INTRODUÇÃO As reflexões de Hannah Arendt em relação à política têm início por uma perplexidade em relação aos regimes totalitários. Esta preocupação, compartilhada com muitos de seus contemporâneos, é expressa pela autora primeiramente em Origens do Totalitarismo. Nesta obra, o totalitarismo é tratado como uma “resposta destrutiva” (Arendt, 1989, p.12) para os impasses do mundo moderno. Para compreender quais são exatamente esses impasses, é importante refletir sobre o fato de que o totalitarismo é um evento moderno, possível apenas por uma série de aspectos e condições políticas e históricas contemporâneas. Assim, a autora não tem apenas um interesse pessoal em relação ao totalitarismo, senão por este desvelar movimentos da conteporaneidade, que permitem refletir sobre a total ausência política em nosso tempo. O problema contemporâneo afinal seria, para a autora, a solidão ou a alienação. Esta pode ser entendida como a falta de pertencimento efetivo do homem ao mundo enquanto âmbito intermediário de relacionamento entre os homens e também como uma distinção entre o mundo implacável da natureza e um mundo de coisas construído que abriga o homem. Esse processo de alienação, característico da modernidade, é apresentado por Arendt por meio de três eventos fundamentais: a descoberta da América e consequente exploração de toda a Terra, a Reforma e a expropriação decorrente desta, e, ao fim, a invenção do telescópio (Arendt, 2007, p 260). Estes eventos representam o afastamento do homem em relação ao mundo e mostram como não se trata de uma série revolucionária de fatos, mas do acaso no qual a história corre. A pensadora alemã faz uma interpretação dos modos de engajamento do homem no mundo - trabalho, obra e ação - e sua relação com as condições básicas da humanidade. O totalitarismo emerge desse contexto de colapso do mundo moderno, não sendo portanto seu gerador, mas sim uma forma apta, tanto como movimento ou regime, de se erigir dessa atmosfera política e social. O totalitarismo é uma maneira hábil de administrar, mas não superar, a alienação do homem de qualquer forma de pertencimento do mundo. (Alves Neto, 2013)
O colapso moderno foi o resultado de um processo de encolhimento até o desaparecimento do espaço público, mas também do espaço privado, numa perda da confiança na capacidade de sentir um mundo com base em um senso comum. As atividades do homem no mundo foram reduzidas ao fluxo da necessidade vital, assim, ação e obra são reduzidas a trabalho. O totalitarismo foi uma forma de gerenciar essa solidão ou alienação, de modo a tornar a vida humana um mero movimento na implacável natureza, e de que dependemos uns dos outros tão somente para garantir a sobrevivência pelas tarefas necessárias à manutenção da vida. A política teria como atribuição apenas a gestão destas tarefas, limitando-se a aspectos administrativos e burocráticos (Alves Neto, 2013). A questão que se coloca a esse ponto, é a de que “o totalitarismo é um fenômeno de decadência, mas em resposta ao desafio do mundo moderno. O mundo livre deveria fazer o mesmo? Há um modo de desenhar uma nova organização política?” (Arendt, 2011 apud Alves Neto, 2013). O que se instala aqui é se a democracia liberal de massa poderia ser uma outra resposta a este desafio da modernidade em embate com o totalitarismo. LIBERALISMO Liberalismo é uma noção complexa que pode ser entendida como movimento político ou metapolítico, solidificado com a formação da sociedade liberal do século XIX e a expansão da Revolução Industrial nos Estados Unidos e Europa, ou também como uma ideia filosófica na política que prioriza as liberdades individuais e a mínima intervenção do Estado. Esta corrente é, muitas vezes, avessa à existência de uma sociedade entre o indivíduo e o Estado, representando profundo individualismo político. É pétrea a noção de liberdade individual, entendida como ausência de impedimentos. O Estado é minimamente interveniente, garantindo as liberdades da esfera privada. (Gauss e Courtland, 2010) Tradicionalmente, as noções de liberdade e propriedade privada estão intimamente ligadas nessas doutrinas, que interpretam a força de trabalho e, ocasionalmente, os direitos como propriedade. A auto-ordenação do mercado baseada na propriedade privada dá corpo à liberdade (Gauss e Courtland, 2010).
