cinco vidas cinco vidas 1 cinco vidas miguel yasbeck rua cardoso de almeida, 841 perdizes-s �O paulo-brasil tel/fax: (011) 65-4173 cep 05013-001 cinco vidas homo sapiens prolificus 2 �Ndice homo sapiens prolificus........................................................................ ......................... 3 1996. .................................................................................. ...................................................... 4 transportes. .................................................................................. ..................................... 7 lazer e esportes.......................................................................... ...................................... 8 uso das ruas, pra�As e servi�Os .................................................................................. 10 saneamento b�Sico e controle ecol�Gico............................................................. 11 2006. .................................................................................. .................................................... 12 2016. .................................................................................. .................................................... 14 2026. .................................................................................. .................................................... 18 2036. .................................................................................. .................................................... 23 2046. .................................................................................. .................................................... 25 2056. .................................................................................. .................................................... 29 2066, 2076, 2086. .................................................................................. .................................... 35 2096.............................................................................. ......................................................... 38 o confessor......................................................................... ............................................. 41 i .................................................................................. .......................................................... 42
ii .................................................................................. ......................................................... 44 iii............................................................................... ........................................................... 51 iv................................................................................ .......................................................... 58 v................................................................................. .......................................................... 67 vi .................................................................................. ........................................................ 81 vii............................................................................... .......................................................... 85 the confessor......................................................................... ......................................... 87 i .................................................................................. .......................................................... 88 ii .................................................................................. ......................................................... 90 iii............................................................................... ........................................................... 94 iv................................................................................ .........................................................100 v................................................................................. .........................................................107 vi .................................................................................. .......................................................115 vii............................................................................... .........................................................118 a f� remove montanhas......................................................................... .....................120 pref�Cio .................................................................................. ..........................................121 introdu��o........................................................................ ..............................................123 inf�Ncia, adolesc�Ncia e juventude........................................................................1 25 idade adulta............................................................................ ........................................131 velhice........................................................................... ..................................................137 ep�Logo........................................................................... ..................................................152 o convertido........................................................................ ..........................................154 as fugas do formigueiro....................................................................... .......................174
resumo informativo....................................................................... ......................................218 cinco vidas homo sapiens prolificus 3 homo sapiens prolificus �prol�Fico, adj. lat. prolificus - que faz prole. 2. que procria abundantemente. 3. que tem prole numerosa. 4. f�Rtil, produtivo, fecundante�. (laudelino freire). �aos meus dois filhos; eles ver�O aquele futuro que eu posso apenas imaginar�. cinco vidas homo sapiens prolificus 4 1996. nesta tarde do dia 04 de janeiro de 2096, eu, no limiar de minhas for�as, tento terminar minhas mem�rias que abrangem minha exist�ncia desde o ano de 1996, quando tinha 12 anos de idade, at� a presente data, quando completei 112 anos. trata-se de uma vis�o pessoal da evolu��o da humanidade, sem preocupa��es hist�ricas, tentando mostrar como um indiv�duo (eu) sentiu as transforma��es efetuadas e o pre�o pago pelo crescimento cont�nuo do n�mero de habitantes do nosso pequeno planeta terra. se este relato pudesse ser lido pelos homens do fim do s�culo xx, ser� que a evolu��o humana teria sido a mesma? acredito que n�o. mas , independente da possibilidade f�sica de se remeter livros para o passado, como eu gostaria de fazer, vou deixar minhas recorda��es acess�veis nas telas de todos os computadores, mesmo que n�o sirvam para nada, al�m de preencherem meu tempo de aposentado e confinado enquanto as escrevo e as leio e releio. ent�o, vamos l�. vamos rel�-las mais uma vez. em 1996 mor�vamos na cidade de s�o paulo, capital de um estado do antigo brasil. meu pai tinha vindo de uma cidade do interior, para a capital, h� cerca de quarenta anos (em 1956) e acho que at� hoje n�o se acostumou com a mudan�a. e eu demorei anos para entender por qu�. a cidade de onde ele veio, quando tinha quinze anos de idade, possu�a, na �poca, cerca de vinte mil habitantes (cinco mil morando na zona urbana e quinze mil na zona rural). ele residia no centro da �rea urbana. a vida, pelo que se podia perceber, pelas hist�rias contadas, era muito pacata. levantar pelas seis horas, tomar caf� da manh�, ir a p� a escola (a poucos quarteir�es), voltar ,almo�ar, brincar, estudar, jantar, dormir e repetir tudo de novo. n�o havia televis�o, os autom�veis eram rar�ssimos, todas as pessoas se conheciam, inclusive pelo nome. os lugares de maiores aglomera��es humanas eram o cinema e a igreja, mas nunca havia filas nem correrias. ao contr�rio, na maior parte das vezes, os dois lugares estavam quase vazios. podia-se sair de casa �s 19:25 hs, e, folgadamente estar instalado numa cadeira (cadeira mesmo) do cinema �s 19:30 hs,
assistindo ao filme. n�o havia restaurantes ou lanchonetes, apenas pequenos bares e vendas. o ��est�dio�� de esportes era um campo de futebol (antigo pasto de gado) e as cinco vidas homo sapiens prolificus 5 arquibancadas eram improvisadas em um barranco; nos grandes acontecimentos esportivos conseguia-se reunir umas quinhentas pessoas para assistir e umas vinte charretes e alguns cavalos, no estacionamento, dos que vinham de mais longe. outro ponto de lazer era o rio; podia-se nadar, pescar e remar a vontade; a �nica ��polui��o�� que ser conhecia era o fato das �guas ficarem barrentas quando chovia muito. havia, tamb�m, um clube social e esportivo que promovia alguns bailecos e possu�a uma piscina muito boa; meu pai n�o se cansava de contar sobre um grande torneio de nata��o realizado, que chegou a juntar quinze(!!) nadadores. a prefeitura dava conta, facilmente das necessidades p�blicas. o lixo era recolhido em pequenas carro�as adaptadas, puxadas a burro, e aterrado a pouca dist�ncia. havia uma pequena rede de esgoto e muitas fossas sanit�rias. as escolas (duas) eram enormes; era necess�rio virem alunos de outras cidades para completar as classes, que nunca tinham mais que vinte alunos. os professores conheciam todos os alunos e suas fam�lias e viceversa. o atendimento m�dico era realizado por tr�s m�dicos que se revezavam entre os consult�rios e um pequeno hospital beneficente; na pr�pria cidade resolviam-se oitenta por cento dos casos e os restantes procuravam centros maiores, pr�ximos. sobre transporte coletivos urbanos nem se pensava; a cidade podia ser atravessada a p�, em poucos minutos. o abastecimento de �gua era feito por pequenos po�os e por bombeamento da �gua do ria que era tratada e depositada em um reservat�rio na parte mais alta do lugar, chamado de caixa-d��gua. algumas ruas centrais eram cal�adas com pedras retangulares que os pr�prios funcion�rios da prefeitura cortavam em algumas propriedades agr�colas e assentavam uma a uma, como um quebra-cabe�as. n�o havia ind�strias: apenas produ��o agr�cola, com�rcio e servi�os. uma estoria que eu gostava de ouvir contar era sobre o uso da cidade pelos habitantes: das pra�as, das ruas, das cal�adas. no ver�o as fam�lias, ao anoitecer, punham cadeiras em frente a suas casas e ficavam horas sentindo a brisa e conversando. todos que passavam eram conhecidos, cumprimentavam e, �s vezes, paravam para conversar. a pra�a central era ajardinada com v�rios bancos de granito, muito usados por pais que levavam os filhos para correr pelas alamedas do jardim. a cidade pertencia , igualmente e inteiramente, a todos os habitantes. a viol�ncia nas ruas era praticamente zero, embora houvesse contraste, �s vezes enorme, entre pobres e ricos.
cinco vidas homo sapiens prolificus 6 �os pobres s�o mansos� , ouvi meu pai dizer, ouvi meu pai dizer, muitas vezes. �todos os habitantes de comunidades pequenas n�o s�o violentos. atribuir a viol�ncia � pobreza � um erro crasso no diagn�stico da causa e, portanto, leva a um tratamento inadequado. podemos (e devemos) combater a pobreza, mas esperar que a viol�ncia tamb�m acabe � ignor�ncia total sobre as bases do problema. quando um trombadinha ataca sua presa, numa megal�pole, para arrancar-lhe, violentamente, uma j�ia, ele n�o est� atacando uma pessoa conhecida, da sua comunidade; est� atacando uma entre milhares de pessoas sem rosto e sem nome, para ele, que perambulam pelas ruas. � como se a j�ia estivesse pendurada num suporte met�lico e precisasse ser pega rapidamente. n�o se d� �trombada�� em amigos ou conhecidos�. a verdade � que a cidade possu�a pobres, ricos e remediados e apenas um soldado e um delegado, al�m de um guarda noturno que apresentava ligeira debilidade mental e n�o havia viol�ncia urbana. sabia-se de alguns casos de viol�ncia matrimonial e familiar; o �ltimo homic�dio havia acontecido h� cerca de quarenta anos. por que os pobres n�o eram violentos? por que a causa da viol�ncia n�o � a pobreza; a causa � a concentra��o demogr�fica excessiva que descaracteriza os valores humanos mais elementares. qual o valor de uma vida numa pequena comunidade? � enorme. todos iam ao vel�rio (e a maioria chorava) de qualquer habitante que morria. qual o valor de uma vida numa megal�pole ? quase nenhum. um a mais, um a menos, em quinze milh�es, nem se nota. todas estas pondera��es eu ouvia freq�entemente, mas n�o chegava a entender perfeitamente. tinha apenas doze anos , sempre havia vivido numa metr�pole e, para dizer a verdade, at� que gostava, naquela �poca. nunca havia morado numa cidade pequena e n�o podia estabelecer termos de compara��o. e tamb�m eu achava que meu pai sofria de algum problema que o fazia sentir mal onde havia muitas pessoas e era por isso que relembrava tanto a sua cidade natal. hoje, ap�s um s�culo, quando eu digito estas mem�rias, vejo que ele sentiu, juntamente com poucas pessoas da �poca, bem antes que o resto da humanidade, o que estava se passando. em medicina, naquela �poca, o diagnostico era feito pelo exame f�sico do paciente e, pequenos sinais, �s vezes um pequeno abaulamento, um tremor, uma mancha cut�nea, deviam ser aproveitados para se diagnosticar um mal maior que iria se manifestar num futuro pr�ximo. assim podia-se agir precocemente e muitas vezes salvar a vida
do cinco vidas homo sapiens prolificus 7 paciente. acredito que esse pequenos sinais j� se esbo�avam em 1996 e o futuro podia ser prognosticado. apesar disto o paciente (humanidade) n�o quis se tratar, o que, na ocasi�o, teria sido bem mais f�cil. mas, quais seriam estes sinais, naquela �poca? se n�o me falhar a mem�ria, aos 112 anos de idade, apesar de todo o controle bioqu�mico da circula��o cerebral, atualmente, passo a descrev�-los. transportes. em rela��o a atravessar a cidade, a p�, em cinco minutos, como era poss�vel nas pequenas concentra��es urbanas, houve mudan�as que j� podia ser considerada catastr�fica. perdia-se cerca de um ter�o do tempo �til do dia dentro de ve�culos particulares ou coletivos para se deslocar ao trabalho ou � escola. a irrita��o era geral e tendia para a viol�ncia. lembro-me que, de minha casa � escola (cerca de dois quil�metros), cheguei a levar uma hora e dez minutos, tendo perdido o hor�rio de importante exame de fim de ano. ainda bem que a professora tamb�m se atrasou, assim com o diretor da escola . come�ou a haver uma adapta��o de todos � dificuldade de transitar, havendo toler�ncia quanto as desculpas por atrasos. m eu pai come�ou a sair de casa cerca de uma hora mais cedo para chegar ao trabalho no hor�rio certo e disto eu me lembro muito bem pois a partir da� n�o o via mais sair pois ainda estava dormindo. as autoridades estavam inicialmente desesperadas mas depois parece que adotaram o lema que diz: o que n�o tem rem�dio remediado est�. aproveitavam as confus�es de estacionamento, as entradas irregulares a direita ou a esquerda, etc. e multavam todo mundo, mantendo assim uma bela receita para o departamento de tr�nsito. construir ruas novas, viadutos, pontes, etc., n�o resolvia pois parecia que os ve�culos brotavam de todo os lados. houve �poca que os governantes resolveram aumentar desproporcionalmente o pre�o cinco vidas homo sapiens prolificus 8 dos combust�veis e assim a classe mais pobre absteve-se de trafegar muito. logo que os pre�os ficaram compat�veis, o caos retornou. mas, com tantos jovens se habilitando para dirigir novos ve�culos, com tantas pessoas necessitando de transportes coletivos e de carga, era de se esperar outra coisa? o tr�nsito nas estradas tamb�m era quase ca�tico. lembro-me de um amigo que levou cerca de seis horas para retornar de uma viagem ao litoral, distante apenas cem quil�metros. ainda bem que os habitantes das margens da estrada aproveitavam para faturar um pouco e vendiam sandu�ches, frutas e refrigerantes nas portas dos autom�veis. certa vez, tamb�m ao voltarmos do litoral, resolvemos sair � meia noite; nesta hora com certeza a estrada estaria livre. mas n�o estava. conclu�mos que n�o havia mais estradas com
tr�fego normal, fosse a que horas fosse ser� que a humanidade j� n�o sabia naquela �poca as causas e conseq��ncias do problema? os sinais eram t�o evidentes. lazer e esportes. confesso que vi l�grimas nos olhos de meu pai ao chegarmos � pra�a de esportes onde eu iria participar de um simples torneio de nata��o, estilo costas. entramos por uma porta do gin�sio que ficava em frente �s arquibancadas onde estavam outras crian�as que iriam competir, todas sentadas e de mai� . eram seiscentas e oitenta e sete (soubemos o n�mero exato depois) e de fato, descontando os exageros demogr�ficos de meu pai, parecia um formigueiro. na competi��o interiorana que ele sempre citava eram quinze competidores, todos conhecidos de vista e pelo nome. para a semiologia dele, aquele formigueiro era o pren�ncio do apocalipse. eu me senti apenas um n�mero e se n�o tivesse comparecido ningu�m notaria. se tirarmos um min�sculo fragmento de uma massa disforme muito grande, n�o faz diferen�a. os clubes s�cio- esportivos viviam apinhados de gente, de tal maneira que os ricos sempre fundavam novos clubes para fugir do pov�o e estes novos acabavam lotando tamb�m. o jeito era conviver com a massa humana. as praias e cidades litor�neas eram caso de pol�cia (se bem que esta express�o na �poca j� n�o refletia a realidade pois a pol�cia n�o resolvia nem coisas mais importantes). nos feriados longos e temporadas de ver�o era puro masoquismo frequent�-las . havia tantos cinco vidas homo sapiens prolificus 9 guarda- sois fincados na areia que n�o se podia andar de p�, s� encurvado. os restaurantes, bares, ruas, todos super-lotados. certa vez, para fugir disto tudo, resolvemos ir acampar numa praia selvagem e deserta. eu detestava acampar (por falta de mordomias em acampamentos) mas achei bom porque tamb�m j� estava ficando cheio de tanta gente. ao chegarmos, na sexta-feira � noitinha, o lugar de fato mostrou-se lindo e deserto, antevendose belos feriados. na madrugada (cerca de 5hs) fomos acordados por barulho de motores, batucadas e cantorias, al�m do cheiro de fuma�a de �leo combust�vel. eram cerca de dezesseis �nibus chagando com turistas e lotando a praia. o lixo deixado quando partiram no domingo � tarde formava verdadeiras dunas na areia. eu me perguntava: qual a verdadeira causa da polui��o? e eu me respondia: � a pr�pria humanidade, necessitando cada vez mais ocupar espa�os e utilizar as reservas naturais para poder viver. por que os ecologistas n�o tocavam nesta tecla e ficavam s� culpando as
ind�strias? estas n�o existem para produzir cada vez mais produtos para o n�mero crescente de habitantes? uma ind�stria com total aus�ncia de polui��o produziria um produto final t�o caro que logo fecharia as portas. certo domingo, � tarde fomos assistir, eu e um tio, a um jogo de futebol muito importante entre duas sele��es (a do nosso pa�s e uma europ�ia). neste tempo meu pai come�ou a n�o freq�entar mais lugares com muita gente e neste caso ele fez muito bem em n�o ir. a lota��o do est�dio ultrapassou em 30.000 pessoas o limite que suportava e na sa�da houve p�nico e v�rios feridos graves. na hora do jogo houve v�rias brigas e durante as mesmas a concentra��o de pessoas por m� aumentava pois eram deixados espa�os vazios em torno dos que brigavam, comprimindo-se crian�as e mulheres. passei v�rios anos sem freq�entar est�dios e achei que aquela sensa��o de estado de p�nico iminente, durante cerca de duas horas era totalmente anti-natural para o homem e deveria ser evitada. at� hoje n�o sei explicar como gostava-se de sofrer daquela maneira, pois os est�dios estavam sempre lotados. a freq��ncia aos cinemas era sistematizada: ia-se de carro, levava-se cerca de 40 minutos para estacionar, entrava-se numa fila quilom�trica para comprar o ingresso e esperava-se numa ante-sala o in�cio da sess�o. pouco antes de abrirem as portas da sala de proje��o as pessoas se compactavam junto �s mesmas, criando um clima de pr�p�nico, sufocante e depois entravam como um verdadeiro estouro de boiada. como foram cinco vidas homo sapiens prolificus 10 benvindos os aparelhos de videocassete. n�o precisar mais tolerar aquela superconcentra��o de pessoas era maravilhoso. no natal de 86, antes de irmos para a casa de meus av�s resolvemos ir a um shopping center comprar alguns presentes. algumas ruas antes de chegar pareceu-me haver algum problema grave: o tr�nsito parou completamente; ap�s cerca de uma hora e meia percebi que o engarrafamento era pelo afluxo de carros ao estacionamento que, embora enorme, n�o dava conta. fora-se o tempo em que andar pelos corredores dos shopping era lazer. ao voltarmos para a capital, no dia 26 de dezembro, por volta das 20:00hs, paramos numa lanchonete, mas n�o lanchamos; a fila para tirar o ticket no caixa devia ter umas 200 pessoas e o ambiente dentro da mesma era t�o sufocante, pelo n�mero de pessoas, que passou a fome e sa�mos correndo de l�. com pode algu�m ficar horas numa fila, abafado, empurrado, vendo todos irritados ao redor, para comer um sanduiche padronizado, s�mbolo da massifica��o da alimenta��o?
