco sobre a nossa história? Não seria o momento de pensarmos nas aberturas necessárias? O que o autista, com seu fechamento, pode nos ensinar sobre o caminho que devemos seguir? As polêmicas que ocorreram nesses últimos anos na França, e que convoca um novo posicionamento dos psicanalistas, se assemelham muito a diversos acontecimentos aqui do Brasil. A idéia deste texto é a de que, assim como fizeram os nossos colegas do velho mundo, possamos não só nos colocarmos de modo defensivo a esses ataques, e nem tampouco de modo ofensivo, mas que possamos questionar a nossa prática. Participantes e colaboradores diretos do texto: Gabriela de Araujo11, Leny Magalhães Mrech12,
Camila Saboia13, Thais Siqueira14, Monica Nezan15, Rosana Alves Costa16,
Erika Parlato-Oliveira17, Maria Lacombe Pires18 e Maria Bernadete Soares19
10
http://www.liberation.fr/societe/01012386622-autisme-la-psychanalyse-en-proces.
11 Psicanalista, doutoranda da Université Paris VII em cotutela com o Instituto de Psicologia da USP. Membro do Preaut-Brasil.
[email protected] 12 Professora Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Psicóloga, psicanalista e socióloga. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da FEUSP, Coordenadora da área de Pós-Graduação de Psicologia e Educação da FEUSP e Vice-chefe do Departamento de Metodologia e Educação Comparada da FEUSP, membro do Conselho da Escola Brasileira de Psicanálise. 13 Psicóloga, psicanalista, Doutora pela Université Paris VII, Pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Lugar de Vida- Centro de Educação Terapêutica. 14 Psicóloga do PECP (Programa Einstein na Comunidade Paraisópolis) do HIAE (Hospital Israelita Albert Einstein) e Acompanhante Terapêutica da Equipe HIATO de Acompanhamento Terapêutico. 15 Psicanalista, com Master Profissional de Psicologia e Psicopatologia Clínica na Universidade René Descartes - Sorbonne, Paris; especialista em "Tratamento e Escolarização de Crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento" pela Pré- Escola Terapêutica Lugar de Vida do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP (2000); membro do Lugar de Vida- Centro de Educação Terapêutica. 16 Doutora em psicologia clínica pela UNIVERSITÉ PARIS DESCARTES, psicóloga do CRIA-Centro de Referencia da Infância e Adolescência e professora de psicologia médica do departamento de psiquiatria da UNIFESP- Universidade Federal de São Paulo. 17 Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolinguística pelo LSCP-Paris. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-doutoranda no Departamento de Psiquiatria Infantil do Groupe Hopitalier Pitié-Salpetrière-Université Pierre et Marie Curie - Paris. Co-coordenadora Nacional do PREAUT-Brasil. 18 Psicanalista, mestre pela Université Paris VII. 19 Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro da CLIPP - Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise, Mestre em Filosofia – Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCAR
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Referências Bibliográficas AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012. Opção Lacaniana no. 9. GOLSE, B. ; DELION, P. (Dir.) Autisme: État des lieux et horizons. Paris : Ed. Érès, 2005. HAGG, G. Autisme: Trois psys répondent aux accusations du film «Le Mur». Disponível em
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 7 – Metodologia psicanalítica
A metodologia psicanalítica no tratamento do autismo
Palavras-chave:
autismo,
psicanálise,
detecção
precoce,
brincar,
jogos
constituintes.
Resumo: o presente artigo aborda as contribuições da psicanálise ao tratamento de pessoas com autismo; descreve os passos centrais na direção do tratamento do autismo e seus critérios diagnósticos; destaca a importância do brincar nessa clínica por meio dos jogos constituintes do sujeito, e aponta ainda para a importância da detecção, intervenção precoce e interdisciplinaridade no tratamento.
Em relação ao autismo existiram, ao longo do tempo, e coexistem, diversos critérios classificatórios dentro da psicopatologia, quer na psiquiátrica, quer na psicanalítica. Mas todos esses critérios concordam em que se trata de um quadro no qual há dificuldades no reconhecimento entre a pessoa com autismo e seu semelhante, a partir do qual o autismo aparece em suas expressões mais típicas, tais como as descritas por Kanner20, e, de modo extenso, em configurações que convergem com outros quadros, configurando o que atualmente se denomina como “espectro do autismo”. No comparecimento inicial desse quadro é possível verificar clinicamente que o bebê ou pequena criança realiza uma exclusão ativa dos outros de seu circuito de satisfação, mesmo daquelas pessoas mais implicadas em seus cuidados. Essa exclusão ativa costuma ser precedida por uma baixa responsividade aos outros (o que indica dificuldades precoces na constituição do bebê, que não são exclusivas desse quadro). Posteriormente, começam a comparecer dificuldades na aquisição da linguagem e na 20
Kanner, L. Autistic disturbances of affective contact. The Nervous Child. 2, 1943.
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produção simbólica, tais como brincar de faz de conta e participar dos hábitos da cultura. Em lugar dessas produções e pela ausência das mesmas surgem estereotipias que privilegiam uma autoestimulação sensorial. A complexidade desse quadro exigiu que as pesquisas e intervenções nesse campo não pudessem ser reduzidas a uma única área do conhecimento, tornando necessária sua articulação. Por isso a psicanálise não intervém nem avança no conhecimento sobre o autismo de modo isolado e, portanto, a interdisciplinaridade é um dos princípios que fazem parte da metodologia dos psicanalistas ao tratar de pacientes com quadros de autismo. Isto é necessário dado que, com grande frequência, o autismo aparece associado a outros problemas que tornam imprescindível uma intervenção conjunta. Nas diversas pesquisas médicas realizadas por geneticistas, neurologistas e psiquiatras encontram-se correlações entre a incidência de autismo e algumas patologias orgânicas, mas não uma única causa que possibilite centrar seu diagnóstico em exames orgânicos ou seu tratamento em uma solução medicamentosa. Se desde o aspecto orgânico esse é o atual estado das coisas, há consenso sobre o benefício produzido por tratamentos que intervenham na relação da pessoa com autismo com os outros, possibilitando que suas produções possam ocorrer em uma circulação familiar, escolar, social e cultural. Nesse sentido, a psicanálise produz sua contribuição ao intervir seguindo passo a passo o caminho que torna possível a constituição psíquica, e assim também procede com pacientes que nele tropeçam devido a patologias orgânicas.21 Dessa articulação do conhecimento decorre que algumas das principais descobertas das neurociências e da psicanálise sejam confluentes: a linguagem incide decisivamente em nossa constituição, e a possibilidade de representar, na linguagem, o que nos afeta no corpo, é o que nos tira de produções puramente reflexas e automáticas, desde os primórdios da vida. Por isso é central que possamos interrogar: o que afeta, o que comove singularmente esse paciente? Para onde se dirige seu olhar? Qual som se repete em sua vocalização? O que o detém ou o lança em seu movimento? Uma vez localizadas 21
Veja-se a esse respeito todo o amplo trabalho da psicanálise com crianças que apresentam quadros genéticos, deficiências sensoriais ou lesões cerebrais.
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essas preferências o clínico busca possibilitar a passagem entre esse fragmento perceptivo, no qual a pessoa com autismo se fixa, e a possibilidade de extensão dessa produção que lhe permita compartilhar com os outros. Para aqueles que partem de uma concepção psicanalítica22 o sintoma não é uma falha a ser suprimida e sim uma resposta do paciente, por isso partimos desse sintoma para a intervenção, propiciando, por meio do tratamento, um contexto em que novas respostas possam advir. Ao mesmo tempo em que os sintomas são reconhecidos e respeitados como uma produção do paciente, eles podem assumir, ao longo do tratamento, um caráter transitório, não enclausurando necessariamente alguém a um quadro psicopatológico, fixando nele a sua identidade. Embora se verifique uma relativa uniformidade dos automatismos originários presentes no autismo, não são todas iguais, as preferências ou pequenos interesses despertados para cada pessoa com autismo. Reconhecer essas preferências como aberturas da subjetivação é central para que possamos estendê-las. Conhecer os passos da constituição psíquica permite detectar dificuldades nesse caminho. Este é um conhecimento produzido por psicanalistas que trabalham na clínica interdisciplinar com bebês e pequenas crianças. Compartilhar e transmitir esses critérios de detecção precoce de sofrimento psíquico com profissionais que intervêm com toda e qualquer criança (tais como pediatras, agentes de saúde e educadores), tem possibilitado nas últimas décadas que pacientes com dificuldades cheguem com menor idade a tratamento e, portanto, em um tempo em que tais dificuldades estão menos fixadas e mais permeáveis à intervenção. A infância, desde o ponto de vista da maturação, se caracteriza pela extrema plasticidade neuronal23, descoberta da neurobiologia, reveladora de que a formação da rede neuronal depende da experiência de vida e que, com sua plasticidade, é suscetível a inscrições dessas experiências.24 Desde o ponto de vista da constituição
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Com isso denotamos que, além da intervenção do psicanalista em si, é preciso considerar a concepção psicanalítica como corte epistemológico considerado por outras áreas de intervenção em sua práxis, tais como pedagogia, psicopedagogia, fonoaudiologia, psicomotricidade, terapia ocupacional. Sublinha-se aí o paradigma psicanalítico como um corte epistemológico de referência para a intervenção em outras áreas e não só a intervenção do psicanalista em si. 23 Kandel, E.R., Shuartz, J.H., Jessell, T.M. (1995). Essentials of Neural Science and Behavior, Appeton & Lange, Prentice Hall International (UK) Limited, London. 24 Ansermet, F. e Magistretti, A. A cada uno su cerebro: plasticidad neuronal e inconsciente - 1a ed. Buenos Aires : Katz, 2006.
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psíquica, Freud já afirmava que temos bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que na infância.25 Aí, mais uma vez, as descobertas da clínica psicanalítica coincidem com as das neurociências, que apontam, por meio desses conceitos, que nem tudo está decidido em nosso organismo quando nascemos e que os processos epigenéticos, as experiências de vida, têm nisso um papel decisivo. Por isso, a idade em que uma intervenção ocorre conta, e é preciso intervir a tempo quando algo não vai bem sem precisar esperar a plena configuração de um quadro psicopatológico para proceder com um tratamento. Ao nascer, todos contamos com os elementos de uma história familiar e com uma herança genética já estabelecidas. Porém ainda não está dado de antemão como o sujeito vai se posicionar a partir dessas estruturas orgânicas e simbólicas. Diante disso, algumas vertentes da psicanálise sublinham que, na infância, a estrutura psíquica do sujeito não está decidida, testemunhando experiências clínicas com crianças e bebês que chegam com quadros de autismo ou outros quadros diagnosticados e que, ao longo do tratamento e por efeito deste, apresentam mudanças de rumo nessa constituição em andamento, não realizando um desfecho patológico. Outras vertentes da psicanálise sublinham que, em função do tratamento, o que se realiza é uma importante modulação nas construções de sentido, no modo de o paciente estruturar-se em sua constituição psíquica e de situar-se na vida.26 É preciso, nesse sentido, advertir que as classificações psicopatológicas partem de um princípio adultomorfo, do já constituído, que não é aplicável à infância de modo geral e menos ainda ao tempo dos bebês. Realizar uma aposta na constituição do sujeito é central na metodologia psicanalítica. Por isso, invés de por em primeiro lugar o diagnóstico, é preciso destacar a condição da infância como um tempo de abertura a inscrições. 25
Freud, S. (1905). Os três ensaios, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago. Acerca desse importante debate dentro da psicanálise apontamos as contribuições de: Bernardino, L.M.F. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. In: Psicose – Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 9. Porto Alegre: Artes e Ofícios, novembro de 1993, p. 62-73; Laurent, É. O que os autistas nos ensinam. In: Murta, A (org). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum Editora, 2012; França, M.T.B. e Haudenschild, T.R.L. (Orgs.). (2009). Constituição da vida psíquica. São Paulo: Hirondel Editora; Barros, I.G. (2011) Autismo e Psicanálise no Brasil : História e desenvolvimentos. In Schwartzman J.S. e Araújo, C. A. (Orgs)Transtornos do Espectro do Autismo. Pp. 27 –36. São Paulo: Memnon. 26
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Na metodologia psicanalítica com crianças, utilizamos em nossas avaliações alguns eixos centrais27: 1- Brincar e estatuto da fantasia 2- Corpo e imagem corporal 3- Fala e posição na linguagem 4- Reconhecimento das regras e posição diante da lei Há produções que são próprias do sujeito na infância e, portanto, centrais na intervenção e avaliação psicanalítica. É considerando esses critérios que também se produz a detecção e intervenção com crianças e bebês com autismo. Desde a concepção psicanalítica, é fundamental na formação do clínico conhecer os diferentes momentos lógicos que fazem parte da constituição psíquica ao longo da infância e o modo como eles comparecem, são dados a ver, em suas diferentes produções de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem postas em cena em sua relação com os outros. É por conhecer os diferentes momentos lógicos que o psicanalista intervém, podendo ir buscar a criança/bebê ali onde ele está, sem que seja preciso, para tratá-lo, introduzir um artificialismo técnico descontextualizado da vida do paciente. Se hoje em dia se sabe que a constituição depende de processos epigenéticos, não estando estabelecida apenas pela genética, nesses processos, a transmissão simbólica ocupa um lugar decisivo, e os pais são protagonistas dessa transmissão, pois eles detêm um saber consciente e inconsciente sobre o filho, no qual se sustenta a singularidade do mesmo, mais além de qualquer diagnóstico. A possibilidade de, junto ao psicanalista que o atende, desdobrar este saber em questões, reflexões, preocupações produzidas a partir das experiências cotidianas vividas com o filho é decisiva para as transformações que podem advir ao longo do tratamento. Há problemas orgânicos de base que podem fazer com que um bebê apresente, no início da vida, uma menor responsividade às convocatórias dos outros; em outros casos há acontecimentos de vida que dificultam o estabelecimento da relação 27
A partir da pesquisa IRDI e da pesquisa AP3, na qual se realizou posterior avaliação das crianças que fizeram parte da pesquisa de IRDI -indicadores precoces de risco para o desenvolvimento infantil-, esses tradicionais eixos de avaliação da clínica psicanalítica com crianças foram formalizados e validados como pesquisa acadêmica, considerando como nessas produções comparecem operações centrais da constituição psíquica: suposição de sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença-ausência e função paterna. (Kupfer, A. Jerusalinsky, Rocha, Infante ET ali, 2009).
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primordial dos pais com o bebê. O fato é que a psicanálise não centra a sua intervenção em decorrência desses fatores etiológicos (em uma falsa questão de divisão orgânico-psíquica). Ao tratarmos de um bebê/criança com comprovados problemas orgânicos de base, ou sem patologias orgânicas detectadas, a aposta do clínico é a mesma: supomos que há ali um sujeito e buscamos seus traços de interesse, pois tratamos do que pode vir a fazer com o organismo que tem. Os pais fazem parte dessa aposta ao levar o filho a tratamento. E, portanto, a intervenção não consiste nem em culpá-los28, nem em desculpabilizá-los pelas dificuldades que comparecem. Acima de tudo eles estão intrinsecamente implicados nos cuidados do filho pela sua condição de pais e, por isso, podem contar com a interlocução do psicanalista, ora fazendo parte das sessões da criança (testemunhando o trabalho que vai sendo realizado e participando dele); ora em sessões em que elaboram situações em relação ao filho com o psicanalista que o atende, a fim de, junto com este, poderem ir reconhecendo limites e possibilidades que a criança coloca em sua produção e em seu modo de situar-se com os outros. A práxis da clínica psicanalítica permitiu, ao longo do tempo, ir reconhecendo certos passos chaves na direção do tratamento de bebês e crianças que apresentam uma exclusão dos outros de seu campo29. Iremos referir-nos aqui à intervenção diante do autismo nesta manifestação mais específica de exclusão dos outros de seu campo com o estabelecimento de estereotipias e forte empobrecimento da linguagem ou total ausência da mesma, pois se bem o conceito de “espectro autístico” tenha criado uma categoria vasta em sua abrangência, tornou-a, em certa medida, inespecífica, o que faz com que seja impossível unificar todos os critérios terapêuticos relativos aos diferentes quadros que o “espectro autístico” passou a comportar, já que cada um deles apresenta pontos de intervenção específicos (no que se refere aos nomeados como “autismo de alta performance”, “Síndrome de Asperger”, entre outras formas). Explicitamos a seguir esses passos chaves na direção do tratamento: 28
Cabe apontar que aqueles que acusam a psicanálise de culpar os pais pelas dificuldades do filho, servindo-se de chavões, tais como os de “mãe geladeira”, que há muito caíram em desuso, estão em um discurso anacrônico que ignora os avanços da prática psicanalítica nesse campo. O próprio autor desse termo, Bruno Bettelheim, em 1953, no livro “Fugitivos da Vida”, retratou-se e considerou sua hipótese inicial equivocada e, a partir de então, ele mesmo deixou de usá-lo. 29 Jerusalinsky, A. Considerações preliminares a todo tratamento possível do autismo. Psicologia Argumento. Curitiba V.28, n.61: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, jun.2010, p. 121-125.
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1- Reconhecer os automatismos da criança para poder começar a fazer parte deles, ou seja, partimos de suas estereotipias e não de uma oposição ou supressão das mesmas. Buscamos ativamente começar a fazer parte dessas repetições fragmentárias, para que o paciente nos permita aí entrar pelo gesto, olhar, voz, musicalidade, movimento ou endereçamento corporal. Isto porque a exclusão do outro que a criança faz não é um superficial problema de comportamento a ser corrigido. É uma profunda resposta que se produziu, é uma forma de estar no mundo. Por isso não se pode suprimir essa resposta antes que se constituam para ela (em tratamento) outras formas possíveis de estar com os demais. 2- Reconhecer e sustentar as aberturas apresentadas pelo paciente que se oferecem como permeabilidade à relação com os outros em meio às estereotipias. Trata-se de ir em busca daquilo que desperta o seu interesse estendendo, alargando, a partir deles, as aberturas nas quais o paciente não realiza uma exclusão dos outros de seu campo. Apresenta-se aí o surgimento de uma atenção conjunta em torno do objeto de interesse. 3- Por meio desses dois primeiros aspectos sustenta-se um efeito de identificação. É preciso dar lugar a uma identificação do outro com a criança (rompendo o estranhamento que as estereotipias costumam causar, ou a desistência dos investimentos diante da resposta de exclusão do outro de seu circuito) a fim de possibilitar um campo em que a criança possa entrar nessa identificação. Ou seja, trata-se de ir buscá-la onde ela está procurando fazer parte de sua produção. Esses efeitos de identificação são claros quando a criança, em lugar de prestar atenção no automatismo, passa a interessar-se mais pela descontinuidade que o clínico introduziu ali, por exemplo, uma alteração de ritmo na brincadeira. Isso revela que se abriu a brecha para que o outro faça parte de seu circuito. 4- Possibilitar, a partir de tais aberturas, a produção de jogos constituintes do sujeito, para que seja possível compartilhar com o outro pequenas cenas de brincar, em que há um endereçamento e convocatória entre outro-criança, com o olhar, voz, ritmicidade corporal, musicalidade, jogos gestuais.
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A partir dessas pequenas brincadeiras primordiais, que inicialmente comparecem como pequenas cenas, a criança pode ir estendendo seu percurso de satisfação do movimento estereotipado a cenas um pouco mais extensas em que compartilha com o outro a expectativa e a satisfação lúdica, começando não só a se sentir convocada, mas também a demandar, solicitar, propor a retomada desses jogos àqueles com os quais os compartilha. Começam assim a comparecer turnos na produção que revelam o interesse de fazer com o outro e não só na repetição da cena em si. 5- O estabelecimento desses jogos permite introduzir alternâncias presença-ausência, dentro-fora, aqui-lá. Esses jogos comportam a matriz fundamental da linguagem e da representação pela qual pode se falar do que está ausente e festejar o seu retorno (como no jogo do “Cadê? Achou!”) Por meio dessa alternância o espaço deixa de ser contínuo e o tempo se experimenta em uma tensão temporal entre a expectativa e a precipitação (como no jogo do “um, dois, três e já!”). A criança passa a sustentar-se e em uma série simbólica que lhe possibilita representar-se mesmo diante da ruptura da continuidade, não precisando fixar-se no continuum das estereotipias sem fim. 6- Em sexto lugar, a partir desses jogos trata-se de produzir uma extensão das cenas do brincar que passa a desdobrar-se em uma sequência em lugar de apresentar-se como a repetição fragmentária da estereotipia. Os jogos de litoral, os jogos de borda, os jogos de superfície, os jogos de lançar para que outro recupere, os jogos de temporalidade intersubjetiva30 são formas de brincar que uma criança não realiza sozinha (diferentemente do jogo simbólico nos quais já faz uma retomada do que lhe foi transmitido). Esses são jogos que, para se produzirem, precisam ser sustentados na relação com o outro, não ocorrem primeiramente com brinquedos e sim com a voz, olhar, gesto, corpo do outro e da criança implicando um prazer compartilhado. Mesmo que ali haja esses objetosbrinquedos eles não são o aspecto central da cena, e sim o compartilhar. Tais jogos são fundamentais para toda e qualquer criança, pois possibilitam uma incidência, uma articulação, entre as percepções que afetam o corpo e a 30
Esses jogos, assim denominados por diferentes autores da clínica psicanalítica com crianças. Esses jogos constituintes do sujeito são precursores do jogo do Fort-da descrito por Freud e logicamente necessários para que o Fort-da possa vir a se produzir. Freud (1920). Além do Princípio do Prazer, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago.
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linguagem. Por isso eles também se tornam decisivos na metodologia de intervenção com bebês e crianças que apresentam quadros de autismo na aposta de sua constituição.31 Por isso a intervenção não consiste nem em um silêncio que espera, nem tampouco em uma massa de palavras dirigidas à criança, mas em uma extrema delicadeza do clínico para não ser invasivo e, ao mesmo tempo, ser bastante atento, disponível e preciso em sua intervenção para localizar, sustentar e produzir as pequenas brechas iniciais de abertura à relação com o outro pelo qual a criança pode vir a servir-se da linguagem para nela se representar. Por isso, a intervenção toma como referência esses passos chaves na direção do tratamento da clínica com o autismo, procedendo com os mesmos de modo profundamente singular, considerando os tempos e partindo dos interesses de cada paciente. Diante de manifestações bastante avançadas do quadro, e em idades mais tardias, a direção do tratamento também apóia-se naquilo que o autista pode colocar em cena de mais singular. O método, por sua vez, pode sofrer variações, levantando a necessidade de lançar mão de intervenções que lhe permitam, ao menos, alguma adaptação, tais como: a oferta de códigos de referência para o paciente, estabelecendo-lhes
rotinas
organizadoras
para
defender-se
de
angústias
avassaladoras, emprestando-lhe signos que lhe permitam minimamente posicionar-se diante dos demais. Mas, partir desse princípio terapêutico em épocas precoces da vida, quando a construção psíquica ainda está ocorrendo ou está em seus tenros primórdios, é não dar ao menos uma chance a essa constituição. Ainda que nem sempre ela venha a ser possível não há por que, de início, descartar essa aposta.
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Jerusalinsky, J. Jogos de litoral na direção do tratamento de crianças em estados autísticos. In: Revista da APC, n.22, Curitiba, 2011, p. 77-89.
