Arteterapia Com Doentes De Aids

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VALLADARES, A. C. A. A máscara como recurso expressivo de doentes com AIDS e de profissionais/estudantes da saúde. Rev. Arteterapia: Imagens da Transformação. Rio de Janeiro: Clínica Pomar, v.8, n.8, p.05-15, 2001. ISSN: 1516-4128.

A MÁSCARA COMO RECURSO EXPRESSIVO DE DOENTES COM AIDS E DE PROFISSIONAIS/ESTUDANTES DA SAÚDE∗ ∗

Ana Cláudia Afonso Valladares

RESUMO: O estudo descritivo exploratório foi realizado em um Hospital Público de Goiânia - GO, entre 1999 e 2000. Objetivou empreender um estudo simbólico comparativo dos produtos finais da confecção de máscaras para doentes da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e para profissionais/estudantes de saúde. Sustentado pela abordagem junguiana, privilegiou fundamentalmente os conteúdos não-verbais das máscaras. Finalizou tecendo considerações acerca do simbolismo apresentado comparativamente dos dois grupos e da importância das obras de arte como projeções de si-mesmo. ABSTRACT: The represent exploratory study was realized in a Public Hospital in Goiânia – GO, between 1999 and 2000. Its objective was undertake a comparative symbolic study of the masks making’s final products to sick patients of Acquire Immune Deficiency Syndrome (AIDS) and to health professionals/students supported by Jung’s approach, it privileged fundamentally the masks’ no-verbal contents. It concluded weaving considerations about the symbolism presented comparatively of both groups and of the art produces like a projection of themselves.

INTRODUÇÃO “A SIDA ou AIDS é uma síndrome de evolução fatal causada pela infecção do vírus da imunodeficiência humana (HIV) em células do sistema imunológico provocando deficiência de imunidade celular e propiciando o aparecimento de infecções oportunistas e neoplasias malignas.” (Leão, 1997) A arteterapia, como profissão de auxílio ao ser humano, baseia-se na integração da criação de imagens, do processo criativo da arte e da relação do paciente com a obra criada. É um meio utilizado para facilitar o auto-conhecimento, a solução de conflitos emocionais e o desenvolvimento humano harmonioso. Qualquer pessoa pode se beneficiar do processo, dentre crianças, adolescentes, adultos e idosos sadios, ou enfermos. Realiza-se de forma individual, grupal, ou familiar; em consultórios, hospitais, ou instituições em geral. Como assinala Pain & Jarreau (1996), a arteterapia é uma modalidade terapêutica que utiliza a arte, em todas as suas manifestações expressivas, para que o indivíduo expresse suas imagens internas e inconscientes na sua experiência artística. Por conseguinte, é compreendida como ato de expressar, de comunicar e de criar. Na arteterapia da linha junguiana, a conduta fornece materiais expressivos diversos e adequados à criação de símbolos presentes no universo imagético singular de cada cliente. Esse universo traduz-se em produções simbólicas que retratam estruturas psíquicas internas, do inconsciente pessoal e do coletivo. Segundo Jung (1964) o inconsciente pessoal corresponde às camadas mais superficiais e o inconsciente coletivo se refere às camadas mais profundas deste universo, sendo estruturas psíquicas comuns a todos os homens. Este processo “colabora para a compreensão e resolução de estados afetivos conflituados, favorecendo a estruturação e expansão da personalidade através da criação.” (Philippini, 1994) O presente trabalho visa aprofundar, dentre os vários recursos expressivos usados em arteterapia, na confecção das máscaras e seu estudo. A máscara possui uma carga simbólica muito evidente, que estimula a fantasia, a criação e a imaginação por apresentar um aspecto lúdico.