ser� que o homo sapiens conseguira renegar suas origens animais e n�o se incomodava mais se lhe restringissem o espa�o vital? experi�ncias feitas naqueles anos com primatas (s�mios) j� mostravam que a concentra��o exagerada de animais em espa�o pequeno, levava a dist�rbios s�rios de comportamento. poder�amos transferir isto para a conduta humana? naquela �poca eu ainda n�o sabia estas respostas e para dizer a verdade nem mesmo as perguntas. uso das ruas, pra�As e servi�Os as ruas e pra�as pertenciam, naquele ano, aos marginais. n�o porque eles tivessem planejado tomar conta, mas simplesmente porque eram em grande n�mero e n�o tinham casa ou local de trabalho para ficar; ent�o, bastava a cidade inaugurar um logradouro p�blico, para que o mesmo fosse invadido. at� uns anos antes algumas pessoas sentavam nos bancos das pra�as e as bab�s levavam as crian�as para passear, geralmente em carrinhos de beb�. mas, al�m de roubos (inclusive dos carrinhos), a presen�a de pessoas mal vestidas, mal cheirosas, dizendo palavr�es e sujando tudo, espantou os freq�entadores. a cidade pertencia aos violentos. � regi�o central n�o se podia ir com j�ias, rel�gios, bolsas que era entregar o ouro aos cinco vidas homo sapiens prolificus 11 bandidos. tive v�rios amigos que deixaram agasalhos e at� sapatos, sob a amea�a de estiletes disfar�adamente encostados contra suas costas. as pessoas s� sa�am para ir a lugares determinados: trabalho, escola, etc. dar uma voltinha nas ruas ou aquele h�bito de sentar em frente �s casas, no ver�o, era coisa do passado, n�o voltaria mais. m esmo nas cidades do interior (bem menores), j� se notava o mesmo fen�meno. quando �amos para l� tentamos, algumas vezes, freq�entar alguns pontos tur�sticos. mas �ramos afugentados por pessoas (geralmente adultos jovens) que l� estavam como se o logradouro p�blico fosse deles; a maioria em trajes impr�prios, dizendo palavr�es e ofendendo aos que passavam e alguns namorando de maneira a incomodar propositadamente. mas o que mais impressionava era o enorme n�mero de pessoas, sempre presentes. os servi�os p�blicos eram sin�nimos de filas. lembro-me de imagens de tv que mostravam pessoas h� 4 dias na fila para comprar um aparelho telef�nico (favor informarem-se, caros leitores, o significado exato de tv e telefone, que foram os prim�rdios do que hoje usamos). os bancos, ag�ncias de correios, postos de assist�ncia m�dica e social, postos eleitorais, etc., e outras institui��es comuns naqueles anos, viviam abarrotados. perdia-se um tempo enorme tentando usar estes servi�os. saneamento b�Sico e controle ecol�Gico. as condi��es de saneamento b�sico eram p�ssimas, principalmente no chamado terceiro mundo. grassavam a mal�ria, a mol�stia de chagas, a esquistossomose, as gastroenterocolites agudas, as viroses, as verminoses, etc., etc. o poder p�blico
n�o dava conta do recado. cheguei, certa ocasi�o, a mudar a premissa de malthus para: �o crescimento demogr�fico � geom�trico e o crescimento de obras p�blicas � aritm�tico�. nas grandes cidades os rios foram transformados em esgotos a c�u aberto; as represas foram todas contaminadas e tornadas impr�prias para a vida. os grandes acidentes ecol�gicos estavam em moda. voc�s podem consultar a central de dados sobre por exemplo: bopal, chernobyl, rio reno, etc., etc. para n�o me alongar posso resumir-lhes que qualquer atividade humana naquela �poca era cinco vidas homo sapiens prolificus 12 massificada e o n�mero exagerado de pessoas em rela��o aos bens e servi�os, tornava tudo insuficiente e de m� qualidade. creio que os pontos e sinais que analisamos s�o suficientes para poder se chegar � conclus�o que muitas pessoas chegaram naquela d�cada: a humanidade devia parar, urgentemente de crescer e mesmo diminuir. m as n�o foi isso que aconteceu, como todos sabemos. muito pelo contr�rio. 2006. nestes dez anos houve alguma mudan�a; para pior. o �ndice de crescimento populacional manteve-se em torno de 2% ao ano e isto quer dizer um aumento global de 22% na �ltima d�cada. dados colhidos por entidades internacionais davam a popula��o mundial em torno de seis bilh�es e cem milh�es de habitantes. al�m deste aumento houve maior tend�ncia de urbaniza��o das pessoas. nos pa�ses ditos do primeiro mundo (geralmente do hemisf�rio norte) houve decr�scimo do �ndice de crescimento nas camadas de classe m�dia alta, estabiliza��o no restante da classe m�dia e aumento na classe dita pobre. tomemos por exemplo os estados unidos da am�rica do norte; l� um jovem da classe m�dia alta exige muito mais, materialmente falando, para casar-se, que um jovem da classe pobre. havendo casamento o n�mero de filhos � limitado pois h� necessidade de oferecer bom ou �timo padr�o de vida a todos, o que torna-se cada vez mais dif�cil. estes fatos estavam levando a um �escurecimento� e a uma �latiniza��o� da popula��o norte-americana. v�rias cidades j� apresentavam prefeitos negros ou latinos. nos estados unidos (louve-se) o voto do mais pobre lavrador negro do sul tinha o mesmo valor do voto do maior magnata ariano do pa�s. na europa em geral acontecia o mesmo; o n�mero de europeus t�picos diminuiu e a popula��o em geral dos pa�ses aumentou. o �ndice de natalidade entre os imigrantes era cinco vidas homo sapiens prolificus 13 muito maior que entre os naturais do pa�s. notou-se, principalmente, um aumento mais acentuado nas comunidades cat�licas, pois a igreja romana nunca abriu m�o da proibi��o da anti-concep��o. ao contr�rio
sempre prometeu o fogo do inferno aos casais que evitassem filhos por quaisquer m�todos n�o naturais. a m�xima: crescei e multiplicai-vos, dita n�o sei por quem, h� mil�nios, e j� totalmente sem prop�sito, devia ser seguida � risca. isto levou a um aumento consider�vel da for�a pol�tica dos cat�licos nos pa�ses em geral, onde sempre foram minoria. n�o seria esta uma das metas ao se combater tanto a anti-concep��o? parece-me, n�o tenho dados exatos (e n�o vou consultar a biblioteca mundial) que o �ndice de mortalidade diminuiu, em geral, neste dec�nio e mais acentuadamente nos pa�ses adiantados tecnologicamente. isto devido, principalmente, a avan�os da medicina preventiva e mesmo da curativa. o uso sistem�tico de vacinas, as campanhas de instru��o higieno-diet�ticas pelos meios de comunica��o, a melhoria das redes governamentais de assist�ncia materno-infantil e o aparecimento de medicamentos potentes, fizeram cair verticalmente o n�mero de mortes por doen�as. a medicina curativa efetuava grandes avan�os na imunologia, aproveitando-se de vultosos recursos destinados a se estudar uma mol�stia que naquela �poca chegou a assustar: uma s�ndrome de imuno-defici�ncia viral, conhecida pela sigla de aids. como subprodutos destes estudos avan�ou-se tremendamente na terap�utica das neoplasias e das doen�as em geral. come�ava-se a era imunol�gica da medicina e a idade m�dia de vida come�ou a aumentar como nunca dantes se imaginara. nos pa�ses desenvolvidos iniciou-se uma �branqueamento� (em rela��o aos cabelos) da popula��o, isto �, a percentagem de pessoas idosas, dentro do todo, come�ou a aumentar, chegando, em alguns pa�ses a 40% dos habitantes. os problemas referidos em 1996 como sinais de que a esp�cie humana estava em perigo, agravaram-se. neste ano eu estudava engenharia gen�tica nos estados unidos e l� observava coisas alarmantes do ponto de vista de densidade demogr�fica exagerada. mas o que me entristecia mais eram as not�cias do meu pa�s. as grandes cidades: grande porto alegre, grande s�o paulo, grande rio, grande salvador, grande recife (grande, grande, grande ...) estavam com todos os problemas agravados. as autoridades come�aram a intervir, �s vezes com muito rigor, nas liberdades individuais de ir e vir. os caminh�es n�o podiam mais entrar nas cidades; os carros foram divididos em dois grupos com placas final cinco vidas homo sapiens prolificus 14 par e �mpar e s� podiam circular dia sim, dia n�o, respectivamente. mesmo assim o tr�nsito, ap�s uma melhora inicial, voltou a congestionar. o saneamento b�sico e o abastecimento em geral come�avam a preocupar seriamente; os investimentos para estes setores esgotavam quase todo o or�amento dos estados. indo em dire��o ao interior come�ava-se a desenhar outras grandes metr�poles, como
por exemplo pela fus�o de v�rias cidades da via anhanguera com a cidade de campinas e a forma��o da grande metr�pole do vale do para�ba, com in�meras cidades fundindo-se umas com as outras. os problemas, � l�gico, eram os mesmos da capital, agravados pelo crescimentos muito r�pido da popula��o em curt�ssimo tempo. estas tend�ncias agora descritas permaneceram inalteradas ou agravadas por mais uma d�cada. 2016. n�s, os bi�logos, zo�logos, m�dicos, etc. pens�vamos, este ano, que a esp�cie humana entraria em processo catastr�fico de extin��o. entre estes especialistas sabe-se que sempre foi imposs�vel uma esp�cie sobrepujar todas as outras e crescer indefinidamente. nos milh�es de anos de hist�ria da vida no nosso planeta v�rias esp�cies haviam crescido muito e desaparecido pelo pr�prio gigantismo. naqueles dias estud�vamos ratos que, quando se multiplicavam muito e a densidade de animais ficava muito grande, num pequeno espa�o vital, as f�meas tornavam-se inf�rteis ou matavam suas crias logo que nasciam. seria esta a rota humana? por incr�vel que pare�a o �ndice de crescimento na �ltima d�cada havia se estabilizado em 6% ao ano. isto quer dizer que a popula��o da terra da� para a frente iria dobrar, aproximadamente, a cada dez anos. quantos �irm�os� o planeta suportaria? come�avam a se delinear v�rias crises: esgotamento de mat�rias primas importantes, escassez de energia, escassez no abastecimento de alimentos, �pane� nas condi��es de saneamento, etc. cinco vidas homo sapiens prolificus 15 as grandes cidades eram, nestes anos, verdadeiros formigueiros. os conjuntos habitacionais eclodiam por todos os lados. o saneamento b�sico (�gua, esgotos, etc.) era o problema mais s�rio dos governos e o racionamento do consumo de �gua era a norma. o tr�nsito de ve�culos come�ou a ser controlado por computador; a estrada era computadorizada. com isto �s vezes se aguardava meses para poder curtir uma praia ou uma montanha. as ind�strias n�o davam conta da produ��o de bens de consumo e a falta dos mesmos nos locais de venda era freq�ente. os cinemas e teatros fecharam; n�o davam vaz�o ao n�mero de carros e pessoas que aflu�am aos mesmos; foram substitu�dos pelos videocassetes, atrav�s dos quais as pessoas viam filmes e outras proje��es em suas pr�prias casas. as pessoas mais abastadas preferiam n�o sair muito. os condom�nios onde moravam organizavam compras conjuntas, passavam filmes em conjunto e, alguns, j� possu�am at� escolas no seu interior. nesta �poca conheci uma crian�a que at� os oito anos de idade n�o
havia sa�do do condom�nio em que nascera. na minha opini�o estas verdadeiras aldeias dentro das cidades foram o germe do estilo de vida que hoje vivemos. dizem que as grandes crises s�o m�es de grandes solu��es. talvez isto tenha acontecido naquele tempo. n�o houve uma grande solu��o imediata para os problemas, mas v�rios fatores se somaram e escreveram a hist�ria do mundo at� este em que hoje vivemos. houve muito consenso, muita concilia��o, v�rios pactos entre governos e muitas confer�ncias e acordos. que acontecimentos foram marcantes para que fosse poss�vel o grande acordo de 2030, considerado o maior de toda hist�ria humana? em primeiro lugar podemos citar que o grande crescimento das camadas pobres da popula��o levaram os pa�ses ocidentais, pelo voto, a se tornarem rep�blicas democr�ticas e o mundo ficou homog�neo em mat�ria de governo. era comum, em 100% dos pa�ses europeus, os governos serem trabalhistas, socialistas, etc. nos estados unidos j� tiv�ramos dois presidentes negros, muito bons e muito amigos dos presidentes sovi�ticos. mesmo governando com toda sabedoria e justi�a, os governantes da �poca, em sua imensa maioria, n�o estavam conseguindo suprir as necessidades dos habitantes. muitos chegaram a pensar em controle vigoroso de natalidade, pois o �ndice de mortalidade estava muito baixo. mas, cinco vidas homo sapiens prolificus 16 se eles foram eleitos porque a popula��o cresceu muito, esta medida n�o levaria de volta aos tempos em que as minorias governavam o ocidente? de qualquer maneira os v�rios governantes democratas, assim eleitos, conseguiram acabar com as guerras localizadas, com a fabrica��o de armas e com v�rios gastos desnecess�rios para a seguran�a externa dos pa�ses (ex�rcitos, marinhas, aeron�uticas, etc.). todo dinheiro foi canalizado para suprir os gastos com abastecimento de alimentos. o entendimento entre governantes, em geral, era o melhor j� havido na hist�ria do homem. isto tudo era muito bom, mas diminu�a ainda mais o �ndice de mortalidade. o padr�o de vida tendia a igualar-se em todos os pa�ses, pois nos de grande popula��o estacionou e todos os pa�ses tendiam a ter popula��es enormes. a desativa��o das armas at�micas estava em pleno curso. os governos populares americano e sovi�tico haviam assinado um tratado que se completaria, em 2030, com a desativa��o total. alguns pa�ses j� estavam unilateralmente convertendo suas armas at�micas em combust�vel para usinas nucleares. poder�amos dizer que a bomba a( at�mica ) estava sendo substitu�da pela bomba d (demogr�fica). outros fatores que muito influ�ram para o grande acordo foram de origem tecnol�gica, sendo os principais os seguintes: a) a substitui��o maci�a dos fios de metal que transmitiam impulsos el�tricos, nas
comunica��es em geral, por fibras �pticas, isto � de vidro, que transmitiam impulsos luminosos. isto aumentou em milh�es de vezes as possibilidades de comunica��o. o jap�o, na d�cada de 2010, foi o primeiro pa�s a construir uma cidade, n�o experimental, com todos os recursos tecnol�gicos da �poca. foi o prot�tipo das habita��es atuais. para aquele ano o fato comum de todo o curso prim�rio ser dado para trinta crian�as, cada uma em frente ao seu v�deo, sem precisar sair de casa, era excepcional. a facilidade de comunica��es tamb�m fez aparecer, pela primeira vez na hist�ria, a televis�o multidirecional, isto � naquela cidade experimental japonesa todo o habitante tinha tv individual e todos podiam se comunicar com ele, e ele com todos, atrav�s dela. b) outro avan�o foi a dissemina��o dos computadores. o plano �computer for everybody� havia dado certo. n�o havia habitante na face da terra sem o seu computador individual, geralmente ligado a poderosas centrais. cinco vidas homo sapiens prolificus 17 c) a medicina havia progredido muito. a cirurgia estava sendo abolida, pois os medicamentos curavam ou preveniam todas as doen�as. os meios diagn�sticos avan�aram tanto que pod�amos estudar milim�tricamente todo o organismo humano por m�todos de resson�ncia, n�o invasivos. uma got�cula de sangue posta num analisador dava dados completos sobre o estado de sa�de do indiv�duo. a �rea em que eu trabalhava (engenharia gen�tica) tinha avan�ado tremendamente; j� hav�amos conseguido �fabricar� v�rus exatamente opostos aos que provocavam a imuno-defici�ncia. assim, era s� uma pessoa deglutir aqueles v�rus, isto �, infectar-se pelos mesmos, que o seu sistema imunol�gico ficava extremamente competente e eficiente, vencendo qualquer anormalidade no organismo, inclusive as neoplasias. era o in�cio da realiza��o do grande sonho dos m�dicos de fazer as pessoas morrerem apenas quando terminasse o �impulso vital� celular com o qual toda pessoa j� nasce, abolindo todas as mortes por doen�as. numa crian�a nascida em 2016 logo se fazia a previs�o do impulso vital das c�lulas e determinava-se quantos anos ela viveria (em geral em torno de 130 anos) e se n�o acontecesse nenhum acidente (de tr�nsito por exemplo) poderia sem d�vida, esperar viver este tanto. este foi um dos grandes causadores do aumento assustador de �ndice de crescimento da popula��o. d)a rob�tica (estudo dos rob�s existentes e de novos projetos) andava celeremente. v�rias f�bricas j� funcionavam sem trabalho manual humano. os homens apenas programavam as �reas de expans�o e de vendas e apertavam bot�es na �rea de produ��o.um grande
avan�o ocorrido nestes anos foi o chamado rob� multiplicador de for�a que era praticamente uma extens�o do homem que o manipulava. tomemos um exemplo: um ser humano deveria jogar carv�o no interior de um forno muito quente e para isso ficaria horas em frente ao mesmo com graves danos � sua sa�de. ao inv�s disto punha-se um destes rob�s pr�ximo ao forno (local insalubre) e o homem ficava distante (local agrad�vel) onde havia dois bra�os ocos nos quais ele enfiava seus pr�prios bra�os. ent�o, f�cil e confortavelmente, ele �executava� o trabalho, sendo que o rob� fazia milim�tricamente os mesmos movimentos, executando a verdadeira tarefa. existiam tamb�m, m�os multiplicadoras de for�a. a gente enfiava as pr�prias m�os em luvas especiais e tudo o que faz�amos, suavemente, era feito pelo rob� com a for�a que se queria. como se v� eram os prot�tipos do que hoje dispomos. e) outro fato de que me lembro era a homogeneiza��o da linguagem. sem revolu��es e sem cinco vidas homo sapiens prolificus 18 a m�nima imposi��o, todos falavam ingl�s, com rar�ssimas exce��es entre os mais idosos. e as pessoas, em geral, falando duas l�nguas, acabavam preferindo a mais comunicativa. eu j� previa, e n�o era dif�cil, o desaparecimento de v�rios dialetos, l�nguas tribais e mesmo l�nguas disseminadas, como de fato aconteceu. f) outro grande avan�o que se previa e aconteceu foi na alimenta��o. sempre se achou, com raz�o, que criar um vegetal para ser comido por um animal e depois abater este animal e se usar apenas parte do mesmo como alimento humano, era um desperd�cio que n�o se justificava se quis�ssemos continuar a crescer demograficamente. ent�o desenvolviam-se vegetais com alto teor prot�ico e com sabores cada vez melhores (eu pr�prio fui o descobridor de uma muta��o muito boa). dos mesmos podia-se fazer verdadeiros bifes e mesmo leite para uso imediato, sem a vaca intermedi�ria. assim, em v�rios pa�ses, as pastagens de gado estavam se transformando em terrenos para conjuntos habitacionais. 2026. ent�o, em que p� nos encontr�vamos neste ano? a humanidade vivia em paz e o mundo tornava-se homog�neo tanto quanto aos governantes como quanto ao povo em geral. praticamente estavam resolvidos todos os problemas que nos afligiram nos �ltimos dec�nios; as guerras, a possibilidade de exterm�nio at�mico, a explora��o dos povos por minorias, os gastos em seguran�a, etc. toda a economia feita foi canalizada para atender a demanda enorme de casa, comida, transportes e obras p�blicas. inclusive algumas pesquisas muito onerosas como a de v�os espaciais, foram canceladas e os esfor�os que se faziam para as mesmas foram
dirigidos para se atender ao crescimento demogr�fico. as pesquisas em produ��o de alimentos, medicina, constru��o de habita��es eram estimuladas. come�ou-se a delinear neste dec�nio o quadro que temos hoje, isto �, muita, muita e muita gente, com necessidades enormes, tudo sendo feito para supri-las, esquecendo-se e eliminando-se os outros problemas. foi neste ano que surgiram as maiores rea��es contra o aumento populacional incontrolado cinco vidas homo sapiens prolificus 19 (j� �ramos 24 bilh�es). pois se tudo j� havia sido feito em mat�ria de economia, produ��o e distribui��o e ainda havia problemas, qual a solu��o a n�o ser controlar rigorosamente o �ndice de crescimento populacional? alguns queriam zer�-lo, outros queriam torn�lo negativo. houve inclusive (pasmem), propostas de se aumentar o �ndice de mortalidade, deixando-se de estimular artificialmente o sistema imonol�gico das pessoas e diminuindo o tempo m�dio de vida. m as n�o haveria, mesmo, mais nada a fazer? as sociedades de prote��o da vida, v�rias religi�es populares e principalmente a igreja cat�lica romana, j� naquele tempo muito influentes, convocaram uma reuni�o de �mbito mundial para um estudo profundo da quest�o. esta confer�ncia terminou em 2030 com o conhecido grande acordo. participaram dela os representantes de uma nova federa��o mundial de governos (cerca de duzentas pessoas), que come�ava a se firmar, uma comiss�o de not�veis, que era a favor do controle do crescimento e outra numerosa comiss�o composta por pessoas que eram contra o controle, chefiados pelos cat�licos e composta por representantes de religi�es �rabes e orientais. discutiu-se durante tr�s anos, de 2027 a 2030. no in�cio v�rias quest�es filos�ficas, metaf�sicas e outras de ordem pr�tica, mais banais, foram colocadas. quem era contra a limita��o do crescimento argumentava que, no passado, fora revelada ordem divina para que n�o se cessasse a multiplica��o do homem. a intelig�ncia legada a n�s, por deus, n�o permitiria que o fato de seguir aquela orienta��o b�blica nos levasse � cat�strofe. o homem n�o continuava vivendo com o n�mero enorme de 24 bilh�es de habitantes? o fato de termos que suprir toda esta popula��o n�o nos levou a suprimir todos os outros entraves e problemas? se obrigarmos um homem (ou uma mulher) a viver uma vida toda sem descendentes, ele aceitaria? temos o direito de obrig�lo? a sugest�o de se aumentar o �ndice de mortalidade foi veementemente descartada e mesmo houve recusa formal em sequer discuti-la.alguns representantes cat�licos chegaram a citar
o fato de que a sua igreja nunca esteve t�o bem (t�o lotada de fi�is), em toda a hist�ria e eles achavam isto muito bom pois as id�ias crist�s deveriam mesmos ser conhecidas pelo maior n�mero poss�vel e imagin�vel de pessoas ( existentes ou que pudessem vir a existir). se bloque�ssemos o nascimento poder�amos estar bloqueando o aparecimento de um novo cinco vidas homo sapiens prolificus 20 prov�vel crist�o e isto n�o devia ser permitido. estes radicais eram contr�rios a qualquer m�todo anticoncepcional.os que eram a favor da limita��o do crescimento argumentavam com fatos que diziam cient�ficos e de ordem pr�tica. nunca uma esp�cie animal havia crescido tanto. est�vamos eliminando todas as outras por falta de espa�o e de comida. qual o limite m�ximo suportado pelo planeta, sem altera��es irrevers�veis? a maioria achava que j� o t�nhamos atingido. os governantes n�o reclamavam constantemente sobre a dificuldade de planejamento? tudo n�o era superado pelo crescimento geom�trico da popula��o? o ambiente, em alguns lugares, n�o estava sendo devastado totalmente? n�o estava havendo uma falta de amor ao pr�ximo, diante da promiscuidade? o comportamento agressivo interpessoal da esp�cie humana n�o estava sendo estimulado quando amonto�vamos homens em espa�os limitados? como o povo, em geral, naquela �poca, sentia a quest�o? responderei por mim e pelas observa��es que fazia e das quais estou parcialmente lembrado. como vimos em 1996 alguns homens, a meu ver mais sens�veis que a maioria (sem querer elogiar meu pai) j� haviam percebido que a principal causa de in�meros problemas era o crescimento e a concentra��o demogr�fica acelerados, sem recursos para melhorar as condi��es de sobreviv�ncia. ent�o, de duas uma, ou se parava de crescer ou teriam que aparecer os recursos. de uma maneira ou de outra, lenta e fracionadamente a humanidade foi se adaptando e aparecendo os recursos. de onde? ora, era e � uma coisa muito simples. foi somente parar de gastar em coisas in�teis (em termos de sobreviv�ncia da esp�cie) e os meios apareceram. s� que desta simplicidade te�rica para a pr�tica foi um grande percurso. a verdade � que apesar de todo o pessimismo, a humanidade, que parecia que entraria em rota de extin��o com 5 bilh�es de habitantes, continuava existindo, talvez em melhores condi��es, com 24 bilh�es. tinha acontecido o que em hist�ria costumou-se chamar de �homogeneiza��o� do planeta, isto �, todos os povos se aproximaram do padr�o de vida m�dio , havendo uma queda de padr�o nos de n�vel mais alto e aumento nos de n�vel menor. foram abolidas todas as sofistica��es desnecess�rias e diminu�das sensivelmente as liberdades individuais. por exemplo, na agricultura, o propriet�rio n�o tinha
liberdade para plantar o que quisesse; ele era controlado por um plano nacional de abastecimento e s� plantava o estipulado neste plano. as viagens, mudan�as, locais de trabalho, resid�ncia, etc. cinco vidas homo sapiens prolificus 21 eram todos controlados centralmente. no meu caso, por exemplo, neste ano eu completara 42 anos e resolvera casar-me com uma professora de f�sica nuclear que trabalhava na mesma universidade que eu; n�o havia nenhuma restri��o aos casamentos e � prole. somente dever�amos ir morar num conjunto habitacional enorme na zona oeste da cidade e eu e minha mulher que antes mor�vamos no local de trabalho, ter�amos que nos locomover por aquele tr�nsito horroroso da �poca. resolvemos o problema com duas bicicletas motorizadas. as refei��es eram feitas em monstruosos (pelo tamanho) refeit�rios da universidade. nossas f�rias, passeios, etc. eram controlados por computador. para marcar a data do casamento esperei seis meses e a cerim�nia religiosa foi conjunta (30 casamentos simult�neos). eu me acostumei r�pido �s restri��es e observava que os mais novos eram mais adaptados ainda. parece que todos sabiam que n�o era poss�vel de outra maneira. se eu hoje pudesse mandar um recado aos marxistas de 1996, ao inv�s de: �oper�rios uni-vos�, eu diria: �oper�rios multiplicai-vos� e o governo centralizado vir� suave e inexoravelmente; n�o percam tempo se matando, apenas cres�am; o restante � evolu��o natural e s� quest�o de alguns anos. resumindo: o povo estava adaptado � situa��o, talvez at� melhor que h� quarenta anos atr�s e n�o havia tanto pessimismo quanto ao fato do formigueiro aumentar. bem, mas apesar do povo contar, e muito, naquela �poca, os representantes da federa��o mundial estavam at�nitos diante das discuss�es das fac��es pr� e contra o controle do crescimento demogr�fico. parecia que ambas as partes tinham raz�o e o povo estava neutro. note-se que as reuni�es governamentais e de comiss�es, naqueles anos, j� haviam melhorado muito de n�vel em rela��o aos anos anteriores. reunia-se para resolver, de fato, os problemas e n�o para posterg�-los e enganar a popula��o. havia a mentalidade da urg�ncia das resolu��es pois o n�mero de novos habitantes era enorme e di�rio. sentiu-se, ent�o, a necessidade de ambas as partes cederem e os governos mediarem um acordo geral. estabeleceram-se, ent�o, v�rias premissas que deveriam ser seguidas � risca, entre elas: a) n�o se pode prever o n�mero m�ximo de habitantes poss�veis, compat�veis com os meios de subsist�ncia. b)o consumo humano (de alimento e energia) pode ser drasticamente reduzido se
forem abolidas liberdades individuais que, para existirem, oneram tremendamente a sociedade. c)os gastos em pesquisas devem concentrar-se em procura e aperfei�oamento de fontes de cinco vidas homo sapiens prolificus 22 alimento e energia e de m�todos de constru��o de moradias. d)em determinadas fases do desenvolvimento da humanidade pode haver o controle do n�mero de componentes da esp�cie, mas apenas temporariamente, at� que se descubram meios que permitam a aboli��o do controle; esta cl�usula foi inserida por vota��o, pois a igreja cat�lica n�o concordava, em tese, com a mesma, pois achava que, se n�o houvessem as bocas querendo alimentos, n�o haveria interesse em se pesquisar novos m�todos de consegu�-los. e)a medicina devia manter-se pronta para, em caso de necessidade, introduzir, na alimenta��o, produtos que inibissem total ou parcialmente a concep��o, se fossem detectados sinais de riscos quanto � produ��o dos meios de subsist�ncia. f)v�rias outras premissas de menor import�ncia foram estabelecidas e a bibliografia sobre as mesmas � enorme (vide banco mundial de dados). baseado em todas elas foi elaborado o grande acordo de 2030, atrav�s do qual as cidades seriam, o mais rapidamente poss�vel, reconstitu�das, iniciando-se o quadro que hoje conhecemos. foi, talvez, a d�cada mais brilhante de toda a hist�ria humana. cada cidade possuiria 40 milh�es de habitantes e estariam assim distribu�das: europa 250 cidades �sia 1000 cidades �frica 750 cidades am�ricas 1000 cidades oceania 200 cidades seriam poupados os p�los (principalmente a ant�rtida), os oceanos e mares, e parte dos desertos. desta maneira a humanidade teria a possibilidade de crescer at� 128 bilh�es de habitantes. o �ndice de crescimento seria mantido em torno de 3% e assim os meios de subsist�ncia estariam assegurados at� mais ou menos o ano de 2090 quando atingir�amos aquele total. e como seriam reconstitu�das as cidades? toda a tecnologia e a for�a de trabalho da �poca seriam concentrados nesta tarefa. cada cidade seria um quadrado de 100 km de lado subdividido em 13.334 lotes de pouco menos de 1km� cada, dependendo das condi��es geogr�ficas, de maneira que, em cada lote fosse cinco vidas homo sapiens prolificus 23 constru�do um habit�culo que abrigasse 3 mil pessoas; o total de habitantes da cidade deveria ser em torno de 40 milh�es como j� vimos. o in�cio das constru��es foi em 2030, mas deslanchou em 2036, quando foi estabelecido um plano decenal.
