A Cidade e a cirurgia de risco Dirceu Trindade
Assim como o corpo humano, também os componentes orgânicos das cidades adoecem.
Desta forma, é lícito fazer intervenções para corrigir deficiências,
reparar partes doentes e até transplantar órgãos inteiros. As cidades são também, um organismo complexo, e na medida em que crescem apresentam novos sintomas, que em alguns casos demandam intervenções pontuais e precisam de um estudo mais elaborado, para se estabelecer um diagnóstico. Em inúmeros casos clínicos já se viram cirurgias desnecessárias com morte prematura do paciente, ou simplesmente irreversíveis traumas e deficiências antes não existentes. No caso da cidade, vários são os casos de obras inúteis e que vieram também provocar morte prematura de bairros e organismos urbanos. A saúde do paciente em princípio deve ser tratada no sentido de preservação de seus órgãos, buscando sempre garantir vida saudável. A medicina preventiva é muito importante para prevenir males que possam ocorrer no futuro, e também as cidades devem ter um acompanhamento de planejamento preventivo.
Muitas
cidades - grandes e pequenas - devido a intervenções inadequadas padecem sofrimentos de inundações, congestionamentos, mau funcionamento dos sistemas urbanos, miséria e violência.
O tecido urbano é muitas vezes resultado de
procedimentos inadequados no parcelamento e no zoneamento, provocando males urbanos quase sempre de soluções difíceis. Em sua morfologia, a cidade apresenta um contraste urbanístico de verticalidade e horizontalidade e, para alguns, o território da cidade é apenas mercadoria, ou seja, lugar para a especulação imobiliária.
Não é difícil compreender que o aumento da densidade populacional em certas regiões
da
cidade,
levou
ao
aumento
de
demanda
por
circulação,
predominantemente por automóveis devido a fatores políticos e conjunturais, como a opção por transporte individualizado, provocando transtornos comuns no trânsito, levando à necessidade de intervenções. Estes fatores são conhecidos dos técnicos urbanistas há bastante tempo e, vem sendo motivo de preocupação e produção de conhecimentos de grande valor. Tais conhecimentos não tem sido devidamente reconhecidos e utilizados pelos governos das cidades. Neste sentido vamos nos deter em uma apreciação ligeira sobre as principais causas da polêmica que envolve a construção do vaduto-trincheira da T-63. Apenas para estabelecer um marco inicial de nossas considerações tomemos o ano de 1988. Naquele ano ainda não existia o tratamento paisagístico conhecido como Chafariz, a avenida T-63 se reduzia a uma pista de asfalto, a praça Nova Suíça era um grande espaço de terra vermelha e a partir daí, poucas vias eram asfaltadas.
Da mesma forma havia uma ocupação territorial rarefeita por
residências no Jardim América e pouca ocupação no Parque Amazonas.
Os
lugares hoje conhecidos como Bela Vista e Alto do Bueno não tinham ainda sido reconhecidos pelo mercado imobiliário.
Era, portanto, uma região de pouca
urbanização como o Bairro Anhanguera, localizado ao final da Avenida T-63 que, incluindo a área de invasão, se configurava como um loteamento não urbanizado. O Setor Pedro Ludovico, por causa da forma de sua ocupação caracterizada por população de menor renda, era desconsiderado, com uma urbanização precária e descontinuada no tecido urbano. O shopping Flamboyant era longe demais. Com o crescimento populacional da cidade, o aumento da renda e a grande necessidade de segurança residencial, intensificaram-se as construções de condomínios verticalizados, inicialmente como condomínios fechados (uma articulação entre interessados donos de lotes e agentes financeiros), originando o que conhecemos como o Alto do Bueno. Esta área foi ainda sacrificada por uma
brecha na legislação urbanística, que permitiu um índice de aproveitamento de 3.5 da área do lote, com afastamentos laterais de 2.00m para áreas de usos secundários, corroborados por um Código de Obras que “exigia” uma vaga para cada dois apartamentos de até 60m2.
