Araujo - Escola E Sociedade Em Bourdieu.pdf

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Práxis Educacional

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) Prof. Dr. Abel Rebouças São José Reitor Prof. Rui Macêdo Vice-Reitor Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Prof. Ms. Sidiney Alves Costa Diretor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas Profª Drª Maria Iza Pinto de Amorim Leite Coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Gestão e Práxis Educacionais Profª Drª Lívia Diana Rocha Magalhães Coordenadora do Museu Pedagógico Jacinto Braz David Filho Diretor da Edições Uesb Catalogação na Publicação: Biblioteca Central da Uesb Práxis Educacional/Revista do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – n. 2 (nov. 2006). – Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2006. Anual ISSN 1809-0249 1. Prática de ensino – Brasil – Periódicos. 2. Professores – Formação – Brasil. 3. Trabalho e educação – Brasil. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas. II. Título. CDD: 370.71081

Estrada do Bem Querer, km 4 - Fone: (77) 3424-8716. E-mail: [email protected] CEP: 45083-900 - Vitória da Conquista - Bahia

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Práxis Educacional

ISSN 1809-0249

Práxis Educacional

Vitória da Conquista

n. 2

p. 1-298

2006

Copyright © 2006 by Edições Uesb

Práxis Educacional Revista do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) n. 2 – 2006 Comitê Editorial Ms. José Rubens Mascarenhas de Almeida (Coord.) Drª Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro Drª Lívia Diana Rocha Magalhães Secretárias: Ms. Edinalva Padre Aguiar e Ms. Gerenice R. de Oliveira Cortes CONSELHO EDITORIAL Ms. Ana Cláudia Pacheco, Drª Ana Elizabeth Santos Alves (UESB), Drª Ana Palmira B. Santos Casimiro (UESB), Dr. Antônio Vital Menezes de Souza (UNEB), Ms. Cláudia Albuquerque Lima (UESB), Ms. Claudinei C. Sant’Ana (UESB), Ms. Cláudio Pinto Nunes (UESB), Dr. Diógenes Cândido de Lima (UESB), Dr. Edson Silva de Farias (UFBA), Dr. Gaudêncio Frigotto (UERJ), Ms. Isabel Cristina de Jesus Brandão (UESB), Ms. Itamar Pereira de Aguiar (UESB), Dr. João Cardoso (UESB), Dr. Jornandes Correia (UESB), Dr. José Albertino Lordelo (UFBA), Ms. José Carlos Simplício (UESB), Ms. José Jackson Reis dos Santos (UESB), Ms. José Rubens Mascarenhas de Almeida (UESB), Ms. Jussara Almeida Midlej Silva (UESB), Drª Kátia Siqueira de Freitas (UFBA), Drª Leila Pio Mororó (UESC), Drª Lia Vargas Tiriba (UFF), Drª Lianna de Melo Torres (UFS), Drª Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB), Dr. Luiz Otávio Magalhães (UESB), Dr. Marcelo Barreira (UESB), Ms. Milene de Cássia Portela Gusmão (UESB), Drª Maria da Conceição Fonseca Silva (UESB), Drª Maria do Pilar Cunha e Silva (UFBA), Drª Maria Iza Pinto de Amorim Leite (UESB), Drª Marta Araújo (UFRN), Drª Moema Maria Badaró Cartibani Midlej (UESC), Ms. Nilma Margarida de Castro Crusoé (UESB), Ms. Núbia Moreira (UESB), Dr. Oswaldo Alonso Rays (UFSM/Unifra), Dr. Reginaldo de Souza Silva (UESB), Drª Rita de Cássia Mendes Pereira (UESB), Dr. Roberto Sidnei Alves Macedo (UFBA), Dr. Romualdo Portela Oliveira (USP), Ms. Ruben de Oliveira Nascimento (UESB), Ms. Sandra Márcia Pereira Campos (UESB), Drª Tatiana Lebedeff (UPF), Drª Vera Fartes (UFBA).

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) Caixa Postal 95 – Vitória da Conquista – BA CEP: 45083-900 – Fone: (77)3424-8652 E-mail: [email protected] http://www.uesb.br/editora

SUMÁRIO

Editorial José Rubens Mascarenhas de Almeida .............................................................. 9 ENTREVISTA Questões para Paolo Nosella Lívia Diana Rocha Magalhães ...................................................................... 15

ARTIGOS Apontamentos sobre a técnica de periodizar Marcos Jorge .................................................................................................. 23 A compaixão na história: atributo antropológico e ocultamento Ileuza Costa Cardoso e Marta Maria Amorim Silva .................................... 35 Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu Vânia Rita Donadio Araújo ......................................................................... 57 Educación y reproducción cultural: el legado de Bourdieu Jorge García Marín ........................................................................................ 71

Investigação-ação na formação de profissionais pesquisadores(as): uma experiência no ciclo de aprendizagem e na educação de pessoas jovens e adultas Maria Iza Pinto de Amorim Leite e José Jackson Reis dos Santos ................. 79 Anotações sobre o processo de ensino e aprendizagem de história para alunos surdos Célia Regina Verri e Regina Célia Alegro ..................................................... 97 O currículo no Brasil colônia: proposta de uma educação para a elite Solange Aparecida Zotti .............................................................................. 115 Educação popular rizomática: educação das multiplicidades Wilson da Silva Santos ................................................................................ 141 Crianças pequenas em Vitória da Conquista: uma proposta de trabalho fora da educação infantil Ana Lucia Castilhano ................................................................................. 153 Educação do campo: alfabetização e escolarização de pessoas jovens e adultas assentadas no Sudoeste da Bahia Silvia Regina Marques Jardim e Sidiney Alves Costa .................................. 171 DOSSIÊ TEMÁTICO Fontes para a história da educação Antonietta d´Aguiar Nunes ........................................................................ 187 Museu pedagógico: a intervenção acadêmica como ação de preservação de fontes para a história da educação do centro-sul da Bahia Ana Palmira Bittencourt Santos Cassimiro, Lívia Diana Rocha Magalhães e Ruy Hermann Araújo Medeiros .................................................................. 207 Registro em arquivos sobre a indústria de laticínios na região Sudoeste da Bahia Ana Elizabeth S. Alves, Gilneide de Oliveira Padre Lima e Manoel Nunes Cavalcanti Júnior ......................................................................................... 221

O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicas iniciais Marlete dos Anjos Silva Schaffrath .............................................................. 237 RELATOS DE EXPERIÊNCIAS Mulher, professora e ativista social: o movimento das professoras primárias da Bahia, em 1947 Alcides Leão Santos Júnior .......................................................................... 249 Filosofia e cinema, uma articulação entre o afetivo e o racional como forma de encaminhamento do pensar: um relato da experiência do projeto “Filosofia e cinema: estética e racionalidade da imagem” Clédson L. Miranda dos Santos ................................................................... 263 Saberes docentes: iniciando uma pesquisa nos cursos de licenciatura em matemática Januária Araújo Bertani, Janice Cássia Lando, Inês Angélica Andrade Freire, Roberta D’Ângela Menduni e Márcia Graci de Oliveira Matos .................. 275 RESENHA Deslocamentos deleuzeanos para a educação Benedito Gonçalves Eugênio ......................................................................... 291 Normas para apresentação de trabalhos .............................................. 295

EDITORIAL A apresentação deste segundo número da Revista Práxis Educacional tem uma preocupação precípua com a articulação entre educação, história, filosofia, sociologia... efetivando o próprio sentido da práxis educacional. Priorizamos convidar para uma breve entrevista o professor Paolo Nosella, que analisa importantes temas que fizeram parte da formação dos educadores brasileiros no último quartel do século XX e nos presenteia com uma espécie de “inventário crítico” sobre o sentido de categorias centrais. Na contramão de esquemas de pensamentos e análises que sintetizam hoje a educação brasileira, tais como competência, escola, qualidade e educação, Nosella nos faculta o reencontro com conhecidas discussões, mas sob novos olhares, à luz da história. No leque de artigos aqui publicados, apresentamos uma ampla diversidade de abordagens. O professor Marcos Jorge, com “Apontamentos sobre a técnica de periodizar” discute a problemática da periodização na história da educação brasileira, levando em conta aquilo que se constitui como um continuum humano. Este autor faz um importante trajeto sociológico que vai da reflexão de historiadores que pensaram tal problemática, desde a perspectiva do materialismo histórico até a Nouvelle Histoire.

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No artigo intitulado “A compaixão na história: atributo antropológico e ocultamento”, Ileuza Costa Cardoso e Marta Maria Amorim Silva, partindo de um viés histórico-antropológico, buscam mostrar que a trajetória humana é marcada não só por fatos cruéis e beligerantes, mas também pela compaixão. Dois artigos nos aproximam da obra de Pierre Bourdieu. Vânia Rita Donádio Araújo apresenta contribuições do pensamento de Bourdieu no campo pedagógico e, mais especificamente, reflexões sobre a natureza do trabalho escolar e as dificuldades concretas da prática pedagógica, focalizando a relação escola/sociedade, cuja ação reproduz as desigualdades sociais. Fundamentada na perspectiva de Bordieu, a autora ressalta a mudança de rumo do papel da educação como instituição pressupostamente democratizadora e transformadora da sociedade para tornar-se mantenedora e legitimadora de privilégios sociais. Em outro artigo, Jorge Garcia Marín afirma que, no contexto das teorias da reprodução e de sua influência no desenvolvimento dos paradigmas do conflito na sociologia da educação, a análise crítica do sistema educacional e seu importante papel na reprodução sociocultural continuam como temas importantes na hora de abordar a educação. Para Marín, o diálogo com a obra de Bourdieu, principalmente no que diz respeito à reprodução, permite conflitar as relações educacionais, assim como pensar esquemas de ação que sigam políticas contrahegemônicas. Dois artigos articulam, dialeticamente, o fazer pedagógico. O primeiro, escrito a quatro mãos pelos professores Maria Iza Pinto Amorim Leite e José Jackson Reis dos Santos, aborda a investigaçãoação como práxis coletiva e colaborativa, resgatando o papel social da universidade, cuja função principal é desenvolver e enriquecer o olhar dos sujeitos com ações que visam ao objeto em sua própria fonte histórica. O segundo é uma importante abordagem acerca do ensinoaprendizagem na disciplina história, envolvendo o aluno surdo ou com perda auditiva, e se constitui uma boa contribuição para o alargamento das possibilidades de inserção indiscriminada dos indivíduos no exercício

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dos seus mais elementares direitos – e a educação se insere aí como um dos principais. Foi escrito pelas professoras Célia Regina Verri e Regina Célia Alegro. Num instigante artigo, Solange Aparecida Zotti analisa, com base em fontes bibliográficas, a relação entre o contexto socioeconômico e político brasileiro do período colonial – caracterizado por um modelo mercantilista baseado na exploração da mão-de-obra escrava –, a proposta educacional e as propostas curriculares oficiais que ali se desenharam, calcadas na profunda e desmedida depredação da colônia. Denuncia a autora que a lógica desse modelo de educação era a de sedimentar a visão do colonizador, sendo a catequese e a educação da elite seus principais objetivos. A filosofia não poderia ficar fora deste número da Práxis. Wilson da Silva Santos busca articular conceitos oriundos da filosofia deleuzeana no campo da educação popular e suas multiplicidades em conexões produzidas nas mais diversas particularidades, em consonância com a prática social concreta, no artigo “Educação popular rizomática: educação das multiplicidades”. Em se falando de prática social, Ana Lúcia Castilhano aborda o problema de crianças de 0 a 4 anos num bairro da periferia de Vitória da Conquista, alijadas da Educação Infantil, numa clara denúncia de demanda não atendida nesse setor. No âmbito das políticas públicas, Silvia Regina Marques Jardim e Sidiney Alves Costa analisam parcialmente o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), na região Sudoeste da Bahia. O eixo temático deste número da Práxis traduz a preocupação característica do Museu Pedagógico da Uesb no que se refere às fontes históricas como elementos fundadores da história e da historiografia da educação no Brasil, mais especificamente da região Centro-Sul do Estado da Bahia. Resgate e conservação, fatores imprescindíveis no fazer história. Acreditamos que sem documentos não há história. Hoje, com a ampliação da concepção de fontes, a história e a historiografia da educação vêem-se também ampliadas em suas

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possibilidades investigativas. Assim, no dossiê Fontes Documentais Para a História da Educação, buscamos sintetizar, quase numa configuração caleidoscópica, a problemática indissociável do fazer histórico-historiográfico que é a incessante busca e conservação das fontes históricas. Aqui, a história da educação, como um dos ramos da História que tem conquistado amplos espaços nos últimos 40 anos, é abordada por Antonietta d´Aguiar Nunes, no artigo “Fontes para a história da educação”; em “Museu pedagógico: a intervenção acadêmica como ação de preservação de fontes para a história da educação do Centro-Sul da Bahia”, Ana Palmira Casimiro, Lívia Diana Magalhães e Ruy Hermann Medeiros delineiam os objetivos-fins do Museu Pedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; em “Registro em arquivos sobre a indústria de laticínios na região sudoeste da Bahia”, os autores Ana Elizabeth S. Alves, Gilneide de Oliveira Padre Lima e Manoel Nunes Cavalcanti Júnior apresentam uma breve discussão sobre documentos encontrados em arquivos acerca do desenvolvimento da indústria de laticínios e da qualificação profissional realizada pelo Posto Experimental de Laticínios, na região de Vitória da Conquista, Bahia, articulando aspectos do desenvolvimento socioeconômico brasileiro e suas repercussões sobre a economia regional e a educação. Por fim, em “O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicas iniciais”, Marlete dos Anjos Silva Schaffrath investiga o lugar das fontes na pesquisa historiográfica. Três relatos de experiência articulam o fazer pedagógico. O primeiro é apresentado por Alcides Leão Santos Junior, que aborda a mobilização das professoras primárias na Bahia, na década de 40, do século XX, e ressalta o papel da mulher – e, nesta, a professora primária como responsável pela criação da Sociedade Unificadora de Professores Primários –, onde objetiva fatos e acontecimentos que marcaram esse movimento por meio da memória dos “sujeitos epistêmicos”. O segundo relato apresenta o projeto de extensão “Filosofia e cinema: estética e racionalidade da imagem”, realizado no ano de 2005, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, estruturado segundo o

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“conceito-imagem”, fundamentado no que o autor – Clédison Miranda dos Santos – considera a imagem cinematográfica como elemento capaz de sintetizar conceitos de valores universais. No último relato de experiência, as autoras, Januária Araújo Bertani, Janice Cássia Lando, Inês Angélica Andrade Freire, Roberta D’Ângela Menduni e Márcia Graci de Oliveira Matos trazem à tona reflexões sobre a prática e a teoria no ensino da Matemática segundo a percepção de discentes. Fechando este número, uma resenha, escrita pelo professor Benedito Eugênio, do livro de Silvio Gallo, Deleuze e a educação, nos atualiza acerca de mais uma obra que aborda a filosofia deleuzeana na educação. Destarte, pensamos que o número 2 da revista Práxis Educacional cumpre com o seu papel, relatando a prática social e a teoria, interagindo, pedagogicamente, numa simbiótica e única relação. José Rubens Mascarenhas de Almeida pelo Comitê Editorial do Museu Pedagógico da Uesb.

ENTREVISTA

QUESTÕES PARA PAOLO NOSELLA Lívia Diana Rocha Magalhães Pelo Comitê Editorial do Museu Pedagógico da Uesb

O professor Paolo Nosella é um intelectual bastante conhecido no Brasil, particularmente por suas publicações sobre a Educação Brasileira, na área de Trabalho e Educação, História da Educação, entre outras, e por sua inestimável contribuição na difusão da literatura de Antônio Gramsci para a área educacional. Na entrevista que se segue, ele nos proporciona uma reanálise de temas que fizeram parte da formação e preocupação dos educadores brasileiros no último quartel do século XX, possibilitando uma espécie de “inventário crítico” sobre o sentido que certas categorias de análise assumem na problematização da prática e de concepções educacionais. Na contramão de esquemas de pensamentos e análises que sintetizam o presente da educação brasileira, em questões de conceitos técnicos destituídos de história e de contradições sociais, como competência, escola, qualidade e educação, o autor nos possibilita o reencontro com discussões sobre “competência técnica x competência política”, “Escola desinteressada x Escola politécnica”, à luz das leituras de Gramsci, historicizando-as e superando-as por meio de uma incursão que propicia a certeza de que precisamos continuar discutindo e estudando a educação brasileira. Práxis Educacional

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Práxis Educacional (PE): Em seu artigo “Compromisso político e competência técnica: 20 anos depois” e na sua palestra realizada no V Colóquio do Museu Pedagógico da Uesb, o senhor rediscute o tema compromisso político e competência técnica. Qual a importância do retorno a um tema tão debatido na década de 1980? Paolo Nosella: De forma geral, os intelectuais brasileiros estiveram sempre envolvidos, direta ou indiretamente, em política. Essa característica não é defeito, aliás, considero-a um valor. A intelligentzia brasileira nunca se confinou exclusivamente na pura filosofia nem se enclausurou nas sacristias ou nas academias. Teve sempre um pé (ou mais que um pé) no espaço político, desde os Jesuítas, passando pelos Pioneiros da educação, até os atuais educadores em geral. Tal compromisso político, como disse, é um valor. Mas há formas e formas de envolvimento do intelectual com a política. Ora, sobre essas variadas formas, pouco se refletiu. Meu artigo e minha palestra pretenderam estimular a reflexão sobre as variadas formas de compromisso político dos intelectuais, começando por caracterizar as duas principais: a orgânica e a tradicional. Dos anos 70 e 80, do século passado, para os dias de hoje, a conjuntura política do país mudou muito. Assim, a forma de engajamento político do educador necessariamente deve tomar novas performances. Simplificando: se, naqueles anos, era prioritário um engajamento orgânico, isto é, de carteirinha, hoje a carteirinha partidária para um educador, mesmo sendo ainda um valor, não é mais uma “necessidade” histórica. Com efeito, o ato pedagógico já possui em si a dimensão clara (mesmo que implícita) do compromisso ético-político do educador. Em suma, o intelectual orgânico e o tradicional representam duas formas de compromisso político; não se contrapõem entre si, mas se articulam e complementam. Ora, o equívoco em que muitos educadores caíram nos anos 80 foi considerá-las antagônicas. Dependendo da conjuntura política, uma forma de engajamento pode ser mais importante ou prioritária do que a outra; as duas, porém, são necessárias e complementares entre si.

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PE: O senhor afirma que, para compreendermos a função e a natureza dos intelectuais, precisamos ler Gramsci com maior atenção, contrariamente ao que ocorreu nos anos de 1980. O senhor poderia explicitar melhor a necessidade dessa releitura? PN: Precisamos reler Gramsci, justamente porque nos anos l980 sua obra foi lida pelo viés do compromisso orgânico, como se, necessariamente e sempre, ele priorizasse as atividades políticas “orgânicas” dos intelectuais, em detrimento das suas atividades “tradicionais”. Mas isso não é verdade. Em certos momentos (ascensão do fascismo), Gramsci priorizou o intelectual orgânico, mas, em outros momentos, não. Aliás, se há uma especificidade nele, que o distingue dos comunistas dirigentes da época, é justamente a de focalizar e analisar a cultura e a política desinteressadas e, paralelamente, a função e o peso político dos intelectuais tradicionais. Ele deixa claro que o compromisso político do intelectual tradicional tem um valor extraordinário e insubstituível que, freqüentemente, o partido não entende. Só o intelectual tradicional pode fornecer ao partido a dimensão “desinteressada” da política, a perspectiva histórica de longo alcance, a cultura elevada e complexa da modernidade, os valores éticos que fazem do “poder” um verbo, e não um substantivo. Quando o partido o subestima, ou até mesmo o dispensa, o intelectual tradicional torna-se uma mera máquina burocrática, um cego instrumento de poder. Obviamente, no novo quadro político em que se encontra o Brasil hoje, é indispensável ler o Gramsci que resgata a dimensão política das atividades tradicionais dos educadores e dos intelectuais em geral. A carteirinha, isto é, o engajamento político orgânico se, de um lado, ajuda, de outro, aprisiona a inteligência e o coração do educador. Ora, Gramsci, ultrapassando o marxismo determinista e introduzindo o marxismo investigativo e “desinteressado”, não aceita (salvo em certas situações históricas de extrema emergência) o taticismo político, porque jamais aceita deformar a verdade ou sonegá-la simplesmente para ganhar votos. PE: O senhor poderia discutir melhor sua afirmação de que “é preciso resgatar o valor da dúvida como método”?

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PN: A dúvida é a mãe da ciência. O intelectual orgânico dificilmente duvida e menos ainda pode expressar suas dúvidas, pois seu compromisso é com a organização, não com a ciência. Quando Brecht escrevia que “O nosso recurso novo é a dúvida”, ele apontava para o processo de descolamento de Galileu do rígido organismo medieval. Não estava ainda clara, para esse famoso cientista, a estrutura do estado moderno, mas, para chegar a ele, era preciso começar a duvidar da estrutura milenar da cristandade medieval. O que não era pouca coisa. Ora, Galileu podia duvidar porque era um intelectual tradicional, um físico-matemático, livre de relações orgânicas com a estrutura do poder estabelecido, isto é, não era clérigo. Só o intelectual tradicional pode duvidar profundamente e manifestar abertamente suas dúvidas. PE: Em tempos atuais, como poderíamos compreender a necessidade da escola e da política “desinteressadas”? PN: Uma escola “desinteressada” hoje é aquela que possibilita aos jovens adquirir o rigor científico e exercer responsavelmente a liberdade. Rigor científico é o método que eleva a cultura popular para os níveis profundos da arte, da filosofia e da ciência. A aplicação desse método não admite leviandade, superficialismos, espontaneísmos, assistencialismos, etc. O exercício responsável da liberdade ocorre quando o jovem cresce junto com a escola, que deve se tornar um espaço público para acolher não somente seus braços e suas mentes, e, sim, também, sua vida, suas organizações, seus sonhos, sua criatividade, suas tendências construtivas e suas habilidades. Por isso, para Gramsci, a expressão “educação politécnica” é inadequada por ser semanticamente insuficiente, visto que o termo inevitavelmente põe o acento no instrumento do trabalho, e não na liberdade do trabalhador. A política “desinteressada” é a forma de conquistar e exercer o poder, sem incorrer nos três atávicos e mortíferos vícios da política: o mesquinho taticismo político, o determinismo histórico e o burocratismo autoritário. A política desinteressada não deixa de dizer a verdade, e toda a verdade, mesmo que isso signifique, a curto prazo, perder uma eleição, pois sabe que o taticismo político, se a curto prazo

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pode trazer vitórias eleitorais, a longo prazo prejudica os ideais da verdade e da autenticidade. O determinismo político não considera a história como um processo dialético, e sim como a realização dos seus planos e sua previsão mecânica e dogmática. O burocratismo político, finalmente, substitui os valores éticos por regras formais, instituídas e protegidas pela força. PE: Será que, de fato, a idéia da “escola desinteressada” tem sido compreendida no Brasil? PN: Infelizmente, acho que a bandeira da “educação politécnica”, em que pese às suas excelentes boas intenções, significou uma perda de tempo, um freio para o esclarecimento da idéia gramsciniana de “escola desinteressada do trabalho”. Cito Fernando Pessoa: “Quem não vê bem uma palavra,/não pode ver bem uma alma”. Não me preocupo com o entendimento que o neoliberalismo tem de “escola”. Pois, este já o sabemos: o neoliberalismo entende doar uma escola assistencial para os pobres, uma profissionalizante para os trabalhadores e uma elitizante para os futuros dirigentes. O que me preocupa é a compreensão que os marxistas ou socialistas têm de escola. Nesse sentido, repito que a expressão “politécnica” não foi semanticamente feliz. Ela nos impediu uma interlocução clara com a sociedade em geral e limitou nossa elaboração teórico-prática de um modelo de escola voltado, em primeiro lugar, para a liberdade do trabalhador, ou seja, para entender e aplicar a dialética íntima entre o reino da necessidade e o da liberdade. Assim, fomos encurralados pela força da semântica na reflexão sobre o ensino médio e sobre o impacto das novas tecnologias. Referências Bibliográficas NOSELLA, Paolo. O compromisso político do intelectual. In: ______. Qual compromisso político?: ensaios sobre a educação brasileira pósditadura. 2. ed. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. NOSELLA, Paolo. Compromisso político e competência técnica: 20 anos depois. Eccos Revista Científica, São Paulo: Centro Universitário Nove de Julho (Uninove), v. 6, n. 1, jun. 2004.

ARTIGOS

APONTAMENTOS SOBRE A TÉCNICA DE PERIODIZAR Marcos Jorge * Resumo: O artigo apresenta uma discussão sobre o problema da periodização na História. Com base em alguns autores selecionados, inicialmente traça um panorama da questão que envolve o segmentar do tempo vivido, em seguida destaca as questões que envolvem a técnica do periodizar no campo disciplinar da História e, finalmente, apresenta os critérios para o uso da periodização. Palavras-chave: Teoria da História. História. Periodização.

Introdução Um tema atualmente discutido em História e em História da educação é a periodização, ou seja, a secção do tempo histórico para fins analíticos, ou instauração de segmentos naquilo que se constitui o continuum humano. Entre o início e o fim de qualquer atividade humana no tempo, há a mudança: nenhum homem, nenhuma sociedade são os mesmos de ontem, e serão diferentes dos de hoje; a transformação, por mais ínfima e sutil que seja, remodela quem está inserido no processo histórico, como observa Reis (2005): * Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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Entre o ser inicial e o final há o tempo, a duração que altera o ser. Essa duração não é “natural” – contínua, homogênea, regular, mensurável –, é “humana”, “vivida”, portanto descontínua, heterogênea, irregular, qualitativa e não-numerável (REIS, 2005, p. 180).

Mesmo com a renovação metodológica ocorrida com o movimento da Nouvelle Histoire, (em que o conceito de tempo é aceito como descontínuo, e as análises se concentram em recortes temáticos), a reflexão sobre o periodizar tem despertado muito interesse, independente de qual seja a orientação metodológica do pesquisador. Reis (1994) escreve a esse respeito: A história, se apreendida por conceitos, ganha uma nova periodização [...]. A periodização não se relaciona mais à história universal. A Nouvelle Histoire não estuda épocas, mas estruturas particulares. É sempre, como já foi mencionado, uma “história de [...]” circunscrita no tempo e no espaço (REIS, 1994, p. 24).

Outro autor contemporâneo, Le Goff (1996), reforça essa avaliação quanto à forma como a Nouvelle Histoire concebe a noção de ruptura entre passado e presente: A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. [...] mais importante seria o nível mais profundo das realidades que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais as estruturas) trata-se do nível das “longas durações” (LE GOFF, 1996, p. 5).

O objetivo deste artigo é discutir a questão da periodização (um procedimento imprescindível no fazer historiográfico), considerando as reflexões de historiadores que escreveram sobre o assunto. Tal propósito se insere numa preocupação oriunda de uma pesquisa sobre a periodização na História da educação brasileira, onde se pôde constatar a precariedade de trabalhos teóricos que discutam o ato de periodizar.

Apontamentos sobre a técnica de periodizar

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Utilizando como metodologia a pesquisa bibliográfica, realizamos um levantamento de autores oriundos do campo da História que escreveram sobre o tema da periodização, posteriormente fizemos uma análise desses trabalhos, buscando compreender a questão do periodizar e, finalmente, traçamos algumas diretrizes gerais cujo objetivo foi o de registrar as principais regras, com base nos historiadores estudados, para a utilização do recurso chamado de periodização. Periodização é um tema complexo, pois envolve o “devir” humano por excelência, ou seja, a vida, as ações humanas impressas no tempo; e a intenção de captar esse tempo é algo de extrema controvérsia, que inquieta os historiadores: Seria possível segurar esse tempo humano que transcorre vertiginosamente, vivido na inquietação, no terror do horizonte mortal? Seria possível regular a clepsidra para que a areia/água não desça de uma só vez, sem deixar vestígios do ser que estava na parte superior? (REIS, 2005, p. 181).

Eis a grande marcha da História: reconstruir aquilo que já não é (o passado) para tentar dar sentido ao momento que passa, ou seja, o presente. Para tanto, a pergunta do pesquisador é: tal tarefa é possível? E o autor complementa: Entretanto, é preciso controlar de alguma forma essa descida humana no tempo, é necessário acompanhar essa passagem dos homens. Como? Essa é a problemática do tempo histórico: o acompanhamento dos homens em suas mudanças, e sua descrição e análise (REIS, 2005, p. 181).

Baliñas (1965) expõe as inquietações de Julián Marías sobre o segmentar do tempo histórico: La ordenación histórica no es uma mera sucesión cronológica, en virtud de la cual se podría hacer corresponder un número ordinal a cada punto de vista y a cada forma de potencia de lo real correlativamente. En primer lugar, el tiempo es irreversible [...]. En segundo lugar, cada momento es cualitativamente

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insustituíble [...]. En tercer lugar, cada situación histórica viene de las demás anteriore, y éstas quedan implicadas en ellas (MARÍAS apud BALIÑAS, 1965, p. 324-25).

O problema da periodização A questão do periodizar está presente na História e em quase todas as disciplinas (artes, literatura, sociologia, antropologia etc.), mas é ainda pouco estruturada do ponto de vista teórico. Conceitualmente, periodizar é uma operação que consiste na divisão cronológica para efeitos de análise de uma grande unidade temporal. Bauer (1957, p. 144) complementa que “esta separación lo lhamamos ‘periodificacion’, y a los espacios de tiempo limitado por esse processo: períodos”. Rama (1963, p. 176) fornece uma definição de período: Por período histórico se entiende, de acuerdo a una recibida definición de C. J. Neumann “espacios de tiempo bien individualizados de la vida histórica, que, por su contenido y sustancia, se ligan en una unidad, y que, justamente por ello, se destacan de los que preceden o siguen”.

Ao que parece, periodizar é um processo controverso e carente de estudos mais sistematizados, porém tão importante para as ciências do homem que, para poder melhor entender e organizar o conhecimento da história da humanidade, se faz necessário proceder em recortes. As questões relativas à cronologia (e à periodização) estão intrinsecamente ligadas ao fazer historiográfico e estão sempre amparadas nos valores de quem o realiza, como observa Bauer (1957, p. 147): “las cuestiones de periodificación están condicionadas por la concepción que del mundo tenga el historiador”. Dessa forma, o ato de periodizar não tem uma natureza em si mesmo, é totalmente obra do pesquisador e tem um alcance bastante limitado às suas necessidades, uma vez que “toda división histórica es, em último término, algo arbitrário y debe mantenerse dentro de ciertos limites que ella misma proporciona” (BAUER, 1957, p. 153).

Apontamentos sobre a técnica de periodizar

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Rodrigues (1969, p. 116) observa a artificialidade que encobre toda divisão periódica, os caracteres subjetivos que influem na escolha dos marcos de um período e muitos outros fatores. Em toda periodização se intromete a idéia do mundo do historiador ou filósofo. Uns preferem periodizar segundo critérios econômicos, outros, como Troeltsch, marcam os períodos baseados nas transformações espirituais e culturais ou nas suas relações com as modificações econômicas, e outros, finalmente, como von Below, de acordo com a tradição, preferem apoiar-se nas modificações políticas.

O autor observa ainda um relativo desconforto no uso da periodização para a análise histórica, pois, em certa medida, seccionar o tempo histórico, ainda que para efeito de método, entra em choque com o material de trabalho do historiador, que é o “desenrolar” ininterrupto de eventos, consequência dos atos humanos sobre a natureza. Assim, “a história é realmente um suceder contínuo”, um todo de difícil apreensão pelas partes. No entanto, esse movimento encerra uma lógica interna que lhe dá estabilidade, coerência e impulso e integra esse mecanismo a “transformações e os nexos efetivos que as ligam como a um todo”. São justamente esses nexos que se prestam à análise histórica e devem ser dispostos em cortes ou períodos que comportariam as “tendências dominantes e que logo caracterizariam uma época” (RODRIGUES, 1969, p. 114). Ainda segundo Rodrigues, estabelecidos os períodos, estes teriam a função de destacar, dentre outras, toda a “cultura de uma época”, seus valores, crenças, seus objetivos materiais etc. Poderia ser que “uma pessoa, um simples fato, um acontecimento encarnam em si mesmos um período” (p. 113). Por outro lado, essas chamadas “tendências dominantes” carregam os seus opostos, convivendo em permanente tensão; preparam o futuro, quando então se impõem definitivamente. Percebe-se que “periodizar é interpretar”; é uma ação intelectual circunscrita num tempo e espaço definidos, ou seja, socialmente

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marcados. O historiador, condicionado pelas conjunturas do seu tempo, procede a uma “leitura” das fontes disponíveis de uma determinada época, estabelecendo um recorte para a análise. No entanto, em razão dos avanços técnico-científicos, novas “interpretações” podem aflorar e, portanto, outros recortes sobre antigas fontes podem se estabelecer. Esse processo revela a relativa dependência da periodização às “especificidades” da conjuntura em que se realiza: Não é possível uma periodização estritamente “científica” da matéria histórica: os períodos adotados nunca são unidades naturais no sentido de se apresentarem espontâneamente ao historiador como unidades unívocas (BESSELAAR, 1970, p. 93).

Segundo Besselaar (1970), o primeiro grande corte realizado pelos histortiadores instituiu dois períodos: Pré-História e História. O primeiro foi dividido em Idade da pedra e Idade dos metais, em que aquela se subdivide em duas fases: Paleolítico e o Neolítico; e esta, em duas: a do Bronze e a do Ferro. O domínio do fogo, as técnicas agrícolas e a fundição de metais são os marcos de periodização na Pré-História. É possível observar, então, que o “período” é um marco de tempo relativamente longo, que abrange características bem gerais e que comporta a possibilidade de ainda ser subdividido em fases ou eras. Dessa forma parece estabelecido que um período impulsiona outro, tem uma existência e validade temporal finita, limitada e superada sempre por novas transformações técnicas, culturais e sociais que, por sua vez, demarcarão novas “quadras históricas”. Rodrigues (1969), ao traçar um panorama da “história da periodização”, observa que o recurso de subdividir a história da humanidade em eras temporais não teve suas origens nas ciências históricas. Foi o Cristianismo, ainda no tempos romanos, que fez a transposição dessa prática da astrologia para a História. Para isso, utilizou o livro de Daniel (VII, 14, 23), dividindo a Humanidade em quatro grandes impérios: Assírio, Persa, Macedônio e Romano. Esse esquema, denominado “quatro impérios universais” que se sucedem, perdurou até o século XVI.

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Nos Tempos Modernos, inicia-se a fase de reformulação desse modelo: Jean Bodin é o seu iniciador, mas os humanistas é que farão a crítica do método. Resgatando o legado greco-romano, concebem a noção do Medievo – caracterizado como um período entre duas eras de “luzes” – tempo obscuro e “desprezível” em que “a humanidade não tomou banho” e que sucumbiu ante a Renascença. Assim é estabelecida a divisão tripartite da História: Antigüidade Clássica, Idade Média, Tempos Modernos, que, embora se pretenda universal, diz respeito à civilização ocidental. Ainda segundo o autor, esse padrão perdurou por longo tempo, pois continha o principal elemento crítico da Modernidade “que caracterizava os séculos de domínio absoluto da Igreja Romana como uma época de superstições obscuras e sombrias” (RODRIGUES, 1969, p. 116). Esta divisão apresenta questionamentos quanto à limitação, por se referir basicamente à Europa Ocidental, e quanto à duração de cada período: a chamada Antigüidade Clássica abrange três ou quatro milênios; a Idade Média, quase mil anos; enquanto os Tempos Modernos compreendem apenas quatro ou cinco séculos. A esta tripartição, foi acrescentado um quarto período, o “Contemporâneo”, com início em 1789 e que se estende aos dias atuais. Uma possível e prematura conclusão que se pode deduzir do exposto acima é a “obrigatoriedade” da periodização como requisito necessário ao historiador para responder às perguntas que lhes são feitas. Os critérios para periodizar Periodizar é segmentar a rica experiência humana no tempo, tendo como finalidade última identificar a lógica interna ou o sentido de coerência presente em determinada época histórica, ou seja, reordenar o encadeamento temporal, oferecendo organicidade ao fluir cronológico. Parece ser quase impossível o trabalho do historiador sem a periodização: La necesidad que nos impulsa a la periodificación no es outra que la de iluminar la oscura trama de los fenómenos históricos, de compendiar y ordenar la madeja de las relaciones históricas.

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La periodificación nace de la necessidad de destacar, en su especialidad, el sucesivo encadenamiento causal particular; nace del conocimiento más profundizado de las relaciones del devenir histórico (BAUER, 1957, p. 154-155).

Quanto aos critérios de periodização, Rodrigues (1969) apresenta alguns exemplos das ciências sociais: as periodizações “ideológicas” de Vico, Comte e Marx, que “interessam-se pela significação geral da história para a concepção do mundo”, em que fases se sucedem num movimento qualitativo à frente; as “sociológicoinstitucionais”, em que “se destaca o pensamento naturalista que condiciona esses esquemas”, postula um ideal evolutivo, “um período mais elevado” a ser atingido “para que o fim último da história universal seja alcançado”, esquemas dos quais participam as periodizações de Spengler, Toynbee, Werner Sombart e Max Weber; e as periodizações baseadas na “teoria dos ciclos históricos ou repetição cíclica” e na “teoria das gerações”, ambas com raízes no pensamento biológico, não utilizadas atualmente. Reafirmando a gama de possibilidades para a periodização, Besseelaar (1970) apresenta como critério os “meios de subsistência” que o homem empregou para sobreviver. Assim, a história da humanidade se dividiria em: a) fase nomática que abrange o período paleolítico (60.000 – 6.000 a.C.): o homem é caçador, pescador, colecionador etc. [...], sem praticar a agricultura ou o pastoreio; b) fase agrária e pastoril, que se iniciou (em algumas regiões) no período neolítico (6.000 a.C.): o homem passa a viver da agricultura e do pastoreio; formação de Estados; aglomeração em cidades, etc. c) fase industrial e técnica, que teve seu início (pelo menos, em alguns países) por volta de 1800 d.C. e, hoje, começa a abranger o mundo inteiro (BESSELAAR, 1970, p. 94).

Dujovne (1959), citando Van Der Pot – historiador holandês1 –, apresenta os critérios deste autor que acredita que a periodização revela 1 Johan Hendrik Jacob Van Der Pot. De periodisering der geschiedenis: een overzicht der theoriëen. La Haya, 1951.

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a “síntesis más general de nuestro conocimiento histórico” (p. 272) e, em seguida, expõe as teses de seu “método” de periodização: 1ª), que la división no debe basarse em una ley histórica; 2ª), que “es deseable determinar el carácter de los períodos antes de fijar sus limites”; 3ª), que “es imposible determinar a priori directivas para medir la proporción correcta de la duración de los períodos o para establecer el número de ellos”; 4ª), que “em vez de fijar el comienzo de un período em el momento que se inicia el fenómeno nuevo que caracteriza tal período, es preferible fijarlo en el momento en que ese fenómeno nuevo adquiere primacías”; 5ª), que “no hay que determinar límites demasiado precisos para los períodos”; 6ª), que “es deseable que el valor tipológico de las denominaciones de los períodos no abarque más de un sólo aspecto de la civilización”; 7ª), que “es deseable que estas denominaciones se refieran todas al mismo aspecto de la civilización”; 8ª), que “es deseable que la historia sea dividida considerando el aspecto de la civilización tenido por más impórtante a la luz de la concepción que nos hayamos formados del mundo”; 9ª), que “la influencia de ésta sobre la división de la historia en períodos debe limitarse al criterio de división y no debe llevar a construcciones apriorísticas de la historia misma” (VAN DER POT apud DUJOVNE, 1959, p. 272).

Ainda quanto aos parâmetros para um periodização relativamente rigorosa, encontramos a proposta metodológica de Bauer (1957): 1 – Cada período debe ser deducido de su objeto, esto es, de los hechos históricos mismos o de las concepciones de la época que abarca. Com otras palabras, no debemos llevar nuestro propio concepto a la caracterización de un período histórico. Los contemporáneos deben, al menos, haber sentido la sospecha de hallarse situados, en ciertos aspectos, em una época de transición de las condiciones de vida en que hasta entonces vivieron y de que esas condiciones van a orientarse, desde ese momento, em uma nueva dirección. 2 – Todo período debe constituir un conjunto naturalmente bien delimitado y confiurado en si mismo, que se distinga claramente del que lê precede y del que le sucede. K. J. Newmann caracteriza esto acertadamente cuando compara la separación de los períodos en el tiempo con la distinción de los países en el espacio, y designa éstos como “partes de la Tierra bien individualizadas”.

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3 – Los puntos de vista para la distinción de los períodos deben ser de naturaleza uniforme. No debe fundamentarse la división de un período em los hechos jurídicos-políticos y la de outro en los câmbios histórico-culturales o econômicos; el undamento para la distinción debe ser el mismo para ambos períodos. (BAUER, 1957, p. 156-157).

Para além dos possíveis critérios para um bom periodizar, é preciso estar atento a alguns problemas freqüentes na temática da periodização. Almeida (1988, p. 118-119) pontua alguns deles: o primeiro se refere à chamada “falsa periodização”, que é a divisão em “períodos rígidos, procustianos, de cem ou dez anos exatos cada um”; um outro é a utilização de “um esquema temporal válido e funcional para o problema “X”, aplicando-o sem alteração ao problema “Y”; também pode ocorrer confusão entre “efemérides com fatos históricos”, ou, ainda, um quarto erro, que é o de se “atribuir excessiva importância a um fato e/ou data, estendendo indevidamente sua influência a um longo período”. Considerações Finais Na crítica que empreendemos, adotamos a orientação de deixar “falar” os autores, selecionando aspectos fundamentais de suas respectivas obras com intuito de explicitar suas concepções sobre o tema da periodização bem como seus recursos metodológicos quanto o seu uso. Depois desse exame, parece bem nítida a pluralidade em relação ao tema, bem como a qualquer padrão de como proceder quanto ao ato de periodizar. Confirmamos assim que o problema da periodização não é uma temática geradora de consenso como técnica ou recurso metodológico no interior da historiografia, que parece conviver com posições antagônicas sobre a questão que tomamos para estudo. Observamos que há historiadores que defendem o estabelecimento de regras mínimas para a periodização, enquanto alguns profissionais admitem que devam prevalecer apenas as motivações pessoais balizando as opções quanto à seleção dos marcos temporais.

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Entendemos esse posicionamento como resultado da renovação metodológica por que passa o campo historiográfico hoje, que separa as concepções que se preocupam com a totalidade dos fenômenos sociais, como é o caso do materialismo histórico, de um lado, e a Nouvelle Histoire, que descarta a possibilidade de apreensão do todo social sendo, portanto, a periodização, um recurso discutível e até mesmo dispensável. NOTES ON THE TECHNIQUE OF PERIODIZING Abstract: The article presents a discussion on the problem of the periodization in History. Initially it are brought up some considerations about a panorama of the question that involves division the lived time, after that is detached the some questions that involves the technique of periodization in the History and finally it presents the criterias for the use of the periodization from some selected authors. Key words: Theory of History. History. Periodization.

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A COMPAIXÃO NA HISTÓRIA: ATRIBUTO ANTROPOLÓGICO E OCULTAMENTO Ileuza Costa Cardoso * Marta Maria Amorim Silva ** Resumo: A compaixão como determinante de fatos históricos. O artigo procura mostrar que não somente a disputa pelo poder, geradora dos fatos mais cruéis e beligerantes da história da humanidade, caracteriza a trajetória humana, mas também fatores subjetivos positivos, tais como a compaixão, interferiram, influenciaram e mesmo definiram e ainda definem a atuação do homem na Terra. O artigo mostra que reduzir o homem a sua dimensão hibris é negar a complexidade inerente à espécie. Palavras-chave: História. Compaixão. Crueldade.

Introdução Cinderela, Branca de Neve e os Sete Anões, Édipo. O que há de comum nessas três histórias? Não apenas o fato de serem ficção. O elemento que as une é que o desfecho das três histórias é * Licenciada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Pós-graduada em Interdisciplinaridade na Educação Básica e Magistério Superior pela Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter). E-mail: [email protected]. ** Licenciada em Pedagogia pela Uesb, pós-graduada em História Social do Trabalho pela Uesb e pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter). E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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fundamentalmente determinado pela compaixão. É a compaixão da Fada Madrinha que faz com que o Príncipe se case por amor com Cinderela garantindo um período de paz e harmonia no Reino. É a compaixão do caçador que desobedece à ordem da Madrasta e poupa a vida de Branca de Neve, alterando os planos maquiavélicos daquela que pretendia ser a Rainha de todo ao Reino. É também a compaixão do pastor que salva a vida de Édipo, que mais tarde matará o seu pai, o Rei de Tebas. Nas histórias infantis e nos mitos – recursos simbólicos de projeção psicológica –, a compaixão tem o “poder” de mudar o desfecho, de alterar a configuração da história. Se levarmos em conta que [...] esses arquétipos (os mitos) ancestrais, por mais metafóricos que sejam, nunca perdem sua conexão com certo conteúdo histórico-social [e que] tais realidades lançam sua raízes nas experiências ancestrais, comunitárias e sócio-políticas da humanidade (BOFF, 1999, p. 71-72)

talvez possamos conceber que a compaixão esteve e está determinando muitos dos eventos históricos da humanidade. Ocultamento da compaixão nos currículos Na literatura histórica, é possível observar o quanto é escasso e impreciso falar de grupos ou indivíduos que testemunharam a compaixão tanto nos grandes fatos históricos quanto em sua vida cotidiana. É como se a contradição humana inexistisse, e apenas a demência do homem explicasse todos os eventos registrados ou não ao longo da história da humanidade. Os pesquisadores das ciências humanas (historiadores, antropólogos, sociólogos, etnólogos) dedicaram-se quase exclusivamente à investigação e análise dos fatos, enfatizando a crueldade, a perversidade, as atrocidades que um ser humano pode cometer em nome da ganância, do orgulho, da vaidade, da luta pelo poder. Apesar de serem das ciências humanas, eles abdicaram de humanizar-se ou de humanizar suas teorias. Dessa forma, a compaixão, uma grande virtude humana, foi marginalizada, banida da história e apropriada pelas expressões religiosas e filosóficas.

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A moderna sociedade secular nos obriga a ver a bondade, a beleza e a verdade como domínios separados: moralidade, arte e ciência não se relacionam, quando não são tidas como opositoras: O pensamento iluminista e pós-iluminista distinguiu um domínio separado da razão/ciência/conhecimento e verdade, o qual se sustenta a si mesmo; a estética e a moralidade ou são minimizadas ou separadas como emocionais, subjetivas, ou particularistas; e as relações entre “bondade” e “beleza” são vistas, na melhor das hipóteses, como discutíveis. Muitos (incluindo os de convicções políticas contrastantes) vêem a moralidade como um assunto de interesse do lar e/ou da igreja, e procuram dissociá-la inteiramente da escola. A religião, outrora vista como o árbitro final da verdade, cede agora a tarefa de apurar a verdade às ciências e adota a esfera moral como sua preocupação central. E, é claro, alguns pensadores pósmodernos contestam inteiramente a utilidade de termos historicamente tão contaminados como verdadeiro, belo ou bom (GARDNER, 1999, p. 34).

Entretanto, nem sempre foi assim. Para os gregos antigos, uma pessoa que tivesse alcançado o seu pleno desenvolvimento era o indivíduo virtuoso, que cultivou conhecimentos, que era fisicamente forte e que evidenciava um apurado senso de beleza em questões de corpo e de espírito. Também na perspectiva confuciana, o cavalheiro ideal era o que possuía virtudes nobres e habilidades. Para garantir a sua formação plena, os indivíduos eram submetidos a exemplos de pessoas que encarnavam as características pretendidas (intelectuais, físicas, éticas e estéticas) ao mesmo tempo em que rechaçavam os exemplos opostos. “Os antigos não viam o indivíduo como uma coleção de virtudes, possivelmente conjugadas ou não. Adotaram, de preferência, uma visão decididamente holística da pessoa” (GARDNER, 1999, p. 36). Com o passar do tempo, as esferas se separaram. O saber, fragmentado, destituiu o homem, se não na essência pelo menos ideologicamente, de sua natureza complexa. Os saberes bifurcaram-se, e hoje o que se vê é, no máximo, uma justaposição de conhecimentos à guisa de complementaridade, de interdisciplinaridade. Verdade, beleza e bondade estão, dessa forma, dissociadas no pensamento moderno e

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contemporâneo. Não obstante, não é possível negar os domínios da beleza, da verdade ou da bondade. Associados ou fragmentados, sempre foram de interesse da humanidade, como se pode verificar nos mitos da pré-história, nos comportamentos de luto ritual dos neandertalenses ou nos primeiros artefatos do Homo sapiens. É ponto pacífico que a história não é neutra, ou melhor, que o discurso histórico é profundamente ideológico. Nesse sentido, é que podemos considerar que a história contada com base nos fatos beligerantes ou nas disputas do poder, contada segundo a instância econômica ou o viés materialista, contada segundo a visão da luta de classes forjou ou, pelo menos, potencializou “a selvageria” humana. Daí porque é possível perguntar: como teria sido a história ou as histórias se as pesquisas tivessem levado em conta as contradições humanas? Em outras palavras: como seria a história não somente pelas lentes de Menés (3100 a.C.), Hammurabi (c. 1800 a.C.), Júlio César (100-44 a.C.), Calígula (12-41 d.C.), Nero (37-68 d.C.), Átila (406-443), os primeiros papas, Czar Guilherme II (c.1027-1087), Gêngis Khan (1162-1227), Bernardo Guy (1261-1331), Torquemada (1420-1498), Henrique VIII (1491-1547), Calvino (1509-1564), Marquês de Sade (1740-1814), Napoleão Bonaparte (1769-1821), Otto Von Bismarck (1815-1898), Stalin (1879-1953), Benito Mussolini (1883-1945), Adolf Hitler (1889-1945), Idi Amim Dada (1923), mas também pelas lentes de Lao-tsé (c.600 a.C.), Confúcio (c.537-c.479 a.C.), Asoka (272-232 a.C.), Wen (179-157 a.C.), Marco Antônio (121-180), os imperadores indianos da dinastia Gupta (320-550), os imperadores maias do século I ao V, Luís (814-840), a rainha escocesa Margarete (1045-1093), Mohandas Gandhi (1865-1948), Hélder Câmara (1909-1999), Tereza de Calcutá (1910-1997), Nelson Mandela (1918), Martin Luther King (1929-1968), Herbert de Souza (1935-1997), entre tantos outros exemplos brilhantes ou repletos de compaixão? Apesar de toda renovação e de toda crítica ao fazer historiográfico, a concepção histórica não extrapola a visão da crueldade humana como motor subjetivo dos fatos históricos. O fazer histórico,

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como tem sido realizado até hoje, não permitiu a perspectiva da compaixão ou de quaisquer outros motores subjetivos menos cruéis. Assim, a hibris assume um caráter estóico, determinista e determinante da história humana. As atrocidades, as guerras, as dores, as castas, o Holocausto, a exploração de classes, as revoluções, os exércitos formados para conquistar territórios, as traições, as emboscadas, o fanatismo, os fundamentalismos, a disputa pelo poder em suas várias manifestações, o conflito de raças, classes, interesses econômicos, os genocídios, infanticídios, estupros em massa, repatriação forçada, torturas foram enfatizados ou são fulcrais na explicação dos eventos na literatura histórica. O máximo que o discurso histórico se permite é uma apologia à construção de uma sociedade “mais justa e igualitária”, à nobreza das lutas de classes e das resistências, à realização de objetivos éticos pela força. No entanto, mesmo essas lutas e resistências, mesmo a construção dessa sociedade justa e igualitária são permeadas pela hibris, sem falar que, na verdade, os grupos representativos das classes exploradas ou dominadas, muitas vezes, não os representam de fato, apenas de direito. Não há ênfase nas ações pacifistas de resistências seja de indivíduos seja de grupos. Muitas vezes, a dor e o medo diante da situação de exploração são confundidos com alienação. Na história, não há espaço para “sentimentalismos”. O discurso histórico tem sido guiado, em sua maioria, pela linearidade, pelo utilitário, pelo funcional, pelo compartimentado, pela manipulação maniqueísta dos fatos. O maniqueísmo permeia o fazer histórico: de um lado os senhores de escravos e de feudos, os latifundiários, os déspotas, os absolutistas, os conservadores, os militares, os tiranos, os fundamentalistas, a Igreja Católica, os girondinos, os burgueses, os capitalistas, os capitães de indústrias, o Primeiro Mundo, a globalização, os manipuladores, os exploradores, os inquisidores, a classe dominante – legítimos representantes do mal. O mal absoluto. A personificação simbólica da crueldade humana. Do outro lado, os escravos, os camponeses, os proletários, os operários, os analfabetos,

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os índios, os negros, as mulheres, as crianças, os pobres, os rebeldes, os bárbaros, os protestantes, os jacobinos, os bolcheviques, os comunistas, os socialistas, o Terceiro Mundo – vítimas, heróis nobres, mártires – representações simbólicas das conseqüências da maldade humana. O bem absoluto. Na arena da história, a eterna luta entre o bem e o mal. A psicologia cognitiva diz que as idéias transmitidas na formação de um indivíduo o impressionam e perduram em sua mentalidade, a despeito de qualquer formação acadêmica: Lamentavelmente, porém, algumas idéias que se desenvolvem no começo da infância estão muito menos fundamentadas. As crianças acreditam, por exemplo, que os indivíduos que se parecem com elas são bons, ao passo que os que lhes parecem diferentes são maus. Acreditam que algo que se movimenta está vivo, enquanto que o que está imóvel está morto. Acreditam que os objetos são impelidos por invisíveis forças mágicas. E assim por diante. Boa parte da literatura e do teatro, em seus primórdios, “joga” com essas crenças de um modo que cativa os jovens, mesmo quando diverte os mais velhos nos bastidores. Além disso, essas primeiras representações – idéias falsas como lhes chamam as pessoas do ramo – não desaparecem simplesmente com a idade. Pelo contrário, elas provam ser desconcertantemente robustas. Mesmo os estudantes que freqüentaram a escola formal continuam a nutrir uma variedade de idéias falsas – sobre tópicos que vão desde a evolução à ópera e ao Holocausto [...]. Até os melhores estudantes, nas melhores escolas, continuam freqüentemente a dar guarida a idéias falsas, a concepções errôneas; a durabilidade da “mente não-instruída” tem sido documentada de forma excelente por engenhosos pesquisadores cognitivos (GARDNER, 1999, p. 85).

Daí por que se torna importante uma educação que favoreça a formação de mentalidades mais acuradas. Nesse contexto, os historiadores desempenham importante papel, visto que podem contribuir para que as fontes de moralidade possam ser mais bem compreendidas: [...] qualquer relato histórico deve ser construído e aqueles que realizam a construção ajudam a definir a nós mesmos, aos nossos aliados, aos nossos inimigos e às nossas opções (inclusive

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as nossas escolhas morais) [...]. A iniciativa de investigar e escrever história elucida questões sobre verdade e bondade [...]. Julgar as ações dos nazistas na Segunda Guerra Mundial (ou as ações dos homens em qualquer outro evento histórico) não é um ato histórico – é um ato de avaliação moral (GARDNER, 1999, p. 181-182).

Se a história se nega a admitir/assumir as subjetividades, o mesmo não acontece com outras ciências que resgatam a centralidade do sentimento, a importância da ternura, do cuidado, da compaixão, desde a biologia genética à física quântica (BOFF, 1999, p. 100). Por mais que o discurso histórico tenha pretendido reduzir o ser humano a sua dimensão hibris e tivesse, em certa medida, nos convencido dela, a história não contada revela a encantadora capacidade humana da compaixão. Assim, não pretendemos negar a hibris humana. Todavia, é preciso compreender que há razões para que ela se manifeste e que o discurso histórico, na maioria das vezes, forja essas razões: [...] a compaixão pode ser embotada por um sentimento de inferioridade. Se as pessoas sentem que foram prejudicadas ou estão ameaçadas, a fonte da boa vontade seca. Quando exposta a mitos de atrocidades, histórias de sabotagem e usura, medo da guerra ou da fome, a compaixão é corroída e a violência subjacente pode facilmente ser introduzida (THOMSON, 2002, p. 563).

O discurso histórico serve perfeitamente a esse interesse quando dissemina a idéia de “mocinho e bandido”, de herói e vilão, sugerindo que, somente pela força, pela violência, pela guerra, pelas rebeliões, pelas revoluções insufladas por “nobres ideais”, pode-se fazer ou modificar os rumos da história. Ao negar a moralidade como convenção historicamente definida, o discurso histórico naturaliza o maniqueísmo das ações humanas, sem considerar a complexidade dos fatores que motivam os fatos. Na história da moralidade, podemos encontrar contraposições à perspectiva da inerente maldade humana.

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A compaixão como condição antropológica “A boa vontade é uma potencialidade antropológica que muitos fracassos, decepções, resignações, hábitos podem inibir” (MORIN, 2002, p. 122). Isso significa que somos antropologicamente capazes de confiar, de esperar pelo melhor, somos potencialmente capazes de fazer o melhor. No entanto, o discurso histórico viaja na contramão dessa possibilidade, funcionando como a Caixa de Pandora, que espalha desgraças na trajetória da humanidade e trancafia a esperança. A perspectiva moriniana é de uma história antropológica, multidimensional: “a história dos historiadores, do acontecimento, econômico-social, etnográfica e às vezes polidimensional, deve também tornar-se antropológica”. Tal fazer historiográfico “deveria considerar as guerras, os massacres, a escravidão, o assassinato, a tortura, os fanatismos, e também a fé, seus impulsos sublimes, a filosofia, como atualizações de virtualidades antropológicas” (MORIN, 2002, p. 17). Nesse mesmo sentido, Gardner (1999, p. 82) prossegue: [...] assim como as capacidades lingüísticas (e numéricas e espaciais) evoluíram a fim de permitir a adaptação ótima ao meio ambiente, outras capacidades humanas podem igualmente ter propriedades universais, e estas são também a conseqüência adaptativa de milênios de evolução. Especificamente, pode haver universais no domínio da moral [...] e no domínio estético.