come�ou pela �sia onde o problema era mais grave. foi um per�odo de grandes transforma��es para a humanidade, com muito sofrimento pelo esfor�o herc�leo que se fez necess�rio e pelo per�odo de adapta��o que nem sempre foi f�cil. as crian�as (at� 8-10 anos) adaptaram-se facilmente; os adultos lentamente foram modificando seus h�bitos: n�o era f�cil mudar todo um estilo de vida adquirido durante anos, embora, confesso, que para mim a adapta��o n�o foi das mais dif�ceis. sempre sonhei com aquela cidadezinha interiorana das minhas est�rias da inf�ncia e parece que estava tendo a �nica chance de viver numa delas, logo que me mudei (mas isto foi em 2046). 2036. o planeta fervilhava com a constru��o das novas cidades. o esfor�o de toda a humanidade era enorme. com aquela popula��o necessitar�amos, para uma mudan�a total, de 600 novas cidades ou 8 milh�es de habit�culos. os governos proibiram a natalidade por 16 anos, a partir de 2027, quando se iniciou a confer�ncia que levaria ao grande acordo (com o protesto das igrejas). naquele tempo a menopausa j� podia ser postergada e a primeira gesta��o, mesmo em idosas era controlada, sem riscos de anomalias gen�ticas e por isso, as mulheres, em geral, n�o reclamaram muito. ent�o, nos 10 anos seguintes deveriam ser constru�das 60 cidades por ano (ou 800 mil habit�culos). todos os rob�s de constru��o e outros, toda a ind�stria de pl�sticos (naqueles anos o pl�stico super-duro substituiu grande parte dos outros materiais), todos t�cnicos, etc., etc., deram o m�ximo que puderam. era um esfor�o de guerra como se dizia anteriormente (quando ainda se guerreava). � medida que as cidades novas avan�avam as velhas iam sendo demolidas e o que era reaproveit�vel ia sendo reutilizado. instalavam-se os grandes t�neis unindo as cidades entre si e os t�neis menores unindo os habit�culos uns aos outros. cinco vidas homo sapiens prolificus 24 atrav�s dos mesmos passavam-se os cabos de fibras �pticas supercondutores e os trilhos para o transporte de alimentos, pessoas, cad�veres e para o recolhimento de detritos em geral. a ind�stria de sistemas totais de comunica��es trabalhava a todo vapor, instalando os aparelhos individuais e as enormes centrais. a capta��o de energia solar, por unidade, era instalada no final, usando-se grande parte das paredes dos habit�culos. as �fazendas� para fabrica��o de alimentos come�aram a funcionar, sendo que, em algumas cidades elas ficavam no mar; a �gua-cultura se mostrava, naquela �poca, mais f�cil do que a geo-cultura. o potencial hidroel�trico foi preservado e melhorado, assim como as linhas de transmiss�o;
as usinas at�micas se tornaram muito seguras e eficientes, algumas j� sonhando em se tornarem produtoras de energia por fus�o, ao inv�s de fiss�o. instalaram-se em v�rios desertos, grandes captadores de energia solar. pensou-se em captar esta energia por grandes plataformas espaciais, mas as pesquisas haviam sido canceladas e o dinheiro todo canalizado para as novas constru��es. a finalidade destas grandes fontes de energia era suprir as enormes centrais de comunica��o, as f�bricas essenciais e as �fazendas�; os habit�culos eram consumidores espalhados de energia em pequena escala e deveriam ser quase sempre auto-suficientes. foi com grande curiosidade e entusiasmo que acompanhamos os primeiros 1200 casais que se mudaram para o habit�culo n�mero 1, no jap�o. foi uma verdadeira festa c�vica em nossa superpovoada cidade de s�o paulo. era o in�cio da salva��o da esp�cie. meu pai, agora com mais de 80 anos de idade, disse que havia sentido a mesma euforia quando o homem pisou na lua e ele assistiu pela televis�o; somente que aquela pisada, a curto prazo, n�o havia redundado em nada. foram escolhidos 1200 casais de cidades diferentes, a metade deles mais idosos, com um filho e a outra metade sem filhos. as pessoas muito idosas, com o �tempo de impulso celular� (antigamente chamado morte) prestes a se esgotar foram poupadas da mudan�a tendo sido escolhidos apenas casais jovens e de meia idade. logo em seguida v�rios habit�culos foram conclu�dos, ocupados e interligados. come�ava a se desenhar a nova face do planeta. o aspecto da sociedade anterior foi parcialmente respeitado havendo a possibilidade do indiv�duo escolher locais onde s� moravam pessoas solit�rias (sem filhos e sem vontade de t�-los). estas pessoas, numa condi��o zool�gica normal seriam completamente anti-naturais, pois n�o contribu�am para a manuten��o da esp�cie. imagine cinco vidas homo sapiens prolificus 25 se uma pequena tribo no interior do amazonas em que todas as mulheres, por hip�tese, a partir de dado momento, praticassem somente o homossexualismo. volt�ssemos � aldeia ap�s uns sessenta anos e o �ltimo representante j� teria desaparecido. mas, na nossa esp�cie, j� em 2036 aqueles indiv�duos eram bem vistos e contribu�am com a natureza � medida em que colaboravam com a diminui��o da popula��o. infelizmente, como sabemos hoje, o seu n�mero est� diminuindo. tamb�m as particularidades raciais foram respeitadas no in�cio, mas quando por exemplo os filhos de negros pioneiros fossem se casar seriam removidos para locais onde houvessem vagas, independente dos tipos raciais que ali estivessem.
as crian�as ditas abandonadas, subprodutos da superpopula��o, foram assimiladas, inicialmente, em locais sob a responsabilidade de casais geralmente bastante idosos, em n�mero suficiente para educ�-los.as constru��es iniciais tiveram ritmo mais lento, mas a repeti��o e a observa��o permitiram a forma��o r�pida de um conhecimento que acelerou fantasticamente as obras; desta maneira o plano decenal para t�rmino da implanta��o, que parecia imposs�vel para muitos atrasou em apenas 8 meses; assim, no final de 2037, praticamente toda a humanidade estava alojada e a constru��o de novos habit�culos, para rec�m-casados ou vi�vos ou desquitados, etc., seguia seu ritmo normal em todo o mundo. 2046. entre 2026 e 2027 (ano de in�cio do bloqueio tempor�rio da natalidade) tiv�ramos um filho.ent�o em 36, os tr�s, ingress�vamos num habit�culo. o garoto completara 18 anos, e eu, conhecendo h� 15 anos as condi��es que nos esperavam, preparei-o para isto. tamb�m eu e minha mulher nos preparamos muito, mas confesso que, apesar disto, estava visivelmente emocionado e ansioso quando chegou a hora. a nova cidade que substituiu a grande s�o paulo estava se completando. n�s fomos internados entre os �ltimos habitantes pois o nosso padr�o de vida foi considerado regular em compara��o com a decad�ncia geral das condi��es dos padr�es de vida da antiga cidade. de fato as megal�poles estavam sucateadas e a super utiliza��o de tudo provocou um desgaste tremendo. al�m disto as cinco vidas homo sapiens prolificus 26 demoli��es para a reformula��o, apesar de planejadas, conturbaram ainda mais a sua exist�ncia e a rotina geral. assim, apesar da ansiedade e da intensa emo��o, no dia programado, eu caminhei como se fosse adentrar o para�so, tendo sa�do da ante - sala do inferno. um habit�culo, na �poca, era uma coisa fenomenal. apesar de conhecer todos os detalhes por imagem at� mesmo hologr�fica, a sensa��o que senti no in�cio era indescrit�vel. podia-se comparar � sensa��o de um morador de uma favela (comum em 1996) indo morar num dos luxuosos condom�nios, tamb�m daquela �poca. logo antes da entrada pass�vamos por uma c�mara de raios ultravioletas, super aperfei�oadas para a �poca, de maneira a se esterilizar ao m�ximo a pele e os f�neros. em seguida vest�amos roupas leves e esterilizadas. n�o se podia levar nada do exterior. alguns dias antes j� v�nhamos tomando antibi�ticos espec�ficos para esteriliza��o da orofaringe e sistemas urin�rios, digestivo e respirat�rio. ap�s todos entrarem a entrada era lacrada, assim como todo o restante do edif�cio. a circula��o do ar no interior era feita de maneira a que o ar que entrasse fosse tamb�m esterilizado. apesar das defesas imunol�gicas de toda a
popula��o j� serem boas, naqueles anos, estas medidas preventivas foram, por excesso de zelo, rigorosamente praticadas, naquelas fases iniciais. sab�amos, pelas normas gerais do grande acordo, que ap�s entrarmos num habit�culo s� sair�amos vivos para um outro semelhante atrav�s de um t�nel. ou para a nossa crema��o, pelo mesmo t�nel. mas, mesmo sabendo disto, foi somente ao ver selada a porta de entrada, ap�s o ritual, que senti, verdadeiramente, que havia um mundo exterior e um mundo novo come�ando, irrevers�vel. a vida animal, ap�s a interna��o total da humanidade, s� existia no interior dos habit�culos. e somente a vida humana e de alguns dos seus sapr�fitos e parasitas (principalmente algumas bact�rias), al�m dos v�rus estimuladores imunol�gicos. no exterior praticamente tudo foi destru�do e grande parte reutilizada nas constru��es. n�o haveria mais estradas, ruas, autom�veis, caminh�es, avi�es, m�quinas, outras esp�cies de animais, etc. fora das grandes moradias s� encontr�vamos rob�s multiplicadores de for�as trabalhando em constru��o de novas cidades, em f�bricas essenciais e em fazendas. um visitante do espa�o, olhando de uma certa dist�ncia, veria grandes quadrados (cidades) simetricamente distribu�dos nos continentes, dentro dos quais havia in�meros cinco vidas homo sapiens prolificus 27 pequenos edif�cios (habit�culos). entre estes �ltimos havia pouqu�ssimo movimento; na parte perif�rica da cidade o movimento era maior devido �s f�bricas, �s fazendas e � constru��o de novas cidades. todas as outras esp�cies de animais haviam sido deliberadamente destru�das, ap�s armazenamento exaustivo de dados sobre as mesmas no banco mundial de dados. n�o cont�vamos mais com p�ssaros, insetos, ratos, etc. o espa�o a�reo era a�reo mesmo, pois s� continha o ar e seus elementos naturais; a avia��o havia sido abolida por ser desnecess�ria na nova ordem. tinha-se not�cias de que deveria haver algumas esp�cies mar�timas que resistiram � ca�a, mas o dist�rbio ecol�gico provocado no mar logo as extinguiria. em compensa��o a vida vegetal foi estimulada. os habit�culos encontravam-se a uma boa dist�ncia uns dos outros e estes espa�os foram usados totalmente para o plantio de �rvores geneticamente fabricadas para n�o necessitarem muito cuidado, durante s�culos e manterem o equil�brio ecol�gico necess�rio � cidade. s�o as �rvores que atualmente quem olhar para fora sempre v� e que, ali�s, s�o muito bonitas. no in�cio, antes de elas crescerem n�s, os mais idosos, pod�amos olhar para fora e ver � dist�ncia, outros habit�culos; �s vezes at� fazer sinais para os habitantes de l�. mas j� havia sido previsto que este contato n�o era bom na nova ordem de coisas e da� o plantio programado de �rvores. a vida tamb�m existia em grande (enorme) escala nas chamadas fazendas onde se cultivavam as plantas que eram
100% aproveitadas na nossa alimenta��o, como ainda hoje acontece. elas ficavam nos espa�os entre as cidades, logo ap�s as f�bricas essenciais. pod�amos v�-las atrav�s dos v�deos e eram maravilhosas; verdadeiros oceanos verdes intermin�veis. e por falar em oceano as fazendas aqu�ticas eram as mais belas; como haviam evolu�do. eu sempre me interroguei por que os homens demoraram tanto para come�ar a explor�-las. pod�amos ver tamb�m as m�quinas-rob�s telecontroladas trabalhando nas mesmas, colhendo, preparando e nos enviando alimentos para consumo, tudo computadorizadamente. as f�bricas essenciais, que ficavam entre as fazendas e os limites da cidade eram principalmente f�bricas de novas m�quinas - rob�s, de computadores, de material de constru��o, de roupas, de subst�ncias qu�micas e de tratamento de detritos. eram todas totalmente robotizadas em rela��o ao trabalho que anteriormente era manual. al�m do limite das fazendas existiam apenas as minas de mat�rias-primas fundamentais para a manuten��o das f�bricas. estas minas eram controladas � dist�ncia, de dentro dos cinco vidas homo sapiens prolificus 28 habit�culos, por computadores que regiam os rob�s-mineiros, e que, por sua vez eram regidos por t�cnicos especializados. havia inclusive as minas submarinas, muito ricas em mat�rias essenciais e que tamb�m eram exploradas da mesma maneira. o que restava de petr�leo era usado somente em petroqu�mica na fabrica��o de parte do pl�stico super-duro para constru��o. as cidades entre si e dentro de si eram interligadas por t�neis onde praticamente s� circulavam os chamados monotrilhos. o tr�fego era totalmente computadorizado. atrav�s do monotrilho que era um pequeno vag�o que circulava silenciosa e rapidamente pelos t�neis, chegavam diariamente as refei��es e saiam os detritos. raras vezes conforme a programa��o, chegavam roupas e subst�ncias qu�micas essenciais. a porta que se abria para o vag�o era a �nica do habit�culo e junto �s mesmas havia os bra�os-rob�s que descarregavam-no rapidamente. nos casos de �bito, como at� hoje acontece, o computador, informado da ocorr�ncia, mandava um vag�o-funeral para o transporte. este parava por cerca de � hora e era o tempo que vel�vamos o companheiro que partia. sab�amos que logo adiante ele seria cremado e suas cinzas juntadas com os detritos de algum outro habit�culo e encaminhados para as f�bricas de reaproveitamento dos mesmos. tamb�m havia possibilidade de transporte internacional que era feita por ve�culos aqu�ticos de controle remoto, sem tripula��o, � l�gico. entretanto este transporte era raro, pois havia sido desaconselhado no grande acordo. atualmente, a partir de 2086,
sabemos que foi totalmente abolido por ter, de fato, se tornado desnecess�rio. resumindo, a vida extra-habit�culo se restringia ao estritamente indispens�vel para manternos vivos, saud�veis, protegidos e reprodutivos. aos habitantes de hoje eu gostaria de lembrar que as fugas, para o meio exterior, eram comuns naqueles tempos iniciais. todas as pessoas normais sabiam que aquilo era suic�dio. algumas, com dist�rbios mentais graves, ainda naquele tempo incontrol�veis, tamb�m fugiam, raramente. eu sempre considerei as fugas como suic�dio por fatores que eram trazidos de fora, da desordem e do descontrole das grandes metr�poles antigas e n�o por falta de adapta��o � vida nova. para a fuga, �s vezes, eram usados os pr�prios monotrilhos. o fugitivo sabia que ap�s andar alguns segundos morreria asfixiado por falta total de oxig�nio e se misturaria com os detritos entre os quais havia fugido. outros chegavam a cavar t�neis (pondo em risco todos cinco vidas homo sapiens prolificus 29 os moradores) para sair. houve mesmo alguns habitantes que se recusavam a entrar desde o in�cio. todas estas pessoas ficavam expostas a um meio ambiente extremamente pobre em alimentos e logo contra�am doen�as e ficavam caqu�ticos vindo a falecer em poucos meses. eu cheguei a ver algumas delas rondando o meu habit�culo. era impressionante. verdadeiros esqueletos ambulantes. alguns quiseram traz�-los para dentro ou sair para ajud�-los, mas isto era suic�dio coletivo e n�o aconteceu. n�o tive coragem de film�-los e recentemente pedi cenas dos mesmos � Central de dados e vi que ningu�m teve tamb�m pois n�o h� nada registrado. sugiro que chamem imagens sobre a fome que assolou a eti�pia na d�cada de 80 e voc�s ver�o seres humanos em condi��o semelhante. embora a percentagem de �fugitivos� fosse m�nima em rela��o � popula��o global, algumas pessoas chegaram a duvidar do �xito do plano de habit�culos, quando os viram. felizmente as gera��es que j� nasceram no novo sistema acham t�o natural viver aqui dentro que as fugas n�o mais ocorrem. lembro-me que, certa vez, meu filho, ao ouvir-me cantar uma m�sica da minha inf�ncia fez um trocadilho interessante. a m�sica dizia: �como pode um peixe vivo viver fora da �gua fria?� o trocadilho era: �como pode o ser vivo viver fora do habit�culo?� 2056. ap�s esta r�pida vis�o extra-muros que eu sintetizei e que todos j� conhecem vou contar como me lembro que era a vida intra-muros em 46 (h� quarenta anos atr�s) quando fez dez anos que eu havia sido internado. um habit�culo (em 36) era uma constru��o quadrada (100m x 100m) com cerca de 50
metros de altura, parecendo um cubo cortado ao meio. antes de crescerem as �rvores entre os mesmos eu podia vislumbrar v�rios deles, vizinhos ao meu. o andar t�rreo possu�a paredes de material transparente que permitia a vis�o para dentro. o restante das partes externas era recoberto por placas pequenas retangulares, em grande n�mero, relacionadas com a capta��o de energia solar. no teto dos que eram vis�veis a maior dist�ncia, pod�amos ver enormes antenas parab�licas. cinco vidas homo sapiens prolificus 30 na parte interna havia o t�rreo e, a partir do 1�andar at� o 17�, estavam os apartamentos. n�o havia parte externa, isto �, sem cobertura. a temperatura era mantida constante e nos pa�ses tropicais isto era relativamente f�cil de se fazer sem gastar muita energia. nos pa�ses de inverno rigoroso os gastos energ�ticos aumentavam, mas n�o se podia comparar com o consumo desordenado anterior. no pavimento t�rreo estava toda a parte �social� das nossas vidas, a n�o ser as relacionadas com o trabalho, pois este era realizado nos pr�prios apartamentos de cada fam�lia. havia o ambulat�rio m�dico, as salas de gin�stica, de jogos infantis, de jogos para adultos. n�o havia piscina. a nata��o praticamente fora abolida pois o consumo de �gua era racionalizado ao m�ximo, chegando-se, em algumas �pocas, temporariamente, ao racionamento. vou resumir-lhes um dia de minhas atividades na �poca, para que se entenda como era naquele tempo e as mudan�as que houve at� os dias atuais. levant�vamos, no nosso apartamento, em torno das 7:00 horas, conforme hav�amos programado em nosso computador, para acordar-nos. o uso do sanit�rio era seguido de uma descarga m�nima de produtos qu�micos que j� iniciavam a prepara��o do material para o tratamento a que iria ser submetido. note-se que o bolo fecal da esp�cie humana j� havia diminu�do consideravelmente em peso e volume, pois a alimenta��o era quase totalmente prot�ica, sem fibras, e absorvida em cerca de 98% pelos intestinos. alguns colegas m�dicos com os quais eu me comunicava haviam me solicitado o estudo de altera��es gen�ticas que poderiam ocorrer com o desuso e com a atrofia de segmentos intestinais que eles estavam detectando. o banho (s� era permitido um por dia) era realizado com subst�ncias qu�micas especialmente fabricadas para o mesmo, dispensando o uso de �gua como solvente. a quantidade dos produtos fornecidos era tal que n�o se podia us�-los erradamente ou em mais vezes que o permitido, pois a distribui��o era computadorizadamente programada. o crescimento da barba e cabelo passou a ser controlado quimicamente pela aplica��o t�pica de produtos espec�ficos. ap�s o banho dirigia-se � mesa para o caf� (que ironia) da manh�.