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Participantes e colaboradores diretos do texto: Julieta Jerusalinsky (NEPPC/SP; APPOA/RS; Centro Lydia Coriat - Clinica Interdisciplinar da infância e adolescência/RS; Clinica Interdisciplinar Mauro Spinelli/SP); Alfredo Jerusalinsky (APPOA/RS; ALI; Centro Lydia Coriat – clínica interdisciplinar da infância e da adolescência/RS e BsAs); Alicia Lisondo (GEP-Campinas/ SBPSP); Ana Beatriz Freire (UFRJ); Claudia Mascarenhas (Espaço Moebius; Instituto Viva Infância/BA); Daniela Teperman (NEPPC/SP); Heloisa Prado Telles (EBPSP); Ilana Katz (NEPPC/SP); Luciana Pires (IPUSP); Maria Prisce Cleto Telles Chaves (ABENEPI/RJ); Mariangela Mendes de Almeida (SBPSP/UNIFESP); Patricia Cardoso de Mello (SBPSP e IFA/ SP); Paula Pimenta (EBP/MG).
Bibliografia:
- Ansermet, F. e Magistretti, A. A cada uno su cerebro: plasticidad neuronal e inconsciente - 1a ed. - Buenos Aires : Katz, 2006. - Barros, I.G. (2011) Autismo e Psicanálise no Brasil : História e desenvolvimentos. In Schwartzman J.S. e Araújo, C. A. (Orgs).Transtornos do Espectro do Autismo. Pp. 27 – 36. São Paulo: Memnon - Barros, M. R. R. A questão do autismo. In: Murta, A (org). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum Editora, 2012. - Bernardino, L. M.F. Mais Além do Autismo: a psicose infantil e seu não lugar na nosografia psiquiátrica. Psicologia Argumento. Curitiba V.28, n.61: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, jun.2010. - ______________. A questão da psicose na infância, seu diagnóstico e tratamento diante do seu “desaparecimento” da atual nosografia. In: Jerusalinsky, A., Fendrick, S. O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Via Lettera, 2011. - Fernandes, C. M. O analista e o autista. In: Revista da APC, n.22, Curitiba, 2011. - França, M.T.B; Haudenschild, T.R.L. (Orgs.).(2009). Constituição da vida psíquica. São Paulo: Hirondel Editora; - Freud, S. (1905). Os três ensaios, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago. - ______. (1920). Além do princípio do prazer, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago.
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 8 – Trabalho interdisciplinar
A PSICANÁLISE NO TRATAMENTO INTERDISCIPLINAR DO AUTISMO
O tratamento interdisciplinar teve seu início na clínica com a infância e, sobretudo, no atendimento de crianças com problemas no desenvolvimento, posto que os impasses decorrentes dessas questões interrogavam e convocavam diferentes especialidades. A revolução científica do século XVIII, baseada nos ideais da modernidade que propunha sistemas explicativos e descritivos, promoveu a grande proliferação de disciplinas que conhecemos atualmente. A organização da produção do conhecimento por áreas possibilitou o aprofundamento nos estudos de determinados aspectos do objeto de cada disciplina, respondendo, em certa medida, ao ideal de ciência do século XX pautado nos princípios de ordem, separação e redução. Tais princípios, porém, levaram a uma fragmentação do conhecimento, gerando alguns impasses para o clínico que se ocupa dos problemas da infância. Afinal, por quantos especialistas deve passar uma criança que apresenta problemas em seu desenvolvimento? E quantos tratamentos simultâneos devem ser empreendidos quando se busca tratar, área por área, todos os aspectos implicados no desenvolvimento e na constituição da criança? Nesse contexto, gerou-se a hipótese de que a adição de conhecimentos e, por consequência, de intervenções nos problemas do desenvolvimento contribuiria para melhores resultados no tratamento. Em casos de grande complexidade, em que diferentes funções apresentam-se afetadas (motoras, sensoriais, neurológicas, cognitivas etc.), essa suposição foi ainda mais evidente. Assim, configurou-se a chamada multidisciplinaridade, um mosaico de múltiplas intervenções, somando-se área por área que, ao contrário da totalização a que se propõe, acaba conduzindo a uma infinita fragmentação do sujeito em questão.
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Este tipo de tratamento, recortado por áreas, coloca o risco de se compor um pensamento tautológico em que cada intervenção corresponda à lógica de pensamento do seu objeto de estudo, reduzindo a clínica ao campo de verificações segmentárias para comprovar não a melhora de cada paciente, mas a eficácia da técnica aplicada. O dilema passou a ser: quantos terapeutas para cada criança? Outra proposta é que se conceba o atendimento de crianças com graves comprometimentos no âmbito de um trabalho interdisciplinar que implica a renúncia ao ideal de totalidade e à ideia de que a soma de parcialidades se integra em uma totalização. Ou seja, essa modalidade de tratamento não se apoia em uma complementação de conhecimentos que visa a um saber total e único sobre a criança. A perspectiva interdisciplinar ultrapassa a composição e somatória das intervenções e, por isso mesmo, ela não é apenas uma nova forma de nomear um tratamento que se compõe por várias especialidades, mas sim, uma prática que possibilita e conduz à elaboração de critérios clínicos comuns que atravessam as diferentes disciplinas implicadas na intervenção. A interdisciplina balizada pelos referenciais da psicanálise aponta, antes de tudo, para uma ética na direção do tratamento. Essa ética é sustentada por dois pilares fundamentais: primeiro, que nenhum saber é total e, segundo, que a criança deve ser considerada como sujeito desde o seu início de vida. Em relação ao primeiro, cabe lembrar que nenhuma intervenção isolada poderia dar conta da complexidade que os casos apresentam, e que, a compreensão a respeito da etiologia, dos sintomas e do tratamento não podem ser uma verdade única. Ao mesmo tempo, vale lembrar que considerar a prática entre vários não equivale a cair em um ecletismo ou sincretismo, tampouco em um amálgama de concepções heterogêneas. Trata-se aqui de uma questão epistemológica. Cabe aos profissionais reconhecer a legitimidade de outros campos do conhecimento que não coincidem com os seus, os pontos de cruzamento e os vetores que caminham em uma mesma direção, embora não haja superposição strictu senso. Dessa maneira, considerando a complexidade de quadros como o autismo, torna-se imprescindível que a intervenção seja uma prática interdisciplinar, na
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qual uma equipe de profissionais possa desdobrar, de modo conjunto, os impasses colocados pelo seu tratamento. Nesse sentido, trata-se de questionar qualquer modelo de intervenção que proponha, a priori, uma prática clínica exclusiva e totalizante, em detrimento de um modelo interdisciplinar que exige formação e reflexão contínua de toda equipe clínica. E é partindo de tal complexidade que a psicanálise, desde o início do estabelecimento desse quadro, vem produzindo conhecimentos sobre o tratamento do autismo em um trabalho que extrapola a intervenção em consultórios particulares e amplia-se para instituições públicas de saúde como UBS, CAPS, clínicas de atendimento ambulatorial universitárias, ONGs, hospitais, instituições terapêuticas, creches, escolas e abrigos, nos quais diversos profissionais intervêm com um referencial psicanalítico no atendimento daqueles que se apresentam no chamado “espectro autístico“. Uma prática interdisciplinar requer uma constante interlocução entre os diferentes
profissionais
(médicos
neurologistas,
pediatras,
psiquiatras
e
geneticistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicanalistas, educadores, pedagogos, terapeutas ocupacionais, psicomotricistas, assistentes sociais, dentre outros), visando a criar, em conjunto, critérios clínicos comuns. Para isso, é necessário que esses profissionais possam compartilhar concepções acerca de como se produz um sintoma e o que ele representa; de como ocorre à constituição psíquica e de como se dão as diferentes aquisições no campo da linguagem, aprendizagem, psicomotricidade e hábitos de vida diária. O outro pilar que nos aponta a psicanálise a respeito do tratamento interdisciplinar circunscreve a postura central assumida por esse grupo32 quanto à importância do tratamento respeitando essa abordagem. Acreditamos que é preciso estar aberto para refletir acerca de como produzir nossas práticas tomando como princípio fundamental que há ali um sujeito. Esse é um constante desafio aos profissionais, já que as crianças, muitas vezes, na sua condição de infans, convocam o outro para que fale por elas, e mais acentuadamente nos casos 32
Associação Serpiá, Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli, CAIS, Carretel – Clínica Interdisciplinar do Laço, CAPSi Guarulhos, CAPSi Lapa, CRIA-HSP, DERDIC/PUCSP, Espaço Escuta, Escola Trilha, Grupo Laço, Instituto da Família, Lugar de Vida, Instituto Sedes Sapientiae.
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em que as crianças possuem comprometimentos importantes na linguagem. Tais balizamentos produzem efeitos do lado de qualquer clínico, pois implicam operar sempre no “caso a caso”, e deparar com a particularidade de cada paciente em questão. É a partir da clínica que as decisões serão tomadas e nunca na direção contrária, ou seja, jamais privilegiando o saber das disciplinas em detrimento do sujeito. A interlocução com outros profissionais promove constantes fissuras no saber estabelecido até ali, levando à desmontagem de uma compreensão engessada e coagulada sobre o caso, ressignificando e produzindo um novo saber que torna possível ao clínico redimensionar sua forma de intervenção. A psicanálise não intervém e não avança no conhecimento sobre o autismo de modo isolado e, portanto, a interdisciplinaridade é um dos princípios que faz parte da metodologia dos psicanalistas e de todos os profissionais que trabalham em saúde mental ao tratar de pacientes com quadros de autismo. Ela é necessária ao atendimento, à pesquisa, à formação dos profissionais da área da saúde e à transmissão de conhecimentos. A psicanálise propõe que corpo e psiquismo não se constituem isoladamente, mas que são tramados em uma interdependência a partir de uma intervenção qualificada daquele que se ocupa dos cuidados iniciais com o bebê. A constituição subjetiva se tece em torno da antecipação de um sujeito psíquico na criança, mesmo quando ela ainda não fala, a partir das trocas carregadas de prazer entre o bebê, seu corpo, e quem se ocupa dos seus cuidados. Essas operações acontecem intermediadas pelo campo simbólico, imersão da criança no campo das representações, das palavras, presenças e ausências. Elas armam uma trama complexa que entrelaça constituição psíquica e desenvolvimento. Desse modo, as dificuldades no estabelecimento da relação com os outros, presentes nas crianças com risco de autismo, implicam impedimentos nos diferentes aspectos, da maturação, do crescimento ou desenvolvimento da criança. Além disso, o autismo pode estar associado a outros problemas, tais como síndromes genéticas, deficiências sensoriais ou quadros neurológicos, que tornam indispensável uma intervenção conjunta. Isso evidencia a importância da intervenção do psicanalista e, também, de profissionais de outras disciplinas.
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Assim, faz-se necessária a interlocução com pedagogos e psicopedagogos em relação à aprendizagem e à inclusão escolar; com fonoaudiólogos, foniatras e linguistas acerca da linguagem; com fisioterapeutas e psicomotricistas acerca do corpo em movimento; com pediatras, neurologistas, geneticistas e psiquiatras acerca da implicação orgânica e medicação, entre outros profissionais (nas funções de acompanhantes terapêuticos, terapeutas ocupacionais ou assistentes sociais), e essa tem sido a prática corrente dos psicanalistas nesse campo. Cabe ressaltar as práticas escolares que compõem a rede interdisciplinar no tratamento do autismo. O direito de toda criança à educação foi proclamado na Declaração Mundial dos Direitos Humanos, em 1948, e ratificado pela Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada pela ONU em 1990. Assim, todas as crianças passam a ter esse direito assegurado e inicia-se um movimento mais consistente voltado para a inclusão de crianças ditas com “necessidades educacionais especiais” (incluindo-se aqui as crianças com autismo) nas escolas comuns. Tal afirmação apoia-se na concepção de que o lugar social das crianças é na escola, junto a outras crianças. Desta forma, a reflexão sobre a interdisciplinaridade no tratamento das crianças com autismo deve considerar a escolarização, compreendida como um direito da criança e vetor fundamental da sua constituição subjetiva. Entendemos que a escola é o local que abre as portas de novos elementos da cultura, onde a criança fará parte de um grupo em que a rotina e as regras são para todos. A Educação vai além do campo pedagógico, pois possibilita partilhar de uma referência social, a saída da lógica familiar e a entrada do sujeito na lógica cultural. Nesse sentido, podemos pensar o trabalho de inclusão escolar de crianças com autismo como um “dispositivo” terapêutico que faz parte da rede interdisciplinar, e possibilita que a criança circule pela norma social, participe do discurso escolar e conquiste a chance de dizer-se como sujeito no laço social. A interlocução entre os campos da saúde e da educação também tem sido prática corrente dos psicanalistas frente à construção de um trabalho interdisciplinar para (re)pensar coletivamente estratégias na direção de favorecer o processo de escolarização (aprendizagem formal e socialização) dessas crianças. Vale lembrar que quando se tornam adolescentes ou adultos, a ação interdisciplinar permanece e acompanha as fases próprias da idade em que o
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sujeito se encontra. Com a escuta das mudanças próprias da adolescência e na inclusão no mundo do trabalho, torna-se necessária a ampliação da interdisciplinaridade com novos atores e profissionais para se alcançar a participação ativa das pessoas com o quadro de autismo e sua inclusão social. Por essa razão, ao serem formuladas políticas públicas, não poderá haver uma única metodologia padronizada e priorizada, pois devem ser levadas em conta as equipes que trabalham com diferentes abordagens e sustentam uma concepção compartilhada que possibilita a articulação da direção do tratamento interdisciplinar.
Uma
intervenção
em
rede expõe
todos
os
envolvidos
à alternância de olhares, à circulação discursiva, às diferentes expectativas, enfim, a uma pluralidade que, por si, promove efeitos terapêuticos. Isso permite que a pessoa com autismo e seus familiares possam ter acesso a diferentes metodologias de tratamento, podendo realizar a escolha de como consideram melhor tratá-lo.
Indicações bibliográficas:
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 9 – trabalho com pais
Esclarecimento aos pais e familiares das pessoas com autismo sobre a especificidade do tratamento psicanalítico
No decorrer de nossa prática clínica temos escutado com atenção observações feitas a respeito do trabalho do psicanalista com pacientes diagnosticados como autistas. Gostaríamos de esclarecer de que modo a psicanálise contribui no tratamento dessas pessoas e suas famílias para que os pais possam escolher o tipo de tratamento que consideram mais indicado para seu filho. O trabalho do psicanalista é uma parte do tratamento dessas pessoas, já que o autismo é considerado um problema que se deve a vários fatores e requer intervenções de uma equipe de profissionais de várias especialidades. Podemos comparar o trabalho do psicanalista ao de um artesão ou mesmo ao de um pesquisador, uma vez que as construções do projeto clínico precisam ser feitas caso a caso, pois entendemos que nenhuma criança com autismo é igual à outra. Isso implica, ao receber uma família que tenha um filho com autismo, o psicanalista avaliar aquele caso como único, e propor intervenções que levem em conta as necessidades e o sofrimento de cada família em particular. Busca-se, nos primeiros encontros, tanto a possibilidade de interagir com a criança quanto escutar, acompanhar e sustentar a família em suas angústias e preocupações. Tomando como ponto de partida que as pessoas com autismo apresentam dificuldades, fundamentalmente nas áreas da comunicação e interação, e que demonstram interesses restritos, o psicanalista irá considerar no seu trabalho, que, cada pessoa com autismo tem formas singulares de se comunicar e de interagir com seu meio, com os objetos e com os outros. A participação dos pais no tratamento psicanalítico de crianças foi mudando ao longo dos seus mais de cem anos de história. A tendência atual da psicanálise é a de incluir nos atendimentos de crianças com autismo a todos aqueles que se ocupam diretamente da criança, procurando uma parceria na construção de projetos clínicos e educacionais. Isto significa construir estratégias em conjunto para favorecer a
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autonomia das crianças e jovens com autismo e ajuda a entender os sentimentos de exclusão, submissão, culpabilização ou fracasso que possam surgir. Ao participar ativamente do tratamento dos filhos e, simultaneamente, conhecer o trabalho realizado pelo psicanalista, os pais são acolhidos e considerados, descobrindo, junto com o profissional, novas possibilidades de relacionamento com o filho, o que lhes traz profundo apaziguamento da angústia. Nessa perspectiva, o psicanalista escutará com interesse e atenção o que for dito pelos pais e, a partir daí começará um trabalho de reconstrução da história familiar que aponta à inclusão da criança na família e lhe garante um lugar social. Nesse trabalho que faz lembrar tanto o do artesão quanto o de pesquisador, é função do psicanalista encontrar janelas de interação e de comunicação com a criança. São aberturas que todas as crianças com autismo costumam ter. Para encontra-las é necessário que o analista coloque seu corpo, suas palavras, seus gestos e suas tentativas de brincadeira em ação! A primeira grande conquista do trabalho seria a de ajudar a criança a demonstrar suas vontades e interesses relacionados aos outros, possibilitando que, aos poucos, momentos de interação possam ocorrer. Outra forma de abrir espaços de comunicação é iniciar pequenas mudanças em relação a comportamentos inicialmente sem sentido ou repetitivos oferecendo possíveis significados. Desse modo, alguns gestos ou movimentos passam a ser entendidos pelos outros, facilitando a comunicação e a circulação social. Nesse ponto, a escuta dos achados e construções que os próprios pais trazem a respeito do cotidiano com seus filhos com autismo, são de grande importância para o trabalho clínico. O psicanalista pesquisa, em cada manifestação, como nas denominadas “estereotipias” ou “movimentos ritualísticos”, os significados possíveis para cada criança, entendendo que, embora eles não pareçam favorecer seu desenvolvimento e seus laços sociais, são resultado de um trabalho da criança em andamento e, por isso, não é bom tentar eliminá-los. Nessa investigação, o psicanalista, em conjunto com a criança e seus pais, leva em conta o limite e a tolerância que a própria criança demonstra frente às intervenções, pois, se forem consideradas excessivas, ela poderá sentir-se invadida, fechando-se ainda mais para o contato com os outros. O trabalho deverá ser sempre cauteloso e o psicanalista, persistente, buscando não desanimar frente a recusas iniciais ou desistências da criança. O psicanalista
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deverá insistir em sua oferta e disposição, no sentido de “provocar” e de acionar momentos de curiosidade e de um “querer” na criança, evitando, por outro lado, tornar-se excessivo e invasivo para ela. Para tal, contemplará momentos em que a criança o recuse e o evite, mas continuará junto com ela e com seus pais para, mais adiante, tentar outra vez aproximar-se. Assim, o trabalho ocorrerá na fronteira e na alternância entre a não invasão e a não desistência de encontrar janelas de contato com a criança. Os pais são considerados parceiros porque são eles que detêm o principal conhecimento sobre seus filhos. O tratamento psicanalítico os ajudará a buscar novas formas de se relacionar com os filhos, minimizando os momentos de paralisia e de impotência em situações extremas e nos contextos mais difíceis. Lembrando-nos, ainda, que também é o próprio profissional psicanalista que pode vivenciá-los. Se os outros componentes da equipe interdisciplinar vão se ocupar de pontos fundamentais para o autismo, como a fala, a aquisição de hábitos e a aprendizagem da escrita, o psicanalista se debruça na construção da subjetividade. Por isso, considera a especificidade de cada caso e auxilia a criança e sua família a encontrar saídas que diminuam o sofrimento. É necessário, portanto, uma visão interdisciplinar para preservar o acolhimento das dificuldades a serem nomeadas e trabalhadas. Assim, a posição do psicanalista de considerar as especificidades de cada caso, sua formação e experiência para compreender e dar sentido ajudam à condição de não desistência diante do sofrimento psíquico da criança e seus pais, além de se tornarem profissionais fundamentais para que as pessoas com autismo ampliem sua relação com os outros, interagindo e tentando se comunicar.
“Nas primeiras sessões entrávamos juntos, eu e Arthur. Percebi então minha importância ali naqueles momentos. No início Arthur ainda continuava muito agitado. A psicanalista começou então o Re-conto da nossa história e em muitos momentos Arthur parava e ouvia atentamente o que nós conversávamos. Era uma conversa verdadeira, eu me senti segura em falar como me sentia em relação a ele. Falávamos sobre quando Arthur ainda estava na minha barriga.... Arthur se acalmava ao ouvir sobre nossa história e, vê-lo mais calmo, mais concentrado, me dava um gás para
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seguir em frente. Eu me senti bem e a relação com meu filho fluía mais naturalmente. A cada sessão a psicanalista conquistava mais sua confiança. Tinha uma brincadeira que ela fazia da formiguinha que ele adora até hoje. Naquele momento eles já estavam totalmente conectados e as trocas de olhares eram intensas. Arthur se deixava ser tocado e vi que ele estava mais aberto ao novo. O Re-conto da nossa história foi fundamental para mim e para Arthur. Percebi que tudo era importante em qualquer relação. Elas (essas crianças) percebem no ato quando as coisas não estão bem. “(FERNANDA, MÃE DE ARTHUR).
Participantes e colaboradores diretos do texto: Adela Stoppel de Gueller (SEDES/Clinica Interdisciplinar Mauro Spinelli/AUPPF); Alfredo N. Jerusalinsky (Lydia Coriat/RS);
Claudia
Mascarenhas
(Instituto
Viva
Infância/Espaço
Moebius
Psicanálise/BA); Cristina Abranches Mota Batista (CAIS/MG); Cristina Keiko I. de Merletti (Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica/SP); Daniela Taulois (pesquisadora
IP/USP
e
Instituto
da
Criança
HC);
João
Luiz
Paravidini
(GECLIPS/Universidade Federal de Uberlândia/MG); Julieta Jerusalinsky (NEPPC/SP e Lydia Coriat/RS); Jussara Falek (Prof. IP/USP); Maria Lucia Araújo (FCL/SP); Nathalia Campana (pós IP/USP)
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 10 – intervenção precoce
Bebês em risco de autismo e os recursos do psicanalista para ajudá-los
Atualmente muito se fala sobre a origem do autismo, os métodos de tratamento e seus resultados. Entretanto, muitas pessoas desconhecem as possibilidades de detecção de sinais de sofrimento psíquico em momentos iniciais da vida, e sua relação com o autismo. Muitos também desconhecem o alcance da intervenção precoce nesses casos e o quanto o trabalho do psicanalista, muitas vezes associado ao trabalho de outros profissionais, é capaz de mudar de forma significativa os efeitos desses riscos. Os psicanalistas que se ocupam de bebês e de crianças pequenas têm muito a dizer sobre a detecção precoce do sofrimento desses bebês e dessas crianças e, também, sobre as mudanças positivas decorrentes de suas intervenções e manejos clínicos.
Essas possibilidades se devem ao fato da teoria psicanalítica, que
descobriu o inconsciente e se dedica ao seu estudo, também ter possibilitado compreender como o psiquismo nascente do bebê se organiza a partir da relação dele com os outros e, prioritariamente e antes de tudo, com seus pais que são suas referências principais. A relação do bebê com os pais tem certas características importantíssimas para o seu desenvolvimento bio-psíquico-social, e é por isso que sempre que pensamos no bebê, nos debruçamos sobre as funções do pai e da mãe (ou de quem os represente para o bebê), porque sabemos que o bebê, sem os cuidados de um adulto, não sobrevive nem fisicamente nem psiquicamente. Mais do que isso: não se estruturará como um sujeito como um ser singular que sabe quem é, e com capacidade de interpretar os significados pessoais e sociais das diferentes situações da vida cotidiana. Com base em muitas investigações clínicas sobre a organização do psiquismo sabemos que essa capacidade não é inata, mas depende da ajuda dos responsáveis pela criança, e será nas trocas relacionais precoces com os adultos importantes que o bebê inscreverá memórias em seu psiquismo ainda
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em formação. Essas primeiras experiências relacionais serão a base da construção da sua história. Diante disso,
é importante lembrar que os bebês podem ser muito
diferentes entre si, em suas reações e nos tempos que marcam os seus ciclos vitais como sono, alimentação, recolhimento e ritmos que pautam a interação com os adultos de sua referência.