Assim como Morin (2002, p. 85) sugere uma dimensão civilizacional coletiva na compreensão dos fenômenos oriundos do malestar da civilização, supostamente individuais, podemos supor, igualmente, uma dimensão civilizacional – porque antropológica – das expressões subjetivas mais nobres e éticas, entre elas a compaixão. Tal dimensão estaria embotada, talvez porque, como insinua Gardner (1999, p. 79): “uma revolução em ciência social não exerce necessariamente efeitos imediatos ou nítidos no mundo da prática”. O caráter antropológico da compaixão permeia também o conceito da sociabilidade humana. É forçoso reconhecer que, embora

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os compêndios científicos postulem que o homem seja social por natureza, em suas proposições a assertiva é que o amor entre os humanos existe porque existe a sociedade. Para Boff e Maturana (BOFF, 1999, p.110-111), ocorre exatamente o inverso: a sociedade existe porque existe amor entre os homens. A competição é anti-social, destrutiva, excludente, inumana. “O amor é um fenômeno cósmico e biológico”, assevera Boff, e antropológico. As pessoas se unem em sociedade não para competir, se matarem e se destruírem, mas porque precisam umas das outras, precisam do “sentimento de pertença a um mesmo destino e a uma mesma caminhada histórica”. Foram cooperação, a coexistência, a compaixão que garantiram a persistência da vida e dos indivíduos até os dias atuais. Os valores humanos da sensibilidade, do cuidado, da convivialidade sempre impuseram limites à voracidade do poder-dominação (BOFF, 1999, p. 124). Se examinarmos a história, propõe Dalai Lama (2000, p. 218), percebemos que o amor da humanidade pela paz, pela justiça e pela liberdade sempre triunfa sobre a crueldade e sobre a opressão. Se fôssemos movidos tão-somente pela hibris, provavelmente já não existiríamos mais como espécie. Nesse sentido, também o historiador inglês Oliver Thomson (2002, p. 34) assevera que A compaixão pode não ser universal: seu nível em diferentes seres humanos depende muito da educação, tratamento, maturidade emocional, mas sem dúvida existe em quantidade suficiente na maioria das sociedades, particularmente entre mulheres, para formar a espinha dorsal do desenvolvimento moral. Em alguns períodos talvez esteja enfraquecida ou sufocada por sofrimentos, desgraças ou obsessões divergentes. A vida dos mercadores de escravos do século XVII, por exemplo, mostra como homens normais podiam rapidamente acostumar-se a infligir um tratamento aterrador aos escravos, os monges da Inquisição espanhola, os guardas dos campos de concentração nazistas eram facilmente treinados por seus líderes para serem obedientes instrumentos de sadismo em massa. A compaixão pode desaparecer durante metade de uma geração, mas geralmente parece voltar para restaurar a estabilidade de sociedades desequilibradas.

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Os diversos códigos morais constatados nas diferentes épocas e regiões são expressões “de como o grupo dominante de uma sociedade quer que a maioria se comporte, para sua própria conveniência”. Os códigos morais são, portanto, instrumentos de controle psicológico de grupo que “proporcionam uma estrutura bem mais ampla de manipulação do que a corporificada apenas no código legal” de uma sociedade (THOMSON, 2002, p. 32-33). Ainda assim, a história da moralidade vem acrescida pela elaboração de leis incorporadas nos códigos que violentam a subjetividade de um ser humano. O ser social/ objetivo/compartimentado “mata” nele e no outro o ser moral/ subjetivo/complexo. A compaixão, no entanto, não é uma conduta artificial que possa ser ensinada ou transferida por meio de atitudes opressoras. O que possibilita o controle em massa é confundido muitas vezes com uma natural/antropológica tendência humana para a brutalidade/ crueldade. No entanto, há uma explicação psicológica desse controle: uma das matérias-primas que facultam o desenvolvimento dos códigos morais é a preferência por fáceis decisões já que decisões subjetivas provocam medo e insegurança e, além disso, a forma como esse controle é exercido não deixa margem para dúvidas. Assim, as sociedades são fortemente submetidas a propagandas e treinamento moral intensivos, numa espécie de “lavagem cerebral” (THOMSON, 2002, p. 34-37; 80-81). Seja qual for o grupo dominante, o etos será sempre resultante de uma manipulação ou formação de mentalidades: “o caráter do homem é construído para ele e não por ele”, assevera Owen, apud Thomson (2002, p. 106), portanto os padrões morais coletivos constituem uma expressão da persuasão em massa. A imitação de heróis é a mais antiga e a mais eficaz das técnicas para o treinamento moral da coletividade até hoje. Assim, cada sociedade produz seu lote de heróis – reais ou fictícios – “que se tornam foco de uma mimese comportamental”. Para cada ensinamento pretendido, um modelo heróico é construído, de forma que Aníbal; Alexandre, o Grande; Carlos Magno; Rei Artur; Cristo; Buda; Maomé; a Virgem Maria; São Francisco; Florence Nightingale; George Washington; Lênin;

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Mao; Stakhanov; Andrew Carnegie; Tom Cornwall; Lucrécia de Tarquínio são alguns desses heróis-modelos. Outra técnica de treinamento é o uso de material legendário, parábolas e mitos. Para Campbell, apud Thomson (2002, p. 111), “a função social da mitologia é estabelecer sistemas de sentimentos, modelos comportamentais para todas as ocasiões”. Dessa forma, atitudes morais desumanas e cruéis são racionalizadas como tradições. A eficácia da transmissão da mensagem é garantida por diversos meios de propaganda, inclusive pelas artes. A pintura, a escultura, a arquitetura, os símbolos, a literatura, a música, o teatro, o cinema, o rádio e a televisão disseminam e incutem o etos dominante (THOMSON, 2002, p. 110-111). Na trajetória da humanidade, é fácil constatar que os maiores crimes da história foram cometidos pelo poder oficial, por grupos dirigentes ou indivíduos convictos de sua própria integridade (THOMSON, 2002, p. 556-574). A manifestação da hediondez humana pode levar a crer que há uma espécie de sadomasoquismo inerente à espécie, racionalizado sob a forma de sacrifício aos deuses, de chacina de exércitos e civilizações derrotadas, de perseguições às minorias, de exploração por escravidão, servidão e exploração industrial, de tiranias megalíticas. No entanto, não é possível atribuir tais atrocidades a uma única pessoa ou grupo. Nos episódios grotescos de crueldade histórica, os executores eram pessoas comuns – carrascos, capangas, torturadores, queimadores de bruxas, traficantes de escravos, assistentes de câmaras de gás – pessoas que voltavam para casa e tratavam com carinho os filhos e os animais e que tinham a certeza do dever cumprido, demonstrando que o ser humano é facilmente conduzido, persuadido, induzido a aceitar, sem questionar, o inaceitável. A autoflagelação e os homens-bombas são prova disso. Apesar da evidência dos comportamentos extremos, pode-se afirmar que o cuidado pela vida e pelo bem-estar caracteriza o bom comportamento humano, constituindo, essa fonte de bondade, num “instinto natural de compaixão” (THOMSON, 2002, p. 559-560).

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A compaixão humana suplanta substancialmente qualquer comportamento semelhante no animal, assim como a sua contraparte extrapola os limites plausíveis, demonstrando uma ferocidade de fazer inveja ao mais feroz dos animais. Exemplos de crueldade em massa sugerem a liderança obsessiva de pequenos grupos ou de indivíduos que, por algum tempo, manipularam seus povos para que ignorassem os sentimentos normais de compaixão, enquanto muitos dos nãoeventos da história estão relacionados a sociedades com lideranças discretas e ideologias não fanáticas que, assim, não ganharam nem a glória nem a notoriedade para se projetarem na história, tais como os hotentotes, o povo de Madagascar, os ilhéus de Tonga, os groenlandeses, os dyaks, os iroqueses norte-americanos. Tais exemplos sugerem que o comportamento natural do homem tende a ser compassivo e que a atitude sádica é uma atitude mental artificialmente criada por líderes ou pressões externas em que a compaixão foi embotada pelo senso competitivo patologicamente obsessivo ou pela superstição e preconceito e, ainda, pela superexposição à crueldade. O convívio constante com a crueldade torna-a não vista, acomoda-se psiquicamente, naturaliza-se na mentalidade (THOMSON, 2002, p. 561-563). Na história da humanidade a profusão de exemplos de compaixão

Boff (1999, p. 126-127) explica que a filologia latina da palavra compaixão sugere a capacidade de partilhar com o outro sua paixão, seus sofrimentos, suas alegrias, isto é, caminhar sinergicamente com o outro. Tal atitude pressupõe a renúncia de dominar, de matar qualquer ser vivo. No hinduísmo, o correspondente de compaixão é ahimsa, que significa não-violência, evitar qualquer sofrimento ou constrangimento a outros seres. No taoísmo, o equivalente à compaixão é wu wei, que quer dizer entrar em comunhão e lutar contra o desejo de possuir. No judeu-cristianismo, o termo rahamimi, a misericórdia, equivale a compaixão e significa sentir a realidade do outro, especialmente de quem sofre. Dalai Lama (2000, p. 138-139) distingue dois tipos de compaixão. A compaixão-empatia, nying je, que se refere à capacidade inata de

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partilhar do sofrimento alheio, e a grande compaixão, nying je chenmo, que corresponde a um plano mais elevado de compaixão quando a dedicação ajuda não apenas a superar o sofrimento alheio, mas também as causas do sofrimento. Dalai Lama fala ainda sobre a lógica da compaixão segundo a qual a compaixão é potencialmente estável, segura, inata, contínua, estimulável, inesgotável, ampliável. Apesar dos líderes obsessivos, das hecatombes sociais, das tiranias, das escravidões, das ditaduras que embotam a compaixão, esta jamais deixa de existir como condição antropológica. Basta lembrar que os humanos neandertalenses eram solidários e esforçavam-se em ajudar os deficientes; que as primeiras armas produzidas pelos humanos, o arco e a flecha, no início da Idade da Pedra, tinham a finalidade de caçar animais, e não de matar ou combater outro humano; que algumas tribos atuais, como os pudans de Bornéu, os esquimós do Ártico e os djahai da Austrália nunca fizeram uma guerra – “façanha notável em milhares de anos, e sem paralelo em muitas das mais avançadas sociedades”. Há ainda exemplos de diversas tribos primitivas que nunca tiveram escravidão, prostituição, poligamia, canibalismo, infanticídio, sacrifícios humanos ou quaisquer outros hábitos cruéis e hediondos (THOMSON, 2002, p. 137-138). Em pleno século XX, a Costa Rica é exemplo de país que foi desmilitarizado desde 1949 em favor da paz, além da zona desmilitarizada na Antártida (DALAI LAMA, 2000, p. 227-231). O Holocausto (1914-1945), o sistemático genocídio dos judeus e de alguns outros grupos pelos nazistas e fascistas, durante a Segunda Guerra Mundial, para alguns pesquisadores, é o maior exemplo de atrocidade; uma “crônica de perversidade humana sem precedentes”, porque, apesar de ser comum o morticínio organizado na história humana, o Holocausto destaca-se pela clareza de seus objetivos e pela meticulosidade de sua execução. Os nazistas pretendiam exterminar um povo inteiro, inclusive mulheres e crianças, e quase o conseguiram. Pretendiam o genocídio não porque o povo judeu representasse uma ameaça militar, mas porque ameaçava a pureza da “raça” ariana, numa

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evidente demonstração de ignorância das leis da genética, segundo as quais os seres humanos pertencem todos à mesma espécie. Do ponto de vista ético, esse é o episódio da história que mais suscita questionamentos (GARDNER, 1999, p. 16; 169). É no Holocausto, maior emblema da maldade humana, que falam com maior eloqüência os episódios de bondade, heroísmo e compaixão, embora “o entendimento de impressionantes exemplos de verdade, beleza e bondade é suficientemente significativo para os seres humanos para que possa ser justificado por si mesmo”, conforme assevera Gardner (1999, p. 17), “na ausência de tal entendimento, os indivíduos não podem participar de forma plena no mundo em que vivem – em que nós vivemos”. Daí porque é preciso o esforço para atingir tal compreensão. O Holocausto, portanto, documenta não somente os terríveis potenciais dos seres humanos, mas também nos oferece exemplos inspiradores de coragem e compaixão, pois envolve os mais extremos sentimentos humanos: ódio, crueldade, perversidade e o uso do poder de forma criminosa, ao lado da coragem, da decência, do heroísmo, da sublimidade do amor. O Holocausto suscita questões de bondade e maldade humanas, em suas mais puras formas: [...] se uma pessoa chegar a entender o Holocausto, terá adquirido uma melhor noção da natureza e dimensões da maldade humana; suas fontes, sua extensão, e as medidas que poderiam ser iniciadas para combater esses potenciais humanos, nos outros e em nós próprios. E, dentro desse quadro sombrio, terá que vislumbrar raios de esperança nas condutas exemplares de certos soldados, civis e líderes políticos e religiosos. Em última análise, as respostas da sociedade a questões sobre verdade, beleza e bondade são importantes, mas nossas respostas pessoais são ainda mais importantes (GARDNER, 1999, p. 252).

Os exemplos de amor, bondade e compaixão estão invariavelmente ligados a pessoas, anônimas ou não, que arriscaram suas vidas para salvar vidas de quem nem mesmo, muitas vezes, conheciam. Olenka e Tânia são emblemas dessa compaixão. No livro

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A Marcha, escrito por Michael Stivelman, sobrevivente do Holocausto, Olenka e Tânia acolhem, cuidam, dividem alimentos e protegem Stivelman e sua mãe judia, moribunda, arriscando suas vidas por pessoas que não conheciam (BOFF, 1999, p. 179). Há muitos outros exemplos. A oposição ao regime nazista surgiu também da juventude alemã e entre os que se ressentiam da tirania hitlerista. Em Munique, em torno de 1942, estudantes universitários deram forma a um grupo de resistência chamado “Rosa Branca”. Seus líderes, Hans Scholl, sua irmã Sophie Scholl e o professor Kurt Huber foram presos e executados, em 1943, para servirem de exemplo de castigo aos oposicionistas de Hitler. Alguns não-judeus também resistiram aos alemães, escondendo ou ajudando judeus a escapar do regime nazista. Estas pessoas arriscavam freqüentemente suas vidas e as vidas de seus familiares e amigos para manter vivos alguns judeus. O povo da Dinamarca, por exemplo, desafiou as ordens de Hitler e o poder da Alemanha, recusando-se a entregar seus cidadãos judeus. Os dinamarqueses esconderam quase 7.200 judeus e, clandestinamente, os transportaram em segurança para a Suíça, que se mantinha neutra. Raoul Wallenberg, um diplomata sueco, conseguiu salvar cerca de 100.000 judeus húngaros emitindo passaportes para que fugissem do domínio nazista (BLAJBERG, 2004). Oscar Schindler (1908-1974), um proprietário de uma fábrica alemã, protegia seus trabalhadores escravos judeus pessoalmente, recuperando-os dos transportes aos campos de concentração. Alimentou-os e abrigou-os em seu próprio campo de trabalho e manteve-os trabalhando em sua fábrica até que a guerra terminasse. Oscar Schindler, que começou a ganhar milhões de marcos alemães pela cruel exploração de trabalhadores escravos, acabou por despender até o seu último cêntimo arriscando a sua própria vida para salvar os “seus” 1200 judeus (BLAJBERG, 2004). Há ainda exemplos como o do diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954), embaixador do Brasil na França de 1922 a 1944. Assinando pessoalmente vistos e passaportes diplomáticos, Souza Dantas salvou, comprovadamente, 475 pessoas. O embaixador, que não figura em nenhum livro de história brasileiro, foi reconhecido

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pelo Museu do Holocausto de Jerusalém (Yad Vashem), como “Justo entre as Nações”. Só quem preenche, pelo menos, uma destas três condições merece o título concedido pelo museu: arriscar cargo e posição social, arriscar a própria vida e salvar um número expressivo de pessoas. O diplomata não arriscou sua vida, mas quase perdeu o emprego e o status por assinar centenas de vistos para perseguidos do nazismo na França ocupada, desobedecendo às recomendações oficiais do governo Getúlio Vargas. O número certo – de judeus, homossexuais, comunistas e outras vítimas do nazismo – que encontrou a salvação graças à assinatura de Souza Dantas não é conhecido, estima-se que possa passar de mil pessoas. Outro exemplo é o da brasileira Aracy de Carvalho-Guimarães Rosa, que foi assistente do embaixador brasileiro em Berlim durante a Segunda Guerra Mundial. Também pouco conhecida, ela salvou cerca de 80 pessoas, emitindo vistos por conta própria (KRESCH, 2000). Além desses exemplos incontestáveis, há os de muitas pessoas anônimas e desconhecidas que arriscaram suas vidas, por compaixão, para salvar as vítimas do nazismo. Alguns dos simpatizantes da causa judaica muitas vezes tinham oportunidade de pegar crianças judias e levá-las como sendo seus próprios filhos e, assim, conservar suas vidas. A lista tanto de pessoas como das maneiras de expressar a compaixão é enorme e serve ao propósito deste artigo que não é outro senão mostrar que a compaixão se não predomina na natureza humana está pelo menos lado a lado, impondo limites à, supostamente inextinguível, crueldade dos homens. Conclusão Edgar Morin diz que: [...] reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seus elementos, considerado como o mais significativo, tem conseqüências piores em ética do que um conhecimento físico. Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a redução da personalidade múltipla por natureza, a

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um único de seus traços. Se o traço for favorável haverá desconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão. A compreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes [...]. Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa (MORIN, 2001, p. 98-99).

Assim, para Morin, é esse reducionismo que incapacita o ser humano de conceber o pensamento complexo, o pensar junto, derivando na racionalização do conhecimento em função do modo de pensar dominante, absoluto, especializado, pronto e em função da incompreensão. Diante do mito historicamente criado da irrecuperável hediondez humana – tradição historiográfica que se cumpre “religiosamente” – é possível concluir que esse “dogma” histórico de que o espírito humano é absolutamente hediondo está a serviço do pensamento redutor, do pensamento que rejeita a compreensão, as múltiplas personalidades de que fala Morin, que rejeita a crítica, a autocrítica, a heterocrítica, as condições históricas, culturais, sociais, psíquicas, espirituais. É o pensamento que rejeita a inteligibilidade humana, a sua racionalidade, que se outorga como verdade absoluta, acabada, por constituir-se tradição histórica e, aliado aos mecanismos de incompreensão, compartimenta, especializa e reduz o conhecimento. A lógica organizadora do discurso histórico, como tem sido pensada até hoje, não resiste ou não pode assimilar a dimensão da compaixão humana como geradora de fatos históricos. No discurso histórico, o conveniente confunde-se com o real. A compaixão não é conveniente, não é fato histórico, apesar de ser determinante em muitas sociedades, tais como os povos com total aversão ao ato de matar, registrados por Thomson (2002, p. 40) – os indianos em seu primórdios, os quacres, os dukhobors, os amishes, amostras de que a pacificação é antropologicamente possível.

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Tal atitude da literatura histórica resulta em reducionismos e impede o bem pensar moriniano: [...] o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e o seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias) (MORIN, 2001, p. 100).

Assim, a compaixão foi historicamente circunscrita à religião, à filosofia, à ética, à moral. A racionalização que impede a racionalidade quer proteger o homem contra o erro e a ilusão, no entanto, incorre em erros e ilusões ainda mais ou tão perigosos. Nosso sistema de idéias (teorias, doutrinas, ideologias) está não apenas sujeito ao erro, mas também protege os erros e ilusões nele inscritos. Está na lógica organizadora de qualquer sistema de idéias resistir à informação que não lhe convém ou que não pode assimilar (MORIN, 2001, p. 22).

Assim, a realidade não é facilmente legível. As idéias e as teorias não refletem, mas traduzem a realidade, às vezes de maneira errônea. “Nossa realidade não é outra senão nossa idéia de realidade”, assevera Morin (2001, p. 85). Se assim é, é preciso compreender que a história está sendo contada por pesquisadores sem isenção de suas percepções e valores e que a educação é um dos meios de imposição/construção de códigos de comportamento. Daí porque Thomson sugere que a educação promova a compaixão natural e o estudo das forças que a coíbem. Sua proposta, no entanto, não é ingênua: A lição da história é manter a simplicidade: as moralidades mais bem-sucedidas basearam-se no medo – medo da dor, punição, ridículo, desaprovação ou do tormento eterno. Remova esses medos, como geralmente acontece nas comunidades afluentes, e o sistema cai no desequilíbrio. Só há um sinal de renascimento quando o desequilíbrio começa a produzir destruição suficiente para restaurar o medo. O desafio para o século XXI é construir

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um novo etos amadurecido, baseado em objetivos positivos, e não negativos; que compreenda a crise que desafia o planeta e a população, um código construído a partir da compaixão e não só do medo (THOMSON, 2002, p. 574).

Por analogia, podemos lembrar que, assim como no filme pronto para consumo não aparecem as cenas dos bastidores, também no palco da história não desfilam aqueles que fazem a história acontecer. É nos bastidores que se verifica a realidade, não na tela. E assim como o autor e o diretor abdicam de sua aparição por não terem habilidade de representar, também, na história, autorias são usurpadas por quem se apropriou legalmente do direito de assinar os fatos. Quantos destinos foram decididos nos bastidores da história? Quantos “vilões” decidiram destinos porque foram poupados pela compaixão dos caçadores, dos pastores ou das fadas madrinhas? Para não concluir, lembramos o efeito borboleta, estudado desde 1955 por Edward Norton Lorenz (apud CORRÊA, 2002), segundo o qual insignificantes fatores podem ampliar-se temporalmente de forma a mudar radicalmente um estado. Se o bater de asas de uma borboleta pode, potencialmente, provocar reações nas mais longínquas regiões do mundo, o bater de asas de outros insetos também o pode. Se o bater de asas de uma borboleta pode provocar efeitos, pode, igualmente, evitar o que se forma sem sua influência. Talvez os historiadores do século XXI percebam o efeito borboleta da compaixão e compreendam o que diz Thomson (2002, p. 93): “uma vasta rede de costumes memorizados no mito e na fábula, repetidos de geração em geração, torna-se parte da estrutura do sistema moral como um todo e adquire um valor desvinculado de qualquer explicação racional”. Se isso acontecer, não apenas os historiadores, mas a humanidade poderá reescrever a sua história. Aí, quem sabe, se não pudermos viver felizes para sempre, poderemos, pelo menos, viver num mundo melhor.

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LA COMPASSION DANS L’HISTOIRE: ATTRIBUT ANTHROPOLOGIQUE ET OCCULTATION Résumé: La compassion comme déterminante de faits historiques. Dans cet article on cherche à montrer que les luttes en vue du pouvoir, génératrices des faits les plus cruels et belligérants de l’histoire de l’humanité, ne sont pas les seules à caractériser la trajectoire humaine; des facteurs subjectifs positifs, comme la compassion, ont interféré et influencé et, même, défini ? et définissent encore ? l’action de l’homme dans le Monde. On y montre que réduire l’homme à sa dimension hybris c’est nier la complexité inhérente à l’espèce. Mots-clés: Histoire. Compassion. Cruauté. Complexité.

Referências Bibliográficas BLAJBERG, Israel. A resistência contra Hitler. Revista Imigrante de Israel. Disponível em: <www.israel3.com/index.php>. Acesso em: 13 dez. 2004. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. CORRÊA, Roger Willians. O efeito borboleta. Disponível em: <www.geocities.com/inthechaos/histo.htm>. Acesso em: 13 dez. 2004. CRUZ, Inês; RIBEIRO, Carlos H. P. Oscar Shindler libertino e salvador. Tradução da aula de inglês da página de Internet. “The Story of Oscar Schindler – Rake and Savior” pelos alunos do 9º A Projecto Nónio Século XXI. Disponível em: http://www.bxscience.edu.orgs/ holocaust/edguide/deaths.html>. Acesso em: 03 dez. 2004. DALAI LAMA. A ética da compaixão. In: ______. Uma ética para o novo milênio. 4. ed. Tradução de Maria Luíza Newlands. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. ______ . Paz e desarmamento. In: ______. Uma ética para o novo milênio. 4. ed. Tradução de Maria Luíza Newlands. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. Princípios básicos para uma nova educação. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

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KRESCH, Daniela. Schindler brasileiro é reconhecido em Jerusalém. Revista Visão Judaica, n. 15, 1º jan. 2000. Disponível em: http:// www.visaojudaica.com.br. Acesso em: 31 jan. 2005. MORIN, Edgar; KERN, Anne-Brigitte. Terra-pátria. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2002. ______ . Os sete saberes necessários à educação do futuro. 4. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2001. THOMSON, Oliver. A assustadora história da maldade humana. Tradução de Mauro Silva. São Paulo: Ediouro, 2002.

PENSANDO A RELAÇÃO ESCOLA E SOCIEDADE NA PERSPECTIVA DE BOURDIEU Vânia Rita Donadio Araújo * A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária enquanto estrutura, e as funções desta cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, pois não estão unidas por nenhuma espécie de relação interna à “natureza das coisas” ou a uma “natureza humana”. (BOURDIEU; PASSERON)

Resumo: Um dos objetivos deste artigo é apresentar algumas contribuições do pensamento de Bourdieu para o campo pedagógico, reflexões sobre a natureza do trabalho escolar e dificuldades concretas na prática pedagógica, visualizando, na relação escola e sociedade, o processo de reprodução das desigualdades sociais. Para Pierre Bourdieu, a educação perde o papel de instituição transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm se legitimam os privilégios sociais. Esse autor deixou uma série de pistas e idéias, que, a nosso ver, colaboram para uma reflexão sobre as problemáticas vividas no campo pedagógico. Palavras-chave: Educação. Sociedade. Desigualdades sociais. * Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – Niterói, RJ. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). E-mail: [email protected] Práxis Educacional

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Apresentando Bourdieu e algumas de suas reflexões Pierre Bourdieu nasceu em 1930, em Denguin, França. Apesar de suas origens humildes, graduou-se em filosofia e desenvolveu diversos trabalhos de etnologia sobre a Argélia. Mas, é como sociólogo que o autor obterá destaque no mundo intelectual. Foi homenageado pelo Collège de France e recebeu a medalha de ouro do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Pierre Bourdieu criou uma obra original e complexa acrescentando à reflexão teórica uma imensa variedade de instrumentos de investigação (estatísticas, entrevistas, observações etnográficas, matérias históricas, etc.). Autor moderno, intelectual crítico, polêmico, instigante, engajado no debate público, conheceu a consagração da ciência e do grande público. Ele foi capaz de articular teoria e práticas sociais, influenciando não só a França, mas pensadores em universidades de vários países, principalmente os das universidades de Chicago e de Harvard, do Instituto Max Plank de Berlim, na década de 1970. Produtor de inúmeros estudos sobre arte, comunicação, linguagem, religião, política e outros temas, Bourdieu ocupa hoje posição de destaque no pensamento contemporâneo. A sua sociologia foi construída com o propósito obstinado de desvendar, de maneira fértil, os mecanismos de poder que permeiam as intricadas redes de relações sociais construídas historicamente. Bourdieu marcou o pensamento sociológico das últimas décadas tendo como inspiração teórica os clássicos Durkheim, Max Weber e Marx entre outros pensadores contemporâneos, no que se refere à integração entre teoria e pesquisa empírica. Os estudos produzidos por ele são hoje referenciais, dada a fertilidade de instrumentos conceituais para a compreensão das estratégias de reprodução da sociedade, das lutas simbólicas travadas pela apropriação de bens que, no plano cultural, são realizadas por agentes sociais 1 que visam ao monopólio da competência e do poder. 1 Bourdieu (1996) atribui esse conceito aos indivíduos que desenvolvem ações em estruturas sociais determinadas, das quais sofrem influências, constituintes de valores e perspectivas que orientam suas práticas e disposições realizadas nas trajetórias das histórias dos grupos sociais e culturais.

Pensando a relação escola e sociedade na perspectiva de Bourdieu

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O ponto polêmico dos estudos de Bourdieu é a oposição entre o subjetivismo e o objetivismo na construção metodológica. Ao pretender tecer um elo de mediação no embate subjetivismo/ objetivismo, estabeleceu necessariamente uma interlocução, sobretudo com os dois clássicos da sociologia: Emile Durkheim e Max Weber.2 Bourdieu critica o objetivismo sociológico durkheimiano por reduzir as ações dos indivíduos à mera execução de normas ou de estruturas. Neste contexto, a sociedade aparece como uma fonte de coerção que define regras e normas às quais os indivíduos devem se orientar, e estes passam a existir não como agentes sociais, mas como reprodutores do que se encontra programado pelo mundo social – como sistema de relações objetivas e independentes das consciências e vontades individuais. Nogueira e Nogueira (2002, p. 19) nos lembram que: O individuo, em Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, as preferências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação de voz, as aspirações relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmente construído.

Ao fazer críticas ao objetivismo, Bourdieu procura dar conta da relação adequada entre sujeito e sociedade, ator e estrutura social, onde a ação não é empreendida conforme a obediência às regras, elas sim, podem oferecer a estrutura onde esta ocorrerá, mas não a define, incorporando elementos substanciais do pensamento durkheimiano. Desta forma, aproxima-se da dimensão subjetiva da análise Webiana da ação social, da sociologia dos atores, agregando às relações de interação a questão do poder e da legitimação. Bourdieu, em contraposição ao objetivismo positivista, recupera a idéia de subjetividade presente em Weber, na qual teríamos a escolha, pelo sujeito, de valores, normas e princípios sociais que orientam sua Segundo Nogueira e Nogueira (2002), quando essa discussão teórica é levada para o campo da sociologia da educação, Bourdieu esforçou para evitar tanto o objetivismo quanto o subjetivismo na análise dos fenômenos educacionais. 2

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ação, porém não de forma racionalizada como em Weber. Ele tenta, em seu estudo, pôr em evidência as capacidades criadoras e inventivas do homem a partir do momento em que acredita que o indivíduo tem a liberdade de fazer escolhas, mesmo acreditando que estas escolhas são condicionadas pelo seu capital simbólico3 e pela estrutura social da qual participa. Para Bourdieu (1994, p. 63) apud (CANESIN, 2002, p. 97): A avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma ação determinada numa situação determinada faz intervir todo um corpo de sabedoria informal, ditados, lugares-comuns, preceitos éticos e, mais profundamente, princípios inconscientes do ethos.4

O que o autor deseja mostrar é que existe, tanto no sujeito, como no grupo, um “sistema de disposições duráveis”, que compreende toda a formação que o indivíduo teve em sua história de vida, podendo ser interpretada pelo capital simbólico que adquiriu e pelo conhecimento de regras e normas sociais pelas quais procura conformar sua ação. Essa mediação entre o indivíduo, que age segundo estruturas definidas, mas com margens que precisam ser fechadas pessoalmente, e a realidade social que se estabiliza, é proporcionada pelo habitus. Este consiste em: [...] sistemas de disposição duradouros e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o controle expresso das operações necessárias para atingilos, objetivamente “reguladas” e “regulares”, sem ser em nada o produto da obediência a regras e sendo tudo isso, 3 Entende-se por capital simbólico, todos os conhecimentos/saberes que o indivíduo socialmente adquiriu em sua história de vida e que, por sua vez, estruturam o sistema simbólico do qual opera em suas relações sociais. 4 Segundo Bonnewitz (2003, p. 77) Ethos “designa os princípios ou os valores em estado prático, a forma interiorizada e não consciente da moral que regula a conduta cotidiana: são os esquemas em ação, mas de maneira inconsciente”.

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coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro (B OURDIEU , 1980, apud BONNEWITZ, 2003, p. 76-77).

Nesta compreensão, Sacristán (1999) acrescenta que o habitus é uma espécie de ordem impessoal que tem uma autoria coletiva. É a organização resultante de práticas com capacidade para dirigir e regular ações futuras, de forma a permitir o alcance de determinados fins, sem que cada indivíduo que o assume tenha de se propor a isso explicitamente. A conceituação de habitus desenvolvida por Bourdieu, como afirma Ortiz (1994), refere-se à interiorização das normas e dos valores e, também, ao sistema de classificação que preexiste logicamente às representações sociais, conforme sinalizam os estudos de Durkheim. Devemos atentar para o fato de que o habitus não é um conceito que visa entender e enquadrar somente a ação de indivíduos, mas também de grupos. O estudo do habitus de um indivíduo ou grupo permite uma análise sobre as suas práticas e representações, na medida em que estas são objetivamente regulamentadas e reguladas, ocasionando a reprodução das relações direcionada por escolhas de valores, como descreve Bourdieu: [...] Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas [...]; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e divisão, gostos diferentes. Fazem diferenças entre o que é bom e o que é mau, entre o que é bem e o que é mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc., mas não são os mesmos (BOURDIEU, 1994, apud BONNEWITZ, 2003, p. 83).

Assim, o conceito de habitus que ele desenvolveu em suas obras corresponde a uma matriz determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.

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Entre outros aspectos, Bourdieu dedica grande parte de seu trabalho conceituando o que denomina campo de produção de bens culturais e simbólicos, identificando-os abstratamente na sociedade como espaços portadores de especificidades: campo escolar, campo científico, campo artístico, campo político, campo jornalístico, etc. O conceito de campo, seja de qualquer especificidade, supõe a presença de hierarquias entre os agentes de um mesmo campo e entre campos diferentes. Nesta disposição hierárquica entre os agentes, perpassam aspectos relacionados à origem de classe, trajetória escolar, acúmulo de bens expresso em capital simbólico acumulado, conjunto de habitus, estilo de vida e grau de legitimidade de um campo em relação a outros. A noção de campo desenvolvida por Bourdieu constitui-se em uma referência metodológica que visa orientar o modo de construção do objeto no processo de organização da pesquisa e indica a necessidade de pensar o mundo social de maneira relacional. Relação escola e sociedade: O processo de reprodução das desigualdades sociais no pensamento de Bourdieu Segundo Bourdieu, a escola e o trabalho pedagógico só podem ser compreendidos quando relacionados ao sistema das relações entre as classes, uma vez que eles servem de instrumentos de legitimação das desigualdades sociais. Para ele, a escola longe de ser libertadora é conservadora, mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares. Um jovem da camada superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade que o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho de operário, e suas chances são, ainda, duas vezes superiores àquelas de um jovem de classe média (BOURDIEU ; PASSERON , 1964, apud NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 41).

Nesta perspectiva, a escola não seria uma instância neutra que avaliaria os alunos com base em critérios universalistas, mas, ao contrário,

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seria uma instituição a serviço da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes. Para Bourdieu, a lógica da escola é perversa quanto trata formalmente todos os discentes como iguais em direitos e deveres, sem considerar as desigualdades que de fato existem, ignorando que as crianças têm culturas diferentes e contribuindo desta forma, para o fracasso de tantos. É arbitrário o que a escola oferece, exercendo sua função de reprodução e legitimação das desigualdades sociais, negando toda diferença de origem social, conforme nos lembra Bourdieu (1966) apud (NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 53): Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicos de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais.

De acordo com Bourdieu, essa igualdade formal que pauta o ensino, privilegia quem, por sua bagagem familiar5, já é privilegiado, uma vez que o que é compreendido e assimilado pelo aluno depende da sua capacidade cultural. Para este autor, o domínio dos alunos varia de acordo com a maior ou menor distância existente entre o arbitrário cultural apresentado pela escola como cultura legítima e a cultura familiar de origem dos alunos. [...] a tradição pedagógica só se dirige, por trás das idéias inquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandos que estão no caso particular de deter uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola (BOURDIEU, 1966, apud NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 53).

Neste sentido, a cultura transmitida pela escola é arbitrária, a da classe dominante, transformada em cultura legítima, reconhecida como No ponto de vista de Bourdieu, a família transmite a seus filhos uma bagagem familiar, o capital cultural, que contribui na definição do destino escolar. 5

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única universalmente válida, conforme nos informa Bourdieu (apud BONNEWITZ, 2003, p. 118) que “toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por ser um poder arbitrário, de um arbítrio cultural”. Desta forma, os alunos da classe dominante absorvem essa cultura sem nenhum problema, como sua própria. Em contrapartida, os demais, os filhos das famílias menos favorecidas econômica e culturalmente per manecem à margem do processo ensinoaprendizagem, pois o que lhes é ensinado é muito distante de seu contexto. Essa ideologia é compartilhada, também, pelos membros do corpo docente, que transmitem os conteúdos igualmente a todos os alunos como se todos tivessem os mesmos meios de decodificar. Conforme nos informa Bourdieu (1966, apud NOGUEIRA; CATANI, 1998, p. 55), os “professores partem da hipótese de que existem, entre o ensinante e o ensinado, uma comunidade lingüística e de cultura, uma cumplicidade prévia nos valores”. Para ilustrar esse problema, basta citar o fracasso escolar, que todos os estudos mostram depender principalmente da origem socioeconômica e cultural dos alunos. Ora, uma grande parte dos professores defende valores de igualdade e de justiça em relação aos alunos, recusando-se a selecioná-los e avaliá-los pela sua origem socioeconômica. No entanto, por serem os principais agentes da escola e, a menos que sua ação seja considerada nula e sem efeito, é preciso reconhecer, como diria Bourdieu, que os professores “realizam objetivamente uma tal seleção”, levando assim uma multidão de alunos ao fracasso escolar. Do ponto de vista de Bourdieu, essa neutralidade do ensino contribui, na realidade, para justificar e perpetuar as desigualdades, ao mesmo tempo em que as legitima. Na década de 70, a escola utilizou-se da “ideologia do dom” para explicar e justificar o fracasso escolar. Essa teoria postula que as desigualdades de sucesso na escola são resultado das aptidões, que aprender é um dom, uma capacidade inata, presente em poucos “iluminados”, como ressalta Bonnewitz (2003, p. 117):

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Com a ideologia do dom, a escola vai “naturalizar o social”, transformando desigualdades sociais em desigualdades de competências. A escola converte desigualdades sociais em resultados de uma concorrência eqüitativa; o sistema das sanções escolares é arbitrário.

A escola exerce uma função mistificadora, pois, além de permitir que as classes dominantes justifiquem ser a “ideologia do dom” a chave do sistema escolar e do sistema social, contribui para reforçar aos membros das classes dominadas o destino que a sociedade lhes mostra, levando-os a aceitar como inaptidões naturais o que não é senão efeito de uma condição inferior; convencendo-os de que eles devem o seu destino social à sua natureza individual e à sua falta de dons. A escola cumpre, assim, simultaneamente, sua função de reprodução e de legitimação das desigualdades sociais. O conceito de capital cultural (diplomas, nível de conhecimento geral, boas maneiras) é utilizado para distinguir capital econômico de capital social (rede de relações sociais). Os estudantes de classe média ou da alta burguesia, pela proximidade com a cultura “erudita”, pelas práticas culturais ou lingüísticas de seu meio familiar, têm mais probabilidades de obter o sucesso escolar. Bourdieu demonstra que existe relação entre cultura e desigualdades escolares: a escola pressupõe certas competências que são, de fato, adquiridas na esfera familiar (VASCONCELOS, 2002). Em seus estudos, Bourdieu enfatiza que o maior efeito da violência simbólica realizada pela escola sobre as classes dominadas é o reconhecimento, por parte dos membros dessas classes, de superioridade e legitimidade da cultura dominante, ou seja, da desvalorização do seu “saber” e do “saber-fazer” em favor do “saber” e do “saber-fazer” socialmente legitimados. A escola valoriza um modo de relação com o saber e a cultura que apenas os filhos das classes dominantes poderiam apresentar, cumprindo, portanto, as funções de legitimação e reprodução atribuídas à instituição escolar.

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Um dos efeitos menos percebidos da escolaridade obrigatória consiste no fato de que elas6 conseguem obter das classes dominadas um reconhecimento do saber e do saber-fazer legítimo (e.g.7 em matéria de direito, de medicina, de técnica, de divertimento ou de arte), acarretando a desvalorização do saber e do saber-fazer que elas detêm efetivamente (e.g. direito consuetudinário, medicina doméstica, técnicas artesanais, divertimento ou arte) (B OURDIEU ; PASSERON, 1970, apud BONNEWITZ, 2003, p. 119, grifo nosso).

Utilizando a expressão violência simbólica,8 ele tenta explicar o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “natural” as representações ou as idéias sociais dominantes. A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobre a qual se apóia o exercício da autoridade. Bourdieu considera que a transmissão pela escola da cultura escolar (conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas lingüísticas), própria da classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes populares. Pierre Bourdieu elabora, assim, um sistema teórico: as condições de participação social baseiam-se na herança social; o acúmulo de bens simbólicos e outros está inscrito nas estruturas do pensamento (mas também no corpo) e é constitutivo do habitus por meio do qual os indivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social. Esta não pode se realizar sem a ação sutil dos agentes e das instituições, preservando as funções sociais pela violência simbólica exercida sobre os indivíduos e com a adesão deles. As instituições escolares, segundo as idéias de Bourdieu, podem levar as crianças das camadas populares e das camadas médias empobrecidas a prejuízos inestimáveis. Elas não ajudam na luta pela eliminação das desigualdades sociais, pelo reconhecimento da O autor refere-se a “elas” como as “classes dominantes”, uma vez que o sistema escolar cumpre a função de legitimação, impondo às classes dominadas o reconhecimento do saber das classes dominantes negando a existência de uma outra cultura legítima. 7 E. g.: exempli gratia (por exemplo) 8 O termo violência simbólica aparece como eficaz para explicar a adesão dos dominados: dominação imposta pela aceitação das regras, das sanções; incapacidade de conhecer as regras de direito ou morais, as práticas lingüísticas e outras. 6

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diversidade cultural, pela superação da subalternidade da globalização, pela preparação profissional geral, ou seja, não propiciam as condições para que a parte pobre e oprimida da sociedade produza idéias, crie, se prepare para o mundo da ciência, da cultura, da arte, da profissão e da cidadania. Considerações finais Não consideramos uma tarefa fácil ou simples escrever sobre Pierre Bourdieu, mas um verdadeiro desafio: ele é, sem dúvida, um dos grandes sociólogos do século XX, reconhecido internacionalmente, um intelectual capaz de unir teoria e prática. As suas obras refletem o seu engajamento: como um bom combatente, criticou os mecanismos de reprodução dos sistemas escolares, o papel da mídia, a miséria e o desemprego. Como diz o sociólogo Carlos Benedito Martins, “ele fez da sociologia uma arma de combate, um instrumento de desmistificação das diferentes formas que assume o processo de dominação” (FOLHA DE SÃO PAULO, 26 jan. 2002, p. E6). Na compreensão sociológica da escola, o ponto relevante deixado por Bourdieu foi ter destacado que essa instituição não é neutra e/ou libertadora. Apesar de tratar, “aparentemente” todos iguais, em direitos e deveres, ou seja, dominantes e dominados com o direito de assistir às mesmas aulas, realizando as mesmas avaliações, tendo os mesmos professores, obedecendo às mesmas regras e tendo, supostamente, as mesmas chances, na realidade as chances não são iguais, visto que uns estariam em condições privilegiadas em relação a outros no atendimento às exigências, muitas vezes implícitas, da escola. Para ele, o processo de reprodução das estruturas sociais por meio da escola é, basicamente, inevitável, uma vez que esta serve de instrumento de legitimação das desigualdades sociais e de manutenção da hegemonia dos opressores. Em todas as suas análises, uma das originalidades de Bourdieu foi tentar complexificar a idéia marxista de uma sociedade cindida em duas, “classe dominante versus classe dominada”. A sociedade é constituída, para Bourdieu, de vários micro-campos, esferas

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relativamente independentes, cada uma com valores particulares, regras internas e princípios de funcionamento. Ao declarar que a cultura escolar é a cultura dominante dissimulada, Bourdieu abre caminho para uma análise mais crítica do currículo, dos métodos pedagógicos e da avaliação escolar, enfim, de todo o processo pedagógico e da instituição escolar como um todo. Depois de Bourdieu, tornou-se praticamente impossível analisar as desigualdades escolares, simplesmente, como fruto das diferenças naturais entre os indivíduos. Acreditamos que uma das grandes contribuições, entre muitas, deixadas por esse sociólogo foi ter proporcionado os alicerces para o rompimento frontal com a “ideologia do dom” e com a noção moralmente carregada de “mérito pessoal”. Bourdieu criou um estilo literário nas ciências sociais: criticado pela complexidade dos textos, pela utilização de um vocabulário que repulsa os neófitos, ele afirma que “só se pode pensar corretamente através da análise de casos empíricos teoricamente construídos”. No entanto, alguns dos conceitos que desenvolveu fazem parte hoje do vocabulário corrente de sociólogos ou dos que trabalham sobre o social (violência simbólica, campo, capital cultural etc.). Esse grande intelectual, pela sua história e produção científica, não pode ser desqualificado, como tentaram fazer alguns de seus críticos, argumentando que sua crítica voraz gerava pessimismo e, conseqüentemente, imobilismo. A herança deixada por Bourdieu certamente deverá fertilizar por muito tempo a área das Ciências Sociais e da Educação, bem como o campo da política. THINKING THE SCHOOL-SOCIETY RELATIONSHIP ON THE PERSPECTIVE OF BOURDIEU Abstract: One of the objectives of this article is to present some contributions from Bordieu’s thought for pedagogical field, reflections about the nature of scholastic work and concrete difficulties on pedagogical practice, visualizing in the relation school and society the reproduction process of social differences. Pierre Bordieu thinks education loses its role of transformable and democratical institution of societies and it starts to

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be seen as one of the main institutions by that one it maintains and legitimates the social privileges. That author left a series of hints and ideas that to our understanding explain and/or collaborate for a reflection about the problems lived on pedagogical field. Key words: Education. Society. Social differences.

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EDUCACIÓN Y REPRODUCCIÓN CULTURAL: EL LEGADO DE BOURDIEU Jorge García Marín *

Resumen: El presente trabajo nos aproxima a la obra de Pierre Bourdieu en el contcxto de las teorías de la reproducción y su gran influencia al desarrollo de los paradigmas del conflicto en la sociología de la educación. El análisis crítico del sistema educativo y su importante papel en la reproducción social y cultural, siguen siendo temas necesarios a la hora de abordar la educación. Cada vez más, necesitamos pensar y repensar la educación como “intelectuales transformativos”, por eso se hacen más necesarios los paradigmas que nos ayudan a visionar los elementos que contribuyen a perpetuar el sistema social. El diálogo con la obra de Bourdieu permite conflictuar las relaciones educativas y más allá de la reproducción permite pensar esquemas de acción que sigan políticas contra-hegemónicas. Palabras-clave: Reproducción social y cultural. Habitus. Violencia simbólica. Sutoridad pedagógica y campo.

Entre los grandes paradigmas de la sociología de la educación nos encontramos a las llamadas teorías del conflicto, de la reproducción o neomarxistas, teorías que suponen una ruptura con el funcionalismo * Doutor em Sociologia da Universidade Santiago de Compostela. E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

Vitória da Conquista

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y con las Teorías del Capital Humano al introducir el desorden en el análisis del sistema educativo, superando la doxa de la neutralidad, objetividad e igualdad de las llamadas sociedades meritocráticas. Uno de los principales representantes de este paradigma es el sociólogo francés Pierre Bourdieu, prolífico autor de gran y diversa producción teórica, que abarca distintos campos especializados: la educación, la religión, el poder político, el arte, la filosofía, la literatura, el deporte… Pretender resumir en estas páginas las aportaciones de Bourdieu al desarrollo de la disciplina sociología de la educación es muy osado, por lo que brevemente rescataré alguno de sus ya célebres conceptos como mínima expresión de su amplio conocimiento acumulado. Bourdieu es un autor controvertido, no exento de polémicas y debates, que construyó una obra original, donde se mezcla la reflexión teórica con una impresionante variedad de medios de investigación (estadísticas, entrevistas, observaciones etnográficas, materiales históricos, etc.). Es un autor difícil de ubicar en una “escuela” de pensamiento debido a las múltiples influencias incorporadas en su teoría, desde los clásicos (Marx, Weber, Durkheim) a las modernas corrientes de pensamiento interpretativo, como por ejemplo el Interaccionismo Simbólico (Mead, Goffman). Una obra ya clásica en el campo de la sociología de la educación es la realizada con Passeron, La Reproducción, en la que reflejan la influencia del origen social del alumnado en el rendimiento académico, y como la escuela contribuye a reproducir las desigualdades sociales. Para Bourdieu el sistema educativo pone en práctica una singular acción pedagógica, la cual esta bastante interrelacionada con la acción de la clase dominante y su cultura, provee de cierta información que es capaz de ser aprehendida sólo por aquellos sujetos que poseen el sistema de predisposiciones que es condición para el éxito en la transmisión e inculcación de la cultura (recordemos aquí los códigos sociolingüísticos de Bernstein). La violencia simbólica, que se da en el sistema educativo, es la imposición de sistemas de simbolismos y de significados sobre grupos o clases de modo que tal imposición se concibe como legítima.

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Todo poder de violencia simbólica, o sea, todo poder que logra imponer significaciones e imponerlas como legítimas disimulando las relaciones de fuerza en que se funda su propia fuerza, añade su propia fuerza, es decir, propiamente simbólica, a esas relaciones de fuerza. (BOURDIEU; PASSERON, 1977, p. 44).

La legitimidad oscurece las relaciones de poder, lo que permite que la imposición tenga éxito. En la medida en que es aceptada como legítima, la cultura añade su propia fuerza a las relaciones de poder, contribuyendo a su reproducción sistemática. La cultura es arbitraria en su imposición y en su contenido. Lo que denota la noción de arbitrariedad es que la cultura no puede deducirse a partir de que sea lo apropiado o de su valor relativo. Ciertos aspectos de la cultura no pueden explicarse a partir de un análisis lógico ni a partir de la naturaleza del hombre. El sustento principal del ejercicio de la violencia simbólica es la acción pedagógica que se fundamenta en la imposición de un doble arbitrario: el arbitrario de la autoridad (método o modelo pedagógico didáctico) y el arbitrario cultural que se inculca como algo definitivo, acabado, no negociado, acrítico. Todas las culturas cuentan con arbitrariedades culturales que son transmitidas a través de los procesos de socialización, disfrazados de legitimidades no cuestionadas (la imposición ha de ser vista como independiente de las relaciones de fuerza) y como cuestión meramente técnica. Para Bourdieu la Escuela, “la autoridad pedagógica, el trabajo pedagógico, y la relación pedagógica”, ejercen una violencia simbólica al imponer a los hijos de las clases dominadas ese arbitrario cultural (el currículum escolar como cultura universal y necesaria) como si fuese “la cultura”, al mismo tiempo que convierten en ilegitimas sus formas de cultura propias; es decir, se introduce una distinción entre los saberes legítimos y dominantes y otros saberes subordinados. Y, en la medida en que dicho arbitrario cultural concuerda con el capital cultural familiar de la mayoría de los hijos de la clase media, éstos se ven favorecidos: al final de la escolaridad su capital cultural familiar se ve reforzado con el capital escolar, mientras que los hijos de las clases bajas tienen, para

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obtener el éxito en la Escuela, que cambiar su capital cultural familiar por el escolar; de esta manera se construye la reproducción. El sistema educativo no sólo permite esa reproducción de las desigualdades (legitimándolas), sino que incrementa las desigualdades de partida. Bourdieu subraya el hecho de que la cultura escolar no es neutral, ya que enmascara relaciones de dominación que contribuyen a reproducir las desigualdades de clase. Repasamos aquí, brevemente, dos conceptos clave e interrelacionados de gran importancia en el análisis del sistema educativo y que sirven para fundamentar mejor el proceso de reproducción social y cultural y la legitimación del orden social: Habitus y Campo: Habitus El habitus como sistema de disposiciones, es el producto de la incorporación de la estructura social a través de la posición ocupada en esta estructura — y, en cuanto tal, es una estructura estructurada —, pero al mismo tiempo estructura las prácticas y las representaciones, actuando como estructura estructurante, es decir, como sistema de esquema práctico que estructura las percepciones, las apreciaciones y las acciones Se constituye como sistema de esquemas adquiridos y que funciona en la práctica como categorías de percepción y de apreciación o como principio de clasificación al mismo tiempo que como principio organizador de la acción que implica constituir al agente social en su verdad de operador práctico en la construcción de objetos. La acción no es la simple obediencia a una regla, el sujeto reconstruye en las acciones. Las estructuras objetivas no existen fuera de la conciencia y la voluntad de los agentes, y orientan sus prácticas y sus representaciones de acuerdo con las reglas del juego. El habitus funciona también subjetivizando, es decir, interiorizando la sociedad, según la posición particular del sujeto y su trayectoria autobiográfica.

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Con este concepto, como el propio Bourdieu reconoce, quiso reaccionar contra la orientación mecanicista de Saussure y del estructuralismo, dando a la práctica una intención activa, creadora. Bourdieu propone el ejemplo del “juego”, en el que los jugadores, una vez que han “interiorizado” sus reglas, actúan conforme a ellas. De alguna forma, se ponen al servicio del propio juego en sí. Esa interiorización y automatismo de las reglas de juego, que son las que determinan la capacidad de acción de los jugadores, se corresponden con ese “cuerpo socializado”, con el habitus generado en los diversos campos sociales. La forma en que los individuos perciben el mundo está ligada a su posición en el mundo social. Las posibilidades de cambio social vendrían del desfase que se produce entre la adquisición del habitus y las condiciones objetivas que lo generaron sobre las que inciden las transformaciones sociales, económicas, políticas... El Sistema educativo puede realizar su función a condición de reproducir, al menor coste y en serie, un habitus conforme al arbitrario cultural que reproduce tan homogéneo como sea posible. Todo trabajo pedagógico tiende a producir un habitus, incorporando o interiorizando una cultura determinada. Campo Son espacios estructurados y jerarquizados de posiciones objetivas, en los que se desarrollan combates y luchas por preservar, ocupar o subvertir esas posiciones y esas relaciones. El campo es tanto reproducción como cambio. Siguiendo a Bourdieu (1997, p. 48-49): Todas las sociedades se presentan como espacios sociales, es decir estructuras de diferencias que solo cabe comprender verdaderamente si se elabora el principio generador que fundamenta estas diferencias en la objetividad. Principio que

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no es más que la estructura de distribución de las formas de poder o de las especies de capital eficientes en el universo social considerado – y que por tanto varían según los lugares y los momentos. Esta estructura no es inmutable, y la tipología que describe un estado de las posiciones sociales permite fundamentar un análisis dinámico de la conservación y de la transformación de la estructura de distribución de las propiedades actuantes y con ello, del espacio social. Es lo que pretendo trasmitir cuando describo el espacio social global como campo, es decir, a la vez como un campo de fuerzas, cuya necesidad se impone a los agentes que se han adentrado en él, y como campo de luchas dentro del cual los agentes se enfrentan, con medios y fines diferenciados según su posición en la estructura del campo de fuerzas, contribuyendo de ese modo a conservar o a transformar su estructura.

El campo puede compararse con un juego cuyas reglas no son explícitas, y en el que los “jugadores” comparten, de forma desigual, una pluralidad de “bazas” y donde se ponen de manifiesto relaciones de poder que se estructuran a partir de la distribución desigual de lo que Boudieu denomina “capital”. Bourdieu reconoce tres clases fundamentales de capital: el económico, el cultural y el social. A estos hay que añadir el capital simbólico, que sólo existe en la medida en que es percibido como valor. Creemos con Bernard Lahire (2005) que el concepto de campo es relativamente esquelético pero representa esa teoría regional del mundo social que nos permite “iluminar las grandes escenas en que se juegan desafíos de poder”. Los análisis de Bourdieu marcaron un gran avance con respecto a los análisis meramente economicistas , ya que introdujeron la variable cultura para identificar los obstáculos que se encuentran los estudiantes de clase baja en su trayectoria curricular y por lo tanto reafirmaron la importancia del análisis de los procesos de reproducción cultural cuando se los ubica dentro de la lógica general de la reproducción social. A pesar de las críticas realizadas a su trabajo (como las de no ofrecer muchas posibilidades de acción práctica, o las de no poseer base teórica para una política de cambio) el trabajo científico de Bourdieu seguirá

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ofreciendo armas teóricas para justificar preguntas con las que interrogarnos sobre la educación como espacio social estratégico dentro de la reproducción social, y sobre los poderes y sus representaciones que más que nunca, en esta llamada posmodernidad, dominan material y simbólicamente nuestras sociedades y acciones. EDUCATION AND CULTURAL REPRODUCTION: BOURDIEU’S LEGACY Abstract: The present work brings us near to Pierre Bourdieu’s work in the contcxto of the theories of the reproduction and its great influence to the development of the paradigms of the conflict in the sociology of the education. The critical analysis of the educational system and the important role in the social and cultural reproduction, they continue being necessary topics at the moment of approaching the education. Increasingly, we need to think and to rethink the education like “intellectual transformativos”, because of it there are done more necessary the paradigms that help us to visionar the elements that help to perpetuate the social system. The dialogue with Bourdieu’s work allows conflictuar the educational relations and beyond the reproduction he allows to think schemes of action that are still political counter-hegemonic. Key Words: Social and cultural reproduction. Habitus. Intellectual transformativos.