Conforme descreve Chevalier & Gheerbrant (1996), a máscara “corresponde ao estado rudimentar da consciência em que não há distinção absoluta entre ser e parecer e em que a modificação da aparência determina a modificação da própria essência” - a máscara. Ela corresponde, então, a uma cobertura, um disfarce, colocado sobre o rosto para o dissimular ou substituir por outro artificial, criando assim a ilusão. A máscara tem sido usada desde as origens da humanidade, nos rituais do ser humano primitivo. “Servia para assustar os inimigos e era utilizada nas práticas mágicas para representar espíritos e poderes personificados de animais e homens, acentuando quase sempre, de maneira evidente, determinados traços estereotipados do caráter.” (Lexikon, 1990) Acrescenta Buchbinder (1996) que a máscara não é privativa do homem primitivo, mas que faz parte do ser humano atual, embora de diferentes modos, pois acredita-se que o uso da mesma pelo indivíduo contemporâneo, tendo a possibilidade de se jogar com ela, permite expôr sua história universal, pessoal e mitológica. A máscara, dentro das modalidades de arte, está freqüentemente associada ao teatro e à dramatização, seguindo seus princípios básicos, eis que “amplia conceitos, exagera fatos, amplia a vida, mostra algo além do que aparenta”. (Amaral, 1996). A função terapêutica da máscara mostra que ela possui um aspecto desmascarante, de desestruturação e posteriormente reestruturante do sujeito, possuindo assim um caráter expressivo e energético bastante intenso. Ainda segundo Buchbinder (1996), o fenômeno de desestruturação é que se produz “quando alguém coloca uma máscara e imediatamente surge um desmascaramento de outros aspectos do sujeito.” Pelas contribuições potenciais das máscaras ao processo arteterapêutico, os símbolos inconscientes transitaram para a consciência. Deste modo, contribuem para a expansão de toda a estrutura psíquica do ser humano. Por isso, poderm ser de grande produtividade terapêutica, especialmente em doentes de AIDS. Dentro das questões psicológicas enfrentadas pelos doentes de AIDS, são evidenciados por alguns sentimentos, como ressalta o Ministério da Saúde (1999): - o medo de morrer; a perda relacionada à própria vida, às ambições, à privacidade, à estabilidade financeira e independência; - o pesar em relação às perdas; a preocupação em não infectar outras pessoas; - a depressão pela ausência de cura, pela perda do controle pessoal; - a negação do diagnóstico; - a ansiedade pelas incertezas crônicas geradas pela infecção; - a raiva por ter contraído a doença; - ações ou pensamentos suicidas como diminuição da culpa. A problemática da AIDS evidencia sérios fatores comportamentais da sociedade, trazendo a tona tabus e valores ainda não resolvidos, nos níveis individuais e coletivos. Consequentemente, o portador do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) apresenta receios, como o medo da morte e do sofrimento, o futuro incerto, a solidão, o medo da mudança corporal e da capacidade mental. Neste sentido, as doenças oportunistas e as frequentes hospitalizações advindas com a doença, alcançam dimensões ainda mais amplas, afetando drasticamente os doentes de AIDS. A doença, apesar de ser considerada atualmente como crônica independentemente do estágio de desenvolvimento que se detecta seu diagnóstico, intensifica a afirmativa que o doente é supostamente condenado a morrer: “e a morte não é um risco, mas uma certeza.” (Sanches, 1997) Neste estudo, a máscara serviu não apenas como recurso teatral, educacional, ou como forma de divertir ou distrair, mas e especialmente como forma de expressar conteúdos internos conflitantes dos grupos trabalhados. É evidente a importância da utilização de máscaras neste meio, no resgate de conteúdo simbólico nelas inserido. Desconhece-se a existência de trabalhos nesta linha para esta específica clientela. O objetivo geral deste trabalho consistiu em um estudo simbólico comparativo dos produtos finais de confecção de máscaras para doentes de AIDS e para profissionais/estudantes de saúde, baseada na abordagem da psicologia analítica.