Alguns podem ser sossegados e tranquilos, podendo
passar um bom tempo na presença do adulto sem solicitar sua atenção em demasia. Outros, no entanto, podem se mostrar previsíveis em suas atitudes e ritmos. Outros ainda, muito ativos, podem exigir bastante atenção do adulto, por serem bebês mais excitáveis, que estabelecem um forte ritmo interativo com seu cuidador. Em nosso trabalho de psicanalistas, deparamos com toda sorte de encontros e desencontros possíveis que um bebê terá no primeiro ano de vida: estes constituirão a sua história e sua maneira de estar no mundo, sua maneira de se relacionar com os outros. Em alguns casos, os esperados encontros podem não ocorrer de forma satisfatória para o bebê, ou para os pais, ou para ambos. Existem bebês, por exemplo, que não conseguem se alimentar, dormir ou estabelecer uma comunicação com seu entorno.
Nesse desencontro, que pode envolver aspectos
constitucionais, biológicos, históricos e culturais, podem ocorrer dificuldades tanto por parte do bebê como dos pais. Portanto, se um bebê ou criança pequena está se ligando a objetos, vivendo em um mundo de sensações em detrimento das interações, evitando as emoções ou sucumbindo a elas, temos que pensar que
mudar [ou treinar] o
comportamento, ainda que isso possa trazer atitudes momentaneamente mais aceitáveis, não é suficiente para reformular a estrutura mental em risco de enrijecimento autístico. Há que se investir maciçamente na criação de oportunidades de relação que ajudem a criança a regular e reconhecer seus estados emocionais, não por meio da pura cognição, mas exatamente por meio de experiências afetivas significativas com o outro. Esta é a tarefa da Psicanálise: buscar reconhecer os estados mentais tomando por base a observação detalhada e sintonizada do comportamento não verbal do bebê/criança e seus pais, convocando para o contato a partir do que a criança é, e ampliando o movimento
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da criança em direção ao contato com o outro. Nos bebês que apresentam riscos de desenvolver distúrbios de tipo autístico há muita dificuldade no estabelecimento das interações do bebê com os outros. Então, os parceiros – bebês e pais - como que se fecham em si mesmos, cada um em circuito fechado, ocasionando um processo diferente, em que, no lugar dessa construção comum, teremos duas construções que se confrontam. Na primeira, do lado do bebê, pode ocorrer uma dificuldade, ou até mesmo uma impossibilidade de interação, de modo que as aquisições da maturação neuromotora não são utilizadas para a relação com o outro; na segunda, do lado dos pais, pode ocorrer uma grande perturbação em que todas as suas competências relacionais e a sua capacidade de comunicação ficam suspensas na relação com seu bebê, embora fiquem intactas suas capacidades de linguagem e de comunicação. Pesquisas com filmes familiares demonstraram que o autismo não se apresenta desde o nascimento, e que, no primeiro ano de vida, os bebês podem apresentar sinais de fechamento às interações ao mesmo tempo em que têm aberturas para momentos de trocas com seus pais. Essas pesquisas nos alertam para o processo que pode levar à instauração do quadro autístico propriamente dito: o círculo vicioso que pode se instalar quando essas dificuldades do lado do bebê e do lado dos pais, reativas, não são percebidas como tais, resultando em falhas graves na interação entre pais e bebê. O papel dessa intensa interação pais/bebê é fundamental, pois é ela que organiza o corpo do bebê e seu funcionamento, seu comportamento e suas representações, ou seja, sua entrada no mundo simbólico e relacional. Por isso, a abordagem psicanalítica procura restaurar a interação pais/bebê, para recolocar em marcha o “motor relacional”, para que o bebê possa começar a se organizar, se construir e se enriquecer pela identificação e pela imitação. Por isso nós, psicanalistas, estamos, sobretudo, preocupados em intervir logo, antes que essas dificuldades relacionais se fixem como padrões de relação para o bebê. Por quê? Porque sabemos que nesse período o bebê possui uma maior maleabilidade em seus aspectos orgânicos e em sua constituição psíquica. Com base em resultados de pesquisas, sabemos também que os fatores herdados
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geneticamente podem ter sua expressão alterada de acordo com o ambiente, com as vivências subjetivas e a qualidade de vida de cada um. É isto que possibilita tanta riqueza no desenvolvimento do bebê e em suas trocas interativas com o meio. Principalmente no início da vida, quando a natureza das experiências e as vivências relacionais, com seus correlatos neuroquímicos, têm uma capacidade de influir na formação das redes de funcionamento dos neurônios.
É essa
maleabilidade que propicia que intervenções nesse momento oportuno sejam muito mais eficazes e duradouras, podendo evitar que essas dificuldades se potencializem, como bola de neve, instalando-se como quadros cujo tratamento será mais difícil após a primeira infância. A avaliação e as intervenções do psicanalista sempre levam em consideração a constituição subjetiva do bebê, ou seja, estamos atentos aos processos particulares e aos sinais que indicam falhas, dificuldades, impedimentos nesse processo de constituição. É importante destacar esse ponto porque a avaliação ou a intervenção psicanalítica sempre é feita considerando que um sinal sozinho não indica nada, ele precisa estar associado a uma série de outros sinais, compondo um sentido ou tendo assim uma significação. Diante disso, é necessário considerar que os fenômenos subjetivos precisam de uma sucessão de observações ao longo do tempo. Dessa forma, não há uma avaliação momentânea e pontual, assim como os efeitos de uma intervenção só são verificados num momento posterior. Vale lembrar que, muitas vezes, um bebê ou uma criança pequena pode dar mostras de uma diversidade de distúrbios, geralmente leves ou até moderados, quando está respondendo a questões relacionadas a algum conflito passageiro que está enfrentando em algum momento de sua vida ou da vida de sua família. Nessas situações, é importante a família contar com uma rede de sustentação formada por pessoas de referência para os pais. Na condição de psicanalistas, ficamos alertas quando um bebê se mostra impossibilitado de exercer suas competências, tanto no contexto das interações quanto na organização de sua funcionalidade, ao longo de seu desenvolvimento físico, que lhe permita prosseguir nas etapas do crescimento neuro-sensório-motor (rolar, andar, sentar, pegar usando as mãos, olhar direcionado, atenção a sons, mastigar) até a organização dos seus ritmos de sono/vigília, fome/saciedade,
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brincadeiras/descanso. Pode aparecer, assim, pouco interesse na interação, comunicação e contato afetivo/lúdico, dificuldade de aceitar e apreciar o contato físico e de se aconchegar ao colo, ausência de pedido de aproximação, apatia, pobreza de troca de olhares e poucas vocalizações em resposta à convocação dos pais, dificuldade de se deixar consolar pelo adulto, com isso arranjando um jeito próprio de se consolar, tendo preferência pela manipulação de objetos. Vulnerabilidade e desarmonia também podem se manifestar no contexto de recusas alimentares, doenças somáticas de repetição, refluxos gastresofágicos, doenças respiratórias, irritabilidade excessiva chegando até ao impedimento do sono, flacidez ou outras alterações do tônus muscular. Reconhecemos nessas demonstrações do bebê que ele não está bem, e chamamos a essas dificuldades, que se expressam em maior ou menor grau, de sinais de sofrimento precoce ou indicadores de risco (risco para o desenvolvimento, e risco psíquico). Geralmente, quando os pais chegam para o trabalho com o psicanalista, muitos desses sinais podem já estar presentes, embora tenham sido pouco valorizados como algo que mereça atenção de um profissional. Muitos pais já se inquietam, têm dúvidas e sensações de estranheza no contato com o filho que pode ser pouco responsivo e pouco se comunicar. Ao acolher tais inquietações dos pais desde cedo, o psicanalista pode traduzir e amplificar os apelos do bebê, legitimando as percepções dos pais e favorecendo a relação entre eles. Nesse momento da intervenção, o psicanalista entende que o atendimento conjunto dos pais com o bebê é fundamental para a compreensão do que acontece entre eles. Durante os encontros, o trabalho do psicanalista é o de fazer a leitura dos apelos que o bebê faz, do modo pelo qual ele convoca ou evita o encontro com os pais e de ajudar aos pais a dar novos sentidos à movimentação do bebê. É a isso que chamamos de “leitura das situações relacionais” dos pais com o bebê, que englobam tanto a movimentação do bebê na direção de seus pais quanto a movimentação dos pais na direção do bebê que, ao se mostrarem durante as sessões, serão nomeadas pelo psicanalista. O trabalho do psicanalista é o de dar lugar às palavras, não quaisquer palavras, mas aquelas que servem àquela família porque têm a ver com a história singular daquele nascimento, somada à história de vida daquele casal.
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Por tudo isso que se passa nesses encontros, dizemos que o psicanalista “se empresta” como mediador e tradutor durante os atendimentos, nomeando o sofrimento de ambos (pais e bebê), desculpabilizando os pais e legitimando a força e o potencial do bebê. Geralmente cabe ao psicanalista estender essas palavras e sua compreensão da dinâmica relacional da família, a partir de sua percepção e leitura dos fatos clínicos, aos outros profissionais que estão em contato com a família e o bebê. Em nossa prática, na troca com outros profissionais, fica evidente o quanto é organizador para a equipe a compreensão do psicanalista que os ajuda a ver com igual importância as dificuldades do bebê e as dos seus pais. As dificuldades encontradas por essas famílias, em tempos tão iniciais do desenvolvimento de seus pequenos filhos, geralmente causam um grau de desorganização intensa, que inclui desde as mudanças nos ciclos de sono e vigília, alimentação, até as várias situações de adoecimentos do bebê e cansaço extremo dos pais. Nesse contexto de alterações na rotina da casa, e desafios para a convivência do casal e família, damos muita importância à rotina dos atendimentos, que pode marcar a constância das trocas interativas entre o psicanalista, os pais e o bebê, e favorecer a regularização dos ritmos interativos dos pais com seu bebê no ambiente familiar. Há duas operações fundamentais no trabalho do psicanalista: a primeira operação é a detecção precoce, e a segunda operação é a intervenção precoce. Mas, situamos aí uma sutileza clínica que tem enormes consequências, porque a detecção precoce refere-se ao risco psíquico para o desenvolvimento em geral, e não somente ao risco de autismo. Atualmente, o fato de a categoria TEA (Transtorno de Espectro Autista) englobar quase todos os transtornos especificamente psíquicos tem tido as seguintes consequências: 1) uma falsa epidemia do autismo; 2) uma supressão de categorias causando confusão e diagnósticos inespecíficos e; 3) significativos atrasos para o tempo de início das intervenções precoces, porque os profissionais ficam induzidos, paradoxalmente, a esperar a definição do autismo para indicar intervenção. E isso faz grande diferença em relação aos resultados que se obtêm quando as intervenções são tardias.
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Diante de tudo o que foi exposto, é importante estarmos atentos para a forma como está se estabelecendo a relação pais/bebê, pois, ao localizarmos sinais de risco e sofrimento precoce, estes podem nos alertar sobre as dificuldades de desenvolvimento dos bebês. Nossa experiência clínica com inúmeras famílias cujos bebês foram acompanhados por uma rede de cuidados iniciais, incluindo o psicanalista, demonstra como é possível mudar significativamente os rumos do desenvolvimento de um bebê em risco de autismo, e favorecer vias alternativas para sua construção psíquica.
Participantes e colaboradores diretos do texto: Alfredo N. Jerusalinsky (Centro Lydia Coriat, APPOA), Leda M. F. Bernardino (APC, FEUSP), Eloisa Lacerda (SEDES, Carretel), Mira Wajntal (SEDES), Inês Catão (COMPP (SES-DF), HCB, PREAUT BRASIL, Escola Letra Freudiana), Sonia Mota (ABENEP/RJ), Maria Eugênia Pesaro (Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica), Augusta Mara Fadel (Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica), Cristina Hoyer (Associação Projeto Espaço Vivo), Mariangela Mendes de Almeida (SEDES, SBPSP, Unifesp), Vera Zimmermann (SEDES, CRIA/Unifesp), Mayra Castro (Equipe Nós), Mariana Garcez (Grupo Laço), Maria Eduarda Lyrio Searsonn, Nathália Campana (pós graduanda IPUSP), Maria Cecília Pereira da Silva (SEDES), Vera Regina Fonseca (SBPSP), João Luiz Paravidini (GECLIPS), Cirlana Rodrigues de Souza (GECLISPS), Aline Sieiro (GECLISPS), Regina Orth Aragão (ABEBE), Rafaela Duque (CPPL),.
Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 11 – DSM
DO DSM-I AO DSM-5: EFEITOS DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO “ESPECTRO AUTISTA” SOBRE PAIS E CRIANÇAS
Resumo: O objetivo do trabalho é analisar criticamente as edições e revisões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), com a finalidade de mostrar como o autismo, inicialmente considerado sintoma de uma afecção, foi transformado num dos principais diagnósticos psiquiátricos para a criança. O estudo procura estabelecer relações entre cada nova edição e o desenvolvimento da psiquiatria, e assim revelar como o abandono de postulados da psicanálise e a influência da farmacologia e das neurociências foram decisivos para o desenvolvimento de procedimentos classificatórios baseados na mera descrição do comportamento, o que veio favorecer a indicação de terapias cognitivocomportamentais. Por último, o trabalho busca indicar os efeitos do diagnóstico generalizado de “espectro autista” sobre pais e crianças e a tarefa da psicanálise face a essa realidade que, posicionando-se diante de políticas gestoras do setor público e privado, defende eticamente a existência da diferença, criando assim o campo onde poderá trabalhar a dimensão inconsciente, a singularidade do desejo e a condição de sujeito falante, apostando em sua emergência para além de qualquer diagnóstico. Palavras-chave: DSM, autismo, psicanálise, saúde pública.
1. Introdução
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM), da Associação Psiquiátrica Americana (APA), se propõe a oferecer uma base empírica para a prática clínica, pesquisa e ensino da psicopatologia, bem como servir de instrumento para a coleta e a comunicação de dados estatísticos referentes à saúde pública (APA, 2002).
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Ao longo do tempo, o Manual tem alcançado uma grande repercussão não apenas nos Estados Unidos, mas também em outros países, nos quais vem sendo largamente empregado. Como referência internacional, é utilizado pelos sistemas de saúde pública, convênios médicos e centros de pesquisa psiquiátrica e farmacêutica (MAYES e HORWITZ, 2005). Às vésperas do lançamento da sua quinta edição, tornou-se conhecido como a “Bíblia Americana da Saúde Mental” (G. POMMIER, 2011; R. R. GRINKER, 2011). No entanto, suas sucessivas edições e revisões têm acarretado uma série de consequências, tais como a multiplicação de classificações diagnósticas, a crescente medicalização, a indicação generalizada das chamadas terapias cognitivocomportamentais e o empobrecimento do ensino da psicopatologia. Aqui, interessanos, particularmente, mostrar como o Manual provocou o que vem sendo chamado “epidemia de autismo” e de que modo a sua quinta edição virá inflacionar mais ainda os números de casos diagnosticados, com graves consequências para pais e crianças.33
2. Do DSM-I ao DSM-5: o autismo nas edições e revisões do Manual
Desenvolvido pelo Comitê de Nomenclatura e Estatística da APA e publicado em 1952 (ver Nota 1), a primeira edição do DSM é uma variante da sexta versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que pela primeira vez incluiu em suas descrições clínicas uma seção dedicada aos transtornos mentais. O DSM-I continha um glossário de descrições de categorias diagnósticas nas quais fazia uso do termo “reação”, o que refletia a influência da perspectiva psicobiológica de Adolf Meyer, para quem os transtornos mentais constituíam reações da personalidade a fatores psicológicos, sociais e biológicos (APA, 2002). Nessa edição, a etiologia do transtorno era notadamente levada em conta. O uso de termos como “mecanismos de defesa”, “neurose” e “conflito neurótico” indicavam a influência da psicanálise na construção do Manual (N. SIBEMBERG, 2011, p. 93).
33
Um amplo estudo crítico sobre o DSM e suas consequências pode ser encontrado em O livro negro da psicopatologia contemporânea, A. Jerusalinsky e S. Fendrik (orgs.), 2011.
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O autismo aparece no DSM-I como um sintoma da “Reação Esquizofrênica, tipo infantil”, categoria na qual são classificadas as reações psicóticas em crianças com manifestações autísticas (APA, 1952). Portanto, na primeira edição do DSM o autismo não é apresentado como uma entidade nosográfica. O DSM-II (1982) eliminou o termo “reação” (APA, 2002, pág. 23). A classificação passa a ser “Esquizofrenia tipo infantil”, categoria equivalente a “Reação Esquizofrênica” do DSM-I. O comportamento autístico, uma das manifestações de esquizofrenia na infância, permanece sendo um sintoma (APA, 1982). Termos psicanalíticos são utilizados ainda mais.34 A terceira edição do Manual (1980) e sua revisão (DSM-III-TR, 1987) trouxeram
notáveis
inovações.
Critérios
específicos
de
diagnóstico
são
implementados, como o sistema axial35 e o enfoque descritivo, “que tentava ser neutro em relação às teorias etiológicas” a partir de um “trabalho empírico” (APA, 2002, pág. 23). As causas de uma doença, alegavam os responsáveis pelas novas versões, “devem constituir um princípio classificatório somente quando são claramente conhecidas” (R. R. GRINKER, 2010, pág. 129). Os aspectos psicodinâmicos dão lugar a um modelo regulamentar ou legislativo e o conceito psicanalítico de neurose, “visto como vago e não científico”, é excluído (C. DUNKER e F. KYRILLOS NETO, 2011, pág. 615).36 O Manual começa a abandonar a perspectiva psicanalítica. É justamente aí que o autismo aparece pela primeira vez como entidade nosográfica. É criada a classe diagnóstica “Transtornos Globais do Desenvolvimento - TGD” (Pervasive Developmental Disorders – PDD)37, no qual o “Autismo Infantil” figura como uma das subcategorias. Revista a terceira edição, o autismo passa a ser nomeado “Transtorno Autístico”.38 O diagnóstico de “Esquizofrenia tipo infantil”
34
Em decorrência de uma ampla revisão dos temas diagnósticos patrocinada pela OMS, surgiram simultaneamente a segunda edição do DSM e a oitava versão da CID. 35 O sistema multiaxial funciona a partir de cinco eixos, o que permite descrever um sujeito por um conjunto de fatores clínicos. 36 A terceira revisão do DSM foi pensada junto com a nona versão da CID, mas publicada depois. 37 Transtornos Globais de Desenvolvimento - TGD é a tradução utilizada por Cláudia Dornelles para Pervasive Developmental Disorders - PDD na quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (APA, Porto Alegre, Artmed, 2002). 38 Na classe diagnóstica “Transtorno Global do Desenvolvimento”, encontrada na seção “Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência” do DSM-III, figuram como subtipos “Autismo Infantil”, “Transtorno Global do Desenvolvimento na Infância” e “Transtorno Global
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desaparece, sob a alegação de que é extremamente raro na infância (APA, 1987).39 A partir daí, “o autismo se transforma num diagnóstico convencional na prática psiquiátrica, tornando-se mais comum ainda nos anos seguintes.” (R. R. GRINKER, 2010, pág.120). Na quarta edição do Manual (1994) e sua revisão (APA, 2002), o autismo se mantém como referência para as novas classificações40 e os TGDs recebem outros subtipos: o “Transtorno de Rett”, o “Transtorno Desintegrativo da Infância” e o “Transtorno de Asperger”.41 O DSM-IV é proposto como suporte educativo para o ensino de psicopatologia e se torna “A Bíblia da Saúde Mental”. Completamente afastado das bases psicanalíticas, e sob a influência da farmacologia e dos resultados das pesquisas das neurociências, o DSM se autoproclama ateórico. O DSM-5 (2013), com lançamento previsto para o próximo mês de maio, introduz outras mudanças: a extinção dos TGDs e a criação de uma única categoria diagnóstica para os casos de autismo (“Transtorno do Espectro do Autismo”), independentemente de suas diversas formas de manifestação. Como o diagnóstico é efetuado exclusivamente com base no comportamento observável, o Manual radicaliza o alcance da noção de contínuo autista, adotando mais do que antes a ideia de “espectro”.42 A substituição do grupo de transtornos, antes incluído na classe dos TGDs por uma única categoria, concorrerá definitivamente para
do Desenvolvimento Atípico”. No DSM-III-R, essas subcategorias são substituídas por “Transtorno Autístico” e “Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação” (APA, 1987). 39 A APA propõe que o diagnóstico de “Esquizofrenia” somente seja dado adicionalmente ao de “Transtorno Autista” e se forem observados delírios ou alucinações (APA, 1987). 40 A ausência de sintomas psicóticos como delírios ou alucinações se converteu num dos critérios diagnósticos de autismo, embora o DSM-IV-TR admita um diagnóstico adicional de “Esquizofrenia” no caso de (e somente se) o indivíduo com diagnóstico prévio de “Transtorno Autista” desenvolver aspectos característicos da fase ativa do transtorno psicótico pelo período mínimo de um mês, o que sugere (1): o diagnóstico de psicose é sempre posterior ao de autismo; (2) não há diagnóstico de psicose sem diagnóstico de autismo; (3) a incidência de autismo é, pelos critérios do DSM, necessariamente superior à incidência de psicose. (APA, 2002). 41 No DSM-IV-TR os TGDs recebem outros subtipos: além do “Transtorno Autista” e do “Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação”, já presentes no DSM-III, surgem o “Transtorno de Rett”, o “Transtorno Desintegrativo da Infância” e o “Transtorno de Asperger”. 42 O autismo é transformado num transtorno do neurodesenvolvimento, o que implica necessariamente a tomada de uma posição de ordem teórica, apesar do “ateorismo” proclamado no Manual. Obs.: A seção “Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância e adolescência” é substituída pela seção “Transtornos do Neurodesenvolvimento” (APA, 2013).
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transformar o autismo num dos principais diagnósticos psiquiátricos para a criança.43. O autismo se transforma num transtorno do neurodesenvolvimento, o que implica necessariamente a tomada de uma posição de ordem teórica, apesar do “ateorismo” apregoado (APA, 2013), revelando-se então o forte compromisso dos organizadores do Manual “com os autores e teorias das chamadas neurociências” (S. LAIA, 2012, pág. 12).
3. Como o DSM transformou a psiquiatria
Antes do DSM-III, psiquiatria e psicanálise partilhavam o objetivo de compreender o problema fundamental da origem do sintoma. O intuito era então tratar o problema, e não o sintoma. As classificações diagnósticas das edições anteriores (DSM-I e II) adotavam as categorias psicanalíticas de neurose e psicose. No entanto, a credibilidade da psiquiatria como ciência e campo legítimo da medicina era questionada, mesmo depois da publicação das primeiras edições do Manual, que, ao que parece, não receberam a receptividade esperada. O governo diminuía os investimentos em pesquisas psiquiátricas e os planos de saúde viam a psiquiatria como “um poço sem fundo, com métodos de avaliação e tratamento inadequados” (R. R. GRINKER, 2010, pág. 124). O DSM-III provocou uma reviravolta na imagem da psiquiatria. Afastando-se da psicanálise, que não deixava de reconhecer a importância das considerações de ordem teórico-etiológica, a psiquiatria pôde justificar o seu sistema classificatório, ou seja, a focalização do sintoma nele mesmo, na medida em que a pura observação empírica das manifestações de comportamento (sua presença, constância e intensidade) passa a ser o critério utilizado no diagnóstico. O DSM-IV repete os princípios da edição anterior: descrição objetiva dos sintomas com exclusão da etiologia. Como se expressa R. R. GRINKER (2010), confesso defensor do DSM, a “popularização do autismo” é consequência, dentre outros fatores, do declínio da psicanálise e da absoluta recusa da ideia de que o transtorno poderia ser consequência da “maldades das mães”, conforme a tão 43
O TDAH é outro diagnóstico que mostra uma grande incidência a partir das novas edições do DSM (A. JERUSALINSKY, 2010).