o maior problema de adapta��o para todos era sem d�vida a alimenta��o. embora antes dos habit�culos as plantas hiper-proteicas j� fossem muito utilizadas, ainda se comia outras coisas, n�o havendo restri��es. ap�s o internamento a comida foi totalmente padronizada. diariamente receb�amos, pelo monotrilho, a nossa cota que consistia em pequenas caixas contendo os �biscoitos� do caf� da manh�, do almo�o e do jantar. as caixas eram cinco vidas homo sapiens prolificus 31 estritamente individuais e n�o podiam ser trocadas em hip�tese nenhuma sob risco de morte. nestes �biscoitos� j� estavam inclu�dos todos os medicamentos que aquela pessoa, para a qual eram enviados, necessitava. com�amos tr�s �biscoitos� no caf�, seis no almo�o e seis no jantar. eles, de fato ap�s alguns minutos da ingest�o, eliminavam a fome e al�m disto mantinham-nos no peso ideal e n�o provocavam dist�rbios digestivos. mas n�o possu�am gosto ou cheiro de nada. n�s, que est�vamos acostumados com temperos, molhos, bebidas alco�licas, caf�, sofremos muito. eu demorei cerca de 10 anos para esquecer do gosto das coisas que comia antes. enfim, se era para o bem da humanidade, vamos l�. os alco�latras internados recebiam �biscoitos� com grandes doses de sedativos espec�ficos que j� tinham sido desenvolvidos naquela �poca e a grande maioria conseguiu superar a doen�a. alguns deles estavam inclu�dos entre os fugitivos da fase inicial. bem, mas ap�s comer os meus tr�s belos esp�cimes alimentares eu me dirigia � sala do computador do meu apartamento para come�ar a trabalhar. o meu trabalho consistia em sentar-me em frente � imensa tela semicircular do meu computador individual e gravar aulas e fazer resumos atualizados que eram selecionados, catalogados e enviados para as centrais de dados, ficando armazenados para serem usados por estudantes de gen�tica ou mat�rias afins. a ci�ncia experimental, t�o do meu gosto, havia sido praticamente abolida, exceto no que se referisse � alimenta��o e constru��o de moradias. os programas de pesquisa pr�tica eram muito caros e foram abolidos anos atr�s para se canalizar os recursos para alimento e moradia. as �nicas experi�ncias que se faziam era cruzar dados no computador e ver o que acontecia. e, de fato, isto era tamb�m interessante pois chegava-se a conclus�es brilhantes, embora n�o pud�ssemos test�-las em laborat�rios. os aprimoramentos que faz�amos em rela��o as plantas alimentares eram testados nas fazendas, nas �reas experimentais, robotizadas. eu sabia tamb�m que os meus trabalhos sobre altera��es gen�ticas humanas que viriam a acontecer ap�s anos e anos de confinamento, eram muito solicitados. a central de dados fornecia-me o n�mero de solicita��es e eu ficava muito envaidecido com aquilo. ap�s fazer resumos, aulas e
experi�ncias computadorizadas (cerca de 4 horas de trabalho) eu parava para relaxar um pouco e almo�ava. eram os seis �biscoitos� famosos que eu comia lentamente ou rapidamente ou com intervalos maiores ou menores, pois era a �nica maneira de quebrar a cinco vidas homo sapiens prolificus 32 monotonia. � tarde ap�s o uso do computador por minha esposa eu passava a us�-lo para me comunicar com colegas de profiss�o, com meu filho (que havia casado e mudado), para saber alguma not�cia sobre decis�es tomadas pelos governantes e para ver filmes diversos e ler livros. depois disto vinha a gin�stica, jantar �biscoitos�, reuni�o com amigos nos sal�es do t�rreo para bate-papos informais e finalmente alguns jogos eletr�nicos. os habitantes de um habit�culo apresentavam v�rias profiss�es e n�o fazia diferen�a nenhuma se um deles morasse numa cidade do jap�o ou no brasil. por exemplo, um deles era �fazendeiro�; o seu trabalho consistia em sentar-se em frente a uma tela semelhante a minha e focalizar uma fazenda que lhe era determinada; l� havia um rob� que seria, durante quatro horas, manobrado por ele, produzindo alimentos. o homem n�o havia conseguido construir um rob� inteligente, mas havia constru�do um que obedecia cegamente a uma intelig�ncia humana; e havia tantas sobrando. certo dia nas nossas conversas noturnas este amigo �fazendeiro� contava-me que estava trabalhando numa fazenda no sul dos estados unidos e na pr�xima programa��o iria trabalhar numa da costa norte da espanha e isto, � l�gico, sem deixar de ser meu vizinho em s�o paulo, brasil. outro dos nossos amigos havia decidido trabalhar como governante. era das profiss�es mais chatas e poucos a escolhiam, mas devido ao n�mero total imenso de habitantes eles eram suficientes. os cargos governamentais haviam sido muito disputados anteriormente pois naquele tempo, havia ainda o dinheiro e quem o fabricava eram os governantes e, coincid�ncia, os que trabalhavam naqueles cargos sempre tinham muito poder monet�rio. na nova ordem podiase ter qualquer profiss�o que a remunera��o era exatamente a mesma: casa, comida, sa�de e lazer, tudo dentro dos limites habitaculares. podia-se tamb�m n�o fazer nada e isto era at� estimulado, pois o n�mero de trabalhadores era tamanho que supria-se todas as necessidades e ainda sobrava. j� pensava-se em reduzir as horas de trabalho para apenas duas horas di�rias. havia muitos habitantes que se dedicavam a escrever (� o que eu fa�o agora nesta idade avan�ada) ou desenhar no computador e n�o ganhavam nada por isso. a arte n�o era remunerada e por isso tornou-se muito mais aut�ntica. gostaria tamb�m de contar-lhes como vivia minha esposa que, naquela �poca estava �s
voltas com o nosso segundo filho, nascido em 2040. as suas refei��es eram semelhantes �s minhas. quando ela ficou gr�vida devia ir diariamente ao ambulat�rio m�dico. l� passava pelos aparelhos de resson�ncia e pelos analisadores sang��neos e quaisquer altera��es eram cinco vidas homo sapiens prolificus 33 registradas e enviadas para um m�dico (que trabalhasse em qualquer habit�culo do planeta; este as repassava para um computador encarregado de programar a nossa alimenta��o. assim por exemplo se detectasse ondas uterinas precoces, de contra��o, por m�nimas que fossem, nos pr�ximos �biscoitos� viriam, com certeza, horm�nios potentes que inibiriam aquelas contra��es; desta maneira o pr�-natal era muito tranq�ilo. o parto tinha data calculada com precis�o impressionante; podia-se at� dizer a hora do mesmo. quando esta chegava a paciente dirigia-se ao ambulat�rio era totalmente monitorizada, havendo o que poderia chamar-se de nascimento computadorizado, sem dores e sem riscos. sab�amos que algumas mulheres com v�cios de bacia �ssea recebiam horm�nios a mais nas suas dietas, afim de que a idade da gesta��o e o di�metro do canal de parto fossem compat�veis. isto que dizer que a crian�a nascia quando seu di�metro cef�lico chegava ao m�ximo permitido pelo tamanho �sseo da m�e. o fato concreto � que nosso rebento nasceu muito bem. ent�o, ap�s o �almo�o�, ela trabalhava cerca de duas horas em f�sica nuclear. naquele tempo, eu me lembro bem, havia sido encomendado a ela, como parte de um extenso programa de ci�ncia pura, estudo sobre as caracter�sticas da mat�ria nos buracos negros, submetida a condi��es violent�ssimas e ela me dizia que em determinados momentos at� os supercomputadores centrais referiam incapacidade de calculo. ap�s duas horas de trabalho, e pela manh�, ela se dedicava a cuidar do beb�. logo que o mesmo chegou aos dois anos entrou para a �escola�. havia sido estabelecido que as m�es auxiliadas pelos cursos computadorizados, seriam as respons�veis pela educa��o dos filhos at� a idade de quinze anos. a partir da� o adolescente poderia usar sozinho o computador e estudar o que escolhesse. ent�o, havia aulas di�rias que a m�e ministrava ao filho atrav�s de programas maravilhosamente elaborados e � disposi��o na centrais de dados. havia tamb�m uma pr�tica muito salutar que havia sido mantida da antiga sociedade; era a amamenta��o no seio materno. isto, al�m de dar sentido de utilidade � vida da m�e, passava-lhe o tempo e ainda transferia, atrav�s do leite, anticorpos e outras subst�ncias necess�rias para a manuten��o de uma sa�de perfeita da crian�a.
as mulheres em geral, dentro do habit�culo, trabalhavam tamb�m em pequenos trabalhos dom�sticos al�m da educa��o dos filhos. havia as grandes lavanderias no andar t�rreo isoladas do restante. eram praticamente rob�s-m�quinas de lavar. a roupa entrava de um lado e sa�a do outro pronta; era um servi�o que consumia algum tempo, mas isto havia cinco vidas homo sapiens prolificus 34 de sobra. aos domingos havia alguns habitantes que se comunicavam, �s oito horas, com pastores e padres, para assistirem a prega��es dominicais ou a missas inteiras ministradas pelos mesmos. eu e minha mulher, embora n�o segu�ssemos nenhuma religi�o, �amos at� o apartamento dos amigos para assistir com eles e assim passar o tempo. � tarde, do mesmo domingo assist�amos video-tapes esportivos, geralmente jogos de futebol ou antigas olimp�adas. naquelas tarde, mesmo ap�s dez anos de reclus�o a gente sentia saudade de uma bebida muito usada anteriormente, chamada cerveja. as competi��es esportivas que deixaram de existir com a implanta��o da nova ordem foram sem d�vida uma grande perda; mas esta perda, n�s sab�amos, era compensada em novos seres humanos que puderam nascer. v�amos tamb�m filmes em que apareciam autom�veis e casas nas quais viv�amos e as lembran�as das desordens e da grande bagun�a fazia-nos reviver o caos para o qual caminh�vamos. e cheg�vamos a agradecer a seguran�a atual. dentro do habit�culo formavam-se, ent�o pequenos grupos de amigos e a pr�pria habita��o conjunta, sem poder sair, gerava uma verdadeira comunidade. existiam regras que n�o podiam ser desobedecidas. por exemplo, quando um dos filhos dos casais resolvia casar-se ele n�o podia ficar morando mais na mesma habita��o. o casamento podia ser realizado entre os jovens que se conheciam atrav�s das telas, nos contatos m�tuos que se podia fazer. existia at� um servi�o de computador que selecionava jovens que com certeza dariam bons casais. os jovens noivos entravam num programa de novas cidades em constru��o e, assim que houvesse vagas, eram autorizados a se casar e em seguida transportados pelo vag�onupcial para as mesmas. era de fato estranho namorar pelo computador, sem contato f�sico, e , de repente, mudar-se para um apartamento com a pessoa em carne e osso. mas os jovens pareciam totalmente adaptados �quilo. os filhos tamb�m n�o consideravam a separa��o dos pais muito traum�tica, pois alegavam que podiam se comunicar a qualquer hora, com imagens perfeitas e mesmo hologr�ficas. para os pais, a aus�ncia dos sentidos, do olfato e do tato era muito dura, embora se mantivesse, eletronicamente, a vis�o e a audi��o em rela��o aos filhos e netos. contudo a regra devia ser seguida e ela n�o deixava de
ser racional pois evitava a forma��o de �m�fias� habitaculares. eu, que vivi no mundo exterior, v�rias vezes cheguei a comparar o modo de vida p�s-Acordo com as grandes penitenci�rias que existiam antigamente. mas, parando para pensar, viam-se enormes diferen�as. nas cinco vidas homo sapiens prolificus 35 pris�es antigas n�o se podia morar com o c�njuge e n�o se podia ter filhos; n�o se dispunha de um computador pessoal ligado ao resto do planeta e o resto do planeta ligado a ele. al�m disso uma diferen�a fundamental era que dos pres�dios antigos podia-se fugir, �s vezes com sucesso, ganhando-se a liberdade. dos habit�culos a fuga era uma das maneiras de suic�dio e cada vez menos pessoas queriam sair. n�o que o n�mero de suicidas estivesse diminuindo (na verdade ele estava estabilizado), mas a maneira escolhida quase n�o recaia mais sobre a pr�pria exterioriza��o. outra diferen�a essencial era a possibilidade de poder ter filhos. eu acredito mesmo que a vida na nova ordem seria intoler�vel sem os mesmos. � certo que havia os habit�culos de pessoas solit�rias e sem filhos mas que eram a minoria. quem j� criou crian�as sabe bem do que estou falando. al�m daquela origem animal que nos impele a perpetuar a esp�cie e nos d� satisfa��o quando o fazemos, existe a beleza e a vitalidade infantil. que seria de n�s, aqui confinados, sem a travessura das crian�as? sem a alegria de v�-las aprender? sem a comicidade de sua l�gica em desenvolvimento? sem os seus �mpetos de carinho para conosco? ap�s termos decidido n�o mais ter filhos, e a dieta da minha mulher j� vir com anticoncepcionais, v�rias vezes pensamos em reconsiderar nossa atitude e arrumar mais um, ali�s mais uma, pois sent�amos imensa saudade de um beb� �fofinho�. mas, sab�amos que, na verdade, s� nos restava esperar um neto o qual ver�amos v�rias vezes, escutar�amos exaustivamente, mas n�o tocar�amos ou cheirar�amos. qualquer dia destes vou sugerir a um amigo meu, o qual trabalha em eletr�nica, que tente descobrir meios de comunica��o que transmitam a imagem, o som, e tamb�m o cheiro (acho que teoricamente isto � poss�vel). em suma, eu acho que psicologicamente falando, o homem n�o toleraria o confinamento sem as suas crias. 2066, 2076, 2086. nestes anos parecia que a vida havia parado, no tempo e no espa�o. eu j� vivia h� quarenta anos em confinamento e estava me tornando um novo homem (como eram chamados os que j� nasciam confinados), apesar de ter vivido muito tempo na sociedade anterior (cerca de 62 anos).
cinco vidas homo sapiens prolificus 36 a vida era uma bela rotina. meu segundo filho havia se casado com uma linda mo�a, conhecida eletronicamente, e mudado para um habit�culo localizado no que fora o antigo suriname, onde havia, naquele ano de 2060 sido inaugurada uma nova cidade prevista no grande acordo. ele havia se apaixonado por uma �italiana� que conhecera nos seus contatos de trabalho pelo computador, mas como haviam extinguido os transportes mar�timos, n�o foi poss�vel traz�-la para o casamento. ap�s uma fossa de alguns meses ele apaixonou-se novamente por uma brasileira mesmo e, ent�o, o casamento foi marcado rapidamente. ent�o, viv�amos, eu e minha mulher, no nosso �velho� apartamento. as aspas s�o no sentido de dizer que a palavra refere-se apenas ao tempo, porque as condi��es de manuten��o nos habit�culos eram perfeitas, como ainda o s�o. havia moradores que executavam v�rios servi�os necess�rios, atrav�s de rob�s e os materiais ou pe�as que, eventualmente, necessitassem ser trocados vinham cada vez melhores e pareciam intermin�veis. mas, como ia dizer, t�nhamos nossa rotina de idosos. a vida sem doen�as levava-nos a ser praticamente iguais aos jovens, nas atividades vitais essenciais, at� a morte. assim, eu j� centen�rio (fiz cem anos em 2074) e minha esposa com 93 anos, ainda acord�vamos �s sete horas, com�amos os mesmos tr�s biscoitos, ela me acompanhava no meu trabalho no computador, almo��vamos, eu a acompanhava no seu trabalho, no mesmo computador e, ap�s o mesmo, assist�amos filmes de escolha comum, l�amos livros na tela, lig�vamos para nossos filhos (e netos), jant�vamos e �amos jogar jogos eletr�nicos no t�rreo. nesta �poca eu e minha mulher gost�vamos muito de participar de congressos. eu havia participado de muitos, antes da interna��o. levava-se anos programando, naquele tempo. gastava-se horrores em passagens, estadias, pap�is, etc., etc. os congressos p�shabit�culos eram f�ceis de organizar e n�o se gastava nada. era s� algum professor conhecido mandar um comunicado � Central de dados dizendo que queria realiz�-lo e todos os especialistas da mat�ria eram avisados e podiam participar. nos dias e horas estabelecidos ouvia-se em qualquer parte do mundo o conferencista falando. podiase no final fazer perguntas e o perguntador aparecia nas telas de todos os participantes. havia tamb�m as �mesas-redondas� nas quais apareciam cerca de vinte participantes em cinco vidas homo sapiens prolificus 37 quadrados menores dentro da tela maior e todos podiam ouvir e falar. as discuss�es eram fant�sticas. os anais destes congressos eram gravados e arquivados assim que os acontecimentos iam se sucedendo. foi ent�o, no in�cio de 2086, que minha mulher faleceu, aos 95 anos de idade. a vida, para os mais jovens duraria em torno de 130 a 140 anos, pois eles ingeriam os est�mulos
imunol�gicos desde o nascimento e n�o apresentavam, durante toda a vida, nenhuma doen�a. mas, eu e minha mulher, hav�amos vivido antes da era da imunologia e as v�rias doen�as que tiv�ramos haviam encurtado nosso tempo de vida. ela sabia que morreria entre os 93 e 97 anos de idade e eu entre os 110 e os 115. despedi-me dela, junto com v�rios amigos habitaculares, na porta do vag�o funeral. uma vida, dentro da comunidade que hav�amos formado, era muito importante, embora no n�mero global de habitantes do planeta, fosse insignificante. v�rias pessoas choraram comigo e isto muito me consolou. alguns dias ap�s recebi o comunicado que j� esperava. na minha idade eu n�o casaria novamente e este dado, lan�ado no computador, junto com a comunica��o da minha viuvez, gerou a ordem recebida. eu deveria mudar-me para um habit�culo de pessoas solit�rias. o meu apartamento seria ocupado por um casal de menor idade, com possibilidades de ainda ter filhos. ap�s cerca de 40 anos naquele mesmo local eu havia aprendido a am�-lo, e muito. se ele n�o existisse, com o n�mero de habitantes atuais, a vida seria um verdadeiro desastre no sistema anterior. m uitas vezes eu comparava-me aos antigos moradores das pequenas cidades, antes da era industrial, que nasciam e morriam na mesma localidade, sem nunca terem viajado mais que alguns quil�metros ao redor. e, sem d�vida, eles podiam ser felizes, e muitos o foram, assim como eu. e eles n�o possu�am a tela. m as, regras s�o regras e l� fui eu para o monotrilho que me levaria para outra moradia. felizmente era pr�ximo e a viagem foi curta e confort�vel. como veremos a seguir a minha mudan�a coincidiu com o in�cio de v�rios pequenos sinais que permitiam fazer o diagn�stico de um mal maior, como aqueles sentidos por meu pai h� quase 100 anos. cinco vidas homo sapiens prolificus 38 2096 minha nova casa era bem menor que a anterior. constava apenas da sala da tela e de um quarto com pequeno banheiro. a cama era fixa, em monobloco de material pl�stico duro que ia se tornando mais male�vel na por��o superior, transformando-se num �timo colch�o. n�o havia m�veis. e tamb�m n�o eram necess�rios. a roupa �nica era lavada quase instantaneamente na lavanderia do t�rreo. a comida vinha pronta. existia, como todos conhecem o pequeno bebedouro de �gua, que funcionava apenas tr�s vezes em 24 horas, em cada uma delas saindo a quantidade exata de �gua que era bebida diretamente no mesmo. ultimamente, apesar dos v�rios produtos qu�micos que eu sabia que adicionavam na minha dieta, para fortalecer os dentes, eu estava sentindo certa dificuldade em
mastigar os �biscoitos� e ent�o resolvi com�-los pr�ximo ao bebedouro, misturando-os com a �gua. mas s�o coisas da velhice que n�o vale a pena ficar descrevendo. eu havia resolvido n�o trabalhar mais e isto era muito bom para a humanidade pois havia tantos engenheiros gen�ticos que, �s vezes eu precisava esperar meses para os meus trabalhos serem analisados e aceitos pela central de dados. no in�cio eu ainda achava que a minha especialidade era muito interessante e por isso havia tantos colegas. mas um dia, com pequenos c�lculos cheguei � conclus�o que todas as profiss�es deviam estar lotadas de profissionais, pois naquele ano a humanidade j� se apresentava com cerca de 118 bilh�es de habitantes e isto era um n�mero praticamente inimagin�vel. a grande d�vida que passou a incomodar as mais velhos, principalmente os que j� haviam passado por situa��es semelhantes, era o que seria feito quando se cumprissem as metas estabelecidas no grande acordo, isto �, cerca de 128 bilh�es de habitantes em 2090, todos confinados e subsistindo. nesta �poca (2096) eu, sem trabalhar, dividia meu tempo lendo livros antigos na tela (os livros novos, p�s- habitaculares, n�o me interessam), assistindo filmes (tamb�m bem antigos) e conversando com outro idoso que habitava apartamento id�ntico e ao lado do meu. era um funcion�rio do governo encarregado do controle do funcionamento, em geral, do sistema habitacular. ele pertencia � chamada ala idosa dos governantes, em contraste cinco vidas homo sapiens prolificus 39 com a ala jovem. nossas conversas eram em torno de recorda��es da velha s�o paulo (ele tamb�m havia nascido e morado l�), do estilo de vida agitado que n�s lev�vamos naquela megal�pole infernal e ao mesmo tempo paradis�aca. foram essas longas conversas que me estimularam a escrever este livro. fal�vamos tamb�m dos filhos, dos netos, das �falecidas� (esposas) e das partidas de jogos eletr�nicos que ora vencia ele ora eu. mas ultimamente, praticamente s� ele falava, contando-me a agita��o na �rea governamental. estava sendo programada uma nova confer�ncia igual a de 2027 e um novo grande acordo seria necess�rio. a ala idosa era decididamente a favor do controle urgente e dr�stico do crescimento da humanidade. os componentes desta fac��o haviam passado pelos horrores da fase final pr�habit�culo, em que tudo parecia perdido; passaram tamb�m pela fase de constru��o, em ritmo alucinante, da nova face do planeta, na qual inumer�veis sacrif�cios foram necess�rios, inclusive o sacrif�cio de vidas. haviam sofrido a fase de adapta��o, haviam presenciado
suic�dios por exterioriza��es e muitas outras coisas. meu amigo passava horas e horas trabalhando em frente a sua tela nos preparativos da nova confer�ncia, tentando aglutinar argumentos e convencer os mais jovens. estes argumentavam que a situa��o antes do primeiro grande acordo era pior que atual e fora resolvida; por isso n�o dev�amos nos desesperar novos habitantes j� estavam adaptados ao confinamento e algumas medidas intensificando-o seriam bem toleradas. e, tamb�m, de que servia manter a ant�rtida intacta? pod�amos construir v�rias cidades l�, apesar do consumo energ�tico aumentar muito. e as �reas arborizadas inter-habitaculares, para que serviam? por que a arquitetura dos habit�culos n�o podia ser mudada e ao inv�s de apartamentos individuais ou familiares n�o se constru�am alojamentos conjuntos, com o dobro ou triplo da capacidade? as fazendas mar�timas n�o eram mais produtivas que as das terras? vamos aument�-las e usar o espa�o que sobrar para moradias novas. todos esses argumentos eram exaustivamente discutidos, mas, a meu ver, o que mais pesou, de todos eles, foi o levantado pelos psic�logos. eles haviam chegado � conclus�o, analisando testes e mais testes, que o novo homem n�o suportaria a vida intramuros, sem as suas crias. se se obrigasse um homem (ou mulher) a viver confinado sem poder ter filhos ou pelo menos ter a possibilidade de t�-los, as conseq��ncias ps�quicas seriam dram�ticas. ent�o, voltava o velho dilema. n�o se pode parar a natalidade e n�o se pode cinco vidas homo sapiens prolificus 40 aumentar a mortalidade. a solu��o era crescer, crescer, crescer ... no in�cio de 2097 eu, num final de tarde, comecei a sentir que meu rel�gio biol�gico ia parar. h� anos n�o sentia aqueles sintomas: inapet�ncia, mal-estar, discreta confus�o mental e febre. cheguei a sentir saudade do tempo em que as crian�as e os adultos tinham doen�a e febre. deitei-me no leito durante muito tempo. m eu amigo ap�s horas e horas em frente a tela entrou para contar-me as �ltimas not�cias. ele n�o percebeu meu estado de sa�de. eram t�o distantes as doen�as que desaprendemos a maneira de perceb�-las. provavelmente ele me considerou apenas sonolento. as not�cias diziam que a ala jovem do governo estava vencendo. o n�mero de habitantes por habit�culo seria, inicialmente, duplicado. a ant�rtida come�aria a ser utilizada. a humanidade estava salva e poderia continuar a crescer, segundo eles. eu cheguei a ficar satisfeito por estar morrendo. eu, que desde os 13 anos sou ateu, cheguei a desejar ardentemente que deus existisse. estava prestes a ir encontr�-lo e queria