METODOLOGIA Estudo ocorreu de maneira descritiva exploratória, fundamentado na produção simbólica dos dois grupos estudados. Apresentou os principais símbolos encontrados nos grupos específicos e discutiu seu conteúdo baseados na abordagem junguiana. O aporte teórico que norteia o estudo repousa na contribuição da confecção das máscaras como desencadeadora do processo criativo, por estimular o imaginário, facilitando com isso a expressão simbólica e a ordenação de experiências internas desses pacientes. Foi desenvolvido em um hospital público e especializado em doenças transmissíveis e infecciosas de Goiânia – Goiás, no período de agosto de 1999 a abril de 2000. A população alvo constituiu-se de adultos doentes de AIDS e profissionais/estudantes da saúde aquiescentes à pesquisa. A clientela dos profissionais/estudantes da saúde foi composta por quarenta e cinco (45) pessoas das áreas de enfermagem, de medicina e de psicologia com experiência prévia na área. A idade variou entre vinte (20) a cinquenta e oito (58) anos, sendo que trinta e quatro (34) eram do sexo feminino e onze (11) do sexo masculino. A outra clientela referente aos doentes de AIDS foi composta por trinta (30) doentes de AIDS internados nas enfermarias do hospital ou no leito-dia, apresentando diferenciadas doenças oportunistas, como por exemplo: a retinite por citomegalovirose, a tuberculose pulmonar, a pneumonia por pneumocystis carinii, a herpes zoster, a candiíase esofagiana e a toxoplasmose cerebral. As idades variaram entre vinte e cinco (25) anos e cinquenta e seis (56) anos, sendo que vinte e dois (22) eram do sexo masculino e quatro (4) de sexo feminino. Como recurso artístico foram utilizadas máscaras de molde pré-definido de cores variadas (azul, rosa, amarelo, verde e branca), materiais de pintura e desenho, tesoura, grampeador e cola. A forma de conduzir a dinâmica em relação à confecção artística das máscaras era natural e espontânea. O mais importante era a exteriorização dos conteúdos internos das pessoas. No grupo de profissionais/alunos da saúde propôs a representação de doentes de AIDS, com a temática livre no outro grupo. Após a confecção das máscaras, pediu-se que se registrasse no verso da mesma uma palavra que caracterizasse as emoções vivenciadas neste processo. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS Os símbolos prevalentes no grupo dos doentes de AIDS foram: as cores vermelha e preta, e a boca. Enquanto as palavras predominantes foram: prazer, amor, alegria, paz, felicidade, tranquilidade, beleza e emoção. No grupo de profissionais/alunos da saúde, a ênfase se deu na cor amarela e nos olhos. As palavras predominantes foram: tristeza, sofrimento, persistência, perigo, pessimismo, perigo, angústia, depressão, insuficiência, revolta e desespero. A seguir foram descritos os significados dos símbolos referidos nos dois grupos estudados, ambos baseados em Chevalier & Gheerbrant (1996), Lexikon (1990), Cirlot (1984) e Fincher (1991): Doentes de AIDS: ∗ Cor vermelha: substituto do sangue e do fogo; símbolo do reconhecimento do pecado, do sacrifício e da expiação. Os significados negativos da cor vermelha estão associados com a ferida, a agonia, o sofrimento, a raiva, a sublimação, a doença, a guerra e a morte. Os significados positivos relacionam com a energia da vida e do amor, com a saúde e a transformação no sentido de adquirir mais sabedoria interior. Geralmente, o vermelho junto com a cor preta relaciona-se aos significados negativos desta cor. É antiga a história da cor vermelha, que faz parte de rituais de sepultamento, sacrifício e cura pelo menos durante trinta mil anos. Os monumentos funerários do Neolítico atestam que o vermelho ocre era usado em preparativos fúnebres. A cor vermelha simboliza a função do sentimento no trabalho artístico de seus pacientes. ∗ Cor preta: cor das provas, do sofrimento, da dor resignada, da renúncia, do caos primordial, da escuridão, do nada, da angústia, do inconsciente, do peso, da morte, do mistério gerados pela doença. Simbolicamente, é com mais frequência compreendido sob seu aspecto frio, negativo. Cor oposta a todas as cores, é associado às trevas primordiais, exprime a passividade absoluta, o estado de morte concluído e invariante, é a cor do luto, sem esperança e a perda definitiva.