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propalada hipótese de B. Bettelheim, que passou a usar de forma equivocada a expressão “mães geladeiras”, criada por L. Kanner, mas posteriormente por ele mesmo rechaçada. Efetivamente, porém, a psiquiatria estava oferecendo classificações diagnósticas padronizadas para atender a demanda das companhias seguradoras de saúde e das indústrias farmacêuticas, que necessitavam de parâmetros e regras para nortear suas ações. Aliás, a indústria farmacêutica vem sendo intensamente favorecida com a multiplicação de diagnósticos a cada nova edição do DSM, contando ao mesmo tempo com o respaldo das neurociências,44 num contexto cada vez mais neoliberal, no qual há uma redução do poder do Estado na esfera econômica e social.45 Coerente com os critérios de classificação praticados pela APA, o tratamento do transtorno passa a ser a eliminação ou o abrandamento do sintoma, já que este corresponde
ao
comportamento
alterado.
Consequentemente,
a
clínica
farmacológica e cognitivo-comportamental é favorecida, uma vez que trabalham com idêntico propósito: fazer desaparecer o comportamento “anormal”. Estava selada assim a aliança entre psiquiatria, indústria farmacêutica e terapias cognitivocomportamentais, um compromisso que transparece nas recomendações da APA para que esses “tratamentos” sejam aplicados.46
4. “Transtorno do Espectro Autista – TEA” como diagnóstico antes do DSM-5
Na Grécia Antiga, o termo “idiota” designava aquele que não participava da vida pública e que, por isso, era tido como uma espécie de deficiente intelectual. Difundido ao longo do século XIX, o termo passou a designar aquele que não sai de
44
A indústria farmacêutica, cuja força maior está nos Estados Unidos da América do Norte – mas não só lá -, espraia sua atuação, conforme observação de S. L.de Oliveira e J. L. de Oliveira (2004): “O uso do poder na indústria farmacêutica passa a ser uma estratégia indispensável para prover a harmonia dos canais de marketing”. 45 Sobre o controle e domínio do autismo pela ciência e sua exploração pelo capitalismo e pela mídia, v. "Efeitos do discurso capitalista sobre o autismo", de S. S. Ferreira, comunicação apresentada no II Congresso Interdisciplinar sobre a criança e o adolescente: a linguagem, o corpo e a escrita. Porto Seguro (BA), 2012. 46 De se notar que junto com o lançamento da quinta edição do DSM está sendo anunciada a publicação de livros de psicofarmacologia e terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes, cf. www.appi.org/Pages/Psychopharmacology.aspx e www.appi.org/SearchCenter/Pages/SearchDetail.aspx?itemid=62406. Acesso em 14.03.13.
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si mesmo. Essa observação leva Hochmann a supor uma história do autismo antes do autismo (J. HOCHMANN, 2009). Em 1912, Bleuler usa o termo “autismo” - do grego auto (si próprio) e do sufixo ismo (estado) – para indicar um dos sintomas das crianças que tinham recebido o diagnóstico de “Esquizofrenia”: a predominância relativa ou absoluta do mundo interior.47 Somente mais tarde, com a descrição de L. Kanner (1943, 1983, 1997), o autismo passou a definir um conjunto de distúrbios (“Distúrbios autísticos inatos do contato afetivo”) e, logo depois, uma síndrome, designada “Autismo Infantil Precoce” (KANNER, 1946), nomeação que põe em evidência a precocidade do aparecimento das manifestações.48 A partir de então, os sinais e sintomas categorizando o autismo mudaram constantemente até receberem a noção de “espectro autista”.49 Cabe a L. Wing (L. WING e J. GOULD, 1979 apud U. FRITH, 2003; L. WING, 1996, apud U. FRITH, 2003), psiquiatra inglesa, a definição de autismo como um espectro, isto é, uma gama de comportamentos determinados em vários graus e maneiras. Apoiada na descrição da Síndrome de Asperger e em suas própias pesquisas, sublinha que, dependendo da severidade e da variedade dos sintomas a criança pode receber o diagnóstico de autismo de alto funcionamento, com atraso severo no desenvolvimento, ou ainda se situar em qualquer outra faixa do espectro. Wing baseia essa afirmação a partir da observação de três déficits comumente presentes nas manifestações do transtorno, 47
Nos primórdios do século XX, o interesse da psiquiatria está voltado para crianças que não são portadoras de deficiência mental, parecendo normais até apresentarem “sinais de loucura”. Inicialmente chamado “demência precocíssima”, esse quadro é renomeado, em 1911, com o termo “Esquizofrenia” (mente dividida) por E. Bleuler (1964, apud BERQUEZ, 1983, pág. 44; S.S.F.O. FERREIRA, 2004). O termo “autismo” foi criado a partir da noção de autoerotismo, desenvolvida por Freud (1905/1972) para definir o comportamento sexual infantil precoce, através do qual o indivíduo obtém satisfação recorrendo ao seu próprio corpo. Por discordar da posição freudiana quanto ao papel essencial da sexualidade na constituição do psiquismo, Bleuler extraiu da palavra “autoerotismo” a referência à sexualidade designada por Eros, e estabeleceu o termo autismo para se referir ao investimento em si mesmo, investimento que, no entanto, não seria da ordem da sexualidade e da libido (CAVALCANTI E ROCHA, 2001; TAFURI, 2003). No entanto, para GAUDERER (1993 apud PRAÇA 2011) o termo autista foi usado pela primeira vez, na Psiquiatria, por Plouller em 1906, que na época estudava o processo de pensamentos de pacientes com esquizofrenia. (GAUDERER 1993 apud PRAÇA, 2011). 48 Anos depois, justificando o nome dado à síndrome, Kanner (1958) esclareceu que a escolha tinha sido efetuada (em 1944) com o objetivo de excluir o autismo do grupo das “Esquizofrenias Infantis”, alegando que nesse grupo somente se verificava uma evasão da realidade depois de um período de desenvolvimento normal, enquanto que no “Autismo Infantil Precoce” a criança não estabelecia relações usuais com o entorno desde o princípio. 49 Aqui, a palavra “espectro” faz referência à definição usada no campo da Farmácia: “espectro contínuo” é o espectro formado por faixa luminosa sem interrupções, apresentando todas as cores do arco-íris. (Cf. Dicionário de Língua Portuguesa, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1989).
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chamados a Tríade de Wing: (a) alterações qualitativas na comunicação verbal e não verbal, (b) alterações qualitativas nas interações sociais recíprocas e (c) centro de interesses restritos, estereotipados e repetitivos. Surge assim a expressão Transtorno do Espectro Autista (TEA), que passa a ser usada como sinônimo da classe diagnóstica “Transtornos Globais do Desenvolvimento”, criada posteriormente pela terceira edição do DSM, quando a APA, aceitando a ideia da existência do contínuo autista, formula o primeiro conjunto de critérios para o diagnóstico de autismo. De acordo com Filipeck et al. (1999), pode-se falar tanto em “Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD)” como em “Transtorno do Espectro Autista (TEA)”. Assim, tornou-se corrente entre médicos o uso frequente da expressão “espectro autista” para o diagnóstico da criança. Ora, adotando esse critério o médico não precisa situar a particularidade da subcategoria diagnóstica na qual a criança pode se classificar50. Esse modo preferencial de lidar com o diagnóstico permite ao médico reduzir o tempo de consulta, ainda que a indicação de tratamento seja a mesma para todos os casos: o tratamento medicamentoso e cognitivo-comportamental. Por outro lado, como vimos, leva também a um aumento do número de diagnósticos de autismo, na medida em que não há lugar para outras subcategorias como o Transtorno de Asperger, de Rett e Desintegrativo da Infância. Com o DSM-5, a APA consagrará e formalizará o uso, já corrente, da “classificação” espectro autista51, a despeito das consequencias que daí podem advir. Milhares de observações críticas e manifestos contrários ao DSM-5 foram postados no site da APA quando os dois primeiros rascunhos do Manual foram submetidos ao comentário público, contudo sem resultados.52 Uma parte deles apontava a multiplicação e proliferação de 50
No entanto, mesmo de acordo com a atual versão do DSM, tanto pode tratar-se de um caso de Transtorno Autista, de Transtorno de Asperger, de Transtorno Desintegrativo da Infância, de Transtorno de Rett ou de Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação, que inclui Autismo Atípico, um subgrupo que a APA diferencia dos outros justamente por não satisfazer os critérios para Transtorno Autista. 51 Muito embora o DSM-5 deixe de considerar a existência de uma tríade de alterações no autismo, a ideia de um contínuo autista permanece sendo utilizada. 52 Críticas aos dois primeiros rascunhos do DSM-5 apresentados no site da APA para comentário público resultaram em 50 milhões de acesso de cerca de 500 mil pessoas e mais de 10.000 comentários, em grande parte com “duras críticas” (cf. Ferris Jabis, 2013, pág. 34). Uma série de manifestos contrários à quinta edição foi produzida, entre eles o “Para acabar com a camisa de força do DSM” (França), “Por una
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categorias diagnósticas, como o manifesto “O DSM-5 e o apagamento do sujeito”, de Intersecção Psicanalítica do Brasil (IPB, 2012). Outros indicavam o desaparecimento de categorias diagnósticas antes presentes no DSM, e muitos se mostraram particularmente contrários à inclusão da Síndrome de Asperger na classificação de autismo, por considerarem que o caráter inclusivo da categoria “Transtorno do Espectro do Autismo” extinguirá as diferenças entre dois quadros clínicos tão distintos. Apesar das críticas, a quinta edição do Manual manterá as modificações previstas nos rascunhos.
5. Efeitos do diagnóstico “espectro autista” sobre pais e crianças
Desaparecendo do Manual as psicoses infantis e categorias como a Síndrome de Asperger e outras, o médico ou outro profissional será levado a utilizar o diagnóstico “Transtorno do Espectro do Autismo”, ou mais simplesmente, “espectro autista”. Contudo, como o desaparecimento de categorias diagnósticas não faz desaparecer a patologia, o erro diagnóstico é a consequência mais imediatamente vislumbrada. De outra parte, a precipitação na formulação do diagnóstico pelos critérios do DSM é já uma constatação. Torna-se cada vez mais comum o recebimento de crianças diagnosticadas com “espectro autista”, muito antes dos três anos. Nesses casos, privilegia-se a observação do comportamento da criança, quase sempre a partir de uma única consulta, e se são verificados alguns sintomas que, segundo os preceitos do Manual são característicos de autismo, o diagnóstico é declarado. Desconhece-se que, numa idade tão precoce, um quadro patológico não pode ser considerado já decidido (L. BERNARDINO, 2010). Ignora-se, de outra parte, que as manifestações podem indicar apenas perturbações da comunicação que, se tratadas precocemente, podem desaparecer. É psicopatologia clínica, que no estadística”, com a coordenação de ESPAI Freud (Barcelona), “Por uma abordaje subjetivante del sufrimiento psíquico em niños y adolescentes, no al DSM”, com a coordenação de FORUMADD (Buenos Aires), “Em prol de uma psicopatologia clínica” (São João Del Rei – MG), produzido em conjunto pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise da Universidade Federal de São João Del Rei (MG), Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, PSILACS – Grupo de Pesquisa Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo, do CNPq, e Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise da UFMG (IPB, 2011). Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana e Intersecção Psicanalítica do Brasil também se opuseram expressamente ao DSM5 (IPB, 2011, 2012).
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importante detectar sinais de sofrimento psíquico que podem perturbar o desenvolvimento da criança, a fim de que uma intervenção em tempo possa ocorrer. Entretanto, um diagnóstico de “espectro autista” pode selar definitivamente o destino da criança. É impressionante a frequência com que pais, a partir daí, passam a avaliar o comportamento dos filhos como “manifestações da doença”, comportamento que seria considerado absolutamente normal e esperado em outras crianças. A realidade da prática clínica revela que as reações de pais ao diagnóstico “espectro autista” são na maior parte das vezes devastadoras, tanto para eles como para os filhos. Por um lado, o preconceito que ainda cerca o diagnóstico leva muitas vezes os pais a sentirem-se envergonhados e revoltados, fazendo-os afastar a criança do convívio social. Por outro, os filhos sofrem com o desinvestimento dos pais, a partir de um tão perturbador diagnóstico53. Tanto o erro diagnóstico como a precipitação diagnóstica acarretam graves consequências, na medida em que a direção do tratamento está diretamente associada ao diagnóstico formulado. A reação mais comum ao mal-estar é a inclinação pela sua imediata supressão. Assim, a partir do diagnóstico recomenda-se aos pais o tratamento medicamentoso e/ou cognitivo-comportamental para a criança. Todavia, apesar dos grandes avanços da indústria farmacológica, não são desconhecidas as repercussões desastrosas que determinadas substâncias causam ao organismo, principalmente na infância e adolescência. Por outro lado, a medicalização não pretende curar o espectro, mas se destina especificamente aos chamados sintomas-alvo: fazer desaparecer ou abrandar as crises de agitação, de angústia, os distúrbios de sono. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) adota o mesmo critério: afastar o comportamento indesejado. Priorizando os quadros nos quais há um predomínio das questões cognitivas em detrimento da questão da organização da personalidade, os procedimentos classificatórios do DSM tentam justificar a preferência pelas terapias cognitivo-comportamentais (TCCs). Assim, e embora os quadros clínicos possam responder a diferentes lógicas de constituição (diferentes patologias), 53
Muitas vezes se constata que os filhos são submetidos a uma espécie de “superinvestimento”, caracterizado pelo acompanhamento simultâneo da criança por múltiplos profissionais de saúde, que, de modo geral, não adotam uma linha de conduta uniforme, característica de uma equipe transdisciplinar, o que pode causar graves prejuízos para a constituição psíquica infantil.
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crianças com características subjetivas diferentes são submetidas a tratamentos iguais de treinamento de habilidades sociais e de aprendizagem (N. SIBEMBERG, 2011).
6. A tarefa da Psicanálise
A adoção da nomenclatura do DSM traz, desde sempre, impactos sobre os pais, sobre as crianças e sobre as formas de atendimento. Um diagnóstico referenciado pelo DSM constitui-se numa nomeação que ao mesmo tempo em que nos convoca a um diálogo interdisciplinar, também traz consigo todas as significações que essa nomeação engendra, sendo um dos grandes equívocos considerar como definitiva e inequívoca essa nomeação. Faz-se necessário que a especificidade do discurso psicanalítico seja considerada, pois só ela leva em conta a dimensão inconsciente, a singularidade do desejo e a condição de sujeito falante, apostando em sua emergência para além de qualquer diagnóstico. A escuta psicanalítica inicialmente dá lugar à expressão do drama que se abriu no interior da família, fazendo-os questionar todo o aparato genético e psíquico que tinham para conduzirem os processos de desenvolvimento de seu filho, e que se perdem quando algo estranho se presentifica, deixando as coisas meio sem rumo. Ao mesmo tempo, ao escutar a criança em sua singularidade, abre-se um espaço para que o sujeito possa se expressar. Lacunas discursivas, repetições sintomáticas, ambiguidades, contradições e acontecimentos inesperados são pontuados na intenção de elaborar alguma hipótese sobre o funcionamento da criança. Nesse processo, a criança é colocada na posição de falante, reconhecida como sujeito capaz de assumir um discurso próprio e particular, demonstrando qual é sua inscrição subjetiva e o seu funcionamento psíquico. É nesse lugar que a escuta psicanalítica poderá fazer a diferença na condução do tratamento. Na medida em que essa escuta transcorre e o analista leva em conta o sofrimento de todos e fornece pontos de apoio e de fortalecimento aos pais, proporciona certo alívio ao drama vivido, abrindo espaço para compor o campo no qual se dará a possibilidade de acesso ao funcionamento mental da
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criança diagnosticada dentro do espectro autista. Alavanca-se, então, a construção de possibilidades. No desenrolar dessa construção, abre-se a possibilidade de fazer circular os discursos das diversas áreas de atendimento à criança e, mais ainda, de, para além desses discursos, engendrar o tratamento ético de que ela precisa. Entretanto, se nesse espaço de atendimento houver saberes hegemônicos e inquestionáveis, tampona-se a emergência de uma intersecção, inviabilizando possibilidades de engajamento interdisciplinar. Se, ao contrário, cada segmento sustenta seu conhecimento, mas decanta a essência disso para favorecer a circulação dos discursos interdisciplinares, viabiliza-se a existência da diferença, contando com ela na direção do tratamento. Na medida em que essa circulação discursiva se dá numa relação horizontal, emerge a possibilidade de apropriação de outros discursos na mesma proporção em que cada discurso se apropria e é apropriado pelos demais. Um movimento favorável se instala no campo de tratamento, propiciando à criança em análise certa estabilidade, na qual poderá transitar suas instabilidades constitucionais, podendo emergir daí pontos que favoreçam um enraizamento psíquico. A presença da psicanálise numa clínica interdisciplinar não está compromissada em superar os impasses clínicos, as divergências diagnósticas, nem em homogeneizar os vários campos conceituais, mas, ao contrário, colocar questões e se servir delas para intervir, reconhecendo sempre os diferentes discursos disciplinares. A proposição e a construção de uma prática interdisciplinar sob os auspícios da ética psicanalítica, reconhecendo e relativizando os saberes particulares, engendrará sempre um permanente questionamento que se abre para uma maior compreensão do sujeito desejante. Também se constitui tarefa da psicanálise assumir posicionamentos diante das políticas gestoras do setor público e privado em torno da infância e, principalmente, diante da elaboração de quaisquer manuais classificatórios que desconsiderem a constituição subjetiva da criança. Nesse sentido, faz-se necessário, desde já, que a psicanálise seja formalmente considerada e incluída nas futuras revisões e/ou edições do DSM.
Nota 1
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Antecedentes Históricos
Foi a partir de um censo realizado em 1840 que os Estados Unidos da América do Norte realizaram a primeira tentativa de coletar informações sobre a doença mental, considerando à época uma única oposição: idiotismo/insanidade. Em outro censo, levado a efeito em 1880, já foram consideradas sete categorias de doença: mania, melancolia, monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia (C. DUNKER e F. KYRILLOS NETO, 2011, pag.613). No segundo recenseamento se pretendia estabelecer um quantitativo em termos epidemiológicos estatísticos. Os organizadores do DSM referem que durante toda a história da medicina se sentia a necessidade de uma classificação dos transtornos mentais. Havia então muitas nomenclaturas, assentadas em critérios distintos: sobre a fenomenologia, sobre a etiologia ou sobre o curso do transtorno. Outra divergência dizia respeito à finalidade que os sistemas classificatórios deveriam atender: o contexto clínico, de pesquisa ou estatístico? (APA, 2002). Ao mesmo tempo havia uma constante preocupação em separar a idiotia (retardo grave) da insanidade mental. Todavia, reconhecem os idealizadores do DSM que, nos Estados Unidos, “o impulso inicial para a criação do DSM foi a necessidade de coletar informações estatísticas” (APA, 2002, pag.22). No entanto, segundo F. Sauvagnat (2012), “[...] versões anteriores do DSM eram constituídas por instrumentos que não eram diagnósticos, mas instrumentos epidemiológicos. Isso permitia justamente trabalhar sobre dossiês, e inicialmente se tratava de encontrar causas da morte, da mortalidade. Se tentarmos entender a que tipo de paciente o primeiro DSM se endereça, é um paciente morto". Até o surgimento do DSM, diversas tentativas de se normatizar uma classificação em âmbito nacional foram realizadas nos Estados Unidos da América do Norte. Um sistema classificatório surgiu em 1918, listando 22 classes de distúrbios, com o nome de Manual Estatístico para o Uso de Instituições de Insanos (DSM). Uma nova versão desse primeiro sistema classificatório apareceu em 1952: o DSM-I, que constituía uma variante da CID-6 (Classificação Internacional de Doenças, 1949). Para a APA (2002), o DSM-I foi “o primeiro manual oficial de transtornos mentais a concentrar-se na utilidade clínica”.
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Em 1968, e considerando 182 classes de distúrbios, foi editado o DSM-II. Em 1980, o DSM-III foi publicado listando 265 categorias diagnósticas. Admitindo inconsistências e ausência de clareza de critérios nessa versão, a APA desenvolveu revisões e correções que culminaram em 1987 no DSM-III-R, no qual foi reinserido o termo neurose, retirado da terceira edição. O DSM-III-R continha 292 diagnósticos e o Manual ainda contava com a visão da psicanálise. No ano de 1994 foi publicado o DSM-IV e em 2000 sua edição revisada, o DSM-IV-R, considerando 297 categorias de transtornos mentais. O DSM-5, com lançamento confirmado para maio de 2013, conterá cerca de 300 categorias. Como nas edições anteriores, o Manual permanecerá dispensando os fatores da individualidade em prol de uma massificação que considera apenas o sintoma (P. CHACÓN, 2012), mesmo assim sem nenhuma precisão, até porque a produção subjetiva do sujeito não é mensurável nem quantificável.
SOBRE OS AUTORES: Anna Aline Coutinho - Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; Cristiane Carrijo - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP – Bauru/SP; Daniely Siqueira - Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; participante da Pesquisa PREAUT Eixo Recife/PE; Denize Bomfim - Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica da Secretaria de Estado de Saúde do DF (COMPP/SES/DF); Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil – DF (ABENEPI – DF - Presidente da gestão 2012/2013) Gertrudes Pastl - Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; Ione Silva - Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Brasília/DF; gerenciadora do GT 11 do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública; Juliana Tavares - Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Brasília/DF Juliana Torres - Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa
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Luíza Bradley Araújo -
Manoel Ferreira Margaret Leivas -
Maria José Maquiné Celestino -
Mariel Lyra -
Marisa Brito Neves Miryelle Pedrosa Rachel Rangel -
Rita Smolianinoff -
Severina Silvia Ferreira -
Suzana Konstantinos Livadias Tereza Barretto
Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; participante da Pesquisa PREAUT Eixo Recife/PE; Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; Centro de Estudos, Pesquisas e Atendimento Global da Infância e Adolescência - CEPAGIA / Brasília/DF; Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Universidade de Pernambuco - CISAM/UPE; participante da Pesquisa PREAUT - Eixo Recife/PE; Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; participante da Pesquisa PREAUT Eixo Recife/PE; Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Brasília/DF Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Brasília/DF Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; participante da Pesquisa PREAUT Eixo Recife/PE; Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; Membro integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; NINAR; coordenadora da Pesquisa PREAUT - Eixo Recife/PE; Hospital das Clínicas – Universidade de Pernambuco; Pesquisa PREAUT - Eixo Recife/PE; Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE; membro do NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos; participante da Pesquisa PREAUT Eixo Recife/PE.
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 12 – Outras abordagens
Conhecendo outras abordagens no tratamento do autismo
A proposta deste texto surgiu da necessidade de se conhecer mais detidamente as diversas abordagens terapêuticas voltadas ao autismo. Numa época em que a psicanálise se vê chamada a responder sobre acusações de uma suposta ineficácia no tratamento das pessoas com autismo, torna-se importante que seu posicionamento se valha de argumentações consistentes, com base em sua experiência de mais de 70 anos com essas crianças. Resta à psicanálise, além de fazer uso do saber que se erigiu respaldado em sua clínica com o autismo, a elucidação de sua metodologia e a reafirmação da vertente científica de seus pressupostos. Acreditamos que sua coerência argumentativa se fortaleça na medida em que consiga estabelecer um diálogo crítico com as demais abordagens sobre o autismo, demarcando suas convicções, discordâncias e aproximações. Dessa forma, o texto foi elaborado com o objetivo de apresentar os principais fundamentos dessas abordagens, reconsiderando a pertinência de algumas críticas comumente feitas a elas. Trata-se de conhecer como pensam e trabalham aqueles que concebem o autismo de maneira epistemologicamente distinta da psicanálise. Entendemos que preconceitos e concepções errôneas sobre as demais abordagens possam vir a afetar diretamente os argumentos que venham a ser elaborados com vistas ao enriquecimento do diálogo crítico proposto. Algumas considerações iniciais parecem ser fundamentais. Em primeiro lugar, o fato de desejar modificar algum comportamento de um portador de autismo não torna alguém comportamentalista. A análise do comportamento busca a modificação do comportamento através de um método muito preciso de investigação, intervenção e avaliação. Assim, não se pode confundir o objeto de intervenção (o comportamento) com uma escola de pensamento (o behaviorismo radical) ou uma metodologia (a terapia por contingências de reforçamento, TCR, ou a terapia cognitivo-
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comportamental). Esse pode ser um ponto delicado para psicanalistas que, diante de algumas estratégias de intervenção construídas conjuntamente com os pais, tenham a impressão de estar impondo um comportamento para a criança, o que não é o caso, decididamente. Da mesma forma que o uso, temporário e pontual, da medicação, é uma condição para que o tratamento ocorra ou para auxiliar os familiares no cotidiano da criança, a intervenção sobre o comportamento pode se fazer necessária não como objetivo terapêutico, mas como simples intervenção educativa, pois a orientação de guardar os brinquedos ao final da sessão é válida para qualquer criança, com ou sem autismo. Entretanto, o modo de realizar essa intervenção será muito diversa da maneira como os comportamentalistas trabalham. Entendidos tais apontamentos, passamos a uma breve apresentação das diversas abordagens sobre o autismo e suas propostas de intervenção.