perguntar-lhe se, de fato, ele havia revelado a alguns homens que n�s dev�amos nos multiplicar e povoar toda a terra, sem parar. sempre achei que aquilo era pura inven��o, como muitas outras, por parte daqueles que dizem que falam em nome do senhor. tamb�m queria sentar-me ao seu lado e assistir, de camarote, ao que iria acontecer a esta esp�cie animal t�o s�bia e t�o prol�fica da qual, ap�s digitar estas �ltimas palavras, me separo definitivamente. habit�culo n� 4.858.260, 05 de janeiro de 2097. cinco vidas o confessor 41 o confessor �cesse tudo que a musa antiga canta, que outro valor mais altos se alevanta.� (cam�Es) a todos aqueles que n�o blasfemaram, mas, ao contr�rio, iluminaram-se com o sofrimento. cinco vidas o confessor 42 i ut�, apesar do nome parecido com o de um estado norte-americano, fica mesmo � no interior do brasil, l� nas divisas entre as minas gerais e s�o paulo. o nome, segundo as lendas � uma corruptela da palavra it�, que na l�ngua tupi quer dizer pedra. quem conhece a regi�o sabe que a denomina��o � muito apropriada pois o que h� de rochas, no local, � de impressionar qualquer um que por l� ande. existem propriedades rurais que s�o verdadeiras pedreiras, com pequenos peda�os de terra, entremeando as rochas escuras, de v�rios tamanhos e � nestes intervalos que os agricultores plantam o caf� ou o capim para o gado leiteiro. praticamente s� se produz isto, na regi�o: caf� com leite. �tirados da pedra�, como se diz por l�. os nascidos e criados, naquela regi�o, est�o acostumados com a paisagem. quando se passa pelas estradas, geralmente num �nibus alto ou na carroceria de um caminh�o, vislumbram-se alqueires e alqueires com aquelas manchas escuras, por todos os lados. os visitantes estranham e acham dif�cil aquelas terras serem aproveitadas para a lavoura. mas, pode-se afirmar que n�o h� melhor caf� ou melhor capim que aqueles que crescem l�, entre as pedras. e at� recentemente nunca se necessitou usar qualquer tipo de aduba��o. parece que as �it�s� protegem e revitalizam o ch�o. as multinacionais vendedoras de adubos, detestam aquelas pedras. o munic�pio, h� uns quarenta anos, era estas fazendas e um reflexo das mesmas que se manifestava como um pequeno n�cleo urbano onde moravam os fazendeiros em geral e onde havia tamb�m um pequeno com�rcio e os servi�os como escola, igrejas, profissionais liberais, pequeno hospital, delegacia, etc. os trabalhadores rurais moravam nas pr�prias fazendas, em fileiras de casas, chamadas de �col�nias�, e iam muito pouco �
cidade, geralmente somente para fazer compras em lojas de tecidos e armaz�ns de mantimentos, aos s�bados, uma vez por m�s ou a cada dois meses. as crian�as das fazendas mais pr�ximas da escola, �s vezes a freq�entavam, locomovendo-se a p�, �s vezes, por quil�metros, numa rotina di�ria, extenuante. as escolas rurais eram rar�ssimas naquela �poca, de modo que, ou andavam muito e estudavam ou n�o andavam e ficavam analfabetas. � sobre uma dessas antigas crian�as, que h� pouco tempo esteve em todos os jornais, cinco vidas o confessor 43 revistas, r�dios e televis�es que eu quero falar-lhes. com certeza ajudarei a lan�ar luzes na sua obscura est�ria e ajudarei, a quem se dignar a ler-me, no julgamento que porventura tiverem a inten��o de fazer deste homem. e, desde j� lhes digo, deste grande homem: dirceu de souza. ainda a respeito do intenso notici�rio, em torno do padre dirceu, devo acrescentar outro detalhe. voc�s n�o leram, nem ouviram, a palavra ut�. este nome � conhecido somente pelos que habitaram aquela velha cidadezinha, h� anos. dirceu, por exemplo, se considerou utaense at� a morte e o mesmo o farei eu. acontece que, h� uns vinte anos, a egr�gia c�mara dos vereadores da cidade, n�o se conformando com a origem ind�gena do nome da cidade, ainda mais sendo um desvirtuamento da palavra certa, houve por bem mudar a denomina��o do lugar. a id�ia de se deixar caracterizada uma localidade com muitas pedras ficou intoc�vel; s� mudaram a fonte da palavra, do tupi para o ingl�s, e a nossa ut� passou a chamar-se, num lance impressionante de progresso, rockl�ndia. � este o nome que, quem acompanhou est�ria do padre, deve ter lido e ouvido, quase diariamente, nos meios de comunica��o. rockl�ndia hoje, como todas as cidades do interior, sofreu grandes modifica��es. a mais not�vel, a meu ver, foi a mudan�a dos trabalhadores rurais, das �col�nias� das fazendas, para o n�cleo urbano, criando a chamada periferia das cidades, com bairros e bairros irrompendo centripetamente em rela��o � �rea central das antigas utazinhas deste brasil afora, criando verdadeiros dormit�rios gigantes de �b�ia-frias� que, durante o dia trabalham nas mesmas fazendas onde seus pais moravam, antigamente. quem j� esteve num destes bairros, �s cinco horas da madrugada deve ter sentido isto, vendo aquela multid�o acordar e tomar seus caminh�es para s� retornarem com o sol posto. eles t�m a vantagem de estar mais pr�ximos das comodidades que a cidade oferece, n�o ficando isolados na zona rural, como antes. em compensa��o est�o sujeitos a todos os
custos destas �regalias�: alugu�is, taxas municipais, transporte di�rio (com acidentes freq�entes) polui��o urbana, aus�ncia de terreno para pequenas planta��es ou cria��es de animais, etc. deste modo, at� hoje, eu n�o sei ao certo se � melhor o trabalhador rural morar nas pr�prias fazendas ou nas periferias das cidades. s� posso afirmar que se eu fosse lavrador e tivesse que optar, iria, sem pestanejar, morar no pr�prio local de trabalho. mas este problema n�o � t�o simples assim e n�o vamos along�-lo; n�o � o nosso objetivo aqui. cinco vidas o confessor 44 ent�o, o que aconteceu? o n�mero total de habitantes, aumentou um pouco no munic�pio, mas a �rea urbana cresceu bastante e as fazendas esvaziaram-se, havendo uma concentra��o demogr�fica �s vezes comparada � das grandes metr�poles. esta urbaniza��o r�pida, juntamente com o progresso tecnol�gico da humanidade em geral, deu uma id�ia (talvez falsa) de progresso da cidade. de fato, criaram-se v�rios problemas. hoje tem-se a zona urbana maior, com suas cal�adas, transporte coletivo, emissoras de r�dio, jornal, antenas de capta��o de todos os sinais de televis�o, telefones com conex�o para todo o planeta, cinemas, esgotos, �gua tratada, escolas, clubes, hospitais, etc., para parte dos habitantes. mas temos tamb�m grandes problemas habitacionais (com in�cio de forma��o de favelas e corti�os), problemas de saneamento b�sico, falta de creches, de asilos para velhos, de escolas, de atendimento m�dico e mesmo parte da popula��o em estado miser�vel com seus subprodutos: menores abandonados, prostitui��o, mortalidade infantil, epidemias, etc. foi nestas camadas sociais carentes que sempre circulou e atuou o padre dirceu. ii dirceu de souza e eu estudamos juntos, nas mesmas turmas, os quatro anos do �grupo escolar� e as tr�s primeiras s�ries do �gin�sio�, como se dizia naqueles tempos. a partir da� separamo-nos, como relatarei mais adiante. havia diferen�as entre o ensino de hoje e o daqueles dias. a principal era que n�o existiam �escolas particulares�. somente as governamentais. isto, para mim, tinha um grande valor, pois, na mesma classe de aula t�nhamos crian�as ricas e obres. algumas iam engomadas, como roupas finas e sapatos brilhando e outras iam descal�as, com roupas remendadas e com higiene pessoal prec�ria. lembro-me que v�rias professoras tinham uma tesourinha (e outros materiais) na gaveta de suas mesas, para aparar unhas, cabelos, limpar orelhas, etc. hoje, nas escolas privadas s�
estudam crian�as ricas. nenhum pai pobre poderia pagar tamanhas mensalidades. assim, os alunos ouvem falar de crian�as pobres, como uma abstra��o; n�o convivem com elas, n�o sentem seus problemas. algumas escolas organizavam visitas a favelas ou creches pobres mas parecem mais excurs�es tur�sticas do que incurs�es ao mundo diferente da pobreza e cinco vidas o confessor 45 da mis�ria. eu sempre achei que me fez muito bem ter colegas muito mais pobres que eu, conviver com eles, sentir, de verdade, os seus problemas, embora, na �poca, talvez nem percebesse isto. serviu-me, no futuro, para entender melhor os homens, e a mim mesmo, e tamb�m para melhor trat�-los como pessoas e como pacientes. eu aconselharia as grandes escolas pagas, atuais, para colocar, em cada classe, cerca de dez por cento de alunos pobres, custeando-lhes tudo. seus outros alunos pagantes aprenderiam, com eles, mais do que muitos mestres poderiam ensinar. vislumbrariam as v�rias faces feias que a humanidade ainda possui e talvez, futuramente, pudessem melhor colaborar para elimin�-las. dirceu de souza foi meu grande mestre neste assunto. ele andava cerca de sete quil�metros para chegar � Escola e outro tanto para voltar, diariamente, de segunda a s�bado, m�s a m�s, com chuva ou com sol. lembro-me que, no in�cio das aulas, seu pai veio traz�-lo at� ele conhecer o caminho e, ap�s alguns dias, somente com sete anos, j� fazia o percurso sozinho, sem ter ao menos uma vez, se queixado. sab�amos que ele acordava �s quatro horas, ajudava o pai na ordenha das vacas, na limpeza do est�bulo e �s cinco e trinta saia da fazenda para chegar �s sete horas, em ponto, na escola. n�s, os outros alunos, estranh�vamos o fato dele vir sempre descal�o, mas logo soubemos que ele nunca havia usado sapatos, durante toda a vida, at� aquela idade. seus dedos do p� eram bastante separados uns dos outros, calejados e a sola apresentava-se t�o grossa como um couro. deste modo, quando a professora quis cal��-lo, teve que arrumar um sapato, dois n�meros maiores, que ele foi usando devagarinho, at� os dedos se juntarem um pouco e aquela queratina toda, da sola, amolecer e cair. assim, somente ap�s uns oito meses ele conseguiu colocar um cal�ado e andar normalmente, sem estranhar. a fam�lia do dirceu n�o possu�a recursos para comprar-lhe o material escolar de modo que ele pertencia � chamada caixa escolar para alunos pobres, que fornecia cadernos, l�pis, r�guas, cartilhas, uniformes e outros materiais, al�m de uma sopa rala e um
p�ozinho no intervalo das aulas. os materiais fornecidos vinham, na sua maioria com a inscri��o: �defenda o brasil do comunismo�. eu, na �poca, nem sabia o que era aquilo. mas � simples: eram doados por uma funda��o norte-americana �completamente desvinculada de pol�tica�. aquele �slogan� era apenas para enfeitar os objetos doados. nada tinham a ver cinco vidas o confessor 46 com propaganda sub-rept�cia ou com tentativas de lavagem cerebral; imaginem. mas voltando ao assunto, eu lhes juro que vi o dirceu, v�rias vezes, dividir o seu p�ozinho com outros colegas que ainda estavam com fome ap�s a merenda. aos sete anos de idade, na fase plena do ego�smo infantil, aquilo nos impressionava e mesmo intrigava. a sua dificuldade para aprender, no in�cio, era grande, pois o ambiente familiar n�o ajudava. ele falava completamente errado, como � comum no meio rural, em rela��o �s concord�ncias verbais, aos plurais, aos termos adequados e determinadas situa��es e o seu vocabul�rio total era extremamente pobre. mas, no final do primeiro ano ele j� se expressava como qualquer menino da cidade e mesmo me contou que j� tentava corrigir, em casa, a maneira de falar do pai, da m�e e dos irm�os. v�rias crian�as, na mesma situa��o do dirceu, desistiram de freq�entar as aulas logo nos primeiros meses e at� hoje n�o se alfabetizaram. mesmo seus irm�os n�o conseguiram caminhar tanto, dia a dia e n�o freq�entavam a escola. dois fatos me aproximaram mais do dirceu e me ajudaram a conhec�-lo melhor e a gostar mais dele. um deles foi uma coqueluche que eu contra�, que no interior � chamada de �tosse comprida�; e a minha, apesar de eu n�o gostar muito de superlativos era �tosse comprid�ssima�, pois os ataques era muito longos, com v�mitos no final, e j� se prolongavam por meses, sem sinais de melhoras. assim, meus pais levaram-me a uma cidade pr�xima, no trem, a um m�dico que era uma mistura de cientista maluco, esp�rita e homeopata, mas curava coqueluche. ele recomendou � minha m�e que eu respirasse, diariamente, o ar da madrugada, de prefer�ncia no campo, em lugares altos e que tomasse, tamb�m todos os dias, uma pequena por��o de conhaque com leite de vaca tirado na hora. ent�o, levant�vamos �s quatro horas e �amos andando em dire��o � fazenda onde trabalhava o pai do dirceu, eu respirando profundamente o ar gostoso da madrugada (eram as f�rias de ver�o) e minha m�e carregando a garrafinha de conhaque. chegando �amos direto ao est�bulo e j� encontr�vamos toda a fam�lia souza trabalhando na ordenha. o meu amigo fazia quest�o de tirar o leite diretamente no copo, sobre o conhaque, para mim. eu tentei v�rias vezes ordenhar uma vaca, como ele e n�o consegui. parecia que o animal conhecia as pessoas que lidavam com ele e �escondia� o leite dos estranhos ap�s a ingest�o daquele l�quido, ainda com a temperatura do corpo da vaca sub�amos a uma
pequena colina, sent�vamos numa das famosas it�s e eu ficava respirando fundo por cerca cinco vidas o confessor 47 de meia hora. n�o sei se foi coincid�ncia ou n�o, mas ap�s um m�s os ataques de tosse cessaram totalmente. a �nica seq�ela da doen�a � que eu gosto e tomo conhaque at� hoje. certa vez, j� na faculdade de medicina, contei esta hist�ria a um professor de mol�stias infecciosas e ele, embora soubesse desses m�todos, disse-me que n�o havia raz�o cient�fica alguma para que aquele procedimento interferisse na cura da coqueluche, embora pelo relatado a rela��o causa-efeito era n�tida; foi come�ar a caminhar ao alvorecer, o leitinho com conhaque e adeus tosse. mas o professor recomendou-me que n�o prescrevesse aquilo para ningu�m, pois �atualmente j� existem medicamentos que melhoram sensivelmente a doen�a�. s� que s�o car�ssimos e muitas vezes, desobedecendo o mestre eu aconselhei m�es a fazerem o mesmo com seus filhos. antes de retornarmos para a cidade par�vamos na casa dos souza, na col�nia da fazenda e entr�vamos para um papo e um cafezinho. a casa deles era f�cil de ser reconhecida pois destacava-se das outras pela limpeza ao redor e por estar sempre com aspecto de recempintada. o interior tamb�m impressionava; cheirava limpeza. a m�e do dirceu, dna. maria silva souza, destacava-se das outras mulheres daquela pequena vila de casas que geralmente eram muito desmazeladas e mesmo sujas. algumas vezes o pai estava em casa e conversava muito. era um homem extremamente simples mas muito falante, sempre com um cigarro de palha ou na boca ou atr�s da orelha; sua prosa, para mim, era muito gostosa de se ouvir e mesmo muito engra�ada. lembro de ouvi-lo dizer: �a maria, minha mui� (mulher), limpa e cozinha o tempo todo. � esquent� a barriga no fog�o e esfri� no tanque. barre (varre) a casa o dia todo. mas � boa companheira e m�e. ela educou muito bem o dirceuzinho. espero que o seu filho se d� bem com ele,� e dava uma risadinha olhando para minha m�e. lembro-me tamb�m que aos domingos, quando ningu�m trabalha na fazenda, eu via os outros �colonos� se embebedando em carro�as de mascates que traziam pinga e quinquilharias, enquanto o pai do meu amigo ficava pintando, reformando e enfeitando a sua casa. na �poca, algumas vezes, eu achei que era injusti�a o dirceu morar numa casa mais bonita que os outros, mas hoje analisando friamente, acho que a igualdade absoluta entre os homens � imposs�vel. alguns, nas horas de lazer gostam de se alcoolizar e ficar com as suas casas em mau estado, outros preferem embelez�-las, trabalhando ao inv�s de beber. haver� maneira de se conciliar igualdades de direitos com desigualdades de lazer? maria silva souza pouco
cinco vidas o confessor 48 falava. ostentava, sempre, um sorriso discreto e estava sempre limpando alguma coisa ou oferecendo e servindo algo para n�s tomarmos ou comermos. ela fazia doces deliciosos e p�es e bolos em forno-de-barro, al�m de v�rios alimentos � base de milho. nestas visitas, pelo que me lembro hoje, eu j� sentia, mesmo na tenra idade, que era uma fam�lia pobre mas bem estruturada, com pai e m�e simples mas muito trabalhadores, amando e sendo amados por seus filhos. outras fam�lias rurais que eu muitas vezes visitei, eram o oposto. afora a simplicidade, que era a t�nica, na zona rural grassam o alcoolismo, a pregui�a, as brigas familiares e a falta de higiene. poucos escapam, como os souza, dos traumas da miserabilidade dos nossos trabalhadores do campo. estes devaneios s�o para n�o se atribuir as atitudes recentes do padre dirceu a traumas ps�quicos na inf�ncia, de grande intensidade, geralmente ocorridos em fam�lias desajustadas e tensas. se bem que estes traumas podem ocorrer nas �melhores fam�lias de londres� e algu�m de fora, mesmo freq�entando a casa, n�o perceba por que, acredito que n�o � o caso do nosso personagem. outro fato que nos aproximou foi o nosso preparo para a chamada primeira comunh�o. para os que n�o s�o, nem nunca foram cat�licos, isto queria dizer, mais ou menos, uma s�rie de aulas dadas por um catequista (geralmente alguma beata da par�quia), para preparar as crian�as para receber, pela primeira vez, a deus, simbolizado por uma h�stia que � ministrada durante uma missa. estas aulas eram dadas aos domingos, ap�s a missa das dez horas. o dirceu vinha, como sempre, a p�. assist�amos a missa e depois fic�vamos para a aula de catecismo. para mim era uma chatice e acredito que aquelas aulas serviram para me afastar, at� hoje, de qualquer tipo de religi�o, de tanta baboseira que se ensinava e se obrigava a decorar. no dirceu sucedeu exatamente o oposto; ele come�ou a ficar deslumbrado com aquelas coisas que a professora ensinava: pecados, mist�rios, sacramentos, dogmas, trindades em um, etc., etc. parece que aquilo mexia com a letargia t�pica do seu c�rebro e o fazia funcionar melhor. logo ap�s a aula �amos para a minha casa almo�ar. eu me sentia bem pois achava que estava (e estava mesmo) agradecendo a ajuda que e le me dera n a cura d a �tosse comprid�ssima�. o meu amigo e ra uma c rian�a muito pacata, nem feliz, nem infeliz. em rela��o �s comidas, por exemplo, nunca dizia, como as outras crian�as: �isto eu adoro�, �aquilo eu detesto�. comia o que lhe serviam e se dava por satisfeito e agradecido. quanto aos brinquedos e brincadeiras, n�o se podia dizer que
cinco vidas o confessor 49 n�o gostasse, mas tamb�m n�o era muito apegado. quando os adultos pediam para parar, ele obedecia, na hora, enquanto os outros demoravam e faziam birra. acho que quem melhor o definiu, na �poca, foi minha m�e; ela dizia: - o dirceuzinho � uma crian�a pura. um anjinho. hoje, ap�s anos e anos, relembrando aqueles tempos, eu diria que ele tinha uma inf�ncia neutra, como foi neutro em v�rias outras coisas at� quase o final da sua vida. na adolesc�ncia, em rela��o �s mulheres e ao sexo, ele sempre manteve esta neutralidade. eu, de fato, sempre achei que esta divis�o em homossexuais e heterossexuais est� incompleta; existem os neutros, assexuais e era o caso dele. nunca se interessou pelas quest�es relativas ao assunto. lembro-me de umas vezes que lhe mostramos revistas de mulheres nuas (raras naquela �poca; importadas); ele olhou sem muito interesse se retirou todas as vezes, sem nenhum coment�rio. sinceramente eu n�o saberia exatamente que for�as ps�quicas agiram para neutralizar a carga enorme de horm�nios sexuais da puberdade daquele rapaz, carga esta que faz os outros adolescentes ver sexo em tudo, vinte e quatro horas por dia. mas o fato � que ele navegou tranq�ilo por estas �guas turbulentas e posso jurar que morreu virgem, em pensamentos, palavras e obras. a �nica neutralidade que ele neutralizou foi em rela��o � religi�o cat�lica. naquilo ele mergulhou de corpo e alma, chegando mesmo a provocar consterna��o nos meus amigos. seu pai, por duas vezes, veio pedir-me, com aquela sua simplicidade caracter�stica, para eu influir um pouco na cabe�a do dirceu. neste �poca n�s t�nhamos cerca de 12 anos e ele j� havia, algumas vezes, falado em ser padre e parece-me que o pai preferia v�-lo trabalhando no campo, no meio do gado concreto e n�o como pastor de almas abstratas. algumas atitudes, que memorizei daqueles anos, diziam claramente que nada o removeria daquele furor religioso. o seu quarto, na casa da fazenda, virou um verdadeiro santu�rio, tanto que o irm�o que dormia com ele recusou-se a continuar no meio de tantos santinhos, ter�os, medalinhas, b�blias e mudou-se para outro quarto, deixando o dirceu sozinho. sua m�e certa vez contou-nos que ele rezava duas horas antes de dormir, fora as rezas antes de todas as refei��es e ao acordar. eu praticamente s� fiz a primeira comunh�o ou, talvez, a segunda e a terceira. ele, obrigatoriamente, comungava todos os domingos e dias santos e, interessante, n�o precisava confessar-se, pois, de fato, n�o pecava. ainda para quem n�o � (nem nunca foi) cat�lico, confessar-se quer dizer procurar um padre, contar-lhe cinco vidas o confessor 50 todos os pecados, arrepender-se dos mesmos, fazer uma discreta penit�ncia e est�
tudo resolvido. a alma est� limpa e pode-se receber a deus. o dirceu, francamente, nunca achou muito l�cito o cat�lico poder pecar � vontade e depois, com uma simples confiss�ozinha reparar tudo. era o que a maioria fazia. ele n�o. os passeios, encontros amorosos, brincadeiras maldosas, bailes e outras situa��es potencialmente pecaminosas, n�o eram partilhados por ele. n�o participava mas tamb�m n�o censurava. apenas preferia ficar rezando na igreja ao inv�s de ir ao cinema ver filmes proibidos, aos bailes de carnaval, � zona de mulheres �da vida� e a outros locais freq�entados por todos os adolescentes ditos normais. al�m disto freq�entava, com assiduidade, as festas religiosas, as prociss�es, as novenas, as vias sacras e ajudava, com afinco, as obras sociais da igreja e as quermesses. a bem da justi�a devo esclarecer que tudo isto era uma op��o assumida conscientemente pelo meu amigo. nada de beatice ou necessidade patol�gica de se agarrar a uma religi�o. ele era, f�sica, ps�quica e socialmente, muito saud�vel. apenas se deslumbrara precocemente com a religi�o e como o restante das coisas n�o lhe interessava muito, dedicou-se �quilo que o atraiu com absoluta exclusividade. com toda esta bagagem religiosa, entre a chegada das miss�es a ut� e a ida do dirceu para o semin�rio foi um pequeno passo. como acredito que vou ser lido por pessoas mais jovens que eu e n�o habituadas � religi�o cat�lica daquele tempo, rapidamente devo explicar que �miss�es� era um grupo de padres que, quando as voca��es para o sacerd�cio diminu�am, aportavam em v�rias cidades do interior, provocando um ambiente m�stico muito intenso e, segundo eles, despertando voca��es adormecidas em v�rios jovens (por coincid�ncia geralmente pobres, sem muitas outras op��es), que, sem aquela parafern�lia que aprontavam nas cidades, poderiam permanecer adormecidas �ad eternum�. m as, no caso do dirceu, n�o havia necessidade de despertar nada. ao contr�rio, sua voca��o estava t�o evidente que chegou a causar espanto nos pr�prios mission�rios. desta maneira, mais ou menos aos 14 anos, separei-me do meu grande amigo de inf�ncia e puberdade. ele foi, juntamente com mais dois utaenses (estes sem voca��o nenhuma, diga-se de passagem), para um semin�rio em belo horizonte, de onde s� sairia ordenado padre e eu fui para s�o paulo, preparar-me para o vestibular da faculdade de medicina. cinco vidas o confessor 51 ele terminou os estudos antes que eu e foi designado diretamente para ut�, l� permanecendo at� a morte, portanto durante cerca de 20 anos. quando eu para l� retornei, para clinicar, ele j� estava na par�quia h� cerca de 5 anos e ajudou-me muito no in�cio. para mim foi um prazer saber que ter�amos contato pessoal com freq��ncia, dali para
frente e n�o apenas atrav�s de correspond�ncia como nos habituamos nos tempos de estudo, separados. eu sempre considerei, quando crian�a, o m�dico e o padre da cidade, como duas pessoas verdadeiramente sacerdotais, m�sticas, acima do bem e do mal. assim, ser m�dico e amigo do padre foi uma verdadeira desmistifica��o da minha vida, o que, como a qualquer outro, me fez muito bem. aproveito para mandar um recado �s crian�as que como eu fazem id�ias rom�nticas sobre o assunto. os m�dicos e padres s�o homens exatamente iguais aos demais da comunidade. n�o criem nenhuma aura em torno dos mesmos. iii as vidas do m�dico e do p�roco, em cidadezinhas do interior, cruzam-se muito. mesmo um m�dico como eu, que n�o freq�enta a igreja, encontra-se sempre com o padre: no hospital, na casa de pacientes graves, em batizados, casamentos, etc. al�m disto tudo, eu, sempre que podia, dirigia-me � Casa paroquial e, com o padre dirceu, fic�vamos horas conversando. para dizer a verdade, acho que eu era o �nico amigo que ele possu�a. as outras pessoas eram as ovelhas do rebanho do qual ele era o pastor. sua m�e e o seu pai haviam morrido e seus irm�os trabalhavam e moravam em munic�pios distantes. numa destas visitas � casa do p�roco eu pedi-lhe para retomarmos o antigo h�bito dos nossos tempos de catecismo e ent�o ele iria almo�ar todos os domingos na minha casa, como faz�amos naquela saudosa inf�ncia. e assim foi. era, de fato, um prazer receb�-lo. apesar dele manter aquela neutralidade t�pica que, �s vezes, eu achava que era humildade, a sua presen�a era agrad�vel e a prosa era muito boa e tranq�ilizante. eu fustigava-o com id�ias materialistas e anti-religiosas, mas ele, embora bem armado filosoficamente, n�o aceitava o duelo. raramente me dava algumas cinco vidas o confessor 52 espezinhadas, mas com frases feitas, tipo: �voc� � um ateu, gra�as a deus� ou �na hora da morte voc� h� de me implorar a extrema-un��o�. mas n�o deixava a conversa ir adiante, neste campo. fal�vamos mesmo era sobre as ovelhas do seu rebanho. ele passava horas me contando como havia conseguido reencaminhar uma jovenzinha pobre que estava caminhando para a prostitui��o ou um pequeno ladr�o que, se n�o fosse orientado, acabaria preso ou morto. ou o consolo que levava aos enfermos, alguns dos quais eram meus clientes; falava muito sobre os velhinhos do asilo, que conhecia um a um; sobre os batizados e casamentos que fazia de gra�a pois os interessados n�o podiam doar nem uma �nfima contribui��o. na verdade eu diria que o padre dirceu era extremamente zeloso e competente quando cuidava de pessoas isoladamente. n�o se incomodava muito com os problemas comunit�rios, pol�tico-partid�rios e econ�micos; tratava com carinho do corpo e da
alma de um por um dos seus paroquianos, mas n�o se imiscu�a nos problemas globais da cidade. �, mais ou menos, como age a igreja como um todo. existem padres te�ricos, com seus belos pensamentos, que ficam o tempo todo em carpetes e ar condicionado, dando palpite em tudo, fazendo confer�ncias, reuni�es, viagens, criando novas teologias, destruindo outras. mas na hora de �meter a m�o na massa�, como atender doentes de madrugada, ajudar oper�rios a construir as suas casas com as pr�prias m�os, andar no meio do povo, a p�, trabalhar na acep��o exata da palavra, eles deixam para os padres dirceus da vida. e ainda bem que os h�, embora, ultimamente estejam rareando. muitas vezes eu disse ao meu amigo que ele devia abandonar aquela postura e dedicar-se mais a assuntos coletivos. poderia at� subir de posto e ganhar algumas mordomias. mas, talvez, para isto, ele tivesse que renunciar �quela sua humilde neutralidade e nisto parece que havia um bloqueio em sua mente. ent�o, passamos v�rios anos naquela rotina. eu atendendo paciente por paciente e ele atendendo paroquiano por paroquiano. � certo que �s vezes t�nhamos pequenas brigas, na maioria das vezes provocadas pela minha vontade de chate�-lo pela sua intensa religiosidade. eu me lembro que ele passou uns tr�s meses evitando-me quando, numa p�scoa, quis fazer-me comungar junto com as freiras e demais funcion�rios do hospital, na pequena capela do mesmo. eu, em tom de brincadeira respondi: - voc� quer me transformar em te�fago, mas n�o vai conseguir. cinco vidas o confessor 53 ele parou um pouco para pensar e em seguida fez uma cara de quem n�o havia gostado: - n�o exagere nas brincadeiras. e saiu apressado. a figura do padre parecia totalmente assimilada pela cidade. n�o se poderia imaginar ut� (agora chamada rockl�ndia) sem o seu padreco percorrendo, diariamente, as casas, as fazendas, rezando missas, encomendando defuntos, batizando, fazendo casamentos e trabalhando. os pol�ticos adoravam-no pois ele nunca se meteu com eles; n�o ajudava, mas tamb�m n�o atrapalhava. os fazendeiros, comerciantes e pequenos industriais gostavam muito de sua conduta, nunca incentivando as reivindica��es dos empregados, como acontecia em v�rias outras cidades, como l�amos e v�amos na imprensa.] algumas vezes o dirceu reclamou-me que n�o havia dinheiro para obras na igreja matriz e no asilo da cidade. entretanto, ele preferia ir pessoalmente ao asilo por exemplo, arrega�ar as mangas e reform�-lo junto com alguns velhos moribundos, ao inv�s de meterse com pol�ticos e promover festas ou rifas para conseguir dinheiro e custear as obras. era este o feitio dele.
entre as poucas vezes que o padre dirceu conversou comigo sobre assuntos relacionados a ele mesmo, a sua pessoa, uma delas merece ser relatada, mesmo porque eu acho que tem rela��o com a situa��o posterior da sua vida. certo domingo, acab�ramos de almo�ar e tom�vamos, ele, um cafezinho e eu um conhaquinho (velho v�cio do tempo da tosse comprid�ssima). minha mulher e filhos tiveram que ir a uma festa na escola. ent�o, de supet�o, ele disse-me: - eu nunca pequei, na vida. estou cansado de ouvir confiss�es, milhares delas, cheguei mesmo, a elaborar um cat�logo de pecados que ouvi, na nossa cidade e, depois, revendo a minha vida, vi que n�o cometi nenhum deles. voc� pode achar uma impossibilidade te�rica e pr�tica isto tudo que estou lhe dizendo, mas n�o �. aqui estou eu como prova. - m as nem um pecadozinho? perguntei eu. - nada. e isto chega a me assustar. j� recebi a confiss�o de v�rios padres, como eu, e todos pecam, �s vezes gravemente. se voc� soubesse. - conta. conta. assim voc� comete o seu primeiro ato pecaminoso. depois fica mais f�cil cometer outros. - n�o brinque, seu ateu atoa. talvez o �nico pecado meu tenha sido deseja que o perd�o, cinco vidas o confessor 54 ap�s a confiss�o, n�o fosse poss�vel. isto torna a vida do cat�lico muito c�moda. � s� pecar, confessar, ser perdoado, pecar novamente e repetir tudo. algumas vezes quase neguei o perd�o a uma pessoa que, pela oitava vez, ia me confessar o mesmo pecado. aquela conversa abalou-me muito, como abalaria qualquer mortal pecador, como praticamente a totalidade dos homens. seria poss�vel existir um ser humano que, j� na idade adulta, nunca houvesse pecado? ainda mais segundo os crit�rios do catolicismo que s�o muito r�gidos? seria um caso �nico no mundo, o do meu amigo? conhecendo o dirceu como eu conhecia, j� quase de madrugada, ap�s tantas interroga��es e de rolar muito na cama, disse-me para mim mesmo: - � verdade, aquele desgra�ado � imaculado. - virei para o lado e dormi profundamente por algumas horas. na manh� seguinte, logo ao raiar do sol eu j� estava em frente � Casa paroquial tocando a campainha. meu amigo abriu-me a porta e logo perguntou: - o que foi? alguma extrema-un��o urgente? - n�o. n�o � nada disto. quero que voc� mostre-me o cat�logo de pecados a que se referiu ontem. eu sempre quis ter uma lista destas. posso fazer uma c�pia xerogr�fica? - amigo, voc� sempre brincando com as coisas s�rias da religi�o. ontem eu lhe contei aquilo na esperan�a de voc� me dar alguma explica��o cient�fica para o fato. s� a f� que n�o explica esta aus�ncia total de pecado e mesmo de vontade de pecar. o c�rebro � uma estrutura muito complexa. quem sabe j� n�o seja uma anomalia descrita anteriormente? - sinceramente, eu nunca ouvi falar nesta doen�a. e, mesmo, acho que n�o � doen�a.
se fosse eu torceria para ser contagiosa e para se espalhar, numa imensa epidemia para toda a humanidade. quer maravilha seria. mas eu vou consultar um neurologista, amigo meu; hoje mesmo telefono e depois lhe digo. e quanto � lista? lembrei eu. - aqui est�, disse ele abrindo uma gaveta e tirando algumas folhas de papel de dentro da mesma e passando para as minhas m�os. era uma lista em ordem alfab�tica, escrita com capricho, em letra de forma, na qual constavam v�rios pecados: adult�rio, cobi�a, gula, inveja, homossexualismo, mentira, �dio, roubo, taras diversas, etc., etc. - n�o � poss�vel que nesta pequena rockl�ndia existam tantos pecados assim, disse eu, muito espantado. cinco vidas o confessor 55 - fique uma semana no meu lugar, no confession�rio e voc� mudar� de id�ia. e o pior � que v�rios deles s�o cometidos pela mesma pessoa, v�rias vezes e eu estou sempre perdoando-as e elas voltando da� a pouco tempo com as mesmas faltas e a mesma �cara-depau�. mas vamos esquecer esta lista. eu, � l�gico, n�o vou emprest�-la a voc�. � somente para meu uso pessoal. qualquer um, se pensar um pouco na humanidade, faz uma lista maior que esta. agora, tome um cafezinho e v� atender seus pacientes. e diga ao seu colega neurologista que, tamb�m, �s vezes, eu tenho dores de cabe�a incr�veis, desde crian�a, mas ficando em repouso e rezando elas passam em cerca de meia hora. tchau. � tarde eu fiz uma liga��o interurbana para s�o paulo e o dr. dalton, neurocirurgi�o, livre-docente do hospital da universidade, riu do outro lado da linha: - o c�rebro humano �, de fato, um ilustre desconhecido. mas esta altera��o, a impot�ncia para pecar, nunca foi descrita. isto j� beira as raias da psicopatologia mais profunda e eu n�o saberia esclarecer. agora, quanto �s dores de cabe�a, sugiro que seu amigo padre venha at� a capital e eu estarei � disposi��o para atend�-lo. eu contei tudo ao dirceu. ele ficou de marcar uma consulta, mas passaram-se v�rios meses e isto n�o aconteceu. devo dizer que ele, desde que fui para ut�, logo ap�s sua ordena��o, nunca mais saiu do munic�pio at� aquela data. ap�s cerca de um ano da consulta telef�nica, em outubro, tivemos novidades. eu me lembro bem do m�s porque estava se aproximando o dia dos finados e todo ano, nesta �poca, o padre ajuntava algumas fam�lias pobres e com eles ficava v�rios dias no cemit�rio da cidade ajudando-os a reformar os t�mulos dos seus parentes. era trabalho bra�al mesmo, e do pesado. estava eu no meu consult�rio, na parte da tarde, num dia muito quente e ensolarado, quando notei vozes mais altas na sala de espera e, saindo para ver, uma das
mulheres que ajudava o padre no embelezamento dos t�mulos e da capela do cemit�rio, disse, aflita: - doutor, corra. o padre dirceu desmaiou e est� l� deitado. nem sei se j� morreu. eu sa� em disparada e, louve-se as pequenas cidades, em cinco minutos j� estava no local. o meu amigo l� estava estirado no ch�o, sob a sombra de um �rvore, com a batina preta salpicada de cal e cimento e em volta dele v�rias pessoas, algumas chorando, outras andando para l� e para c�, at�nitas, outras ajoelhadas rezando. um exame sum�rio fez-me vez que ele devia ter tido um ataque epil�ptico que j� havia cessado, pois n�o se viam mais cinco vidas o confessor 56 contra��es musculares; mas a l�ngua mordida e a urina cheirando na roupa e o tipo de respira��o dificultosa, n�o deixavam d�vidas. carregamo-lo at� o banco de tr�s do meu carro e uma das pessoas foi dirigindo at� o hospital, a toda, enquanto eu cuidava para que a posi��o da cabe�a e da l�ngua n�o atrapalhassem a respira��o. na manh� seguinte, ap�s v�rios medicamentos, ele j� estava de alta, com a recomenda��o expressa de repouso em casa e de passar no meu consult�rio � tarde, para �uma conversa muito s�ria�. ele l� compareceu exatamente na hora marcada. fiz um exame f�sico minucioso e longo e, ap�s o mesmo, ca� pesadamente minha cadeira, de modo que ele percebeu logo que a coisa era grave. - dirceu, disse eu. - hoje � quarta-feira. depois de amanh�, na sexta, vamos eu e voc�, para a capital, consultar aquele neurologista sobre o qual j� falamos. - m as o que h�? adiante-me alguma coisa. - voc� est� com algum problema, intracraniano, que provocou um discreto edema cerebral e uma convuls�o. pode n�o ser nada excepcional, mas, tamb�m, pode ser algo grave. precisamos esclarecer isto, a fundo, sob pena de, se n�o o fizermos, estarmos brincando com a sua vida. - quero permanecer na nossa cidade e tratar-me aqui mesmo, como seria feito com qualquer paroquiano pobre. detesto privil�gios. - se fosse outro, disse-lhe, - eu faria um relat�rio completo do caso e enviaria o paciente, da mesma maneira, para s�o paulo. voc� sabe que os nossos recursos diagn�sticos e terap�uticos, aqui, s�o muito limitados. a �nica diferen�a � que eu vou com voc� porque sou seu amigo. e ter um amigo como eu n�o � privil�gio nenhum. � uma �rdua miss�o. mas chega de papo furado. voc� vai nem que for amarrado. tchau. e fui pondo-o para fora e mandando entrar o pr�ximo cliente. o meu telefone nunca tocou tanto. todos queriam saber do padre. ligaram o juiz, o prefeito, o promotor, o delegado, o bispo da diocese, as beatas todas, os pastores protestantes, comerciantes, oper�rios, estudantes, todos querendo saber da gravidade do caso e oferecendo seus pr�stimos. no hospital, durante as minhas visitas �s
enfermarias, os pacientes, mesmo os mais graves queriam saber da sa�de do padre. eu notei, nestas manifesta��es, que o dirceu vivia entre os pobres, partilhava com eles as ang�stias e esperan�as, confortava-lhes a vida. era um deles que se tornara padre. j� entre cinco vidas o confessor 57 os ricos ele transitava, mas n�o se deixava possuir; detestava aqueles h�bitos aburguesados e aquelas futilidades. e a rec�proca era verdadeira. ele amava os pobres e tolerava os ricos. os pobres o amavam e os ricos o toleravam. na sexta-feira, como estava combinado, eu estacionei �s 7:00 hs, em ponto, na frente da casa paroquial. havia uma pequena multid�o reunida, principalmente de beatas e trabalhadores rurais, todos com o semblante tenso e triste. o padre logo apareceu com uma pequena maleta, colocou-a no carro e despediu-se rapidamente de todos: - irm�os; n�o chorem nem se preocupem comigo. apenas rezem para eu ter for�as e logo voltar a nossa comunidade. n�o lhes faltar� o pastor por muito tempo, deus o queira. pensem que fez-se, em mim, a vontade dele. o meu sofrimento, eu, e voc�s, devemos encarar com um complemento � Paix�o de cristo que tudo doou, como homem, em benef�cio da igreja. depois de dizer isto e fazer-se um pesado sil�ncio, viu um velho lavrador chorando baixinho; abra�ou-o, apertou sua cabe�a contra a batina preta e disse: - uai, z�. voc� chora nesta idade, rapaz? aquilo os presentes entenderam melhor que o palavreado anterior. houve uma descontra��o geral e conseguimos partir com boa parte das pessoas sorrindo. cinco vidas o confessor 58 iv o dirceu, ap�s todos aqueles anos sem arredar p� de ut�, parecia um peixe sendo tirado para fora d��gua, durante a viagem. eu tive a impress�o de que se lhe oferecessem o cargo de papa da igreja, com certeza ele responderia: �s� se o vaticano mudar para ut�.� e estaria dizendo a verdade. a sua verdade. assim, durante todo o percurso ele foi resmungando e pedindo para eu abreviar-lhe, ao m�ximo, a estada em s�o paulo. - eu pratico medicina, vim dizendo-lhe. - e, �s vezes, tem que se caminhar com muito cuidado, e lentamente, no diagn�stico e no tratamento. a pr�tica de milagres � o seu setor. � s� dar uma benzidinha e est� tudo resolvido, instantaneamente, n�o �? m as ele n�o entrava nestas discuss�es que tenderiam para a filosofia. ent�o mudamos a prosa para coisas mais amenas, at� terminar a estrada e cairmos num dos piores tr�nsitos do mundo: o de s�o paulo. at� chegarmos ao hospital da universidade levamos quase o mesmo tempo de estrada e no meio de congestionamentos, irritabilidade geral, muito cheiro de �leo diesel queimado e, por fim, falta de lugar para estacionar ao atingirmos o local
desejado. bem, mas para consultar o melhor neuro-cirurgi�o do brasil e, talvez da am�rica do sul, valia o sacrif�cio. o dr. dalton havia sido meu colega de turma era o melhor aluno da classe, desde o primeiro at� o �ltimo ano. nas provas escritas havia at� briga para se conseguir um lugar perto dele e poder dar uma �colada�. como todos bons alunos, e muito estudiosos, ele optou pelas especialidades mais dif�ceis e entre elas a neurocirurgia; eu, desde o in�cio, sabia que ele seria o melhor. fomos muito amigos durante cerca de nove anos e estava ansioso e feliz por saber que iria v�-lo, embora naquelas circunst�ncias desagrad�veis. ele possu�a um dos consult�rios mais bonitos e bem localizados da capital, mas, como havia marcado a consulta no hospital onde era professor, era l� que est�vamos. ap�s v�rias voltas conseguimos estacionar e come�ou outro pequeno drama. o porteiro da entrada principal barrou-nos dizendo que era proibido a circula��o de pessoas pelo hospital. ap�s algumas explica��es mandou-nos antes passar pela assistente social e pedir uma autoriza��o. l�, mofamos numa fila na qual vivenciamos v�rios dramas pessoais em cinco vidas o confessor 59 v�rios minutos de espera. eram doentes mal orientados, com direito a atendimento em outros lugares ou com necessidade de atendimento com relativa urg�ncia em especialidades cujas consultas estavam sendo marcadas s� para da� a quatro meses. s�o coisas da nossa assist�ncia m�dica que todo o povo brasileiro conhece, principalmente os pobres. o padre dirceu assistia a tudo muito chateado, com um ar de impot�ncia diante de um monstro. de fato era um verdadeiro monstro: a superpopula��o, pobre, necessitando de servi�os ineficientes e, embora correndo riscos de vida e de piora das doen�as, n�o sendo atendida. quando chegou a nossa vez eu me identifiquei e dei r�pidas explica��es. a jovem assistente, provavelmente n�o gostava de m�dicos e menos ainda de padres. - o doutor dalton n�o pode marcar consultas no pr�dio do hospital, disse asperamente. - para isto h� o pr�dio dos ambulat�rios. consulta para neurocirurgia posso marcar para daqui a tr�s meses. se tiver algum problema antes disto compare�a ao pronto socorro. m as s� se for urgente, heim. - deixa para l�, respondi. - � tarde iremos ao consult�rio particular dele. fui andando e puxando meu amigo que j� estava marcando a data da consulta para tr�s meses ap�s, com um m�dico que n�o sabia quem era e que provavelmente iria atend�lo em tr�s minutos, pedir um punhado de exames (que tomariam outros meses para serem realizados e at� l� ele, provavelmente, teria outro ataque e morreria, como muitos
outros brasileiros, por falta de atendimento eficaz e r�pido. dirigimo-nos a uma portaria secund�ria do hospital; eu vivera ali por nove anos e conhecia todo aquele labirinto como a palma da minha m�o. por sorte l� estava o mesmo porteiro nordestino dos meus tempos de estudante e residente. - ol�, severino, disse eu aproximando. - que saudades. deve fazer uns dez anos que n�o nos vemos. tudo bem por aqui? - puxa, doutor. quanto tempo, heim. o senhor anda pelo interior. que bom! aqui continuamos na mesma correria de sempre. eu logo senti que n�o haveria mais problemas para entrar e, de fato, ap�s mais uns cinco minutos de papo j� est�vamos entrando e nos dirigindo para o andar onde ficava a neurocirurgia. aquele pr�dio � um verdadeiro quebra-cabe�as, montado ao longo de dez anos, com v�rias reformas sobre o projeto original, de modo que eu fiquei imaginando o que alguns daqueles pobres trabalhadores rurais, analfabetos que, �s vezes, eram cinco vidas o confessor 60 encaminhados por mim, para l�, deveriam passar diante daquela monstruosidade multiforme e assustadora. cheguei a achar mais humano deix�-los morrer, com menos recursos tecnol�gicos, no seu �habitat� natural, do que submet�-los �quilo. o dalton estava l� como combin�ramos. abra�ou-me com tanta saudade e entusiasmo que eu resolvi n�o contar-lhe os nossos pequenos problemas de entrada, para n�o estragar a emo��o do momento. ap�s uns quinze minutos de recorda��es passamos ao que interessava, de fato, no momento. ele fez um interrogat�rio minucioso, um exame geral e espec�fico detalhado, demorando cerca de uma hora e quinze minutos, para ambos, ao final disse que era, como suspeit�vamos, uma massa tumoral, intracraniana; ele s� poderia acrescentar que provavelmente a mesma estaria no lobo frontal do c�rebro. sem d�vida era um caso de interna��o para exames urgentes e prov�vel cirurgia, no m�ximo em uma semana. - dalton, disse eu - se formos depender do servi�o social o m�ximo que conseguiremos � uma consulta para daqui alguns meses, com algum residente de neurologia. talvez tenhamos que internar o dirceu particularmente em outro hospital. - voc� parece que nunca trabalhou aqui, disse o dalton. - esqueceu-se do �interesse cient�fico�. tome, aqui est�. isto acaba com esta burocracia idiota. de fato, como era um hospital ligado � Universidade, havia, afora a parte assistencial, uma parte dedicada �s pesquisas e um professor podia assinar um papel dizendo que um determinado paciente era de �interesse cient�fico� para pesquisas ou para o ensino. aquilo dispensava filas, sele��es sociais, espera de vagas e outros entraves. era um artif�cio criado por bons brasileiros, para se dar �um jeitinho� de internar parentes e apadrinhados na frente dos pobres que, de fato, necessitavam. poucas vezes o caso era mesmo interessante, cientificamente falando.