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INVESTIGAÇÃO-AÇÃO NA FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS PESQUISADORES(AS): UMA EXPERIÊNCIA NO CICLO DE APRENDIZAGEM E NA EDUCAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS Maria Iza Pinto de Amorim Leite * José Jackson Reis dos Santos **

Resumo: O texto é fruto de um projeto de investigação-ação realizado como parte da programação das disciplinas Didática e Educação de Jovens e Adultos, no V Semestre do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Presenciando, participando e acompanhando atividades desenvolvidas no cotidiano das escolas, os graduandos foram construindo o conhecimento da realidade com base nas experiências pedagógicas concretas. Visitas, registros, leituras e comentários de memórias foram passos que proporcionaram aos graduandos a familiarização com o espaço educacional das escolas municipais de Vitória da * Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), na área de Didática. Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa intitulado “Políticas Públicas, Gestão e Práxis Educacionais: Um Estudo no Contexto do Município de Vitória da Conquista-Bahia”, cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected]. **Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF-RS). Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), nas áreas de Gestão Educacional e Educação de Pessoas Jovens, Adultas e Idosas. Pesquisador e vice-líder do Grupo de Pesquisa intitulado “Políticas Públicas, Gestão e Práxis Educacionais: Um Estudo no Contexto do Município de Vitória da Conquista -Bahia”, cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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Conquista. Os professores da rede municipal vivenciaram a experiência de socializar com os graduandos os acertos e desacertos que se verificam no cotidiano da práxis educacional. Com isso, além da reflexão da própria prática, contribuíram com a formação inicial dos graduandos. Palavras-chave: Formação de Professores. Ensino-Pesquisa-Extensão. Práxis Educacional. Ciclo de Aprendizagem. Educação de Pessoas Jovens e Adultas.

Investigação-ação: práxis coletiva e colaborativa Realizamos este projeto de investigação-ação por várias razões. A primeira delas diz respeito ao papel social da Universidade, uma vez que não podemos concebê-la distante das realidades educacionais e dos contextos de atuação dos futuros pedagogos. Nesse sentido, a experiência de conhecer e vivenciar o cotidiano educacional requer a imersão crítica, reflexiva e colaborativa dos sujeitos no ato de produzir, coletivamente, uma escola que se faz na caminhada; uma escola em movimento e entendida como espaço de transformação social, como campo de luta permanente pela qualidade dos processos educativos; uma escola, por isso mesmo, problematizante (F REIRE , 1987), acolhedora, reflexiva (ALARCÃO, 2003). Estabelecer e desenvolver ações que estreitem o vínculo entre ensino e pesquisa é outro aspecto motivador na implementação do projeto. Entendemos que não fazemos Universidade apenas com ensino. O ato de ensinar pressupõe pesquisar permanentemente. A pesquisa é fonte constante de produção de outros conhecimentos; é possibilidade de ressignificação de práticas pedagógicas. Ao vivenciar o cotidiano das escolas, os graduandos pretenderam contribuir com a construção de uma educação de melhor qualidade social. Nesse contexto de interação e de interlocução, estivemos aprendendo e ensinando ao mesmo tempo. O aprendizado em comunidades colaborativas possibilitou repensar e ressignificar as experiências pedagógicas em desenvolvimento; experiências que consideraram, partiram e conviveram com diferentes sujeitos e suas diferentes histórias/trajetórias.

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Viver a experiência pedagógica junto aos profissionais nela envolvidos não significou estender, de forma autoritária, saberes produzidos na formação inicial aos sujeitos das escolas; ao contrário, numa perspectiva dialética, estabelecemos um processo de constante comunicação. Esse é um movimento que implica abrir mão de certezas, duvidando sempre, questionando muito, obser vando permanentemente; implica também registrar, escrever a experiência, refletindo criticamente sobre o processo em sua dimensão de totalidade. Neste projeto, graduandos e profissionais das instituições envolvidas depararam-se com a oportunidade de analisar a práxis pedagógica vivida no dia-a-dia da escola. Em se tratando de práxis, destacamos aqui a indissociabilidade entre teoria-prática e, além disso, como “concepção que integra em uma unidade dinâmica e dialética a prática social e sua pertinente análise e compreensão teórica, a relação entre a prática, a ação, a luta transformadora e a teoria que orienta e ajuda a conduzir a ação” (HURTADO, 1992, p. 173). Sujeitos e contextos da experiência Nesta investigação-ação, envolveram-se profissionais das escolas públicas1 de Vitória da Conquista, graduandos do 5º Semestre do Curso de Pedagogia da Uesb (turnos matutino e noturno) e os professores das disciplinas: Didática e Educação de Jovens e Adultos. As escolas municipais de Vitória da Conquista estão organizadas em grupos, para efeito de planejamento, estudos e acompanhamento pedagógico. Nos turnos matutino e vespertino, as trinta e três escolas cicladas formam cinco grupos dos quais dois foram tomados para a realização desta pesquisa. Os grupos foram selecionados em função da compatibilidade entre os calendários de atividades da Secretaria Participaram também desta pesquisa três outras escolas. A primeira é uma escola da rede privada de Vitória da Conquista , Bahia. A segunda está localizada em Aracatu; a terceira em Piripá, municípios circunvizinhos, nos quais residem estudantes do curso de Pedagogia. Para fins de sistematização, neste texto, optamos em trabalhar apenas com as escolas da rede pública municipal de Vitória da Conquista. 1

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Municipal de Educação (SMED) e os horários disponíveis para as atividades dos professores e alunos das disciplinas envolvidas na pesquisa. As escolas que funcionam no noturno, num total de vinte e quatro, foram também tomadas como espaços de investigação-ação. Estas escolas desenvolvem o programa Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos (Reaja) e estão organizadas em dois grupos (A e B). O estudo, tanto no Ciclo, quanto no Reaja, foi realizado nas escolas localizadas na zona urbana. Focos de estudo, objetivos, tempo e metodologia da pesquisa A investigação-ação desenvolveu-se no cotidiano educacional, tomando-se como focos de estudo e análise duas políticas públicas educacionais que vêm sendo implementadas no contexto da rede municipal de Vitória da Conquista: o Ciclo de aprendizagem, nas classes iniciais do ensino fundamental com alunos na faixa etária regular, nos turnos diurnos; e o programa Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos (Reaja), no turno noturno. O CA, implantado em 1998, em todas as escolas da zona urbana, organiza o ensino em dois ciclos, envolvendo os três primeiros anos do ensino fundamental (Ciclo I) e os dois anos seguintes (Ciclo II). A construção de uma pedagogia diferenciada que possibilite a progressão continuada no interior de cada ciclo é um dos principais objetivos dos profissionais que acreditam na proposta do ciclo. O Reaja, implantado em 1997, nas escolas das zonas urbana e rural, propõe um trabalho pedagógico alternativo para a modalidade de educação de pessoas jovens e adultas. Organizado em módulos, o programa fundamenta-se nas experiências de educação popular, tendo como uma de suas referências o educador Paulo Freire. Estreitar as relações entre sociedade, escolas e universidade, qualificar a práxis educacional vivida nesses contextos, contribuir com a formação continuada (escolas) e inicial (Universidade), tencionando a transformação dos sujeitos e dos espaços educativos foram objetivos

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gerais, inerentes a este projeto de investigação que teve como objetivos específicos: a) identificar e analisar os princípios teórico-metodológicos orientadores das experiências pedagógicas do Ciclo de Aprendizagem e do Reaja; b) analisar, coletivamente, práticas pedagógicas vividas pelos docentes da rede municipal de ensino de Vitória da Conquista; c) participar do processo de construção e de ressignificação das práticas pedagógicas no cotidiano das escolas; d) auto-avaliar a práxis profissional vivida ao longo da investigação-ação, refletindo criticamente sobre a própria caminhada de elaboração do conhecimento. Quanto ao tempo de desenvolvimento da investigação-ação, consideramos dois períodos: a) O primeiro se refere ao tempo de vivência da investigação-ação: agosto a dezembro de 2004. Este tempo de trabalho com os graduandos foi equivalente ao desenvolvimento do semestre letivo de 2004.I,2 motivo pelo qual foi definido. Vale ressaltar que neste período não se encerrou a pesquisa, tendo possibilidade de continuidade no semestre seguinte. b) O segundo se refere ao período de análise de dados estatísticos das duas políticas públicas educacionais em estudo (1997-2003). Para esta análise estatística, escolhemos o ano de 1997 como ponto inicial por ser o ano de implantação do Reaja. A metodologia de trabalho foi desenvolvida por meio da espiral de investigação-ação, incorporando princípios como problematização, contextualização, dialogicidade, reflexividade, participação, colaboração. Esses são princípios inerentes à práxis educacional; práxis entendida como “a ação do homem sobre a matéria e criação – através dela – de uma nova realidade humanizada” (VÁZQUEZ, 1977, p. 245). A dialética da investigação-ação, por isso mesmo, é dialógica, problematizadora, crítica; é possibilidade de homens, mulheres, crianças produzirem juntos novos conhecimentos. Na Uesb, os semestres estão atípicos em decorrência dos últimos movimentos grevistas. O semestre 2004.I desenvolveu-se no período de agosto a dezembro de 2004. 2

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Nesse contexto, os sujeitos, suas experiências concretas e seus fragmentos de histórias de vida (SANTOS, OLIVEIRA; WESCHENFELDER, 2004), bem como o processo de análise, de teorização e de replanejamento da ação foram movimentos permanentes do trabalho. A elaboração da memória (BENINCÁ et al., 2004), a leitura dela e o levantamento de indicativos para aprofundamento teóricometodológico foram partes integrantes do processo de vivência da práxis pedagógica. A investigação-ação como concepção e prática educativa é uma das possibilidades de desenvolver um trabalho de pesquisa, numa perspectiva qualitativa. Estudiosos da investigação-ação como Carr e Kemmis (1988), Zeichner (2002), Elliott (1998), Benincá et al. (1994, 2004); Faria (2001), entre outros, têm insistido nesse tipo de pesquisa pelo fato de poder envolver os sujeitos da escola e da universidade num processo de transformação das práticas pedagógicas. Esse tipo de pesquisa não é produzido apenas pelo pesquisador acadêmico; ele é desenvolvido colaborativamente, em conjunto com todos os participantes do processo. A origem da investigação-ação remonta, segundo Elliott (1998), aos anos 1940, quando Kurt Lewin divulgou pela primeira vez tal perspectiva. Em seu início, conforme afirma Pereira (1998, p. 162), a investigação-ação objetivava: [...] o caráter participativo, o impulso democrático e a contribuição à mudança social; [...] posicionamento realista da ação, sempre seguida por uma reflexão autocrítica objetiva e uma avaliação de resultados: nem ação sem investigação nem investigação sem ação.

Nesse tipo de pesquisa, precisamos estar atentos para não a transformarmos em “fonte de técnicas de razão instrumental em organizações humanas” (ELLIOTT, 1998, p. 150). Pereira (1998) afirma que a investigação-ação, no Brasil, tem sido utilizada em processos de formação continuada e de formação inicial, principalmente quando se tem como objeto de estudo as práticas pedagógicas vividas no cotidiano

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educacional. Nesse percurso, busca-se qualificar a própria prática, modificar as problemáticas encontradas e, ao mesmo tempo, contribuir com a transformação e ressignificação dos contextos, dos sujeitos e das suas experiências pedagógicas. Como nenhuma transformação acontece sem intencionalidades, a investigação-ação, sem se deixar transformar em uma técnica de pesquisa ou de inovação pedagógica nas escolas, exige o desenvolvimento de um rigor metodológico, o que muitos estudiosos têm denominado de espiral de investigação-ação. Esta espiral se apresenta em quatro etapas: a) esclarecimento e diagnóstico de uma situação problemática na prática; b) formulação de estratégias de ação para resolver o problema; c) desenvolvimento e avaliação das estratégias de ação; d) esclarecimento e diagnóstico posterior da situação problemática (e assim sucessivamente na espiral seguinte de reflexão e ação). No percurso de trabalho com as escolas da rede municipal de Vitória da Conquista, os momentos da metodologia foram organizados da seguinte forma: a) Observação sistemática no contexto das escolas. Nesse momento, os graduandos observaram a vida educacional no cotidiano dos espaços educativos, dialogando com os sujeitos ali presentes. A coleta de material (documentos oficiais e outros), o registro das observações, a coleta de informações de maneira informal e a elaboração de memórias contribuíram para o processo de sistematização e análise do contexto educacional. b) Produção de registros e de memórias (por escola). Cada graduando, no decorrer das observações, produziu o seu registro e, após observações, diálogos e coleta de informações, elaborou a memória individual sobre o processo vivido na escola. c) Leitura de memórias (por escola) em sala de aula, durante as aulas de Didática e de Educação de Jovens e Adultos. Nessa etapa, foram lidas as memórias, levantados os indicativos e apontados novos encaminhamentos para voltar aos contextos das escolas. Aqui, fizemos

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o estudo e a análise de indicativos, compreendendo a complexidade do contexto das escolas e suas potencialidades. Incorporamos, ainda, o replanejamento da nossa ação. d) Aprofundamento teórico-metodológico. Cada professor, durante as aulas de Didática e Educação de Jovens e Adultos, aprofundou discussões e debates, articulando-os às experiências vividas pelos graduandos durante as visitas e observações feitas nos contextos das escolas. e) Retorno às escolas. De posse de novas leituras e de novas compreensões acerca do processo educacional, os graduandos retornavam para as escolas a fim de continuar o trabalho de investigação-ação. f) Ação compartilhada. Em momento oportuno, cada grupo de trabalho desenvolveu ação (ou ações) pedagógica(s) junto ao coletivo de profissionais das escolas, contribuindo com a qualificação do processo vivido pelos sujeitos nos espaços educativos. g) Produção de textos (artigo, resumo, pôster, folder). Elaboração interativa realizada pelos professores das disciplinas envolvidas no processo e pelos graduandos, visando à publicação e divulgação dos resultados alcançados. h) Realização do seminário “Práxis educacional no Ciclo e no Reaja: olhares de profissionais-pesquisadores”, objetivando a socialização e discussão da experiência vivenciada pelos graduandos e professores da Uesb e pelos profissionais das escolas envolvidas. O seminário foi realizado no dia 11 de dezembro de 2004, no Auditório do Júri, na Uesb, nos turnos matutino e vespertino. i) Elaboração de relatórios. Para sistematizar a experiência pedagógica, foram elaborados relatórios escritos pelos graduandos (por escola) e relatório-síntese pelos professores de Didática e de Educação de Jovens e Adultos, revelando as aprendizagens vividas no processo. Cada uma das etapas da investigação-ação precisa ser entendida e vivida dialeticamente, uma vez que todos os envolvidos buscam, juntos, diagnosticar, compreender e analisar as problemáticas, refletindo sobre elas, teorizando-as e apontando alternativas de ressignificação do processo educativo, transformando esse processo em práxis produtiva na perspectiva de Vázquez (1977, p. 197):

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A práxis produtiva é assim a práxis fundamental porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles finalidades ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo.

No processo de investigação-ação não há aquele que determina, que prescreve, que dita normas e regras para alguém jogar. Há, sim, aqueles que, juntos, se desafiam a buscar resolver situações-problema. Utilizando contribuições freireanas, podemos dizer que, nesse percurso, homens e mulheres partem colaborativamente no desvelamento, na compreensão e na transformação do mundo. Impressões e aprendizados no processo Ao chegarmos ao final de uma das etapas do projeto de investigação-ação, já podemos fazer algumas considerações, resultantes dos momentos de observação, leitura e discussão das memórias elaboradas pelos graduandos, permitindo sinalizar alguns pontos relevantes no caminho construído conjuntamente. A experiência pedagógica vivida enriqueceu e mudou os olhares dos sujeitos envolvidos. Numa das reuniões para leitura e discussão de memória, os relatos de duas alunas que não têm vivência como docente se destacaram. A primeira explicitou que não conseguia entender nada da organização do ensino em ciclos, mas, depois da explicação que ouviu da coordenadora da escola em que está realizando a investigaçãoação, acabou se apaixonando pela proposta. A segunda graduanda confessou que, durante as visitas à escola e a participação nas reuniões de professores, acabou se interessando pelo processo, identificando-se com os temas discutidos e desprendendo-se da preocupação em obter uma nota. Afirmou também que aconteceu motivação em cada graduando, eliminando resistências que se percebiam no início dos trabalhos, o que podemos constatar nas falas de outros sujeitos: “Sinceramente, quando a gente começou, eu não estava muito animada,

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não. Eu achei que era uma coisa muito solta, sem direção [...] claro, não ia ajudar em nada” (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos). As análises produzidas no âmbito do coletivo ressignificaram o processo e refizeram a caminhada. Encharcados das vivências das escolas, os graduandos começaram a compreender a educação numa perspectiva totalizante, relacionando os aspectos pedagógicoadministrativo-financeiros às questões sociais, políticas, econômicas, culturais, históricas da sociedade em geral; descobriram que os problemas educacionais não são fruto do acaso; perceberam que não podemos resolver os problemas educacionais ficando presos apenas a eles. O registro em memórias escritas, tanto das visitas às escolas municipais, quanto das reuniões de professores (no Centro Educacional Professor Paulo Freire) e de graduandos (na Uesb), deu conta de um primeiro momento, no qual foi focalizada a coleta de informações, merecendo destaque a disponibilidade dos profissionais das escolas em contribuir com a formação dos graduandos, como verificamos nos fragmentos de diferentes memórias destacados a seguir: • “Todos os olhares voltaram-se para a nossa presença, e o nosso olhar buscava descrever os mínimos detalhes daquele lugar” (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento). • “Nossa visita foi bastante tranqüila, pois todos se colocaram com muita disponibilidade para conversar conosco e esclarecer dúvidas” (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento). Foi essa coleta de informações, in loco, que colocou os graduandos em contato com a realidade das escolas, desde a estrutura física até as questões pedagógicas e socioeconômicas: A escola é pequena. Possui três salas espaçosas, sem forro e com iluminação adequada; uma cozinha e uma secretaria que não possuem tamanho adequado; dois banheiros (masculino e feminino) e não possui pátio. A construção é antiga e mal conservada, e o mobiliário é velho e precisa de pintura. Os vidros das janelas estão inteiros e fornecem iluminação (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento).

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A escola se encontra em perfeito estado físico, com salas amplas, banheiros femininos e masculinos com certas adaptações para os portadores de necessidades físicas, pátio para recreação, também consideravelmente amplo, sala de planejamento e coordenação, secretaria, diretoria, almoxarifado, cozinha e despensa organizadas e abastecidas. Faltando-lhe apenas um local apropriado para a instalação de uma biblioteca, ficando alguns poucos livros na sala da coordenação, disponíveis para trabalhos em sala de aula e consulta dos professores (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento). Foram postas as dificuldades e avanços que o projeto vem adquirindo, onde pudemos perceber que um dos maiores impasses para a obtenção do sucesso é a evasão escolar. Foi dito que no início das aulas é possível formar uma turma com 50 alunos chegando ao final com 17 ou até menos (MEMÓRIAS de reunião de professores – fragmento). No dia 24/09, visitamos a referida escola, no turno noturno, constatando que essa escola está situada numa área com terrenos baldios e cercada por vários motéis, em frente a um abrigo de pessoas indigentes. O mais grave é que o presídio está localizado na mesma rua da escola (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento).

No contexto da sala de aula universitária, em reuniões com os graduandos, constituímo-nos em comunidades críticas e autocríticas. Cada sessão de estudos e debates representou o aprofundamento e análise mais apurada das realidades encontradas nas escolas. Uma das grandes lições desse processo é aprender a inverter o olhar, ou seja, colocarmo-nos como sujeitos que também analisamos a nossa prática. Ultrapassar a dimensão de pesquisadores que simplesmente criticam e analisam a prática dos sujeitos das escolas, para uma posição de colaboração e de aprendizagem mútua continua sendo um dos processos mais difíceis. Isso se verifica no fragmento a seguir: É preciso ter um olhar mais abrangente. É um processo que envolve pessoas diferentes, professores com realidades diferentes. Romper com isso é muito difícil já que é muito difícil romper com o tradicional. O processo é complexo (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos – fragmento).

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Constantemente, pegamo-nos analisando problemas, dificuldades dos outros como se fosse possível transformar os sujeitos em objetos de estudo. Esquecemo-nos, muitas vezes, que o tema (ou temas) central (ais) de estudo é a relação pedagógica construída nas tramas do cotidiano educacional, ou seja, as falas, os pensamentos dos sujeitos que se referem a um contexto peculiar, específico. As reuniões mensais com os professores são momentos de estudo para compreender melhor o trabalho do programa Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos (Reaja), para que o professor possa conciliar teoria e prática. Porém, o próprio professor dificulta o trabalho não querendo estudar (MEMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento). As professoras falaram sobre a evasão escolar e disseram que, especificamente na sexta-feira, a freqüência é menor. Quando perguntamos qual avaliação que elas faziam, em relação a este fato, uma professora [...] disse que a sexta-feira é para os alunos um dia de festa ou de comparecimento à igreja. Outra professora culpou os alunos pelo desinteresse pela escola e não questionou falha no sistema educacional (M EMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento). Podia-se perceber a insatisfação de algumas professoras diante de certas afirmações (da palestrante) até mesmo porque a reunião foi realizada na sexta-feira e muitos estão cansados nesse dia (MEMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento). A professora de progressão disse que o professor que trabalha 40h não tem muito tempo para estudar e fazer atividades diferenciadas, mas que o professor da progressão recebe um pouco mais de instrução e diz que, sempre que possível, está lendo materiais para enriquecer o seu trabalho (MEMÓRIAS de reuniões de professores – fragmento).

Olhar as experiências educativas, analisando-as do lugar do outro, possibilitou-nos ultrapassar afirmações iniciais, muitas vezes presas ao senso comum, que culpabilizam os professores pelas problemáticas educacionais, perdendo, desse modo, a leitura de realidade numa perspectiva de totalidade, de conjunto, por isso mesmo, contraditória, processual, dialógica e dialogante com os contextos, com os sujeitos. Outro fator de importante aprendizado diz respeito à possibilidade de desenvolvimento de um processo crítico-reflexivo-

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formativo ao longo do curso de Pedagogia, e não apenas no final deste. Passamos, por meio da investigação-ação, a apontar alternativas teóricometodológicas capazes de articular e desenvolver o estágio do curso ao longo de todos os semestres, e não somente nos dois ou três últimos como em geral acontece. A fala de professores da rede municipal, registrada na memória de um dos grupos, referenda a necessidade da imersão do graduando, desde cedo, na realidade vivenciada nas escolas: Mesmo estando na faculdade e recebendo um referencial teórico grande, só iremos aprender realmente a ensinar através da prática em sala de aula. Fizeram também um comentário no sentido de que deveríamos estar mais presentes na escola para adquirirmos mais experiência e que esta não deveria se restringir apenas ao estágio no último semestre (MEMÓRIAS de visitas às escolas – fragmento).

A experiência mostrou-nos que o desenvolvimento de um processo crítico-reflexivo-formativo requer tempo, espaço, dedicação dos sujeitos, registro das práticas e produção de memórias, leitura de textos, observação constante do cotidiano educacional, replanejamento, além de ações transformadoras, com o intuito de modificar as situaçõesproblema encontradas nos diferentes espaços educativos. Também ampliou significativamente a concepção de escola, de pesquisa, de ensino, de extensão, de construção do conhecimento, de estágio. Isto se evidencia nos fragmentos de memória que seguem: Como tem sido natural nas aulas conjuntas, muitas dúvidas afloram e como sempre, quanto mais se falava, mais dúvidas surgiam (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos – fragmento). A leitura das memórias tem mostrado que a escola pública não está tão defasada como pensam os pais que colocam seus filhos em escolas particulares e que há interesse da Secretaria Municipal de Educação em estar implementando e melhorando o ciclo. Não se está dizendo, com isso, que a situação da rede municipal está às mil maravilhas. Há muitos professores que se envolvem e fazem um ótimo trabalho, mas há outros que não (MEMÓRIAS de reuniões com graduandos – fragmentos).

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Atrelado a esse processo, a pesquisa, o ensino e a extensão – tripé da universidade – ganharam novos rumos. A extensão, por exemplo, passa a nascer do cotidiano educacional e não apenas do âmbito da universidade numa perspectiva, muitas vezes, autoritária, que não contempla os interesses e as necessidades das escolas. A pesquisa, de outro modo, corrobora o processo de ampliação das leituras de mundo, além de contribuir com o entendimento e análise, de maneira aprofundada, das problemáticas educacionais. O ensino, nutrido de pesquisa e ressignificado por ela, ganha novos contornos, a fim de tornar-se um espaço-tempo de encontro entre sujeitos que pensam realidades, buscando compreendê-las, interpretá-las e transformá-las à luz de referenciais teórico-metodológicos no âmbito da sala de aula. No processo interativo da sala de aula universitária, o fazer-pensar pedagógico passa a ser compreendido como campo de debates, de confrontos, de afirmações, de negações, de negociações pedagógicas entre professores e estudantes. Contribuindo com os sujeitos das escolas, o projeto possibilitou, para nós, professores, desenvolver atividades de extensão, respeitando e considerando as necessidades locais e o processo em desenvolvimento no cotidiano dos espaços educativos, por meio do que denominamos de ação compartilhada. Nesta, alguns graduandos tiveram oportunidade de participar do trabalho docente, ao lado dos professores, ainda que em momentos rápidos e eventuais, iniciando o contato com alunos da rede pública municipal. Ainda nesta proposta, como professores de Didática e de Educação de Jovens e Adultos, tivemos a oportunidade de reunir todos os professores municipais da zona urbana e graduandos do curso de Pedagogia em momentos de reflexão conjunta, ao ministrarmos palestras para todos os grupos, inclusive aqueles não incluídos na pesquisa. Com os professores e graduandos da investigaçãoação do projeto Reaja, realizamos palestras sobre “Currículo na Perspectiva do Paulo Freire”. Com os professores e graduandos da investigação-ação sobre o Ciclo, abordamos a “Avaliação da aprendizagem no ciclo”. Os temas das palestras foram definidos em reuniões com as coordenadoras da SMED, atendendo a interesses e necessidades dos professores da rede municipal.

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Articular, por meio deste projeto, o cotidiano da escola (com suas singularidades, complexidades e potencialidades), envolvendo diferentes profissionais com o processo de formação dos pedagogos da Uesb, campus de Vitória da Conquista, possibilitou estabelecer um movimento de formação inicial intimamente vinculado às problemáticas e às potencialidades das escolas, configurando-se num espaço de aprendizado mútuo para os sujeitos participantes. O processo de investigação-ação proposto contribuiu para aproximar professores e estudantes universitários dos sujeitos e contextos das escolas envolvidas, na tentativa, conjunta, de vivermos e analisarmos, em profundidade, a práxis educacional vivida em diferentes experiências pedagógicas, constituindo-nos (todos) em profissionais pesquisadores. Fomos, o tempo todo, levados a repensar o próprio projeto de investigação-ação: ele se desfez e refez permanentemente. THE INVESTIGATION-ACTION PROCESS AS PART OF RESEARCHERS’ DEVELOPMENT: An Experience gotten through the Educational Modalities named LEARNING CYCLE AND YOUTH AND ADULTS EDUCATION Abstract: The present paper is a result of a project based on the principles of investigation and action which was developed as part of the following subjects: Didactic and Youth and Adults Education, offered during the fifth semester of the Pedagogy Course of the Southwest State University of Vitória da Conquista, Bahia, Brazil. Going through, taking part and following the activities developed daily at some municipal schools, the Pedagogy Students gradually built their knowledge based on concrete educational experiences. Visits, accounts, readings and discussions on diaries were procedures that made it possible for the students to become familiar with the public schools of Vitória da Conquista. The municipal teachers had the chance of sharing the positive and negative aspects of their everyday educational praxis. Besides reflecting their own teaching practice, they contributed to the students’ initial formation. Key Words: Teachers’ Development. Teaching-Research-Extension. Educational Praxis. Learning Cycle. Youth and Adults Education.

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ANOTAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE HISTÓRIA PARA ALUNOS SURDOS Célia Regina Verri * Regina Célia Alegro **

Resumo: Trata-se aqui, introdutoriamente, do processo ensino e aprendizagem do aluno surdo na disciplina História, destacando-se alguns aspectos relevantes desse processo. Considerando a máxima de Ausubel de que o conhecimento prévio do aprendiz é o mais importante fator isolado a influenciar a aprendizagem, reflete-se sobre as idéias acerca de uma aprendizagem mais significativa para alunos do ensino médio, surdos, na disciplina História. Palavras-chave: Ensino-aprendizagem. História. Ensino de História para alunos surdos. Aprendizagem significativa.

A educação para o surdo no Brasil vem sendo ofertada desde 1857, com a criação do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, no Rio de Janeiro (MAZZOTTA, 1996). No entanto, longo caminho ainda há de ser percorrido para a universalização do atendimento escolar ao * Especialista em História Social e Ensino de História; membro do grupo de pesquisa Rede de Estudos sobre Ensino-Aprendizagem em História (UEL/PR). E-mail: [email protected] ** Doutoranda em Educação (Unesp/Marilia-SP); membro do grupo de pesquisa Rede de Estudos sobre Ensino-Aprendizagem em História (UEL/PR). E-mail: [email protected] Práxis Educacional

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estudante surdo. E, hoje, ante o debate sobre a inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais, é urgente considerar não somente o seu ingresso na escola, mas a qualidade do processo de ensino e aprendizagem a elas dirigido. É fundamental oferecer oportunidade de freqüência à escola em condições que permitam, aos “incluídos”, serem reconhecidos e participarem do espaço escolar como sujeitos de direitos da cidadania. Nesse processo, é preciso distinguir desigualdade e diferenças. As diferenças possuem uma origem natural, não induzem à relação de superioridade e inferioridade, mas exigem um tratamento diferenciado, já que são enriquecedoras, dão direito à identidade, à tolerância e ao reconhecimento. A desigualdade, ao contrário, é uma ruptura que induz à manifestação de desprezo e indiferença (LUNARDI, 2004; NASCIMENTO, 1995; SKLIAR, 2002). No espaço de discussão sobre o processo de ensino e aprendizagem de História, a reflexão sobre necessidades educacionais especiais também está por ser realizada. Atualmente verifica-se uma contradição flagrante: enquanto a pesquisa histórica propõe retirar do esquecimento aqueles que não têm tido voz na história oficial, o ensino de História não tem se preparado para as possibilidades inexploradas que a relação com o “outro com necessidades educacionais especiais” pode propiciar no processo de ensino e aprendizagem. É evidente, na formação de professores dessa disciplina, a ausência de suporte para o trabalho com esses estudantes, particularmente com alunos surdos. No entanto, cada vez mais, na sua prática cotidiana, o professor de História estabelece relações com alunos falantes de uma outra língua – LIBRAS –, condição que pressupõe um processamento cognitivo diferenciado no processo de aprendizagem, pois estes alunos têm na língua de sinais seu principal recurso simbólico. Neste quadro, se delineia o interesse deste artigo. Se considerarmos que a perda auditiva, por si, não acarreta déficit cognitivo para o indivíduo, mas que dificuldades na comunicação podem acarretar limitações cognitivas (G LAT , 1985 p. 88), é possível imaginar a importância que tem a reflexão sobre as condições presentes no

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cotidiano do ensino de História para esses estudantes. Em primeiro lugar, porque, por meio de suas abordagens específicas e das relações estabelecidas com outras áreas do conhecimento, a aprendizagem de História favorece a discussão do que é próprio do mundo contemporâneo: o redimensionamento do presente e a construção de identidade. E, a inclusão escolar do estudante surdo pressupõe o acesso a essas possibilidades que a disciplina oferece. Em segundo lugar, porque, nesta disciplina, o professor apresenta conceitos complexos segundo a estrutura de uma linguagem oral, e os alunos surdos devem apreendê-los em linguagem própria. Então, cabe perguntar se o processo de ensino e aprendizagem de História tem, de fato, proporcionado possibilidades de desenvolvimento a esses estudantes. Um ponto de apoio para este estudo foi encontrado em Carretero (1997), para quem os conteúdos históricos assentam-se em conceitos que apresentam características particulares e exigem, na estrutura cognitiva dos estudantes, sofisticadas propriedades organizacionais que determinam o potencial de significação do material de estudo. O ensino de História é caracterizado pela aprendizagem de conceitos muito complexos e abstratos. São mutantes, pois a dimensão temporal afeta o seu conteúdo. Assim, aprender significativamente um conceito em História equivale a apreender o seu contexto. A aprendizagem de conceitos históricos depende de esforço deliberado para relacionar os novos conhecimentos a conhecimentos pré-existentes na estrutura cognitiva, o que pressupõe o “envolvimento afetivo para relacionar os novos conhecimentos com aprendizagens anteriores e a orientação para aprendizagens relacionadas com experiências, fatos ou objetos” (PONTES NETO, 2001). Em sala de aula, na falta de referências anteriores para a construção de idéias, proposições, conceitos históricos, os estudantes tendem a aplicar o seu conhecimento mais geral na formulação dos novos conceitos. Assim ocorre uma ampliação de inferências, novos conceitos podem se constituir de forma cada vez mais pobre, dificultando a conexão entre eles e impedindo a atribuição de

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significados. É por isso que o conhecimento prévio do aluno e as características específicas do conhecimento histórico condicionarão, em grande parte, o aprendizado. O conhecimento que o aluno tem disponível é fundamental como construção pessoal, espontânea, implícita, embora geralmente afastada da interpretação disciplinar. Mas é este conteúdo o ponto de partida para aprendizagens significativas (ARAGÃO, 1976). A teoria de Ausubel (COLL et al, 1998) sobre a aprendizagem ocupa-se com a construção de um modelo teórico que explica como os alunos adquirem e aplicam conceitos e generalizações que são ensinados na escola. Segundo esta teoria, a aprendizagem significativa pressupõe o conhecimento como um fenômeno substantivo (ideacional) e não apenas como capacidade de resolver problemas. “Significação” é uma experiência consciente que emerge quando proposições ou conceitos, símbolos e sinais potencialmente significativos são relacionados e incorporados numa estrutura cognitiva individual, numa base não arbitrária e substantiva. Pressupõe que o aluno relacione o novo material às idéias relevantes da sua estrutura cognitiva e reorganize o conhecimento que já possui. Segundo Ronca (1980), a aprendizagem significativa exige do aluno [...] capacidade de tradução (denominação de Bloom para requisito ao comportamento de compreensão), que requer: capacidade de tradução de um nível abstrato a outro; capacidade de tradução de uma forma simbólica a outra; capacidade de tradução de uma forma verbal para outra.

Neste sentido, como afirma Aragão (1976), referindo-se a Ausubel, “há uma relação importante entre saber como o aluno aprende, saber as variáveis manipuláveis que influenciam a aprendizagem, e saber o que fazer para auxiliar o aluno a aprender melhor”. Para situar melhor esta reflexão sobre o processo ensino e aprendizagem em História, envolvendo professores, ouvintes e alunos não ouvintes, foram utilizados dois exemplares do questionário respondido por alunos surdos, para uma sumária caracterização das

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idéias que têm acerca da disciplina de História, na perspectiva proposta por Ausubel, Novak e Hanesian (1980), “o mais importante fator isolado que influencia a aprendizagem é o que o aprendiz já sabe. Determine isto e ensine de acordo”. Os estudantes têm 19 anos, freqüentam o Ensino Médio no Instituto Estadual de Educação de Londrina (IEEL) e, durante o período vespertino, freqüentam aulas de reforço na Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos de Londrina (Apadal). Um dos alunos freqüenta o segundo ano do Ensino Médio e apresenta perda auditiva profunda. O segundo estudante freqüenta o terceiro ano do Ensino Médio e possui deficiência auditiva moderada. Serão aqui chamados de aluno A e aluno B, respectivamente. O uso de questionário permite observar concepções, construções, dificuldades, possibilidades e opiniões desses alunos acerca da disciplina e, também, como elaboram seus conhecimentos em História fazendo uso da língua portuguesa. Sabe-se que a LIBRAS é uma língua visual, enquanto a língua portuguesa utilizada no questionário – e na construção dos conteúdos históricos em sala de aula – é uma língua oral. Por essa razão, optou-se pela transcrição do questionário para o leitor deste artigo. Quando os alunos apresentaram dúvidas acerca do conteúdo das perguntas do questionário, receberam esclarecimentos do intérprete. O questionário adotado é uma adaptação daquele apresentado por Nadai e Bittencourt.1 1- Você gosta de estudar História? Por quê? Aluno A: Eu acho mais difícil estudar História, porque eu pouca mais coisas muito matéria. Aluno B: Eu gosto pouco de estudar História porque à História é muito difícil porque tem muito História. 2- Na disciplina de História, quais as atividades que mais facilitam o seu aprendizado? Este questionário é uma adaptação daquele apresentado em NADAI, Elza; BITTENCOURT, Circe M. F. Repensando a noção de tempo histórico no ensino. In: PINSKY J. (Org.) O ensino de história e a construção do fato. São Paulo, Contexto, 1988, p. 73-92. 1

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Aluno A: Se professora mais ensino melhor é bom aprendeu eu mais externo geração. Aluno B: Professora conta tudo sobre a História e também usa de fitas video de filme. 3- Na disciplina de História, quais as atividades que você menos gosta de realizar? Aluno A: Eu verdade porque materia o história sem todos difícil menor e media o estudas. Aluno B: Não gosta de fazer o trabalho de história. 4- Na disciplina de História, quais são os conteúdos mais difíceis? Aluno A: Os Famílias e eu criança passado nada ensio porque, surdos mais sem comunicação com som familia separar ouviu. Aluno B: Mais difícil 1° e 2° guerra mundial 5- O que mais dificulta o seu aprendizado em História? Aluno A: Sim, Química preciso o formúla alguns muita problema. Aluno B: Mais dificulta aprender as palavras das História. 6- Para que estudar História? Aluno A: Eu gosta mais matemática de estuda. Aluno B: É bom para aprender como as mudanças feudalismo depois capitalismo etc... é bom pra conhecer essa história. 7- Cite três exemplos de atividades mais comuns na disciplina de História: Aluno A: revista, texto, ler e livro. Aluno B: Questionario, pesquisas, ler o livro. 8- Na disciplina de História se usa mais: ( ) escritos antigos ( ) jornais ( ) músicas ( ) livro didático ( ) filmes ( ) gráficos, tabelas ( ) imagens (figuras, fotos) ( ) mapas ( ) textos literários ( ) textos de entrevistas Aluno A: mapas e filmes Aluno B: escritos antigos, mapas e filmes.

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9- Na disciplina de História aprende-se ( ) a verdade sobre os grandes fatos e personalidades ( ) interpretações sobre os acontecimentos humanos ( ) uma ciência que estuda o passado distante ( ) as lições do passado para evitar-se erros futuros Outra: Aluno A: resposta 2 Aluno B: resposta 2 10- Imagine três cenas: um grupo de mulheres lava as roupas dos filhos na beira do rio. a princesa Isabel assina a Lei Áurea cercada de autoridades. um grupo de sem-terra ocupa uma fazenda no norte do Paraná. Quais destas cenas imaginadas mostram mais claramente o que mais representa a História para você? Por quê? Aluno A: Isabel, o passado para brasil comando escravo só mulheres e filhos reis precisa coisas fazer todos mulheres sofrendo, Isabel ideia melhor a carta assina os liberdades mulheres. Aluno B: Princesa Isabel assina a lei de liberdade da escravo da Africa. 11- Dentre as profissões abaixo, quais exigem uso dos conhecimentos próprios da História? ( ) jornalista ( ) economista ( ) advogado ( ) arquiteto ( ) geógrafo ( ) matemático Explique sua escolha: Aluno A: Geógrafo. As professora falem o história coisas o mundo iguais sempre parece geógrafo. Aluno B: Geógrafo. Porque geógrafo tem mistura a Historia. (O aluno B ficou em dúvida entre “jornalista” e “geógrafo”). 12- O que você sugere para melhorar o ensino de História? Aluno A: Eu não achou mais difícil brasileiro bastantes problema preciso desenvolvimento mais conseguir lutar os grupos. Aluno B: Eu acho é melhor conhecer o filmes por exemplo conhecer a História egito, outras Histórias romanas.

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(O aluno B demonstra, em alguns pontos do seu questionário, a preferência por estudar por meio de filmes, “fitas vídeo de filme”, e sugere como melhoria do ensino a utilização de filmes). 13- Escolha um tema que você já estudou na disciplina de História e escreva um texto de, no máximo, 10 linhas. Aluno A: Surga e Brasil História, um homem portugual o navio procura longe ali tem terra já chegamos vamos entra viu diferente própria o seu solo bonita, floresta, passaro... pessoas outra encontra índia chefe cuidado meu terra Brasil e homem portugual você o lingua diferente estranho, ideia grupos homem combino matar índia pegar ouro ganhar própria no Brasil continuo geração futuro externo ponto. Aluno B: “Descobrimento do Brasil” No 1500 anos atrás o pedro alvares cabral descobriu no Brasil. Pedro encontrou e assustou o nú do índios mas pedro tem vergonha, então é cultura de índios. Pedro roubou os ouros e levando para o Portugal. Aí os índio é bobinho deu presente penas de papagaio. outro pedra deu presente chapeu. O que aconteceu roubou muito ouro e levou para Portugal. O Brasil é pobre. O processo de inclusão de pessoas surdas em salas comuns nem sempre garante aos alunos, quando comparados aos alunos ouvintes, leitura e escrita satisfatórias, ou o adequado domínio dos conteúdos escolares (BRASIL, 2005). A reflexão acerca das respostas obtidas no questionário acima pode se iniciar com uma pergunta: como se processa o ensino e a aprendizagem de História para estes alunos? Para Marques (1998): “o ensino de história para o aluno surdo é muitas vezes muito complexo, necessita de uma compreensão da maneira como se sistematiza a aprendizagem e a aquisição dos conteúdos, utilizando-se de uma metodologia própria”. Já para Bernardelli (2000), a única diferença entre os alunos surdos e os demais alunos está na comunicação: Nas escolas especiais, alunos e professores precisam comunicarse em língua portuguesa e também em língua brasileira de sinais

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(LIBRAS). Comunicação é troca, é interação e é processo. Os alunos surdos possuem linguagem interna riquíssima. Eles estão expostos a todo o tipo de informação, mas tem dificuldade em absor vê-las plenamente. Assim, necessitam interagir, experimentar com as informações recebidas junto aos ouvintes para entendê-las e expandi-las.

Observam-se, nas respostas aos questionários, dificuldades para, ao mesmo tempo, ler e traduzir o discurso apresentado na língua portuguesa para LIBRAS, acompanhar a apresentação de formulações construídas segundo a lógica da língua marcada pela oralidade – segunda língua para os surdos – e providenciar a resposta escrita. Ao traduzir os conceitos oriundos da língua portuguesa, os surdos reelaboram estes conceitos conforme os seus conhecimentos prévios construídos em LIBRAS. Por isso, para racionalizar o processo, centram-se em idéias mais gerais e inclusivas e menos nos detalhamentos, o que exige cuidado particular tanto na seleção de conteúdos quanto na sua apresentação para os alunos surdos. O processo de ensino e aprendizagem de História, neste caso, se concretiza como relação entre ouvinte e surdo, cujas estruturas cognitivas são organizadas segundo línguas diferentes, uma marcada pela oralidade, e a outra, pelo visual. Se o som e a fala são determinantes para o ouvinte; para o surdo, a imagem é que melhor permite seu aprendizado. Então, o professor de História deve compreender que: A tolerância lingüística é um elemento necessário. É preciso entender que as dificuldades escritas do surdo não são causadas por preguiça ou falta de inteligência, mas porque seu canal lingüístico não é o oral, mas o visual. Ele tem habilidades perfeitas em línguas visuais, nas quais os ouvintes apresentam dificuldades semelhantes e geralmente não têm um bom desempenho. Por isso o critério de avaliação do texto escrito do surdo é o da comunicação, e não o da adequação à forma padrão. Se conseguirmos entender o que ele quer dizer, o texto é válido (UFPEL, 2004).

Nas respostas ao questionário, fica evidenciada a dificuldade na escrita em língua portuguesa, mas as respostas revelam as idéias centrais

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registradas e os conteúdos históricos aprendidos.2 Lacerda chamou a atenção para a crítica de Vygotsky, em 1926, sobre o modo como a língua falada era ensinada para os surdos. Como era realizada, tomava muito tempo da criança, em geral não lhe ensinando a construir logicamente uma frase. O trabalho na disciplina de História – naquela época e, muitas vezes, contemporaneamente – era dirigido para uma “recitação” e não para a aquisição de uma linguagem propriamente dita, resultando em um vocabulário limitado e, muitas vezes, sem sentido, configurando uma situação extremamente difícil e confusa (LACERDa; PICCOLI, 2004). Isso dificulta para o surdo a compreensão dos conceitos básicos da História, pois estes pressupõem abstrações e, segundo Bernardelli (2000), “trabalhar o imaginário com o aluno surdo, às vezes acarreta em distorcer a verdade histórica”. A aprendizagem de conceitos é uma questão fundamental. Tomemos como exemplo o caso de crianças cegas desde o nascimento: a elas devem ser ensinados os conceitos de corpo-imagem e espaço, os quais são desenvolvidos naturalmente pelas crianças videntes. Elas podem precisar aprender conceitos de espaço como “acima”, “abaixo” e “próximo a” em relação a si mesma e aos outros e podem apresentar dificuldade em entender os conceitos de rotação e translação (TORRES; CORN, 2005). No caso dos surdos, eles precisam ter acesso à língua estruturada, com quantidade e qualidade de informações para facilitar, por exemplo, a compreensão e a expressão de situações passadas, de diferentes lugares, das abstrações da História. O exemplo acima pode ajudar a pensar a resposta do aluno A para a questão 10: estabelece uma relação entre as alternativas 1 e 2 e afirma que “no passado Brasil comprava como escravos mulheres e filhos. Os reis precisam fazer alguma coisa porque todas as mulheres estavam sofrendo, Isabel teve uma boa idéia, assinou a carta dando liberdade para as mulheres”. O aluno associa escravidão à condição feminina, escravos são mulheres. Mobiliza seus conhecimentos prévios 2 Uma investigação interessante, neste caso, – por exemplo – poderia averiguar se a ausência de marcas de tempo nas formas verbais próprias da LIBRAS afeta a aprendizagem em História.

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e organiza o conteúdo escolar à luz daqueles conhecimentos que, ainda, “preenchem as lacunas” verificadas no processo de ensino e aprendizagem permitindo-lhe atribuir significado aos conteúdos captados na aula de História. Em resposta à pergunta 1, os alunos afirmaram que História é uma disciplina difícil, da qual eles gostam pouco. Por quê? Além da quantidade de conteúdos que eles precisam estudar, “aprender as palavras da História”, o trabalho se torna muito difícil. Ao considerar as questões acima apresentadas, é possível compreender as respostas para este item. O aprendizado do aluno surdo se concretiza num ritmo diferente do aluno ouvinte/falante da língua portuguesa porque o primeiro tem mais tarefas a realizar. Se a aprendizagem em História é dificultada pelo excesso de conteúdos, é preciso reconhecer que esse fato é agravado pela sua condição de falante de uma língua diferente da língua portuguesa. Então, pode ser eficaz selecionar apenas os conteúdos fundamentais e trabalhar com idéias, conceitos, proposições-chave. Nesse quadro, cabe perguntar o que caracteriza o processo de ensino e aprendizagem de História entre ouvintes e surdos segundo a visão dos alunos que responderam ao questionário: 1. Grande volume de conteúdos (excesso de informações, detalhamentos, multiplicidade de conceitos ensinados simultaneamente, etc.) dificulta o acompanhamento das aulas pelos alunos surdos. 2. Grau de dificuldade dos conteúdos, por isso os alunos não gostam da disciplina: “as palavras da História são difíceis”. 3. Mediação da professora e do uso de filme (imagens), o que é aprovado pelos alunos. 4. Realização de pesquisa (7), uso privilegiado de leitura, questionários, mapas, filmes e escritos antigos (8). 5. Alunos com experiência anterior e conhecimento prévio marcados pela ausência de comunicação. Na resposta à questão 4, o aluno A parece fazer um desabafo quanto às dificuldades encontradas por ele e sua família dada a dificuldade de comunicação e, por isso, a ele “nada foi ensinado sobre o passado”. 6. Ensino de conteúdos convencionais (4, 6). 7. Pouco sentido em estudar os conteúdos de História (6), exceto o estabelecido no item abaixo (8).

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8. Interpretação e compreensão dos conceitos em História (perguntas 10, 12). Nesta questão, é interessante observar que a resposta de A confirma a de B, e vice-versa. Alunos revelam coerência e organização de idéias e manifestam opiniões. 9. História é concebida como “interpretações sobre os acontecimentos humanos” (9), mas o ensino é basicamente transmissão (recitação?) (pergunta 11).

Pode-se dizer que os alunos indicam a metodologia adequada para melhorar o processo de ensino e aprendizagem. Araújo demonstra um possível encaminhamento para a questão, ao discutir o ensino de álgebra. A autora induz à certeza de que as dificuldades não são exclusivas do surdo, muito menos de um reduzido número de alunos, e nem é recente o problema. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pode provar isso: os alunos não conseguem “compreender os conceitos algébricos como se espera, ou seja, muitas vezes mecanizam técnicas de resolução, mas não compreendem quais são as propriedades matemáticas que lhes permitem usar este ou aquele processo para resolver uma determinada questão”. Mas, alerta que estas dificuldades podem estar relacionadas com a forma pela qual são abordados tais conceitos: “o tratamento formal dado às suas primeiras noções podem bloquear o aluno iniciante, impedindo que avance em seu estudo” (ARAÚJO, 2004). Com base nas reflexões de Araújo, é possível afirmar a necessidade de recursos de ensino “falarem” sobre o conhecimento histórico, objetivando ajudar o aluno a refletir sobre as noções adquiridas em sua experiência como estudante para desenvolver um novo conceito. Para a autora, esses recursos podem estar [...] inseridos no discurso do professor, classificado como discurso meta em relação à matemática, que freqüentemente é utilizado para descontextualizar as noções a serem apreendidas de forma a proporcionar um ambiente satisfatório para a compreensão do aluno. Este discurso pode ser sob a forma de questionamentos, informações sobre como e onde os conceitos podem ser utilizados, etc. (ARAÚJO, 2004).

Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2005), na maioria das conversas colaterais em sala de aula, os surdos estão tentando

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visualizar o conteúdo, buscando experiências ou exemplos na sua própria memória. A elaboração de um exemplo, o mais próximo da vida prática possível, é extremamente relevante para a sua aprendizagem. Também a teoria de Ausubel propõe que se organize o ensino com base em um conceito mais amplo e genérico que vá atuar como alavanca para o acesso a um novo conhecimento mais específico. Um novo conceito sempre se vincula à (re)organização de conceitos anteriores e requer reflexão sobre eles. Isso auxilia o aluno a pensar sobre o conhecimento aprendido e ter mais controle sobre seu processo de aprendizagem. A cada novo conteúdo histórico abordado, é necessário exemplificar, questionar, fazer com que o aluno reflita sobre seu conhecimento. Em História, aprender o factual – o visível, o aparente – é tão importante quanto aprender conceitos, proposições – abstração. Não existe a possibilidade de aprendizagem de conceitos sem base de informações que permita situá-los adequadamente. Se a aprendizagem de fatos e conceitos constitui formas diferentes complementares – mas não excludentes – de aprender, esse processo é distinto. A aprendizagem de fatos pressupõe a memorização de informações que, geralmente, se dá como cópia literal. A aprendizagem de conceitos pressupõe que o aluno seja capaz de repetir a informação memorizada, mas compreendendo, estabelecendo relação com os seus conhecimentos anteriores, o que requer envolvimento afetivo para relacionar os novos conhecimentos com aprendizagens anteriores e a orientação para aprendizagens relacionadas com experiências, fatos ou objetos (COLL; POZO; SARABIA, 2000). Por isso, no ato de ensinar o aluno surdo, é indiscutível a necessidade de investigar o conhecimento histórico prévio que o aluno traz consigo. Segundo Carretero (1997), “uma das principais contribuições para a adoção de uma postura construtivista no conceito de aprendizado foi a de destacar a importância que o conhecimento prévio possui na aquisição de novos conhecimentos”. É necessário, ainda, adequação da metodologia e dos recursos usados nas aulas de História. Os alunos entrevistados indicaram sua

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predileção por recursos visuais: filmes, mapas, textos. O Ministério da Educação (BRASIL, 2005) sugere ainda o uso da mímica, do teatro, de imagens, TV, vídeo, DVD e Internet, que possam sempre possibilitar experiências visuais dos conteúdos, devendo-se, entretanto, evitar a poluição visual por motivos óbvios. E, também, “o estudo em grupo e o diálogo contínuo entre os surdos. Eles conversam mais entre si e necessitam deste diálogo para aprenderem” (BRASIL, 2005). A narrativa é importante “porque auxilia o desenvolvimento lingüístico, raciocínio lógico e a capacidade de desenvolver seqüências narrativas que tem utilidade pedagógica na própria aprendizagem do surdo” (MINELLO, 2004). Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2005), desenhos/ilustrações/fotografias – poderão ser aliados importantes, pois trazem, concretamente, a referência ao tema que se apresenta. Toda a pista visual pictográfica enriquece o conteúdo e estimula o hemisfério cerebral não-lingüístico, tornando-se um recurso precioso de memorização para todos os alunos. recursos tecnológicos (vídeo/TV, retroprojetor, computador, slides, entre outros) – constituem instrumentos ricos e atuais para se trabalhar com novos códigos e linguagens em sala de aula. A preferência deve ser por filmes legendados, pois isto facilita o acompanhamento pelos surdos. No entanto, é sempre bom estar discutindo, previamente, a temática a ser desenvolvida, o enredo, os personagens envolvidos, pois caso a legenda não seja totalmente compreendida, por conta do desconhecimento de algumas palavras pelos alunos surdos, não haverá prejuízo quanto à interiorização do conteúdo tratado.

Além de tudo, O professor deve sempre falar olhando para os alunos, nunca falar de costas para o grupo. Não significa que surdos conseguem necessariamente ler os lábios, isso é um mito. Percebem algumas palavras, mas raras vezes formam o pensamento completo, com exceção de surdos que têm um alto resíduo auditivo. É importante que a disposição da sala seja em semicírculo (MINELLO, 2004).

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Para as práticas durante as aulas dirigidas ao aluno surdo, os materiais devem ter objetividade e clareza. Neste sentido, repetimos, a teoria da aprendizagem significativa de Ausubel também pode oferecer importante contribuição, particularmente quando propõe que o trabalho em sala de aula considere o conhecimento que o aluno possui, que se organize o ensino partindo dos conteúdos mais gerais e inclusivos, rumo aos conteúdos mais específicos, e propõe os organizadores prévios e os mapas conceituais como estratégia de ensino.3 Estas estratégias concordam com o que se estabelece para o ensino do aluno surdo: Textos com conteúdos deverão ser textos resumidos, nos quais esteja privilegiada a ordem direta – SVO (sujeito, verbo, objeto). Textos para leitura e expansão do vocabulário em Língua Portuguesa terão uma função diferenciada e, portanto, terão características mais elaboradas e língua mais espontânea. O surdo necessita de motivação extra para a leitura, uma vez que a leitura vai exigir dele uma compreensão profunda da língua oral, que ele geralmente não tem. A Língua de Sinais apresenta processos de conexão (palavras como preposições, conjunções) totalmente diferentes das línguas orais, por isso o surdo geralmente apresenta uma dificuldade característica em compreender e utilizar estes elementos em Língua Portuguesa (UFPEL, 2005).

E, por fim, uma parte importante do trabalho de um professor de História é possibilitar uma atmosfera de compreensão, na qual os alunos surdos possam expressar e aprender a lidar com seus sentimentos sobre sua condição e com as atitudes dos outros, reconhecendo-se como sujeitos da aprendizagem (TORRES; CORN, 2005). A título de conclusão, relatamos seis questões que se impuseram no decorrer desta reflexão: 1. No ensino de História, “atualmente, reforça-se a importância de fazer com que o aluno compreenda os conteúdos sociais e históricos de forma aproximada a toda sua complexidade explicativa” (CARRETERO, 1997). Mapas conceituais proporcionam um resumo esquemático e organizado acerca das noções, idéias, conceitos e proposições veiculados na disciplina, e como eles se relacionam. Não são esquemas, organogramas, ou semelhantes, mas, sim, instrumentos que possibilitam situações de negociação de significados entre professores e alunos que os elaboram. 3

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2. Cabe aos professores mediar a interação dos alunos surdos, ou com baixa audição, com as especificidades do conhecimento histórico e estimular o convívio dos alunos surdos com os ouvintes. 3. Conforme a Conferência Mundial de Salamanca, não é o aluno portador de necessidades educacionais especiais que deve adaptar-se à escola, mas a escola é que deve adaptar-se a esse aluno. Inclusão pressupõe o compromisso de respeito à diferença que a escola assume com o aluno. 4. A teoria da aprendizagem significativa pode ser um instrumental importante para reflexão sobre a aprendizagem de alunos surdos na disciplina de História, porém esta questão carece de pesquisa mais sistemática. 5. A aprendizagem significativa não se refere a acúmulo de informações ou aprendizagem “correta”, mas de conteúdo para o qual foi atribuído sentido e que, por isso, passa a determinar a assimilação de novos conteúdos, assim como modifica a pessoa. Desse modo, pensar o ensino de História para pessoas com necessidades educacionais especiais pode conter uma possibilidade de repensar o processo de ensino e aprendizagem em História como processo formativo, e não como mera instrução. 6. É urgente a reflexão acerca da formação de professores na licenciatura em História, em vista da sua preparação para o atendimento a alunos com necessidades educacionais especiais, que têm a inclusão escolar como direito. NOTATIONS ON THE EDUCATION PROCESS AND LEARNING OF HISTORY FOR DEAF PUPILS Abstract: It is a initial reflection about the process of teaching and learning in discipline of History involving the deaf pupil, being distinguished some important aspects for this process. Considering the principle of Ausubel that it affirms to be the previous knowledge of the apprentice the most important isolated factor that influences the learning, reflects on the ideas concerning discipline of History of pupils of high school, deaf, searching of a more meaningful learning for these pupils. Key words: Process of teaching and learning of History. Teach of History for deaf pupil. Meaningful learn.