O liberalismo está historicamente ligado à democracia e pode servir como critério para distinguir a democracia liberal de outras formas de regime democrático (plebiscitário, populista, totalitário). O destacado privilégio do indivíduo no liberalismo é um problema em princípio para a democracia, que é centrada na sociedade. A articulação entre a coesão social e igualdade da democracia com a ação interessada de indivíduos é bastante complexa, mas possível, pela tradição filosófica liberal por meio de democracias representativas ou parlamentares, nas quais o dever de legislar não fosse delegado a todo o povo, mas a alguns escolhidos pelos cidadãos que tem os direitos garantidos. (Bobbio, 2000). Mesmo emprestando essa aparente dificuldade à relação entre democracia e liberalismo, Norberto Bobbio, importante pensador italiano, relata que ambas estão intimamente ligadas numa certa relação de interdependência. O Estado Liberal seria uma condição necessária para a democracia (Vitulo e Scavo, 2014). Para o autor, são necessárias certas liberdades para o exercício da democracia, bem
como a
democracia é a maneira de garantir os direitos de liberdades civis e políticas, correlacionando-as nas duas vias. Ambas são conquistas do individualismo, sendo que a democracia representa a garantia de certos direitos individuais invioláveis. Certamente, a visão de continuidade temporal e associação necessária entre liberalismo e democracia defendidas por autores como Bobbio é alvo de crítica de diversos outros que procuram formas de democracias mais populares e não liberais. CRÍTICAS ARENDTINAS Para tentar compreender a complexa posição arendtiana em relação à democracia e ao liberalismo, seria
relevante discutir em
alguns detalhes as relação entre esfera
pública, privada, liberdade e poder. Por liberdade, podemos entender justamente a manifestação do homem no espaço público. Para a política existir, a liberdade é imprescindível; é impossível conceber uma sem a outra enquanto significando no espaço público. O termo público denota dois fenômenos distintos para Arendt. Primeiramente, uma noção de acessibilidade, de que tudo possa ser visto e ouvido por todos. A presença
dos outros que partilham nossos sentimentos e eventos de intimidade, confere realidade a eles e a nós mesmos. (Arendt, 2007, p. 59-60). O segundo aspecto se refere ao próprio mundo comum que seres humanos habitam e mantém suas relações. Não se trata do planeta em sua extensão e condições para a vida orgânica, mas sim do mundo feito pelos homens, produto das ações e dos negócios realizados pelos homens em conjunto. (Arendt, 2007, p. 62). O âmbito privado se apresenta em face à multiplicidade de significados do público, podendo ser entendido no seu verdadeiro sentido de “privação”. Conforme a publicidade confere realidade ao indivíduo, ser privado desta é se destituir de uma vida verdadeiramente humana, ligada aos homens pelo mundo de coisas construído coletivamente, impedido da possibilidade de construir algo mais permanente que a própria vida (Arendt, 2007, p. 68). A autora também mostra uma necessidade da coexistência dos dois âmbitos, já que somente com a propriedade privada e acúmulo de riquezas que se poderia vencer a barreira das necessidades biológicas e almejar uma vida política. Mas também há que se considerar que a importância da riqueza privada para a esfera pública é um fenômeno moderno, o qual não tinha grande importância na antiguidade, sendo relevante a esfera da família e da casa como uma parte privativa que permite constituir o público. Dado este entendimento sobre o espaço público privado, faz necessário discutir a complexa noção de liberdade de Arendt. A pensadora retoma origens da liberdade na antiguidade grega e romana, pois para eles esta seria uma noção fortemente política, dos homens de ação, e não filosófica. Mas ao contrário do que se possa facilmente assumir, a filósofa não tem uma noção retrógrada de liberdade, porém uma versão moderna, que leva em conta a possibilidade de um novo início, calcada na condição da natalidade como algo essencial. A relação entre liberdade e novidade é feita com a moderna noção de revolução. (Arendt, 1988, p. 23). Há uma distinção entre a liberdade e libertação que permite perceber com clareza seus âmbitos
políticos.