A TEORIA COMPORTAMENTAL A teoria comportamental, por seu princípio estritamente ambientalista, não tem como objetivo buscar explicações psicológicas para os comportamentos que observa. Ela se atém exclusivamente a neles intervir, a fim de modificá-los, ou seja, eliminar comportamentos indesejáveis, “instalar” (na linguagem da análise do comportamento) novos comportamentos que não fazem parte do repertório do indivíduo, ou aumentar a frequência de comportamentos desejáveis que já fazem parte de seu repertório. As propostas terapêuticas comportamentalistas (ABA e TEACCH) têm como objetivos programáticos do tratamento com o autista: a) a promoção de um desenvolvimento normal dos aspectos cognitivo, linguístico e social; b) a promoção da aprendizagem; c) a redução da rigidez e da estereotipia; d) a eliminação dos comportamentos desadaptados inespecíficos; e) o alívio do sofrimento familiar e f) a educação e a conscientização da comunidade para a aceitação do indivíduo. Elas propõem um método de ensino baseado em uma teoria sobre as leis que regem o comportamento. Entendem que os comportamentos são operantes, ou seja, quando um indivíduo se comporta, esse comportamento opera sobre o ambiente, promovendo uma resposta do ambiente que funciona como reforçador positivo ou
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negativo para esse comportamento. Assim, os reforçadores ocupam um lugar primordial nesse tipo de atendimento. Aqui é necessária uma diferenciação que redunda em um equívoco comum aos psicanalistas quando se referem à abordagem comportamental com autistas. Não se trata do condicionamento posto em prática por Pavlov com o cachorro, chamado de “condicionamento clássico”. Este recolhe respostas involuntárias do indivíduo, com base estritamente orgânica. O personagem do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, é submetido a esse tipo de condicionamento, emitindo respostas condicionadas não voluntárias por meio das náuseas. A terapia comportamental com autistas se utiliza do condicionamento operante, conforme dito acima, que conta com a opção de resposta do indivíduo, portanto voluntária, de acordo com suas consequências no ambiente e o que delas lhe retorna positiva ou negativamente. Nesse caso, é a Caixa de Skinner que exemplifica os fundamentos desse tipo de condicionamento.
Métodos de intervenção comportamentais: • ABA O ABA — Applied Behavior Analysis ou Análise Aplicada do Comportamento — é uma metodologia estritamente comportamental que trabalha com o uso de reforçadores, concretos ou sociais, na modelagem do comportamento do autista. O ABA baseia-se na Instrução Programada, um método de ensinar cujos princípios são: 1) Os comportamentos devem ser reforçados positivamente. Na prática, isso significa que não se faz uso de punição. Quando um comportamento indesejável aparece, ele simplesmente não é reforçado; por exemplo, é ignorado, mas não punido. Ao mesmo tempo, o comportamento desejado é reforçado, de modo que sua frequência aumente; 2) O feedback deve ser imediato; 3) Cada aluno deve ser comparado a si mesmo (e não a indivíduos da mesma idade ou a uma entidade abstrata como o “indivíduo médio”), partindo da filosofia do sujeito único;
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4) O comportamento-alvo é decomposto em pequenos passos, chamados de pré-requisitos. Por exemplo, para um menino que se senta sobre a privada, mas sem tirar as calças, o programa será organizado de modo que primeiramente seja ensinado a colocar os polegares na cintura das calças compridas; em uma segunda etapa, ensinam-lhe a empurrar as calças para baixo; na terceira fase, ele é instruído a se inclinar e descer as calças até embaixo dos joelhos para, em uma quarta etapa, aprender a retirar as calças. O aluno deve ser orientado e auxiliado a compor suas respostas passando por todos os passos (pré-requisitos) necessários para executar um comportamento complexo, e deve sempre dominar os pré-requisitos antes de ser apresentado ao próximo passo; 5) Os conteúdos devem ser apresentados em uma ordem de complexidade crescente, preocupando-se em manter o comportamento adquirido a cada estágio novo; 6) O aluno deve ser exposto apenas ao material para o qual está preparado; 7) O ensino deve ser planejado e o desempenho do aluno deve ser monitorado constantemente, a fim de se avaliar o programa e fazer as mudanças necessárias; 8) Deve-se programar uma aprendizagem sem erros, ou seja, preparar um programa de modo que as chances de erro sejam mínimas, a fim de não desmotivar o aluno. Com crianças autistas, esse aspecto torna-se especialmente importante, visto que se considera que a frustração faz com que o portador de autismo emita comportamentos estereotipados. Nesse método, há uma avaliação inicial dos comportamentos que fazem parte do repertório e dos reforçadores que funcionam para aquele indivíduo, a partir da qual será montado o programa de aprendizagem. É importante salientar que uma crítica que os psicanalistas fazem frequentemente aos comportamentalistas vem do fato de não levarem a história ou as características individuais em conta. Nada mais equivocado. Os analistas do comportamento trabalham com a noção de sujeito único, proposta por Skinner. Esse sujeito não tem relação com o sujeito da psicanálise, mas traduz a ideia de que o que é reforçador para um indivíduo (portanto, responsável por manter, ou não, certos comportamentos em seu repertório) depende do ambiente em que ele se insere, ou seja, de quais comportamentos são ensinados e valorizados pela comunidade a seu
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redor, como também de sua história de reforçamentos (o que se tornou reforçador para aquele indivíduo em particular). Isso tem uma consequência importante para a metodologia. Antes de preparar um programa, deve haver um período de observação e registro minucioso sobre os comportamentos instalados e o que é reforçador para dado indivíduo. Assim, por um lado, não se pode falar na existência de um projeto único para todos os indivíduos, indiferenciadamente, e, por outro, não podemos acusar os comportamentalistas de não se aproximarem dos indivíduos portadores de autismo com curiosidade e uma atitude investigativa. A diferença inicial entre um analista do comportamento e um psicanalista passa pela pergunta que o profissional usa para nortear seus primeiros contatos com o portador de autismo: “que comportamentos inadaptados fazem parte do repertório desse indivíduo e quais reforçadores os mantêm?”, pergunta-se o analista do comportamento; “qual função esse comportamento diferente tem para ele?”, indaga-se o psicanalista. É por uma coerência com esse questionamento original que o modo subsequente das intervenções é construído. Outro aspecto importante diz respeito a quais comportamentos devem ser modificados. Os programas são elaborados a partir dos comportamentos que a comunidade (a família, por exemplo) considera desejáveis e indesejáveis. Do ponto de vista da psicanálise, devemos manter uma posição crítica sobre a ideia de que seja possível e desejável moldar os indivíduos a uma norma externa, baseada em critérios de adaptabilidade e funcionalidade. O currículo comportamental é composto por programas desenvolvidos por um analista do comportamento, mas que pode ser executado por qualquer pessoa treinada por ele, denominada “aplicador”. Essa é uma característica do trabalho que marca uma diferença fundamental em relação à psicanálise, que baseia suas intervenções no vínculo estabelecido entre paciente e psicanalista, como também outros terapeutas implicados no tratamento interdisciplinar. Para os analistas do comportamento, por outro lado, qualquer pessoa, desde que bem treinada, pode conduzir o tratamento. De fato, considera-se desejável que haja essa mudança, a fim de que uma generalização do comportamento se institua, ou seja, que dado comportamento não esteja vinculado à presença de determinada pessoa, mas a uma dada situação.
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Outra crítica que os psicanalistas muitas vezes fazem aos comportamentalistas diz respeito aos sentimentos. É importante ressaltar que a crítica de que os comportamentalistas não levam em consideração os sentimentos e emoções é prenhe de mal entendidos que promovem seu rechaço. Eles não negam sua existência, mas consideram que os sentimentos são aprendidos e que são correlatos aos comportamentos observáveis, não sua causa. Esta é, aliás, a maior crítica que fazem à psicanálise: o fato de se considerar que estados internos são a causa dos comportamentos. Uma dificuldade dessa abordagem mostra-se na prática, pois o fato de pessoas com autismo recusarem a entrar em contato com as pessoas faz com que muitos estímulos do ambiente não se tornem estímulos reforçadores para eles, dificultando a execução dos programas de aprendizagem. Desse modo, lê-se em algumas pesquisas de metanálise que o ABA não funciona para todos os indivíduos. Consideramos importante seguir com esse levantamento doravante, pois ele se mostra como uma linha crítica consistente à infundada proclamação de eficácia única do ABA com o autismo, por parte de seus defensores.
Nota-se que conceitos superficialmente semelhantes entre a terapia comportamental e a psicanálise, como os de “sujeito único”, “história” e “características individuais”, perdem sua proximidade quando examinados com a lente epistemológica que os origina. Para a terapia comportamental, tais expressões remetem à história de condicionamentos por que passou aquele indivíduo, configurando suas características individuais de respostas aos estímulos e denotando a ênfase no modo como o ambiente se apresentou a ele, no decorrer de sua vida. Para a psicanálise, o “sujeito único” diz respeito ao que há de inusitado e criativo em suas ações e em seu discurso, que repousam nos sentidos que ele construiu sobre os acontecimentos por que passou, ao longo de sua trajetória. É com base nesse modo interpretador de se colocar no mundo que o sujeito se manifesta na criança com autismo por meio de sua movimentação, sua postura corporal, seu choro, suas palavras, sua cantoria.
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Como, então, pode-se considerar um sujeito comportamental “único”, se o que ele deve fazer é definido pelos valores ambientais, e não pelo seu modo singular de estar no mundo? Sob a perspectiva comportamental, a importância dada ao único da criança autista serve apenas como identificação para o caminho que leva à homogeneização dos comportamentos adaptados e funcionais que se visa.
• O método TEACCH O método TEACCH — Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children ou Tratamento e Educação de Autistas e Crianças com Deficiência Relacionadas à Comunicação —, criado em 1966 por Eric Schopler, nos Estados Unidos, é resultante da composição entre o cognitivismo e o condicionamento operante, sendo uma adaptação dos princípios da terapia cognitivocomportamental ao autismo e àquelas crianças com deficiências na área da comunicação. Ela utiliza os princípios e técnicas da análise do comportamento, mas introduz alguns aspectos que auxiliam as dificuldades específicas encontradas no autismo. Os pais são fundamentais nessa forma de tratamento, pois não somente colaboram no conhecimento sobre seu filho e na elaboração de um programa individual a ele destinado, como também aplicam as atividades TEACCH no ambiente de casa, estabelecendo-se como coterapeutas. Vê-se aqui uma diferença conceitual em relação à psicanálise, pois esta considera fundamental que os pais cultivem a “parentalidade”, sua função maior, com seus modos próprios de ver e lidar com o filho. Esse lugar referencial é importante e não deve ser substituído pela função de professor ou de terapeuta. Ademais, uma das tarefas dos pais é a de educadores, mas sem perderem sua subjetividade ao se colocarem nesse papel. Quando treinados como coterapeutas por uma técnica que lhes vem de fora, se perdem entre esta e os rompantes de subjetividade que os acometem, espontaneamente. Schopler hipotetizou que a falta de estrutura ambiental aumenta a ausência de objetivo na ação e piora o comportamento estereotipado da criança. Assim, propõe o uso de um ambiente estruturado: a sala de aula TEACCH possui ambientes separados, um local reservado para atividades individuais com o terapeuta, outro para atividade
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em grupo, um terceiro para o lanche e um quarto local destinado às atividades livres da criança. Neste último, ela tem o direito de executar suas estereotipias gestuais ou rodar seus objetos sem que haja nenhuma intromissão. Cada um desses espaços é utilizado somente para a função que lhe é destinada. Outro aspecto norteador da intervenção diz respeito a uma suposta observação de que as crianças autistas possuem melhor acuidade visual que outros indivíduos; assim, o método faz uso intensivo do recurso visual. Em poucas palavras, o TEACCH parte do pressuposto de que, no tratamento dos autistas, toda e qualquer situação apresentada deve ser estruturada, com material disponível, sequência e tempo de duração preestabelecidos. Na promoção do desenvolvimento da linguagem, a necessidade prioritária é facilitar a comunicação social. Nos casos de autistas que apresentam pouco ou nenhum progresso na fala, mas que demonstram alguma compreensão da linguagem, são introduzidas a linguagem gestual ou a de cartões. Outra característica dos autistas que dificulta sua aprendizagem é a tendência de memorização das respostas aprendidas, sem a devida atenção aos conceitos envolvidos na questão que lhe foi apresentada e a dificuldade de generalização. As dificuldades das crianças autistas para utilizar as funções simbólicas da linguagem – representar as coisas por uma palavra – são reconhecidas, mas interpretadas como uma incapacidade para “generalizar”. Assim, para uma criança que nomeia as letras e lê algumas palavras, mas considera que “xícara” refere-se a uma xícara em especial, é recomendado à mãe que etiquete todos os recipientes da casa para desenvolver a generalização ausente. Os analistas do comportamento partem do pressuposto de que os autistas lidam com a frustração recorrendo a um tipo de resposta estereotipada; assim, advogam que é possível diminuir as estereotipias quando reduzem suas chances de erro. Também acreditam que alguns aspectos ambientais — tais como ambientes áridos, pobres e pouco estimulantes — eliciam os comportamentos estereotipados, e sua intervenção ocorre no sentido de modificar esses ambientes. Também defendem que esses comportamentos podem ser reduzidos por meio da introdução de comportamentos incompatíveis com as estereotipias e passíveis de competir com elas. A redução da rigidez e das estereotipias é obtida pela técnica da “mudança gradativa”,
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pela qual são introduzidas pequenas modificações, que são percebidas e aceitas pela criança como não contendo alterações de padrão, até que se atinjam mudanças importantes em seu comportamento. A eliminação de comportamentos considerados inespecíficos e desajustados — ataques de raiva, agressões, medos, enurese noturna — também é feita por análise funcional do comportamento e aplicação dos princípios da aprendizagem com que trabalha a terapia comportamental. Para aliviar o sofrimento familiar, orienta-se a família sobre o que fazer nas diversas situações domésticas. O esclarecimento do diagnóstico, a discussão sobre o prognóstico e o estabelecimento da família, sobretudo dos pais, como coterapeutas do tratamento do filho, juntamente com indicações de leituras voltadas para leigos, ajudam a obter algum alívio no sofrimento familiar. Os irmãos também são escutados e orientados, bem como toda a comunidade que participa do cotidiano daquela criança. Acredita-se que a ausência da busca de vínculos e de resposta à tentativa de aproximação dos outros pode ser modificada mediante a intrusão deliberada dos pais ou terapeuta nas atividades solitárias da criança, de modo que, para exercer essas ações prazerosas, ela tenha, obrigatoriamente, que interagir com os outros. Tem-se, ainda, a exigência de, por meio desse recurso, tornar a interação social gratificante para o autista. Suas incapacidades sociais generalizadas, entretanto, não são sanadas, e a terapia comportamental reconhece sua ausência de conhecimentos que serviriam para suprir esse déficit. Sugere-se, no entanto, não deixar de abordar, com essas crianças, um treinamento em habilidades sociais. Há, na concepção prévia que a terapia educativa faz do autista, uma ênfase dada ao déficit — nesse caso, o mental — e a tentativa de superá-lo, com exaustivo treinamento de comportamentos socialmente adaptados. O que se pode dizer com segurança sobre esses métodos é que se preocupam exclusivamente com a mudança de comportamento dos indivíduos, e que essa determinação é externa à criança. Uma observação relevante a ser feita retoma a questão do déficit cognitivo suposto no autismo. A fala enunciativa dessas crianças, verificada em inúmeros casos, em que uma frase é verbalizada e dirigida a alguém por um autista que “não fala”,
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objeta essa convicção de deficiência, uma vez que, nessas situações específicas, o autista demonstra capacidade de elaborar corretamente sua verbalização, inclusive com o apropriado uso do pronome “eu”. A metodologia psicanalítica com crianças com autismo enfatiza que os comportamentos, seus sintomas, são uma resposta ou um meio de comunicação do seu mal-estar, que na cena terapêutica são reproduzidos, entendidos e modificados e não tratados apenas como uma falha a ser suprimida. “Isto porque a exclusão do outro que a criança faz não é um superficial problema de comportamento a ser corrigido. É uma profunda resposta que se produziu, é uma forma de estar no mundo. Por isso não se pode suprimir essa resposta antes que se constituam para ela (em tratamento) outras formas possíveis de estar com os demais.” (Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” ― Grupo 7, 2013). Para a psicanálise, a ética requer que, nos cuidados com essas crianças, seu sofrimento e sua posição subjetiva sejam levados sempre em consideração. (Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” ― Grupo 8, 2013).
O MÉTODO SON-RISE O método Son-Rise foi desenvolvido por um casal estadunidense na década de 1970 na tentativa de ajudar o filho autista. Son-Rise em inglês é homófono a sun rise (“nascer do sol”), podendo ser traduzido livremente como “o despertar do filho”. Esse método tem se expandido rapidamente no Brasil, assim como em outros países. Está ligado a algumas instituições, como a “Inspirados pelo Autismo”, que adverte, no entanto, ter criado uma metodologia própria a partir de sua formação inicial no Son-Rise.54 Trata-se de um programa domiciliar dirigido aos pais, que conta com um grupo multidisciplinar de profissionais e voluntários, que os ajuda a construir “experiências interativas estimulantes” para o filho no dia a dia. Busca motivar a criança a expandir seu mundo a partir de suas ações e de uma atitude afetuosa e não crítica dos adultos. 54
Conforme observação constante da Newsletter da Inspirados pelo Autismo, de janeiro de 2013.
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Os pais recebem auxílio para planejar sessões lúdicas em um ambiente especialmente preparado para a criança em sua própria casa. Dando ênfase à aprendizagem social, oferece ajuda aos pais para recuperar o otimismo e a esperança, criando uma atitude consistente de aceitação e entusiasmo. A proposta de que o adulto vá até o mundo do autista, buscando construir uma ponte entre ele e o resto do mundo, tem como fundamento a ideia de que, nessas condições, a criança se verá motivada a procurar se relacionar com os pais ou com o terapeuta. Os comportamentos repetitivos e de isolamento são permitidos “para que a criança possa fazer a sua autorregulação e satisfazer suas necessidades sensoriais” (Tolezani, 2010). O ritmo da criança é respeitado, tendo o terapeuta a postura de juntar-se a ela, realizando o que faz naquele momento. As informações recolhidas sobre seus interesses e preferências sensoriais são usadas na construção de atividades interativas que as atendam. “Quando ela [a criança] passa a nos oferecer ‘sinais verdes para a interação’, como por exemplo, olhando em nossa direção ou para o que estamos fazendo, olhando em nossos olhos, falando conosco, oferecendo algum contato físico, seu estado de disponibilidade está mudando e ela está agora interessada em nós e em nosso mundo. Aproveitamos esta oportunidade para tentarmos então criar alguma atividade interativa com ela, convidando-a para interagir conosco em uma atividade que possa ser interessante e divertida para ela. Enquanto a criança participa da atividade ou da brincadeira, inserimos metas educacionais personalizadas que ajudam a criança a aprender brincando. Quanto mais motivada a criança estiver dentro da atividade, mais participações conseguiremos solicitar dela e, de uma forma divertida, incentivá-la a superar suas dificuldades e desenvolver suas habilidades.” (Tolezani, 2010). Em sua análise do método, Schwartzman (2011) o inclui na seção “Terapias alternativas e controversas”, objetando que não há, até o momento, estudos que comprovem sua eficácia. Entretanto, nota-se que o Son-Rise é acolhedor quanto ao modo de estar no mundo do autista, aguardando seu consentimento sobre as
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atividades propostas. Esses são seus méritos. A despeito disso, suas intervenções se mantêm no campo das atividades lúdicas e educativas controladas, sendo esse ambiente diverso daquele do âmbito social em que o autista circula (escola, padaria, transporte coletivo etc), o que faz questionar, tal como ocorre com as intervenções comportamentais, a possibilidade de generalização desses aprendizados e aberturas ao outro.
A TEORIA DA INTEGRAÇÃO SENSORIAL A teoria da Integração Sensorial baseia-se na hipótese de que o autista apresenta um déficit específico, localizado no processamento das sensações. Essa disfunção se caracteriza ou por um problema na modulação sensorial, isto é, na intensidade e na natureza da resposta dada aos estímulos sensoriais percebidos, ou por falhas na discriminação destes, com uma interpretação equivocada das características temporais e espaciais dos estímulos sensoriais. Concordante com essa acepção, o médico assistente do filme Rain Man descreve o autismo como “uma deficiência que prejudica o sensorial e seu processamento”. A teoria da Integração Sensorial foi desenvolvida pela terapeuta ocupacional americana Anne Jean Ayres e pressupõe que a integração sensorial seria a base para a aprendizagem, pois existem relações complexas entre o comportamento e o funcionamento neural. A percepção, a organização, a interpretação e a integração de informações permitem estabelecer relações funcionais, apropriar-se do ambiente e aprender. Há testes para se avaliar o processamento sensorial, que permitem o planejamento da intervenção. Em crianças com autismo, três aspectos relacionados ao processamento sensorial são ineficientes: os estímulos sensoriais não são registrados adequadamente, os estímulos percebidos não são modulados de forma adequada pelo SNC, sobretudo o vestibular e o tátil, e há inabilidade para integrar muitas sensações do ambiente. Considera-se que a hiperresponsividade ou as flutuações entre os níveis hipo e hiperresponsivo causam prejuízos ao desempenho de atividades relacionadas com autocuidado, mobilidade e função social. Na Terapia de Integração Sensorial são usadas brincadeiras, jogos e atividades lúdicas para organizar a estimulação sensorial. O ambiente terapêutico deve conter
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equipamentos e recursos que promovam sensações e informações sensoriais variadas e desafiadoras. As necessidades individuais de cada criança direcionam os objetivos da intervenção e o processo terapêutico. A criança deve conduzir a terapia. O respeito à sua motivação intrínseca e à liberdade de exploração devem levar, ao longo do tratamento, à diminuição do direcionamento verbal ou motor. O terapeuta deve manter o equilíbrio entre a necessidade e a liberdade de escolha. Um programa de nutrição sensorial pode ser complementar ao tratamento clínico, garantindo que a criança receba adequadamente, ao longo do dia, sensações agradáveis e incentivadoras que reduzam comportamentos de agitação, irritabilidade e evitamento. A Terapia de Integração Sensorial não se confunde com a Estimulação Sensorial, pois não se trata, sempre, da aplicação de estímulos nessa área. Se a criança apresentar um problema de modulação sensorial, com uma acentuada reação aos estímulos percebidos, não seria indicado, pois, estimulá-la, mas, ao contrário, reduzir tais estímulos a níveis suportáveis para ela. De acordo com as teorias que embasam a Terapia de Integração Sensorial, a consciência corporal se constitui por meio da coadunação dos estímulos percebidos pelos sistemas tátil, vestibular e proprioceptivo. Uma vez que a ausência de consciência corporal no autismo se daria por um déficit nessa área sensorial, o incentivo ao desenvolvimento geral de seu esquema corporal, com a avaliação e a instauração dos níveis adequados de estimulação sensorial, é considerado um recurso bem-vindo. Uma versão exagerada da técnica de integração sensorial, mas que não se confunde com ela, seria a terapia do abraço (holding therapy). Ela consiste em envolver o autista em abraços forçados, com o objetivo de obrigar a criança a um contato corporal, até torná-lo aceitável, superando sua tendência natural ao isolamento. Esse é o extremo da anulação total da subjetividade. Se for considerado o pavor — conhecido por todos aqueles que lidam com essas crianças — que a maioria dos autistas apresenta à intrusão direta em seu espaço íntimo, esse tipo de intervenção
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arrisca-se a promover crises autísticas e o corriqueiro uso de medicamentos para tentar controlá-las.
A COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA E AMPLIADA (CAA) O grau de comprometimento na comunicação varia em cada indivíduo com autismo. Os prejuízos comunicativos podem estar relacionados com a comunicação verbal e/ou à não verbal (utilização de gestos, expressões, contato ocular e posturas corporais com valor comunicativo). Estima-se que entre 20 e 30% dos indivíduos com autismo não desenvolvem linguagem verbal. Também são comuns a presença de ecolalias, inversão pronominal, linguagem sem intenção comunicacional e dificuldade de interpretação semântica. (Macedo e Orsati, 2011). A observação da ocorrência conjunta de dificuldades comunicativas e comportamentos disruptivos e autolesivos leva alguns pesquisadores a supor que esses comportamentos sejam devidos à impossibilidade de comunicar necessidades e desejos. Assim, o treino de comunicação funcional tem sido utilizado como uma maneira de buscar a diminuição de comportamentos inadequados. Baseado nos pressupostos da Análise Funcional do Comportamento, o treino busca fazer com que o indivíduo aprenda a comunicar o desejo por um dado reforçador, sem que precise fazer uso dos comportamentos indesejados. Para tanto, faz-se uso de sistemas de Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA). Esses sistemas podem ser pictóricos (com uso de fotos, filmes ou desenhos) ou linguísticos (com o uso de símbolos arbitrários e abstratos que podem ser combinados) e podem ter um auxílio instrumental (figuras, fotos, teclado para digitação, comunicador, gravador de voz etc.) ou não (quando utilizam apenas o próprio corpo). Um dos métodos mais utilizados é a comunicação por sinais manuais, tanto LIBRAS como símbolos relacionados à realidade dos usuários. Os computadores têm sido utilizados tanto para auxiliar a comunicação quanto a aprendizagem de indivíduos com autismo. Em casos de déficit severo de linguagem, são utilizados comunicadores com saída de voz (em que, por exemplo, uma mensagem é digitada e pode ser lida pelo parceiro de comunicação ou ser utilizado um recurso de saída de voz sintetizada). Um deles é a Comunicação Facilitada, utilizado com indivíduos que não falam, têm discurso muito limitado ou não conseguem apontar
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com firmeza. Os pacientes recebem treinamento para utilizar o equipamento de forma independente. Outro método bastante utilizado é o PECS (Picture Exchange Communication System ou Sistema de Comunicação por Troca de Figuras), que se utiliza de cartões com figuras representativas de objetos e ações com a finalidade de ensinar o usuário a discriminar símbolos, utilizá-los com função comunicativa e agrupá-los para formar sentenças simples que comuniquem seu desejo por objetos ou atividades. Dentre os PECS, os mais comuns no Brasil são o PCS (Picture Communication Symbols), utilizado tanto na versão impressa como
a versão virtual, e o sistema brasileiro
ImagoDoAnaVox, um software que apresenta imagens e animações com o nome escrito e a possibilidade de escutar o nome da imagem emitida pelo computador em vários idiomas. Ele também permite a comunicação escrito-vocálica, apresentando sílabas da língua portuguesa que podem ser compostas, impressas e escutadas, assim como a pré-gravação customizada de 24 mensagens para serem utilizadas na comunicação do dia a dia. Recentemente, pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) modernizaram os fundamentos do PECS e criaram o MeaVox (“minha voz”, na tradução), um programa interativo por meio de touch-screen que transforma em palavras audíveis as figuras selecionadas pelo autista na tela do computador ou mesmo do celular. Diante da crítica de que a utilização de sistemas de CAA poderia desmotivar os usuários a se comunicarem por meio da linguagem verbal, os advogados da CAA defendem que pesquisas indicam que seu uso pode mesmo melhorar a produção verbal de pacientes com autismo.
PSICOFARMACOTERAPIA A mudança da compreensão dos mecanismos do autismo no seio da psiquiatria como sendo eminentemente cognitivos tem como corolário a prescrição de terapias cognitivas e comportamentais aliadas à farmacoterapia em seu tratamento. A farmacoterapia tem a finalidade de minimizar os “sintomas-alvo”. No caso do autismo, manifestações e comportamentos expressos que lhe são específicos
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(estereotipias, alheamento, resistência a mudanças) ou a eles associados (hiperatividade, agressividade, crises de birra). Assumpção e Kuczynski (2011) relatam que se estima que cerca de um terço dos indivíduos autistas faz uso de alguma droga (psicotrópica ou vitamina) em seu tratamento. Entretanto, apontam que os medicamentos são efetivos apenas para alguns sintomas, pois as dificuldades de relacionamento social e de comunicação são menos responsivas à medicação. Eles esclarecem, ainda, que as drogas psicotrópicas podem auxiliar na redução de certos sintomas, muito embora não se prestem à sua cura e tampouco substituem outras formas de suporte e intervenção. “O objetivo da abordagem farmacológica é o de melhorar sintomas ou condutas que interfiram na possibilidade de o indivíduo participar dos sistemas educacionais sociais, laborais e familiares, bem como melhorar a resposta positiva a outras formas de intervenção. Entretanto, mesmo considerando a importância da questão psicofarmacológica, a intervenção compreensiva, o aconselhamento familiar, a educação especial (em ambiente altamente estruturado), o treinamento de integração sensorial, a terapia fonoaudiológica e o treino de habilidades sociais devem, sempre que possível, ser o foco principal da abordagem a esse paciente.” (Assumpção & Kuczynski, 2011, p. 217).
Drogas mais comumente utilizadas As drogas mais comumente utilizadas em portadores de transtornos do espectro autístico são haloperidol, risperidona, clomipramina, fluoxetina, fluvoxamina, sertralina, amissulprida, olanzapina, buspirona, citalopran, pimozide e clonidina. Algumas drogas parecem promover uma piora dos sintomas-alvo. A L-DOPA e a bromocriptina pioram o alheamento, os distúrbios de comunicação, as respostas bizarras e as estereotipias. Os efeitos de algumas drogas sobre portadores de autismo, tais como naltrexone e metilfenidato, apresentam resultados contraditórios. (Assumpção e Kuczynski, 2011).
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A utilização de algumas drogas tem sido abandonada devido a seus efeitos colaterais. Em meados dos anos 1980, a fenfluramina foi utilizada de maneira entusiástica pelos psiquiatras para melhorar os distúrbios comportamentais e o desempenho de portadores de autismo; entretanto, seus efeitos colaterais, dentre eles o desenvolvimento de doença valvular regurgitante grave, fizeram com que fosse retirada de circulação. O haloperidol promove maior coordenação, autocuidado, afeto, comportamento exploratório, bem como a redução de estereotipias, do alheamento, da hiperatividade, da inquietação e da birra em crianças. Seus efeitos colaterais, principalmente o risco de discinesia tardia, entretanto, faz com que ele seja substituído por antipsicóticos atípicos. Há relatos de casos isolados de melhora sob efeito de secretina. O uso das vitaminas B6, B12 e Magnésio foi associado à melhora na socialização e dos distúrbios comportamentais em alguns casos, mas os resultados não foram confirmados. Schwartzman (2011) adverte que a terapia megavitamínica deve ser contraindicada porque, além de sua questionável eficácia, pode promover efeitos colaterais como desconforto intestinal e toxicidade hepática. A dieta livre de glúten e caseína foi associada a uma melhora no comportamento social, segundo alguns pais, mas nenhum estudo controlado validou essa observação. Assumpção e Kuczynski (2011) concluem que as variadas prescrições e seus efeitos parecem pouco definidos, em razão da baixa validação de seu uso, o que seria confirmado por estudos controlados sobre os tratamentos farmacológicos. Quando se trata da validação para uso nos casos do transtorno do espectro autístico, os estudos são ainda ainda raros na literatura da área.
CONCLUSÃO As concepções aqui elencadas não esgotam a quantidade de abordagens terapêuticas existentes para o autismo. E sua diversidade não apaga o comum a todas elas: a questão de como lidar com a recusa à interação social manifestada pelo autista. Entretanto, a despeito desse unicismo de objetivos, não se deve desconsiderar que várias abordagens partem de campos epistemológicos distintos que não se mesclam. Reconhecer essas visões antagônicas como discursos que se impõem no
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campo das práticas terapêuticas faz com que se possa confrontá-los, explicitando suas diferenças. (Cavalcanti & Rezende, 2010). Uma vez as diferenças explicitadas, pode se promover o diálogo e acompanhar os avanços científicos conquistados em várias disciplinas que pesquisam o autismo. Assim, essas conquistas podem ser articuladas para melhorar a abordagem da complexidade no tratamento do autismo, visando a benefícios que contemplem as pessoas com autismo e suas famílias. Se todos se propõem a esse objetivo comum, um diálogo entre a diversidade passa a ser possível.
Participantes e colaboradores diretos do texto: Míriam Rechenberg (Sedes, SP – Dep. de Psicanálise da Criança), Paula Pimenta (EBP-MG, FCMMG e CePAI/FHEMIG) e Paulina Rocha (CPPL-Recife, ABEBE, CPP).
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Grupo de Trabalho 21 – Política para o tratamento das psicoses
POLÍTICA E ÉTICA DA PSICANÁLISE PARA O TRATAMENTO DAS PSICOSES: A subversão como resposta à segregação.
Como
responderemos
nós,
os
psicanalistas
à
segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem
precedentes?”(LACAN,
Alocução
sobre
as
psicoses) INTRODUÇÃO: A proposta desse tema de trabalho para a Jornada Autismo, Psicanálise e Saúde Pública coloca, de saída, um posicionamento em relação a como compreendemos a articulação possível entre esses três termos. Dessa forma, o título de nosso trabalho aponta para uma localização da Psicanálise no campo da Política e da Ética, e uma localização do Autismo no campo das Psicoses. Consideramos que não há fatos que independam das teorias subjacentes ao próprio campo em questão, e que não há Clínica que possa dispensar um rigoroso conjunto de referenciais teóricos, sob pena de reduzir-se a uma terapêutica com eficácia apenas simbólica e inefável, equiparando-se à magia. Freud, ao contrário, é responsável pelo reingresso da verdade no campo da ciência, o que possibilita sustentarmos uma Clínica Psicanalítica a partir da causalidade psíquica. Destacamos, portanto, que é somente a partir da concepção inédita de sujeito, trazida pela Psicanálise – sobretudo a partir do ensino de Jacques Lacan –, tributária de sua relação fundamental com a linguagem, que podemos pensar de um modo não normativo na questão ética que os sujeitos psicóticos nos convocam a responder, qual seja: a da possibilidade de se estar na linguagem, mas fora do discurso. A partir dessa definição geral do sujeito psicótico e de sua peculiar relação com a linguagem, o sujeito autista nos indaga ainda mais com sua tipologia particular, e sua posição no polo limite da relação com o Outro da linguagem.
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Assim, ele nos possibilita declararmos a sustentação radical de uma política da direção do tratamento que responda com a subversão contra a segregação.
I.
O AUTISTA: UM ANALISANTE DE PLENO DIREITO
Pensar a política da Psicanálise para o tratamento das Psicoses em geral e, em particular, para as pessoas com o chamado “transtorno do espectro autista” implica, antes de mais nada, adotar uma posição ética contrária à segregação. O que orienta a Clínica Psicanalítica é exatamente o impossível de universalizar. Como nos lembra C. Soelr:“Penso que o desejo da diferença absoluta ao qual se devota o psicanalista, é suportado pela necessidade para os sujeitos um a um de se extraírem do lote para não desaparecerem no um entre outros, sempre anônimo”. (C. Soler, 1998, p. 289.). As questões que vêm sendo debatidas sobre o tratamento para os sujeitos considerados em estado autista remetem necessariamente a uma outra questão maior que se refere à necessidade de se tomar como sujeito de pleno direito qualquer um, independente de sua idade, raça, sexo, condição social e, principalmente, psíquica. Foi esse pensamento subversivo que permitiu a Freud, desde 1905 – antes mesmo de analisar o caso do pequeno Hans –, abrir para a criança seu lugar como sujeito para a Psicanálise, na medida em que não recua diante de suas descobertas clínicas desde as histéricas, e se interroga pelo “infantil” que se impõe nas construções neuróticas. De fato, a Modernidade, ao supor deter o saber sobre a criança, a coloca, paradoxalmente, no lugar de objeto. Segundo Prates Pacheco (2012): “para o bem ou para o mal o Discurso Universitário cria a criança no lugar do objeto, deixando o sujeito no lugar de algo a ser produzido pelo saber”. E ela acrescenta que rapidamente “A Criança” passa a ser um significante absorvido pelo Discurso do Mestre “que passa a agenciar, a partir de então, um saber sobre A Criança: a Pedagogia, a Pediatria, a Pedopsiquiatria”. (p. 279). Nessa mesma direção entendemos o que Rosine Lefort(1997) dirá a respeito da situação em que se encontravam as crianças institucionalizadas:“(...) a questão da patologia de crianças pequenas em instituição hospitalar, cujo funcionamento corporal é submetido apenas a um S2 que se encontra no lugar de agente no discurso universitário – que faz mandato “come!”, “vai para o penico!” ou
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“dorme!”– tem como efeito o surgimento de sintomas que não se apresentam como respostas do sujeito. (p. 147) Segundo Quinet: A inclusão do sujeito no tratamento tem duas vertentes que devem caminhar juntas: por um lado, a inclusão do sujeito do inconsciente, com sua fala, sua história e seus sintomas, manifestações de sua singularidade. Isto significa incluir o sujeito no saber sobre sua patologia, seu pathos, seu padecimento. (...) A inclusão no campo social é também tributária do conceito de sujeito em Lacan, na medida em que não há sujeito sem Outro (...) O conceito de sujeito, portanto, é ao mesmo tempo individual e coletivo. Não há sujeito sem Outro – daí a dificuldade de encontrarmos as manifestações do sujeito no autismo, onde há um curto-circuito da alteridade” (Quinet,2006,p.49) Como então pensar a questão da inclusão do sujeito no caso de pessoas que, por princípio, são consideradas fora do laço com o Outro, como é o caso dos autistas? Eis o desafio da Psicanálise, ao considerar o sujeito autista um analisante de pleno direito. II.
INCLUSÃO, EXCLUSÃO E SEGREGAÇÃO
Sabemos que delimitar um conjunto dos autistas estabelecendo para este normas e protocolos de tratamento, longe de incluí-los, reforça sua condição de sujeitos fora das normas, o que promove ainda mais sua segregação. Advertimos aqui que estamos diferenciando os paradoxos do binômio “inclusão X exclusão” da segregação, em particular como foi trabalhada por Lacan em 1967. Para abordarmos brevemente o que diz respeito ao suposto binômio “inclusão X exclusão”, colocaremos algumas questões de base: trata-se de uma relação de complementaridade? Será que não poderíamos pensar as relações entre exclusão X inclusão como sendo de ordem suplementar, incluindo aqui a categoria do impossível? Como poderemos, a cada vez, atualizar essas questões quando nos referimos às intervenções clínicas nos diferentes níveis em que elas se apresentam?
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Considerando tratar-se de uma relação suplementar, propomos que o tratamento da exclusão da diferença considere, sobretudo, a resposta singular que inventa versões que subsidiem espaços diferentes para o que é da ordem da exclusão. Temos então a possibilidade de abalar o binômio “exclusão X inclusão”, acrescentando o impossível (via o suplementar, em questão). Acrescentemos, ainda, um quarto termo, qual seja, o desejo do analista. O desejo do analista é a condição absoluta de manter toda relação de complementaridade em enigma. Ele cava um fosso em binômios tais como o de inclusão X exclusão. Quinet (2006), ao se perguntar pelo laço social nas psicoses, escreve: A inclusão como inserção social é receber do exílio aquele que cortou os laços com as exigências da civilização, tais como renunciar às pulsões sexuais em função do outro. (...) A inclusão de que se trata é a inclusão da diferença radical no seio da sociedade de supostos iguais – por exemplo, a sociedade de cidadãos.// Por muito tempo, houve uma foraclusão da inclusão na história da psiquiatria que adotou outro binômio: exclusão e reclusão. (...) Em vez de foracluir a inclusão, trata-se de incluir a foraclusão” (p. 49)
Incluir a foraclusão é um imperativo ético que se atualiza, a cada vez na clínica. Trata-se de uma resposta que, a seu modo, evoca o que Freud nomeou a Coisa, e para a qual Lacan inventou o neologismo “êxtimo”. A saber: aquilo que fosse excluído originalmente será considerado como o mais íntimo do sujeito; um interior excluído que escreve – como modo lógico necessário: não para de escrever – uma resposta do ser falante no seu laço ao Outro. Esse interior excluído que é retroativamente o exterior incluído, a ser reconhecido como o mais íntimo de nosso ser, foi o que Lacan propôs ao falar da ética da psicanálise. A Coisa Freudiana se deduz como lugar da perda fundante do ser falante. A possibilidade de criar um sistema no qual o sujeito encontre asilo ao exílio da sua existência de linguagem ameaçada por essa obscenidade do Outro. Segundo Berta (2010):“Das Ding é o fora-do-significado, em função disso, o sujeito construir uma relação patética
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(pathos) com esse fora, conservando uma distância e extraindo um afeto primário – a angústia anterior a todo recalque”. Evoquemos neste ponto preciso o que é da ordem da segregação, entendida como a facticidade real (Lacan, 1967). Facticidade, termo que evoca o Dasein Heideggeriano, se diferencia da contingente factualidade dos objetos da experiência. (Harari, 2007, p. 192) A facticidade exige uma construção que enlaça os acontecimentos, indica seja a contingência do evento seja a insistência em poder deles fazer uma ficção subjetiva para dela retirar o seu caráter absurdo. Eis a proposta de Lacan ao diferenciar o que é da ordem dos acontecimentos e o que é da ordem de uma construção (elaboração) dos mesmos. Porém, podemos acrescentar que isso não depende tão somente das identificações (facticidade imaginária), mas dos modos de gozo, entenda-se com isso os modos de responder ao impossível. Evoquemos ainda que a facticidade simbólica remete aos usos do Mito do Complexo de Édipo, foracluído quando se trata da psicose. Nas últimas décadas os psicanalistas vêm respondendo à segregação da psicanálise, debatendo sobre os diferentes entraves e mal-entendidos que levaram a medidas por parte do Estado, que tende a desconhecer o mal-estar e o tratamento
do
impossível,
tendendo
a intervenções
que
supostamente
evidenciariam sua eficácia a partir da quantificação. Tais quantificações têm produzido um sintoma que levou ao pior, na sociedade, em particular no século XX: a segregação. Quantificações que não somente dizem dos diagnósticos, mas da falta de perguntas pelo que é da ordem da existência, ou seja, em termos psicanalíticos, pelo que é da ordem do impossível e das respostas subjetivas possíveis que não o neguem sistematicamente. Em contrapartida, a clínica psicanalítica deverá acolher e
questionar
eticamente
“a
angústia
do
indivíduo
diante
da
forma
concentracionista do vínculo social”. (Lacan, 1949, Escritos, p. 102).
III.
A QUERELA DA ETIOLOGIA E DO DIAGNÓSTICO
Ora, se a partir da Psicanálise sabemos que as respostas do sujeito dependem em grande medida do discurso predominante no laço social vigente, precisamos introduzir nesse debate a questão do diagnóstico no contexto da Psiquiatria
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contemporânea. Concordamos com a afirmação de Quinet (2006) de que: “fundar uma prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a transtornos, que por conseguinte devem ser eliminados com medicamentos, é abandonar a clínica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma estrutura clínica, que, no caso, é a estrutura do próprio sujeito (p.22). Por todas essas razões: “restituir
a
função
diagnóstica
no
tratamento
psiquiátrico a partir de uma clínica do sujeito é um dever ético que a Psicanálise propõe para a Psiquiatria. Isto é uma forma de sair do discurso do capitalista que condiciona desde o diagnóstico até o tratamento para restituir à medicação seu justo valor paliativo e não resolutivo do sofrimento mental. Pois a Psicanálise não se opõe à Psiquiatria, mas sim a todo Discurso que suprime a função do sujeito.”( p.22) Nesse ponto, é preciso destacar que a Psicanálise, enquanto campo próprio do conhecimento humano é, a um só tempo, como queria Freud, seu fundador: um procedimento para a investigação de processos mentais, um método (baseado nessa investigação) para tratamento e uma coleção de informações psicológicas obtidas por essa investigação, que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. Segundo Pacheco Filho, os adversários do Positivismo no Campo Epistemológico questionam justamente a ideia de um desenvolvimento linear, gradualmente progressivo e contínuo das investigações e realizações científicas, e privilegiam uma concepção de corte epistemológico, revolução e ruptura. O autor acrescenta ainda: “São autores que, além do mais, contestam a separação radical entre fato e teoria”. E segundo Hanson: (...) observações e interpretações são inseparáveis – não apenas no sentido de que nunca se manifestam separadamente, mas no sentido de que é inconcebível manifestar-se qualquer das partes sem a outra. (...) Separar a urdidura do tecido destrói o produto; separar a pintura da tela destrói o quadro; separar matéria e forma numa estátua torna-a ininteligível. Assim
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também, separa os sinais-de-apreensão-de-sensações da apreciação-dosignificado desses sinais destruiria o que entendemos por observação científica... A concepção de observação proposta pelos neopositivistas – por meio da qual o registro de dados sensórios e nossas elaborações intelectuais relativas a eles se mantêm apartados – é um golpe analítico equivalente ao de um açougueiro lógico. (1967/1975, p. 127-128) Pacheco Filho (2012) também afirma que “o aspecto importante a registrar é o fato de que o campo de uma nova disciplina científica sempre se constitui a partir de uma ruptura com a ordem científica anterior (um corte epistemológico), em que surgem novos 'compromissos de investigação' adotados pela comunidade do campo.” Nessa mesma direção, Nogueira (1997) sustenta que “a pesquisa feita por Lacan situa epistemologicamente o campo freudiano da linguagem considerando a materialidade do significante”. E acrescenta que “há aí uma exigência de rigor de pesquisa que coloca esta clínica no nível de promissoras conquistas científicas da realidade propriamente humana”. Assim, a Psicanálise conta com sua própria concepção de sujeito, uma diagnóstica coerente com essa concepção e uma terapêutica afim. Do ponto de vista da Psicanálise de orientação lacaniana, a categoria clínica AUTISMO engloba um conjunto vasto de sinais, sintomas, reações e posicionamentos subjetivos distintos, que, por sua ampla diversidade, não poderia ser contemplada por uma classificação uniforme e universal. Dessa forma, em nossa terminologia específica, utilizemos mais frequentemente a expressão: “estado autista”. Consideramos que os chamados transtornos do “espectro do autismo” são em grande parte decorrentes de causa sobredeterminada por muitas dimensões (orgânica, psicopatológica, histórica, etc.), fato que, de resto, pode-se inferir da maioria das afecções e transtornos que afetam o ser humano, sobretudo os transtornos ditos mentais. O autismo enquanto “estado” pode ser encontrado, sobretudo quando ocorre na primeira infância, em diversas estruturas e tipos clínicos – se levarmos em conta o diagnóstico estrutural, próprio da Psicanálise –, e mais frequentemente
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na Psicose de tipo esquizofrênica prematuramente desencadeada. Por outro lado, é possível também reconhecer um tipo clínico específico em certos sujeitos, no qual encontramos o que chamamos de uma “patologia da libido” (Soler, 1997), libido aqui tomada conceitualmente enquanto órgão produzido pelo encontro com a linguagem. Segundo Soler, poderíamos dizer que “essas crianças, na condição de sujeitos, permanecem puros significados do Outro”, e dessa forma, “são sujeitos, mas não sujeitos que enunciam”. (“Clínica da esquize”, p. 226). E aqui, precisamos voltar à tão debatida questão da etiologia, a partir da Psicanálise, cujo campo epistemológico e clínico, com uma noção própria de causalidade psíquica, rejeita o binômio inatismo X ambientalismo. Citemos, a esse respeito, nosso colega Bernard Nominé, membro da EPFCL-França, em trabalho apresentado sobre o tema no VIII Encontro Internacional da IF em 2012: Entretanto é necessário precisar que os psicanalistas não temem os avanços da ciência genética. O cognitivismo e a neuropsicologia se inspiram nas neurociências apenas para se opor à psicanálise, quer dizer, por não saberem nada da estrutura de linguagem. (...) Optar pela ciência contra a psicanálise é, portanto, uma aberração; a psicanálise não se opõe em nada às descobertas da ciência. É bastante provável que haja no espectro autístico patologias hereditárias. Ao mesmo tempo, mesmo nessas patologias aparentemente hereditárias, não se conseguiu isolar um gene responsável. Suspeita-se de pelo menos quatro sequências possíveis. Com isso, não há como propor uma triagem séria! Os falsos positivos seriam bem mais numerosos e o teste provocaria mais mal do que bem. Bertrand Jordan, biólogo molecular, pesquisador no CNRS, de quem dificilmente se pode suspeitar de ter um a priori favorável à psicanálise, escreve o seguinte: Sendo o autismo também um problema da relação, a profecia corrente de um teste muito impreciso corre o riso de ser autorrealizadora: designado como sendo de autorrisco, a criança será alvo da solicitação inquieta de seus pais, assim, se ela não fosse já autista, poderia se tornar...”