Anotações sobre o processo de ensino e aprendizagem de história para alunos surdos

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O CURRÍCULO NO BRASIL COLÔNIA: PROPOSTA DE UMA EDUCAÇÃO1 PARA A ELITE Solange Aparecida Zotti *

Resumo: O presente artigo tem por objetivo sistematizar a história do currículo oficial no Brasil no período colonial, caracterizado pelo modelo econômico agroexportador. A pesquisa abrange os aspectos da educação jesuítica em suas duas fases – a primeira idealizada por Nóbrega, nos chamados tempos heróicos (1549-1570) e a segunda derivada de autoridades jesuíticas de Portugal e concretizada pela Ratio Studiorum – bem como a realidade educacional que se desenha na colônia com a reforma pombalina. A pesquisa busca analisar, com base em fontes bibliográficas, a relação entre o contexto socioeconômicopolítico brasileiro, a proposta educacional e as propostas curriculares oficiais que se desenharam nesse período. O contexto socioeconômico do Brasil caracteriza-se por um modelo mercantilista, baseado na exploração da mãode-obra escrava, com uma profunda e desmedida depredação da colônia. Nessa lógica, o papel da educação era de sedimentar a visão do colonizador, sendo a catequese e a educação da elite seus principais objetivos. O currículo, Trabalho apresentado na IV Jornada do HISTEDBR: História, Sociedade e Educação no Brasil, em Maringá, 2004. * Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Educação na área de História, Filosofia e Educação (Unicamp). Professora da Universidade do Contestado (UnC) – campus Concórdia. Membro do grupo de pesquisa HISTEDBR, GT Campinas e líder do grupo de pesquisa “História, Sociedade e Educação (Hised)“ da UnC campus Concórdia. Autora do livro Sociedade, Educação e Currículo no Brasil: dos jesuítas aos anos de 1980 (Ed. Autores Associados e Ed. Plano, 2004). 1

Práxis Educacional

Vitória da Conquista

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organizado com base no modelo europeu, traduzia a concepção de mundo do colonizador, formando dirigentes para a manutenção da sociedade de acordo com seus interesses, especialmente os econômicos. Palavras-chave: Brasil Colônia. Sociedade. Educação. Currículo.

Introdução O presente artigo tem por objetivo sistematizar a história do currículo oficial no Brasil, durante o período colonial, que é caracterizado pelo modelo econômico agroexportador. O estudo abrange os aspectos da educação jesuítica em suas duas fases – a primeira idealizada por Nóbrega, nos chamados tempos heróicos (1549-1570) e a segunda derivada de autoridades jesuíticas de Portugal e concretizada por meio da Ratio Studiorum – bem como a realidade educacional que se desenha na colônia com a reforma pombalina. A análise desse período, baseada em pesquisa bibliográfica, busca responder: “Qual a relação entre o contexto socioeconômico-político brasileiro, a proposta educacional e as propostas curriculares oficiais que se desenharam neste período? Em que medida as propostas curriculares oficiais atendem ao contexto social, especialmente aos determinantes econômicos e políticos?”. Essas questões norteiam o estudo por acreditarmos que, nas pesquisas da história da educação brasileira, a visão de totalidade é fundamental. E, isso só é possível quando estabelecemos as relações entre as condições materiais da sociedade e o objeto de estudo, a fim de que este não seja investigado em si mesmo, mas compreendido e explicado à luz, especialmente, dos determinantes econômicos. Do ponto de vista etimológico, o termo “currículo” vem da palavra latina Scurrere, correr, e refere-se a curso, a carreira, a um percurso que deve ser realizado, comportando também a sua apresentação (GOODSON, 1995; SACRISTÁN, 1998). Dessa forma, a palavra currículo inclui o significado de “ordem como seqüência” e “ordem como estrutura”, ou seja, além de expressar os conteúdos de ensino, estabelece a ordem de sua distribuição por aqueles que definem o curso (SANTOS;

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PARAÍSO, 1996; SACRISTÁN, 1998). Essa concepção de currículo como prescrição já estava presente em Platão e Aristóteles. Contudo, o termo currículo irá ser utilizado pela primeira vez em 1633, no Oxford English Dictionary, para designar um plano estruturado de estudos (GOODSON, 1995; BERTICELLI, 1999). Inserido no campo pedagógico, o termo currículo passou por diversas definições ao longo do tempo. Tradicionalmente, referiu-se a uma relação de matérias/disciplinas com seu corpo de conhecimento organizado numa seqüência lógica, com o respectivo tempo de cada uma. Esta conotação guarda estreita relação com “plano de estudos”, “currículo oficial”, tratado como o conjunto das matérias a serem ensinadas em cada curso ou série e o tempo reservado a cada uma (BOYNARD; GARCIA; ROBERT, 1973). É este o sentido de currículo adotado neste estudo. Currículo e prescrição apresentam vínculos desde sua origem, mas essa relação fortaleceu-se ao longo do tempo, especialmente quando a escolarização se transformou em atividade de massa (GOODSON, 1995). Para Sacristán (1998), o currículo implica a idéia de regular e controlar a distribuição do conhecimento, além de estabelecer a ordem de sua distribuição. Ressalta esse autor que o currículo possui um papel regulador da prática e, portanto, regulador da ação educativa. De acordo com essas constatações, o conceito de currículo oficial se constitui na prescrição legal da organização das matérias/disciplinas a serem trabalhadas pela escola e demais orientações, tais como de conteúdo, didáticas e avaliativas. Assim, visando uma compreensão mais ampla das políticas curriculares oficiais do período colonial, procuramos configurar o contexto socioeconômico-político e o contexto educacional, em que as propostas curriculares se inserem, por acreditarmos que, recuperando esta história, teremos melhores condições de entender o processo que levou à construção e definição dos currículos oficiais. Esses são frutos de um movimento mais amplo que se processa nas políticas educacionais e em toda a sociedade.

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A educação jesuítica O Brasil “pré-descobrimento” se caracterizava pelo modo de produção comunista primitivo. As sociedades indígenas não tinham o conceito de propriedade privada, não se dividiam em classes. Tudo era feito em comum visando à satisfação das necessidades imediatas e vitais da coletividade. “Os homens produziam sua existência em comum e se educavam neste próprio processo. Lidando com a terra, lidando com a natureza, se relacionando uns com os outros, os homens se educavam e educavam as novas gerações” (SAVIANI, 1998, p. 81). Em vista disso, todos os adultos eram responsáveis por todas as crianças, não cabendo somente aos pais o processo educativo. A educação se fazia no cotidiano, sem instituição escolar, confundindo-se com a própria vida. A educação era o meio de garantir às outras pessoas aquilo que um determinado grupo aprendeu. “A educação indígena era eminentemente empírica, consistindo, antes de mais nada, em transmitir através das gerações uma tradição codificada. A escola era o lar e o mato; muito mais importantes as lições do exemplo que as palavras” (TOBIAS, 1986, p. 31). A educação nasce como um processo comunitário de ensinar e aprender, ligado às necessidades de cada grupo. Conforme Saviani (1998, p. 81), a “educação era o próprio trabalho: o povo se educava no próprio processo de trabalho. Era o aprender fazendo. Aprendia lidando com a realidade”. Enfim, a educação na sociedade indígena pode ser sintetizada nas palavras do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1981, p. 19): [...] as meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs mais velhas, os velhos sábios da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ou artesanato. Os meninos aprendem entre jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmãos-damãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago, feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação da aldeia criam de parte a parte situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativa de aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos

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de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de amor. Quase sempre não são impostas, e não é raro que sejam os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações que lhes possam trazer algum aprendizado.

Esta realidade é modificada com a chegada dos portugueses ao Brasil. Praticamente toda a cultura “pré-descobrimento” foi massacrada, sufocada, reprimida. Passamos do modo de produção comunista primitivo para o modo de produção capitalista (mercantil), ocorrendo, com isso, toda uma transformação, tanto em relação à produção dos bens materiais, quanto no âmbito de valores, costumes, crenças. Os portugueses, com forte concepção de propriedade privada (terra, produtos, instrumentos), têm, na produção/exploração para o mercado, seu objetivo. Então, inicia-se um processo de profunda depredação da colônia, com a utilização da mão-de-obra escrava, com o uso de tecnologias não conhecidas pelo índio, entre elas a arma de fogo, símbolo de poder e superioridade do colonizador. Afirma Sodré (1996, p. 12) que “o processo dito de ‘colonização’ alinha numerosos aspectos predatórios, na sua exigência elementar de produzir em grande escala”. A sociedade mercantilista elegeu outros valores, profundamente marcados pela religião católica. Entre eles, a catequese e a educação institucionalizada, que ficaram sob a responsabilidade dos jesuítas. Para Portugal, colonização e catequese confundem-se e fundem-se. Colonizar significava também a imposição de uma ideologia dominante, em que, além de “colonizar” a terra, era necessário “colonizar” as consciências. Os jesuítas mantêm a visão do colonizador, sedimentam as suas idéias. Nessa concepção, a igreja sustenta a reprodução ideológica.2 Portugal adotou para o Brasil, considerado apenas uma extensão de suas terras, um modelo de exploração baseado na doutrina mercantilista,3 que se dava por uma administração centralizada na “Entende-se que a colonização implica numa dependência jurídica, econômica e cultural, na fase colonial, e qualquer prática escolar, obviamente, será um instrumento do qual a sociedade nascente vai servir-se para impor e preservar a cultura transplantada” (SCHER, 1992, p. 8). 3 A doutrina mercantilista determinava que “a riqueza de um país resultava da acumulação, nele, de metais transformáveis em moeda (ouro e prata), obtidos de vantagens sobre os parceiros, em operações comerciais” (Cunha, 1986, p. 20). 2

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metrópole, com forte controle fiscal sobre as operações comerciais internas e externas. Instalou no Brasil uma economia colonial agroexportadora, que se constitui, em última análise, numa forma primitiva de dominação capitalista. Para tal exercício, destacam-se três elementos fundamentais: economia agrária, latifundiária e escravista. Conforme Xavier (1994), o Brasil se constituiu numa economia agrária dadas as condições territoriais (extensão) e o clima tropical, fatores fundamentais para a produção, em grande escala, de gêneros alimentícios e matérias-primas, condições ausentes em Portugal. Também, uma sociedade latifundiária pela disponibilidade de terras e lucratividade da produção em larga escala, em que a cana-de-açúcar se constituiu a base da economia colonial até os meados do século XVII. E escravista, principalmente porque o negro africano já era uma mercadoria lucrativa no comércio europeu e possibilitava a produção a baixo custo. Por conseguinte, a exploração latifundiária e o trabalho escravo eram condições de máxima rentabilidade para a burguesia mercantil, que também “tinha nas colônias uma verdadeira ‘reserva de mercado’, tanto para comprar os produtos nela produzidos, quanto para vender as mercadorias demandadas para o consumo” (CUNHA, 1986, p. 20-21). Ou, como enfatiza Ribeiro (1998, p. 19), “o objetivo dos colonizadores era o lucro, e a função da população colonial era propiciar tais lucros às camadas dominantes metropolitanas”, por isso a instrução e a educação escolarizada só podiam ser convenientes e interessar à camada dirigente, que tinha o papel de servir de articulação entre os interesses portugueses e as atividades coloniais. Para Portugal assegurar a dependência econômica, era fundamental a dependência política; para a manutenção dependência política, era indispensável a dependência cultural. Nesta afirmação podemos buscar a explicação do atraso no desenvolvimento educacional do Brasil. A educação jesuítica teve como objetivo primeiro a catequese, que logo foi substituído por uma educação restrita aos filhos dos homens da elite, que, depois, concluíam seus estudos na Europa.

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Segundo Tobias (1986, p. 47), a educação cristã que caracterizou a educação jesuítica subdividiu-se em dois períodos: [...] o primeiro idealizado por Nóbrega, com espírito democrático, cristão, universalizador e brasileiro, estendendose até cerca de 1580, e o segundo período, vivificado por uma filosofia da educação, derivada de autoridades jesuíticas da Metrópole e segregadora do índio e do pobre, contrária à educação de Nóbrega e dos primeiros jesuítas, mas triunfante depois da morte de Nóbrega, ocorrida em 1570.

A educação jesuítica, nos chamados “tempos heróicos” (primeiros 21 anos) comandados pelo Padre Manuel da Nóbrega, era organizada em recolhimentos onde eram educados os mamelucos, os órfãos, os indígenas (especialmente os filhos dos caciques) e os filhos dos colonos brancos dos povoados. Nóbrega entrevia a necessidade de “alicerçar nessa unidade espiritual e escolar a futura unidade política da nação” e, por isso, os recolhimentos funcionavam como agências de democratização, aproximando as raças e os filhos provenientes de diversas condições de vida, irmanandoos no trabalho, pela igualdade de tratamento e pelo convívio diário no colégio, na capela, nos pátios de recreação (MATTOS, 1958, p. 85).

É interessante destacar que a política educacional de Nóbrega tinha um caráter democrático, especialmente pelo interesse em formar adeptos ao catolicismo – que teve suas bases abaladas com o movimento da Reforma – e, também, porque a política colonizadora apontava que [...]somente pela aculturação sistemática e intensiva do elemento indígena aos valores espirituais e morais da civilização ocidental e cristã é que a colonização portuguesa poderia lançar raízes definitivas no solo fecundo [...] do novo mundo (MATTOS, 1958, p. 31).

Para isso, era necessário possibilitar a convivência entre as diversas raças e permitir que houvesse em comum a doutrina cristã, mediante aldeamentos especialmente organizados para esse fim. É

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interessante destacar o que Romanelli (1998, p. 35) enfatiza em relação aos objetivos da missão jesuítica: [...] não se pode perder de vista, evidentemente, os objetivos práticos da ação jesuítica no Novo Mundo: o recrutamento de fiéis e servidores. Ambos foram atingidos pela ação educadora. A catequese assegurou a conversão da população indígena e foi levada a cabo mediante criação de escolas elementares para os “curumins” e de núcleos missionários no interior das nações indígenas. A educação que se dava aos “curumins” estendia-se aos filhos dos colonos, o que garantia a evangelização destes.

Para atingir tais objetivos, o ensino da doutrina cristã, dos “bons costumes” (diga-se costumes portugueses) e das primeiras letras compunha a matriz curricular básica. O ensino do português foi a primeira necessidade educacional da colônia, assim como, ao evangelizador, coube aprender a língua indígena. “O evangelizador era [...] de visão larga e via no futuro; por isso, foi ele aprender a língua indígena, que acabou sendo matéria do currículo educacional do jesuíta no Brasil, de tal maneira que muita vez (sic) o tupi-guarani4 foi substituto do grego” (TOBIAS, 1986, p. 56), considerado indispensável pelos humanistas. Assim, a catequese foi associada à transmissão do idioma e dos costumes de Portugal, ao mesmo tempo em que o padre da Companhia de Jesus aprendeu a língua do nativo pelo convívio e conversas de um com outro. A doutrina cristã, com seus dogmas, seus princípios morais, sua espiritualidade, era o conteúdo da catequese, ministrada diariamente por meio de aulas expositivas e de exemplos vivos, com o objetivo de traduzir lições de moral associadas a fatos acontecidos (TOBIAS, 1984; PAIVA, 1982). A catequese, do ponto de vista econômico, interessava tanto à Companhia quanto ao colonizador, “à medida que tornava o índio mais dócil e, portanto, mais fácil de ser aproveitado como mãode-obra” (RIBEIRO, 1998, p. 24). Somente depois de falar o português e estar iniciado na doutrina cristã é que os índios e os demais iniciavam a “escola de ler e escrever”, considerada a escola primária. Nesta escola, também se ensinava o canto 4 “Como veículo mais eficaz de comunicação com os nativos, adotaram a língua tupi, que em 1556 já era ensinada no Colégio da Bahia e em 1587 no de Pernambuco” (CHAGAS, 1980, p. 3).

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orfeônico e a música instrumental. Estes componentes curriculares, opcionais, tinham por objetivo “desenvolver o entusiasmo da criança, como meio de tornar simpáticos e atraentes a educação cristã e o jesuíta, como atração das crianças e, sobretudo do selvagem” (TOBIAS, 1984, p. 65). Percebemos a visão do jesuíta de tornar a escola atraente para, com isso, garantir que os alunos a freqüentassem. Na seqüência dos estudos, era previsto, aos que se destacavam, o ensino da gramática latina e, aos demais, o ensino profissional, agrícola ou manufatureiro. Essa etapa correspondia ao atual ensino médio e já apontava para uma estrutura dual, apesar de que, segundo Ribeiro (1998, p. 22), “não tinha, de modo explícito, a intenção de fazer com que o ensino profissional atendesse à população indígena e o outro à população ‘branca’ exclusivamente”. Também era intenção de Nóbrega recrutar indígenas para a vocação sacerdotal, o que logo foi percebido como inadequado, exercendo, provavelmente, influência na definição de um ensino profissional e agrícola. O estudo da gramática latina visava à preparação para as humanidades superiores, para a Filosofia e para a Teologia, culminando com uma viagem de estudos à Europa. Nas palavras do próprio Nóbrega (apud MATTOS, 1958, p. 86, grifo do autor): “eu pretendia aos de maiores habilidades ensinar também latim e, depois de desbastados aqui um pouco, poderem em Espanha aprender letras e virtudes, para voltarem depois homens de confiança”. Nóbrega entendia que as aulas de gramática latina não deveriam ser apenas “artigos de luxo”, alheias às necessidades da colônia. Deveriam ser abertas aos mais aptos, não somente à aristocracia da terra, para que essa formação possibilitasse, além dos missionários, escrivães e funcionários para a administração colonial, gerentes para os negócios públicos e privados. Por outro lado, a introdução de uma disciplina profissionalizante, na visão de Nóbrega, era “imprescindível para formar pessoal capacitado em outras funções essenciais à vida da colônia” (MATTOS, 1958, p. 22). Nóbrega aliava, ao currículo humanista, a educação prática, voltada para as necessidades do contexto brasileiro, como parte da “aculturação do nativo, condição indispensável para a

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catequese, o aprendizado das práticas elementares de produção para a sobrevivência material da comunidade indígena em processo de aldeamento” (XAVIER, 1994, p. 43). Como destaca Tobias (1984, p. 66), [...] as escolas do curso médio ministraram algo de profissional e de princípios práticos de lavoura, a fim de que os filhos dos brasileiros pudessem ter e produzir algo de útil para a Nação. Isto, porém, apesar de objetivo e eminentemente educativo e cristão, representa o âmago da luta entre Nóbrega e superiores dos jesuítas de Lisboa, entre a humanização e a desumanização, entre a democratização e a aristocratização do nascente ensino brasileiro.

A partir de 1556, a proposta de Nóbrega passa a encontrar sérias resistências por entrar em choque com as orientações da Companhia, mantendo-se com dificuldades até sua morte em 1570. Então, os recolhimentos foram dissolvidos e incentivou-se a criação de colégios nos centros urbanos mais importantes da faixa litorânea, compreendendo o ensino das primeiras letras, o ensino secundário e o superior. A educação jesuítica passa a destinar-se exclusivamente à formação das elites burguesas com o objetivo de prepará-las para exercer a hegemonia cultural e política da colônia, conforme os interesses de Portugal. De acordo com Cunha, a educação jesuítica, nesta segunda fase, atendeu a uma tripla função: formar padres para a atividade missionária; formar quadros para a administração do empreendimento colonial como do próprio Estado; e educar as classes dominantes. A integração dessas funções assim variadas ficava garantida pela presença no currículo desses colégios, das ideologias e das práticas letradas comuns à cultura das classes dominantes, às diversas especialidades da burocracia estatal e à organização da própria ordem religiosa desses colégios (CUNHA, 1986, p. 24).

Por isso, as etapas iniciais e o ensino profissional e agrícola pretendidos por Nóbrega5 foram excluídos do currículo, o que evidencia o 5 As propostas iniciais do currículo de Nóbrega eram: aprendizado do português, doutrina cristã, escola de ler e escrever, canto orfeônico e música instrumental.

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[...] desinteresse ou a constatação da impossibilidade de “instruir” também o índio. Era necessário concentrar pessoal e recursos em “pontos estratégicos”, já que reduzidos. E tais “pontos” eram os filhos dos colonos em detrimento do índio, os futuros sacerdotes em detrimento do leigo, justificam os religiosos (RIBEIRO, 1998, p. 22).

Dessa forma, o ensino jesuítico interessava e era acessível a uma minoria, que, por não precisar produzir as coisas materiais para a sua sobrevivência, dedicava-se ao “cultivo do espírito”, ou seja, “uma educação literária, humanista, capaz de dar brilho à inteligência” (ROMANELLI, 1998, p. 34). Ainda, é importante ressaltar que “a formação da elite colonial, será marcada por uma intensa ‘rigidez’ na maneira de pensar e, conseqüentemente, de interpretar a realidade” (RIBEIRO, 1998, p. 25), fruto da eficiente organização da educação mediante a Ratio Studiorum (Ratio atque Institutio Studiorum Societas Jesu). Do ponto de vista das atividades de produção, o currículo jesuítico era sem “utilidade prática visível para uma economia fundada na agricultura rudimentar e no trabalho escravo” (ROMANELLI, 1998, p. 34). Entretanto, logo a elite percebeu a importância e o poder dessa educação para a formação de seus representantes políticos e conseqüente intervenção junto ao poder público. As normas dos colégios jesuítas eram padronizadas e foram oficialmente publicadas em 1599 na Ratio Studiorum. Esse plano de estudos levou 59 anos para ser elaborado, o que possibilitou uma grande experiência e larga discussão até ser publicada. Não foi um plano de um homem ou um grupo fechado, mas de uma experiência comum (FRANCA, 1986). Podemos dizer que, na Ratio, “tudo estava previsto, regulamentado e discutido, desde a posição das mãos, até o modo de levantar os olhos” (PONCE, 1990, p. 122), constituindo-se numa coleção de regras e prescrições práticas e detalhadas. Ou seja, um currículo que ia muito além das disciplinas ou conteúdos escolares. “O alvo visado era universal, a formação do homem perfeito, do bom cristão” (FRANCA, 1986, p. 12). A educação, nesse sentido, não era tratada como assunto de uma nação, com suas características

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específicas, pois os jesuítas acreditavam que sua proposta poderia ser aplicada para qualquer povo, em qualquer lugar. Até hoje, a Ratio pode ser considerada a mais perfeita organização que se conhece para quebrar nos alunos o mais tímido assomo de independência pessoal e para conseguir, portanto, nas esferas mais distintas do governo, das finanças e das universidades, colaboradores ativos, zelosos, e, freqüentemente, insuspeitos (PONCE, 1990, p. 122).

Esta afirmação deixa explícito que a educação baseava-se em um mundo pronto, perfeito, e objetivava adequar o homem a essa visão. Nesse mundo perfeito, “a cada um o que é de direito e vontade dos desígnios divinos”; portanto, a educação pertencia àqueles que tinham o que fazer com ela, aos nobres e à alta burguesia, para continuar em seu papel de dirigentes da sociedade. O trabalho mais marcante dos jesuítas no Brasil se dá na formação das elites e das lideranças da sociedade colonial, para que a consolidação da cultura católica fosse garantida (XAVIER, 1994). Um sistema educacional de uma sociedade baseada na escravatura só poderia se ater a atender aos interesses de uma camada da população. Por isso, os jesuítas especializaram-se no ensino secundário e superior, com currículos muito precisos e pormenorizados, tripartindo-se em educação literária, filosófica e teológica. No Brasil, havia quatro graus de ensino, sucessivos e propedêuticos: curso elementar (escola de ler, escrever e contar, mais a doutrina religiosa católica); curso de humanidades (nível secundário); curso de artes (também chamado de ciências naturais ou filosofia) e curso de teologia (nível superior) (FRANCA, 1986, TOBIAS, 1986, CUNHA, 1986). Neste artigo, de acordo com seu objetivo, analisaremos o curso elementar e o curso de humanidades. O ensino elementar era costumeiramente oferecido pela própria família e reforçado nos colégios, evidentemente para os filhos dos proprietários. Os jesuítas não se importaram com a educação das camadas populares, caracterizando-se seu sistema de ensino como

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aristocrático. Isso fica claro na afirmação de Inácio de Loyola (apud FRANCA, 1986, p. 7): “Ensinar os ignorantes a ler e escrever seria uma obra de caridade se a Companhia de Jesus tivesse suficientes membros para prover a tudo [...]”. O curso de humanidades foi o que teve maior difusão na colônia e objetivava preparar o aluno para “a arte acabada da composição e da escrita”, desenvolvendo uma “expressão perfeita” (FRANCA, 1986). Segundo Azevedo (1976, p. 27), “destinava-se a formar o homem in litteris huamanioribus, ministrando-lhe um ensino eminentemente literário de base clássica, e constituía por isto mesmo o alicerce de toda essa estrutura, solidamente montada, do ensino jesuítico”. A matriz curricular humanista, correspondente ao curso secundário, na Ratio, abrange cinco classes: retórica, humanidades e gramática superior, média e inferior, sendo realizadas todas em latim. “As classes de gramática asseguram-lhe uma expressão clara e exata; a de humanidades, uma expressão rica e elegante; a de retórica, mestria perfeita na expressão poderosa e convincente” (FRANCA, 1986, p. 15). Essas classes representam os estágios de progresso do aluno em relação aos conhecimentos adquiridos, não exclusivamente em relação a uma unidade de tempo (por exemplo, um ano). Conforme Chagas (1980, p. 3), “a conhecida rigidez dos jesuítas no plano dos fins [...] se compensava por uma grande plasticidade no plano dos meios. Exemplo disso, [...] era a flexibilidade com a qual afeiçoavam a execução do currículo às diferenças de capacidade dos alunos”. Por isso, as gramáticas eram subdivididas, e essas subdivisões, muitas vezes, recebiam subníveis (“A” e “B”), o que poderia dilatar o currículo em seis ou sete anos. O “grau” da gramática ínfima é o conhecimento perfeito dos rudimentos da gramática e as primeiras noções de sintaxe. O grau da gramática média é o conhecimento de toda a gramática, ainda que não exaustivo e perfeito. O grau da gramática superior é o conhecimento perfeito da gramática. O grau da classe de humanidades, que prepara imediatamente à retórica, é o conhecimento da linguagem, alguma erudição e primeiras

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noções dos preceitos da retórica. O grau da retórica é a expressão perfeita, em prosa e verso, e abrange os conhecimentos teórico e prático dos preceitos da arte de bem dizer e uma erudição mais rica de história, arqueologia, etc. (FRANCA, 1986, p. 15).

Outro aspecto relativo à plasticidade do currículo jesuítico foi o uso do idioma pátrio, fundamental aos futuros padres para o sucesso da catequização dos índios – “[...] para pregar com fruto, importa bem aprender a língua falada pelo povo” (FRANCA, 1986, p. 16). A Ratio foi alterada em 1751, quando foram introduzidas novas disciplinas no modelo curricular, como as línguas vernáculas e as ciências naturais (CUNHA, 1986). Os cursos elementares e de humanidades tinham por objetivo a seleção de religiosos, ou não, que completariam sua formação nos cursos superiores de artes ou teologia. A Ratio, por sua vez, remeteu o estudo das ciências para o curso de artes, em que se ensinavam, durante três anos, lógica, física, matemática, ética e metafísica, em que Aristóteles era o principal autor estudado. O curso de teologia, de quatro anos de duração, era composto por duas matérias básicas: a teologia moral (questões éticas do cotidiano) e a teologia especulativa (estudo do dogma católico) (CUNHA, 1986; FRANCA, 1986). “No plano da Ratio, enquanto os cursos universitários visam mais diretamente à formação profissional, o secundário tem uma finalidade acentuadamente humanista” (FRANCA, 1986, p. 25). Esse modelo de formação é adequado à política colonial, visto que, em uma sociedade em que muitos produziam, os poucos que desfrutavam dessa produção dedicavam-se às atividades intelectuais. A conseqüência foi o preconceito contra o trabalho, que era associado ao escravo, e, portanto, deixar de trabalhar significava aproximar-se do senhor. Também, a ênfase no trabalho intelectual afastava os alunos dos problemas relativos à realidade, levando-os a rejeitar o mundo real e a considerar civilizado o seu mundo. Nesse sentido, exerciam uma dominação sobre a maioria que não tinha acesso ao mundo letrado, reforçando a dominação.

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Na concepção da Ratio, o curso secundário, com currículo essencialmente humanista, era adequado, pois não era objetivo transformar os adolescentes em enciclopédias ambulantes, mas formar o homem, tornando-o mais homem. “O nome de humanidades foi dado a estes estudos porque transformam os que a eles se dedicam em ‘homens educados, afáveis, lhanos, acessíveis e tratáveis’” (FRANCA, 1986, p. 25). Por isso, a linguagem é considerada o instrumento natural de formação humana. Só pela palavra pode o educador atingir o espírito do aluno; só pela palavra pode o aluno manifestar o próprio espírito. [...] A linguagem é a expressão do espírito, e, portanto, a prova de sua existência, a medida de seu desenvolvimento. Quem se exprime, exercita a sua atividade mental, imagina, pensa, julga, raciocina, concatena idéias (FRANCA, 1986, p. 25-26).

Por esses pressupostos, compreendia-se que todo o trabalho do educador deve buscar desenvolver as capacidades naturais do jovem. O estudo da gramática, dos gênios antigos, do latim, a formação literária no currículo não tinham como principal objetivo uma utilidade instrumental, mas a formação do homem pelo desenvolvimento harmonioso de suas faculdades. Em vista disso, o verbalismo, como conteúdo e método, condicionou o currículo, acompanhou o seu desenvolvimento e constituiu-se numa das principais características da educação jesuítica. A organização da educação jesuítica, mais especificamente o currículo humanista, tinha objetivo acima de tudo religioso. Por isso, o conteúdo literário e a metodologia do curso de humanidades e dos cursos superiores visavam afastar os intelectuais das demais orientações religiosas, bem como da nascente ciência moderna, pois poderia leválos a perceber as limitações do método escolástico medieval adotado pelos jesuítas (RIBEIRO, 1998). Era primordial manter a colônia sob o monopólio intelectual da metrópole. Nesse sentido, “da mesma forma como a monocultura econômica destruiu fisicamente o resto da paisagem, assim também na escola jesuítica a monocultura intelectual e espiritual destruiu em torno do indivíduo a paisagem intelectual”

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(FREYRE apud BENGER, 1976, p. 222). Nesse quadro não havia lugar para o pensamento crítico e criador, nem para a ciência experimental que já começava a mudar os rumos da humanidade. Os jesuítas permanecem responsáveis pela educação no Brasil até 1759, quando são expulsos de Portugal e, conseqüentemente, do Brasil. Foram 210 anos de educação jesuítica, interrompidos bruscamente, com as reformas feitas em Portugal pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), então ministro de D. José I. Pela primeira vez, o Estado passa a orientar os rumos da educação, objetivando substituir a escola que servia aos interesses da fé pela escola útil aos fins do Estado. O período pombalino As reformas pombalinas tiveram por objetivo a recuperação econômica de Portugal, e uma das ações foi a modernização do ensino e da cultura portuguesa, objetivando a formação do nobre, para que atendesse aos interesses do Estado, podendo este até ser cristão. Isso demonstra que não foi simplesmente um intento anti-religioso, mas “a remodelação dos métodos educacionais vigentes, pela introdução da filosofia moderna e das ciências da natureza em Portugal” (CARVALHO, 1978, p. 26). Também, completa o autor, “as reformas foram [...] um esforço no sentido de colocar as escolas portuguesas em condições de acompanhar com êxito o progresso do século” (p. 51). Podemos apontar pelo menos três objetivos da nova política econômica portuguesa: incentivo às manufaturas na metrópole, proibindo-as na colônia, para que se constituíssem uma reserva de mercado; incentivo à acumulação de capital, tanto na metrópole com nas colônias; substituição das ideologias características da sociedade feudal, por outras, de acordo com a orientação da sociedade capitalista (C UNHA , 1986). Este terceiro objetivo diz respeito às reformas educacionais promovidas pelo Marquês de Pombal, em Portugal e na colônia, que culminam com a expulsão dos jesuítas do comando da educação, passando o Estado a definir os seus rumos.

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A fonte das idéias defendidas por Pombal vem do movimento iluminista que se evidencia no final do século XVII e caracteriza o século XVIII. O iluminismo “consistia na celebração da razão em oposição a qualquer religião revelada, consistente com a fé na ordem racional do mundo, a exaltação da ciência experimental e da técnica” (C UNHA , 1986, p. 44). Apesar disso, em Portugal, não houve o rompimento com a igreja e a religião católica. Pelo contrário, as ordens religiosas que se submeteram ao poder do Estado, na pessoa do rei, continuaram com autorização para prestar seus serviços. A Companhia de Jesus, no entanto, mantém uma postura de insubordinação ao rei, pois o movimento iluminista não era compatível com o ensino jesuítico, que continuava com característica medieval, educando nos moldes da Ratio Studiorum. A proposta da Companhia de Jesus era atrasada em relação à nova proposta que se delineava com a reforma pombalina, que apresentava avanços em relação aos aspectos científicos no ensino e na visão de sociedade. Até então, “a filosofia moderna (Descartes), a ciência físico-matemática, os novos métodos de estudo da língua latina eram desconhecidos em Portugal” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Estes foram alguns dos motivos para a Companhia de Jesus ser apontada como a causa do atraso de Portugal, além de ser detentora de um poder econômico reivindicado pelo Estado e de ter uma proposta de educação compatível com os interesses e a serviço da ordem religiosa, e não dos interesses do país. Os reflexos das políticas pombalinas na colônia incidem diretamente na necessidade de Portugal intensificar a produção para o comércio. Isso implicava em mais mão-de-obra, diga-se mão-de-obra indígena, até então “protegida” pela influência dos jesuítas junto à corte portuguesa. Era necessário “‘libertar’ os índios dos padres, isto é, tornálos disponíveis para serem integrados à economia como escravos, se não de direito, pelo menos de fato (salário simbólico)” (CUNHA, 1986, p. 42). Vale lembrar também que os jesuítas acumulavam riquezas provenientes do comércio de produtos do sertão, sem nada reverter ao tesouro real, pois eram isentos do pagamento de impostos. Por conseguinte, “não poderiam os homens da administração de D. José I

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subestimar o valor da organização jesuítica como empreendimento colonizador” (CARVALHO, 1978, p. 105). A sociedade religiosa também tinha objetivo mercantil. O Brasil, nesse período, passava por uma crise na produção de açúcar, enquanto se desenvolvia, sobremaneira, a atividade da mineração, permitindo “que indivíduos isolados se realizem economicamente, o que não acontecia no sistema de produção açucareira” (SODRÉ, 1996, p. 25). Há, nessa época, um crescimento populacional dada a imigração portuguesa, visto que a metrópole passava por uma forte crise econômica. Dessa forma, pela primeira vez, a população livre é mais numerosa que a população escrava. Para atender a essa demanda, diversificam-se as atividades econômicas complementares à mineração, principalmente aquelas relacionadas à produção de alimentos e manufaturas ligadas ao setor da tecelagem e do ferro, gerando-se, assim, o comércio interno, em função do desenvolvimento do mercado interno. Há um crescimento da vida urbana e das atividades administrativas da colônia, bem como o surgimento de uma camada média, o que favoreceu a este modelo de sociedade apresentar exigências culturais que antes não existiam (SODRÉ, 1996; XAVIER, 1994). “Esse descompasso que se verifica entre o desenvolvimento colonial e a decadência metropolitana será o principal desencadeador das chamadas reformas pombalinas” (XAVIER, 1994, p. 51). Estas significaram, para o Brasil, o aumento da exploração parasitária de Portugal, por meio de reformas administrativas e fiscais, que acirraram os monopólios, multiplicaram os impostos, discriminaram os nascidos na colônia dos nascidos em Portugal, dotando o aparelho administrativo superior da colônia exclusivamente com metropolitanos. Além disso, ocorreu o desmonte de toda a educação construída no decorrer de dois séculos (XAVIER, 1994; RIBEIRO, 1998). Dessa forma, no momento em que a colônia mais precisava de um projeto de educação, em razão da sua urbanização e diversificação das atividades econômicas, os jesuítas são retirados de cena, e a colônia amarga a realidade de nada ver colocado em seu lugar, atrelando-se, ainda mais, a formação da elite dirigente aos moldes de Portugal.

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Também, continua inexistente um projeto de educação popular, pois as poucas aulas régias, que foram colocadas à disposição, nada mais tinham do que a função preparatória de continuidade, de uma minoria, dos estudos na Europa. “A formação ‘modernizada’ da elite colonial (masculina) era uma das exigências para que ela se tornasse mais eficiente em sua função de articuladora das atividades internas e dos interesses da camada dominante portuguesa” (RIBEIRO, 1998, p. 35). As aulas régias, baseadas no enciclopedismo, constituíam-se em unidades de ensino, com professor único, instaladas para determinada disciplina, que deveriam substituir as disciplinas antes oferecidas nos colégios jesuítas. Eram aulas autônomas e isoladas, não havendo um “currículo, no sentido de um conjunto de estudos ordenados e hierarquizados, nem a duração prefixada se condicionava ao desenvolvimento de qualquer matéria” (CHAGAS, 1980, p. 09). Assim, como destaca Romanelli (1998, p. 36): [...] a uniformidade da ação pedagógica, a perfeita transição de um nível escolar para outro, a graduação, foram substituídas pela diversificação das disciplinas isoladas. Leigos começaram a ser introduzidos no ensino e o Estado assumiu, pela primeira vez, os encargos da educação.

A reforma de Pombal, no Brasil, não foi imediata. Somente em 1772, treze anos após a expulsão dos jesuítas e do alvará de 28 de junho de 1759,6 é que foram estabelecidas as aulas de primeiras letras, de gramática, de latim e de grego no Rio de Janeiro e nas principais cidades das capitanias (AZEVEDO, 1976; RIBEIRO, 1998). O ensino secundário, que era organizado segundo o Curso de Humanidades no período jesuítico, caracterizado pela unidade de professor, de método e de matéria, passa a ser fragmentado e disperso em aulas avulsas, cada uma com um professor, contemplando, segundo Ribeiro (1998, p. 34), as seguintes orientações: O Alvará de 1759 instituiu as aulas de gramática latina, de grego e de retórica e criou o cargo de “Diretor de Estudos” para orientar e fiscalizar o ensino, além de selecionar, através de exames, os professores. 6

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[...] para o ensino do latim, a orientação era a de ser entendido apenas como instrumento de domínio da cultura latina e admitir o auxílio da língua portuguesa. Quanto ao grego (indispensável a teólogos, advogados, artistas e médicos), as dificuldades deveriam ser gradualmente vencidas: primeiro a leitura (reconhecer as letras e sílabas, palavras), depois os preceitos gramaticais e, por último, a construção. A retórica não deveria ter seu uso restrito ao público e à cátedra. Deveria tornar-se útil ao contato cotidiano. As diretrizes para as aulas de filosofia ficaram para mais tarde e, na verdade, pouca coisa aconteceu. Diante da ruptura parcial com a tradição, este campo causou muito receio ou muita incerteza em relação ao novo.

Com o “subsídio literário” (imposto colonial criado em 1772 para custear o ensino), o número de aulas alcançou alguma diversificação em matérias como retórica, hebraico, matemática, filosofia e teologia. Tudo, porém, muito precário em razão da escassez de recursos, do despreparo dos docentes e da inexistência de um currículo regular com objetivos claramente definidos. Teve, porém, continuidade a formação clássica, ornamental e europeizante dos jesuítas, visto que a maioria dos professores era composta por padres formados sob os moldes jesuítas, os chamados padres-mestres. As principais inovações de Pombal – o ensino das línguas modernas, o estudo das ciências e a formação profissional – não foram implantadas na colônia (CHAGAS, 1980; ROMANELLI, 1998). O nível secundário continuou desvinculado dos assuntos e problemas da realidade, permanecendo o modelo europeu “civilizado”. A continuidade dos estudos, para garantia dos interesses portugueses, deveria ser feita na Universidade de Coimbra ou em outros centros europeus. Com isso, fica evidente que a metrópole tinha pouco interesse em equipar a colônia com um sistema educacional eficiente, pois este era incompatível com os objetivos de dominação e submissão impostos. Esta é a análise de Fernando de Azevedo (1976, p. 53): [...] a reforma planejada para o Reino não só golpeou profundamente, na Colônia, o ensino básico geral, pulverizandoo nas aulas de disciplinas isoladas (aulas régias), sem qualquer plano sistemático de estudos, como ainda cortou, na sua evolução pedagógica normal, o desenvolvimento do ensino para

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os planos superiores. [...] Tudo, até os detalhes de programas e a escolha de livros, tinha de vir de cima e de longe, do poder supremo do Reino, como se este tivesse sido organizado para instalar a rotina, paralisar as iniciativas individuais e estimular, em vez de absorvê-los, os organismos parasitários que costumam desenvolver-se à sombra de governos distantes, naturalmente lentos na sua intervenção. Esta foi uma das razões pelas quais a ação reconstrutora de Pombal não atingiu senão de raspão a vida escolar da colônia.

Dos jesuítas a Pombal, a educação brasileira foi marcada pelo objetivo básico de formação da elite dirigente da sociedade colonial. Mesmo assim, a organização escolar caracterizou-se precária, em quantidade e qualidade, com um currículo humanista, de conteúdo literário nos moldes europeus, com objetivo de “divulgação de uma concepção de mundo apta a manter coesa a sociedade” (SEVERINO, 1986, p. 70), de acordo com os interesses econômicos do colonizador, segundo um ideário católico. Mesmo com a desarticulação do currículo jesuíta, após Pombal, a essência do currículo permaneceu, apesar de a ciência estar em franco desenvolvimento na Europa. Nesse sentido, é esclarecedora a conclusão feita por Antonio Joaquim Severino (1986, p. 72): [...] o que a história mostra é a perfeita adequação entre estes princípios doutrinários e os interesses econômicos, políticos e sociais da classe dominante da época, constituída basicamente pela aristocracia agrária, pouco numerosa, mas encarregada de dirigir a exploração colonizadora do país. Daí por que atribuíram pouca importância à organização do ensino e à política educacional do país, tanto mais porque a educação se destinava a segmentos restritos da população. Não havia necessidade de uma contribuição maior da educação, que ficava adstrita à formação da elite dirigente. Por isso o caráter literário, acadêmico de seu conteúdo, sua preocupação com os modelos europeus e o total desinteresse pela profissionalização e formação da maioria da população privada de qualquer educação formal. Ademais não havia também necessidade de aprofundamento dessa educação, uma vez que os integrantes dessa elite poderiam ir completar seus estudos na Europa.

Dessa forma, entre a expulsão dos jesuítas e a transposição da corte portuguesa para o Brasil em 1808, há uma lacuna de quase meio

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século na educação brasileira, caracterizada pela precariedade do ensino colonial. Considerações finais À luz deste quadro de informações e da proposta deste trabalho, o que podemos verificar é que o contexto socioeconômico do Brasil Colônia tem como elementos principais um modelo de exploração mercantilista, baseado na exploração da mão-de-obra escrava, com uma profunda e desmedida depredação da colônia. O Brasil era, para Portugal, apenas uma extensão de suas terras, por isso mantinha um total controle por meio de uma administração centralizada. Nesse contexto de modelo econômico agroexportador, o papel da educação era de sedimentar a visão do colonizador. Por isso, num primeiro momento, a catequese foi a principal função dos jesuítas, responsáveis pela reprodução dos valores da sociedade mercantilista, profundamente marcada pela religião católica. Nos chamados tempos heróicos, os primeiros 21 anos de educação jesuítica, Nóbrega idealizou uma educação democrática, cristã e brasileira, estendida aos filhos dos colonos brancos, aos órfãos e aos indígenas, com um modelo curricular que contemplava o ensino da doutrina cristã, dos “bons costumes” e das primeiras letras. O interesse maior de Nóbrega era a formação de adeptos ao catolicismo a fim de restabelecer as bases da Igreja Católica abaladas pela reforma e garantir a aculturação do elemento indígena para que a “colonização” fosse de fato definitiva. Esta proposta logo encontrou resistência junto à ordem jesuítica em Portugal, visto que não era interesse a instrução do índio, e, sim, o seu adestramento por meio da catequização para servir de mão-de-obra. A educação deveria destinar-se à formação das elites burguesas somente e, por isso, as propostas educacionais e o currículo de Nóbrega não encontram espaço para serem desenvolvidos. A segunda fase da educação jesuítica é a mais importante e aqui se configuram os reais objetivos da educação no Brasil Colônia: formar quadros para a administração do Estado, formar padres e educar as

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classes dominantes. A educação é pautada nos princípios da Ratio Studiorum, composta de uma coleção de regras e prescrições milimetricamente pensadas. É segundo estes princípios que acontece a principal ação jesuítica, ou seja, a promoção da educação da elite. Nesse sentido, fica clara a relação entre modelo econômico e educação, pois, numa sociedade escravocrata e agroexportadora, baseada na exploração desmedida da população, a educação é artigo de luxo para garantir a reprodução e consolidação dos interesses burgueses. A proposta curricular contemplava a educação literária, filosófica e teológica nos níveis elementar, secundário e superior. O curso de humanidades (secundário) foi o mais difundido, pois era o alicerce do ensino jesuítico. Eminentemente literário, objetivava uma formação essencialmente humanista, com o fim de diferenciar e reforçar a dominação, na medida em que as atividades intelectuais eram para os poucos que tinham garantido suas necessidades materiais pela exploração da mão-de-obra escrava. O currículo, essencialmente humanista, visava à formação de intelectuais comprometidos com as orientações da Igreja Católica e do modelo econômico, atendendo ao que se propunha sob o ponto de vista das classes dominantes. Com a expulsão dos jesuítas e as reformas pombalinas em Portugal, assistimos ao desmantelamento completo da educação brasileira. O Brasil não é contemplado com as propostas que objetivavam a modernização do ensino pela introdução da filosofia moderna e das ciências da natureza, com o fim de acompanhar os progressos do século. Resta no Brasil, em termos de educação, as aulas régias para a formação mínima dos que iriam ser educados na Europa. A formação humanista, clássica e europeizante tem continuidade nas disciplinas isoladas, pois a maioria dos professores era composta por padres formados nas escolas jesuíticas. Podemos verificar, portanto, que, se a educação jesuítica foi restrita a uma elite, ela teve o mérito de constituir-se em um sistema educacional extremamente organizado, com objetivos, conteúdos e métodos compatíveis aos seus fins. Por isso, se para Portugal a laicização

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do ensino foi um avanço, para o Brasil, as reformas pombalinas significaram um retrocesso em termos de educação escolar. O currículo, de modo geral no período colonial, cumpriu seu objetivo à medida que, construído no modelo europeu, traduzia a concepção de mundo do colonizador, formando o dirigente para a manutenção da sociedade de acordo com seus interesses, especialmente os econômicos. Portanto, estender o ensino à maioria da população nunca interessou a aristocracia agrária, que via seu papel restrito à educação da elite. THE SYLLABUS IN BRAZIL COLONY: PROPOSAL TO AN ELITE EDUCATION Abstract: The purpose of this article is to synthesize the history of the official syllabus in Brazil at colonial period, which was characterized by economical agro exportation. The research includes aspects of Jesuits education in their two phases – the first was idealized by Nóbrega at heroic times (1549-1570); the second, was derivate by Jesuits authorities from Portugal and was characterized through Ratio Studorum – as well the educational reality presented at the colony from Pombalina Reform. The analyses of the research include bibliographic sources, the relation among Brazilian social, economical and political context, the educational proposal, and the official proposals of syllabus presented in this period. We can verify that Brazil social economical context is characterized by a mercantilist model, based on slave labor exploration, from a deep and without measure running down of the colony. According to this context, the education purpose was to introduce the colonization vision, where catechize and the elite education were the mainly objectives. The syllabus was organized based on European model, showed the conception of the colonizing world, which formed the managers to maintain a society according to their interests mainly economical. Key words: Brazil Colony. Society. Education. Syllabus.

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EDUCAÇÃO POPULAR RIZOMÁTICA: EDUCAÇÃO DAS MULTIPLICIDADES * Wilson da Silva Santos **

Resumo: O conceito de rizoma nos leva a pensar a Educação Popular como uma ação de n saberes, sensações e valores, cujos sujeitos elaboram e produzem representações de si mesmos sobre platôs. A reterritorialização do conceito de rizoma na Educação Popular funciona como agenciamento maquínico e como força propulsora para elucidá-la em suas multiplicidades segundo conexões produzidas nas mais diversas particularidades, em consonância com as experiências da prática social concreta, dentro da dimensão das linhas de fuga. Palavras-chave: Educação popular. Rizoma. Multiplicidades.

Apontamentos e aproximações da Filosofia deleuziana Multiplicidades. Decerto, esta é a expressão mais consentânea com que podemos alcunhar a filosofa deleuziana. Deleuze tipifica, pela heterogeneidade de domínio de diferentes áreas de conhecimento, não tão-só a filosofa, também as ciências, as artes e a literatura. A heterogeneidade de diversos campos do saber aduzido no pensamento * Trabalho realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). ** Mestrando em Educação Popular do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na Linha de Pesquisa Políticas Públicas e Práticas [email protected] Práxis Educacional

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filosófico de Deleuze tem um escopo, que é a ação criadora do filósofo, o exercício – ou atividade criativa – do pensamento. Não se refere a fazer filosofia sobre ciência, literatura ou arte, muito menos refletir sobre. A sua filosofa estabelece um liame próprio com outras esferas do saber não com a intenção de ratificá-las ou validá-las, e sim instituir reverberações, relações/reflexões recíprocas entre os distintos domínios segundo a definição da sua démarche. Esta démarche é o pensar criador, contrapondo-se à constituição e perpetuação de um metadiscurso filosófico que se incumbe de explicações totalizantes incomensuráveis e irrefutáveis, postulando para si o estatuir do conhecimento. Essa seja, talvez, uma de suas principais críticas à epistemologia de ser o poder coercitivo do conhecimento. De facto, o constructo do pensamento filosófico é que vai nortear o trabalho de Deleuze. Assim, a filosofia deve imergir na elaboração do novo, isto é, determinando-se, como exigência e reivindicação, na produção de um novo pensamento. Segundo Deleuze, a filosofia diferencia-se fundamentalmente de outros saberes, por ela ser a forma distintiva de criação e produção de “conceitos”. Ele atenta em congregar e relacionar arte, ciência e filosofia, observando a particularidade de criação de cada uma dessas áreas do saber, pois o objeto da ciência é criar funções, o da arte é criar conjunto de sensações integrado de percepto e afecto e o da filosofa, conceitos. O complexo de relações e encadeamentos, que Deleuze efetua entre conceitos, originários da filosofia, com a ciência e a arte/literatura, vai desencadear e sustentar o seu plano filosófico, o de criar conceitos novos. Um conceito é uma simbiose de elementos variados, mas ordenados por “zona de vizinhança”. A sua composição faz-se por componentes heterogêneos e inseparáveis, por conexões, identidades, agenciamentos, condensações de seus próprios componentes – conceituais e não conceituais (functivo, percepto, afecto) –, consubstanciando-se em novo conceito filosófico.1 É preciso salientar que todo conceito filosófico reporta-se a um problema, “a problemas 1 Uma análise mais acurada sobre o que é conceito encontra-se na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari: O que é Filosofia?

Educação popular rizomática: educação das multiplicidades

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sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução. Não se criam conceitos, a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 27-28). O projeto filosófico de Deleuze, que compreende a busca incessante da produção conceitual e do exercício do pensamento, privilegia alguns conceitos ou filósofos; de modo igual, prioriza elementos não conceituais na arte, na ciência e na literatura. A filosofia apresentada por Deleuze pretende constituir, sob forte influência de Nietzsche, uma genealogia do pensamento, especificamente a da filosofia marcada pela característica “geográfica de espaços opostos e assimétricos”, que se encerra na sua forma e conteúdo, entendida, à vista disso, como potência de surgimentos de conexões, associações, eixos, ligações, caminhos multiformes e multifacetados. Esta genealogia está entremeada e atravessada em toda sua construção filosófica, principalmente ao apresentar “espaços antagônicos” onde o pensamento filosófico é esquadrinhado e situado. A genealogia procura, então, assinalar dois tipos de filosofia, na sua constituição e acepção heterogêneses, em espaços antagônicos. Por isso, Deleuze instaura uma geografia do pensamento para desterritorializar e reterritorializar o pensamento filosófico, explorando sempre dois tipos de filosofia antagônicos. Como mencionado no parágrafo anterior, na démarche do seu pensamento filosófico, Deleuze prioriza e antefere filósofos e autores de outras esferas do saber – literatura, arte, ciências2 –, cujo objetivo é circunscrever um “espaço ideal” (não seria o rizoma-canal?), contrastando o diferenciativo e, em última análise, combatendo o espaço estampado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, Kant e Leibniz, considerados, pela história da filosofia, os arautos do pensamento oficial, estatal: a filosofia da representação ou o espaço da imagem do pensamento. Nietzsche, Espinosa, Lucrécio, Hume, Bergson e Foucault, na filosofia; Proust, Kafka, Kleist, Lenz, na literatura; Arquimedes, Demócrito, na Ciência. Para Deleuze, estes, entre outros, pulsam e energizam com movimentos intensivos, com força e potência intempestiva, que não se encontram nos axiomas impostos pela história da filosofia. 2

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Entrementes, Deleuze propõe uma filosofia da diferença, do desejo, do sentido, do trágico, plural, múltiplo, uma filosofia do ser, um espaço do pensamento sem imagem, influenciado eminentemente por Nietzsche,3 outrossim, à luz de filósofos que engendraram e exaltaram o pluralismo em filosofia – Espinosa, Hume, Bergson, Foucault, Epicuro, Lucrécio, os estóicos. A agregação desses filósofos, num só espaço de pensamento, dá-se pela possibilidade de estabelecer um agenciamento, uma relação e ressonância entre os conceitos construídos por estes, que insurgem contra uma imagem tradicional perfilada à filosofia e que pretendem patentear “o novo exercício do pensamento”.4 Portanto, em todos os seus escritos, Deleuze enraíza e perscruta a relação antagonique que calha entre dois espaços de pensamento: No curso de uma longa história, o Estado foi o modelo do livro e do pensamento: o logos, filósofo-rei, a transcendência da Idéia, a interioridade do conceito, a república dos espíritos, o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homem legislador e sujeito. É todo o pensamento que é devir, um duplo devir, em vez de ser um atributo de um sujeito e a representação de um todo. Um pensamento em luta com as forças externas em vez de estar recolhido em uma forma interior, operando por revezamento em vez de formar uma imagem, um pensamento-acontecimento, em vez de um pensamento-sujeito, um pensamento-problema, em vez de um pensamento-essência, um pensamento que apela para o povo. Um pensamento 3 A polaridade de espaços filosóficos tem como fulcro medular o antagonismo entre Platão e Nietzsche. A filosofia nietzschiana é a tentativa da reversão do platonismo, é a sublevação da filosofia da representação do Bem e da Verdade, do metafísico, do alto. 4 Essa relação entre os filósofos dá-se da forma de uma colagem: “Falar de colagem a respeito do pensamento filosófico significa dizer que o texto considerado é muitas vezes extraído de seu contexto, ou melhor, que os conceitos – considerados como objetos de um encontro, como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são utilizados como instrumentos, como técnicas, como operadores, independentemente das inter-relações conceituais próprias do sistema a que pertencem. Significa desembaraçar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema, um sistema aberto” (MACHADO, 1990, p. 16, grifo nosso). “Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 12). Poderíamos afirmar que os conceitos são desterritorializados em sua ambiência, com suas linhas de fuga, agenciamentos maquínicos, para reterritorializarem num novo plano de imanência, em novos territórios correlativos.

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nômade, um pensamento do de fora, a forma de exterioridade do pensamento, não é de modo algum, uma outra imagem que oporia à imagem inspirado no aparelho do Estado. É, ao contrário, a força que destrói a imagem e as cópias, o modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito – o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito hegeliano, etc. (DELEUZE; GUATTARI apud MACHADO, 1990, p. 14).

Evidencia-se, logo, consoante o que foi elencado por Machado, em citações do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, que Deleuze analisa a relação de espaços de pensamento opostos inconfundivelmente balizada por suas investigações noológicas: o espaço racional, modelar, dogmático, transcendente, árvore-raiz; e o espaço que é multiplicidade, plural, ontológico, intempestivo, rizoma-canal. Para empreender esta filosofia, Deleuze expressa como assertiva basilar a necessidade de partir de um caso. No plano de consistência ou da imanência, é requerido determinar-se na posição em que o pensamento principiou, aproximar-se ao máximo do movimento múltiplo de um caso singular. Daí, a filosofia de Deleuze ser concreta, pois concebe o conceito como a inesgotável variedade do concreto. Ela é concreta ao “assinalar os desenvolvimentos impessoais de uma potência local exigida a manifestar-se como pensamento pelos casos através dos quais a única voz do ser se faz ouvir na sua declinação múltipla” (BADIOU, 1997, p. 25). Igualmente, a sua filosofia é sistemática e, por conseguinte, abstrata. Sistemática, ao selecionar impulsos de um caso-de-pensamento, pertinente a uma plasticidade local, congruente com um impulso singular, no qual se desdobra num diferencial unímodo de potência. Abstrata, por agenciar vitalmente as relações entre os conceitos, conforme determinação dos casos diversos, ou das multiplicidades concretas dos casos. Desse modo, podemos dizer que Deleuze fundou ou sustentou um método? Em Diferença e Repetição, Deleuze urge em proceder a uma análise de um Ser único e não categorizado. “As coisas se desenrolam em toda a extensão de um Ser unívoco e não dividido”

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(DELEUZE, 1998, p. 54). Não se podem fracionar os entes para se chegar ao Ser do ente; o pensamento não deve perscrutar o Ser por um enquadramento imutável que o leve a divisões consecutivas, um partilhamento (aquinhoamento) das suas formas. O método deleuzeano recusa as mediações categoriais – sensível e inteligível, idéia e simulacro. Não é possível pensar por categorias ou representações mediatizadas; o “método filosófico” não autoriza a divisão do Ser por distribuições em tipos, grupos, classes: categoria. Nenhuma aproximação do seu movimento por recortes formais preliminares, por mais refinados que sejam. É preciso pensar juntas a univocidade do Ser. Sem mediação dos gêneros e das espécies, dos tipos ou dos emblemas, em suma: sem categorias, sem generalidades (BADIOU, 1997, p. 43-44).