Libertação
é
uma
condição
necessária,
mas
não
leva
automaticamente à liberdade. Trata-se de uma noção negativa, uma ideia de garantia de ser a certas ações não políticas. Já liberdade é um fenômeno relacionado à vivência
conjunta dos cidadãos em condição de isonomia na polis grega. A noção de não mando, e de certa forma igualdade, é quase idêntica à de liberdade nesse sentido. A igualdade dos cidadãos é um atributo da polis, e portanto de âmbito político, como garantia da participação no espaço público, já que por natureza os homens são desiguais e precisam criar esta instituição artificial de convívio. A liberdade necessita, dessa maneira, do artifício dos homens, e da convivência entre os pares por meio da manutenção de um espaço público (Arendt, 1988, p. 24). Arendt é uma crítica da relação entre as noções de poder e violência, especialmente em seu ensaio Sobre a Violência, de 1972. Sua compreensão de poder é essencial para abordar a crítica ao liberalismo. A pensadora percebe que a contemporaneidade instrumentalizou e generalizou a violência e, em muitas ocasiões, uma tradição de pensamento busca justificá-la. As ideias que justificam ou glorificam a já naturalizada violência apresentam terríveis consequências, até mesmo sua própria legitimação na violência entre homens ou nas ferramentas de repressão do Estado. A autora não aceita interpretações do poder como reduzido ao do estado-governo e relacionado à sua capacidade repressiva, em suas palavras: “[...] a violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder.” (Arendt, 2001, p. 42) A violência portanto não é uma instância política, senão relacionada à dominação, já o poder, ao contrário, está relacionado ao agir junto. O poder manifesta-se pela ação política concentrada de maneira essencialmente não violenta. Baseada nas ideias da antiguidade, Arendt defende que o poder também se manifesta num consentimento à obediência de certas leis, mas não a certos homens. “O apoio do povo que confere poder às instituições de um país” (Arendt, 2001, p. 34), o que é uma continuidade do acordo comum que deu existência a essas leis. Como bem observa Magalhães (2008 p. 69-70), as instituições políticas são materializações do poder apoiado pelo povo, e está também vinculado a um momento fundacional de uma comunidade, quando as leis vêm à existência. Então, para Arendt, o poder é pertencente a um grupo, e existe enquanto mantido conjuntamente por esse
grupo. Seu lugar de excelência é o espaço público de ação e diálogo entre homens livres, e liga-se, portanto à condição da pluralidade. Diferentemente da tradição do pensamento político, não cabe
ao poder a
instrumentalização do domínio entre homens com o objetivo de atingir certos fins, nem está vinculado à posse de determinados recursos (Magalhães, 2008, p. 71). Ora, dadas as interpretações arendtianas de poder, liberdade e espaço público, é possível tecer uma série de críticas em relação ao liberalismo, democracia e a fusão de ambos. Inicialmente, o modelo representativo parece ser uma maneira de salvaguardar o povo do exercício abusivo do estado-governo, e elimina o espaço de diálogo, participação e ação, restringindo-o minimamente aos representantes, sufocando o espaço público e portanto a liberdade (Arendt, 1988, p. 188). Aparentemente, o cerne desta diferença está na própria definição de liberdade. No liberalismo, há uma distinção entre liberdade e poder muito clara, como diz Bobbio (1994, p. 23), esses dois “são termos antitéticos, que denotam duas realidades em contraste entre si e são, portanto, incompatíveis”. A noção liberal defende uma liberdade natural de cada homem que deve ser mantida, e portanto a política não poderia intervir pelo uso do poder. Já na visão arendtiana, recuperada em parte dos gregos, percebe a liberdade não como individual, mas como um exercício coletivo dos homens que habitam o espaço público. A versão liberal e representativa da democracia mantém a oposição entre política e liberdade, na qual uma cerceia a outra. A noção da filosofia política tradicional de que a política é um mal necessário é mantida nessa democracia, que busca minimizar o Estado, como expressão da vida política, à mínima gestão da vida social e econômica. A política é a garantia de direitos e liberdades individuais da esfera privada Se consideramos que uma democracia formal de âmbito liberal tomou espaço como uma resposta ao totalitarismo, esta não foi capaz de reconstruir o âmbito público. Como o poder está vinculado à liberdade que se efetiva entre os homens, o domínio do espaço público por poucos no sistema representativo é uma forma de obstruir o poder.
BIBLIOGRAFIA ALVES NETO, R.R. A crítica arendtiana à democracia liberal e o sentido de liberdade. Cadernos de Ética e Filosofia Política. Nº 23. Pag. 52 - 61. São Paulo. 2013. Disponível em http://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/83332>. Acesso em 17 agosto 2014. ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo. Editora Forense Universitária. 10 ed. Rio de Janeiro. 2007. _______, Da revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. Editora Ática, São Paulo, 1988. _______, Origens do Totalitarismo.Trad. Roberto Raposo. Companhia das Letras, São Paulo. 1989 _______, Sobre a violência. Trad. André Duarte. Editora Relume Dumará, 3. ed. Rio de Janeiro, 2001. _______, Totalitarismo. Trad. A. Correia. In: Inquietude: Goiânia, v. 2, n° 2, ago/dez, 2011. BOBBIO, N. Liberalismo e democracia. Trad. Marco A. Nogueira, Editora Brasiliense, 6ª ed. São Paulo, 1994. _______, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. 3ª ed., Editora Campus, Rio de Janeiro. 2000. GAUSS, G. e COURTLAND, S. D. “Liberalism”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. E. N. Zalta (ed). 2011. Disponível em Acesso em 20 agosto 2014. MAGALHÃES, S.M. Poder e Violência: Hannah Arendt e a Nova Esquerda. UNESP. Dissertação (mestrado). 128f. Marília. 2008. Disponível em Acesso em 28 de agosto de 2014. VITULLO, G. e SCAVO, D. O liberalismo e a definição bobbiana de democracia: elementos para uma análise crítica. Revista Brasileira de Ciência Política Nº13. Brasília. Abr. 2014. Disponível em Acesso em 20 agosto 2014.