∗ O elemento boca: abertura da palavra, simboliza a obrigação de respeitar rigorosamente a lei do segredo. É a origem das oposições, dos contrários e das ambiguidades. É também símbolo da aniquilação e de destruição . O ritual da morte com a “abertura da boca” era muito utilizada em povos egípcios e essa cerimônia assegurava ao morto a faculdade de proferir a verdade, de justificar-se perante ao tribunal dos deuses e de receber a nova vida . Profissionais/estudantes da saúde: ∗ A cor amarela: Cor do ouro e da riqueza de espírito; da luz solar e da iluminação, como fonte de vida; o potencial da totalidade: o arquétipo do Self; do calor, do poder e da expansão. A cor amarela é o veículo da juventude, do vigor, da eternidade divina. E, ainda, quando o amarelo aparece é possível que você esteja sentindo forte, cheio de energia, com um sentido bem definido de si mesma. ∗ Os olhos: símbolo da percepção intelectual, do compreender ou entender; local de recepção da luz; um órgão da visão interior, a exteriorização do “olho” do coração. O olho então, sugere dois aspectos: o da função intelectiva e a outra do amor. O olho sugere a luz oculta na escuridão interior e pode revelar informações sobre a relação do ego com o arquétipo do Self. O olho também está estreitamente ligado ao simbolismo da luz, do Sol e do espirito e o espelho da alma. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando todos os dados que foram possíveis de ser coletados, pôde-se conferir grande semelhança nas formas de comunicação humana entre os dois grupos sob análise, incluindo as manifestações verbais e não-verbais, estas ainda mais enfocadas neste estudo. Verificou-se que a produção simbólica, através das máscaras, facilitou a expressão de conteúdos internos de cada grupo, além de resgatar o potencial criativo e saudável, principalmente do grupo doente. A confecção das máscaras resgatou o processo criativo e expressivo dos doentes de AIDS, trazendo à luz de sua consciência o oculto pelo estresse vivenciados pela hospitalização, tratamento e preconceito da doença. Os profissionais/estudantes da saúde, apesar de tentarem expressar verbalmente idéias préconcebidas de tristeza e sofrimento do doente de AIDS, apresentaram trabalhos representando vida e eternidade, afirmados pela cor amarela e pelos olhos prevalentes nas máscaras. A análise simbólica das máscaras desmascarou as fantasias criadas pela expressão verbal, mas reforçou as questões psicológicas caracterizadoras destes grupos. A máscara relacionou o ocultar e o revelar, assim como destacou Buchbinder (1996): “A máscara ao ocultar, nega. Não sou eu, é o outro. Que outro? O outro de meu inconsciente. Nega-se o que se quer afirmar, ou melhor, seleciona-se o que está em condições de se fazer consciente. A máscara pode jogar como uma interpretação explosiva, como se afirmasse mais do que alguém pode aceitar.” O mesmo ocorreu com os doentes de AIDS, mas de uma forma oposta: apresentaram verbalmente sentimentos de alegria e felicidade, mas simbolicamente um conjunto de idéias e atitudes destrutivas. “A máscara é a cristalização corporal da estrutura do sujeito. Como o mais “externo”, o que se mostra para fora, reflete o mais “interno”. (Buchbinder, 1996) A obscuridade da boca pode significou o desejo latente de “compartilhar” a experiência do sofrimento, posto que o doente de AIDS não assume normalmente sua doença perante a sociedade como outras patologias comuns, pelos preconceitos nela inseridos. Após confeccionar a máscara e exteriorizar seus sentimentos de tristeza, este processo serviu como uma “catarse” do sofrimento e este grupo pode então manifestar expressões verbais de alegria. A configuração das máscaras foram projeções que os grupos refletiram acerca da situação de vida deles próprios, pois a máscara ao ocultar, revelou a verdade, na qual os grupos estavam implicados. O grupo de doentes de AIDS, por exemplo, expôs através das máscaras os sentimentos característicos da patologia citados anteriormente.

Por fim, concluímos este trabalho com a citação de Jung (1964): “Todo objeto tem dois aspectos: o aspecto comum, que é o que em geral vemos e os outros vêem (ou o que os outros falam), e o aspecto fantasmagórico ou metafísico, que só uns raros indivíduos, nos seus momentos de clarividência e meditação metafísica vêem. A obra de arte deve expressar algo que não apareça na sua forma visível.”

ANA CLÁUDIA AFONSO VALLADARES:

Arteterapeuta, Artista Plástica e Enfermeira Pediátrica; Professora das Faculdades de Artes Visuais e de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás (UFG); Professora do Curso de Especialização em Arteterapia da UFG; Coordenadora do Curso de Extensão em Arteterapia na Saúde da UFG; Presidente da Associação Brasil Central de Arteterapia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: -

AMARAL, A.M. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. 3. ed. São Paulo, EDUSP, 1996; - BUCHBINDER, M. A poética do desmascaramento Os caminhos da cura. São Paulo, Ágora, 1996; - CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 10. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1996; - CIRLOT, J. E. Dicionário de símbolos. São Paulo, Moraes, 1984; - FINCHER, S. F. O autoconhecimento através das mandalas. São Paulo, Pensamento, 1991; - JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964; - LEÃO, R.N.Q. et. al. Doenças infecciosas e parasitárias. Belém, CEJUP, 1997; - LEXIKON, H. Dicionário de símbolo. São Paulo, Cultrix, 1990; - MINISTÉRIO DA SAÚDE. .Manual de orientação básica para a equipe de enfermagem. Brasília, Ministério da Saúde, 1999; - PAIN, S.; JARREAU, G. Teoria e técnica da arteterapia. A compreensão do sujeito. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996; - PHILIPPINI, A. Universo Junguiano e Arteterapia. In: Imagens da transformação. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2: 4-11, ago. 1995; - SANCHES, R. M. Escolhi a vida. Desafios da AIDS mental. São Paulo, Olho D”Água, 1997. ∗ Pesquisa financiada pelo CNPQ/vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde Integral/FEN/UFG

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