A confutação dessa distribuição fundada no dualismo do Ser é mais explícita ao realçar que o movimento do pensamento só pode se manifestar com uma única voz, “uma só voz do ser que se refere a todos os seus modos, os mais diversos, os mais variados, os mais diferenciados” (DELEUZE, 1998, p. 53). Assim sendo, o método deleuzeano forma-se como pensamento intuitivo, enquanto pensamento sem mediação. Um movimento intuitivo que se diferencia da intuição cartesiana, principalmente. A intuição deleuziana constitui-se como método de insurreição nomádica do pensamento, a sua potência subversiva, provindo de um caso-depensamento, “um percurso atlético do pensamento”, uma multiplicidade extensiva, que não é uma apreensão imediata de uma idéia clara e distinta, um “golpe de vista da alma”, como quer Descartes; mas é uma criação complexa. Em consonância com o aludido, podemos afirmar que, distante dos envoltórios idealista, transcendental e contemplativo, a filosofia de Deleuze está voltada peremptoriamente à superfície e à profundidade, isto é, com minudência aos “acontecimentos-micro”, com a vivacidade do cotidiano, corporificada com profusão e potência de detalhes.

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É possível pensar e fazer a Educação Popular vislumbrada pelo Rizoma? A problemática da educação não foi a meta dos escritos de Deleuze. Mas, como pensar a educação, principalmente a Educação Popular (EP), tendo como interlocutor a filosofia deleuzeana? Trata-se de uma prática que envolve o pensar, ou melhor, o pensar criativo, o que tira toda intenção de apresentar soluções prontas, ou de dizer o que é bom ou ruim para esta educação e, muito menos, conceituar o que é Educação Popular. O desafio é exercitar o pensamento que nos leve a um processo, a um desencadeamento de multiplicidades e acontecimentos que a Educação Popular hoje engendra. Para que esse devir possa ser realizado, vamos analisar um dos conceitos de Deleuze, “o rizoma”, e como esse conceito pode nos levar a pensar a EP como instância que se caracteriza como ação dinâmica e criativa no seu cotidiano. Vamos desterritorializar o conceito de rizoma e reterritorializá-lo na educação. Este conceito será como um agenciamento maquínico e seus diferentes tipos para analisar a EP, e não como propulsor de uma verdade que deve ser firmada; deve elucidar as suas multiplicidades por meio de conexões produzidas nas suas linhas de fuga. O conceito de “rizoma” é apresentado por Deleuze e Guattari na introdução do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Em todo o capítulo introdutório, os autores contrapõem a imagem de rizoma à imagem-modelo da arbórea. O rizoma perverte: A ordem da metáfora arbórea, tomando como imagem aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre os vários saberes particulares, representados cada um deles pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto. Diferente da árvore, a imagem do rizoma não se presta nem a uma hierarquização nem a ser tomada como paradigma, pois nunca há um rizoma,

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mas rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado, paralisa o pensamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamento (GALLO, 2003, p. 93, grifo nosso).

Dessa maneira, o rizoma opera por redes de conexões e de heterogeneidade. Um ponto qualquer de um rizoma pode ser conectado a outro ponto qualquer; o que é diferente da árvore-raiz, que fixa determinado ponto a partir de uma unidade principal, pivô, funcionando como unidade hierárquica. Em um rizoma, o encadeamento de fenômenos sociais é conectado nas relações políticas, econômicas, sociais, culturais, etc., que funciona no agenciamento maquínico. Um rizoma, como movimentos subterrâneos, não pára de fazer conexão com o conjunto de organizações de poder, por exemplo, que aponta às artes, às ciências, às lutas sociais e que concentra ações muito diversas numa realidade heterogênea. Também, a rede das multiplicidades atravessa todo fluxo rizomático. As multiplicidades são essencialmente rizomáticas, pois nos rizomas existem apenas dimensões, grandezas, determinações que, ao se expandirem, mudam de natureza. O crescimento dessas dimensões, nas multiplicidades, é provocado por um agenciamento; à medida que suas conexões aumentam, a sua natureza se modifica. Estas conexões são realizadas por linhas de fuga, desterritorialização que, por sua vez, transformam de natureza quando se conectam com outras. Há mudanças, modificações e transformações constantes, ou seja, há multiplicidades intempestivas, devires. Num rizoma, existem somente linhas com dimensões múltiplas, e nunca pontos, posições numa estrutura-arbórea hierárquica, unidade-pivô ou sistema fechado que, a partir do qual, ramificam suas folhas e galhos, tendo somente a comunicação com seu superior hierárquico; os canais de transmissão são preestabelecidos. É preciso ressaltar que as multiplicidades rizomáticas são asignificantes. Qualquer rizoma engloba “linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 18); mas

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também encerra linhas de fuga, de desterritorialização, que fazendo sempre ruptura, alongando, variando, com muitas dimensões e com múltiplas linhas de entrada, ligando os movimentos desterritorializados. Por isso, o rizoma é uma cartografia; visto que o mapa é aberto, possibilita a conexão com suas n dimensões, “desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22). Numa perspectiva rizomática, a EP pode ser concebida como campo de saberes, um campo entremeado pelas multiplicidades. Multiplicidades marcadas pelas concepções de mundo, pela produção do conhecimento, do saber popular, das formas de aprender, dos interesses, dos anseios, das percepções, dos desejos, das construções criativas e das necessidades dos sujeitos envolvidos e que subjazem em todo seu processo. Pensar “rizomaticamente” a EP é tentar desnudar essas multiplicidades que fazem interconexões e que são produzidas cotidianamente, que entram em movimento com linhas de fuga e intensidades, com velocidades muito diferentes, movimentos de desterritorialização. Como em qualquer fenômeno social, na EP, temos linhas de segmentaridade, de estratificação, que levam a sistemas centrados, de comunicação hierárquica e conexões preestabelecidas; mas, há linhas de fuga, de desterritorialização, com dimensões díspares cujas multiplicidades se transformam, mudando de natureza. Ela não é feita de unidades fechadas, e sim de dimensões máximas, de caminhos movediços, de todo tipo de devir. Nesse sentido, a EP rizomática é uma imbricação de ações educativas, de produção de conhecimento, de cultura, que se desenvolve nas mais diversas particularidades, envolvendo a sociedade, a educação, os saberes e as culturas, as aprendizagens populares, em ressonância com “princípios” e experiências da prática social concreta, na dimensão de um sistema aberto. Portanto, visa à transformação do existente a partir do próprio existente, para daí gerar o novo. A Educação Popular, vista como um rizoma, passa a ser um agenciamento. Agenciamento coletivo que se faz de acordo com o fluxo

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do cotidiano, da subjetividade/subjetivação, do concreto, do social, que ligados fazem multiplicidades ininterruptas sobre platôs.5 Dessa maneira, é uma máquina de resistência a todo sistema centrado. Define-se como sistema a-centrado, cadeias de autômatos finitos, nas quais as relações de saberes, de experiências, de conhecimentos, de práticas educativas, na dimensão popular ou no “plano de imanência popular”, se conectam a um ponto qualquer com outro ponto qualquer, “nos quais os indivíduos são todos intercambiáveis, de maneira que as operações locais se coordenam e o resultado final global se sincroniza independente de uma instância central” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 27). Estando de acordo com esta idéia, a Educação Popular está na esfera da micropolítica, que acontece nas ações cotidianas, construindo agenciamentos maquínicos de desejo. Não busca a totalidade, não almeja modelos, soluções acabadas e dogmáticas; o seu objetivo é fazer rizoma, conexões, que procedem por variações, expansões de saberes, de conhecimentos e de expressões; um exercício de produção de multiplicidades de saberes. Fazer EP é fazer multiplicidades, é criar. Realizar conexões e novas conexões, levando a surgir novas multiplicidades, novas experiências, que, por conseguinte, potencializam e promovem uma educação que busca exercer ações socioculturais ramificadas nas micro-relações, agindo para consolidar a fecundidade dos atos cotidianos. A perspectiva rizomática para EP é pertinente, na medida em que impulsiona intensidades, resguarda, pulveriza e encadeia as diferenças de saberes, desenvolvendo entre si a construção das multicompreensões. É feita numa região contínua de vibrações e intensidades que possibilita a conexão com n dimensões dos campos dos saberes, como mapa com suas múltiplas entradas e saídas. Está Para Deleuze e Guattari (1995, p. 33), “um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs”. Eles designam platô “como algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior”. É o campo das forças de subjetivação que nas suas intensidades consideram os múltiplos, pois não existe instância determinante, causa primeira, mas redes e traços de intensidades que vão fazendo contigüidades subjetivas.

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voltada então à superfície e à profundidade, isto é, com a preocupação – atenção – aos acontecimentos-micro, com a vivacidade do cotidiano, “corporificada com profusão e potência de detalhes”. Uma não-conclusão A EP, analisada rizomaticamente, é desferir a devires improváveis, a uma lógica dos múltiplos singulares dos n saberes, sensações, valores, etc. Será uma EP ontológica? Certamente uma EP da ação, do ato, contra toda representação instituída, cujos sujeitos elaboram, produzem representações de si mesmos sobre platôs. Pensar EP dessa forma é fazer ruptura, tramar a nossa própria existência, é aprender/reaprender, é desafiar. Por isso, este exíguo texto não pode concluir, acabar, pois um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser. O rizoma é unicamente aliança. Buscar um começo implica uma falsa concepção da viagem e do movimento. Kleist, Lens ou Büchner têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar. O meio é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).

Acredito que fazer EP rizomática é um dos nossos grandes desafios hoje. Sendo assim, conclamo a todos que: Façam rizoma e não raiz, nunca plantem! Não semeiem, piquem! Não sejam nem uno nem múltiplo, sejam multiplicidades! Façam a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Sejam rápidos, mesmo parados! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga [...]. Tenham idéias curtas. Façam mapas, nunca fotos nem desenhos. Sejam a Pantera cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36).

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RHIZOME POPULAR EDUCATION: EDUCATION OF MULTIPLICITIES Abstract: The concept of rhizome leads us to think of popular education as an action of n knowledges, sensations and values, whose persons mix and produce representations of themselves over plateaus. The reterritorialization of the concept of rhizome in popular education works as machine-agent and as pulsing power in order to elucidate it in its multiplicites through conections produced in several peculiarities, according to concret social behavior experiences, within scape lines dimension. Key words: Popular education. Rhizome. Multiplicites.

Referências Bibliográficas BADIOU, A. Deleuze – o clamor do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1. ______. O que é Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 1998. GALLO, Sílvio. Deleuze & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Coleção Pensadores & Educação, v. 3). GARCIA, Pedro Benjamim et al. O pêndulo das ideologias: a educação popular e o desafio da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. MACHADO, Roberto. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990. SCOCUGLIA, Afonso C.; NETO, José F. (Org.) Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.

CRIANÇAS PEQUENAS EM VITÓRIA DA CONQUISTA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO FORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL Ana Lucia Castilhano *

Resumo: Este texto apresenta minha pesquisa de doutorado, em andamento, a qual trata de crianças de zero a quatro anos que estão fora da Educação Infantil em um bairro pobre do município de Vitória da Conquista, BA. Tratase de um trabalho que parte do interior da Educação Infantil, como campo de estudos da demanda não atendida por vagas na rede de atendimento pública à criança pequena, procurando chegar à infância vivida pela criança pobre que não é alcançada pela educação. Até o momento, foi realizado um levantamento da demanda por creches e pré-escolas na cidade de Vitória da Conquista e houve a entrada em campo para observação da vida diária das crianças em suas casas, abordando como vivem e que atividades realizam em seu ambiente. Este conhecimento privilegiará o contato para conhecer as práticas das crianças no seu dia-a-dia, como brincadeiras e atividades em geral,

* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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buscando o registro da infância da criança pequena fora da instituição de Educação Infantil. Palavras-chave: Criança. Infância. Educação Infantil. Demanda.

Introdução Minha pesquisa de doutorado, em andamento, é sobre as crianças de zero a quatro anos que estão fora da Educação Infantil em um bairro do município de Vitória da Conquista, BA. Trata-se de um trabalho que parte do interior da Educação Infantil como campo de estudos, diante da problemática da demanda não atendida por vagas na rede de atendimento pública à criança pequena, procurando chegar à infância vivida pela criança pobre que não é alcançada pela educação. Até o momento foi realizado um levantamento sobre a demanda por creches e pré-escolas na cidade de Vitória da Conquista. A etapa seguinte será um estudo etnográfico em um bairro para conhecer uma parcela da população de crianças que não é alcançada pelas políticas públicas e pelas instituições educacionais, com descrição e análise das crianças pobres de zero a quatro anos que não freqüentam a Educação Infantil, abordando como vivem e que atividades realizam em seu ambiente. Este conhecimento privilegiará o contato para conhecer as práticas das crianças no seu dia-a-dia, como brincadeiras e atividades em geral, buscando o registro da infância da criança pequena fora da instituição de Educação Infantil. Em geral, a produção científica sobre crianças menores de seis anos se concentra em trabalhos sobre Educação Infantil, estando, portanto, em evidência, uma criança institucionalizada, com características que refletem a política para Educação Infantil em vigor no país. A produção exterior a este campo de pesquisa se concentra na psicologia e, recentemente, na sociologia da infância. A proposta de revisão bibliográfica para esta pesquisa partiu dos textos de educação da criança de zero a seis anos. Conforme dito anteriormente, daí foi detectada a lacuna de conhecimento e o início da construção do campo de pesquisa.

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A apresentação da temática parte da questão da demanda não atendida por Educação Infantil, nas instituições municipais de todo o país, o que levanta uma série de preocupações políticas em termos das ações e programas voltados à criança pequena, passando por problemas de orçamento e organização dos setores governamentais (BARRETO, 2003; GUIMARÃES; PINTO, 2001; MONTEIRO, 2004; CAMPOS, 1999; PASSETTI, 2000, ROSSETTI-FERREIRA, 2002). Uma outra preocupação se refere à demanda propriamente dita. A este respeito há estudos recentes que abordam tanto a discussão política, incluindo a importância de levantar dados sobre as crianças que estão fora do contexto das creches e pré-escolas no país (KAPPEL; C ARVALHO ; K RAMER , 2001), como o lado das famílias (M OTA ; ALBUQUERQUE, 2002). O diálogo com a produção na área da Educação Infantil se baseia nos trabalhos discutidos na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), por se tratar de um veículo de produção e síntese do pensamento educacional brasileiro há 28 anos. Do universo de trabalhos do GT 7 da Anped, apenas 3,5% tratam da criança pequena fora do espaço da instituição educacional. Destes, 1,5% tratam especificamente da demanda para a Educação Infantil (FULLGRAF, 2001; 2002; MOTA; ALBUQUERQUE, 2002). Como discussão dos resultados encontrados, pode-se colocar o tema da demanda como recente no GT 7, ainda que, nos textos sobre políticas públicas, os autores façam menção ao problema. Em relação ao conceito de criança fora da escola, os textos selecionados confirmam a utilização da escola como paradigma para compreensão das crianças e dos espaços extra-escolares (como shopping center ou brinquedoteca). Este, assim como o tema da demanda, é assunto que deve ser discutido de forma mais sistematizada, inclusive na Anped, que é um espaço fundamental para entendimento da trajetória e de temas pertinentes à educação no Brasil. Objetivos

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Esta pesquisa, então, toma como ponto de partida a questão da demanda por vagas na Educação Infantil, mas se estende para o campo da infância que não foi alcançada pelas políticas públicas. Esta é a especificidade pretendida do trabalho. Procurar ir além da questão da demanda (ela própria um objeto de pesquisa pouco explorado), para falar de uma possibilidade de infância como muitas que há neste país. Evidentemente, a intenção não é buscar uma generalização, cabendo, em vez disso, um preparo e uma discussão que é metodológica e conceitual. Neste texto, pretendo mostrar um panorama geral da pesquisa no seu estado atual; pontuar os principais conceitos relacionados ao objeto de estudo em questão; e, finalmente, apresentar alguns direcionamentos metodológicos já organizados. Em razão da natureza do objeto de pesquisa (crianças residentes em um bairro periférico em Vitória da Conquista), um dos primeiros procedimentos para a concretização do projeto foi um levantamento bibliográfico sobre pobreza. O objetivo era operacionalizar os conceitos e localizar a questão da pobreza em meio à discussão da infância e das políticas publicas em Educação Infantil. Este levantamento bibliográfico possibilitou uma compreensão significativa das variáveis econômicas e políticas implicadas na questão da infância e do atendimento à criança pequena. No entanto, apesar de enveredar por diversos estudos que abordam a questão do conceito e ações sociais e políticas para a constituição e erradicação da pobreza (ALENCAR, 2004; HAHNER, 1993; MAGALHÃES, 1994; MONTEIRO, 2004; PENN, 2002), a opção foi não categorizar, a fim de “limpar o terreno”, na tentativa de chegar às pessoas sem rótulos anteriores. Joan Scott (1998) propõe uma recusa ao essencialismo como forma de desnaturalizar as categorias e possibilitar o desvendar de seu processo de construção considerado como histórico sempre. Em sua concepção, as categorias são mutáveis, assim como as possibilidades de pensar as pessoas. No caso das crianças e suas famílias, procura-se abrir espaço para compreender a sua diversidade em meio à

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normatividade social. Sobre a questão da categorização da criança pequena e de sua família neste estudo, procuram-se formas de prescindir do conceito de pobreza na sua abordagem, mesmo que seja necessário rever esta decisão. Acreditamos que isso facilite tanto a entrada em campo, como a possibilidade de despir, no pesquisador, alguns conceitos prévios sobre o tipo de infância que as crianças levam nos bairros periféricos. Marisa Peirano (2002, p. 18), falando em favor da etnografia, alerta para o fato de que “é importante, então, reter a idéia de que as observações são realizadas não só para descrever o curioso, o exótico, ou o diferente por si mesmos (pelo natural interesse que despertam), mas, também e principalmente, para universalizá-los”. Então, não se trata de procurar o que há de diferente na criança que está fora da Educação Infantil, assim como nas práticas de suas famílias. Trata-se de registrar o seu modo de vida, sua visão da educação e do mundo. Como exemplo deste tipo de proposta, podemos citar o trabalho coordenado por José de Souza Martins (1991), O Massacre dos Inocentes. Este livro reuniu sete estudos sobre a vida e a situação das crianças consideradas “sem infância” no Brasil. Os relatos dos pesquisadores apresentam visões das crianças sobre a situação de suas famílias, de seu futuro, de sua relação com a escola, em um contexto de vida onde, muitas vezes, o trabalho infantil se sobrepõe às necessidades de ir para a escola. Consideramos como principal pressuposto que orienta a realização desta pesquisa a idéia de infância como uma categoria construída historicamente, e sobre a qual se “construiu um conjunto de representações sociais para a qual se estruturam dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social própria” (SARMENTO; PINTO, 1997). Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004, p. 17) compreendem a infância como “a concepção ou a representação que os adultos fazem sobre o período inicial de vida, ou como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida”. Então, ao

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falar da história da infância, está-se falando da história das relações entre crianças e entre crianças e adultos, uma história de adultos que se relaciona com essa classe de idade (crianças). Trata-se de uma história que não é narrada na primeira pessoa, mas por um conceito arbitrário do que é infância, dentro de várias possibilidades, contextos e variáveis. Assim, A infância é um discurso histórico cuja significação está consignada ao seu contexto e às variáveis de contexto que o definem. Semelhantes contextos são de natureza econômica, social, política, cultural, demográfica, pedagógica, etc. É indispensável discernir quais dessas variáveis são de fato atuantes em cada conjuntura e são, conseqüentemente, pertinentes na delimitação do território em causa (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 29).

Por esta e por razões de aproximação metodológica com a antropologia, nos amparamos na discussão da sociologia da infância a fim de dialogar sobre que criança e que infância estão em jogo nesta proposta. Na definição de Manuel Sarmento (2005, p. 363), a sociologia da infância: Propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vista que toma as crianças como objeto de investigação sociológica por direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento não apenas sobre a infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada.

Sendo assim, o principal esforço teórico da sociologia da infância é organizar uma mudança de perspectiva, de paradigma, uma vez que as interpretações da ciência moderna predominaram por tematizar as crianças como em estado de transitoriedade, de dependência. A proposta da sociologia da infância é, então, considerar a alteridade da infância como elemento da realidade, partindo de uma análise das crianças como atores sociais, sem os limites interpretativos da ciência (SARMENTO, 2005). Estes limites certamente ultrapassam a questão metodológica (bastante discutida pelos pesquisadores da infância na atualidade), mais dramática

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ainda no caso das pesquisas com crianças pequenas, por conta da necessidade de encontrar formas de comunicação para além da linguagem falada. Metodologias que se propõem a deixar a criança “falar” por si, dar a sua contribuição, a sua visão de mundo, são propostas recentes e ainda em construção. São exemplos os trabalhos de William Corsaro (2005), Cléopâtre Montandon (2005), Priscilla Alderson (2005). No Brasil, podem-se citar os trabalhos de Patrícia Dias Prado (1998), Márcia Gobbi (2002), Jucirema Quinteiro (2002), dentre outros. Metodologia Aos poucos, os estudos sobre a criança atingem metas conceituais e necessidades metodológicas de dar conta dos múltiplos contextos nos quais ela se insere. Com a alteração, nas duas últimas décadas, da abordagem do objeto de pesquisa criança, indivíduo que possui uma determinada infância, o campo de estudos no Brasil tem se organizado para tentar traçar rumos conforme a diversidade de temas, de tipos de vida das crianças brasileiras, algumas com condições de vida muito aquém do aceitável. Um problema identificado no estudo da infância ainda é a dificuldade dos pesquisadores de trabalhar em uma perspectiva teórica que dê conta de seus objetos (QUINTEIRO, 2002). A problemática para o trabalho com a criança pequena ou para compreender e registrar a visão de mundo das crianças certamente não se resume à questão metodológica. Há uma questão de fundo, epistemológica, relativa ao próprio pensamento iluminista que tem determinado, ao longo de praticamente quatro séculos, que idéias são legítimas ou não; que tipo de linguagem e pensamento pode ser considerado aceitável, compreensível ou não. As crianças e outras categorias “marginais” (do ponto de vista da racionalidade) foram criadas e mantidas no rastro deste processo de composição de uma sociedade que criou instituições específicas para normatizar a linguagem e o pensamento das pessoas (FOUCAULT, 1998). Com o Iluminismo, um tipo de racionalidade foi eleito em detrimento de outras possibilidades.

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Somente esta, gerada pelo controle do corpo e pela disciplina do pensamento, é considerada legítima. Então, uma vez eleita esta racionalidade como ideal, a modernidade organizou uma série de mecanismos para incluir todos nesta lógica, as crianças em especial, porque se descobriu a infância como fase de transição para a vida adulta. Entra aí a escola como instituição que tem em seu alicerce a idéia da formação de um adulto, um determinado tipo de adulto, o “normal” (WARDE, 1997). A escola é discutida por muitos autores como a instituição de base deste processo de constituição de um pensamento racional, iluminista. Carlota Boto (2002, p. 14) organizou um texto cujo objetivo foi “procurar vestígios da construção da categoria aluno como a grande referência de compreensão da criança construída pela modernidade”. Neste trabalho, a autora apresenta uma reflexão sobre a idéia de civilidade, o impacto das letras (leitura) e as regras da escola como pontos fundamentais na formação das categorias infância, criança e aluno. Colin Heywood (2004) considera a infância e a criança como constructos sociais enganosamente simples. Para o autor, há um processo de influência mútua entre o novo paradigma das ciências sociais e a historiografia da infância (encabeçada por Ariès) que é positivo. Este diálogo pode desenvolver possibilidades novas no estudo da infância de modo a ultrapassar os obstáculos encontrados nas pesquisas com crianças. Tais obstáculos viriam de uma concepção de criança como imatura e irracional, em um mundo que é absolutamente contrário a isso. Claude Javeau (2005, p. 379) propõe, para o incremento do estudo da infância, a definição de “campos semânticos” nas ciências sociais, “capazes de alimentar e aceitar a emergência de objetos de pesquisa específicos”. Neste processo, os apuramentos conceituais e as provas empíricas (de qualquer natureza), alimentariam o percurso heurístico do campo de estudos da infância. Mariza Peirano (2002, p. 22) afirma que “a antropologia não se reproduz como ciência normal de paradigmas estabelecidos, mas por uma determinada maneira de vincular teoria e pesquisa, de modo a favorecer novas descobertas”. Neste sentido, o contato do pesquisador com seu campo pode se

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mostrar como um encontro de diferenças e semelhanças, em que “nossas diferenças são constituídas às avessas”. Para a autora, tratase de perguntar qual a nossa especificidade, em que somos peculiares e o que nos separa ou distingue. Quinteiro (2002, p. 26), que considera os métodos etnográficos “particularmente úteis para o estudo da infância”, chama a atenção para a necessidade de os pesquisadores problematizarem os dados e descreverem os elementos constitutivos do processo de “recolher” a voz da criança. Da mesma forma, a discussão dos dados sobre a criança, ainda mais diante das mudanças anunciadas na metodologia, tem sido algo cada vez mais complicado, em razão da dificuldade teórica para a sua explicação. A psicologia já não parece adequada para transitar por muitos assuntos referentes à criança, ainda mais quando a proposta é abordar as múltiplas crianças e infâncias possíveis.1 Então, trata-se de estudar a criança em outro ambiente que não a escola, na verdade, em seu ambiente de vida, anterior à instituição normativa educacional. Ainda que se possa atribuir à Educação Infantil a função de inserir a criança em um mundo de convivência com outras crianças, de aprendizado sobre sua própria vida, com investimento das políticas públicas para a infância em respeito aos seus direitos (KRAMER, 2003), há um aspecto de normalização sobre o que significa ser criança, sobre a idéia de uma infância comum, que contradiz o que existe na realidade: crianças com múltiplas possibilidades e arranjos econômicos e familiares, com formas inusitadas (para quem não as conhece) de mobilidade geográfica, expectativas de vida que podem diferir daquilo que a escola prega como ideal. De qualquer maneira, estaremos falando de um tipo de criança brasileira, em um contexto mais amplo de construção do objeto infância pelo esforço dos pesquisadores para falar dele em suas pesquisas. Conforme já foi dito anteriormente, esta é uma aproximação com a proposta da sociologia da infância que ganha ares no Brasil já com resultados publicados na Anped e em periódicos nacionais. Há A respeito do vínculo histórico da psicologia com a educação e a criança aprendiz na escola, ver o texto de Mirian Jorge Warde (1997). 1

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trabalhos que relatam, dentro da escola, a opinião das crianças sobre a sua instituição (MÜLLER, 2003; REIS, 2002; OLIVEIRA, 2001) e que entram no campo dos trabalhos que procuram levantar as “vozes” das crianças. Há também pesquisas que relatam lugares freqüentados por crianças e expõe os modos de brincar, assim como a organização que lhe é oferecida nesses espaços (shopping center, brinquedotecas são os principais). Nestes casos, embora não haja um contato estreito entre o pesquisador e a criança, a observação pode trazer um conteúdo da realidade infantil que pode ser útil para compreender um pouco do cotidiano da criança em meio a um mundo governado por adultos. Discussão A pesquisa possui duas fases. A primeira delas, praticamente concluída, compreende o levantamento dos dados das crianças pequenas de Vitória da Conquista e das creches públicas (municipais e conveniadas) que atendem a uma parcela delas. Diante da falta de informações sobre a questão é que se torna necessário nos deter na situação de demanda dos bairros que possuem creche, a fim de compreender um pouco a relação desta instituição com as famílias, com a política de atendimento à criança pequena. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) divulga em seu site na Internet o documento intitulado “Desafios do Plano Nacional de Educação”, no qual considera a Educação Infantil como um dos maiores desafios do Plano Nacional de Educação (PNE), uma vez que propõe elevar de 756 mil, para 4,3 milhões, o número de crianças atendidas em creches no país até a ano de 2011. Na pré-escola, o atendimento, que atualmente ultrapassa 3,9 milhões de crianças, deverá chegar a 7,2 milhões. A respeito das políticas públicas para a criança pequena, em geral, o quadro apontado é o mesmo: a evolução da legislação (Constituição de 1988, LDB de 1996, principalmente) está em contraponto com a dificuldade de operacionalização dos programas e ações voltados para

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esta faixa etária, seja por questões orçamentárias, seja por divisão de objetivos entre os setores governamentais. Barreto (2003, p. 59) chama a atenção para a quase ausência da criança de zero a seis anos na política educacional do governo federal. Tal ausência é percebida, por exemplo, “no Plano Plurianual 2000-2003, em que a educação infantil não apresenta sequer o status de programa, ao contrário dos outros níveis de ensino e, até mesmo, das modalidades de ensino”. Vitória da Conquista se localiza no Centro-Sul baiano, possui uma população de 262.494 pessoas no censo de 2001, com estimativa para o ano de 2004 de 281.684 pessoas (dados do IBGE). A renda per capita média do município era de R$ 204, 90 em 2000, com uma proporção de pobres de 41,8% (ATLAS..., 2005). O acesso da população aos serviços básicos cresceu nos últimos 10 anos, tendo a porcentagem de domicílios urbanos com água encanada aumentado de 61,3% em 1991, para 74,7% em 2000. A de energia elétrica de 87,3% em 1991, para 93,7 em 2000; e de coleta de lixo de 81,0% para 94,4% no mesmo período. Os especialistas no estudo e discussão da pobreza concordam que não é apenas o acesso da criança à alimentação que determina ou afeta o seu desenvolvimento, mas, certamente, as condições de higiene e saneamento. Esta preocupação está presente nos textos que tratam do assunto. De acordo com Monteiro (2004, p. 88), o risco de desnutrição no país está ligado também à cobertura de serviços públicos de saúde, educação e saneamento, além da renda. Daí, a desvantagem histórica das regiões Norte e Nordeste. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M)2 de Vitória da Conquista em 2000 era de 0,708. De acordo com avaliação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o município é considerado como região de médio desenvolvimento (IDH entre 0,5 e 0,8), ocupando um lugar médio quando em comparação com os demais municípios do país (51% deles em melhor posição, contra 48% em pior ou igual situação). Comparando Vitória da Publicado em 1998, o índice é organizado segundo as dimensões de renda, educação, infância, habitação e longevidade da população. Disponível em: . 2

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Conquista com outros municípios do Estado da Bahia, sua posição é a 18ª, sendo considerados, entre os de melhor situação, 4,1% do total de municípios, contra 95,5% em situação igual ou pior. A população de zero a quatro anos no município de Vitória da Conquista em 2001 era de 25.195 crianças, das quais 20.304 com idades de zero a três anos e 4.891 com quatro anos. Dados do Inep (2004) informam que foram efetuadas 5.749 matrículas no ensino pré-escolar: 244 na rede pública estadual; 1.382 na rede pública municipal, e a grande maioria no ensino privado, com 4.123 matrículas. As 5.749 matrículas no ensino pré-escolar se distribuem em duas instituições estaduais, 32 municipais e 104 pré-escolas do ensino privado. Pode-se chegar facilmente ao cálculo de 19.446 crianças de zero a quatro anos que não foram matriculadas em instituições de Educação Infantil, sejam elas creches ou pré-escolas. Em porcentagens, teremos (de acordo com dados do IBGE de 2003): 40% das crianças de zero a seis anos que são atendidas pela Educação Infantil têm 6 anos, e somente 15% estão na faixa de zero a três anos. Assim, este é um dos motivos para a escolha da faixa etária de zero a quatro anos como população para este projeto de pesquisa, uma vez que são as crianças que, de acordo com os dados, estão fora da instituição educacional. De acordo com informação da Secretaria de Desenvolvimento Social de Vitória da Conquista, as creches municipais e conveniadas atendem hoje a 2.558 crianças,3 em um total de nove creches conveniadas e nove creches municipais. Destas creches, somente uma presta atendimento a crianças menores de dois anos, contando com um berçário com cerca de quinze crianças de um ano. Então, pode-se dizer que praticamente todo o atendimento público no município de Vitória da Conquista é voltado para crianças na faixa de dois a seis anos. A idade limite também varia de acordo com a creche, e, em geral, de acordo com as relações desta com a escola próxima, que recebe a criança, muitas vezes ainda na pré-escola.

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Dados informados no mês de setembro de 2005.

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Em Vitória da Conquista, as creches estão sob a jurisdição da Secretaria de Desenvolvimento Social. Como há pré-escolas que funcionam em escolas do Ensino Fundamental, e outras que funcionam em creches, há também uma clara divisão de metas, objetivos e metodologias. Esta situação é comum em todo o país, e não atende à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que determina o uso do nome creche para as instituições que recebem crianças e zero a três anos e pré-escola para aquelas de quatro a seis anos, ambas como parte da chamada Educação Infantil. Este fato gera dificuldades para realizar uma análise mais detalhada uma vez que não se associa o tipo de educação, de trabalho realizado, à idade da criança. (KAPPEL ; CARVALHO; KRAMER, 2001). Da mesma forma, o que em um determinado texto pode ser referente à creche, em outro pode ser atribuído à préescola ou mesmo ao Ensino Fundamental, uma vez que é comum matricular crianças de cinco anos neste nível de ensino. Guimarães e Pinto (2001, p. 96) também levantam a questão da nomenclatura e sugerem a sua regularização. Segundo eles, “não há porque se manter o uso de expressões para identificar, de forma diferenciada, o que está definido na legislação”. Em um estudo na cidade de Vitória da Conquista sobre as políticas públicas para a Educação Infantil, Brandão (2004) demonstrou que não há dados sobre a demanda de vagas para esta etapa da Educação Básica, assim como sobre o número de crianças em idade de zero a cinco anos que estão fora das instituições de atendimento à criança pequena. No entanto, este não é um problema específico desta administração ou da região. Os dados a respeito dessas crianças são obscuros de um canto a outro do país, uma vez que as Secretarias de Educação não procuram identificar a demanda, ou atribuem esta função ao governo estadual, federal, entre outras instâncias. Guimarães e Pinto (2001) afirmam que, justamente nas regiões mais pobres do país, a responsabilização dos municípios pelo Ensino Fundamental avançou. Segundo os autores, a Constituição de 1988 não torna os municípios os únicos responsáveis pelo atendimento ao Ensino Fundamental e à

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Educação Infantil. O Art. 211 fala em colaboração entre a União, os Estados e os Municípios para garantir o direito à educação. Quanto à situação da demanda, nem todas as creches mantêm listas de espera, e muitas desconhecem a demanda, além de constatarem que “é grande”. A principal razão declarada para desistirem da lista de espera é a dificuldade para lidar com a frustração das comunidades e da própria creche.4 Algumas diretoras mantêm suas listas guardadas ou tentam segui-las na atribuição de vagas quando há alguma criança desistente. Há variação de idades no fluxo da demanda por bairro. Em alguns, a maior demanda é para crianças de quatro anos. Em outros, a demanda significativa é para crianças de dois anos e assim por diante. Seria interessante um levantamento das razões para estas diferenças, que podem variar, desde a dificuldade de encontrar quem fique em casa com crianças de quatro anos,5 até mesmo as necessidades das mães de filhos de dois anos de retornarem ao trabalho depois da maternidade. Este estudo não será feito nesta proposta de pesquisa. As informações sobre demanda foram valiosas na composição de um quadro para definir o bairro a ser estudado no trabalho etnográfico. A próxima etapa será a entrada em campo com as crianças de um bairro para o levantamento das informações sobre sua infância. SMALL CHILDREN IN VITÓRIA DA CONQUISTA: WORKING OUT OF THE CHILD SCHOOL Abstract: This paper presents discussing about infants and children that are not inside child education institutions. These children belong to a poor place in Vitória da Conquista-BA. This is a discuss that comes from inside of child education as a study field about non attending demand for public assist, until shows a kind of infancy living by poor children which are not assisted by government programs. The methodology used includes a studying about demand for child care and child education. Includes also notes of a Dados levantados em entrevistas com diretoras de creches municipais e conveniadas. Segundo uma das diretoras, esta seria a principal razão para a demanda por vagas para crianças de quatro anos (sua creche possui quatro turmas desta idade): a dificuldade das avós de “darem conta” de crianças mais velhas, que já saem sozinhas e buscam “novidades” na vizinhança, se afastando de casa. 4 5

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methodology of research field observing children daily lives in their homes showing how they live and what activities they can do in their environment. This kind of knowledge intents to favor the contact to know about the practice of children in their lives, like playing games, searching for some mark of small children infancy that is out of child education. Key Words: Child. Infancy. Child Education. Demand.

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EDUCAÇÃO DO CAMPO: ALFABETIZAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS ASSENTADAS NO SUDOESTE DA BAHIA Silvia Regina Marques Jardim * Sidiney Alves Costa **

Resumo: O trabalho avalia resultados parciais da implantação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) por meio do projeto “Alfabetização e Escolarização de Pessoas Jovens e Adultas em áreas de Assentamento da Região Sudoeste da Bahia”. Dos trabalhadores rurais assentados na Região Sudoeste da Bahia, 1.080 estão sendo alfabetizados e 1.125 estão cursando o 1º Segmento do Ensino Fundamental (de 1ª a 4ª série). A metodologia de acompanhamento e avaliação do projeto contempla visitas às áreas, conversas com educadores, educandos e coordenadores locais e reuniões pedagógicas com líderes de movimentos sociais que participam do Programa, professores capacitadores e coordenações pedagógicas. O Pronera é um programa importante para a Educação do Campo, já que vem contribuindo para erradicação do analfabetismo em áreas de assentamento e elevação da escolaridade de jovens e adultos assentados. Este projeto amplia as práticas de cidadania e atende ao direito constitucional desses jovens e adultos à educação. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Educação do Campo. Pronera. * Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. **Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).Professor Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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Introdução Este trabalho faz uma análise da implantação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) na região Sudoeste da Bahia e tem como foco o projeto “Reforma Agrária e Educação: Alfabetização e Escolarização de Jovens e Adultos Assentados no Sudoeste da Bahia”, que está em execução desde fevereiro de 2005 e se estende até janeiro de 2006, com objetivo central de alfabetizar 1.165 assentados(as) e promover a escolarização (1ª a 4ª série do Ensino Fundamental) de 1.125 educandos(as) dessa mesma região. O Pronera atende a projetos de educação de jovens e adultos das áreas de assentamentos de reforma agrária e é desenvolvido no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), sob responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por meio de parceria entre o Governo Federal, as instituições de ensino superior e os movimentos sociais ligados à luta pela reforma agrária. Situa-se numa linha de continuidade do trabalho de extensão desenvolvido pela Uesb e visa orientar práticas pedagógicas e capacitar educadores(as) para o Ensino Fundamental em áreas da reforma agrária do Sudoeste da Bahia. A parceria para a realização desse projeto envolve a Uesb, como entidade executora, o Incra, entidade asseguradora, e os movimentos sociais: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag) e Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD). A análise, portanto, está voltada para o processo de alfabetização e escolarização de pessoas jovens e adultas assentadas nessa região e atendidas pelo projeto, buscando refletir sobre os resultados do desenvolvimento do projeto com base na avaliação das ações executadas até o momento. A motivação para a execução do projeto em estudo se encontra na necessidade de oferecer, de forma ampla e com qualidade, Educação de Jovens e Adultos (EJA), observando as diretrizes do Pronera, a Lei

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de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo e as contribuições educacionais dos movimentos sociais. A relevância política da atuação do projeto pode ser evidenciada de muitas maneiras, mas basta mencionar que a região Nordeste tem a maior taxa de analfabetismo do país, sendo a população rural a que apresenta mais dificuldades de acesso à educação, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostras Domiciliares (Pnads), apontados no Mapa do Analfabetismo no Brasil (INEP, 2003). A zona rural nordestina registrava índice de analfabetismo absoluto de 42,6% – considera-se analfabeto absoluto o indivíduo que não sabe ler e escrever um bilhete simples –, o que demonstra a importância política e pedagógica em amenizar ou, até mesmo, zerar esse número, visto que, historicamente, o funcionamento da educação no campo apresenta quadro de precariedade em razão de fatores diversos, como formação profissional e infra-estrutura inadequadas, por exemplo. Outras motivações podem ser apontadas, tais como: estimular pesquisas que promovam a ampliação e a socialização do conhecimento sobre o campo; integrar universidade e assentamentos em teorias e práticas que contemplem o desenvolvimento sustentável do campo; pesquisar e/ou adequar material didático-pedagógico para o desenvolvimento do programa; estimular, nos assentamentos, uma cultura de que a educação é direito de todos e que sempre é tempo de ensinar e de aprender; aprofundar metodologias com base em vivências geradoras; aprimorar práticas que respeitem o jeito de aprender de cada tempo da vida; promover a alfabetização de jovens e adultos(as) assentados(as) que não tiveram esta oportunidade; complementar a escolaridade e oportunizar a formação continuada; construir processos interativos de produção do saber, valorizando a diversidade cultural, política e social; desenvolver ações ligadas à formação humana considerando os diferentes saberes produzidos no contexto social dos/ as educandos/as; certificar os que tiverem sucesso no programa, segundo legislação educacional.

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Fundamentação teórica O projeto “Reforma Agrária e Educação: alfabetização e escolarização de jovens e adultos assentados no Sudoeste da Bahia” tem como referencial teórico os pressupostos de Educação Popular de Paulo Freire. Em vista disso, sentimos a importância de pensar a educação de pessoas jovens e adultas de forma ampla. Reflexões nos levaram a perceber a relevância das discussões deste conceito, como é enunciado pela “V Conferência Internacional de Educação de Adultos” realizada em Hamburgo, Alemanha, em 1997: Por educação de adultos entende-se o conjunto de processos de aprendizagem, formais ou não formais, graças aos quais as pessoas cujo entorno social considera adultos desenvolvem suas capacidades, enriquecem seus conhecimentos e melhoram suas competências técnicas ou profissionais ou as reorientam a fim de atender suas próprias necessidades e as da sociedade. A educação de adultos compreende a educação formal e permanente, a educação não formal e toda a gama de oportunidades de educação informal e ocasional existentes em uma sociedade educativa e multicultural, na qual se reconhecem os enfoques teóricos baseados na prática (DECLARAÇÃO DE HAMBURGO, Art. 3º apud DI PIERRO, 2000, p. 27).

Este conceito é coerente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, artigo 1º, que estende a abrangência da educação aos “processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (DI PIERRO, 2000). Assim, a educação de pessoas jovens e adultas refere-se aos processos educativos que visam à satisfação das necessidades educacionais e que atendem aos objetivos da Educação Básica enunciados no Artigo 22 da LDB: “[...] desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Nessa definição, a Educação Básica compreende não só

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processos de formação geral, mas a eles articula e integra um conjunto heterogêneo de práticas de formação profissional e qualificação para o trabalho (BRASIL, 2002). Outra perspectiva adotada na execução do projeto diz respeito à compreensão da multiplicidade de aprendizados produzidos e socializados entre os(as) trabalhadores(as) estudantes, universidades e movimentos sociais. A educação que resulta desta interação mostra novos modos de perceber o conhecimento como resultado de um conjunto de idéias, valores, teorias e métodos, cujo objetivo está em pensar o papel da escola nos processos de ensino-aprendizagem. Em relação ao currículo e à metodologia adotados no desenvolvimento do projeto, foi priorizada uma proposta de Educação do Campo, na qual o sentido da educação está em valorizar as experiências e os objetivos de vida dos sujeitos do campo e reconhecer o trabalhador rural como sujeito que dialoga com distintos universos simbólicos e culturais. Por isso foram aprofundados referenciais que abordam as interações com a realidade dos trabalhadores, que adentram o seu cotidiano, ou seja, que entendam a realidade como ponto de articulação e reflexão da diversidade de experiências vivenciadas pelas comunidades rurais. Neste sentido, as ações pedagógicas foram centradas na identidade histórica dos trabalhadores do campo, cujas raízes se encontram na agricultura familiar, na cultura, na experiência dos sujeitos do campo, fatores que contribuem para estruturar e fortalecer o ambiente educacional no campo (CALDART, 2000; ARROYO, 2000; COSTA, 2002; 2004). 3 Metodologia Realizamos o acompanhamento das atividades por meio de visitas às áreas de assentamento e de reuniões pedagógicas entre a coordenação pedagógica geral, a coordenação administrativa, as coordenações específicas, os coordenadores locais e representantes dos setores de educação dos movimentos. Os registros dos acompanhamentos foram feitos em diários de campo, fotografias, entrevistas, questionários e conversas informais.

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As visitas realizadas durante o período compreendido entre 1° de agosto de 2005 e 10 de outubro de 2005 abarcaram 20 escolas de assentamentos, num total de 25 turmas, nos municípios de Vitória da Conquista, Barra do Choça, Jaguaquara, Candiba, Poções, Encruzilhada, Itambé e Santa Inês. As visitas foram planejadas, de modo sistemático, e contaram com a colaboração dos coordenadores locais responsáveis pelo setor de educação de cada movimento. Nas conversas informais com os/as educandos/as e educadoras (quase todos eram mulheres; apenas dois homens), o objetivo foi estabelecer um ambiente de interação. Elas estiveram voltadas, basicamente, para um trabalho de fortalecimento da auto-estima, tanto dos educandos, quanto dos educadores, e de estímulos para que os primeiros não desistissem (evadissem) das aulas. Consideramos este um momento importante, em razão dos altos índices de evasão nos projetos de educação de pessoas jovens e adultas e na educação rural, uma realidade constatada nos estudos não somente sobre a Bahia, independente da política pública desenvolvida (DI PIERRO; HADDAD, 2000). Com as visitas, buscamos identificar, ainda, o tipo de relação entre os educandos participantes, as condições do assentamento e de ensino (infra-estruturais e pedagógicas), bem como a relação dos educandos e educadores com o próprio Pronera. Ou seja: procuramos ouvir o que os sujeitos tinham a dizer sobre a implantação do Programa para, assim, podermos fomentar a reflexão sobre a Educação do Campo. Durante as visitas, foram distribuídos questionários para educadores e coordenadores a fim de colhermos dados e termos subsídios que pudessem contribuir para o cumprimento dos objetivos e das metas prescritas no projeto. O questionário foi não apenas distribuído ao público visitado, como também enviado a educandos, educadores e coordenadores que não foram contemplados com as visitas. Este instrumento compôs-se de duas (2) questões fechadas e quatorze (14) abertas, de modo que esses sujeitos, com o questionário em mão e um tempo hábil maior para responder, pudessem refletir sobre o programa, e os dados aí obtidos pudessem ser confrontados

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com as conversas informais ocorridas durante as visitas, buscando identificar melhorias a serem realizadas no projeto. O processo de formação pedagógica, caracterizado como “formação em serviço”, dos agentes alfabetizadores e educadores do Pronera está em andamento, mas já foram realizadas duas etapas de desenvolvimento educacional, contemplando uma dinâmica que combina três momentos de trabalho intenso realizados na Uesb. A primeira, em fevereiro de 2005, e a segunda no mês de outubro. A terceira etapa está programada para ser realizada junto a cada um dos movimentos participantes do projeto (MTD, MST, Fetag), em ambientes indicados pelos próprios movimentos. Os momentos reservados à capacitação adquirem uma importância crucial para reflexão e orientação da prática pedagógica vivenciada em cada sala de aula, em cada turma, em cada assentamento. Resultados Os primeiros resultados da implantação do projeto permitem vislumbrar o reconhecimento, por parte dos trabalhadores, do papel estratégico dos saberes relacionados à leitura e escrita como condição ao exercício da cidadania. Os assentados afirmam que o programa é útil por possibilitar o aprendizado da escrita e da leitura, “melhorar a vida”, o que demonstra a valorização dessas habilidades pela população jovem e adulta das comunidades rurais. O domínio da leitura e da escrita significa, para eles, superar o estigma de não serem reconhecidos socialmente como cidadãos. Possui um sentido de conquista de um status social, ilustrado pela possibilidade de ler e assinar documentos importantes e realizar ações consideradas corriqueiras, como escrever uma carta para um ente querido ou ter autonomia para pegar um ônibus. As falas dos educandos enfatizam a importância dos processos de ensino e aprendizagem no contexto de educação de pessoas jovens e adultas do meio rural, os quais não devem ser fruto de projetos que tenham apenas caráter compensatório ou que sejam norteados por uma

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prática escolar tradicional e urbanocentrada (COSTA, 2002). Estes projetos devem-se constituir em processos dinâmicos voltados para a multiplicidade de experiências e vivências que compõem o cotidiano dos trabalhadores-estudantes, a fim de que estes tenham instrumentos para refletir e construir novas possibilidades de uma vida melhor. A execução parcial do projeto permite estimar a repercussão das atividades desenvolvidas, destacando-se sua relevância em função do número de educandos/as, alfabetizandos/as, educadores/as, monitores/as, coordenadores locais, professores e profissionais da universidade que participam e atuam no projeto. Os resultados constituem estímulo a educadores(as) e educandos(as) à consciência de que a formação fortalece a cidadania, mas a sua manutenção e ampliação, na atualidade, devem ser um processo constante. A existência do programa propicia a busca pela melhoria da infra-estrutura das salas de aulas, a ampliação do número de escolas, o atendimento a novas áreas de assentamento ou acampamentos, a diversificação do material didático e o estímulo a freqüentar a escola, pela sua proximidade do assentamento. O grau de abrangência do projeto, apesar de não atender a todos que necessitam dessa formação, é considerável uma vez que estão sendo contemplados: 16 (dezesseis) assentamentos e 2 (dois) acampamentos, distribuídos em 6 (seis) municípios da Região Sudoeste da Bahia, com 14 (quatorze) turmas de alfabetização, cada uma delas com 20 (vinte) alunos, e 24 (vinte e quatro) turmas de escolarização de 1º segmento, cada uma com 25 (vinte e cinco) educandos(as) indicados pelo MST; 8 (oito) assentamentos e 6 (seis) acampamentos, espalhados por 12 (doze) municípios com 32 (trinta e duas) turmas de alfabetização, cada uma com 20 (vinte) alunos, e 17 (dezessete) turmas de escolarização de 1º segmento indicados pela Fetag; 8 (oito) turmas de alfabetização e 4 (quatro) turmas de escolarização, demandas apresentadas pelo MTD apenas para o município de Vitória da Conquista. Portanto, estão sendo beneficiados, ao todo: 1080 alfabetizandos(as), distribuídos em 54 turmas com 20 alunos, e 1125 educandos na escolarização de 1º segmento, divididos em 45 turmas com 25 educandos.

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Os obstáculos que encontramos, até o presente momento, estão sendo superados de forma a não causar grandes prejuízos à execução do projeto. Alguns, entretanto, devem ser analisados não só para a melhoria deste projeto em andamento, mas para projetos que possam vir a atuar em áreas de assentamento de reforma agrária. A infra-estrutura das salas de aula é a principal dificuldade na execução das ações. Percebemos, nas visitas, que algumas salas possuem iluminação precária, prejudicando o bom aproveitamento das aulas. Muitos educandos têm problemas de visão (miopia, astigmatismo, catarata etc.) e não têm acompanhamento médico ou recursos para adquirir óculos. Outra dificuldade é o fato de que as ações do Pronera não contemplam merenda escolar, entendida como atividade importante no processo de aprendizado, já que muitos destes educandos estudam à noite, logo após suas atividades na terra, não tendo tempo, portanto, de se alimentarem antes das atividades escolares. A merenda, segundo educandos e educadores, também auxilia no processo de aprendizagem, pois propicia um “despertar” do sono, adquirido no dia de trabalho intenso no campo. Os materiais didáticos não têm sido suficientes para as atividades, embora a sua aquisição seja contemplada pelo Pronera. Os assentamentos estão localizados em lugares distantes e, na maioria das vezes, os educadores não dispõem de recursos didáticos importantes, como material de apoio, material de consumo e material permanente. Considerações finais Nossas considerações reafirmam o interesse e as práticas participativas do Pronera na promoção de uma educação do campo que promova mudanças educacionais atreladas a diretrizes de desenvolvimento sustentável do campo. Entendemos que essa educação deve acontecer numa perspectiva de emancipação e transformação social, o que exige a construção de novos procedimentos e nova relação epistemológica com o conhecer e com o conhecimento. Trata-se,

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portanto, de compreender a inter-relação existente entre conhecimento e ação no contexto político, econômico e cultural da reforma agrária. Os resultados, ainda que parciais, da implantação do projeto “Reforma Agrária e Educação: Alfabetização e Escolarização de Jovens e Adultos Assentados no Sudoeste da Bahia” demonstram o reconhecimento, por parte dos trabalhadores, do papel estratégico dos saberes relacionados à leitura e escrita na sociedade atual. Ter o domínio da leitura e da escrita significa status e, ao mesmo tempo, condições de realizar ações corriqueiras que envolvem essas práticas. Constatamos que as expectativas e os horizontes de aprendizagens estão se concretizando para que a população assentada possa vir a ter instrumentos de reflexão e construção de novas possibilidades de vida na multiplicidade de experiências e vivências que compõem o seu cotidiano. É saliente considerar a importância do Pronera que, ao pensar a Educação do Campo de forma integrada, não despreza a necessidade de contínua formação dos alfabetizadores, educadores, coordenadores e dos próprios educandos. Por isso, convém destacar o papel da formação pedagógica dos agentes alfabetizadores e educadores do Pronera, “formação em serviço”. A realização do Pronera tem atingido os objetivos propostos de promover, estimular e refletir sobre as políticas e ações dos movimentos sociais do campo, dos poderes públicos e da universidade, no que se refere à educação de pessoas jovens e adultas. Dessa forma, o projeto demonstra, até o momento, que os objetivos estão sendo alcançados e que a metodologia adotada mostrou-se eficiente. Observamos que o Pronera, entendido como suplementar às políticas públicas na área de Educação, e a parceria desenvolvida, no presente projeto, entre o MDA/Incra, o Pronera, a Uesb e os movimentos sociais (MST, Fetag e MTD) vem mostrando resultados relevantes, pois muitas pessoas jovens e adultas assentadas estão tendo oportunidade de exercer seu direito constitucional à educação e de ampliar suas oportunidades de praticar sua cidadania.

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Por isso, a importância pedagógica em desenvolver um projeto como este está na possibilidade de oportunizar o acesso à escola no campo. Outro fator pedagógico importante é o fortalecimento da Educação do Campo, desenvolvida por meio do estudo sistematizado das “Diretrizes Operacionais de Educação Básica do Campo” e das teorias de Educação Popular, bem como teorias que ressaltam a educação como processo de formação humana. Assim, elevar o patamar de escolarização e a permanente qualificação, em todos os níveis, no meio rural, passa a ser um desafio pedagógico central. EDUCATION OF THE FIELD: LITERACY AND BASIC SCHOOLING OF YOUTH AND ADULTS IN THE BAHIA SOUTHWEST Abstract: This paper makes some considerations about the National Program of Education in the Agrarian Reform (Pronera) through the project “Literacy and youth and adults schooling in areas of Establishment of the Bahia Southwest “. Of the rural workers seated in the Bahia Southwest, 1.080 are being alphabetized and 1.125 are studying the 1st Segment of the Fundamental Teaching (from 1st to 4th series). The accompaniment methodology and evaluation of the project contemplates visits to the areas, chats with educators, students and local coordinators and pedagogic meetings with leaders of social movements that participate in the Program, teachers trainers and pedagogic coordinations. As a result of the work developed until the moment, it can be affirmed that Pronera is an important program for the Education of the Field, because it contributes to democratizing opportunities for literacy, basic schooling and continued education. Key words: Youth and adults schooling. Education of the Field. Pronera.

Referências Bibliográficas ARROYO, Miguel G.; FERNANDES, Bernardo Monçano. A educação básica e o movimento social do campo. Brasília, DF: Articulação Nacional por uma Educação Básica do Campo, v. 2, 1999. (Coleção por uma Educação Básica do Campo). ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre. Petrópolis: Vozes, 2000. BOGO, Ademar. A vez dos valores. São Paulo: MST, 1998.

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JARDIM, Silvia Regina Marques. Educação do Campo: perspectivas e metodologias de intervenção. In: CONGRESSO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 3., 2005. Vitória da Conquista: Secretaria Municipal de Educação, 2005. Mimeografado. KOLLING, Edgar J. NERY, I. R. MOLINA, M. C. (Org.). Por uma educação básica do campo (memória). Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1999. (Coleção por uma Educação Básica do Campo, v. 1). WHITAKER, Dulce C. A. Sociologia rural: questões metodológicas emergentes. Presidente Wenceslau, SP: Letras à Margem; CNPq, 2002.