m as, em prol da vida do meu amigo, eu n�o iria levar aquelas considera��es a s�rio e nem iria contar a ele o que era, de fato, aquilo. voltamos � mesma jovem que havia nos atendido, eu deixei o dirceu sentado, a certa dist�ncia, e aproveitei para fazer uma cara de goza��o com o �furo� que havia na sua barreira burocr�tica intranspon�vel. ela, embora sempre xingando, foi obrigada a preencher toda a papelada, arrumar uma vaga e tomar uma infinidade de tolas provid�ncias. quando me retirava com tudo pronto ainda ouvi-a dizer a uma colega que se aproximara: cinco vidas o confessor 61 - a igreja � t�o rica. tem tanto ouro e manda seus padres virem se tratarem hospital para indigentes. se fosse um cardeal iria para os e.e.u.u. era uma meia verdade e, portanto, tamb�m, uma meia mentira. os padres t�m uma certa prote��o da santa madre igreja e nem todos cardeais se ausentam do pa�s para tratamentos onerosos de sa�de �s custas do vaticano. m as, subimos novamente, entreguei os papeis � enfermeira-chefe e, no final da tarde daquela sexta-feira dirceu estava acomodado numa enfermaria da neurocirurgia, junto com mais cinco pacientes, todos indigentes e de n�vel cultural bem menor que o dele; mas aquilo ele estava acostumado, pela sua pr�pria origem e profiss�o. conversei com o residente de plant�o sobre as inten��es do dalton quanto ao caso e ele disse que j� na manh� seguinte se iniciaria a s�rie de exames: tomografias, angiografias, exame do liquor cefalo-raquidiano, exames de sangue, urina, fezes, etc., etc. talvez o estudo pr�-operat�rio demorasse uma semana, o caso seria discutido na reuni�o geral da cl�nica, na pr�xima quinta-feira e a cirurgia marcada para a sexta pela manh�. fui at� o dirceu, expliquei tudo para ele e entreguei-o nas m�os dos m�dicos. nas de deus ele sempre esteve. prometi-lhe que na hora da cirurgia, se fosse mesmo indicada eu estaria presente para dar �uma forcinha�. - j� que voc� n�o reza mesmo, a sua presen�a poder� substituir as ora��es que eu gostaria que fizesse por mim, disse ele - mas agora saia logo. n�o quero que me veja chorando. - tchau, padreco. voc� tem fibra para suportar coisas dez vezes mais graves que esta, antes de chorar. aquela semana foi agitada em rockl�ndia, principalmente na igreja matriz e na casa paroquial, ao lado. criaram plant�o de rezadores, de modo que sempre haveria uma pessoa ajoelhada em frente ao altar principal, rezando, at� a volta do padre. na casa paroquial alguns b�ia-frias fincaram uma cruz tosca de madeira e era comum ver v�rias beatas
�puxando� ter�os intermin�veis em frente � mesma. o n�mero de novenas, viassacras, promessas e mesmo �despachos� da macumba, foi enorme. eu mantinha contato telef�nico di�rio com o dalton e tinha que transmitir as not�cias dezenas, centenas de vezes para as autoridades civis, militares, religiosas, para cidad�os de todas as classes, para meus colegas m�dicos e para as freirinhas do hospital. cinco vidas o confessor 62 desta maneira eu senti um belo al�vio quando, na sexta-feira seguinte de madrugada, parti para s�o paulo. a cirurgia seria iniciada �s oito horas e seria, como esperado, uma extirpa��o de tumor de lobo frontal do c�rebro. consegui entrar na sala de cirurgia poucos minutos antes do in�cio da anestesia e o meu amigo, apesar de sob efeito de seda��o pr�-anest�sica, demonstrou grande al�vio e descontra��o ao me ver. ele, n�o fosse a cabe�a totalmente raspada, pareceria jesus na cruz; os bra�os perpendiculares ao tronco, presos por suportes fixos na mesa cir�rgica e o corpo seminu, davam esta impress�o. ali�s todo paciente que vai ser operado deve ter este aspecto. eu j� havia visto milhares de pessoas nesta posi��o e nunca tinha relacionado com uma crucifica��o e, tamb�m, n�o sei porque aquilo ocorreu-me naquela hora. a equipe do professor dalton era de fato sensacional. era um verdadeiro maestro regendo uma orquestra super-afinada. e via-se que a afina��o era o pr�mio por muitos e muitos anos de treino. a cirurgia �correu lisa� como se diz na g�ria m�dica. o paciente foi para a uti da neuro-cirurgia e eu fui com o cirurgi�o tomar um caf� na sua sala. - como voc� viu, disse ele, era um tumor inicialmente benigno que comprimia o lobo frontal cerebral e que provavelmente foi crescendo lentamente durante anos, talvez desde a inf�ncia. o problema � que as c�lulas comprimidas ao redor do mesmo se transformaram, embora numa pequena �rea, em cancerosas e a ressec��o das mesmas, como voc� notou foi imposs�vel de ser radical, sobrando algumas que, com certeza tornar�o a crescer e a�, nova cirurgia ser� contra-indicada. - e quanto � sobrevida do paciente? perguntei eu. - em cura n�o se pode falar, � l�gico. haver� uma melhora inicial com a descompress�o cerebral pela retirada do tumor benigno e parte do maligno. o risco de convuls�es diminuir� acentuadamente. a sobrevida depender� do tempo que o organismo do padre conseguir com a ajuda de medicamentos e talvez radioterapia, bloquear o crescimento do que foi imposs�vel de retirar. pela minha experi�ncia eu diria que ele viver� cerca de dois anos, no m�ximo tr�s, com uma qualidade de vida razo�vel. no final provavelmente apresentar� sinais de edema cerebral cada vez mais intensos, coma e morte. - aquela vez que eu telefonei-lhe perguntando sobre o �bloqueio ao pecado� e as
dores de cabe�a voc� n�o sabia deste tumor, ainda. sua resposta mudou, agora? -n�o, n�o mudou. as cefal�ia podem ser explicadas pelo tumor. quanto aquelas cinco vidas o confessor 63 caracter�sticas psicol�gicas estranhas, eu diria, mesmo, bizarras, � como j� lhe falei. vir�, sem d�vida, o dia em que explicaremos todo o funcionamento cerebral apenas usando a f�sica. j� demos enormes passos neste sentido. mas n�o chegamos ao final da viagem. ser� o fim da psicologia, da psicopatologia, da alma, do esp�rito e de v�rias coisas ditas sobrenaturais, mas que s�o mais naturais do que sonha a nossa v� filosofia. at� l�, meu amigo, eu n�o vou poder explicar-lhe nada. talvez aquele nosso colega meio �pirado�, voc� se lembra, que foi fazer psiquiatria, possa esclarec�-lo melhor. posso apenas acrescentar que o lobo frontal est� intimamente relacionado com a personalidade e o tipo de comportamento do indiv�duo. mas em que grau uma compress�o mec�nica daquele lobo, como tinha o padre, possa afetar a vida sentimental, afetiva e o relacionamento do sujeito com o ambiente, eu n�o posso precisar. se estivermos vivos dentro de mais uns quarenta anos, acredito que terei a resposta. marque a data e me procure na �poca, t�? - voc� continua gozador. mas o que disse faz muito sentido. o meu medo � que o padre, com o c�rebro descomprimido, desbloqueado, se torne um pecador. - com o tempo que lhe resta de vida at� que seria bom. existem pecados que nos trazem intenso prazer, como voc� bem sabe, n�o �? - obrigado pelo caf� e por tudo, dalton. voc�, al�m de grande neuro-cirurgi�o � um grande amigo. vou providenciar um t�tulo de cidad�o de rockl�ndia para voc�. amanh� e domingo ainda estarei em s�o paulo e depois s� volto na pr�xima sexta. no s�bado pela manh� o dirceu passava bem, embora ainda semi-inconsciente. ele ainda estava cercado daquele aspecto que eu gostava de chamar de ��rvore de natal�, com os suportes ao lado da cama apresentando coisas penduradas por todos os lados: monitoramento card�aco, sondas nasog�stricas e uretral, veias dissecadas com v�rios frascos de soro conectados, etc. etc. al�m disto tudo notava-se um enorme curativo por enfaixamento, na cabe�a, parecendo um turbante indiano. ainda permanecia com uma sonda na traqu�ia, ligada a um respirador, de modo que, embora eu notasse que me reconheceu, estava torporoso e n�o podia falar. no domingo houve melhora do estado geral e de todas as condi��es, mas ainda continuava a parafern�lia toda de tubos e conex�es, de maneira que apenas vi-o rapidamente, falei algo e apertei sua m�o. sa� e viajei, em seguida, para o interior, s� sabendo dele durante semana, por contatos telef�nicos. a grande olimp�ada religiosa continuava em rockl�ndia. j� haviam sido batidos v�rios
cinco vidas o confessor 64 recordes mundiais de tipos de rezas, de novenas e de prociss�es. a cruz em frente a casa paroquial j� tinha a cor negra da caaba, dos mu�ulmanos, de tanto ser beijada pelos fi�is, como aquela pedra de meca. na sexta-feira de madrugada, j� estava virando rotina, despedi-me daquela cidade santa e fui para a capital novamente. o dirceu ainda estava na uti, pois tivera alguns problemas cl�nicos de pouca import�ncia mas que impediram a alta para a enfermaria. antes de v�-lo troquei cumprimentos e algumas palavras com o dalton. eu havia trazido meu carro cheio de presentes para ele, enviados por habitantes da par�quia do padre que ele havia operado t�o bem. meu carro estava cheio de queijos, doces caseiros, frutas, caf� torrado manualmente e v�rias outras especialidades da regi�o. combinei deixar tudo na casa dele e ent�o ele me falou: - voc� parece que tinha raz�o. eu n�o conheci muito bem o seu amigo, mas posso jurar que houve mudan�as psicol�gicas com ele. e, a meu ver, para melhor. tenho conversado muito com o padre; parece que daquele humildade anterior brotou um novo ser, todo seguro de si, cativante, eu diria mesmo �iluminado�, como ele mesmo disse outro dia. v�, converse com ele, voc� perceber� isto. entrei na uti e, v�-lo j� semi-sentado, sem as ��rvores-de-natal� ao redor, dei um sorriso e corri para apertar sua m�o e sentar-me ao lado do seu leito. - ol�, doutor, disse ele. - como � bom ver voc�. gostaria de t�-lo vinte e quatro horas ao meu lado. voc�, apesar de ser m�dico, n�o sabe a solid�o a que se fica relegado numa uti. o bem que me fez, v�-lo e ouvi-lo, logo que acordei da anestesia, foi enorme. os m�dicos e enfermeiras daqui s�o �timos, mas para tratar da parte t�cnica como aparelhos, curativos, exames, etc. mas nem de longe suspeitaram que eu queria aquelas poucas palavras que voc� soube t�o bem dizer enquanto apertava minha m�o. fez mais efeito ben�fico que toda esta gama de rem�dios que estou tomando. houve discreta falta-de-ar e ele parou de falar. - assim que voc� tiver alta, disse eu calmamente, tentando transmitir-lhe tranq�ilidade,vai ter que contar-me todo o drama psicol�gico que um paciente passa nestas circunst�ncias e eu prometo escrever um artigo para m�dicos e para enfermeiros, para ver se melhoramos isto. mas conte-me como est� passando. vejo que est� falando mais e melhor do que antes. ser� que libertaram o seu centro cerebral da fala? cinco vidas o confessor 65 ele n�o se alterou nem um pouco e eu notei que o seu olhar e a sua tranq�ilidade eram extremamente confortantes, de maneira que foi ele que me aquietou e me fez
relaxar. assim que melhorou a respira��o, voltou a falar: - amigo. voc� se lembra quando convers�vamos sobre pessoas que se �iluminaram�, repentinamente, por causa de alguns acontecimentos altamente significativo em suas vidas, ou por sofrimentos intensos inesperados ou mesmo, tranq�ilamente, sentados sob a sombra de uma �rvore, como o buda? nenhum de n�s dois acreditava, de fato, naquilo, n�o �? pois hoje eu lhe afirmo, por experi�ncia pr�pria, que isto pode acontecer. e aconteceu comigo. o que aconteceu neste �ltimo m�s, e principalmente nesta �ltima semana, ensinou-me mais que toda a minha vida anterior. eu queimei v�rias etapas no caminho do aperfei�oamento, atrav�s do sofrimento. hoje eu vejo a vida com tal clarivid�ncia que considero-me, mesmo, um �iluminado�. e, daqui at� a minha morte, vou pautar todos os meus passos baseado nesta vis�o que tenho agora. leia as linhas grifadas neste pequeno livro que eu estou lendo, atualmente, na p�gina 42. o livro, sobre o pequeno criado-mudo, destoava totalmente do restante do ambiente e foi f�cil v�-lo. ao abrir a p�gina indicada, estavam grifados as seguintes frases: �... todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do esp�rito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio de trevas, a passagem. mas o que vem depois, � o renascido, um homem mais real e novo... n�o a todos, talvez, assim aconte�a. e, mesmo, somente a poucos... quebrantado e sozinho, tornado todo vulner�vel, sem poder recorrer a apoio algum vis�vel, um se v� compelido a esse caminho r�pido demais, que � o sofrimento. todavia, ao remate da prova, segue-se a maior alegria�. alguma coisa de muito importante naquele c�rebro estava, de fato, bloqueada pelo tumor que fora retirado (segundo a minha teoria) e fora liberada em sua plenitude. ou segundo a teoria do pr�prio padre, teria sido o sofrimento a for�a libertadora e iluminadora? a verdade � que eu estava diante de um novo homem, quase n�o reconhecendo nele o meu velho amigo. aquelas poucas palavras que ele me dissera quase que sem parar (a n�o ser pela falta-de-ar)e a continua��o do pensamento nas frases grifadas, era totalmente distintas do que eu esperaria ouvir do dirceu de antes. e eu confesso, embora ainda um pouco at�nito, que preferia que ele, de fato, tivesse sa�do da neutralidade e humildade que o caracterizavam. ele, como que adivinhando meus pensamentos, continuou: cinco vidas o confessor 66 - sei que voc� deve estar pensando que eu estou louco ou caminhando para isto. meu amigo, asseguro-lhe que estou mais l�cido do que nunca. e � uma lucidez pr�tica. voc� h�
de v�-la funcionando em ut� e talvez em muitos outros lugares. disse isto, virouse e dormiu. t�o tranq�ilo e relaxado que chegou a perturbar-me. no dia seguinte � minha visita o padre teve alta da uti e ap�s doze dias de interna��o, alta hospitalar. durante dois meses deveria fazer radioterapia e quimioterapia, ambulatoriamente, sem mais interna��es. por isso acomodou-se numa pequena pens�o, pr�xima ao hospital e l� passou sessenta dias completamente enclausurado, s� saindo para as aplica��es necess�rias para melhorar o progn�stico da doen�a. depois, ficou mais um m�s em controle com o dalton, seus cabelos cresceram discretamente, melhorando a apar�ncia e eu, e a cidade toda, ficamos muito contentes quando ele telefonou-me dizendo que eu poderia ir busc�lo, como havia prometido. fui, recebi instru��es do controle da doen�a, do dalton, e voltamos para ut�. a viagem de volta (cerca de tr�s horas) eu a fiz, em verdade vos digo, na companhia de um novo homem. n�o era mais o dirceu que eu trouxera em sentido oposto h� alguns meses. se hoje lhe oferecessem o posto de papa da igreja ele iria para roma e assumiria o cargo deixando a todos boquiabertos com a sua eloq��ncia, clarivid�ncia e cultura. aquela pessoa que passara seus �ltimos vinte e poucos anos enfurnado em ut�, sem se interessar por outras coisas al�m da sua vidinha de padreco e da vida espiritual dos seus paroquianos, j� n�o existia mais. t�nhamos agora um homem discutindo filosofia abertamente (comigo principalmente), pol�tica, economia, religi�o, etc. e com id�ias de arrepiar qualquer crist�o conservador (como ele o era). a minha teoria de que ele possu�a um c�rebro comprimido mecanicamente e psicologicamente por um tumor benigno e ultimamente misto (benigno e maligno), era, de fato um tipo de brincadeira de um m�dico materialista que quer explicar tudo fisicamente e hoje (n�o daqui a v�rios anos como o dalton sup�e). provavelmente foi mesmo o choque intenso do sofrimento e da vis�o solit�ria da morte que o mudou. infelizmente parece que � necess�ria uma mol�stia fatal (ou algo equivalente) para acharmos que n�o temos que ser t�o medrosos e vivermos a vida em sua plenitude. antes de encararmos a morte, na solid�o de um leito de uma uti, dificilmente deixaremos de dar tanto valor aos bens materiais e � cinco vidas o confessor 67 pr�pria vida e tamb�m dificilmente deixaremos de ter medo de perder estas coisas materiais e superficiais que rodeamos. o padre dirceu n�o era bem este caso. o que havia com ele parece-me era medo de lutar, medo de errar e uma vida massacrada pelo medo de pecar. a vis�o da morte
conseguira libert�-lo de tudo aquilo. v a nossa entrada em rockl�ndia foi, posso assim dizer, triunfal. j� na estrada, pr�ximo ao per�metro urbano, alguns carros nos esperavam e um deles tomou a dianteira, dirigindo o cortejo, n�s logo atr�s e os outros ve�culos (inclusive caminh�es de b�ia-frias) a seguir, a maioria deles buzinando sem parar. formamos um bloco que desfilou pela cidade toda e os transeuntes paravam e alguns batiam palmas para o padre, outros queriam toc�-lo e outros pediam a sua b�n��o. o dirceu, que tempos atr�s se sentiria extremamente desconfort�vel com aquilo, estava exultante. parecia mesmo um pol�tico no meio do seu eleitorado, dizendo palavras bonitas a todos, beijando crian�as atrav�s da janela do carro e aben�oando, com o sinal da cruz a quem pedisse. houve pessoas, mais simples, que se ajoelharam no ch�o � sua passagem. eu, na hora, atribui aquilo �s saudades que o padre havia deixado, � sensa��o de se rever quem se esperava que iria morrer em s�o paulo e � identifica��o que os pobres tinham com o p�roco, inclusive na doen�a, considerando, como sua, a vit�ria sobre a mesma, embora a maioria soubesse que era uma vit�ria tempor�ria. cinco vidas o confessor 68 a comitiva passou deliberadamente por ruas em que haviam sido colocadas faixas com dizeres alusivos � volta do vig�rio. lembro-me de algumas delas:� o sacerdote � um outro cristo�; �o rebanho recupera o seu pastor. viva.�; �benvindo � Comunidade, padre dirceu�; �louvado seja n. senhor jesus cristo por conserv�-lo entre n�s�. ap�s tudo aquilo paramos na casa paroquial e o meu amigo, que deveria estar cansado, pela viagem e recep��o, apresentava uma disposi��o fora do comum. desceu do carro, beijou o ch�o, como � costume papal quando visita pa�ses estrangeiros, sob o olhar de uma pequena multid�o e, em seguida, em frente � cruz negra, sobre a mureta que separa o pequeno jardim, da casa paroquial, da cal�ada, pasmem, ele fez um discurso. n�o um serm�o, mas um discurso mesmo, sem ter muito a ver com evangelhos e coisas sagradas. eu, de certa dist�ncia, ainda dentro do carro, pensava: -�esta cidade nunca mais ser� a mesma�. m as escutemos o discurso do ex-mudo para estas coisas. -�� nossa comunidade crist� e a todos os habitantes desta cidade os meus sinceros agradecimentos pela acolhida. o beijo no ch�o significa o beijo na face de cada um de voc�s, simbolicamente. de hoje em diante agradecerei este carinho com todas as minhas for�as, trabalhando pela melhoria da sociedade brasileira, a partir daqui,
tentando construir um conv�vio social perfeito, sem desigualdades, sem injusti�as, sem miser�veis, sem explorados, sem desempregados e sub-empregados. o meu abra�o a todos. deus os aben�oe�. e dizendo isto retirou-se para o interior da casa e a multid�o foi lentamente se dispersando. nos dias seguintes, como eu esperava, voltamos a ter not�cias do padre. as autoridades, os comerciantes, os profissionais liberais (eu entre eles) e v�rios representantes de outras categorias profissionais receberam um �delicado� convite: �dia 25, na pr�xima sexta-feira, ser� fundado o centro para a dignifica��o dos pobres, c.d.p. da cidade de rockl�ndia, pelo padre dirceu de souza, na igreja matriz, �s 20:00 horas. comparecimento e contribui��es monet�rias obrigat�rios�. eu estava come�ando a me divertir e a gostar da situa��o, mas esta n�o era a atitude do restante dos �abastados� burgueses da cidade. de passagem eu come�ava a ouvir: �ser� que o padre virou �vermelhinho?� �depois de velho ele vai querer optar pelos pobres?� cinco vidas o confessor 69 �estava indo bem at� agora. se se meter com estas coisas n�s o transferimos daqui. n�o tenha d�vidas.� � pol�tica na igreja, n�o.� no dia da reuni�o eu l� estava, na hora marcada no convite. a cerim�nia era num pequeno anfiteatro montado ao lado da sacristia com cerca de 60 lugares. est�vamos eu e mais umas cinco pessoas. esperamos, batendo um papo informalmente com o padre, at� �s vinte horas e trinta minutos. ent�o o dirceu subiu no pequeno palrat�rio que havia no recinto e falou rapidamente: -�est� fundado o c.d.p. de rockl�ndia. n�o se consegue distinguir o tamanho de uma �rvore pela semente. eu vos digo que esta semente que hoje plantamos � de �rvore frondosa e de muitos frutos. nas pr�ximas reuni�es eu vos garanto que esta sala n�o ser� suficiente para acomodar todos os presentes e contribuintes. o centro necessitar� de uma sede muito ampla para creches, escolas, hortas, cursos profissionalizantes, teatro, cinema, ambulat�rio, etc. funcionar� como �rea de lazer e local de aprendizagem e dignifica��o dos pobres e miser�veis. eles ser�o reabilitados pela instru��o e pelo conv�vio humano saud�vel, pela alimenta��o suficiente e pela pr�tica da higiene pessoal e comunit�ria, al�m de muitas outras coisas que surgir�o. estamos abertos a sugest�es. a nossa inten��o � que, no futuro, cada cidade do tamanho da nossa tenha um centro destes, em todo este interior brasileiro�. - pela amostra dos presentes hoje, disse eu, - um ateu, um representante do sindicato rural, um do sindicato dos comerci�rios, um dos banc�rios e um ex-presidente de