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Vindo de um geneticista advertido, essa observação tem o seu peso. Esse pesquisador em genética se preocupa em nos lembrar que não se pode confundir genótipo e fenótipo. O genótipo se manifesta em fenótipo sob a influência de contingências diversas que são incalculáveis. A transmissão do genótipo não basta em si mesma para escrever um destino. A tentação é grande, para alguns, de apelar à genética para compensar a questão da causa.
Destacamos, de qualquer forma, que um possível traço de origem orgânica na etiologia dos estados autistas não altera em nada o fato de que essas crianças e adultos possam ser amplamente beneficiados por terapias relacionais de forma geral e, especificamente, pelo tratamento psicanalítico. Nesse contexto, o perigo de se tratar um sujeito em estado autista a partir de protocolos universalizantes, como se estes indivíduos fossem todos iguais, é continuar mantendo-os no anonimato no qual se situam desde muito cedo.
IV - O TRATAMENTO PSICANALÍTICO DE SUJEITOS EM ESTADO AUTISTA: Como é possível então ao psicanalista responder de forma a subverter o anonimato de pessoas em estado autista? Como escutar “seres não falantes” para que possam fazer um uso da língua tal que seja possível um apaziguamento e, talvez, uma suplência? Não obstante o fato de constituir-se como um campo científico específico, como
procuramos
sustentar,
precisamos
reconhecer
que
o tratamento
psicanalítico é efetuado por profissionais de diferentes abordagens no interior do próprio campo psicanalítico, do mesmo modo como há diferenças nas demais abordagens da Psicologia Clínica, bem como em qualquer disciplina que reivindique uma prática clínica, inclusive a própria Medicina. Essa diversidade não é decorrente da falta de rigor ou de fundamentos adequados, mas é inerente ao próprio movimento do surgimento da Clínica ao longo da história, como vários autores têm demonstrado. A diversidade entre os Psicanalistas, portanto, não é
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vista entre os pares desse campo como algo necessariamente negativo, ou algo que deva ser eliminado a priori, mas, antes, como um fato decorrente do estado atual de nossa práxis, e cujo debate livre deve ser reconhecido e aprofundado pelos atores que participam do próprio campo, como é prática comum nas Universidades, Institutos e Escolas destinadas à formação dos psicanalistas. Essa diversidade, é importante ressaltar, é amplamente reconhecida por diversos Estados de Direito, inclusive o Brasil. O reconhecimento dessas diferenças não nos impede de afirmar, entretanto, que o objetivo geral da Psicanálise com sujeitos autistas é o de minimizar suas angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de laço social. Trata-se, evidentemente, de um trabalho a longo prazo, cujos resultados não podem ser avaliados através de critérios mecanicistas ou quantitativos. Se por um lado a Psicanálise, em sua origem, permitiu à criança tomar seu lugar enquanto ser falante, por outro é fundamental que uma pessoa em estado autístico possa encontrar, na cultura, um outro que não o trate de forma anônima tal como ele mesmo parece se colocar: sem nome, sem desejo. Sabemos que o tratamento dos ditos autistas toca no limite do insuportável: deparar com alguém que recusa um laço com o outro. Para suportar esse encontro, é fundamental sustentar uma posição em que o único desejo em jogo, da absoluta diferença, permita uma aposta constante de que o nascimento do Outro seja possível. A partir de nossa experiência com esses sujeitos, podemos afirmar que a via da Psicanálise é a da ética que aposta na diferença absoluta: da repetição estereotipada extrair um gesto que faça laço; da ecolalia, uma voz que se faça escutar. Sabemos que não há garantia de que um Outro venha a nascer, como diziam Rosine e Robert Lefort; mas sem essa aposta, é certeza que o anonimato e a segregação continuarão sendo o destino para essas pessoas. Como diz Nominé (2001), para isso “é preciso situar o encontro com um psicanalista que saiba produzir, com tato e prudência, um pouco de alteridade para fazer suplência a este Outro que tarda a nascer.”(RevistaMarraio,n.2)
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Participantes e colaboradores diretos do texto: Sandra Berta e Beatriz Oliveira (coordenadora e colaboradora da Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo/ FCL-SP); Ana Laura Prates Pacheco e Beatriz Oliveira (coordenadoras da Rede de Pesquisa “Psicanálise e infância” do FCL-SP); Sandra Berta, Beatriz Almeida e Glaucia Nagem (coordenadoras da Rede de Pesquisa “As psicoses” do FCL-SP); Ana Laura P. Pacheco, Raul Albino Pacheco Filho, Sandra Letícia Berta, Silvana Pessoa (coordenadores da Rede de Pesquisa “Psicanálise e Saúde Pública” do FCL-SP); Ana Paula Pires (membro do Fórum do Campo Lacaniano/ FCL-SP); Ana Paula Lacorte Gianesi (diretora do FCL-SP); Tatiana Assadi (coordenadora das Formações Clínicas do Campo Lacaniano/ FCL-SP)
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Mesa redonda: Psicanálise, Ciência e Universidade Psicanálise e Ciência: do Equívoco ao Impasse Christian Ingo Lenz Dunker Em vez de estabelecer critérios e acepções, mais extensas ou mais restritivas, por meio das quais se poderia considerar a psicanálise uma ciência, uma contraciência ou uma anticiência, pretendo assinalar apenas aqueles que posso considerar como equívocos mais frequentes na abordagem desse problema. De forma sintética, penso que a pergunta sobre a cientificidade da psicanálise é menos ociosa, interessada ou reativa do que parece. Transformações no interior da psicanálise ocorreram, ao longo de sua história, conforme a disciplina científica se firmasse como um ideal ou um contraideal. O desvio regrado na tradução imposta por Strachey, a absorção psiquiátrica da psicanálise pela psiquiatria americana, a partir de Alolf Meyer, o programa da Escola psicossomática de Chicago são exemplos históricos desses “ajustes” praticados no interior da psicanálise, em nome de seu passaporte de entrada na ciência. Isso segue a sugestão freudiana de que a psicanálise não é uma visão de mundo porque ela assume e se inclui na visão de mundo proposta pela ciência. Opino que a psicanálise é incapaz de criar uma visão de mundo particular. Não lhe faz falta; ela forma parte da ciência e pode aderir-se à visão de mundo científica. Mas esta merece este nome grandiloquente, pois não contempla o todo, é demasiadamente incompleta, não pretende absolutismo nenhum, nem formar um sistema.55 Chamo a atenção de vocês para a segunda parte da proposição. A psicanálise é uma ciência desde que não se entenda a ciência como sistema completo. Ou seja, o critério de cientificidade, um critério que resiste ao tempo, não é o acúmulo triunfal de saber, mas o contrário, a capacidade de errar, de reinterpretar e criar problemas. Essa é a diferença entre ciência e metafísica, a ciência se equivoca e é capaz de reconhecer isso. Portanto, quando alguém diz, acerca do tratamento do autismo, que a psicanálise culpabilizou os pais e particularmente a ”mãe geladeira”, é preciso dizer que sim, e que a mudança na concepção de tratamento, desde Freud, não é um 55
Freud, S. (1932-1936) 38ª Conferência Introdutória à psicanálise. Sobre a Visão de Mundo. Sigmund Freud Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu: 168.
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traço de anacronismo, mas da cientificidade da psicanálise. Se a psiquiatria da década de 1930 amarrava crianças às suas cadeiras e as “modernas técnicas educativas” dos anos 1950 trancavam crianças em quartos escuros à guisa de recompensa e punição, isso não significa que a psiquiatria seja indiferente à ciência. O caso da educação é mais complicado, pois somente em circunstâncias muito específicas, e em geral com resultados desastrosos, a pedagogia se apresentou como uma ciência. A ciência da aprendizagem não é uma ciência, mas um conjunto de técnicas, quiçá um método na acepção fraca do termo. Lacan, mas não só ele, mostrou como, e não vou me estender nesta tese, a concepção de psicanálise é historicamente covariante com a concepção de ciência. Da psicanálise do fogo de Bachelard, às críticas de Witgenstein, do critério popperiano de irrefutabilidade à redefinição foucaultiana da psicanálise como um discurso, há um longo caso, um julgamento perpétuo acerca da cientificidade da psicanálise. E se recuamos para os antecedentes da psicanálise vemos que esse julgamento já estava em curso quando se tratava de hipnotismo, desde que, em 1784, o rei Luís XVI nomeou a comissão mista da Academia Real de Ciências e da Sociedade Real de Medicina, para investigar as curas ocorridas por meio do magnetismo animal. A comissão formada por gente como Lavoisier, Benjamin Franklin, Guillotin, Bailly e Jussieu terminou com a impressão de oitenta mil volumes, nos quais os partidários de Mesmer abjuravam a existência das curas e da crença no magnetismo. Mas um olhar atendo aos autos do processo mostra que Jussieu e tantos outros confirmavam o valor terapêutico da técnica não obstante descartassem sua explicação teórica56. Retomo o ocorrido para salientar que a discussão sobre a cientificidade da cura pela palavra divide-se, desde sua origem, em sua dimensão terapêutica e teórica, reunida pelo campo da clínica e pela intercessão do Estado e da força de lei, consoante seus interesses. O que está em jogo na crítica contra a abordagem psicanalítica do autismo não é, primariamente, sua eficácia ou sua fundamentação conceitual, mas a recusa global do campo da clínica. A abolição da clínica e sua substituição por um conjunto de técnicas, de disciplinas, de estratégias, não é uma argumento propriamente epistemológico, mas uma recusa ética de que a experiência em questão se unifique
56
Chertock, L. & Stengers, I. (1989) O Coração e a Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 50.
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em torno de uma pessoa que sofre. Não há que se considerar, argumentam certos críticos, que a criança autista, ela mesma sofre, sem falar em seus familiares: bastaria abordar a questão como um problema de recuperação de desempenho e funcionalidade na vida pragmática. Quanto ao resto, deixemos isso com a metafísica. Ora, essa atitude é profundamente anticientífica. Mas voltemos ao problema dos fundamentos. Para uma abordagem específica da dimensão propriamente epistemológica da psicanálise remeto vocês aos trabalhos57 nos quais tenho defendido a ideia de que a psicanálise ocupa o lugar do que Kuhn chamava de anomalia cientifica. Para o autor de “Tensão Essencial”58 a anomalia era originalmente um fenômeno reconhecido por uma comunidade científica como explicável por um determinado paradigma, mas que, não obstante, era refratário à sua decifração. Admitido o estado de ciência normal, a anomalia deve ser incluída ou neutralizada pelo paradigma. Quando isso não ocorre, a anomalia pode induzir crise e subsequentemente revolução científica, fazendo emergir um novo paradigma. Considero que a psicanálise é o análogo de uma anomalia desse tipo, tomada como um fenômeno histórico parasitário da epistemologia, uma vez que ela não pode nem ser propriamente incluída, nem propriamente expelida como um epifenômeno inconsequente. Essa tese da paradoxalidade científica da psicanálise não é nova nem original. Ela decorre de uma leitura de afirmações lacanianas tais como: “o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência”, “a psicanálise é a ciência da linguagem habitada pelo sujeito” ou ainda, que a “a psicanálise visa introduzir o Nome-do-Pai na consideração científica”. Mas creio que essa discussão está muito longe do impasse que se apresenta em nosso momento. E ele é um impasse curioso, porque parte de afirmações ridiculamente banais contra a cientificidade da psicanálise. Desde a mudança epistemológica dos anos 1980 a ciência passou a ser um assunto legislado e definido pela existência de uma comunidade de cientistas. A ciência é o que os cientistas fazem e o que os cientistas fazem é ciência. Podemos nos indignar com essa tautologia, mas ela representa o estado de coisas em vigor hoje no mundo. Ocorre que por este critério não há a menor possibilidade de que uma disciplina que conta com milhares de teses, dezenas de milhares de artigos científicos em revistas científicas “controladas”,
centenas de
Grupos de Pesquisa cadastrados no Diretório Nacional de Pesquisa do CNPq, que está 57 58
Dunker, C.I.L. (2011) Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. São Paulo: Annablume. Kuhn, T.S. (1997) A Tensão Essencial. São Paulo, UNESP, 2011.
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presente massivamente em cursos universitários, que o Estado paga para se formar pesquisadores, e assim por diante, possa ser considerada não científica. Ocorre que nós não gostamos de usar esse argumento. E com razão. Isso significaria apelar para nossa inclusão no Estado. O psicanalista não se forma como pesquisador e ele não se forma na universidade. Mas quero crer que muitas vezes nos deixamos acuar por um argumento que emana de nossa própria consciência crítica e que está muito longe das intenções e dos subsídios que promovem esse tipo de objeção banal, e simplesmente equivocada contra a cientificidade da psicanálise. Ou seja, não somos nós que temos que provar que ela é uma ciência, seriam nossos críticos que deveriam mostrar onde e por que ela trai as aspirações científicas. E muito que bem tentaram, por exemplo, em O Livro Negro da Psicanálise, com resultados vexatórios em termos de argumentação. O único ponto no qual essa estratégia parece funcionar é o da divulgação científica, ponto no qual nossa inabilidade crônica em expor ideias e de abrirmo-nos a alguma externalidade é problemática. Isso emana do antigo argumento de que a psicanálise não deve ser nem se coordenar pelas massas, que ela é um bem precioso para uma elite bem formada. Mais uma vez são nossos próprios preconceitos que trabalham e depõem contra nossa cientificidade, não a matéria mesma que está em questão. Nos opomos à retórica da novidade, nos opomos à ideologia dos resultados, das aquietações institucionais, nos indispomos com o senso comum da pressa e da conformidade, não queremos saber de pactuar com as estratégias racionais e principalmente normativas dominantes. Reencontramos aqui nosso lugar de anomalia e resistência cultural. Mas para fazer isso não precisamos nos segregar da ciência. Mas há outros níveis, mais internos, de consideração do problema. O segundo nível de consideração desta matéria nos leva a uma divisão da pergunta. Uma divisão dupla que toma em consideração o fato de que a psicanálise ela mesma é uma prática de tratamento de sintomas e uma teoria que agrupa e interpreta fatos e considerações obtidos no interior desta prática. Ou seja, se dividimos a pergunta entre método de tratamento e método de investigação, e se agregamos a estes a ideia de doutrina ou de teoria, a hipótese científica se aplica de modo diferencial. Trata-se então de saber se o método psicanalítico é uma forma de abordagem científica dos objetos e fenômenos a que pretende investigar, e se a concatenação de seus desenvolvimentos teóricos assume os critérios de transmissibilidade, públicos, universais e repetitíveis que se espera de um saber em forma de ciência. Penso que é nesta última acepção que Lacan afirmou que a psicanálise não é uma ciência, mas uma
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prática. Ou seja, a clínica, seja ela qual for, médica, psicanalítica, psicológica ou psiquiátrica jamais foi e jamais será um ciência.
Isso não significa que seus
procedimentos e seus fundamentos não nos rematam a modalidades de ciência. Mas assim como anatomia não é medicina e genética não é clínica, a psicanálise não é uma ciência. Surgem aqui duas estratégias que vêm conferindo resultados positivos ou incertos, quando se considera esses dois escopos da questão: Há, por um lado, uma série de estudos comparativos sobre eficácia e eficiência da psicanálise como forma de tratamento clínico. Após um primeiro momento, no qual a psicanálise era descartada do “páreo”, uma vez que não se sabia como enquadrar seus resultados de forma comparativa, e segundo os critérios que ela mesma poderia oferecer, seguiu-se mais recentemente uma série de pesquisas científicas e metaanálises, mostrando como a “psicoterapia psicodinâmica de longo prazo”59 apresenta efeitos mais consistentes60, mais permanentes e mais abrangentes que a maior parte das psicoterapias conhecidas61. Essas pesquisas utilizam métodos estatísticos complexos capazes de incorporar dados obtidos por meios e modalidades de apresentação muito divergentes entre si. Nessa via o problema se desdobra indefinidamente para a comparação entre tipos de patologias, diferença para adultos ou crianças62, contextos culturais e institucionais63, extensão e qualidade da experiência do psicanalista, linhagens e sublinhagens psicanalíticas.
Para todos estes casos há pesquisas que
comprovam a eficácia do tratamento psicanalítico. Note-se que esses estudos não comprovam a cientificidade da psicanálise, mas a sua eficácia. Um xamã amazônico que utiliza plantas mágicas, que contêm princípios ativos insabidos ao próprio agente da cura, não está praticando ciência, mesmo que ele seja extremamente eficaz. A eficácia simbólica64 é um fenômeno interveniente na cura, assim como o efeito placebo, nenhuma dos dois é um argumento de cientificidade, mas de efetividade técnica. A cientificidade é um atributo do método, a efetividade um predicado da técnica. Nesse 59
Falk Leichsenring, DSc; Sven Rabung (2008) Effectiveness of Long-term Psychodynamic Psychotherapy A Meta-analysis. JAMA. 2008;300(13):1551-1565. 60 Dorothea Huber; Johannes Zimmermann; Gerhard Henrich; Guenther Klug (2012) Comparison of cognitive-behaviour therapy with psychoanalytic and psychodynamic therapy for depressed patients – A three-year follow-up study. Z Psychosom Med Psychother 58/2012, 299–316. 61 Doidge N. (1997) Empirical evidence for the efficacy of psychoanalytic psychotherapies and psychoanalysis: an overview. Psychoanal Inq1997;102-150. 62 Fonagy P, Target M. (1996) Predictors of outcome in child psychoanalysis: a retrospective study of 763 cases at the Anna Freud Centre. J Am Psychoanal Assoc 1996;44:27-77. 63 Lucie Cantin (1999) An Effective Treatment of Psychosis with Psychoanalysis in Quebec City, since, 1982. Annual Rewiew of Critical Psychology. 64
Lévi-Strauss, C.L. (1953) A eficácia simbólica. Antropologia Estrutural, Civilização Brasileira, 1988.
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sentido, comparar o método ABA de abordagem do autismo com o método psicanalítico é uma tolice, simplesmente porque o método ABA não é um método de tratamento, mas uma técnica de aprendizagem. O segundo escopo da questão, quando dividimos o problema da cientificidade entre método clínico, que possui ele mesmo sua teoria, e a teoria, o sentido da integração e agrupamento dos efeitos da prática deste método, ocorre quando nos atemos ao tema da teoria psicanalítica como uma teoria científica. E aqui facilmente somos desqualificados por algo que em princípio é uma virtude, a saber, a diversidade de entendimentos e de leituras, o que caracteriza a teoria psicanalítica como uma teoria com baixos teores de consenso. Ou seja, quando se afirma a-cientificidade da psicanálise, para retomar uma antiga expressão de Joel Dor, temos que produzir “metodologicamente” uma unidade do que nossa comunidade científica chama de psicanálise, cujo poder de representatividade é tão redutivo quanto uma redução operacional de conceitos. Nessa direção tem se argumentado que a psicanálise, enquanto teoria, regula-se por uma teoria da prova semelhante a que encontramos na teoria da evolução proposta por Darwin. Isso não quer dizer que a psicanálise seria uma ciência natural, aliás, como advogava este péssimo epistemólogo de si mesmo chamado Sigmund Freud65, mas que a estrutura da verificabilidade das evidências clínicas da psicanálise é homóloga à teoria da evolução: ela reúne fatos de diferentes proveniências, implica hipóteses indemonstráveis, pretende explicar um grande espectro de fenômenos com poucos princípios básicos.
Aqui
também surgem subdivisões do problema: haveria uma única ciência na psicanálise, ou se tratam de várias ciências, como a linguística, a matemática, a neurologia, a psicologia do desenvolvimento, a antropologia, que concorrem para formar os fundamentos de uma ou de mais de uma ciência. Algo semelhante acontece quando se pensa em divisões como o doutrinal de ciência (moderna) e o ideal de escrita pós-científico, do último Lacan66. O terceiro nível de consideração do problema é a crítica política ou ética do que vem a ser o estado atual da ciência em sua organização disciplinar. Aqui o argumento se divide entre os que advogam a extraterritorialidade da psicanálise, baseada na irredutibilidade ética de seus procedimentos, e os que refutam, com boas indicações críticas, a conveniência entre a ciência e os processos de individualização da 65
Freud, S. (1915) Pulsão e suas vicissitudes. Sigmund Freud Obras Completas, Amorrortu, Buenos Aires, 1988. 66 Milner, J.C. A Obra Clara. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
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modernidade, ou entre a foraclusão do sujeito e seu retorno sob forma de racionalidade técnica, segregação e alienação. Às vezes isso é acompanhado do exame crítico das modalidades de pesquisa prevalentes hoje em psicologia67, ou ciências humanas. A defesa da singularidade do sujeito, contra as generalizações classificantes, que operam no interior da metodologização dos objetos de pesquisa, do discurso do psicanalista contra o discurso do capitalista, surgem assim como uma resistência aos fundamentos da ciência ela mesma, ou melhor, de uma corrupção de seu projeto inicial em uma ideologia científica. Desde Althusser até Zizek e Darian Leader esse tipo de crítica vem se consagrando no interior da psicanálise. Contudo, o que ele apresenta em termos de alta penetrância nas ciências sociais reverte-se, muitas vezes, em admissão de exterioridade e de demissão epistemológica no contexto das práticas de saúde mental e de saúde geral. Posto tais considerações, podemos cernir nossa posição no quadro das duas estratégias
de
fundamentação
científica
que
vem
caracterizando
o
debate
contemporâneo. A estratégia internalista nos faz dizer algo assim: nós temos nossa própria cientificidade, com critérios que podemos apresentar em justificar em termos universais, públicos e transmissíveis. Neste ponto costumamos cometer o equívoco de nos opor a outras formas de ciência de tipo empírico ou positivista, sem nos apercebermos de que o internalismo já foi absorvido pela lógica do capital científico. Ou seja, o debate dominante não é mais saber se há características intrínsecas e verificáveis na conceitografia psicanalítica que a tornaria admissível na Stoa da ciência. O grande ideal unicista do método científico foi abandonado nos anos 1980. No lugar dele emergiu uma nova cultura científica que tolera perfeitamente bem a diversidade, as formalizações internas dos objetos, as regionalidades epistêmicas. Essa nova edição da ciência a define por critérios tais como: a qualidade das revistas científicas, o impacto de citações, a capacidade de se impor aos seus concorrentes “locais”, a capacidade de obter e justificar financiamento, a força de seus quadros na administração deste grande negócio chamado ciência. A ciência assim como a universidade da qual ela se tornou serva, tronou-se um imenso empreendimento burocrático. Do outro lado a pesquisa sobre a técnica se autonomizou, formando o novo casamento entre universidadeempresa.