DOSSIÊ TEMÁTICO: Fontes Documentais para a História da Educação

DOSSIÊ TEMÁTICO:

Fontes Documentais para a História da Educação

FONTES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Antonietta d´Aguiar Nunes *

Resumo: O trabalho começa ressaltando o grande desenvolvimento que a História da Educação tem tido no Brasil nos últimos 40 anos, em razão, sobretudo, das pesquisas originadas em cursos de pós-graduação em educação. Por esta razão, torna-se importante discutir a questão de Fontes para História da Educação. Relaciona alguns trabalhos que já o fizeram e passa a conceituar o que seja fonte, fonte histórica, segundo vários historiadores, e fala da sua classificação em primárias e secundárias. Passa então a tratar das fontes para a História da Educação, entendendo educação no sentido amplo e não apenas a instrução formalizada em instituições escolares. Relaciona especificamente as possíveis fontes documentais escolares. Em seguida, mostra como o pesquisador constrói suas próprias fontes, de acordo com o problema estudado, que podem, depois de encerrada sua pesquisa, ser custodiadas por alguma instituição que as ponha à disposição de outros pesquisadores. Conclui dizendo que o historiador da educação precisa também conscientizar administradores, professores, funcionários da educação para a importância de preservar e organizar a documentação referente a assuntos instrucionais, para que se possa no futuro dispor de fontes fidedignas para a História da Educação. Palavras-chave: Fontes históricas. História da Educação. Fontes documentais escolares. Construção de fontes. * Doutora em Educação pela Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Historiógrafa do Arquivo Público da Bahia. E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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Introdução A História da Educação é um ramo da ciência histórica que muito tem se desenvolvido nos últimos 40 anos, sobretudo por interesse dos educadores que se formaram nos programas de pós-graduação em vários pontos do país. Os historiadores originalmente não costumavam tomar a educação como um objeto específico de estudo, como se pode constatar em obras que, coletivamente, davam conta dos avanços em História: as mais antigas sobre metodologia da pesquisa histórica como a de Bauer – Introducción al estúdio de la Historia (1957); de Samaran – L´Histoire et ses méthodes (1967); ou de Rodrigues – Teoria da História do Brasil (1978), e mesmo as obras mais recentes, que ampliam o campo de estudo da História, como a de Le Goff e Pierre Nora – História: Novos Objetos (1976); de Ciro F. Cardoso e Ronaldo Vainfas – Domínios da História (1997). Todas elas, ao mencionarem os vários ramos da História “esqueceram” da História da Educação. Nas últimas três a quatro décadas, porém, desde o surgimento, em 1972, dos cursos de pós-graduação em educação, que se têm desenvolvido pesquisas nesta área: na Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação (Anped), desde 1984 se reúne anualmente o Grupo de Trabalho História da Educação onde são expostos os trabalhos recentes dos professores; em 1986, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), se organizou o Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR), que realiza anualmente seminários, também, com apresentação de comunicações livres; na reunião da Anped em 1999, foi fundada a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) que, desde 2000, vem fazendo congressos bianuais (CBHE), com participação crescente de professores de História da Educação de todo o país.1 1 O primeiro Congresso aconteceu no Rio de Janeiro em 2000, seguido de Natal, Rio Grande do Norte, em 2002, e Curitiba, Paraná, em 2004, devendo o IV realizar-se em Goiânia, Goiás, de 5 a 8 de novembro de 2006.

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Só mais recentemente a Associação Nacional de Professores Universitários de História (Anpuh) incluiu, entre seus grupos de trabalho, o de Ensino de História e Educação e, no seu XXIII Simpósio Nacional de História (SNH), realizado em julho de 2005 em Londrina, Paraná, foram incluídos dois Simpósios Temáticos referentes especificamente à História da Educação: História e Historiografia da Educação no Brasil: Desafios e Perspectivas de Pesquisa, coordenado por Thaís Nívia de Lima e Fonseca; e A Educação e a Formação da Sociedade Brasileira, coordenado por Wenceslau Gonçalves Neto e Carlos Henrique de Carvalho. Além destes, outros cinco seminários temáticos no XXIII SNH tinham relação com o tema: História e Ensino – Saberes e práticas; Ensino de História e Novas Tecnologias: Um Olhar Reflexivo; Ensinos de História: Balanço e Perspectivas; História da Família – Novas Perspectivas e Novos Desafios e A Criança na História do Brasil: Abordagens e Perspectivas. Torna-se então importante fazer uma discussão sobre Fontes para a História da Educação, assunto que já vem preocupando os estudiosos em várias de suas reuniões, seminários, simpósios e congressos, existindo, inclusive, publicações sobre o tema, tais como: Faria Filho (1999, 2000, este último enfatizando as novas tecnologias); Tavares (2001, 2002); Lombardi e Nascimento (2004); Gondra (2005); Gatti Jr. e Inácio Filho (2005). Muitos foram os artigos publicados sobre o assunto, genérica ou especificamente: Nunes (1992) sobre o valor histórico do documento; Sousa (1999) sobre textos literários como fontes alternativas; Giglio (2000) sobre impressos operários; Hébrard (2001) sobre cadernos escolares; Chartier (2002) sobre cadernos e fichários da escola primária; Peres (2002) sobre o silêncio das fontes, questões étnico-raciais; Wissenbach (2002) sobre cartas, procurações, escapulários, patuás; Galvão e Batista (2003) sobre manuais escolares; Silva (2003) sobre manuais pedagógicos; Becchi (2004) sobre biografias e autobiografias; Fernandes (2004) sobre registros da História; Hébrard (2004) sobre bibliotecas escolares; Hilsdorf e Vidal (2004) sobre o centro de Memória

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da Educação da Universidade de São Paulo (USP); Vecchia (2004) sobre planos de estudo; Vilela et al. (2004) sobre periódicos; Viñao (2004) sobre relatos autobiográficos de professores; Buffa (2005) sobre plantas arquitetônicas de prédios escolares; Lopes (2005) sobre arquivos do Instituto de Educação; Lucca (2005) sobre periódicos; Nunes e Carvalho (2005) sobre fontes para a História da Educação, e Veiga (2005) sobre produção infantil na instrução elementar. E existe mesmo um livro completo cujo tema específico são as Fontes Históricas: Pinsky (2005). Conceituando termos “Fonte”, segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Morais Silva (1949-1959, p. 271, v. 5), vem do latim fonte e significa nascente de água que irrompe perenemente no solo. Mas, como toda palavra polissêmica, tem outros significados: chafariz, bica por onde corre a água ou tudo que se lhe assemelha; causa, princípio de onde provêm efeitos tanto físicos como morais; o texto original de uma obra; ponto de onde alguma coisa dimana, ... O Vocabulário Jurídico de Silva (1987, p. 311, v. 2) também afirma vir a palavra fonte do latim fons (nascente, manancial) e diz que, no sentido legal, “fonte”, considerada como nascente de água, não somente se refere às águas que surgem ou brotam naturalmente, como às que vêm à superfície trazidas pelo engenho humano (fonte captada, feita artificialmente; também chafariz). Mais adiante, no relativamente longo verbete tratando de fontes, ele menciona: Fonte. Seguindo seu próprio sentido etimológico, origem, procedência, é empregado para indicar tudo de onde procede alguma coisa, onde ela se funda e tira razão de ser, ou todo fato que dá nascimento a outro. Com este sentido, o texto original diz-se fonte. E se diz fonte para o costume ou o uso que faz gerar a regra jurídica (SILVA ,1987, p. 311, v. 2).

O historiador alemão Ernst Bernheim (1937, p. 101), em seu clássico Introdução ao Estudo da História, quando fala da

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metodologia da História tem todo um capítulo sobre Heurística (Conhecimento das Fontes). Nesta obra ele define: Llamase fuentes al material de donde se derivan los conocimientos de nuestra ciência. Este material no es preferentemente, como sucede com casi todas las otras ciências, el objeto directo e inmediato de nuestro conocimiento, ya que tal objeto son los hechos o actos humanos, los cuales tan solo en parte muy pequeña pueden ser presenciada por los coetaneos, debiendo conocer la mayor parte de los sucesos solo por las informaciones de los demás. Las informaciones y descripciones de lo pasado por médio de la narración oral o escrita o por la imagen, constituyen nuestra segunda fuente de conocimento. Uma tercera fuente son los restos de lo pasado, de los cuales deducimos los hechos que los han causado u creado Se vê, pues, que no solo son distintos los materiales, sino que também son muy distintas las maneras con que de ellos hemos de lograr nuestros conocimentos, o sea que son muy distintos los métodos con que debemos tratar las fuentes segun su peculiar condición, y por todo ello es de suma importância comprender bien el carácter de cada fuente.

E José Honório Rodrigues (1978, p. 234), no capítulo sobre Fontes Históricas da sua obra Teoria da História do Brasil, afirma que, embora o trabalho histórico se inicie com a pesquisa dos meios de conhecimento que são as fontes, [...] apenas uma parte da pesquisa histórica se inicia e termina com o exame crítico das fontes. Seguem-se, então, os trabalhos de interpretação e de composição. Deste modo, o objeto da história não só é a caça e a descoberta do documento, que é unicamente um meio de conhecimento, mas a reconstituição histórica baseada em documentos autênticos e fidedignos. Aqui entra outro elemento, a crítica das fontes, que procura garantir que sejam autênticas (tenham sido realmente produzidas na época que se está estudando) e fidedignas (sejam seguras e dignas de confiança).

O historiador português Joaquim Veríssimo Serrão, em capítulo sobre Fontes Históricas (1968, p. 57-68), que tem como primeiro subtítulo “Do fato à fonte histórica”, se pergunta: Como se passou da

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concepção tradicional de “documento” para o moderno sentido de “fontes históricas?”. Mostra, no item seguinte sobre a concepção tradicional de documentos, a divisão de fontes históricas conforme o valor dos documentos, feita desde a obra de Bernheim: Haveria, assim a distinguir duas espécies de fontes: 1º os Vestígios, os traços deixados pelo homem, não com o fim expresso de fornecer aos vindouros quaisquer informes do passado, mas que ficaram esquecidos na marcha do tempo. A vida passou, deixando memória dela: colunas, achas, dentes, ossos, desenhos, moedas. Trata-se de valiosos dados de infor mação, sobretudo para a fase que antecedeu o aparecimento da escrita. 2º os Testemunhos, fontes que encerram notícias do passado e que foram erguidas para que as gerações futuras pudessem estudar a presença do homem no palco da História (SERRÂO, 1968, p. 59).

No capítulo intitulado “A História se faz com documentos”, Henri Marrou ([196-], p. 63) lembra, porém, que os documentos conservados não são sempre (a experiência sugere quase que se escreva: não são nunca) aqueles que nós gostaríamos que seria bom que fossem. Ou não os há, ou não chegam..., ou – por outro lado – são demasiados, como no caso da história contemporânea (p. 64), razão pela qual o historiador precisará se assenhorear dos documentos existentes e, para isto, deverá não somente saber colocar o problema como, ao mesmo tempo, elaborar melhor um programa prático de pesquisas que permita encontrar, fazer surgir os documentos mais numerosos, mais seguros, mais reveladores (MARROU, [196-], p. 65). Mais adiante em sua obra, Serrão (1968) – falando da concepção moderna de documento, que a nova metodologia da ciência histórica compreende na sua mais larga acepção, isto é, como fontes históricas – cita os clássicos historiadores franceses: Henri Marrou, Charles Samaran e Lucien Febvre e suas definições de documento e fontes. Transcreve um trecho de Febvre mostrando como ele se opõe à concepção de uma história feita apenas com textos escritos, como a conceberam historiadores anteriores como Fustel de Coulanges, Benedetto Croce ou Louis Halphen,

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L´histoire se fait avec des documents écrits, sans doute, quand il y en a. Mais elle peut se faire, elle doit se faire avec tout ce que l´ingeniosité de l´historien peu lui permettre d´utiliser pour fabriquer son miel, à défaut des fleurs usuelles. Donc, avec des mots. Des signes. Des paysages et des tuiles. Des formes de champ et de mauvaises herbes. Des eclipses de lune et des colliers d´attelage. Des expertises de pierres par des géologues et des analyses d´épees em metal par des chimistes. D´un mot, avec tout ce qui, étant à l´homme, dépend de l´homme, sert à l´homme, exprime l´homme, signifie la présence, l´activité, les goûts et les façons d´être de l´homme (FEBVRE, 1965, p. 428).2

Vemos aqui um conceito bem amplo do que seja fonte histórica: tudo o que possa nos dar algum tipo de informação sobre a atividade humana que estamos estudando. É mais largo ainda do que o foram vestígios e testemunhos. E mais, agora a responsabilidade passa para o historiador. É ele que, com sua engenhosidade, construirá suas fontes. Mesmo quando existem documentos escritos, e o historiador lança mão deles, o faz de forma própria, original. Michel de Certeau (1982, p. 81), no seu também já clássico A Escrita da História, tratando do estabelecimento das fontes ou da redistribuição do espaço, afirma: Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a “coleção”. [...] Longe de aceitar os “dados”, ele os constitui. O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente. A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas ela pode se fazer, ela deve se fazer, sem documentos escritos, se eles não existem. Com tudo o que a engenhosidade do historiador possa lhe permitir utilizar para fabricar seu mel, na falta das flores usuais. Então, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com as formas do campo e com as ervas daninhas. Com eclipses de lua e coleiras de atrelar cavalos. Com pareceres de peritos geólogos sobre pedras e analises de espadas de metal feita pelos químicos. Em uma palavra, com tudo o que, sendo do homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as formas de ser do homem. 2

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As fontes podem ainda ser classificadas em primárias, ou originais, quando se acessa por primeira vez uma determinada informação ou quando se recorre a documentos originais e autênticos; e secundárias, ou de segunda mão, a que se tem acesso mediante outra obra, autor ou pessoa, como quando se faz a revisão de literatura sobre o assunto que se quer estudar e se apreendem várias informações que, até então, se desconheciam ou que são pouco divulgadas e conhecidas, mas que são corretas pelo procedimento científico do autor que as revelou. Em geral, os documentos custodiados em arquivos ou nas seções de manuscritos das bibliotecas são considerados fontes primárias, mas os que já estão publicados ou que são transcritos em obras de algum outro autor, escritor ou historiador, são considerados fontes secundárias. Com base nestas definições é que procuraremos sugerir as fontes possíveis para a História da Educação. Fontes para a História da Educação Considerar-se-á aqui educação em seu sentido também amplo, não abrangendo apenas a instrução formalizada em instituições escolares, mas toda a socialização do indivíduo no meio socioeconômico-político em que ele vai viver e atuar, ou mesmo a sua preparação para as atividades de trabalho que deverá desempenhar. Num sentido geral, podemos considerar educação como sendo: L´éducation est l´ensemble des actions et des influences exercées volontairement par um être humain sur um autre être humain, em príncipe par um adulte sur um jeune, et orientée vers um but qui consiste em la formation dans l´être jeune des dispositions de toute espèce correspondant aux fins auxquelles, parevenu à maturité, il est destiné (HUBERT apud ÉTÈVÉ, 1998, p. 342).3 3 A Educação é o conjunto de ações e de influências exercidas voluntariamente por um ser humano sobre um outro ser humano, em princípio por um adulto sobre um jovem, e orientada para um fim que consiste na formação no ser jovem de disposições de vária espécie, correspondentes aos fins aos quais, advinda a maturidade, ele está destinado (HUBERT, apud ÉTÈVÈ,1998, p.342).

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Além disto, é preciso levar em conta que, em cada grupo social, existem formas diferentes de atuação dos seres humanos entre si, de modo que a cada tipo de sociedade corresponde um tipo de educação que lhe é peculiar. Se adotamos o conceito mais amplo visto em Febvre, tudo pode servir de fonte para a História da Educação, desde que o historiador saiba o que quer pesquisar, estabeleça adequadamente o seu problema de estudo e exercite a sua imaginação cogitando tudo ou todas as coisas que poderiam direta ou indiretamente fornecer informações que o ajudem a esclarecer as dúvidas que tem sobre o tema ou assunto que está investigando. Em primeiro lugar, é preciso, portanto, situar com precisão o seu problema ou as suas questões de pesquisa, delimitar o locus geográfico em que ele vai ser estudado e o período de tempo que será considerado, para então poder passar para o arrolamento de quais poderiam ser as possíveis fontes de informação que ajudariam a esclarecer a questão. Depois, uma ampla pesquisa bibliográfica, ou revisão da literatura, levantando tudo o que se possa encontrar, que já tenha sido estudado, pesquisado ou escrito sobre o tema, o local e o tempo do que se pesquisa. Aqui usaremos amplamente o que se chama de fontes secundárias, ou seja, aquelas produzidas por outros pesquisadores ou estudiosos anteriores que, utilizando as fontes de que dispunham, resolveram escrever sobre o assunto. Também outra fonte importante são os dados estatísticos colhidos por fontes oficiais. Sabemos que, em 1872, foi feito um censo demográfico no Brasil, seguido de outros, na República, agora decenais. São úteis fontes de informação sobre a população, por sexo, cor, faixa etária, grau de escolaridade, etc. Em seguida, estudar em profundidade este mesmo espaço e tempo que foram delimitados, fazendo uma contextualização histórica, na qual se estudará a específica questão de pesquisa. Dependendo de qual seja o problema, um estudo mais detalhado da geografia do lugar e das transformações aí ocorridas, pela intervenção humana, já pode

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ajudar a esclarecer alguns pontos do problema. Aí precisaríamos certamente de um mapa detalhado do local, do assessoramento de geógrafos que nos expliquem os acidentes, a intervenção da chamada geografia humana no lugar, a urbanização, demografia, etc. Também nesta fase é importante localizar edifícios relacionados com o tema em estudo: prédios escolares atuais ou antigos, desativados ou re-ocupados presentemente por outra atividade, bibliotecas, áreas de lazer para crianças, jovens e adultos, parques, museus... Se for o caso, procurar as plantas básicas dos prédios escolares, ver se houve uma similaridade entre os prédios construídos no mesmo período, a que se deveu isto, etc. Também o estudo da situação econômica, social e política da localidade na época já fornece a moldura em que o problema se desenvolve e pode dar outras informações. Aqui os estudos de sociólogos, economistas, cientistas políticos serão de grande valia, junto também com os dados estatísticos que existirem sobre questões econômicas, sociais e políticas do período estudado. Produção de gêneros, exportação, importação, indústrias existentes, nível de escolaridade da população, número de eleitores, participação efetivas nas eleições, distribuição das instituições escolares no espaço estudado, por nível de ensino, número de alunos matriculados e graduados em cada nível, etc. Muito importante como fonte publicada, mas que poderá ser fonte primária se ainda não foi usada para este fim, são os jornais e as revistas editados periodicamente na região. São importante fonte de informação sobre a vida local em seus múltiplos aspectos. Ao lado das fontes secundárias, o historiador precisa já ir buscando relacionar quais as fontes primárias, custodiadas em arquivos existentes na região, que podem servir para dar subsídios a sua pesquisa. De acordo com o tipo de problema proposto, procurar-se-ão os arquivos públicos municipais, os eclesiásticos (na matriz da paróquia, livros de registro de batismos, casamentos, missas de finados, etc), os jurídicos em algum cartório ou sede de comarca ou, ainda, os arquivos particulares de alguma irmandade religiosa, empresa ou personalidade que permita o acesso a ele. E, sobretudo os escolares.

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Em Minicurso sobre Arquivos e Fontes Documentais Escolares, ministrado no IV Colóquio do Museu Pedagógico da Uesb em novembro de 2004, lembramos as fontes documentais escolares, produzidas e utilizadas na própria instituição escolar que se está estudando; são importantes fontes primárias de pesquisa. Podem ser procuradas: 1. Na Biblioteca: livros didáticos e para-didáticos utilizados; revistas de educação existentes; boletins, jornais ou revistas produzidos pela escola; artigos ou livros produzidos pelos professores e funcionários da casa; anuários da escola, se houver. 2. Na Secretaria da escola: 2.1 - documentos fundantes da própria instituição: lei de criação da escola, outros atos legislativos sobre a instituição, ata de instalação; estatutos, regimentos internos; atas de eleição ou designação e de posse de diretores; organograma da instituição, se houver. 2.2 - Direção da casa: planejamento anual de atividades; relatório anual da direção; relacionamento com outras instituições (convênios, contratos, etc). 2.3 - Contabilidade: receita e despesa da instituição; orçamentos anuais e plurianuais; balancetes e balanços; prestações de contas. 2.4 - Correspondência: enviada, recebida, comunicações internas, registro magnético dos e-mails, etc. 2.5 - Livros permanentes: do tombo do patrimônio da instituição; de ponto dos funcionários; de atas das reuniões; de registro das atividades (solenidades, festas, semanas culturais, seminários, etc.); De Visitantes (inspetores, autoridades educacionais, pessoas gradas locais ou de outros estados ou países). 2.6 - Documentos de alunos: livros de matrícula e trancamento de disciplinas; ficha ou pasta de cada aluno com seus históricos escolares; cadernetas escolares. 2.7 - Documentos de professores: calendário escolar; quadro de horário dos professores; elenco de disciplinas por curso; cronograma das aulas; planos de curso e programas das disciplinas. 2.8 - Aberturas para a comunidade: utilização das instalações e recursos; atividades de extensão. 3. Na Sala dos professores (ou nos departamentos): planos de curso; diários de classe; projetos e relatórios de pesquisa; material preparado

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para o ensino (cartazes, powerpoint, transparências, slides, etc); material escolar produzido pelos professores ou alunos (posters, banners, folhetos...); artigos escritos ou livros publicados pelos professores (se não estiverem na biblioteca); fotografias de atividades várias, classes, turma de professores, etc.; cartas, bilhetes, comunicações internas; convites de formatura; atas de reuniões (congregação, departamento, professores). 4. No Centro acadêmico dos alunos: dados sobre sua criação e principais atividades realizadas; regimento; atas de assembléias ou reuniões; boletins ou documentos produzidos; relação das atividades usuais ou programação para aquele ano; documentos produzidos pelos alunos. 5. Na Organização de funcionários ou departamento de pessoal: lista dos funcionários existentes; dados sobre cada um: formação, data de admissão, funções desempenhadas, etc.; atividades organizadas por funcionários; atas de suas assembléias ou reuniões; documentos produzidos por funcionários. 6. Acervo magnético – com a crescente difusão das novas tecnologias, seu barateamento e ampliação de uso, toda instituição possui hoje em dia computadores, ou mesmo laboratório de informática. Nele podemos encontrar interessantes bancos de dados à disposição de alunos, professores e funcionários da instituição ou mesmo abertos à comunidade. Podem, em sua maioria, ser acessados gratuitamente, ou mediante o pagamento de alguma contribuição, em geral utilizada para a manutenção, expansão e ampliação dos próprios bancos de dados. Várias revistas são hoje em dia editadas exclusivamente online e apresentam artigos interessantíssimos; é preciso verificar de que modo se assegura a preservação da informação nelas contidas. Algumas escolas possuem bibliotecas virtuais, para facilitar ao aluno o acesso a obras difíceis de encontrar ou caras no mercado habitual de livros. Os cursos de pós-graduação de muitas universidades utilizam comumente grupos de estudos online por disciplinas, criam os chamados rascunhos digitais para produção coletiva de textos, já começam a produzir hipertextos, etc. Desenvolvem-se aí interessantes discussões

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que muitas vezes ajudam a avançar nas discussões teóricas ou fornecem pistas de como operacionalizar conceitos ou aplicar a teoria a problemas específicos, desenvolver técnicas não só de coleta como também de análise e interpretação de dados para se chegar a conclusões significativas no trabalho. Isto sem falar nos sites de professores ou de grupos de trabalho, nos blogs e mesmo em toda a produção independente que circula pelas redes virtuais, localizadas ou mundializadas, como a Internet. Com familiaridade com a navegação virtual, pode-se comunicar com o mundo e conseguir as mais variadas e ricas informações, que sejam de interesse para a pesquisa ou trabalho que se realiza. Além dessas fontes citadas, podem-se encontrar várias outras, como material que serviu para pesquisas de professores ou mestrandos e doutorandos, como questionários feitos, entrevistas transcritas, tabelas elaboradas, quadros, etc. que se precisará devidamente organizar e aproveitar como fonte de informação. Construindo novas fontes Lembramos ainda que, independente das fontes existentes, o pesquisador pode ainda construir suas próprias fontes formando mesmo um acervo que poderá ser depois custodiado por alguma instituição de pesquisa ou instituição escolar e servir futuramente como fonte para outros pesquisadores. Exemplo: entrevistas realizadas – devidamente registradas e transcritas – com antigos professores, funcionários e alunos do estabelecimento escolar, visando resgatar a história vivida por diferentes participantes do processo escolar e a memória vivenciada da instituição escolar estudada. E mais, cada entrevistado pode ainda ter escrito diários, possuir antigas agendas de compromissos, velhos cadernos de anotações de aulas, fotos de turmas, grupos de colegas, trabalhos escolares realizados, etc. que, embora não ceda sua propriedade ao pesquisador ou a instituições, pode permitir a consulta e eventual reprodução parcial ou total (neste caso o pesquisador cederia mais tarde para alguma instituição custodiadora, de modo a servir a outros estudiosos).

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Também para a pesquisa, o estudioso terá que transcrever documentos, leis, regulamentos, atos variados e, ainda, organizar dados, elaborar quadros, tabelas, gráficos, cronogramas, listas de escolas, de professores, informações sobre as realizações de uma determinada direção da escola, acompanhamento da carreira de professores com nomeação, transferências, promoções até a aposentadoria, etc. que poderão depois fazer parte também de um banco de dados que seria disponibilizado a outros pesquisadores. O pesquisador pode, por exemplo, se estuda uma determinada instituição escolar, providenciar um levantamento cartográfico, se não existir, do prédio da escola, de suas redondezas, dos diversos cômodos com diferentes destinações escolares em escala que permita a observação de mais detalhes, etc. Também é importante um levantamento fotográfico, tanto de fotos históricas da instituição e suas atividades, quanto de sua situação atual: prédio, mobiliário, recursos vários, atividades desenvolvidas, grupos de professores, turmas de alunos, etc. e a elaboração de um banco de dados digitais com informações importantes sobre a escola ou assuntos a ela relacionados, que ainda não existam na instituição. E, ainda, o mais importante: recorrer à História oral para levantar novos dados e para complementar os já existentes sobre o histórico e funcionamento da instituição. Fazer registro exato das entrevistas com antigos professores, funcionários e alunos e, com a transcrição dessas entrevistas, criar um acervo de História oral da instituição, para ser consultado futuramente por quantos se interessarem e para ser completado permanentemente com novos dados à medida que outros estudiosos também acrescentem seus materiais de trabalho até completarem a pesquisa que realizarem. E não se cingir apenas às instituições escolares formais. Existem outras formas educativas em cada comunidade. As oficinas de trabalho, tanto de antigos artesãos (sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, latoeiros, etc.) como de fábricas que dão cursos de formação em serviço a seus empregados; as instituições religiosas que educam seus fiéis de

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diferentes formas dentro do seu espaço consagrado às atividades místicas, mas em momentos distintos; as instituições de lazer e instrução coletiva, como o movimento escoteiro e sua contrapartida feminina, as bandeirantes, os grupos de jovens; as instituições ligadas a pessoas com necessidades especiais de educação: deficiência visual, auditiva, motora que, agora, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9.394/96, precisam ser incluídas nas classes normais, educando assim os demais membros da sociedade a conviverem harmoniosamente com a diversidade do outro. Considerações finais Como em nosso país ainda é muito fraca a consciência do valor e da importância do patrimônio documental e escolar, caberá, também, ao pesquisador da História da Educação, o papel de conscientizar o secretário de Educação do município e também os diretores, funcionários e professores das várias instituições escolares sobre o valor que têm os documentos produzidos na escola, a importância da sua boa organização e conservação não só para a garantia dos direitos individuais de todos os que se relacionaram com a escola, mas também para construção de uma História da Educação naquele município. Se não cuidarmos das fontes documentais escolares hoje, elas acabarão se perdendo e amanhã não as teremos mais, o que prejudicará grandemente o levantamento da evolução educacional local, regional e mesmo do país, pois não se conhece a história de um país apenas tendo informação sobre a capital e as principais cidades. Se não registrarmos convenientemente as formas como os grupos religiosos, as oficinas artesanais, os movimentos para-escolares, como o escotismo e bandeirantismo, os grupos de lazer como clubes, grupos de jovens, bandas de música, times esportivos, grupos de afro e índiodescendentes, as entidades que trabalham com portadores de necessidades especiais de educação costumam desenvolver o aspecto educativo dos seus membros, dificilmente poderemos reconstruir em sua integridade a dinâmica educacional de uma determinada comunidade no futuro.

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É um trabalho cotidiano de cidadania consciente, crítica, atuante e constante, mas que, felizmente, já um grande número de grupos institucionalizados de pesquisadores em História da Educação e mesmo professores interessados no assunto de algumas cidades já vêm realizando, para o bem dos futuros estudiosos da educação em nossos tempos atuais. SOURCES FOR THE HISTORY OF EDUCATION Abstract: The work begins showing the great development occurred with the History of Education in the past 40 years, due mainly to the researches made in the Post Graduation Courses on Education. Therefore, it is important to discuss the questiono f Sources for the hisstory of Education. Some other work already writen about the theme are related, and it discusses here the concept of source, historical source according to several historians and mention the classification of sources in primaries and secondaries. It deals then with the sources for the History of Education, understanding Education in the largest sense, not only the formal instruction given in school institutions. It talks specifically about the possible schol document sources. But then shows how the researcher constructs his ouw sources related to the problem he studies, that may later be given to na institution that disposes them to other future researchers. It concludes saying that the historian of education must, during his work of research, promote among administrators, teachers and fucntionaries of educacion the conscience of the importance to preserve and organize the documentation of educational matters, so that in the future it may exist reliable sources for the history of education. Key words: Historical sources. History of Education. School documentary sources. Construction of sources.

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DOSSIÊ TEMÁTICO:

Fontes Documentais para a História da Educação

MUSEU PEDAGÓGICO: A INTERVENÇÃO ACADÊMICA COMO AÇÃO DE PRESERVAÇÃO DE FONTES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CENTRO-SUL DA BAHIA Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro * Lívia Diana Rocha Magalhães ** Ruy Hermann de Araújo Medeiros ***

Resumo: Relatamos uma medida de intervenção de acordo com os objetivos fins do Museu Pedagógico: rastreamento, catalogação, preservação e musealização de quaisquer documentos – escritos, sonoros, fílmicos ou fotográficos – considerados importantes para organizar o estudo, a reflexão, a produção de conhecimentos e saberes sobre a história da educação na região Centro-Sul da Bahia. Adotando as perspectivas teóricas de Thompson (1981), de Schaff (1978) e do próprio Marx (1973) e os referenciais teóricometodológicos de Jameson (1964) e de Schellenberg (apud JAMESON, 1964), diagnosticamos a necessidade imediata de intervenção no arquivo escolar da Diretoria Regional de Educação e Cultura (Direc-20). O arquivo encontravase instalado numa pequena sala, que integra conjunto de outras alugadas pelo Estado, e abrigava documentos de escolas públicas e particulares extintas. * Doutora em Educação; Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] ** Doutora em Educação; Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] *** Advogado; Especialista em Direito; Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: ruy-medeiros.bol.com.br Práxis Educacional

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Apresentamos uma proposta junto à Reitoria da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e à Coordenação Geral da Direc-20 de acolher o arquivo em nosso próprio espaço. Coube à Direc-20 transferir seu pessoal para o local, como uma espécie de extensão do órgão, em espaço adequado cedido pelo Museu. Palavras-chave: Museu Pedagógico. Arquivo. Documentos escolares. Região Centro-Sul da Bahia

A concepção pedagógica do Museu da UESB O Museu Pedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, situado na região Centro-Sul do Estado, já é conhecido como um lugar destinado não só à pesquisa, à extensão e ao estudo sobre a história da educação nacional e regional, mas, principalmente, à catalogação de fontes documentais primárias, cartográficas, iconográficas, fílmicas, sonoras, literárias, estatísticas, sejam elas orais ou escritas, tendo em vista possibilitar diferentes olhares e leituras interdisciplinares sobre o mesmo objeto, ou seja, a educação. É, pois, uma concepção de Museu que funciona como lugar vivo e dinâmico, mantido, sobretudo, pelo princípio interdisciplinar. A criação e a implantação paulatina do Museu se deram, particularmente, em decorrência do amadurecimento do diálogo, das discussões acumuladas e da vontade expressa por sujeitos sociais – professores, alunos, técnicos administrativos, pessoas da comunidade – e do crescente interesse por pesquisa e registro histórico da educação da região. Buscava-se, também, um “espaço” que viabilizasse a compreensão, interpretação, discussão e realização da investigação sistemática sobre seus objetos de estudos, suas interpelações e interrogações. Tais aspectos possibilitaram a implantação real dessa idéia do projeto, no final do ano de 1999. O Museu Pedagógico, apesar de estar ainda em processo de organização, se constitui, hoje, como um espaço de produção de conhecimentos, reflexões, pesquisa e produção de saberes, sobre questões relacionadas à trajetória da educação. As formas de articulação entre ensino, pesquisa e extensão do Museu Pedagógico, como espaço

Museu Pedagógico: a intervenção acadêmica como ação de preservação de fontes ...

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livre para permanente olhar, interpretação e reflexão sobre a educação brasileira, abrem espaço às várias áreas de conhecimento, aos diversos saberes e informações, possibilitando a formação de grupos permanentes, eventuais e livres. O saber interdisciplinar, que dá sentido e organização à pesquisa, ao ensino e à extensão no Museu Pedagógico, vem se concretizando graças à sua equipe multidisciplinar e à implementação de várias propostas teórico-pedagógicas que se unem em torno da perspectiva apontada por Thompson (1981), autor que considera que o diálogo entre fontes documentais poderá desencadear interrogações às evidências; por Schaff (1978), o qual diz ser possível o acúmulo de verdades relativas; ou, ainda, pelo próprio Marx (1973), que afirmou ser a partir do mais desenvolvido que podemos entender o menos desenvolvido. Além do trabalho de planejamento e consolidação dos grupos de estudo, extensão e pesquisa, como proposta básica, fundamentada na própria razão de existência do Museu, a investigação e a organização do conhecimento, em termos didáticos, estão constituídas em torno de dois grupos de pesquisas, que formalizam a pesquisa do Museu Pedagógico: um que trata da educação escolar propriamente dita e outro que trata da educação não escolar, nas suas variadas manifestações. No processo de reconhecimento dos acervos e fontes documentais da região e nas nossas primeiras ações de busca e coleta de documentos para o projeto de pesquisa: “A educação no sudoeste baiano: seus sujeitos, materiais e representações”, localizamos importantes arquivos escolares de escolas extintas, armazenados na Diretoria Regional de Educação e Cultura da nossa região (Direc-20) e em escolas que funcionam desde os anos de 1940 na cidade de Vitória da Conquista e região Centro-Sul do Estado da Bahia. Pudemos observar que a situação de determinados arquivos era precária e que muitos documentos importantes para o conhecimento da educação regional corriam o risco de desaparecer, além de permanecerem inéditos aos olhos dos estudiosos e dos interessados na história da educação e na história local e regional.

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Nesta comunicação, pretendemos relatar uma medida de intervenção que está sendo realizada, sobretudo a transferência de arquivos de escolas extintas, até então, sob a guarda da Direc-20, para o Museu Pedagógico, de acordo com os seus objetivos fins: rastreamento, catalogação, preservação e musealização de quaisquer documentos, sejam eles escritos, sonoros, fílmicos ou fotográficos, considerados importantes para organizar o estudo, a reflexão, a produção de conhecimentos e saberes sobre a história da educação no município. A intervenção Neste caso, especialmente, a equipe do Museu Pedagógico, com base no referencial teórico-metodológico que privilegia os pensamentos de Jameson (1964) e de Schellenberg (apud JAMESON, 1964) e na realidade empírica das suas ações de pesquisa, diagnosticou uma necessidade imediata de intervenção neste importante arquivo que abriga os documentos escolares pertencente à rede escolar estadual. Assim, precisava ser evidenciada a situação do arquivo escolar da Região CentroSul da Bahia, sob a guarda da Direc-20. O arquivo encontrava-se instalado em uma pequena sala que integra um conjunto de outras, alugadas pelo Estado, no Edifício Conquista Center, 6º andar, Praça Tancredo Neves nº 86, no centro da cidade de Vitória da Conquista, e abrigava documentos de escolas públicas e particulares, já extintas. Tratava-se, na verdade, de um depósito de documentos, provido de estantes de aço, cujo espaço não permitia a circulação, ao mesmo tempo, de mais de uma pessoa. Num desses corredores, uma pessoa mal podia passar. A leitura e o manuseio dos documentos eram feitos, pelos pesquisadores, fora do local (corredor), embora no conjunto de salas. A sala-arquivo não tinha mais nenhum espaço para abrigar novos documentos. Apesar da situação do abrigo, é de justiça ressaltar que tanto os gestores anteriores quanto a atual gestora vinham zelando e conservando os documentos sob sua guarda. O estado de conservação é bom, estão aptos para o manuseio com as cautelas que merecem para retirada de

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resíduo de poeiras em alguns deles. Muitos se encontravam acondicionados em pastas classificadores, e outros, em pacotes. Há reconhecimento, por parte da gestora e de funcionários, da necessidade de conservar a integridade dos documentos e a sua guarda permanente, e eles o fazem conscienciosamente, mesmo que isso dificulte suas próprias condições de trabalho. Os documentos do arquivo não possuem nenhuma classificação, no entanto apresentam uma separação inicial, por origem, que tem facilitado a localização daquele documento desejado. Por outro lado, estava sendo permitido o acesso responsável e necessário ao arquivo, por parte de interessados, na forma prevista na legislação. Mas, na realidade, não havia espaço físico suficiente nem móveis, para abrigar pesquisadores ou, mesmo, funcionários, naquele âmbito, por sua diminuta extensão. Apresentamos uma proposta de convênio entre a Uesb/Museu Pedagógico e a Direc-20/Secretaria da Educação da Bahia para abrigar o rico acervo de documentos que estavam correndo risco de desaparecer, na situação em que se encontravam. O convênio foi firmado em 2005, cabendo à Equipe do Museu Pedagógico acolher o arquivo da Direc em seu próprio espaço e, à Direc-20, transferir seu pessoal para o local, como uma espécie de extensão do órgão, em espaço adequado, cedido pelo Museu. A equipe do Museu deverá organizar, musealizar e disponibilizar os documentos pertinentes ao público interessado, pesquisadores ou pessoas da região, na demanda por sua história escolar. Tratou-se, pois, de transferir a documentação para local mais adequado, a fim de que se possa cumprir o quanto dispõe a legislação atual de arquivos, com a vantagem secundária de deixar a sala disponível para outras atividades da Direc-20. Porém, não se trata apenas de encontrar espaço mais amplo para os documentos, mas de depositálos em local com dimensão suficiente, com área de leitura, vigilância de funcionários, de classificá-los, mantê-los bem conservados, catalogálos, divulgar sua existência, sua importância e finalidade e colocá-los a serviço das atividades públicas, da proteção de direitos e da pesquisa e da produção do conhecimento.

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Considerando que não é possível a história sem fontes e que esses documentos são as fontes históricas fundamentais da história educacional da região e, destarte, por ser de suma importância esse acervo, tanto para os servidores, interessados, como para o governo e a sociedade é que a preservação do arquivo se faz necessária, principalmente porque: a) quando o arquivo estiver no Museu Pedagógico e receber tratamento adequado à sua natureza, sua finalidade será potencializada. Da mesma forma, com os documentos de estabelecimentos não extintos, com base na sua longevidade, conforme estabelecido no convênio, o governo terá, centralizadas, informações necessárias e prontamente disponíveis; b) alunos e professores, com a guarda, conservação, classificação e possibilidade de acesso aos dados documentais, poderão ter comprovantes de sua situação e direitos decorrentes de seus cursos. E mais que isso: ter-se-á documentada parte da vida de pessoas, que têm direito de ver preservados seus comprobatórios biográficos, documentos que integram suas vidas e de seus semelhantes; c) a História, especialmente a História Cultural ou Educacional terá no arquivo da Direc-20 fontes essenciais, pertinentes a toda a região Centro-Sul, para a pesquisa. Organizado o arquivo, estudiosos produzirão conhecimento, estudantes e professores poderão conhecer e fazer conhecer a história e, nos cursos de História e de Pedagogia e demais áreas da educação, será possibilitada e desenvolvida a finalidade de pesquisa e produção do conhecimento cometida constitucionalmente às universidades. Ademais, o passado escolar de gerações será revivido em textos. Não há dúvida do valor cultural desse arquivo. O fato de tratar-se de arquivo setorial não lhes diminui o mínimo de relevância, para servidores em geral, governo, interessados e sociedade. Já se tornou truísmo dizer que os “arquivos constituem a memória do governo”. São eles necessários ao planejamento, mantêm infor mações sobre as diversas ações e realizações governamentais, ministram informações essenciais para a continuidade

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administrativa, infor mam sobre direitos e prerrogativas de administrados e administradores, entre outros fins oficiais. O arquivo escolar da Direc-20 traz a história de escolas, alunos, dirigentes educacionais e professores. O seu arquivo não corrente (de estabelecimentos extintos) informa ao público atingido pela ação governamental e particular o número de formandos por ano, tipo de ensino, currículo, etc., necessário ao conhecimento da evolução e ao planejamento governamental no setor. Quando o arquivo da Direc-20 receber os documentos não correntes de estabelecimentos não extintos, sua finalidade será potencializada, e o governo terá centralizadas informações necessárias e prontamente disponíveis. Reunidos em um espaço adequado, catalogados, conservados e classificados os documentos, haverá democratização de acesso às fontes e desenvolvimento do conhecimento científico. Não é possível a história sem fontes, e os documentos ainda são as fontes históricas fundamentais. Vale a pena revisitar as palavras de Jameson (1984), para quem o homem é o único animal que deixa documentação a ser usada pela posteridade. Seja isso uma benção ou uma maldição, ele aprende com a sabedoria acumulada ou com os erros do passado. Ao passo que a lembrança individual se transforma em pó ou cinzas, a memória coletiva sobrevive em documentos escritos. Essas experiências registradas do passado evitam ensaios onerosos e experimentos desnecessários no futuro. Segundo o autor, Tanto as coletividades religiosas como as seculares têm seus idolatrados patrimônios históricos. As igrejas referem-se a uma plêiade de homens e mulheres elevados ao estado de santidade. As nações cultuam a memória dos seus estadistas. As famílias referem-se com orgulho à sua genealogia. As organizações imortalizam o nome de seus fundadores em placas de bronze. Os acadêmicos emitem publicações especiais em memória de seus membros exponenciais e publicam as primeiras edições de suas obras. Os artistas, inventores, descobridores, mártires, revolucionários, heróis, etc., que marcaram indelevelmente sua geração, são reverenciados pela própria geração ou pelas gerações futuras.

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Museus e bibliotecas, de quaisquer tipos, contam a história do passado e as realizações de indivíduos e grupos. Servem como os repositórios do passado para a instrução e edificação das gerações futuras. Esses museus e bibliotecas, por meio de variados objetos de arte e literatura, retratam as lutas, os malogros e as conquistas do homem, tanto inspirando como prevenindo sua descendência. Os documentos públicos, tais como a correspondência legal, política, cultural, e mesmo pessoal, possuem valor histórico. Sua preservação permanente transformou-se em problema de importância capital. Daí, os arquivistas colecionarem textos, auxílios audiovisuais, mapas, correspondência, formulários, depoimentos, minutas, contratos comerciais, itens relativos a genealogias, acordos nacionais e internacionais, notas, declarações, etc. Essa função de coletar material de diferentes tipos impõe grande responsabilidade ao arquivista porque lhe cabe determinar o que deve ser preservado e posto ao alcance do público quando surge a procura.

Em resumo, o arquivo não corrente da Direc instalado no Museu Pedagógico deverá desempenhar aquela missão apontada por T. R. Schellenberg (apud JAMESON, 1964, p. 21-25): a) incrementar a eficiência governamental; b) preservar os recursos culturais representados pelos documentos oficiais; c) proteger direitos pessoais estabelecidos por documentos oficiais; d) exercer tarefa de governo. Quanto à disponibilidade, pretendemos: a) colocar os documentos numa ordem tal que os tornará disponíveis, e a informação, neles contida, acessível ao uso; b) descrever os documentos mediante meios de busca, como índices e catálogos, que farão conhecidos seu caráter e conteúdo; c) prestar serviço não só ao público, mas, também, ao governo, no que toca a documentos transferidos para sua custódia. Proposta de instalação Propomos o funcionamento do Arquivo da Direc-20, para fins de pesquisa, em um prédio de caráter histórico, localizado na zona central da malha urbana de Vitória da Conquista, próximo da sede daquele órgão. O prédio cujos cômodos deverão abrigar o arquivo é o edifício popularmente conhecido como Ginásio do Padre, que, durante

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muitos anos, foi dirigido pelo Padre Luís Soares Palmeira, e onde funcionou o primeiro estabelecimento de ensino secundário de toda a área do Planalto de Conquista e circunscrição da Direc-20. O prédio do velho Ginásio de Conquista está localizado na Praça Sá Barreto, aberta em 1904, hoje integrante da parte central da malha urbana de Vitória da Conquista, pertence à Arquidiocese de Vitória da Conquista, mas encontra-se em regime de longo comodato para uso pela Uesb, que o está reformando para ali desenvolver as atividades do Museu Pedagógico. Origem do prédio A construção do edifício ocorreu a partir da década de 1920, por iniciativa da Igreja Católica, com subscrição pública. Construído em parte, a Prefeitura Municipal o ampliou e ali manteve estabelecimento de ensino. Porém, em 1938, foi devolvido à Igreja Matriz Nossa Senhora da Vitória, mediante escritura de doação que se encontra registrada a fls. 270 do livro 3-H, do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis e Hipotecas da Comarca de Vitória da Conquista. Então o edifício foi descrito como [...] prédio sito à Praça Dr. Sá Barreto, nesta cidade e primeiro distrito de Conquista, contendo dos vinte e cinco (25) janelas de frente, duas (02) e dois portões, inclusive pavilhão, muro de frente, com paredes de adobes, coberto de telhas, atijolado o chão, com dois salões assoalhos, forrado, murado, edificado em terreno foreiro da mesma Igreja Matriz de Nossa Senhora das Vitórias, cercada pelo fundo, com cercas de arame nos três lados, separando-os dos vizinhos que são terrenos de Dr. Crescêncio Antunes da Silveira, terrenos ocupados pelo Município e terreno da mesma Igreja dados em arrendamento a terceiros.

Após abrigar escola municipal e, temporariamente, o Educandário Sertanejo, do poeta Euclides Dantas, nas décadas de 1920 e 1930, a Igreja Matriz de N. Sra. das Vitórias o doou ao Padre Luiz Soares Palmeira para que, ali, o religioso instalasse um ginásio (escola secundária). Naquele mesmo ano, o Padre Palmeira transferiu-se do

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Ginásio da cidade de Caetité para o prédio da Praça Sá Barreto, implantando em Vitória da Conquista o primeiro ginásio da região. O Padre construiu, em anexo, sua residência, que seria demolida, já deteriorada, em década de 1970. O Ginásio de Conquista adquiriu grande nomeada e muitos conquistenses que, depois, seguiram diversas profissões, aí estudaram. Em razão disso, a comunidade local tem grande carinho pela casa por onde passaram tantos alunos e professores. Posteriormente, nos anos 60, o prédio foi transferido para a Diocese que aí o manteve, sob o título de Colégio Diocesano, até a construção de outro prédio na mesma praça, para onde transferiu suas atividades. Mas o velho prédio continuou servindo à educação e cultura. Aí funcionou a Faculdade de Formação de Professores, embrião da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e o museu Padre Palmeira/ Arquivo Municipal. Atualmente o prédio encontra-se de posse da Uesb em regime de comodato celebrado com a Diocese de Vitória da Conquista, para abrigar, justamente, o Museu Pedagógico da Uesb. No momento passa por uma reforma básica para recuperação de danos causados pelo tempo e pelo descaso com um monumento, do início do século passado. Caracterização e importância O prédio que abriga o Museu Pedagógico e recebeu os documentos da Direc-20 é uma edificação térrea, construída de adobes (barro/argila crua), de paredes largas (tijolos assentados a tição, isto é, de forma a tornar grossas as paredes), conservando o padrão de arquitetura de velhos prédios de colégios, com salas amplas, grande salão, janelas altas e largas. Exceto quando ao teto, piso e anexo residencial, conserva-se inteiramente como era. Mas, seu valor arquitetônico fica muito aquém do grande valor histórico. Pessoas de vários lugares ainda o procuram para mostrar aos filhos e netos, orgulhosamente, o local onde estudaram. Afinal, era o único Ginásio num grande raio de extensão e era privilégio de poucos estudarem ali.

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Nesse espaço, o arquivo não corrente da Direc-20 (que envolverá, inclusive, o extenso arquivo do extinto Colégio Diocesano) ocupará sala de guarda e conservação e sala de consulta com respectivo mobiliário adequado. A documentação será classificada e catalogada. A gestão do arquivo deverá ser conjunta, envolvendo pessoal da Secretaria da Educação do Estado da Bahia e da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), sob a guarda e assessoria técnica, é claro, da Equipe do Museu Pedagógico. O arquivo guardará não apenas documentação de escolas extintas, mas, também, todo arquivo não corrente das escolas públicas, a documentação pessoal do Padre Palmeira, livros didáticos antigos, bem como fontes primárias e secundárias provenientes das ações de busca dos grupos de pesquisa do Museu Pedagógico. No espaçoso prédio, de arquitetura neoclássica, se bem que obedecendo a um padrão mais simplificado do que observamos nos prédios da mesma época nas metrópoles (como era usual no tempo da sua edificação, na região interiorana da Bahia), funcionará, igualmente, o Museu Pedagógico, voltado para as atividades de pesquisa, extensão, produção de conhecimento, preservação de patrimônio cultural e histórico-educacional. Isso permitirá visão integrada, como, por exemplo, verificação de currículos, de dados de público envolvido, em confronto com recursos da época, livros didáticos e outras informações. Em resumo, as partes pretendem estabelecer cláusulas de gestão e guarda (inclusive na forma ampla prevista no Art. 37, 8º, da Constituição Federal), em que sejam observadas as finalidades do contrato/convênio/ acordo de gestão e, principalmente, que sejam firmadas: Obrigações/atribuições da UESB - Fornecer espaço adequado para conservação e manutenção do arquivo não corrente da Direc-20 e para consulta dos documentos. - Classificar e catalogar os documentos. - Fornecer cópia do método e critério de classificação e do catálogo à Direc-20 e a outros órgãos (a estes, quando solicitados).

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- Criar sistema de classificação de documentos de arquivo escolar a fim de reproduzir arquivos com procedimentos adequados. - Atender pedido de cópias de documentos ou de informações constantes do acervo à Direc-20. - Criar condições de conhecimento dos documentos a pesquisadores. - Comunicar ocorrências que possam atentar contra a conservação e integridade dos documentos. - Contribuir com funcionário de apoio. Obrigações/atribuições da Secretaria da Educação - Designar funcionários para serviços de apoio. - Fornecer estantes (12), armários (10) e mesas (04), para equipar a sala que vai abrigar o acervo. - Transferir arquivos não correntes de escolas públicas e privadas para o arquivo escolar da Direc-20, ao prédio do Museu Pedagógico da Uesb. - Promover seminários em conjunto com a Uesb sobre documentação e arquivo escolares. Finalizamos este relato, informando que o contrato já está sendo executado. A Direc-20 embalou cuidadosamente os documentos, e a Uesb/Museu Pedagógico está realizando o processo paulatino de transferência. PEDAGOGIC MUSEUM: THE ACADEMIC INTERVENTION AS SOUTHEAST BAHIA EDUCATION HISTORIC FOUNTS PRESERVATION. Abstract: Describes an intervention way according to the Pedagogic Museum finality: Searches, catalogs, preserve and archives any kind of documents, text, records, photos considered important to organize the knowledge, study, reflection and production in the southeast Bahia education. Using the Thompson (1981), Schaff (1978) and Marx (1973) theory perspective, and the Jameson (1964) and Schellenberg (apud JAMESON, 1964), method referential

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was found an immediate intervention necessity in an important archive that contains the scholars documents of the southeast region, the scholar archive of the Education and culture regional directory (Direc-20).The refereed archive was installed in a small room, that includes another ones, rented by the State and it contents public and privates extinct schools documents. We, with the UESB and the DIREC-20, propose that the museum members take the DIREC-20 archive in our own space. Is supposed to the DIREC-20 transfer they employers to a new and adequate place offered by the museum, like an extension of their institution. Key words: Pedagogic Museum. Archive. Scholar documents. Southeast Bahia region

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DOSSIÊ TEMÁTICO:

Fontes Documentais para a História da Educação

REGISTRO EM ARQUIVOS SOBRE A INDÚSTRIA DE LATICÍNIOS NA REGIÃO SUDOESTE DA BAHIA1 Ana Elizabeth S. Alves * Gilneide de Oliveira Padre Lima ** Manoel Nunes Cavalcanti Júnior ***

Resumo: Este artigo apresenta uma breve discussão sobre documentos (jornais, revistas e relatórios administrativos) encontrados em arquivos acerca do desenvolvimento da indústria de laticínios e da qualificação profissional realizada pelo Posto Experimental de Laticínios, na região de Vitória da Conquista, Bahia, articulando aspectos do desenvolvimento socioeconômico brasileiro e suas repercussões sobre a economia regional e a educação. Palavras-Chave: Arquivo. Documento. Indústria de laticínios.

Parte deste texto foi apresentada no VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, de 17 a 20 de abril de 2006, em Uberlândia, MG. * Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. ** Mestre em Pedagogia Profissional pelo Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (Cefet-BA)/ISPETP-CUBA. Professora do Cefet-BA. email: [email protected]. *** Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) . Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (Cefet-BA). E-mail: [email protected]. 1

Práxis Educacional

Vitória da Conquista

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Introdução Os arquivos são “lugares de memória” que possibilitam a guarda física de documentos, o tratamento técnico e a organização da informação, como, também, lugares que permitem a compreensão do passado e as múltiplas relações que os documentos estabelecem com o presente (VIDAL, 2005). Os documentos em geral são compreendidos como quaisquer objetos, qualquer base de conhecimento fixada materialmente que elucide, instrua, reconstrua, prove ou comprove cientificamente algum fato ou acontecimento. Nessa perspectiva, podemos considerar a pluralidade do campo da fonte documental histórica presente em um arquivo, envolvendo desde escritos de todos os tipos até documentos figurados (LE GOFF, 1993). Ou seja, tudo que se relaciona a todos os homens e mulheres, como agentes da história em qualquer tempo e lugar. Por intermédio das possíveis leituras acerca dos documentos existentes em um arquivo, podemos compreender a memória de um dado objeto de estudo. A consulta dos registros de documentos em arquivos nos permitiu conferir sentido ao passado pelo manuseio e análise de fontes para uma pesquisa que investiga a indústria de laticínios e a qualificação profissional de técnicos laticinistas a partir dos anos 30 e o Ensino Prático em Laticínios, ministrado no Posto Experimental de Laticínios da cidade de Vitória da Conquista,2 reconstituindo parte da história. Tomando como referência as questões apontadas acima, inicialmente, o presente artigo descreve os documentos encontrados nos arquivos pesquisados, em seguida, de acordo com esses documentos, relata o desenvolvimento da indústria de laticínios e do Ensino Prático em Laticínios. 2 A pesquisa “O Trabalho e a História da Qualificação Profissional na Indústria de Laticínios na Região Sudoeste da Bahia” está sendo desenvolvida pelo grupo de estudos e pesquisas Trabalho e Educação do Museu Pedagógico da Uesb. O objetivo é conhecer a história da qualificação profissional dos produtores e trabalhadores do ramo de laticínios da Região Sudoeste da Bahia, iniciada pelo “Posto Experimental de Laticínios” em 1934, hoje extinto, bem como as suas articulações/influências na transferência de conhecimentos técnicos para a construção da indústria de laticínios local até os dias de hoje. A agência financiadora dessa pesquisadora é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

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Os arquivos No Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista, pesquisamos exemplares do jornal O Combate do período de 1934 a 1937; 1943 a 1950 e 1957 a 1959. Como fonte rescrita primária, os jornais captam a visão da sociedade da época (ou de parte dela) sobre o objeto estudado, sendo um meio extremamente expressivo das idéias e valores de um tempo, possibilitando apreender as concepções daquele momento sobre o tema de um modo mais ágil, informal, e perceber novos aspectos sobre a organização da vida na região e sua articulação com o trabalho e o processo educativo. Localizamos na Biblioteca Central do Estado da Bahia, em Salvador, alguns exemplares da revista Bahia Rural, outra fonte escrita significativa para desenvolver estudos sobre a história da indústria de laticínios. Esta revista é uma publicação mensal da sociedade civil Editora Bahia Rural, do período de 1933 a 1958. Em alguns exemplares, catalogamos informações a respeito da criação e funcionamento do Posto Experimental de Laticínios em Vitória da Conquista e sobre a situação das indústrias de laticínios na cidade àquela época. Esse documento apresenta uma variedade de textos de caráter educativo, direcionados para a área agrícola e para a indústria de laticínios, a exemplo de artigos de intelectuais que tratam da história dos municípios, do ensino prático de laticínios, da educação da juventude rural (escolas para os filhos dos vaqueiros), entre outros. Muitos dos conteúdos da revista refletem um caráter de expansão de conhecimentos técnicos para uma determinada clientela, demonstrando ações extensionistas que estabeleciam uma relação entre técnicos, produtores rurais, trabalhadores e a indústria de laticínios, com o objetivo de organizar cientificamente o trabalho para aumento da produtividade e modernização do campo. Um debate que tinha como pano de fundo o objetivo de construir um projeto de nação brasileira, alinhando o país no caminho do capitalismo mundial (MENDONÇA, 1996). Para tanto, era importante criar formas de intensificação do processo de produção com a introdução de inovações tecnológicas e a formação de um “novo” trabalhador.