Algumas ruas tornaram-se imensos
estacionamentos nos dias de hoje. O aumento de necessidades do tráfego urbano foi percebido na cidade toda na mesma ocasião, quando se estendia a especulação territorial no sentido sul. Inúmeros planos e projetos foram elaborados, infelizmente não foram executados ou não concluídos: a- perimetral norte; b- marginais Botafogo e Cascavel; c- Via Leste-Oeste; d- Anel Viário, entre outras. Da mesma forma, planos de transporte coletivo se restringiram aos eixos leste-oeste com a Avenida Anhanguera, o eixo norte-sul e a construção dos hoje superados terminais, dentro do plano de Jaime Lerner. Nada mais foi feito a não ser o alto investimento no eixo Anhanguera que possibilitou a troca do ônibus utilizado. Embora estas obras urbanas não tenham sido executadas, os bairros acima citados foram urbanizados, novos equipamentos urbanos que demandam circulação de veículos surgiram (shoppings, galerias, colégios, hospitais, faculdades...) e, mais importante, uma nova modalidade de morar surgiu na periferia e nos limites de municípios vizinhos: os condomínios horizontais fechados. São novos elementos de impacto no trânsito, transformando ruas locais residenciais em vias de acesso aos novos bairros e equipamentos. Num pequeno recorte observamos que os problemas da Avenida T-63 se iniciam na inconclusa Marginal Botafogo, num cruzamento com a Avenida Jamel Cecílio, que demanda ao shopping Flamboyant e aos novos bairros além rodovia. Em sua outra extremidade, a Avenida T-63 é um beco sem saída, com um intenso tráfego destinado aos jardins da periferia e, como única opção circula por uma via de 7.00m de caixa de rolamento através do Bairro Anhanguera.
Este recorte mostra a ausência de planejamento urbano.
Se o poder público
deseja adensar determinada área, deve antes planejar sua forma de ocupação e os recursos de mobilidade da população que aí vai habitar. Obras viárias necessárias devem estar integradas num plano, ser objeto de projetos completos específicos e estarem subordinadas aos interesses da coletividade.
As operações urbanas que recentemente se iniciaram, estão
completamente em desacordo com um método de planejamento, porque não se subordinam a um plano (Plano Diretor da cidade), não dispõem de projetos executivos completos adequados e deixaram de cumprir mínimas exigências legais, tais como, obediência ao Estatuto da Cidade e cumprimento do Plano Diretor. Não há, na atual obra, uma integração com as diretrizes do Plano Diretor que asseguram à Avenida T-63 a condição de via Expressa de 3ª. Categoria, e Corredor Preferencial de Transporte Coletivo, portanto, obra em execução não integra um plano urbano e de transporte coletivo. Observe-se que o adensamento de áreas do Alto do Bueno, do Jardim América e do Parque Amazonas continuam acelerados, além de estarem intensas as ocupações nas áreas fronteiras do município, cujo caminho é a Avenida T-63, em continuidade a Avenida 85. Na questão de águas subterrâneas o problema não é o lençol freático, se houvesse tal problema quase nenhum edifício poderia estar construído em Copacabana, Ipanema e Leblon no Rio de Janeiro, locais com lençol muitas vezes em torno de 1.50m. Quase todos têm subsolo, alguns com dois e até três, com as águas servidas sempre bombeadas para a rede que conduz até o interceptor oceânico para depois serem lançadas ao mar na altura das ilhas Cagarras. A questão, portanto, é como recolher as águas pluviais da região, estabelecendo para onde se deve conduzir.
Obras de galerias, como tem sido dito, de 2m de largura com 8m de profundidade em região ocupada da cidade, embora possíveis são inadequadas e não resolvem os problemas periféricos do Chafariz, bastando tentar imaginar o que seriam as bocas de lobo na T-63 com um poço para se atingir a galeria em tal profundidade. Terão de ser abertas galerias nas vias da área do viaduto-trincheira para a captação de águas pluviais, a inclusão de reservatório e bombeamento ao córrego mais próximo de acordo com suas dimensões e vazão suficiente para receber novo carregamento, o que leva a um aumento de custo que deveria estar previsto, se devidamente projetado, orçado e licitado. Podem ser corrigidas planilhas de custo da obra, transferindo o custo do inútil mastro para o custeio de parte da galeria. Difícil acreditar que do ponto de vista ambiental ou paisagístico, o mastro proposto possa ser mais integrado e interessante para a cidade do que o antigo, discreto e correto chafariz, que além do mais buscava repor um pouco de umidade no ar. De qualquer forma, na ausência de procedimentos de planejamento urbano, mesmo com as correções que se fazem necessárias, permanece a cirurgia de risco, e certamente não resultarão no benefício esperado pelo paciente, a população da cidade. Em menos de uma década várias operações urbanas foram realizadas em desacordo com o Plano Diretor e, como no caso da Avenida Cora Coralina, por exemplo, sem razão e sem utilização, apenas a viabilização de obras de interesse privado... a história se repete (?). Goiânia, 12 de junho de 2008.
Dirceu Trindade Arquiteto Ms. Urbanismo EESC-USP Professor da Escola Edgar Graeff-UCG