67
Lapeyre, M.; Sauret, J.M. (2008) A psicanálise como ciência. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v.40.
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Portanto, considero um equívoco remeter a discussão atual sobre a cientificidade apenas aos fundamentos epistemológicos ou metodológicos da psicanálise. O foco do problema se deslocou para outra face, ou seja, a face normativa. E é no interior dos processos de judicialização do saber e de certificação das práticas que a psicanálise tem mais dificuldade de se posicionar. Neste ponto sua resistência costuma assumir o que há de pior na estratégia internalista, ou seja, a endogamia. Quando advogamos que nós temos nossos próprios critérios e que não precisamos da esfera pública para legitimar nossa prática, ainda um último resíduo da prática liberal, isso facilmente pode se transformar em um contra-argumento suicidário. Ou seja, entregamos a racionalidade diagnóstica ao DSM, renunciamos a lutar pela autonomia da psicanálise no interior dos cursos universitários, recusamos as modalidades de reconhecimento interpares em vigor na sociedade civil (em prol de uma segmentação progressiva e divergente de nossas associações), advogamos nossa extraterritorialidade entre as ciências, ao final nos retiramos de todo contexto regido e organizado pela normatividade. Disso para a autosegregação é um passo. Ocorre que a estratégia inversa, ou seja, o externalismo, requer uma complexidade igualmente difícil de sustentar.
Significaria abrir a pesquisa psicanalítica à outras
modalidades de investigação, exatamente como fez Lacan, a começar pela antropologia estrutural, e a terminar pela topologia. Contudo, a dificuldade maior não reside no externalismo epistemológico e metodológico, mas no externalismo normativo. Quando um médico receita haloperidol para uma criança autista, ele não está fazendo ciência e nem está agindo em nome da ciência. Ele está adotando um protocolo de ação, formado e definido pela comparação entre pesquisas no contexto de uma política pública, no contexto do Estado que segue tal ou qual marco regulatório, sob influência de tal ou qual representante comercial farmacêutico, em acordo com as recomendações de sua formação universitária, das escolhas que ele pode fazer como clínico, mas também das considerações sobre custos e sobre a cobertura de saúde que está em jogo nessa situação. Quando a medicina baseada em evidência introduz o cálculo dos custos na equação que define qual estratégia clínica será adotada, esta consideração simplesmente não tem nada de científico. Ela é uma consideração administrativa, política e de gestão securitária.
Christian Ingo Lenz Dunker é professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP
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Jornada Psicanálise, Autismo e Saúde Pública São Paulo, 22, 23 e 24 de março de 2013 Mesa redonda: Psicanálise, Ciência e Universidade PSICANÁLISE, CIÊNCIA E UNIVERSIDADE Luciano Elia68 Eu havia inicialmente pensado em fazer, nesta intervenção, uma articulação que me pareceu necessária entre a Psicanálise e a Ciência, dois termos dos três que nomeiam esta mesa, para estabelecer que tipo de relação uma mantém com a outra, relação que não é nada óbvia ou simples. Vamos ver, pelo andamento do que eu vou dizendo, se isso será possível ou mesmo necessário, porque decidi fazer outro caminho. Decido partir de outro ponto: um PONTO POLÍTICO e TEÓRICO-CRÍTICO ao mesmo tempo, claro, mas que não desconsiderasse ou negligenciasse a dimensão política da questão, da mesa e deste movimento, importantíssimo, a meu ver. Faço isso inclusive para nem mesmo SECUNDARIZAR este ponto político, submetendo-o aos caminhos teórico-discursivos. Este ponto é o seguinte: trata-se de AFIRMAR que aquilo que se apresenta como CIÊNCIA, hoje, sobretudo no plano PSI, neurocientífico e comportamental, a MEDICINA DO COMPORTAMENTO, e a PSIQUIATRIA ORGANICISTA DO DSM V, NÃO SÃO CIENTÍFICOS. É claro que é preciso ir além de dizer isso, é preciso FUNDAMENTAR isso, cientificamente, inclusive, e acho mesmo que se me chamaram, a mim e aos colegas desta mesa, é para trazer fundamento ao que dizemos, é para fazermos um debate sério, acadêmico no bom sentido do termo, científico, sobre isso, indo além do mero denuncismo ideológico, que valeria tanto quanto - isto é, tão pouco – o rechaço, totalmente ideológico, obscurantista, medievalmente inquisidor e discricionário que estão fazendo vergonhosamente, oficialmente, governamentalmente, com a psicanálise no campo público, em relação ao autismo, talvez sobretudo, mas não só em relação ao autismo, desqualificando-a como recurso a ser utilizado, apoiado pelas políticas e verbas públicas. Às vezes eu me pergunto de onde vem, o que sustenta tanta desfaçatez, pouca vergonha, falta de pudor nesses atos. Os conflitos sempre existem, seja entre vertentes de teoria e 68
Psicanalista, supervisor clínico territorial dos CAPSis Pequeno Hans (1998-2011), Eliza Santa Roza (2000-2010) e da cidade de Vitória (2009-2012), Consultor da Área Técnica do Ministério da Saúde para a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (2003-2010), professor titular de Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise.
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práxis, mais claramente ainda nas políticas públicas, que envolvem dinheiro, reconhecimento, ação. Mas sempre se tenta dar algum fundamento aos atos de guerra ideológica. Neste caso, no mundo de hoje, as formas do poder estão tão bem assentadas, o capitalismo selou seu casamento com a ciência de forma tão sólida que é como se tivessem a certeza antecipada da mais integral impunidade no que fizerem. Junto com Freud, Marx, Lacan e Althusser, Foucault teria que retornar ao mundo para nos orientar em nossa luta. Mas, como isso não vai acontecer, teremos que inventar um modo de derrotar essa cruzada da frente única ciência-capital contra inimigos que não se reduzem à Psicanálise, de que tratamos aqui, mas que nomeio logo: o pensamento dialético, a perspectiva histórico-crítica, e a fenomenologia como método
são
igualmente rechaçados (por exemplo, do ponto de vista pseudocientífico que vige, um usuário de drogas não deve nunca ser considerado em sua perspectiva histórica e social isso
não seria “científico”,
entendem? -,
em sua realidade transindividual e
psicossocial. Do ponto de vista do que se quer chamar de ciência (e se consegue, por força do poder, unicamente, que sustenta esse obelisco de palha no vento, e que de outro modo nem ficaria de pé por um segundo), o usuário de drogas (crack) é dependente químico, um organismo cuja dependência é atribuída a algum fator bioquímico ou transtorno jamais teorizado de conduta. A dialética da história social, e a experiência imediata de sua relação com a droga, como fenômeno, são tão rechaçados quanto a tomada da
questão pela Psicanálise, como uma experiência do sujeito e do
inconsciente, que precisa ser tomada a partir de seu dizer. No caso do autismo, o ataque é exclusivo e frontal à Psicanálise, porque é só a Psicanálise que se tem revelado eficaz na prática clínico-institucional, territorial, para fazer avanços importantes, em clínica e em pesquisa sobre o autismo. Mais do que na questão do uso de drogas, o autismo coloca em evidência a questão da própria constituição de um sujeito no quadro. Mas, vamos aos fundamentos, que eu comecei afirmando que precisam ser dados à afirmação de que as formas de pesquisa e de exercício clínico que rechaçam a Psicanálise, as neurociências aplicadas e a medicina do comportamento, não são científicas. Digo neurociências aplicadas porque as neurociências têm toda a dignidade metodológica da ciência, e o cérebro é um mundo a ser pesquisado, estudado, e urgentemente, diria eu. Mas quando as NC estão a serviço da ideologia psicomédica comportamental (e ela tem estado sempre), então ela se nivela por baixo na ideologia dominante.
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Toda ciência, desde seu surgimento como ciência moderna com Galileu, parte de uma formulação teórica (não precisa ser uma hipótese clara), mas de um ponto de vista, uma posição no simbólico e se dirige ao real que ela pretende tornar inteligível. Não estou falando de idealismo e racionalismo, mas do método galileano, fundador da ciência no sentido moderno. Galileu fez importantes formulações sobre a astronomia, sobre as posições e movimentos dos astros, e as submeteu à observação pelo telescópio, por exemplo. Mas não foi o telescópio que informou Galileu. Foram conceitos esboçados por Galileu que o levaram a construir o telescópio e observar astros. O telescópio é o instrumento, não é o gênio do saber. Disse então coisas que levaram a Igreja e a Inquisição a interrogá-lo, detê-lo, fazê-lo desmentir para não ser queimado, como Giordano Bruno foi. Galileu, mais malandro, negou legal o que ele disse lá dentro da câmera de torturas, mas na saída, gritou: “Mas que se move, se move”, e deu no pé, porque não era besta de ficar ali esperando as labaredas. Estamos mais ou menos na posição de Galileu, sendo queimados em fogueiras secularizadas, expulsos da cidade da ciência e da política pública. Mas prossigamos nos fundamentos. Galileu introduziu letras, álgebra, literalizou o real da física, recorreu à matemática. Com isso chegou a um elevado grau de inteligibilidade deste real, permitindo que seu filho e sucessor, Newton, viesse a formular leis que violentaram a compreensão imediata dos fenômenos físicos (queda do corpo pela lei da gravitação universal, o que permitiu a Kant filosofar sobre a racionalidade universal e transcendental). O que o método científico faz é munir o cientista de recursos para enfrentar o real e simbolizá-lo, passível de entendimento. Mas de forma alguma o método científico admite que se inicie qualquer investigação com o que se chama de petição de
princípio. Seu princípio é uma ideia, que deverá
ser submetida à
experiência. Por isso método hipotético-dedutivo, do qual a última etapa – e não a primeira – é a prova experimental. O que faz a medicina do comportamento hoje? Ela deliberadamente despreza toda e qualquer possibilidade de que o real seja diverso daquilo que sua petição de princípio estabelece. Vamos ao autismo, que nos interessa aqui a todos, e que é um excelente exemplo disso. Um psicólogo comportamental não olha para o autismo com o olhar instigado por um enigma do real, perguntando: “o que será isso, meu Deus, ou se me permitem, que porra é essa, esse menino que se bate, que não fala, mas entende, desde que alguém se digna a dirigir-lhe atos de fala e linguagem, que tapa os ouvidos para o verbo não entrar demais, que anda meio de lado, enviesado, que não fixa o olhar, que
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se cobre de cocô,
que joga tudo longe, que acende e apara interruptores
ininterruptamente, que se rejubila
com água corrente, etc. etc. etc.”. O psicólogo
comportamental diz: esse transtorno invasivo do desenvolvimento (observem que essa denominação não problematiza, mas afirma, implícita e indiscutidamente, a ideia de desenvolvimento que Galileu, ou seja, a posição científica, mesmo que com toda a liberdade de ideias que deve assistir à ciência, no caso a ideia de desenvolvimento, teria colocado à prova. Há uma petição de princípio: trata-se de um transtorno de desenvolvimento, transtorno invasivo, marcado por condutas típicas que precisamos remover para aumentar o nível de competência pragmática e social desta criança. Nenhum enigma, nenhum real a ser elucidado. Nenhuma ciência. Isso me faz recordar de um episódio real que presenciei: um psiquiatra, atendendo a uma mãe de autista que lhe diz que só se deu conta de que estava grávida do filho (que veio a se tornar autista) aos 7 meses de gravidez (e que pretendia contar ao referido psiquiatra as circunstâncias - de resto, preciosíssimas - de como se deu conta disso, mas não conseguiu fazer isso), disse a ela que isso não tinha a menor importância no quadro clínico e que o que importava era que ela levasse o filho para um exame para detectar áreas cerebrais afetadas nas crianças autistas. O instrumento assume o comando sobre as ideias e conceitos, e um fragmento espantoso do real - o relato da mãe sobre esse incomum desconhecimento de uma gravidez - é declarado "sem importância alguma no quadro". Que cientista sério despreza o real que se lhe apresenta em nome do abstracionismo imaginário (das imagens cerebrais, e do imaginário da compreensão de todo sentido)? Há, assim, outras petições de princípio complementares: HÁ DE HAVER uma base orgânico-cerebral para esse comportamento todo assim descrito. Entendem isso? Há de haver... Não faltará esse componente. Uma vez, em um debate na cidade de Belém, 2009, o CONPSI, Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, ao qual fui convidado para uma mesa especialmente criada pelos
próprios organizadores,
não resultante do
acolhimento das propostas dos participantes inscritos, portanto, em função do que eu andava dizendo aos quatro ventos sobre isso, e que ofendeu a sociedade de psicologia comportamental, também presente à mesa, uma pesquisadora, aliás do Rio, da PUCRio, ao ser perguntada por uma pesquisadora crítica sobre o estatuto de um tal fator biológico obscuro que estaria (necessariamente) na base da etiologia do autismo, respondeu: “É, as pesquisas ainda não conseguiram detectar que fator é esse”. Mas, diante da perplexidade da outra pesquisadora, que dizia: Mas como, então, vocês
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afirmam que um fator obscuro ainda não detectado existe na base da etiologia de um quadro como o autismo? Que espécie de rigor científico norteia vocês? A pesquisadora da PUC respondeu: “A comunidade científica internacional – da qual ela sistematicamente excluía a Psicanálise, como não fazendo parte desta comunidade – avalia que este fator existe”. Bem, ele há de existir, não importa se o caminho metodológico fará encontrá-lo ou não. Isso, meus caros, não é ciência, é dogma, religião, mais do que ideologia. Confrontemos esse procedimento com o de Freud, num exemplo clássico, o das paralisias motoras. Em 1891, vejam bem, antecedentes da Psicanálise, primórdios, préhistória, Freud, excelente pesquisador neurologista, cientista rigoroso, encontra-se com uma perna paralisada. Ele conhecia melhor que ninguém a ciência neurológica, que dispunha de uma lei chamada CÉFALO-CAUDAL E PRÓXIMO-DISTAL, segundo a qual toda paralisia motora, e toda paralisia era organicamente determinada, deveria seguir, ao longo de um feixe neuronal, a LEI (científica) de atingir primeiro as áreas motoras controladas por segmentos MAIS PRÓXIMOS do encéfalo e depois os mais distantes, na cauda medular (céfalo-caudal e próximo-distal). No entanto, pacientes que ele atendia paralisavam movimentos ligados a áreas mais distantes E NÃO PARALISAVAM movimentos ligados a áreas mais
próximas (por exemplo,
paralisavam o braço mas moviam o ombro). Isso era um contrassenso, um absurdo fenomênico, um refutador empírico, um escândalo, enfim. Ou aquela paciente estava FINGINDO, simulando, como se diz, ou teriam que rever a lei neurológica das paralisias motoras orgânicas. Acontece que essa lei era sólida, gozava do que Popper chamaria de alto grau de corroboração empírica, não seria fácil nem cientificamente plausível derrubá-la não. Ocorreu então a Freud a posição do cientista: ”que é isso?” “que porra é essa”?, o enigma que o real coloca a um espírito verdadeiramente científico. Será que não estamos diante de um fenômeno até hoje desconhecido da ciência neurológica? Bem, o que resultou disso? Freud postulou, como Galileu, a possibilidade CIENTÍFICA da existência de paralisias motoras que NÃO FOSSEM ORGANICAMENTE
DETERMINADAS.
Conceituou-as
(produziu
conceito)
PARALISIAS MOTORAS HISTÉRICAS, que não respeitavam a LEI CÉFALOCAUDAL PRÓXIMO-DISTAL sem com isso precisar derrubar a teoria neurológica, consistente
em seu campo. Pois que disse mais, disse que as paralisias motoras
histéricas decorrem do conhecimento que o SENSO COMUM tem da anatomia. Imaginam isso? Alguém dizer, no ambiente científico, que o senso comum – e não o
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conhecimento científico dos feixes neuronais em sua distância para com os centros cerebrais – é que rege a geografia, o mapa anatômico de uma paralisia histérica? Freud não sabia que sua coragem científica o levaria à criação de um campo novo, a Psicanálise. O que faria um psicólogo comportamental, um psiquiatra organicista, um gestor público atual, um deputado comprado pelo lobby dos laboratórios de psicofármacos de controle comportamental? Manteriam a histérica como simuladora? Depende, se a histérica fosse um IMENSO MERCADO em uma época como a de hoje, os psicólogos e psiquiatras médico-comportamentais fariam o que estão fazendo com o autismo, iam querer se apropriar da histeria e dizer que a Psicanálise é ineficaz com a histeria. Será? Mas a histérica é por demais rebelde a esse tipo de manobra de mestre, pois ela, como demonstra Lacan, já vem com o pão da castração quando o mestre vai com a farinha do significante que a vela. Ela sabe que o mestre é castrado, aliás, ela sabe porque ela É O MESTRE CASTRADO exibindo sua divisão no laço social. Os psicólogos e pseudocientistas de hoje não teriam tido sucesso com as histéricas não. Com os autistas, pareceria que sim, eles se deixariam moldar. Será? Penso que não. Os pseudocientistas têm sucesso com as famílias dos autistas, assim como os gestores da direita tecnocrática, da internação compulsória, têm sucesso com a classe média, refirome à clássica, aquela que vive ansiando por uma ordem social higienista e fascistóide. Os autistas, estes, são ainda mais rebeldes do que as histéricas. E proponho que os tomemos no mesmo lugar, homólogo, que elas ocuparam há 100 anos. A psicanálise está diante de um desafio bastante diferente, talvez refundador, porém homólogo àquele que resultou na sua fundação. Que refundemos, reinventemos, pois, a Psicanálise, desta vez com inimigos sociais mais armados, um capitalismo que aprendeu o micro político além do macro, que perverteu as estratégias que poderiam combatê-lo, colocando-as a seu favor. Sejamos mais estratégicos ainda, guerrilheiros do discurso (e talvez de outros instrumentos também...), saibamos como reinventar a relação da pesquisa com uma verdadeira
ciência na
Universidade, na Clínica e na Política Pública. Mas, atenção: o momento é de guerra. Obrigado.
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Instituições participantes do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública:
Universidades: FEUSP (professores: Leny Mrech, Rinaldo Voltolini, Leda Bernardino) FMUSP (professor Wagner Ranna) Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na clínica psicanalítica GECLIPS/UFUMG IPUSP (professores Cristina Kupfer, Christian Dunker, Rogerio Lerner) PUC /RJ (professora Beatriz Souza Lyma) Psicologia PUC /SP (professores (Silvana Rabello, Isabel Khan) Fono PUC/SP (professores Claudia Cunha, Luiz Augusto P. Souza, Regina Freire) UERJ (professor Luciano Elia) UFBA - ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB (professora Andréa Fernandes) UFMG (professora Angela Vorcaro) Laboratório de Estudos Clínicos da PUC Minas (professor Suzana Faleiro Barroso). UFPE (professora Joana Bandeira de Melo) UFRJ (professora Ana Beatriz Freire) UFSM (professora Ana Paula Ramos) UnB (professores Izabel Tafuri, Marilucia Picanço) Unesp Bauru (professores Edson Casto, Erico B. Viana, Cristiane Carrijo) UNICAMP (Nina Leite) Univ. Católica de Brasília (professora Sandra Francesca) Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP Centro de Referência da Infância e da Adolescência - CRIA/UNIFESP DERDIC/PUCSP (professores Sandra Pavone, Yone Rafaele, Lucia Arantes e Carina Faria) Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) (professora Paula Pimenta) Instituições de Psicanálise ALEPH - Escola de Psicanálise Associação Psicanalítica de Curitiba- APC Circulo Psicanalítico MG Círculo Psicanalítico de Pernambuco CPP EBP/SP ( escola brasileira de psicanálise) EBP/MG ( escola brasileira de psicanálise) EBP/RJ ( escola brasileira de psicanálise) Escola Letra Freudiana Espaço Moebus/BA Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil (EPFCL-Brasil) Fórum do Campo Lacaniano - São Paulo (FCL-SP) IEPSI Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA Instituto APPOA IPB - Intersecção Psicanalítica do Brasil/NEPP
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Grupo de Estudos da clinica com bebês e intervenção precoce da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Grupo de Estudos e Investigação dos TGD da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES) Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES) Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sapientiae (SEDES) Espaço Potencial Winnicott do Depto. Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES) Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES) Núcleo de Investigação Clínica Hans da Escola Letra Freudiana Sigmund Freud Associação Psicanalítica/RS GEP - Grupo de Estudos de Psicanálise de Campinas NEPPC/SP Instituto da Família –IFA/SP
Centros de atendimentos não governamentais Ateliê Espaço Terapêutico/RJ Attenda/SP Centro de Atendimento e Inclusão Social CAIS/MG Carretel - Clínica Interdisciplinar do Laço/SP Carrossel/BA Centro da Infância e Adolescência Maud Mannoni CIAMM CERSAMI de Betim Centro de Estudos, Pesquisa e Atendimento Global da Infância e Adolescência CEPAGIA/Brasília/DF Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli/SP Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem de Recife - CPPL Escola Trilha ENFF Espaço Escuta de Londrina Espaço Palavra/SP GEP-Campinas GLUBE/SP Grupo Laço/SP Grupo de Pesquisa CURUMIM do Instituto de Clínica Psicanalítica/RJ Incere Instituto de Estudo da Familia INEF Insituto Langage Instituto Viva Infância LEPH/MG Lugar de Vida Centro Lydia Coriat de Porto Alegre NIIPI/BA NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos
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NÓS - Equipe de Acompanhamento Terapêutico Projetos Terapêuticos/SP Trapézio/SP Associação Espaço Vivo/RJ Centros de atendimentos do governo Caps Pequeno Hans/RJ Capsi Guarulhos/SP Capsi-Ipiranga/SP Capsi-Lapa/SP Capsi Mauricio de Sousa/Pinel-RJ Capsi Mooca/SP CAPSI-Taboão/SP CAPSI de Vitória CARM/UFRJ NASF Brasilandia/SP NASF Guarani/SP UBS Humberto Pasquale/SP Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica - COMPP/SES-DF Capsi COMPP/SES-DF Capsi Campina Brande/PB Associações ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê. ABENEPI/Maceio ABENEPI/RJ ABENEPI/BSB Associação Metroviária do Excepcional AME Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental CRP/SP ( conselho regional de psicologia) Hospitais
Centro Psíquico da Adolescência e Infância da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CePAI/FHEMIG) CISAM/UPE - Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Universidade de Pernambuco HCB(Hospital da Criança de Brasilia) Serviço de psicossomática e saúde mental do Hospital Barão de Lucena -HBL/ Recife Hospital Einstein IEP/HSC Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Santa Catarina Hospital Pinel Hospital das Clínicas – Universidade de Pernambuco Revista
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Revista Mente e Cérebro Grupo de pesquisa PREAUT BRASIL Grupo de pesquisa IRDI nas creches