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Na pesquisa desenvolvida no Arquivo Público Pedro Calmon, sessão republicana, em Salvador, rastreamos documentos das atividades desenvolvidas pela Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio nas décadas de 30, 40 e 50, em busca de informações sobre os laticínios na Região Sudoeste. Os principais documentos encontrados foram processos de isenção de impostos, relatórios de vistorias em fábricas da região e relatório das atividades do Posto Experimental em 1942. Os documentos mostraram que uma das preocupações do governo da Bahia nos primeiros anos da interventoria (1932-1934) de Juracy Magalhães (1936) foi o fomento da indústria de laticínios. Uma das estratégias políticas do então interventor foi a de conquistar o apoio dos chefes políticos do interior baiano. Em Conquista, um dos principais líderes políticos era o Coronel Deraldo Mendes, chefe local do Partido Social Democrático (PSD), partido criado por Juracy para enfrentar as eleições para governador em 1934. A criação do Posto em Conquista não deixava de ser um trunfo do interventor e instrumento de propaganda para angariar apoio a sua candidatura ao governo estadual (O COMBATE, 1934; GUEIROS, 1996, p. 130-134). Indústria de laticínios e ensino prático Tradicional zona de pecuária, a região de Conquista, desde o seu desbravamento na segunda metade do século XVIII, trilhou o caminho da criação de gado (SOUSA, 2001, p. 104-109). A cidade foi a pioneira baiana na produção de manteiga em moldes industriais. Há dois relatos a respeito deste fato. Segundo o professor Pedro B. Peres, a primeira fábrica de manteiga foi fundada em 1920 pelo Coronel Deraldo Mendes e Cia., e seu produto denominava-se “Elza” (PERES, 1936, p. 856). Já o agrônomo Honorato de Freitas afirmava que a manteiga Elza disputava o pioneirismo com a manteiga “Oriental”, que teve curta duração, produzida pelo Sr. Virgílio Mendes Ferraz (FREITAS, 1936, p. 1153-1154). Segundo os relatos, dá-se a entender que a manteiga Elza foi produzida em parceria pelos Srs. Deraldo Mendes e Américo da Silva Almeida. Em 1936, ela ainda estava firme no mercado, e sua fábrica continuava

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no mesmo local, na Fazenda Casa de Telhas, pertencente à esposa de um de seus fundadores, a Srª Anna Mendes de Almeida. Em 1930, surgia a Cooperativa de Laticínios de Conquista, fundada por elementos da própria cidade, “com 150 contos de capital, aparelhagem moderna, instalação frigorífica, laboratório etc.” (PERES, 1936, p. 856). A marca produzida pela Cooperativa foi a Condor, que enviou, para Salvador, nos seus primeiros sete meses de funcionamento, 15.140 kg de manteiga. Ainda em 1930, enfrentando dificuldades, a Cooperativa foi arrendada para o Sr. Julius Frank, e a marca passou a denominar-se “Conquista”. Não resolvidos os problemas, a Cooperativa deixou de produzir pouco tempo depois (FREITAS, 1936, p. 1154). Segundo Honorato de Freitas, no início daquela década, mais exatamente em 1931, a cidade de Conquista via surgir mais uma fábrica, de propriedade da firma Irmãos Rosa e produtora da marca Catita. Sua produção em 1932 foi de mais ou menos 24 mil kg de manteiga, saltando, em 1935, para 82 mil kg e, para 1936, a previsão era superar os 100 mil kg (FREITAS, 1936, p. 1154). Entre 1932 e 1934, uma forte seca assolou a região central do Estado, onde se localizavam os municípios de Mundo Novo e Morro do Chapéu, sedes também de fábricas de manteiga. Para fugir desse problema, alguns proprietários transferiram-se para a região Sudoeste, fortalecendo a indústria de laticínios ainda mais a partir de 1933. Conquista recebeu a fábrica Coroa, do médico veterinário J. Cohim Ribeiro, que, mais tarde, mudou sua marca para 2 de Julho. A fábrica Garota, pertencente ao Sr. Octavio Meneses, instalou-se em Itambé também em 1933 e, em 1935, ela já produzia 140 mil kg de manteiga. Por fim, o município de Encruzilhada recebeu a fábrica Princezita, de propriedade do Sr. Raul Borba, em 1934. No ano seguinte, sua produção alcançava os 50 mil kg (FREITAS, 1936, p. 1154). O Sr. Otto Frensel, diretor técnico da Sociedade Nacional de Agricultura e secretário da Associação dos Exportadores de Leite para o Distrito Federal, destacava as “excelentes condições” para a produção de manteiga na zona de Conquista (PERES, 1935, p. 257-259). A produção de queijo também tinha ali condições bastante favoráveis, tanto no que

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diz respeito à temperatura quanto à umidade, pois eram fatores fundamentais para a cura e fermentação do leite (PERES, 1935, p. 257-259). Em 1934, instalou-se na cidade de Vitória da Conquista o primeiro Posto Experimental de Laticínios da Bahia com o objetivo de incentivar o aproveitamento do leite na produção de queijo artesanal e manteiga, combinando princípios de uma moderna tecnologia, organização industrial, transferência de conhecimentos técnicos para os produtores rurais e qualificação da força de trabalho. Esta iniciativa teve por fim disseminar, entre os criadores baianos, noções sobre pecuária de leite, higiene e defesa sanitária animal, assim como efetuar experiências e estudos com o intuito de promover o desenvolvimento da indústria de laticínios na região (BAHIA RURAL, 1936, p. 1211). O Posto de Laticínios, portanto, estava sendo instalado numa região favorável ao ramo da indústria leiteira, que, sozinha, produzia quase a totalidade da manteiga fabricada na Bahia, com uma previsão de produção, para 1936, superior a 328 mil kg, quantidade maior que toda a produção baiana no ano de 1933 (PERES, 1936, p. 856). A fotografia (Figura 1) mostra o prédio onde funcionou o Posto Experimental de laticínios na década de 30:

Figura 1 – Fachada do prédio onde funcionou o Posto Experimental de laticínios na década de 30.

Fonte: PONDÉ, 1934.

No Posto de Laticínios, desenvolviam-se várias atividades direcionadas para um mesmo fim. Uma delas voltava-se para a produção

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experimental de laticínios, análise em laboratório dos componentes do leite, disseminação de tecnologias e instruções sobre a instalação de usinas de beneficiamento, fábricas de laticínios, entrepostos de leite, cooperativas, postos de desnatação, etc. Nessa mesma época, iniciou-se o Curso Prático de Laticínios (Figura 2), ministrado por professores técnicos agrônomos, na sede do Posto Experimental de Laticínios, regulamentado pela Secretaria da Agricultura, Indústria, Comércio, Viação e Obras públicas da Bahia, em 1934, com o objetivo de instruir, preferencialmente, os filhos dos fazendeiros, industriais ou operários deste ramo, interessados no conhecimento da tecnologia do leite e seus derivados (PONDÉ, 1934, p. 86; BAHIA RURAL, 1936, p. 1211).

Figura 2 - Turma de práticos em laticínios em 1937. Fonte: Foto Extraída do arquivo particular de ex-aluno da Escola Prática de Latcínios.

O currículo do curso era composto de aulas práticas sobre pecuária leiteira e laticínios. Durante o seu funcionamento, produziamse variados tipos de queijos e manteiga não só para capacitar os alunos em relação ao feitio dos produtos, normas de higiene, mas, também, para ensiná-los a comercializar, relacionando os produtos segundo os ingredientes, tipos e preços tabelados pela Secretaria da Agricultura. O curso era gratuito, oferecia um máximo de vinte vagas por ano, com duração mínima de dez meses e era essencialmente prático, “aprender fazendo”, ensinando um ofício ligado à produção e destinado à formação de uma força de trabalho manual.

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Ao final do curso, após exame de habilitação perante uma banca examinadora, os alunos recebiam um certificado que lhes concedia o título de “Prático em Lacticínios”, fornecido pela Secretaria da Agricultura do Estado. De acordo com o regulamento de criação do curso, os primeiros colocados no exame deveriam ser preferidos nas indicações quando surgissem vagas em cargos para o exercício profissional. No primeiro ano de seu funcionamento, o curso diplomou cinco práticos que foram trabalhar em fábricas de manteiga baianas e mineiras, sendo a única oportunidade de uma profissionalização regulamentada para rapazes na cidade. Nas notas publicadas no jornal O Combate, entre 1935 e 1937, pode-se observar a direção do Posto Experimental divulgando as datas de entrega de certificados de conclusão do Curso Prático aos alunos que o freqüentaram, fazendo referências ao local e à importância dos convidados para o evento, demonstrando que este representava um momento solene para a cidade (O COMBATE, 1935). A concepção do curso estava voltada para a qualificação profissional de rapazes que tinham a intenção e as condições de, no futuro, tornarem-se pequenos proprietários ou empregados em indústrias de laticínios; modernizar a produção nas propriedades da família; tornarem-se funcionários para o exercício do “ensino ambulante” em fazendas da região. Nos depoimentos colhidos com ex-alunos, verificamos que o curso cumpriu uma importante função educativa na qualificação de práticos em laticínios, sendo responsável pelo fomento e desenvolvimento da produção de manteiga e queijo do tipo Camponês em meados da década de 30, que perdura até hoje, além de ter propiciado os conhecimentos necessários à abertura de negócio próprio no ramo de laticínios. Naquela época, a cidade contava com poucas escolas primárias, públicas ou particulares, cursos que preparavam alunos para exame de admissão em outras localidades, cursos de datilografia, corte e costura, culinária e música. Apesar de o ensino profissional na sua essência ser associado às classes pobres, o Curso de Prático em Laticínios

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representou certo avanço em termos educacionais para a cidade, embora um avanço para poucos, uma vez que os candidatos deveriam apresentar, no ato da matrícula, diploma de curso primário expedido por escola pública ou particular de idoneidade reconhecida. O depoimento de um dos ex-alunos entrevistados esclarece que, para freqüentar o curso, a exigência era o exercício da leitura e da escrita. A finalidade educacional do curso, que se distinguia das demais instituições de ensino elementar, era formar mão-de-obra especializada para ministrar ensinamentos práticos nas fazendas e nas indústrias de manteiga. Já havia naquela época uma grande preocupação com a educação dos trabalhadores da zona rural e da indústria, aliada a uma preocupação do Estado em oferecer alguma alternativa de inserção de jovens no mercado de trabalho e atender às demandas dos fazendeiros e proprietários de laticínios com uma força de trabalho qualificada. Conforme Freitag (1986, p. 53), o Estado procurava atender às necessidades do setor privado assumindo o treinamento da força de trabalho “‘para criar um exército de trabalho para o bem da nação’ nas palavras do Ministro Capanema”. O fomento da indústria de laticínios vai exigir uma maior instrução dos trabalhadores para o manejo com as máquinas e as normas de higiene. Segundo Aguiar (1936), técnico em laticínios do Posto Experimental, para a expansão e o desenvolvimento da indústria de laticínios, os conhecimentos técnicos e higiênicos são necessários desde a fonte de produção da matéria-prima até a última operação no fabrico do queijo e da manteiga. Para Aguiar, a região tem deixado muito a desejar, configurando um entrave para a expansão da produção. Do ponto de vista das transformações históricas que estavam acontecendo no mundo do trabalho naquela época, a implantação do Posto Experimental de Laticínios no município e a instalação do Curso Prático de Laticínios refletem as influências do processo de intensificação do capitalismo industrial e o papel da intervenção econômica do Estado. Essas transformações surgiram nas primeiras décadas do século XX no país. Nesse período, estabeleceu-se um jogo

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de interesses socioeconômicos que, às vezes, implicava, simultaneamente, solidariedade e oposição entre as oligarquias agroexportadoras, de um lado, comprometidas em preservar os seus interesses e, de outro, a burguesia industrial que ganhava projeção com a expansão urbano-industrial, tendo o Estado como aliado para criar condições favoráveis à introdução desse novo modo de acumular. Além disso, havia o objetivo de construir um projeto para a nação brasileira que enterrasse o passado colonial e alinhasse o país no caminho do capitalismo mundial (MENDONÇA, 1996, p. 268). A década de 30 foi o período de aceleração do desenvolvimento das relações capitalistas nos centros urbanos. No campo, essas relações se expandiram de modo desigual e com lentidão, do mesmo modo que ocorreram desigualdades marcantes entre regiões do país. O desenvolvimento dos centros urbanos impulsionava o crescimento de um mercado interno que demandava o crescimento da indústria e, neste sentido, novas áreas iam sendo incorporadas à economia de mercado. Esse novo modo de vida desperta para a importância estratégica do sistema educacional, objetivando garantir as mudanças estruturais ocorridas, criando estímulos de redução da taxa de analfabetismo e estratégias de qualificação profissional a um número maior de pessoas que já eram alfabetizadas para atender às necessidades de uma sociedade capitalista emergente (SODRÉ, 1980, p. 64-72). Naquele momento, despontavam novas demandas educacionais por conta da intensificação do capitalismo industrial no país. As exigências da sociedade industrial impunham mudanças na forma de pensar a educação e a escola. Por um lado, havia a necessidade de eliminar o analfabetismo por conta da grande concentração da população nos centros urbanos com o objetivo de formar uma massa de consumidores e, por outro, a necessidade de qualificar mão-de-obra para trabalhar nas manufaturas. Havia também, segundo Cunha (2000), a intenção de difundir uma ideologia que versava sobre a necessidade de educar o povo, tirá-lo da ignorância, da apatia, da superstição, para o “engrandecimento e progresso da nação”, aliada ao desenvolvimento da industrialização, que juntos poderiam conduzir o Brasil ao nível das nações civilizadas.

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Como conseqüência do desenvolvimento urbano-industrial pós1920 e, principalmente, depois de 1930, começará a se sentir a necessidade de formar elementos capacitados a desempenhar novas funções no setor industrial e de serviços. Os hábitos da vida urbana começam a exigir maiores níveis educacionais e o Estado é pressionado pelas massas populares a um maior acesso à educação. Já que o ensino secundário era reservado para a elite, a saída era a criação de cursos profissionalizantes (MACHADO, 1989). A criação de cursos profissionais no Brasil sempre esteve diretamente relacionada às necessidades do modo capitalista de produção, configurando-se como expressão da divisão social e técnica do trabalho o que implica em diferentes formações, de acordo com a posição a ser ocupada no sistema produtivo. Segundo Kuenzer (1992, p. 12), a formação voltada para o trabalho está definida, desde seu início, como destinada aos mais pobres que, sem acesso ao sistema regular de ensino, teriam condição de ocupar as posições mais baixas na “hierarquia ocupacional”. O sistema público de ensino oferecia um determinado caminho para os alunos oriundos das classes mais abastadas e outro para as classes populares que conseguiam chegar e permanecer na escola. Os primeiros, depois de cursar o primário, eram encaminhados para o ginásio, em seguida para o colegial, podendo optar por um curso superior. Para os segundos, o caminho, quando não evadiam do primário, era freqüentar um curso profissionalizante. O próprio Estado admitiu abertamente esse ramo de ensino como predestinado para as camadas mais desfavorecidas, só assumindo outra posição ideológica mais tarde com avanço do capitalismo no país. Em Vitória da Conquista, novas necessidades de urbanização e o surgimento de um mercado de consumo já determinavam o aparecimento de outras exigências educacionais, demonstrado por professores da cidade ao expressar sua grande preocupação com o problema do analfabetismo, inclusive do homem do campo (O COMBATE, 1934).

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Na década de 30, a economia da cidade de Vitória da Conquista era basicamente direcionada para atividades primárias ligadas à pecuária e à agricultura de subsistência. O município tinha como principais produtos de exportação: gado, manteiga, requeijão, couro, poaia (ipecacuanha) e feijão (BAHIA RURAL, 1937), cuja maioria era controlada e desenvolvida nos latifúndios, que pertenciam a um pequeno grupo de fazendeiros da região, favorecendo a formação de uma população de trabalhadores rurais que viviam em situação de miséria e ignorância. O principal comércio realizado por esses fazendeiros era a compra e venda de cabeças de gado. O leite era considerado como uma mercadoria de menor importância quando comparado com o gado, não obstante já existirem na região algumas fábricas de manteiga. Em meados dos anos 30, os fazendeiros locais e o governo debatiam idéias em torno do melhor aproveitamento do leite. No Primeiro Congresso de Criadores Baianos que aconteceu na cidade, em 1936, estavam presentes o interventor do Estado, técnicos em laticínios, fazendeiros e proprietários das fábricas de manteiga. O relato dos discursos proferidos no evento mostra a importância do fomento à indústria de laticínios para o crescimento da região (BAHIA RURAL, 1936). Agrônomos e técnicos em laticínios do Estado publicam artigos para difundir e demonstrar idéias sobre a produção de derivados do leite, com o objetivo de fomentar a indústria de laticínios (O COMBATE, 1934; B AHIA R URAL , 1936). As oligarquias rurais do município demandavam o desenvolvimento dessas indústrias, viabilizando a expansão da produção e a ocupação de novas terras. O Estado, por sua vez, tinha uma preocupação política e econômica em cooptar as oligarquias locais, que eram controladas pela classe dominante ligada à pecuária, e assumir um papel intervencionista, propiciando algumas condições favoráveis para o fomento da indústria de laticínios. As exigências dessa nova produção indicavam a necessidade de assegurar a instrução primária, eliminando o analfabetismo e qualificando profissionalmente indivíduos para trabalhar na produção de queijo e manteiga.

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Esses dados obtidos a respeito da história da indústria de laticínios e da instalação do Posto Experimental na região de Vitória da Conquista ilustram o avanço do modo capitalista de produção e de vida, abrindo possibilidades de prosseguimento nos estudos acerca das transformações técnico-organizacionais do capitalismo industrial para a organização da produção no campo e a sua relação com o processo de qualificação profissional de trabalhadores e produtores rurais. Por fim, vale ressaltar que a localização, sistematização e problematização das fontes documentais possibilitaram reconstruir o objeto que está sendo investigado, atribuindo sentido a alguns rastros de memória sobre a cidade, as pessoas e as instituições. RECORD IN FILES ABOUT THE DAIRY INDUSTRY IN THE SOUTHWESTERN REGION OF BAHIA Abstract: This article presents a brief discussion on documents (newspapers, magazines and administrative reports) found in files about the development of the dairy industry and the professional qualification carried out by the Experimental Dairy Station, in the region of Vitória da Conquista – BA, and so articulating aspects of the Brazilian social economic development and its repercussion on the regional economy and education. Key words: File. Document. Dairy Industry.

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DOSSIÊ TEMÁTICO:

Fontes Documentais para a História da Educação

O USO DAS FONTES NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA: QUESTÕES METODOLÓGICAS INICIAIS Marlete dos Anjos Silva Schaffrath *

Resumo: O texto integra um trabalho de pesquisa docente recentemente concluído, cujo objeto é a investigação do lugar das fontes na pesquisa historiográfica e, mais especificamente, uma análise acerca do uso das fontes mais comuns neste tipo de pesquisa. Apresenta os resultados das primeiras aproximações com o tema e se constitui da seleção de alguns estudos que ajudam a situar o objeto de análise, sua problemática e, sobretudo, seus caminhos metodológicos. Pretende discutir em que medida os historiadores e pesquisadores da historiografia da educação podem significar as fontes em suas pesquisas. Considerando a hipótese de que o uso das fontes está irremediavelmente sujeito à perspectiva de análise do pesquisador (método), o que se tem visto são abordagens diversas sobre o papel das fontes nas pesquisas, assim como são distintos os significados que a elas se atribuem. Entretanto, há ainda pesquisadores para quem as fontes passam pela pesquisa apenas como instrumento informativo ou, quem sabe, mero efeito de ilustração (como o que acontece com o uso de fontes imagéticas), sem que incidam sobre elas reflexões que deveriam caracterizar melhor o seu papel na pesquisa. Palavras-chave: Fontes. Pesquisa historiográfica. * Professora Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

Vitória da Conquista

n. 2

p. 237-246

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O interesse pelo estudo deste tema de pesquisa nasceu da necessidade de um tratamento adequado ao uso das fontes na pesquisa historiográfica, que é onde temos trabalhado ultimamente. Nossa participação em diversos grupos nos tem motivado a realizar pesquisas no campo da historiografia da educação e, também, a utilizar pesquisas cuja sustentação se dá pelas fontes documentais, imagéticas e outras. São fotografias, documentos antigos, documentos oficiais, sobre os quais (e sob os quais) traçamos um plano de pesquisa sem muitas vezes atentar para os critérios de sua utilização. A pesquisa docente que dá origem a este texto se propõe a estudar o lugar das fontes na pesquisa historiográfica e, especificamente, detalhar uma análise do uso das fontes mais comuns neste tipo de pesquisa, a saber: documentos oficiais, relatórios e falas de Presidentes das Províncias, relatórios e registros da educação brasileira, fotografias e material de circulação periódica. Pretende investigar a caracterização destas fontes assim como os critérios de sua utilização. Este texto vem especialmente tratar do trabalho inicial da pesquisa, que se constitui de um estudo preliminar com a finalidade de estabelecer as bases teóricas e metodológicas sob as quais se estabeleceria a pesquisa em si. Aqui se encontram descritas algumas considerações acerca dos conceitos que envolvem a História como ciência e são apresentados alguns argumentos a respeito do trabalho do historiador e do uso das fontes em suas pesquisas. Mas, por que investigar os aspectos teóricos e metodológicos da pesquisa historiográfica antes de tratar propriamente das fontes? Logo nos primeiros estudos, surgiram algumas questões de caráter metodológico que pareciam cruciais para o desvelamento de nosso objeto. E, neste momento, já não seria mais possível continuar nossa investigação sem antes revisitar as bases teóricas e metodológicas da pesquisa com fontes. A idéia era a de que, com os resultados das primeiras aproximações, constituir-se-ia um texto de orientação básica que serviria como ponto de partida para o trabalho de pesquisa e como norte ideológico para as escolhas e as análises que se fariam no encaminhamento da pesquisa.

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Assim, retomamos algumas questões mais gerais acerca da História e da pesquisa historiográfica a fim de delimitar um caminho metodológico que servisse como suporte para as interpretações a serem realizadas na pesquisa. O texto que estamos apresentando, portanto, contém uma seleção de estudos e uma breve análise de suas propostas, que nos ajudam a situar nosso objeto de pesquisa (as fontes na pesquisa historiográfica), sua problemática e, sobretudo, seus caminhos metodológicos. O interesse pelo estudo deste tema de pesquisa nasceu da necessidade de um tratamento adequado ao uso das fontes na pesquisa historiográfica, que é onde temos trabalhado ultimamente. Temos participado de grupos de pesquisa nesta área, a saber: o grupo de pesquisa em “Educação Pública”, ligado ao CNPq; e o grupo de pesquisa “Levantamento e catalogação de fontes primárias e secundárias de apoio à pesquisa em educação do DFE-UEM” ligado ao HISTEDBR (Unicamp). Nossa participação nestes grupos nos tem motivado a realizar pesquisas no campo da historiografia da educação e, também, a utilizar pesquisas cuja sustentação se dá pelas fontes documentais, imagéticas e outras. São fotografias, documentos antigos, documentos oficiais, sobre os quais (e sob os quais) traçamos um plano de pesquisa sem muitas vezes atentar para os critérios de sua utilização. Este tem sido o fator que mais tem influenciado nossos questionamentos acerca do uso das fontes de pesquisa. O que se pode advogar em favor de um tema de pesquisa que se propõe a discutir o uso de fontes é o fato de que elas nos têm fornecido motes para pesquisas diversas; é com elas que construímos nossos objetos de análise, fazemos nossas investigações e, depois, as revelações. No entanto, ao mesmo tempo em que as fontes nos têm proporcionado historicizar nossos objetos, elas nos colocam um problema fundamental que é exatamente estabelecer, reconhecer os limites e as possibilidades de seu uso na pesquisa. A problemática fundamental neste trabalho é saber em que medida os historiadores e pesquisadores da Historiografia da Educação podem significar as fontes em suas pesquisas; saber de quais perspectivas eles devem partir.

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Considerando a hipótese de que o uso das fontes está irremediavelmente sujeito à perspectiva de análise do pesquisador (método), o que temos visto são abordagens diversas sobre o papel das fontes nas pesquisas, assim como são distintos os significados que a elas se atribuem. Entretanto, há ainda aqueles pesquisadores para quem as fontes passam pela pesquisa apenas como instrumento informativo ou, quem sabe, mero efeito de ilustração, sem que incidam sobre elas reflexões que deveriam caracterizar melhor o seu papel na pesquisa. De início, antes de tudo é preciso avaliar algumas questões metodológicas da História e só então discutir o uso das fontes nas pesquisas historiográficas. Não poderíamos, portanto começar sem antes revisitar a pergunta que se coloca para os historiadores/ pesquisadores: O que é História? No livro de E. Carr, Que é História,1 encontramos o fio condutor que pode nos levar à reflexão sobre esta questão. Para Carr (2002, p. 65), a História “se constitui de um contínuo processo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre passado e presente”. Para ele, o historiador e os fatos históricos têm uma relação de interação, ou seja, na medida em que o historiador analisa, interpreta um fato, ele o significa. Assim, o historiador sem os fatos é inútil, e o fato sem o historiador está morto; há, portanto, entre eles, uma relação de recíproca dependência. Ainda segundo o autor, é preciso considerar que o historiador pertence a uma determinada época e, por isso, está ligado às condições de existência de sua sociedade. Daí depreende-se que o trabalho de interrogar as fontes para saber dos fatos e escrevê-los está irremediavelmente ligado às condições históricas do historiador. Mas então a História é mera subjetividade do historiador? E quanto ao seu caráter científico? Numa sociedade cujos padrões científicos são estabelecidos pela lógica positivista, onde tudo se soma, tudo se divide, como se poderia conferir o grau de Ciência a um ramo do conhecimento que se propõe a analisar os fatos em interação com o pesquisador? 1

CARR, E. H. Que é história? 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicas iniciais

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Vamos agora tentar localizar a relação entre o historiador e os fatos históricos e, ao mesmo tempo, levantar a questão da objetividade e da cientificidade da História. Sempre que se coloca em discussão acadêmica o valor da História como ciência ou o valor da pesquisa histórica para a Ciência, aparece uma questão em torno da lógica científica que regula os estudos históricos. Thompson (1981), ao buscar caracterizar este processo, ao qual chama de “lógica histórica”, defende que a lógica da História se caracteriza diferentemente da lógica analítica e, por este motivo, não pode ser submetida aos mesmos critérios de definição. Para o autor, a “lógica histórica” é adequada a fenômenos que estão sempre em movimento, que evidenciam contradições, particularidades e processos. Para o autor: Assim, a “história” não oferece um laboratório de verificação experimental, oferece evidências de causas necessárias, mas nunca (em minha opinião) de causas suficientes, pois as “leis” (ou, como prefiro, a lógica ou as pressões) do processo social e econômico estão sendo continuamente infringidas pelas contingências, de modos que invalidariam qualquer regra nas ciências experimentais, e assim por diante (THOMPSON, 1981, p. 48).

A partir daí, Thompson argumenta que a “lógica histórica” é um método lógico de investigação adequado à pesquisa histórica. Neste caso, o autor sustenta que o interrogador é a lógica histórica, o conteúdo da interrogação é a hipótese, e a evidência é o interrogado. Então, cada historiador, ao fazer perguntas e ao fazer perguntas de uma determinada maneira, traz à luz novos níveis de evidência. Isto quer dizer que nossos valores, nossas perspectivas de análise determinarão os significados de nossas pesquisas porque também significam os fatos que estão no passado. Neste sentido, pesquisar a história e, no nosso caso, pesquisar a história da educação é perguntar por ela, escolher estas perguntas e, conforme explica o autor, saber que: Nosso voto nada modificará. E não obstante, em outro sentido, pode modificar tudo. Pois estamos dizendo que estes valores, e não aqueles, são os que tornam a história significativa para nós, e que estes são os valores que pretendemos ampliar e manter em nosso próprio presente (THOMPSON, 1981, p. 52).

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O raciocínio de Thompson nos ajuda a compreender questões metodológicas importantes para a pesquisa historiográfica. Por ele, podemos inferir que a compreensão de nossos objetos de estudo depende fundamentalmente do olhar que lançamos sobre ele, do nosso lugar, do lugar histórico de onde estamos “perguntando às fontes”. Também Lopes (1995), ao se referir às dificuldades de aceitar a História como ciência (na sociedade ocidental contemporânea), explica que, na concepção positivista, a História é entendida como sucessão de fatos isolados, sem qualquer relação com o observador; rumo ao progresso e, em cujo registro, estão apenas os grandes feitos da humanidade, as guerras, os personagens e heróis. Para a autora, a História pensada assim coloca a si própria a impossibilidade de adquirir o status de ciência posto hoje “já que sua matéria-prima – os fatos – seriam passados, únicos, irrepetíveis e, portanto, impossibilitados de se transformar em ‘lei’” (LOPES, 1995, p. 23). Na perspectiva de Lopes (1995), portanto, se quisermos auferir à história o status de ciência, é preciso que admitamos seu caráter distinto, peculiar de um ramo do conhecimento que se impõe indiferente aos padrões das ciências “exatas”. Agora vamos às fontes. Mas, o que são fontes? Esta é outra questão que se impõe aos pesquisadores e, sobretudo, à discussão do seu papel na pesquisa historiográfica. As fontes podem ser definidas, conforme Cardoso (1981), como sendo qualquer tipo de informação acerca do devir social no tempo, levando-se em consideração os meios com que foi preservada e transmitida. Neste sentido, argumenta Cardoso (1981, p. 95): Serão fontes históricas as redações que nos chegaram em papirus, tijolos de barro, paredes de monumentos, pergaminhos, papéis, etc.; objetos materiais diversos como templos, túmulos, moedas, móveis, quadros, etc.; restos ou contornos de paisagens agrárias, ou monumentos desaparecidos perceptíveis através da fotografia aérea feita em certas condições etc.

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Ainda de acordo com Cardoso (1981), a classificação mais usual de fonte2 é a que distingue: “fontes primárias ou diretas”, que seriam os documentos escritos (manuscritos ou impressos) publicados durante o próprio período estudado, ou depois, mas que tenham surgido em decorrência direta do tema pesquisado; e “fontes secundárias ou indiretas”, que se caracterizam pelos estudos realizados com as fontes primárias, que passam a configurar como material de pesquisa. Cardoso (1981) aponta ainda uma segunda classificação para as fontes, qual seja, a de “fontes escritas”, que seriam majoritárias para a pesquisa histórica, e as “fontes não escritas”, que se constituem de materiais como fotos, entrevistas, material arqueológico, etc. Esta descrição do conceito e das características de fontes de pesquisa é seguramente importante para o historiador. No entanto, há, no nosso entendimento, questões que se colocam como fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa historiográfica que não estão exatamente situadas no âmbito da conceituação, mas que se apresentam como preocupações com o método de investigação e uso das fontes em pesquisas. É sobre esta questão que investiremos algumas considerações. Para Ragazzini (2001, p. 14), “as fontes são vestígios testemunhos que respondem às perguntas que lhes são apresentadas”. Para o autor, a fonte é o único contato possível com o passado, ela está lá, provém do passado, mas, ao ser interrogada e interpretada pelas formas de conhecimento do presente, deixa de ser passado e torna-se uma ponte com o presente, uma testemunha capaz de nos proporcionar conhecimentos sobre o passado. Nossa relação com as fontes de pesquisa constitui-se, mormente, de dois modos distintos: o primeiro diz respeito à perspectiva de que o uso das fontes e suas abordagens devem ser inteiramente objetivos; e o segundo, à concepção que defende a subjetividade do intérprete para o uso das fontes. O autor lembra que, atualmente, as fontes são lidas de Aqui é preciso advertir que outros autores trazem esta discussão (do que são fontes) sob viés teórico distinto deste. São estudos que futuramente deverão fazer parte deste trabalho de pesquisa. 2

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acordo com múltiplas relações, subjacentes a questões como a sua produção, seu modo de seleção, sua conservação e interpretação e que, por este motivo, devem-se evitar concepções que valorizam demasiadamente a objetividade no uso das fontes, assim como se deve atentar para a ênfase inadequada dos aspectos subjetivos ao se avaliar uma fonte de pesquisa. Segundo o autor, “é preciso revelar claramente todas as relações que compõem a cadeia que leva do sinal do passado ao signo, à significação, à interpretação da história” (RAGAZZINI, 2001, p. 16). Para Ragazzini, nesses termos, faz-se necessária uma discussão sobre o uso e os problemas das fontes para uma História da Educação, tanto do ponto de vista teórico, quanto da prática de pesquisa. Ainda sobre as fontes, Fávero (2000) adverte que, embora utilizemos as fontes para conhecer os fatos e aprender mais sobre uma determinada realidade, devemos saber que este conhecimento não pode ser entendido como um dado definitivo e acabado. A autora explica que os conhecimentos produzidos pela realidade estão em constante aproximação do real, o que significa dizer que a eles podem ser acrescidos outros elementos, construindo-se, assim, novos conhecimentos. O trabalho com fontes documentais se dá nesta perspectiva: trata-se de um constante diálogo do pesquisador com as fontes, mas um diálogo permeado por questões, dúvidas e cujo resultado nem sempre se constitui de análises precisas. A este respeito, Nunes (1992) explica que a leitura que o historiador faz a partir do presente sobre o passado está organizada em função de problemáticas impostas por determinadas situações. São as chamadas “questões de nossa época”. A autora argumenta que algumas destas questões revelam, por um lado, o exercício de poder realizado pelo historiador ao escolher umas e preterir outras questões e, ao mesmo tempo, os limites desta escolha que estão definidos pelo lugar social de onde escreve e pelas práticas institucionais nas quais ele está mergulhado. Para Nunes (1992, p. 14), “É isto que faz da historiografia uma expressiva síntese entre um lugar, um trabalho e um discurso”.

O uso das fontes na pesquisa historiográfica: questões metodológicas iniciais

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Temos então as fontes chamadas do passado pelo presente e revelando o que se pergunta a elas. Mas o que as fontes podem dizer (dizer a cada um) não pode ser entendido como a verdade irrefutável dos fatos. O que podemos apreender das fontes são conhecimentos históricos, passíveis de modificação, de novas interpretações e novas descobertas e de ressignificação. Os critérios da “Lógica Histórica” defendida por Thompson (1981) mais uma vez explicam que, para a História e, no nosso caso especialmente, para a pesquisa historiográfica com uso de fontes, não é permitido apresentar conclusões absolutas, imaginadas como verdades irrefutáveis acerca do passado interpretado pelo presente. Pode-se contar, afinal, com resultados de pesquisa que têm seu valor histórico, real e científico, mas que revelam também toda a dinamicidade e, por que não dizer, provisoriedade do conhecimento humano incidindo sobre os fatos históricos. O que temos até aqui são elementos metodológicos que nos indicam algumas perspectivas de análise e, sobretudo, reforçam a relevância do tema de pesquisa. O conceito da História, as contribuições dos estudos da História, o lugar histórico do pesquisador/historiador, as fontes, seus conceitos, usos e interpretações são, todos eles, questões absolutamente necessárias ao desenvolvimento da pesquisa histórica. As discussões brevemente apresentadas buscaram situar a atualidade e centralidade do tema por um lado e, por outro, fornecer pistas de nossas pretensões de abordagens e perspectivas de análise ao final de nossa pesquisa. THE USE OF THE SOURCES IN THE HISTORIOGRAPHICAL RESEARCH: INITIAL METHODOLOGICAL QUESTIONS Abstract: This text is part of a teaching research recently concluded whose object is the investigation on the place of the sources in historiographical research and, specifically, an analysis on the use of the most habitual sources in this sort of research. This text shows the results of the first approaches to the theme, and was constituted from the selection of some studies which help situate the object of analysis, its problem and, above all, its methodological ways. It aims to discuss to what extent historians and education historiography researchers can signify sources in their researches. By considering the hypothesis

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that the use of sources is exposed to the perspective of analysis belonging to the researcher (method), several approaches about the function of sources in researches have been seen, as well as the meanings attributed to them are distinctive. However, there are researchers that discern the sources only as an informative tool in the research, or, maybe, as mere illustration effect (as in the case of the use of imagetical sources), without the incidence of reflections on them which should better characterize their role in the research. Key words: Sources. Historiographical research.

Referências Bibliográficas CARDOSO, C. F. Uma introdução à História. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. CARR, E. H. Que é história? 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. FÁVERO, M. L. A. Pesquisa, memória e documentação: desafios de novas tecnologias. In: FARIA FILHO, L. (Org.). Arquivos, fontes e novas tecnologias: questões para a história da educação. Campinas: Autores Associados, 2000. p. 101-116. (Col. Memória da Educação). LOPES, E. M. T. Perspectivas históricas da educação. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios). NUNES, C. O passado sempre presente. In: NUNES, C. (Org.). O passado sempre presente. São Paulo: Cortez, 1992. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 4). RAGAZZINI, D. Para quem e o que testemunham as fontes da história da educação? Revista Educar, Curitiba, n. 18, p. 13-28, 2001. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de Althusser). Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

MULHER, PROFESSORA E ATIVISTA SOCIAL: O MOVIMENTO DAS PROFESSORAS PRIMÁRIAS DA BAHIA, EM 1947 Alcides Leão Santos Júnior * Só resta então uma esperança: que as falhas se transformem em fagulhas. (Waly Salomão).

Resumo: Estuda-se a mobilização das professoras primárias, na Bahia, na década de 40, movimento social que retrata o papel da mulher e da professora primária como responsável pela criação da Sociedade Unificadora de Professores Primários. Parte-se do pressuposto de que as motivações corporativas para a valorização profissional foram fundamentais para a eclosão do movimento dessas professoras. Dessa forma, objetivase a análise dos fatos e acontecimentos que marcaram esse movimento por meio das memórias dos “sujeitos epistêmicos”. Palavras-chave: História da Educação. Memória. Gênero. Movimento Social.

* Pedagogo (UCSAL), Mestre em Ciências Sociais (UFRN), membro do Grupo de Estudos Boa-Ventura (PPGCS-UFRN) e Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: [email protected] Práxis Educacional

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Considerações iniciais O desejo de estudar o movimento das professoras primárias da Bahia emergiu do contato que tivemos com a Sociedade Unificadora dos Professores Primários (SUPP) – por conta das comemorações pelo seu cinqüentenário. E como não poderia deixar de ser, essa discussão constitui-se um momento de diálogo e reflexão sobre a forma como percebemos a práxis educativa. O diálogo que constituímos, inicialmente, ao lecionar a disciplina História da Educação, no Curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias (FAC/Candeias, Bahia), nos levou a perceber a ausência de fontes documentais dos fatos que marcaram a historiografia educacional baiana, o que nos conduziu a pesquisar esses fatos. Diante da multiplicidade de acontecimentos que marcam a História da Bahia desde a chegada dos portugueses, centramos nossos estudos nos anos 40 do século XX porque esse período se constitui como um dos marcos do liberalismo econômico e das lutas de classes. Diante desse quadro, deparamos-nos com o movimento de mulheres professoras primárias na criação e organização de sua entidade representativa de classe. Também a reflexão decorrente dos estudos que ora fazemos sobre gênero, sob a tutela do Grupo de Estudos em Filosofia, Gênero e Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia constituiu-se uma outra motivação para este trabalho. Entendemos o estudo de gênero como categoria analítica e, dessa forma, procuramos seu viés inter-transdisciplinar e o associamos à educação, à docência e à memória. O percurso que faremos é marcado pelos relatos orais que se sustentam nos pilares da História Oral. Sendo assim, procuraremos produzir conhecimentos a partir da experiência do “outro”. A aproximação entre o diálogo e a reflexão nos levou aos acontecimentos que marcaram a criação da SUPP, tendo em vista que a história das mulheres é pouco explorada nos meios acadêmicos, pela ausência (ou publicações escassas) de fontes documentais. Percebemos

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que a bibliografia acadêmica sobre gênero assumiu o caminho da análise. Nessa perspectiva, o estudo de gênero procura traçar um perfil socioeconômico e psicológico das mulheres e conduz a um reducionismo ligando-as apenas aos movimentos feministas. Outro fato a salientar é que a maioria desses estudos limita-se a essa centralidade, por isso buscaremos, nesta pesquisa, desmistificar a figura passiva da mulher na sociedade e trazer à tona como as mulheres se organizam e participam das transformações da sociedade no percurso histórico. Gênero uma categoria em análise No cerne das exigências da sociedade contemporânea, estão as transformações globais tanto na esfera organizacional quanto na esfera humana. Tal conjuntura, ao longo das últimas décadas, vem proporcionando uma (re) leitura da memória humana como um suporte da (re) construção da história social. Situados num mundo de constantes mudanças, entendemos o professor como agente (re) construtor da memória coletiva. Ao principiar no curso da História, constatamos que as relações sociais são marcadas pelas lutas entre os diversos atores e atrizes sociais. Essa ocorrência determina alterações nas esferas eco-sociopolíticoculturais que, por sua vez, direcionam o caminhar da humanidade. Nessa polifonia de vozes, dá-se sentido à aproximação entre gênero e docência. A história da humanidade é marcada por conflitos que conduzem à dualidade: vencedor e vencido, dominante e dominado, ciência e senso comum, cristão e protestante... E ser homem e ser mulher. O ser humano já foi totalidade, um ser de natureza completa, por inteiro e, de uma forma ou de outra, guardamos no nosso íntimo esse desejo de retornar a ser um ser uno, um ser completo e indivisível. A idéia do ser humano completo nos direciona a um espaço que propicia a reflexão que se dá em um intenso processo de socialização que é marcada pela produção de gênero. Flax (1991, p. 217-250) nos mostra que as relações de gênero “são uma categoria destinada a abranger um conjunto complexo de relações sociais, bem como a se referir a um

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conjunto mutante de processos sociais historicamente variável” e ainda completa salientando que, por meio das relações de gênero, dois tipos de pessoas são criados: homem e mulher. Só que homem e mulher são apresentados como categorias excludentes. Gênero é uma concepção teórico-analítica, por isso o entendemos como uma construção histórica, cultural e social. O ser humano na divisão social é uma complementaridade. Descrevendo dessa maneira e em estreitos termos biológicos, o ser homem e o ser mulher seguindo seu desenvolvimento é uma produção cultural e social. Acreditamos, porém, que tal fato não justifica que, no plano físico e em nossos corpos, circulem características comuns. Contudo, em determinados momentos, as especificidades das funções bioanatômicas marcam as diferenças entre os sexos. Culturalmente, é essa a relação que tem sido ensinada aos sexos opostos, a mulher presa à preservação da espécie, ligada às amarras da maternidade, num fazer considerado e sem criatividade, o homem livre para criar instrumentos poderosos, preparar o futuro e forjar sua identidade (PASSOS, 1994, p. 23).

Como podemos reparar, quando o sujeito assume o seu “eu” sexual, boa parte de sua experiência vivida representa o (re) conhecimento que sustenta a construção da sua identidade, que não será representada na totalidade já que sua imagem somente representa uma parte. Assim, o homem se mostra com aparência viril, e a mulher, frágil. No processo de afirmação da identidade, são atribuídos mecanismos de socialização, são determinados valores e regras que especificam cada sexo. Este processo mostra-se conforme uma sucessão de diferentes níveis de conscientização que não permite a (re) construção do processo de (de) formação da sua identidade sexual. Docência: uma atividade eminentemente feminina As relações de diferenciação entre o homem e a mulher são marcadas por fatores sócio-históricos. Levando em conta essa premissa,

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na demarcação do modo de produção, talvez essa diferenciação – entre os sexos – seja mais explícita. Quando se focaliza o “mundo do trabalho”, percebemos com maior veemência as desigualdades entre os sexos. Contudo, se prestarmos atenção, poderemos perceber, também, que, a esta altura do caminhar histórico, o distanciamento do abismo das desigualdades não apresenta diminuição. Como não poderia deixar de ser, a relação mulher-trabalho sempre existiu. A história nos mostra que “na comunidade primitiva, as mulheres estavam em pé de igualdade com os homens [...]” (PONCE, 1994, p. 18) e, seguindo o processo histórico, essa relação passa a sofrer alterações quando a mulher escrava assume papéis domésticos e de produção. Um novo rumo toma essa relação e, na sociedade capitalista, a mulher passa a tirar sua sobrevivência – e também da família – do seu trabalho. É imprescindível ter claro que o capitalismo cria dois tipos de mulher: a burguesa e a proletária. A primeira é aquela que vive em função do trabalho do marido, enquanto a segunda, é a operaria, a camponesa... que sobrevive do seu trabalho como assalariada, fora do lar, e mantém-se responsável por todas as atividades domesticas – em casa. Tanto num sentido como no outro, a mulher começa a articularse na ocupação do mercado de trabalho. Los patronos parecen haber previsto um cambio continuo em la fuerza de trabajo femenina, em parte, esa era la razón de que se pudiera contratar a lãs mujeres por tan bajos salários. Asimismo, parece ser quelos bajos salarios se relacionabam con un cálculo ecónomico que siempre consideraba que las mujeres eram “dependientes naturales” de los hombres, un padre, marido o hermano (SCOTT, 1992a, p. 52.)

Na medida em que deixa (va) o lar para procurar trabalho, essa busca é (era) entendida – pelos capitalistas – como uma complementação de renda ou, simplesmente, um passatempo. Esse fato estabeleceu salários mais baixos e a ira dos homens que temiam ser desempregados. A nosso encontro, vem a diferenciação que a sociedade estabelecera a fim de ilustrar a inferioridade da mulher nas atividades

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produtivas. A inserção da mulher no mercado de trabalho precisa ser entendida como ocupação de postos de trabalho assalariado e com carteira de trabalho assinada. Nesse momento, as posições na ocupação de cargos começam a definir o trabalho do homem e o da mulher. Sobre a divisão sexual do trabalho, Mello (1995, p. 71-72) comenta que: Tem por trás uma divisão social que serve a interesse econômicos, a qual produz e ajuda a manter uma representação profissional que favorece uma retribuição desigual de salário e prestigio para profissões masculinas e femininas.

Os modos e maneiras como as coisas vão acontecendo e arranjando nos levam a compreender que ser professora foi o caminho encontrado pela mulher de classe média para ter acesso ao mercado de trabalho. Nessa perspectiva, Mello (1995, p. 70) esclarece que: A sexualidade do magistério como ocupação feminina, decorrente de determinantes econômicos, revela-se, ou aparece, como fator natural em função de exigências que essa ocupação apresentaria e que supostamente se adequaria mais ao sexo feminino. Essa adequação baseia-se, em geral, em estereótipos sobre o que é natural no homem e na mulher, ou em características femininas e aprendidas ou induzidas pela socialização.

A presença feminina torna-se bastante significativa na esfera educacional e predominante nos anos iniciais de escolarização, ou seja, na escola primária. A imagem de professora primária é dominante, com traços bastantes feitos, onde predomina a competência para o ensino das primeiras letras e contas, mas, sobretudo o carinho, o cuidado, a dedicação e o acompanhamento das crianças (ARROYO, 2002, p. 30).

Para Arroyo (2001, p. 30), os docentes das séries mais adiantadas são diferentes dos professores primários porque:

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Não incorporaram os traços reconhecidos da professora primária, nem a confiança social. Não incorporaram a figura do educador, condutor da adolescência e juventude como a professora incorporou o cuidado, a dedicação e o acompanhamento da infância.

Diremos, pois, que o saber docente passa a ser atrelado à relação de cuidados e de afetividade que o professor mantém na relação com o aluno, assumindo, assim, a dicotomia teorização e manutenção do status. A influência dessa percepção fez do magistério dos anos iniciais uma profissão feminina. Sob essa influência, a figura do professor primário feminiliza-se, e a educação passa a ser concebida como uma extensão da família. A escola passa a ser a segunda casa, e a professora, a segunda mãe. Não pretendemos discutir a relação escola–educação–familia, mas as representações que essa dinâmica faz da docência. Bem, se o destino reservou às mulheres a profissão de professora por entendê-la como, segundo Louro, uma “atividade de amor, de entrega e doação, para a qual ocorreria quem tivesse vocação”, é Louro (apud SAFFIOTI, 1987) ainda quem nos revela que: A entrada das mulheres no exercício do magistério – o que, no Brasil, se dá ao longo do século XIX (a princípio lentamente, depois de forma assustadoramente forte) – foi acompanhada pela ampliação da escolarização a outros grupos ou, mais especialmente, pela entrada das meninas nas salas de aula.

Lima (1996, p. 101), fazendo uma análise da entrada da mulher no magistério, no Estado da Bahia, salienta que esse ingresso deu-se em virtude da: [...] falta de professores para o provento de vagas nas escolas de Primeiras Letras, devido aos baixos salários e à dificuldade de fiscalização das atividades docentes, fazendo com que o Curso se tornasse uma ocupação feminina.

O que ficou exposto é que essa não foi, de forma alguma, uma entrada “tranqüila”. Objeto de muitas disputas e polêmicas, a possibilidade de mulheres exercerem o magistério foi, como sabemos,

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contestada por diferentes discursos, especialmente a partir do momento em que, pela abertura das escolas normais às moças (em meados do século XIX), estas passaram a se construir numa presença muito maior do que se supunha ou se desejava. Os apelos para “conter” e também para disciplinar a massa feminina se multiplicaram. De modo mais incisivo, esses apelos se voltaram para aquele que seria o discurso mais importante da época, ou seja, o discurso científico. Portanto, foi com o apoio do “discurso cientifico” que alguns puderam afirmar que se constituía uma “temeridade”, uma “insensatez” entregar às mulheres – portadoras de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso” – a educação das crianças. Dessa maneira, o magistério dos anos iniciais de escolarização passa ao longo do tempo a ser uma quase exclusividade feminina, e esse fato marca um alto percentual de mulheres nos cursos de Magistério. O movimento das professoras primárias na Bahia em 1947 Longe de serem seres passivos e sem garra para a luta, as mulheres professoras marcam a História da Educação quando assumem a consciência de sua identidade – de mulher e de professora – e, ao tomarem consciência desse papel, essas profissionais ingressam no “mundo” do trabalho politizadas. Segundo Ponce (1994, p. 35): A classe em si, apenas com existência econômica, se define pelo papel que desempenha no processo da produção; a classe para si, como uma classe que já adquiriu consciência do papel histórico que desempenha, isto é, como uma classe que sabe a que aspira.

As pesquisas sobre o desenvolvimento pessoal e profissional das professoras têm sido aceitas e ganham destaque ao longo dos anos, comprovando o papel da mulher como co-construtora do processo histórico. A aproximação entre os estudos de gênero e docência com o trabalho marca os alicerces desta pesquisa. Tendo como base esses estudos, procuraremos retornar à discussão da participação feminina

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nos acontecimentos político-sociais que marcam a História da Sociedade e da Educação Baiana especificamente na década de 1940. Passos (1991, p. 6) nos elucida o contexto da época com a seguinte afirmação: Em 1940, 56% das mulheres sabiam ler e escrever contra 62% dos homens. Poucas possuíam Curso Superior e quando isto acontecia, quase sempre, era na área do magistério, da medicina ou da odontologia, com consultórios montados em suas próprias residências. Além destas, a área das letras “também era uma inserção possível. Contudo, o desenvolvimento intelectual, quase sempre, não representava possibilidades de notoriedade publica”.

Os estudos sobre essa temática inserem-se no quadro vasto de teorização, com os quais compartilhamos a idéia de que a mulher marca o seu desenvolvimento profissional, como professora primária, fator preponderante da construção da sua identidade profissional. Para esta pesquisa, temos como ponto de partida a primavera de 1947. O início da estação fez desabrochar, na classe dos professores do Estado da Bahia, uma rosa que marca a História da Educação e da Mulher. Já que, segundo Scott (1992b, p. 77): [...] reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as definições de história e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância) no passado.

Procuraremos reparar, na História da Educação Baiana, o papel fundamental das professoras primárias da rede estadual de ensino, na criação da entidade representativa de classe. Como de costume, no mês de setembro, as unidades escolares da capital baiana festejavam a chegada da primavera com muita animação. Contudo, na Escola Estadual Maria Quitéria estoura uma inquietação; para alguns, uma revolta. Os professores tomam conhecimento de uma Tabela de Cargos e Salários decretada pelo então Governador Octavio Mangabeira que iguala os vencimentos dos professores primários aos dos zeladores.

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Como uma bomba que devasta corpos e vida, esta chega devastando as alegrias e provocando revoltas dos professores da Escola Estadual Maria Quitéria que conseguem articular-se com outras Unidades Escolares, pois teria que ser feito algo que viesse demonstrar a “capacidade e a união dos Professores contra o que se achava injusto e desrespeitoso” (REVISTA dA SUPP, 1957, p. 15).

Lúcia Barreto Almeida Souza, Luzia Martins de Souza, Esmeralda Aragão, Irene de Araújo Falcão, Abelita Gama da Paixão, Helena Sampaio Cruz, Maria Costa Figueiredo e Eleusina Uzel, não satisfeitas com a situação, constituem-se como representantes do movimento e redigem uma carta de indignação que é publicada no jornal A Tarde. A situação da categoria não é resolvida, e o grupo resolve convidar os professores, por meio de visitas às escolas, para uma reunião a fim de explanar a insatisfação da classe. Lucia idealizou e realizou o maior movimento de união dos professores primários, criando, com um grupo de colegas da Escola Maria Quitéria, onde ensinava, a Sociedade Unificadora de Professores Primários (SUPP), com o apoio e entusiasmo de Luzia Martins, a grande líder, e muitos outros colegas (ARAGÃO, 2002).

A reunião culminou com a criação da Sociedade Unificadora de Professores Primários (SUPP), que passou a convocar novos colegas por meio de anúncios em jornais. Os anúncios passaram a ser freqüentes e eram financiados pelos próprios professores que, logo após, resolveram montar um jornal – A Voz do Professor – para viabilizar a socialização das informações entre os professores. O movimento se organiza e ganha repercussão estadual, a ponto de, até o secretário estadual de Educação e Saúde, Anísio Teixeira, solidarizar-se com os anseios dos professores. Assim, surge a SUPP, uma entidade criada para defender os interesses dos professores primários no Estado da Bahia. Em suma, a participação feminina nas entidades de classes e de categorias sempre foi marcada por muita desconfiança pela sociedade civil e pelas próprias entidades. Assim, aqui pudemos ver como, mais

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uma vez, as mulheres rompem os obstáculos que as direcionam para os afazeres domésticos e profissões consideradas menos privilegiadas socialmente e se vêem na linha de frente dos movimentos sociais e de interesse de classe. Considerações finais O processo de construção de uma identidade e valorização profissional conduziu as professoras primárias da Escola Maria Quitéria a lutar contra uma equiparação salarial que não consideravam justa. Ainda que na prática docente fique evidente o discurso da democracia e da ética, ao dissertar essa temática não estamos livres em incorrer em preconceito. Num espaço de tempo em que se vivia o tumultuado final da “Segunda Grande Guerra Mundial” e em que as diferenças locais, nacionais e internacionais fizeram ressurgir os movimentos sociais (negro, índio, operário, etc.), as diferenças entre as classes ficaram mais evidentes. É possível então perceber que o movimento baiano não estava dissociado de um contexto local, nacional e internacional. Pelo contrario, ele é resultado de ideais democráticos que imperavam na época. Dessa forma, entendemos que o movimento das professoras primárias constitui-se num momento de reflexão e amadurecimento profissional. Reflexão porque estabeleceu os alicerces para a valorização dos professores primários da rede estadual de ensino tanto no aspecto financeiro como na elevação da auto-estima. Ao longo do tempo, vieram o amadurecimento e as lutas sucessivas para o respeito e valorização da classe. A nossa pretensão de resgatar um segmento da experiência humana, no contexto de um passado relembrado, de um presente dinâmico e de um futuro a ser construído por meio do uso de fontes orais – depoimentos –, nos estimula à reflexão sobre as formas pelas quais a História é construída. Em resumo, entendemos que a História Oral, como metodologia de pesquisa, é uma História vista de baixo, uma História local e comunitária, que procura retratar a história dos

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humildes e dos sem-história, tira do esquecimento aquilo que a História oficial sepultou. Levando em conta essas premissas, ela é necessária para (re) afirmar aqueles e aquelas que lutaram para a construção deste país. FEMME, INSTITUTRICE ET ACTIVISTE SOCIALE: LE MOUVEMENT DES INSTITUTRICES DE L’ÉTAT DE BAHIA EN 1947

Résumé: On étudie la mobilisation des institutrices à Bahia dans la décennie 1940, comme un mouvement social qui retrace le rôle de la femme/institutrice en tant que responsable de la création de la Société Unificatrice d’Instituteurs. On part du présupposé selon lequel les motivations corporatives en vue de la valorisation professionnelle furent fondamentales pour l’éclosion du mouvement de ces institutrices. On a pour but d’analyser les faits et événements qui marquèrent ce mouvement en interrogeant les mémoires de celles et ceux qui l’ont vécu. Mots-clés: Histoire de l’éducation. Mémoire. Genre. Mouvement social.

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. ______. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000. LIMA, Maria Marta Leone. Magistério e condição feminina: um estudo sobre a identidade de gênero no ICEIA. 1996. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. LIVRO DE POSSE DA DIRETORIA DA SUPP. Salvador, Livro 1, 1947-1970, p. 01-04. MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1988. MELLO, Guiomar Namo de. Magistério de 1º grau: da competência técnica ao compromisso político. 11. ed. São Paulo: Cortez, 1995. PASSOS, Elisete Silva. Mulheres moralmente fortes: o ideal perseguido pelo Instituto Feminino da Bahia 1945-1975. 1991. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1991. ______. A educação das virgens: um estudo do cotidiano no Colégio Nossa Senhora das Mercês. 1994. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994. PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 13. ed. São Paulo: Cortez, 1994. REVISTA DA SUPP. Revista Comemorativa do 1º Decênio da SUPP (1947-1957). Salvador, v. 1, n. 1, jul. 1957. SAFFIOTI, Heleieth I. L. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

FILOSOFIA E CINEMA, UMA ARTICULAÇÃO ENTRE O AFETIVO E O RACIONAL COMO FORMA DE ENCAMINHAMENTO DO PENSAR: um relato da experiência do projeto “Filosofia e Cinema: estética e racionalidade da imagem” Clédson L. Miranda dos Santos *

Resumo: O presente trabalho constitui-se num relato da experiência desenvolvida no projeto de extensão “Filosofia e Cinema: estética e racionalidade da imagem”, realizado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), no ano de 2005. O curso estruturou-se segundo a idéia de “conceito-imagem”, considerando a possibilidade de a imagem cinematográfica sintetizar, construir ou desenvolver conceitos com valor de verdade. O projeto desenvolveu-se partindo da exposição de grandes obras do cinema mundial contextualizadas em grandes temas da história da filosofia contemporânea. Palavras-chave: Linguagem cinematográfica. Linguagem filosófica. Conceitoimagem. Racionalidade logopática.

* Especialista em Filosofia Contemporânea pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH/Uesb). Proponente e coordenador do projeto “Filosofia e Cinema: estética e racionalidade da imagem”, desenvolvido com a colaboração de professores da área de Filosofia e do Curso de Comunicação Social do DFCH, no ano de 2005. E-mail: [email protected]. Práxis Educacional

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Notas Iniciais Ao longo de sua existência, o cinema tem sido visto como uma opção de entretenimento, de lazer e de informação. Alguns filósofos contemporâneos tematizaram sobre o cinema em suas obras, entretanto, somente na segunda metade do século XX, é que se perceberam tentativas de tecer reflexões de caráter filosófico com base na trama cinematográfica. O projeto de se instaurarem grupos de discussões filosóficas tomando-se por base a exposição de filmes ganhou força no Brasil no final do século XX. Muitos pensadores brasileiros, não só críticos literários, aportaram-se em filmes para construir um pensamento conceitual acerca da sua realidade de estudo. Este curso de extensão outrora proposto visou à instauração de grupos de estudo e reflexão de caráter filosófico, à semelhança de outros existentes em outras universidades brasileiras. Cabe aqui salientar que a Universidade de Brasília (UnB) é pioneira na implantação de cursos desta natureza ofertados a toda a comunidade. Socializar as grandes idéias do legado filosófico é uma forma de não restringir a Filosofia ao âmbito universitário. Articulá-la com o cinema é uma maneira de torná-la acessível ao grande público. Assim, o pensar filosófico deixaria de ser algo restrito apenas aos iniciados numa linguagem e num mundo hermeticamente fechados. Numa universidade como a UESB, que há muito tempo divulga as produções cinematográficas de vários países, por meio do Janela Indiscreta, este projeto veio somente acrescentar esforços no intuito de se propagarem grandes obras da cultura cinematográfica mundial. Outro aspecto de grande relevância é o fato de que nesta Universidade ainda não existe o curso de Filosofia e, dessa forma, um projeto que, além de expor filmes, os articulou com reflexões de caráter filosófico, resultou numa importante fonte de informações, questionamentos e indagações diversas. Parte do público que se interessa por cursos desta natureza é formada de professores de Literatura, História, e, principalmente, de

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Filosofia. Faz-se necessário apontar que muitos professores que lecionam a disciplina Filosofia nas escolas da região Sudoeste da Bahia não são habilitados na área, principalmente aqueles que trabalham em escolas da Rede Pública de Ensino. Este curso oportunizou a estes profissionais, além de conteúdo, estratégias metodológicas para se desenvolverem aulas em turmas do Ensino Médio. O projeto pôde viabilizar o enriquecimento das discussões de cunho filosófico no âmbito da sala de aula, uma vez que o cinema (em seus diversos formatos, principalmente o VHS e o DVD) é um valioso recurso para o trabalho com temas diversos. Deve-se considerar também o fato de que o cinema pode viabilizar a reflexão conforme a percepção estética, e isto pode ser um valoroso instrumental (não só motivador) para o desencadeamento das atividades de ensino. Para o público em geral, formado por graduados das diversas áreas de conhecimento (cinéfilos ou não) que se interessam pela reflexão filosófica, foi importante salientar que o curso tinha a oferecer a oportunidade de eles se familiarizarem com os grandes temas da história da Filosofia e com a linguagem filosófica articulada à linguagem cinematográfica. Outro benefício foi o de propiciar aos cursistas um diálogo entre o conhecimento da Filosofia e o das suas respectivas áreas de formação ou atuação. Considerando-se o fato de que o público-alvo compôs-se dos graduados de diversas áreas e que o curso esteve aberto à comunidade (inclusive professores da UESB), é oportuno salientar que se possibilitou um diálogo mais fecundo entre as diversas áreas do conhecimento e o pensamento filosófico. Um aspecto de grande relevância é que este projeto é fruto de pesquisas desenvolvidas em outras Instituições de Ensino Superior, onde o pensamento “logopático” é pauta de grandes discussões em cursos de extensão, projetos de mestrado e doutorado. Assim, baseando-se em reflexões proporcionadas por este curso, pôde-se vislumbrar a possibilidade de se desenvolverem, no âmbito da UESB, projetos de pesquisa nesta área.

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Aportes Teóricos A origem da Filosofia está diretamente ligada à sistematização do logos. O pathos não foi a tônica que fundamentou a tradição do pensamento ocidental. Na Pós-modernidade, surgiram correntes de pensamento que problematizaram a razão puramente lógica (o logos) com a qual a Filosofia habitualmente costumou enfrentar o mundo. De acordo com Cabrera1 (1999), pensadores como Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e Heidegger introduziram no processo de compreensão da realidade o elemento afetivo (o pathos). Eles não se limitaram a tematizar o componente afetivo, mas também o incluíram na racionalidade como um elemento essencial de acesso ao mundo. O pathos deixou de ser um objeto de estudo para transformar-se numa forma de encaminhamento metodológico. Ao longo de sua história, a Filosofia se desenvolveu por meio da palavra, e não da imagem. Na tradição ocidental, herdeira da cultura grega clássica, as imagens são impressões derivadas dos sentidos (principalmente da visão). Segundo Platão, os sentidos não nos dão acesso ao mundo verdadeiro. As palavras, que são a expressão do logos, estão articuladas aos conceitos e às idéias. Assim, a Filosofia, que se constituiu numa perspectiva logocêntrica, ligou-se à escritura, e não às imagens. Entretanto, afirma Cabrera (1999), “nada há na natureza do indagar filosófico que o condene inexoravelmente à escritura”. Então, como se articula a imagem cinematográfica com o pensar filosófico? Tal qual Cabrera (1999) assevera, o cinema nos apresenta uma linguagem mais apropriada que a linguagem escrita para expressar as intuições que alguns filósofos tiveram acerca dos limites de uma racionalidade puramente lógica. Também não se constitui em um veículo puramente emocional de idéias; trata-se de um outro tipo de articulação racional, que inclui um componente emocional, porque a linguagem 1 O trabalho desenvolvido teve como principal suporte teórico a obra do professor Dr. Julio Cabrera, da UnB, cujo livro Cine, 100 años de Filosofía: una introducción a la Filosofía a través del análisis de películas, que discute a articulação entre Filosofia e Cinema, ainda não foi editado no Brasil. Assim, as citações e referências que aparecem no texto constituem-se traduções não oficiais; entretanto, foi mantido o seu sentido original.

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cinematográfica possui a capacidade de dizer as coisas num nível de articulação entre o intelectual e o afetivo. “O emocional não desaloja o racional, ele o redefine” (CABRERA, 1999). A apreensão de certos aspectos do mundo não parece se efetivar por uma total exclusão do elemento afetivo. Visto filosoficamente, o cinema é a construção do que se pode chamar de conceito-imagem: um tipo de conceito visual estruturalmente diferente dos conceitos tradicionais utilizados pela filosofia escrita. Mas, como se caracterizam os conceitos-imagem? Cabrera (1999) aponta alguns critérios de definição para esta categoria: a) um conceito-imagem instaura-se e funciona dentro de um contexto de uma experiência específica; b) os conceitos-imagem do cinema produzem nas pessoas um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diz-lhe algo a respeito do mundo e que tem valor cognitivo, argumentativo por meio de seu componente emocional; c) mediante uma experiência instauradora e emocionalmente impactante, os conceitos-imagem afirmam algo sobre o mundo com pretensões de verdade e universalidade; d) um filme inteiro pode ser considerado como um conceito-imagem de uma ou de várias noções. Um filme inteiro pode ser considerado um macro-conceito-imagem, composto por conceitos-imagem menores; e) os conceitos-imagem podem se desenvolver num nível literal do que está sendo mostrado nas imagens, mas também podem se desenvolver num nível ultra-abstrato. Quando se desenvolve num nível abstrato, o conceito-imagem permite uma melhor conceituação filosófica, mesmo quando se trate de um filme absolutamente fantástico, surreal ou irreal; f) os conceitos-imagem não são categorias meramente estéticas, pautadas no gosto. Não determinam se um filme é bom ou mau, de classe A ou C; g) eles não são privativos do cinema. São construídos e utilizados pela filosofia, como também, já tradicionalmente, pela literatura, para expor algumas intuições; h) os conceitos-imagem proporcionam soluções lógica, epistêmica e moralmente abertas e questionadoras para os diversos problemas filosóficos que aborda.

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Simplificadamente, tal qual afirma Cabrera (1999), pode-se afirmar que o conceito-imagem consiste num encaminhamento, ou seja, um construir-se ao caminhar, em certa direção compreensiva, mas que não se consegue enclausurar num conceito definitivo, pois a imagem cinematográfica é movimento que tenta captar a dinâmica do real. Assim como não se pode definir exatamente o que é conceitoimagem, não se pode também definir exatamente o que é cinema. Como assente Carrière (1995, p. 21), o cinema é uma experiência aberta, em permanente autodescoberta, uma linguagem que está sempre criando formas e se enriquecendo, fugindo constantemente das regras que tentam aprisioná-la em cânones que tendem à rigidez do dogmatismo cristalizado em conceitos. O cinema é visto como uma autêntica fábrica de ilusões, de malabarismos, efeitos especiais (visuais e sonoros), de inverossimilhanças de todo caráter e de recortes absolutamente artificiais. Diante deste argumento, fazem-se pertinentes duas questões: a) Como algo que lida com uma linguagem tão inverossímil poderia conduzir à verdade pretendida pela Filosofia? b) Como podem situações particulares da vida humana conduzir à universalidade? Diante destas questões, faz-se pertinente considerar que o cinema consegue ultrapassar as limitações aqui implícitas porque a linguagem cinematográfica possui a capacidade de dizer as coisas num nível de articulação entre o intelectual e o afetivo. Ao contrário da escrita, em que as palavras estão sempre de acordo com um código específico em que se deve conhecer ou ser capaz de decifrar, [...] a imagem em movimento está ao alcance de todo mundo. Uma linguagem não só nova, como também universal: um antigo sonho (CARRIÈRE, 1995, p. 19).

Aumont et al. (2002b, p. 159) corroboram com esta assertiva quando defendem que “a característica essencial dessa linguagem é sua universalidade; ela permite contornar o obstáculo da diversidade das línguas nacionais. Realiza o sonho antigo de um ‘esperanto universal’ [...]”.

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Para Aumont (2002a, p. 248), “toda representação é relacionada por seu espectador – ou melhor, por seus espectadores históricos sucessivos – a enunciados ideológicos, culturais, em todo caso simbólicos, sem os quais ela não tem sentido”. Considerando que tanto a linguagem imagética quanto a linguagem verbal estabelecem com o mundo uma relação representacional, pode-se afirmar que a linguagem cinematográfica, articuladora de ambas as linguagens, encerra em si diversos sentidos, porque é capaz de significar o mundo. Ainda segundo Aumont (2002a, p. 249), a imagem cinematográfica “só tem dimensão simbólica tão importante porque é capaz de significar – sempre em relação com a linguagem verbal”. Aqui, também é necessário considerar a linguagem cinematográfica à luz do conceito de texto. Este conceito abrange todo uso de qualquer espécie de linguagem que, de uma forma concatenada, consegue articular uma significação do mundo. Considerando esta abrangência do conceito de texto e também o fato de que este não se reduz à escritura, pode-se afirmar que o cinema apresenta uma linguagem mais apropriada que a linguagem escrita para expressar o conhecimento imediato do mundo, as intuições. Muitos destes conceitos podem ser captados pelas imagens de um filme. O cinema consegue dar sentido cognitivo ao que muitos filósofos tentaram dizer por meio da escritura. Conforme relata Carrière (1995, p. 19), “um crítico americano, que via a câmera como um engenho capaz de converter o espaço em tempo e vice-versa, se referia sobriamente ao cinema como ‘a maior surpresa filosófica desde Kant’”. Os conceitos-imagem não são qualidade exclusiva do cinema. A literatura, como produção artística, resgata, de acordo com intuições estéticas, verdades de valor universal. Alguns filósofos, como Heidegger, por exemplo, utilizam-se largamente de conceitos-imagem para expor algumas de suas intuições conceituais. Entretanto, no exemplo específico do cinema, pode-se afirmar que os conceitos-imagem constituídos e utilizados desenvolvem-se com muito mais propriedade. A vida e o pensamento fluem continuamente. Não se pode dissociar o fluxo do

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vivido (o real) do fluxo do articulado (o representacional). A literatura e o cinema podem expressar o fluxo histórico-vivido, sem, contudo, reduzi-lo à mera representação, ou a conceitos puramente intelectuais. Parafraseando Cabrera (1999), se filosofar admite ser concebido como um tipo de captação do real mediante uma linguagem de imagens, sem imposições intelectualistas e sem a obrigação de ater-se a uma dada tradição, o cinema e a literatura podem ser filosóficos. O pressuposto básico para que haja articulação entre a linguagem cinematográfica e a Filosofia é que nos disponhamos a “ler” o filme de maneira filosófica, ou seja, que o tratemos como um conceito imagético em movimento. Devemos impor à nossa leitura do filme a pretensão de verdade e de universalidade. Objetivos No transcorrer do curso, esperava-se que o público estivesse familiarizado com os temas e com as linguagens filosófica e cinematográfica e que pudesse promover o diálogo entre o conhecimento filosófico e o das suas respectivas áreas de formação ou atuação. Entre os objetivos específicos propostos, podem-se destacar: a) divulgar e socializar com a comunidade as grandes idéias do legado filosófico produzidas no decorrer da história humana; b) contextualizar a imagem cinematográfica com base em grandes temas da Filosofia: o ser, a ética, a existência, a angústia, a morte, a realidade, a linguagem, etc.; c) oportunizar ao público acesso às grandes obras do cinema mundial, bem como contextualizar historicamente a obra cinematográfica; d) propiciar uma reflexão sobre as relações entre cinema e filosofia, evidenciando os componentes intelectuais e emocionais da racionalidade. Filmografia e temas Os temas trabalhados durante o curso estavam ligados ao pensamento de alguns filósofos contemporâneos. Assim, a filmografia,

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intencionalmente escolhida, refletia sobre tais temas, de forma a engendrar uma articulação intertextual entre a linguagem filosófica e a linguagem cinematográfica. Abaixo, seguem arrolados os filmes, os pensadores e os temas filosóficos por eles tratados: a) A Felicidade não se Compra (Arthur Schopenhauer: a existência, a vida, a dor, o tédio, a morte, etc.). b) Tomates Verdes Fritos (Martin Heidegger: a existência, a cotidianidade, a angústia, a vida, a morte, etc.). c) El Mundo de Sofía (O conceito de Filosofia, segundo a exposição da história da Filosofia). d) Os Imperdoáveis (Friedrich Nietzsche: a vontade de potência, o niilismo, o além do homem, amor ao mundo e ao destino, etc.). e) Os Últimos Rebeldes (Jean-Paul Sartre: a existência autêntica, a má-fé, a liberdade, o determinismo, etc.). f) Paris/Texas (Hegel: a dialética das idéias, a formação da subjetividade, o Absoluto, a cultura, a razão, a história, etc.). g) Thelma e Louise (Jean-Paul Sartre: a existência autêntica, a má-fé, a liberdade, o determinismo, etc.). h) Vida de Cachorro, O Garoto (Ludwig Wittgenstein: os poderes e os limites da linguagem, o silêncio, a demonstração, o sentido, o signo, formas de “dizer” sem o uso das palavras, etc.). Metodologia utilizada A metodologia visou provocar a participação ativa dos cursistas, buscando uma compreensão geral sobre os temas que eram trabalhados. O curso se desenvolveu em três momentos distintos: a) exposição da obra do autor estudado e de sua(s) temática(a) filosófica(s); b) exposição do filme relacionado com a(s) temática(s) abordada(s) pelo autor; c) contextualização logopática entre o filme e o tema estudado. O intuito fundamental das técnicas que foram desenvolvidas foi o de promover a coletivização do conhecimento, pela socialização das idéias. Buscando alcançar um maior interesse pelos conteúdos abordados e otimizar o desempenho dos participantes, os temas filosóficos e os filmes foram

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assim trabalhados: a) exposições dialogadas; b) projeção de transparências; c) esquematização do conteúdo na lousa; d) projeção dos filmes; e) audição de músicas; f) leituras orientadas; g) discussão aberta e contextualização das obras cinematográficas com os temas filosóficos estudados. Avaliação dos resultados Conforme houvera sido planejado, no desenvolvimento do curso, esperava-se que o público fosse se familiarizando com os temas e com a linguagem filosófica, bem como a cinematográfica, e que pudesse promover o diálogo entre o conhecimento filosófico e o das suas respectivas áreas de formação e/ou atuação. Esta meta foi alcançada. Os cursistas conseguiram realizar as mais diversas contextualizações, analisando os temas, opinando, debatendo-os e discutindo-os. Avaliaram os conteúdos e a metodologia como satisfatórios, lamentaram a “curta” duração do curso (40 horas) e reivindicaram novos cursos desta natureza com uma carga horária maior. Desta forma, diante da avaliação realizada, pode-se dizer que o projeto, mesmo diante dos muitos percalços, logrou êxitos, pois seus principais objetivos foram atingidos. PHILOSOPHY AND THE MOVIES, AN ARTICULATION BETWEEN THE AFFECTIONATE AND THE RATIONAL AS A WAY OF DIRECTING THE THOUGHT: A REPORT ON THE EXPERIENCE OF THE PROJECT “PHILOSOPHY AND THE MOVIES: AESTHETICS AND IMAGE RATIONALITY” Abstract: This paper is constituted in a report of the experience developed in the extension project “Philosophy and Movies: aesthetics and rationality of the image”, accomplished in Uesb, in the year of 2005. The course was structured starting from the “concept-image” idea, being considered the possibility of the cinematographic image to synthesize, to build or to develop concepts with value of truth. The project grew leaving of the exhibition of great works of the movies world contextualized with great themes of the history of the contemporary philosophy. Keywords: Cinematographic language. Philosophical language. Conceptimage. Logopathic rationality.

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Referências Bibliográficas AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução de Estela dos Santos Abreu e Cláudio César Santoro. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002a. ______. et al. A estética do filme. Tradução de Marina Appenzeller. 2. ed. Campinas: Papirus, 2002b. CABRERA, Julio. Cine, 100 años de Filosofía: una introducción a la Filosofía a través del análisis de películas. Barcelona: Gedisa, 1999. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução de Fernando Albagli e Benjamim Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. Filmográficas: A FELICIDADE não se Compra (It’s a Wonderful Life). Produção e Direção de Frank Capra. Estados Unidos: RKO Radio Pictures Inc./ Liberty Films, 1946. 1 DVD (129 min), áudio em inglês e legendas em português e espanhol, preto e branco. EL MUNDO de Sofía (Sofies Verden). Produção de Oddvar Bull Tuhus e John M. Jacobsen. Direção de Eric Gustavson. Noruega/Suécia: NRK Drama/Filmkameratene AS, 1999. 1 DVD (90 min), áudio em norueguês e legendas em espanhol, colorido. OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven). Produção e Direção de Clint Eastwood. Estados Unidos: Warner Bros, 1992. 1 DVD (131 min), áudio em inglês e espanhol e legendas em português e espanhol, colorido. O GAROTO (The Kid). Produção e Direção: Charles Chaplin. Estados Unidos: Chaplin - First National Pictures Inc., 1921. 1 DVD (68 min), sem áudio e legendas em português e espanhol, preto e branco. OS ÚLTIMOS Rebeldes (Swing Kids). Direção: Thomas Carter. Estados Unidos: Abril Vídeo, 1993. 1 videocassete (115 min), áudio em inglês e legendas em português, colorido. PARIS/TEXAS (Paris, Texas). Produção: Anatole Dauman e Don Guest. Direção: Wim Wenders. Alemanha Ocidental/França: 20th Century Fox/

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Argos Films/Channel Four Films/ Project Filmproduktion/Road Movies Filmproduktion/Westdeutscher Rundfunk, 1984. 1 DVD (146 min), áudio em inglês e espanhol e legendas em português e espanhol, colorido. THELMA e Louise (Thelma & Louise). Produção: Mimi Polk Gitlin, Mimi Polk e Ridley Scott. Direção: Ridley Scott. Estados Unidos: MGM /UIP/Pathé Entertainment, 1991. 1 DVD (130 min), áudio em inglês e espanhol e legendas em português, espanhol e francês, colorido. TOMATES Verdes Fritos (Fried Green Tomatoes). Direção: Jon Avnet. Produção: Jon Avnet e Jordan Kerner. Estados Unidos/Inglaterra: Universal Pictures/The Rank Organization/Act III Communications/ Eletric Shadow Productions/ Avnet/ Kerner Productions/ Fried Green Tomatoes Productions, 1991. 1 DVD (124 min), áudio em inglês e espanhol e legendas em português e espanhol, colorido. VIDA de Cachorro (A Dog’s Life). Direção e Produção: Charles Chaplin. Estados Unidos: First National Pictures Inc., 1918. 1 DVD (40 min), sem áudio e legendas em português e espanhol, preto e branco.

SABERES DOCENTES: INICIANDO UMA PESQUISA NOS CURSOS DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA Januária Araújo Bertani * Janice Cássia Lando ** Inês Angélica Andrade Freire *** Roberta D’Ângela Menduni **** Márcia Graci de Oliveira Matos *****

Resumo: O projeto “Saberes docentes construídos pelos discentes dos cursos de licenciatura em matemática da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia”1 está em fase inicial. Este artigo, portanto, propicia considerações preliminares, possibilitando uma reflexão sobre o andamento da pesquisa, cujo objetivo é identificar e analisar os saberes docentes construídos durante * Mestre em Educação. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). ** Especialista em Metodologia do Ensino da Matemática. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). *** Especialista em Metodologia do Ensino da Matemática. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). **** Mestre em Matemática Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. *****Mestre em Matemática. Docente do Departamento de Química e Exatas (Área de Matemática), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). [email protected]. 1 Esse projeto possui o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Práxis Educacional

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a formação inicial. Para esse estudo, fundamentamo-nos teoricamente em Tardif e Pimenta. Como abordagem metodológica, recorremos ao estudo de caso. Os sujeitos envolvidos são duas alunas do curso Licenciatura em Matemática do Campus de Jequié, uma delas tendo a sua formação em serviço e a outra apresentando sua primeira experiência docente nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado. Como resultados preliminares, podemos destacar que as alunas concebem em sua prática docente alguns saberes docentes, mas de forma diferenciada. Palavras-chave: Formação de professor. Ensino de matemática. Saberes docentes.

Introdução Objetivando identificar e analisar os saberes docentes e também as possibilidades de sua construção durante a formação inicial,2 a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Campus Universitário de Jequié, por meio do Departamento de Química e Exatas, propõe a Pesquisa: “Saberes docentes construídos pelos discentes nos cursos de licenciatura em matemática da Uesb”. A pesquisa possibilitará revelar os saberes referentes à docência, propiciando “compreender como esses saberes são integrados concretamente nas tarefas escolares dos professores e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho” (TARDIF, 2002, p. 256). Essa pesquisa encontra-se em fase inicial, momento da avaliação dos instrumentos de coleta de dados. As considerações apresentadas neste artigo são resultados preliminares obtidos por meio do teste piloto. A Uesb, no decorrer de 25 anos de funcionamento, tem como objetivos fundamentais o ensino, a pesquisa e a extensão, integrados na formação técnico-profissional e na difusão da produção do conhecimento, desenvolvendo a formação de profissionais com competências técnicas e científicas. Dentre os cursos oferecidos por esta Instituição, destacamos as Licenciaturas, em particular, as 2

Quando tratarmos de formação inicial, estamos nos referindo aos cursos de graduação.

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Licenciaturas em Matemática, dos Campi de Vitória da Conquista e Jequié. Além dos cursos regulares, esses Campi oferecem os cursos de Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores.3 Características dos cursos de licenciatura em matemática do campus universitário de Jequié Para uma melhor contextualização do estudo, destacaremos algumas particularidades dos cursos de Licenciatura em Matemática do Campus Universitário de Jequié, já que o teste piloto foi realizado somente nesse local. Atualmente, contamos com dois cursos referentes à formação do professor de Matemática: Licenciatura em Matemática com Enfoque em Informática e Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores das Séries Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. O curso de Licenciatura em Matemática com Enfoque em Informática foi implantado em 2000, conforme Resolução do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) nº 50/2000, objetivando formar “profissionais com sólidos conhecimentos em matemática pura e aplicada, bem como destacar a importância do computador como ferramenta tecnológica e facilitadora da relação ensino-aprendizagem na Educação Matemática” (UESB, 2003a, p. 106). Esse curso atende a estudantes que já exercem a função de professor e aqueles que ainda não atuam na docência, cuja seleção, independentemente da função profissional do candidato, ocorre por meio de vestibular. Funcionando no período noturno, com quarenta vagas anuais e carga horária total de 3.132 horas, o curso de Licenciatura em Matemática com Enfoque em Informática, em atendimento à Resolução A partir deste momento utilizaremos a expressão “Cursos de Licenciatura em Matemática” para referenciar os Cursos que são oferecidos na modalidade regular e da mesma forma “Curso de Licenciatura em Matemática – PFP” para identificar os Cursos de Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores nas Séries Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. 3

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do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 02/2002,4 depois de ter passado por um processo de reflexão, sofreu uma adequação na sua estrutura curricular, o que possibilitou a inserção de disciplinas referentes ao campo investigativo da educação matemática, enfatizando a pesquisa e a prática de ensino para a formação do professor. Como o processo de formação de professores é dinâmico, surgiu novamente a necessidade de repensar o curso. Portanto, estamos mais uma vez vivenciando um processo de reestruturação curricular. A Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores das Séries Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (PFP) foi concebida pela Secretaria Estadual da Educação e estruturada pelo convênio com as Universidades Estaduais e a Universidade Federal do Estado da Bahia, já que havia uma grande necessidade de qualificação do quadro docente da rede pública deste Estado. No Projeto de Implantação do Curso, constam os princípios, nos quais se fundamentou a comissão para elaborar a proposta desse curso: construção de competências; pesquisa na formação; e coerência entre a formação oferecida e a prática do professor. Em referência aos objetivos propostos, destacamos o que está relacionado aos saberes docentes, uma vez que é o objeto de estudo desta pesquisa: Refletir sobre a experiência docente, na perspectiva de aprofundar os saberes da docência necessários ao exercício da profissão, aliando competência técnica a competência política, contribuindo para a formação de um professor crítico/reflexivo, preocupado com a indissociabilidade teoria/prática (UESB, 2003b, p. 20).

A formação em serviço é uma das suas principais características, por isso há uma preocupação, na escrita da proposta, em articular a experiência docente com questões epistemológicas, didáticas e pedagógicas, ressaltando o exercício para a reflexão: 4

Essa Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Licenciatura.

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O programa vale-se dos benefícios da formação em serviço, que torna possível o confronto entre o saber docente oriundo do contato direto com os alunos nas aulas de matemática e os fundamentos epistemológicos e didático-pedagógicos, possibilitando um aprender-ensinar reflexivo (UESB, 2003b, p. 20).

O curso abrangeu o município de Jequié e cidades circunvizinhas.5 Das 50 vagas oferecidas, foram preenchidas somente vinte e duas. Funciona de forma presencial, sua duração está prevista para três anos e sua carga horária total é de 2.955 horas. Com referência a esses dois cursos, podemos destacar que ambos, além de qualificar para a docência no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, proporcionam uma reflexão sobre a aprendizagem de conhecimentos matemáticos necessários à formação do indivíduo. Essa formação consiste em fornecer ao estudante uma sustentação teórica, refletindo, em sua prática docente, o seu amadurecimento intelectual, ou seja, a possibilidade da construção dos saberes docentes. Caminhos Metodológicos Para a realização desta pesquisa, optamos pela abordagem qualitativa, que, segundo Zimmermann (2000), possui as seguintes características: ênfase no indivíduo; pesquisa de pequena escala; destaque para a descrição e interpretação; e preocupação de entender a ação dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Essas características possibilitam que os pesquisadores façam uma leitura particularizada do objeto de estudo. Dessa forma, o local, as pessoas, as situações envolvidas também fazem parte do objeto de pesquisa. Assim, ao fazer uma pesquisa, tanto pesquisadores quanto pesquisados possuem papéis importantes, e o somatório da interlocução entre o objeto de estudo e os pesquisadores terá como resultante a própria pesquisa. A pesquisa que vem sendo realizada na Uesb, nos cursos de Licenciatura em Matemática, está intimamente relacionada com os 5

Itiruçu, Jaguaquara, Lafaiete Coutinho e Manoel Vitorino.

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pesquisadores envolvidos, uma vez que são professores do Campus de Jequié que atuam nas disciplinas pedagógicas e específicas tanto no Curso de Licenciatura em Matemática - PFP quanto no Curso de Licenciatura em Matemática. Para Eco (1995, p. 06), a escolha do objeto de pesquisa perpassa alguns itens, dentre os quais se destacam: “que o tema responda aos interesses do candidato [...] que as fontes de consulta sejam acessíveis”. Portanto, há interesses profissionais em pesquisar sobre a construção dos saberes docentes no decorrer destes cursos, já que o processo investigativo não só possibilita a reflexão sobre a própria prática pedagógica dos pesquisadores, mas, também, propicia uma leitura detalhada do papel social da Instituição ao oferecer esses cursos. Como estratégia metodológica, escolhemos o estudo de caso. Para Triviños (1987, p. 133), o estudo de caso é “uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente”. Os sujeitos envolvidos no teste piloto foram: Taís e Luíza.6 Como estamos no início da pesquisa, optamos em envolver somente duas alunas: Taís do Curso de Licenciatura em Matemática e Luíza do Curso de Licenciatura em Matemática – PFP, ambas do Campus de Jequié. Restringimos o desenvolvimento da pesquisa a um teste piloto, pois a coleta dos dados poderia possibilitar a viabilidade deste instrumento (roteiro da entrevista) e o alcance dos objetivos, ainda que com um grupo reduzido. A escolha dessas alunas não foi aleatória. Como apresentavam trajetórias que permeavam caminhos diferentes, acreditávamos que apresentariam olhares diferenciados sobre a prática docente, a escola, a matemática, o conhecimento, entre outros. Segundo Tardif: (2000, p. 115): [...] o ponto de vista dos professores, ou seja, sua subjetividade de atores em ação, assim como conhecimentos e o saber-fazer por eles mobilizados na ação cotidiana. De modo mais radical, isso quer dizer também que a pesquisa sobre o ensino deve se basear num diálogo fecundo com os professores, considerados não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentes que detêm saberes específicos do seu trabalho. 6

Os nomes referendados aos sujeitos envolvidos na pesquisa são fictícios.

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Vale salientar que, no momento, analisamos e refletimos apenas sobre os dados coletados no teste piloto da entrevista; porém, pretendemos, em 2006 e 2007, dar continuidade a essa pesquisa, recorrendo aos seguintes sujeitos: • estudantes do Curso de Licenciatura em Matemática que tenham cursado, pelo menos, uma disciplina referente ao Estágio Curricular Supervisionado; • estudantes do curso de Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores. A coleta de dados, ou seja, a organização do material para a realização da pesquisa, será constituída pelas seguintes etapas: • Análise das entrevistas, análise documental e análise comparativa das etapas anteriores. Essas análises possibilitarão uma compreensão do papel das Licenciaturas em Matemática para a construção de saberes pertinentes à sua atuação docente. A análise documental consistirá no estudo e análise de documentos7 dos cursos, visando pesquisar a existência da articulação entre as disciplinas para a fundamentação da construção dos saberes docentes. • Entrevistas individuais e em grupo do tipo semi-estruturadas – para Triviños (1987, p. 146), a entrevista semi-estruturada: “[...] é aquela que parte de questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida das respostas do informante”. Compreendemos que essa proposta metodológica tem o intuito de possibilitar uma maior apreensão e aproximação dos objetivos dessa pesquisa. Tal compreensão poderá propiciar um outro direcionamento para futuras construções referentes aos saberes docentes e a novos questionamentos, ao mesmo tempo em que subsidiará a possibilidade Para a análise documental, serão utilizados os projetos pedagógicos e os planos de ensino de algumas disciplinas dos cursos envolvidos. 7

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de refletir e transformar este espaço de construção de saberes. Assim, também, a pesquisa poderá ser um condicionante para a transformação da atividade docente. Saberes docentes: categorizações Para essa reflexão, faz-se necessário definirmos os principais conceitos que permeiam o objeto de estudo. Dentre eles, salientamos o conceito utilizado neste trabalho sobre os saberes docentes, recorrendo a Tardif (1991, 2000 e 2002) e Pimenta (1999), os quais nos proporcionam estabelecer relação entre os professores e os seus saberes e definir os tipos de saberes que compõem o saber docente, ou seja, nos permitem construir a categorização. Tardif (1991, p. 231) salienta a existência de saberes sociais constituídos pelo conjunto de saberes de que dispõe uma sociedade, entre os quais, os saberes referentes à educação e aos saberes docentes: “Podese definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional, dos saberes da disciplina, dos currículos e da experiência”. O saber profissional é caracterizado “pelo conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação dos professores” (TARDIF, 1991, p. 219). Este saber está inserido no contexto da ciência da educação e da ideologia pedagógica. Os saberes da disciplina, construídos historicamente e remetidos a uma tradição cultural, referem-se ao conhecimento específico, neste caso, o conhecimento matemático. Os saberes curriculares são compostos pelos “discursos, objetivos, conteúdos e métodos, a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais que ela definiu e selecionou como modelo da cultura erudita e de formação na cultura erudita” (TARDIF, 1991, p. 220). Esses saberes apresentam-se na forma de programas escolares. Entendemos que, no nosso contexto, trata-se do Projeto Político Pedagógico de uma instituição escolar. Os saberes da experiência são os saberes construídos pelos próprios professores durante a sua atuação docente, quando

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“desenvolvem saberes específicos, fundados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento do seu meio. Esses saberes brotam da experiência e são por ela validados”. Vale ressaltar que os professores são representantes de grupos sociais e profissionais; portanto, os saberes da experiência podem ser incorporados à vivência coletiva e individual. Por isto, Tardif, ao se referir a esse saber, caracteriza-o como sendo cultura docente em ação. Para Pimenta (1999, p. 18), os saberes docentes são os saberes necessários à docência. Nesta perspectiva, os Cursos de Licenciatura podem desenvolver: “[...] nos alunos conhecimentos e habilidades, atitudes e valores que lhes possibilitem permanentemente irem construindo seus saberes-fazeres docentes a partir das necessidades e desafios que o ensino como prática social lhes coloca no cotidiano”. Pimenta, ao se referir à formação, ressalta que formar significa construir, ou seja, possibilitar a ressignificação de práticas e a aprendizagem de novos caminhos que propiciem saberes relacionados à realidade vivenciada, compreendendo o ensino como uma realidade social. Essa autora salienta a importância de três saberes na docência: experiência, conhecimento e saberes pedagógicos. A “experiência” é definida, por Pimenta (1999), em três eixos: saberes de sua experiência de aluno (representação dos seus professores e da sua vivência escolar); saberes da experiência socialmente acumulada (representações e estereótipos que a sociedade produz em relação a ser professor); e saberes da experiência como professor (vivência com os seus colegas e alunos, da sua prática docente). Em relação ao “conhecimento”, Pimenta (1999, p. 22) adverte que esse saber vai muito além do conhecimento específico; para ser professor de matemática, por exemplo, não é suficiente saber os conceitos matemáticos. Para ela, “[...] conhecer significa estar consciente do poder do conhecimento para a produção da vida material, social e existencial da humanidade”. Assim, evidencia a importância do trabalho coletivo, interdisciplinar, que poderá propiciar uma educação crítica em busca de uma transformação.

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Além desses saberes, Pimenta também apresenta os “saberes pedagógicos”, que só são constituídos pela relação entre teoria e prática, ou seja, na ação que possibilita o saber-fazer e o fazer-saber. Nesta articulação entre os saberes sobre a educação, sobre a pedagogia e o ensinar é que surge o saber pedagógico. Para Tardif (1991, 2000 e 2002) e Pimenta (1999), os saberes docentes se configuram da seguinte forma: TARDIF

PIMENTA

Experiência ƒ Conhecimento ƒ

„ Experiência SABERES

„ Conhecimento

DOCENTES Curricular Profissional

ƒ

„ Pedagógico

Fonte: Elaborado pelos autores.

Essa representação possibilita estabelecer relações entre as categorizações de saberes docentes constituídas pelos autores acima citados. Esses autores, em relação à experiência, possuem conceitos que se equivalem no que se refere ao saber produzido por meio da atuação docente. Os saberes das disciplinas, para Tardif, correspondem aos saberes do conhecimento estabelecidos por Pimenta. Contudo, em relação aos saberes pedagógicos propostos por essa autora, é possível compará-los aos saberes curricular e profissional apresentados por Tardif. Tecendo algumas considerações Iniciaremos nossas reflexões apresentando os sujeitos da pesquisa, suas trajetórias de vida e as relações estabelecidas entre essa trajetória e a escolha do curso, de acordo com as informações obtidas nas entrevistas:8 8

Entrevistas realizadas no dia 5 de dezembro de 2005.

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• Taís – destaca que sempre gostou de Matemática, mas, quando foi escolher um curso superior, fez o vestibular para Enfermagem, não obtendo aprovação. No ano seguinte, pensou “em fazer Biologia, justamente para poder transferir [para Enfermagem], mas veio Matemática e eu sempre gostei de matemática”. Além destas informações obtidas na entrevista, em conversas informais pudemos perceber que a aluna começou a sua atividade docente após ter cursado a disciplina de Estágio no Ensino Fundamental.9 • Luíza – ao referir-se a sua trajetória profissional, enfatiza que tem 25 anos de docência, 23 dos quais destinados ao ensino da Matemática, tempo em que é efetiva na Rede Estadual de Ensino. Quando iniciou seu trabalho, como professora, havia cursado o magistério de nível médio. Após dois anos, cursou a Licenciatura Curta em Ciências, 20 anos depois voltou para a Universidade com o intuito de graduar-se em Biologia, não conseguindo concluir pelas seguintes justificativas: [...] não era a minha área. Não me adaptei porque eu já tinha deixado há muito tempo de estudar. Quando nós voltamos para fazer a plena, já tinha mais de vinte anos que eu tinha terminado e pegamos uma sala regular de alunos que tinham passado em um vestibular recente (Luíza).

Quando questionadas sobre as condições necessárias para serem professoras de matemática, percebemos posicionamentos diferentes. Enquanto Taís destaca os saberes do currículo, da profissão e do conhecimento, Luíza limita-se aos saberes do conhecimento. Taís salienta que, para ser professor de Matemática, faz-se necessário o conteúdo (saber do conhecimento e/ou das disciplinas) e também ressalta que é necessário saber ensinar (saber pedagógico e/ ou saberes curriculares e profissionais) e diz que: 9 Neste curso, o Estágio Curricular Supervisionado é desenvolvido em quatro etapas e se compõe das seguintes disciplinas: Estágio Supervisionado do Ensino Fundamental I (fases de observação e co-participação), Estágio Supervisionado do Ensino Fundamental II (observação e docência), Estágio Supervisionado do Ensino Médio I (observação e co-participação) e Estágio Supervisionado do Ensino Médio II (observação e docência). Estas disciplinas acontecem em semestres distintos.

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[...] acho que saber conteúdo é preciso; também saber como passar o conteúdo é mais importante, porque, às vezes, a gente até sabe, mas como o outro vai aprender é a dificuldade da gente expor. Da gente que está iniciando agora, a gente conversa muito sobre como passar este conteúdo para os alunos de uma forma que eles possam aprender. Porque fica difícil para a gente poder analisar como ele vai achar mais fácil desta maneira ou de outra (Taís).

Quando Taís fala da importância do conteúdo, também destaca a relevância em saber “passar este conteúdo”, ou seja, considera os saberes relacionados ao conhecimento, à profissão e ao currículo. Talvez Taís não aponte o saber da experiência pelo fato de apresentar pouco tempo (alguns meses) de atuação docente. O sentido da expressão usada por Taís – “saber passar” –, de certa forma, nos remete ao saber pedagógico. Quanto ao saber da experiência, Tais relata a importância da interligação entre a formação universitária e a sala de aula: [...] porque às vezes a gente ouve muitas discussões e tudo; quando a gente não tá na prática fica mais difícil [...] ficávamos um pouco viajando. Aí a partir do momento que começamos no estágio, começou ficar mais claro; algumas coisas que eram discutidas em sala de aula [...] a gente foi se familiarizando mais com a realidade (Taís).

Em seu depoimento, Taís mostra a relevância de vivenciar a escola como professora. Também é necessário destacar que o primeiro contato da aluna na atividade docente foi durante o estágio, permitindo o início de uma reflexão sobre a atuação do professor. Desta forma, ela percebeu o sentido de algumas discussões encadeadas nas disciplinas relacionadas com Educação Matemática. Isto fica evidenciado quando Taís utiliza o termo “viajando”, mostrando como é difícil compreender uma realidade não vivenciada. Luíza também salienta o conhecimento específico e reforça que, além desse conhecimento, é necessário ter aptidão e vocação, mostrando que o saber pedagógico, ou seja, o “saber ensinar” é algo inato. Talvez esse posicionamento venha da sua história profissional. Como apresenta

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muitos anos de experiência, não percebe que essa experiência também pode ser fundamentada por saberes apreendidos teoricamente. Luíza diz que: “Além de conhecimento, a gente tem que ter aptidão, vontade, determinação [...] a gente tem que ter aptidão para despertar nos alunos este desejo de aprender matemática [...]”. Complementando sua fala sobre o que é preciso para ser professor, destaca: “Muito embora seja difícil a gente alcançar o objetivo, principalmente em matemática, mas eu acho que boa professora é aquela que cumpre, aquela que é responsável, aquela que sabe levar os alunos, aquela que compreende os alunos [...]”. Novamente podemos perceber que não há indícios acerca do saber pedagógico, pois, para ela, ser “boa professora” está relacionado com a postura do profissional. Ressalta, portanto, que a sua prática pedagógica está pautada em duas referências: “domínio do conteúdo e aptidão”. Assim, considerando os relatos, podemos avaliar que, para ambas, a atividade docente é construída e referendada por meio de saberes. Tardif (1991, p. 221) compreende a importância desses saberes como “elementos constitutivos da prática docente”. Para isso, o professor “[...] deve conhecer sua matéria, sua disciplina, o seu programa, que deve possuir certos conhecimentos das ciências da educação e da pedagogia, sem deixar de desenvolver um saber prático fundado em sua experiência cotidiana com os alunos”. Quando questionadas sobre as disciplinas que mais contribuíram para a sua formação docente, Taís destaca as disciplinas Fundamentos de Matemática Elementar III10 e Pesquisa e Prática de Ensino em Matemática II,11 disciplinas que têm uma característica em comum: estão relacionadas ao ensino de Matemática na Educação Básica. Ao justificar esta escolha, ela afirma: “Então, eu achei importante e por quê? Justamente para dar essa visão da gente levar matemática de uma maneira diferente para os alunos, não daquela forma tradicional”. Novamente essa resposta reforça a preocupação com o saber pedagógico. Já Luíza Abordagem crítica dos conteúdos de matemática do Ensino Fundamental. A disciplina desenvolveu atividades que envolvem o uso de recursos didáticos nas aulas de matemática. 10 11

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considera que a disciplina mais importante foi Política Educacional,12 dizendo que: “[...] uma grande reflexão que a gente tem feito durante o curso [...] é o poder que tem o professor como educador em transformar – o agente transformador. Então eu acho isto muito importante para o professor, ele tem que ser consciente que ele é um agente transformador [...]”. Percebemos, no relato de Luíza, que ela não se concebia como agente transformador. Tardif (1991, p. 221) também analisa que “[...] o(a)s professore(a)s ocupam uma posição estratégica, porém socialmente desvalorizada [...] a função docente define-se em relação aos saberes, mas parece incapaz de definir um saber produzido ou controlado pelos que a exercem”. Em conformidade com esse autor, destaca-se a importância do saber profissional, uma vez que foi durante as discussões teóricas, desencadeadas na disciplina Política Educacional, que Luíza se conscientizou da dimensão política em suas ações pedagógicas. A última questão abordada, neste trabalho, é sobre o entendimento das alunas a respeito do significado da expressão saber docente. Para Taís: “é o saber que a gente precisa saber para exercer a profissão do professor”. Indagada sobre quais seriam estes saberes, obtivemos a seguinte resposta: “É o didático pedagógico [pausa]. Gente, é porque deu branco. [...] Não, é porque deu branco. Mas, o mais importante que vejo para mim é o didático pedagógico”. Podemos constatar que esta resposta de Taís está coerente com suas falas apresentadas no decorrer da entrevista, ou seja, para ela, o saber pedagógico deve ser priorizado na formação docente. Já Luíza, ao ser questionada sobre os saberes docentes, indaga: “Saberes docentes? [pausa] Saber do professor, não é? [pausa]. Não sei, formação do professor?”. Em meio a tantos questionamentos, percebemos que Luíza não tem clareza quanto ao conceito de saberes docentes. Entretanto, ela cita o saber do conhecimento, embora não vamos admitir que sua prática seja permeada somente por esse saber, pois ela apresenta uma experiência de mais de vinte anos em sala de aula. Além disto, a prática docente apresenta um “saber plural”, pois é No ementário desta disciplina, entre outros tópicos, há referencias sobre o profissional da educação: formação, estatuto e ética e o estudo da evolução histórica da educação. 12

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caracterizada por uma rede complexa de representações. Portanto, os saberes são construídos e reconstruídos no decorrer da atuação docente, que é permeada pela reflexão e pelo estudo. Desta forma, surge a necessidade de pesquisas referentes a este tema, pois só assim poderemos rever o que Tardif (1991, p. 221) problematiza: “A relação do(a)s professore(a)s com os saberes é a de ‘agente da transmissão’, de ‘depositário’ ou de ‘objeto’ de saberes. mas não de produtores de um saber ou de saberes”. Esta relação pode ser ressignificada por meio da integração do saber da experiência juntamente com os saberes do conhecimento, profissional e curricular, possibilitando uma formação consciente e reflexiva. Enfim... O intuito deste trabalho foi, inicialmente, o de refletir sobre os primeiros passos da pesquisa, com a preocupação em analisar a viabilidade de um dos instrumentos de coleta de dados – roteiro da entrevista –, sem a pretensão de transformá-lo em um artigo. Os dados coletados, entretanto, nos proporcionaram discussões que, juntamente com o referencial teórico, nos possibilitaram a construção deste trabalho. Assim o presente trabalho analisou a forma como duas alunas dos cursos de Licenciatura em Matemática da Uesb, Jequié, concebem e vêem os saberes docentes que estão sendo construídos no decorrer dos cursos. Também é necessário salientar que não tínhamos o objetivo de estabelecer classificações definidas, pois concebemos a prática docente de matemática como sendo um ir e vir que está sempre em um diálogo constante com os mais variados tipos de saberes. Logo, a prática educativa é dialética, sendo ressignificada por meio de rupturas e reflexões. TEACHER’S KNOWLEDGE: STARTING A RESEARCHIN THE COURSES OF LICENTIATESHIP IN MATHEMATICS Abstract: This research intends to identify and analyze teacher’s knowledge [saberes docentes] shared by undergraduate students from a course in Mathematics Teachers at the Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. We took Tardif and Pimenta’s ideas as theoretical references and case studies as methodological framework. The subjects involved in our study are two

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students from that course, one is being trained in service while the other is doing her first teaching experience as trainee in courses related to supervised teaching experience. This paper presents in a preliminary way our first results, and they show that students exhibit teacher’s knowledge in their teaching experience, but they exhibit it in different and individual ways. Key words: knowledge, teacher formation, teaching of mathematics.

Referências Bibliográficas ECO, U. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1995. PIMENTA, S. G. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: ______. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 1999. TARDIF, M. et al. Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação, São Paulo, n. 4, p. 215-233, 1991. TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 13, p. 5-24, jan./abr. 2000. ______. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em Educação, São Paulo: Atlas, 1987. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA. Projeto para o Processo de Reconhecimento do Curso de Licenciatura em Matemática com Enfoque em Informática. Departamento de Química e Exatas, Campus Universitário de Jequié, 2003a. ______. Projeto de Implantação do Curso de Licenciatura em Matemática do Programa de Formação para Professores das Séries Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Departamento de Química e Exatas, Campus Universitário de Jequié, 2003b. ZIMMERMANN, E. Modelos de pedagogia de professores de Física: características e desenvolvimento. Caderno Catarinense de Ensino de Física, Florianópolis, V. 17, n. 2, p. 150-173, 2000.

RESENHA

DESLOCAMENTOS DELEUZEANOS PARA A EDUCAÇÃO por Benedito Gonçalves Eugênio * GALLO, Sílvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Sistematizar e resumir de modo simples e preciso o pensamento de um autor não é tarefa fácil. Isso assume um caráter de maior dificuldade quando se trata de um autor de textos densos e complexos, como é o caso de Gilles Deleuze, nos quais as idéias e categorias de análise vão sendo elaboradas e enriquecidas à medida que as obras são produzidas. Aliada a essa primeira dificuldade soma-se outra que me parece ainda mais difícil: pensar a vasta obra de Deleuze, que não escreveu sobre educação, e transportar os seus conceitos para o campo educacional, o que impõe a necessidade de não apenas condensar as idéias, mas refletir sobre a contribuição destas para as teorias e práticas da educação. É a essa árdua tarefa que se dedicou Sílvio Gallo em seu relevante livro Deleuze e a educação. * Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected]. Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Práxis Educacional

Vitória da Conquista

n. 2

p. 291-293

2006

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Benedito Gonçalves Eugênio

Na introdução, Gallo deixa claro o objetivo do livro: “ser uma introdução didática à obra de Deleuze, assim como oferecer uma exploração inicial de questões tratadas por ele que podem fazer interface com temáticas da educação” (p. 9), o qual é prontamente alcançado. O livro está estruturado em quatro capítulos. O primeiro capítulo inicia-se apresentando e situando Deleuze: sua formação, atividades profissionais e os encontros importantes que geraram agenciamento e intercessores, com Fanny Deleuze, Claire Parnet, Foucault e Félix Guatari. O capítulo encerra-se com uma relação das obras produzidas pelo filósofo francês. O segundo capítulo nos apresenta um breve panorama da filosofia francesa contemporânea, a qual, segundo Gallo, foi marcada pela história da filosofia, mas com várias divergências entre as diferentes tendências, influenciadas, por um lado, pela filosofia da vida, na produção de Bergson e, de outro, pela produção de Husserl. Em seguida, o autor nos apresenta a “revolução” provocada por Nietzsche na geração de filósofos franceses nos anos 1960, incluindo aí, logicamente, o próprio Deleuze. Gallo, entretanto, nos adverte que “se há a influência de Nietzsche, há ainda de várias outras [...]. Assim, não é possível dizer que Deleuze tenha sido um ‘nietzscheano’, como o foram Foucault, Derrida e companhia” (p. 32). A partir daí, o autor prossegue nos apresentando Deleuze como um filósofo-historiador e toda a sua multiplicidade. Gallo, agindo como um arqueólogo, vai “escavando” as obras deleuzeanas para nos oferecer seus principais conceitos e as possibilidades analíticas destes. No terceiro capítulo, o foco é a contribuição de Deleuze para pensar a educação. Continuando com o trabalho arqueológico, Gallo opta por operar com deslocamentos, isto é, tomar conceitos de Deleuze e deslocá-los para o campo de imanência que é a educação. Quatro são os deslocamentos operados: pensar a Filosofia da Educação na perspectiva da filosofia posta por Deleuze e Guattari; pensar uma educação menor com base no conceito de “literatura menor”; aplicar

Deslocamentos deleuzeanos para a educação

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o conceito de rizoma para pensar questões do currículo e da organização educacional; discutir as decorrências e implicações das “sociedades de controle” para os problemas educacionais contemporâneos. No quarto e último capítulo, estão listadas as obras sobre a produção e o pensamento de Deleuze e relacionados os sites que podem ser consultados pelos que o estudam. O livro de Gallo conduz o leitor por um verdadeiro labirinto, que é o pensamento deleuzeano. No entanto, diferentemente da lenda ateniense em que, para conseguir sair do labirinto, Teseu contou com a ajuda fundamental do fio de lã oferecido por Ariadne para não se perder, matar o minotauro e escapar com vida, a obra aqui resenhada é o próprio fio condutor que nos leva à saída do labirinto, saída que nos desaloja de nossas falsas certezas. Considerando-se especificamente o campo da educação, em que a obra de Deleuze não é tão conhecida e estudada, a leitura do livro propicia grandes reflexões e traz instigantes contribuições, principalmente para quem, como o autor desta resenha, é estudioso das questões curriculares. A obra nos convida para um mergulho no pensamento deste grande filósofo que muito tem a contribuir para a área da educação.

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS A Revista Práxis Educacional é um periódico anual da Área de Educação do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Seus objetivos são: a) divulgar pesquisas desenvolvidas pelos grupos de investigação da Área de Educação da Uesb e por grupos de pesquisa de outros espaços educacionais; b) fomentar a socialização e o debate da pesquisa no âmbito da práxis educacional, incentivando a produção científica de professores-pesquisadores e de estudantes-pesquisadores dos cursos de graduação e de pós-graduação. A Revista Práxis Educacional publica dossiês temáticos, artigos, resenhas, entrevistas, relatos de experiências, resumos de monografias, dissertações e teses recém-concluídas, de acordo com as seguintes temáticas: a) Organização do Trabalho Pedagógico (Projeto políticopedagógico; Planejamento; Currículo; Avaliação; Processo ensino-aprendizagem; Tecnologias da informação e da comunicação). b) Trabalho e Educação (Formação inicial e continuada de profissionais da educação; Trabalho docente). c) Fundamentos da Educação (Filosofia e Educação; História, Educação e Cultura; Sociologia e Educação). d) Políticas Públicas e Educação (Políticas de Educação Básica; Políticas de Educação Superior; Políticas de Financiamento da Educação). INSTRUÇÕES PARA PUBLICAÇÃO

• Serão publicados trabalhos inéditos, relacionados com a área de conhecimento ou especialidade definida para a revista, apresentados conforme normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). • Serão aceitos, para análise com vistas à publicação, trabalhos de profissionais (docentes, pesquisadores, pós-graduandos e egressos de

cursos de pós-graduação) da Uesb e de outras Instituições de Ensino Superior, bem como de outros espaços educativos formais e não formais (movimentos sociais, organizações não governamentais, entre outros). • Os trabalhos encaminhados serão objeto de apreciação de três pareceristas, que deverão opinar pela sua publicação ou não. Os autores serão informados, por e-mail, da aceitação ou não do trabalho. Em caso de aceitação, o(s) autor(es) deverá(ão) encaminhar, por e-mail, autorização para publicação na revista. • Se necessário, os artigos poderão ser encaminhados à parecerista ad hoc, não integrante do Conselho Editorial da Revista, com titulação mínima de mestre. • Os trabalhos deverão ser encaminhados à Comissão Executiva da Revista em disquete ou CD-ROM (compatível com padrão MS Word para Windows), com dois arquivos: um com autoria e outro sem autoria. Os trabalhos deverão ser encaminhados ainda em 4 (quatro) cópias impressas, sendo 3 (três) cópias sem identificação de autoria e 1 (uma) com identificação de autoria. Além disso, as produções também deverão ser encaminhadas para o endereço eletrônico da revista: [email protected]. • Os trabalhos deverão conter abstract ou résumé, resumo, palavraschave e referências, sendo digitados em: a) espaço – 1,5; b) fonte – Garamond 12; c) margens – 2,5; d) tamanho do papel – A4; e) notas de rodapé digitadas em tamanho 10; f) referências, de acordo com normas da ABNT. • As citações no texto, até três linhas, deverão aparecer entre aspas. As citações que excederem três linhas deverão ser destacadas em fonte Garamond, tamanho 11, alinhadas com o texto à direita e com o recuo de 4 cm. • As tabelas, quadros e gráficos, enumerados seqüencialmente, deverão ser feitos em preto e branco, por meio de recursos do Word, de acordo com as normas em vigor. • Nas referências, apresentadas no final do texto, deverão constar somente as obras citadas no trabalho. • Quanto à extensão dos trabalhos encaminhados, é necessário atender aos seguintes requisitos: a) artigos, entre 10 e 15 páginas, sem

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