clube de futebol rural, acho que est� havendo muito otimismo de sua parte, amigo. vai haver algum milagre? o dinheiro cair�, como o man�, dos c�us? eu vim disposto a colaborar, mas n�o sou nenhum d. quixote, lutando por ideais inating�veis. n�o vejo, pelo menos no momento, terra onde possa germinar a semente a que voc� se referiu. - voc� poder� colaborar atendendo no ambulat�rio do centro uma manh�, ou uma tarde, por semana, voltou a falar o dirceu. - quanto ao dinheiro eu sei que ele aparecer�. a cidade possui muitos pecadores �vidos por se arrependerem e colaborarem. est� fundado o c.d.p. de rockl�ndia. eu elaborei a ata de funda��o e voc�s constar�o como fundadores. est� encerrada a sess�o. fica convocada uma reuni�o para o pr�ximo dia 25, daqui a um m�s, neste mesmo local , no mesmo hor�rio. conversamos mais um pouco e nos retiramos. todos estampavam descren�a nas faces. diziam que os tempos estavam dif�ceis e que ningu�m atualmente estava disposto a cinco vidas o confessor 70 colaborar com dinheiro. mas o dirceu estava t�o tranq�ilo e seguro que parecia ter poderes milagrosos para levar aquilo adiante e, mesmo sem dizer como, transmitia-nos aquela sensa��o. aquela noite eu demorei muito para pegar no sono. estaria meu amigo padre sabendo o que estava fazendo? n�o estaria com mania de grandeza e perdendo o senso da realidade? com t�o pouco tempo de vida iria desperdi��-la em projetos invi�veis? como seria poss�vel fazer pecadores colaborarem com projetos humanit�rios, doando parte de suas posses? como? como? heim? ser� poss�vel? em plena madrugada eu sentei-me na cama dando gargalhadas que acordaram minha mulher. - nossa cidade vai muito bem, disse ela. - o padre est� louco e o m�dico vai indo atr�s. eu ri durante uns dez minutos. n�o era poss�vel o que eu imaginara. seria genial. sentime t�o bem que deitei e dormi maravilhosamente, repousando como n�o fazia h� tempos. nos dias seguintes eu aguardei qualquer sinal, que me confirmasse aquilo que eu havia imaginado, com ansiedade. tr�s dias ap�s come�aram a vir os ind�cios de que eu estava certo. contou-me, um dos fofoqueiros da cidade (que tudo sabem e tudo ouvem) um motorista de taxi do qual eu me servi, que ele viu a dna. clotilde, a maior beata do local, sair correndo da igreja, p�lida como uma folha de papel branco, e ir direto para casa a poucos quarteir�es dali. em seguida compareceram � casa dela nada mais nada menos que o prefeito, o delegado e o pr�prio marido da mesma que era o maior comerciante da regi�o. - sabe o que ela contou-lhes, doutor? disse o motorista - o padre aconselhou-a a n�o mais se confessar com ele pois ele tinha a inten��o de publicar um livro, daqui a
um ou dois anos, contando todos os pecados, e o nome dos pecadores, que ouviu no confession�rio, durante estes vinte anos que ele est� aqui. j� imaginou se for verdade. que reboli�o nesta pacata cidade. mas eu n�o acredito nisto. um padre n�o faria isto. ele n�o jurou quando, foi ordenado, que guardaria segredo? eu pedi para parar o taxi. paguei. desci e fui andando, respirando fundo at� a casa paroquial. parecia coisa surrealista mas estava acontecendo o que eu suspeitara naquela madrugada. adentrei para a sala correndo e logo o dirceu apareceu. pela minha cor e agita��o ele foi logo dizendo: - calma. est� tudo muito bem planejado. eu n�o perderei o controle da situa��o. sentese que eu vou fazer um caf� para n�s e para alguns visitantes que logo chegar�o. eles cinco vidas o confessor 71 acabaram de telefonar marcando uma reuni�o urgente comigo. ap�s cerca de quinze minutos entraram o prefeito, o delegado e um advogado, presidente da ordem dos advogados da regi�o. o padre ajeitou-os em torno da mesa onde eu j� estava, serviu-lhes caf�, sentou-se na cabeceira como se fosse dirigir (e dirigiu mesmo) a reuni�o, e disse: - estou �s ordens. o que h� de t�o urgente? o prefeito tomou a palavra: - de duas uma, padre dirceu. ou o senhor enlouqueceu ou quem est� doida � a dna. clotilde. o que ele nos contou � algo inconceb�vel. n�o d� para acreditar. parece goza��o ou brincadeira de mau-gosto. o padre retornou a falar: - nenhuma, das duas alternativas, est� correta, mas sim uma terceira. ningu�m est� louco. eu disse mesmo a ela, que, como eu tenho dois ou tr�s anos de vida, vou deixar um livro pronto, com uma descri��o dos principais e mais graves pecados cometidos numa pequena localidade do interior, onde todos pensam que n�o acontece nada, e tenho a inten��o de publica-lo no final da minha exist�ncia. tamb�m farei constar o nome completo dos praticantes destes pecados que eu achar que at� l� n�o se arrependeram. eu tenho uma editora em s�o paulo que est� disposta a pagar uma grande quantia pelos direitos autorais e assim eu poderei deixar este dinheiro para o centro de dignifica��o dos pobres, de rockl�ndia. havia um sil�ncio sepulcral no recinto, que perdurou por v�rios minutos. eu me considerava um espectador privilegiado de uma cena digna dos maiores autores de suspense, pela sua intensidade e imprevisibilidade. - eu n�o acredito no que estou ouvindo, disse o advogado. - o padre com certeza sabe que est� cometendo um crime, podendo at� ser preso por isso. - estou cometendo a inten��o de praticar um ato que eu nem sei se � criminoso disse dirceu, com extrema tranq�ilidade e seguran�a. e, por inten��es, ningu�m vai ser
preso, n�o � mesmo? pode ser que amanh� eu n�o esteja mais t�o mal-intencionado. acho que � o que vou fazer. eu, ent�o, lhes comunico que n�o tenho mais a inten��o de �dedar� os pecadores rocklandenses. assim voc�s n�o podem nem dizer que eu estou fazendo uso de uma simples inten��o para chantagear algu�m. tudo bem? � o que eu tenho a dizer. eu arrisquei uma piadinha, para ver se desanuviava o ambiente: cinco vidas o confessor 72 - ainda bem que eu s� confessei duas ou tr�s vezes na vida, com oito anos de idade, e n�o foi com o padre dirceu. a piada surtiu efeito contr�rio pois este n�o era o caso do prefeito e do advogado que gostavam de ser vistos comungando aos domingos, pelos eleitores e pelos clientes. ambos ficaram mais descorados do que j� estavam. estava criada a confus�o. os fofoqueiros da cidade nunca falaram tanto. foi marcada uma reuni�o dos cidad�os ilustres da cidade, para o dia seguinte, com a presen�a do bispo da diocese. naquela reuni�o, muito tumultuada foram tiradas v�rias resolu��es e conclus�es: a) aquela atitude do padre era extremamente danosa � Igreja; b) o bispo deveria, rapidamente, transferi-lo da cidade e em seguida providenciar sua excomunh�o, com a perda anterior do direito de exerc�cio do sacerd�cio; c) o advogado presidente a seccional da ordem iria entrar com uma a��o de apreens�o do livro e de poss�veis san��es legais contra o padre; d) v�rias medidas mais simples foram sugeridas e aprovadas, como a vinda r�pida de um novo padre para a par�quia, a coloca��o de um �nibus para os fi�is que quisessem se confessar na cidade vizinha, aos s�bados, gratuitamente, por conta da prefeitura e outras bobagens mais. o padre dirceu continuou sua rotina di�ria. os pobres com os quais ele lidava o dia inteiro n�o tinham nada a esconder. sua vida, �s vezes miser�vel, n�o permitia muito segredo dos pecados, devido � promiscuidade em que viviam. quando o bispo ligou, da� a dois dias eu estava na casa paroquial, que passei a freq�entar mais assiduamente; eu estava, na verdade, bem mais aflito que o dirceu com a situa��o. o bispo, do outro lado da linha informou-lhe que ele seria transferido de par�quia dentro de dez dias. o padre perguntou quem havia autorizado a transfer�ncia e pela express�o via-se que era uma alta patente da hierarquia da igreja. - e se esta mesma patente cancelar a transfer�ncia? perguntou o padre. - s� posso obedecer, respondeu o bispo. nesta altura eu estava com o ouvido encostado no fone, embora contra a vontade do meu amigo. ele continuou: - ent�o aguarde que ele cancelar�. deus esteja com o nosso bispo. at� mais. eu achei a atitude do bispo muito reprov�vel. apesar do caso ser grave para igreja (para
mim era uma bela goza��o), ele deveria ter ficado do lado do seu subordinado e n�o ceder a cinco vidas o confessor 73 press�es de pol�ticos e leigos. logo ap�s o bispo desligar o dirceu ligou para a alta patente eclesi�stica. eu com o ouvido colado no fone. - al�, irm�o, disse dirceu. - queria pedir-lhe humildemente que cancelasse a minha transfer�ncia de rockl�ndia. tenho uma miss�o a cumprir aqui e n�o poderei estar ausente. - dirceu, o seu caso � muito grave, disse a voz do outro lado. voc� est� querendo usar um sacramento sagrado como assunto de livro ou sei l� o que? submeta-se �s minhas ordens, mude-se da� e esqueceremos o seu caso sem outras puni��es. - irm�o, eu apenas manifestei a inten��o de publicar um livro. n�o irei public�-lo obrigatoriamente. agora, se eu for transferido abandonarei o sacerd�cio e a� a publica��o ser� imediata. ali�s, no cap�tulo de homossexualismo entra o nome daquele jovem e belo padre, seu protegido, do qual eu era confessor no final do semin�rio, e de todos os parceiros sexuais dele. - dirceu, voc� est� louco, disse a voz com ar preocupado e dissimulado. - n�o, n�o estou. � isto o que farei. sil�ncio total no outro lado. ser� que ele desligou? ap�s alguns minutos: - est� cancelada a transfer�ncia. fique a� mesmo e esque�a este monstro deste livro, para sempre. deus o ilumine. - ele j� o fez. tchau. estava resolvida a quest�o da transfer�ncia. a a��o judicial n�o caminhou; n�o havia substrato jur�dico para sequer iniciar qualquer processo. as pessoas come�aram a perceber que n�o era t�o f�cil livrar-se daquela pessoa que as conhecia t�o profundamente, na esfera dos pecados, e que poderia denunci�-los ao mundo a qualquer hora. alguns logo notaram que quando n�o se pode derrotar um inimigo o melhor � aderir a ele. e passaram a ser puxa-saco do padre, defendendo-o e tratando bem, como nunca o haviam feito. outro epis�dio concorreu muito para que o restante da popula��o aderisse ao p�roco. acontece que, durante a semana uma pequena equipe da maior rede de televis�o do pa�s dignou-se a comparecer a rockl�ndia para gravar uma entrevista com o dirceu, para o programa de domingo � noite, que tem enorme audi�ncia. foi emocionante a cidade toda, e quase todo o pa�s vendo aquele antigo indiv�duo, caipira e humilde, aparecendo nas telas com tanta desenvoltura e respondendo com precis�o e cinco vidas o confessor 74 clareza a perguntas capciosas e dif�ceis. o final da entrevista foi mais ou menos assim (a
maioria dos leitores deve t�-la visto). - ent�o, padre dirceu, o senhor vai mesmo revelar a teia de pecados de rockl�ndia? - ora, minha jovem rep�rter. eu nunca afirmei isto. a confiss�o � um sacramento muito s�rio. muitos padres preferiram a morte a contar o que ouviram nos confession�rios. eu apenas tenho uma lista dos pecados, por ordem alfab�tica, para meu uso pessoal que qualquer pessoa pode elaborar, n�o precisa ser confessor; e, certa vez, brincando, disse que poria os nomes dos pecadores na frente dos respectivos pecados. mas esta inten��o, manifestada brincando, j� n�o est� nas minhas goza��es e brincadeiras. o povo de rockl�ndia, principalmente os ricos, sempre colaboraram comigo e n�o merecem um tipo de coisa destas. o recado sutil, enviado a todos os rocklandenses, atingiu em cheio o seu objetivo. ou os ricos colaboravam ou eles mereciam tal coisa, isto �, teriam os seus nomes como personagens de um livro muito interessante. a rep�rter continuou: - e esta lista, o senhor pode mostr�-la. - pois n�o, aqui est�, disse o padre alcan�ando uma pasta e abrindo-a. - na verdade n�o � uma simples lista. j� podemos consider�-la um livro. constam todos os pecados que eu pude juntar, em ordem alfab�tica e na frente dos mesmos v�m v�rios dados como: a idade em que s�o mais praticados, o sexo que mais o pratica, o n�vel social dos pecadores respectivos, o �ndice de recorr�ncia, as conseq��ncias dos pecados para os pecadores e para os outros, e, tamb�m, uma s�rie de conselhos para se evitar o erro. como j� dizia rasputin, na corte russa, para justificar-se: �para combatermos o pecado � preciso conhec�lo�. ele conheceu-o praticando; eu conheci ouvindo; a maior parte, principalmente dos jovens, n�o o conhece. portanto, seria um livro muito �til. mas como eu j� disse, talvez nem seja publicado. a rep�rter olhou com ar malicioso as p�ginas, �s vezes dando risadinhas sarc�sticas e perguntou ao padre se poderia ler alguma coisa em voz alta, para os telespectadores de todo o brasil, mas isto, ap�s os nossos comerciais. - prefiro que n�o leia, disse o dirceu, no segmento seguinte. - quem tiver alguma d�vida sobre o assunto pode escrever para a caixa postal n�mero cinco vidas o confessor 75 (n�o me lembro) e eu responderei pessoalmente e confidencialmente. a semana seguinte � entrevista foi muito agitada para o dirceu. ele deu entrevista para v�rias r�dios (inclusive ao vivo, no telefone), v�rios jornais e fugiu o tempo todo de um editor de revista de mulheres nuas, de alta vendagem, que queria, a todo custo, publicar
trechos de seu livro, semanalmente, mesmo que para isto fosse preciso pagar uma pequena fortuna. ap�s uns dez dias as coisas se acalmaram, a rotina foi retornando e chegou, finalmente, o dia 25, para quando estava marcada a segunda reuni�o do c.d.p. rocklandense. o padre fora um verdadeiro profeta, na primeira reuni�o. a sala estava apinhada de gente e todos dispostos a colaborar. aquelas pessoas, sem d�vida, haviam confessado muito, durante a vida, e, com toda certeza, n�o queriam se arriscar a ver suas culpas publicadas, embora algumas j� tivessem sinceramente se arrependido. mas havia alguns, menos medrosos, que resolveram resistir e promoverem uma manifesta��o na porta da sacristia, com discursos e faixas, chamando o padre de �comunista�, �agitador�, �vermelhinho� e outras barbaridades mais, justamente na hora da reuni�o. minutos antes das 20:00 horas o p�roco saiu, postou-se em frente aos manifestantes, olhou-os com um olhar de gelar os ossos e mesmo as palavras, fez-se um sil�ncio absoluto e ent�o ele falou: - quem n�o tiver pecados, atire a primeira pedra... jos�, ant�nio, jo�o: olhava um a um e chamava pelo nome. o que estou a pedir-lhes n�o � nada mais do que a sua obriga��o. voc�s deveriam faz�-lo espontaneamente, sem press�es; mas n�o o fazem. pois bem, em verdade lhes digo, eu vou pression�-los at� voc�s colaborarem. e cada um aqui presente sabe e sente que eu posso faz�-lo. e chega de conversa. jo�o, voc� e seu filho, entrem para a reuni�o. eu os escolhi para doarem as primeiras vacas leiteiras para o c.d.p. da nossa cidade e a sua presen�a � obrigat�ria l� dentro, n�o aqui fazendo bagun�a. o jo�o a que ele se referia era o criador de gado leiteiro mais rico de toda a regi�o e quando ele e o filho enrolaram as faixas que portavam, baixaram a cabe�a e entraram, o restante fez o mesmo, de modo que a reuni�o teve que ser transferida para o interior da igreja, mesmo, como se fosse uma missa. o dirceu, aquela noite, foi de uma eloq��ncia de fazer chorar. discorreu sobre a vida, a morte, a hist�ria do homem, a religi�o, em palavras simples e comoventes. criou um ambiente de extrema fraternidade entre os presentes, de modo que quando come�ou a cinco vidas o confessor 76 determinar o que queria para os seus prop�sitos, ningu�m diria n�o. - o nosso c.d.p. ficaria muito bem instalado na �ch�cara boa vontade� que est� a cerca de dois quil�metros do centro da cidade. ali, como todos sabem, foi a sede de uma grande fazenda e porisso possui uma grande casa (dos antigos propriet�rios) e v�rias casas menores (dos �colonos�), todas em p�ssimas condi��es. o propriet�rio atual da �rea, aqui presente (indicou o fazendeiro), j� fez a doa��o ao centro. devemos resolver
o problema de acesso ao local, que atualmente � prec�rio e a reforma das casas, com as necess�rias adapta��es. a estrada at� l� eu consigo na pr�xima semana, em s�o paulo, com o secret�rio de transportes, que como todos sabem � um deputado de uma cidade vizinha � nossa. quanto �s reformas, todos aqui presentes colaborar�o, sob as ordens do dr. germano, ilustre engenheiro da nossa cidade que se dignou a administrar as obras gratuitamente. as colabora��es poder�o ser em dinheiro (todas as ag�ncias banc�rias da cidade tem uma conta em nome do c.d.p.), ou em servi�os. carpinteiros, pedreiros, encanadores, poder�o trabalhar algumas horas por semana, segundo uma escala feita pelo dr. germano. poder� tamb�m haver doa��o de material de constru��o e outros, diretamente no local. estava tudo t�o bem planejado que parecia que o padre passara anos �bolando� aquilo. no dia seguinte j� se notava movimento no local. a estrada que dava acesso, era, de fato, muito prec�ria, mas mesmo assim as reformas come�aram, na ch�cara. ap�s a reuni�o vi o padre e o prefeito marcando uma audi�ncia com o secret�rio dos transportes, por telefone. era um vizinho da nossa cidade, inclusive eleito com v�rios votos nossos e que fora chamado pelo governador exatamente pelo prest�gio eleitoral naquela regi�o do estado. mas eu sabia que ele n�o era �flor-que-se cheire� e fiquei em d�vida quanto ao �xito da miss�o do padre. seria uma estrada municipal, onerosa e que renderia poucos votos na pr�xima elei��o. foi com estupefa��o que ao procurar o dirceu, na sua volta da capital, juntamente com o prefeito, ouviu-o dizer: - tudo o.k. consegui o acesso ao nosso centro. vou contar-lhe de que maneira porque voc� � o meu m�dico. � como se estivesse me confessando. - confessar para um m�dico, nos dias de hoje, est� mais seguro do que para um padre. j� pensou se a sua id�ia pega? seria muito interessante ver padres amea�ando revelar cinco vidas o confessor 77 segredos de pol�ticos, de belas mulheres, de mach�es, de outros padres. - m as voc� quer ouvir ou n�o? - � claro que quero. para mim voc� havia partido numa miss�o imposs�vel e agora vem dizendo: fui, vi e venci. - mas n�o foi f�cil. o secret�rio recebeu-nos friamente ap�s deixar-nos esperando por quase duas horas. o prefeito contou-lhe o que quer�amos e ele, de pronto, respondeu que n�o havia verbas dispon�veis e que, como era uma obra que beneficiaria somente um munic�pio, n�o era priorit�ria. gostaria muito de atender-nos, mesmo porque as pr�ximas elei��es estavam chegando mas n�o era poss�vel. e mudou de assunto e come�ou a
falar de coisas banais da pol�tica nacional e o prefeito entrou na conversa dele at� que ambos, espantados, pararam, repentinamente, olhando para mim. eu estava chorando, quase solu�ando. ambos perguntaram- o que estava havendo, se queria tomar alguma coisa, se estava com dor. eu respondi que precisava apenas falar alguns minutos a s�s com o secret�rio, se o prefeito me desse licen�a, retirando-se para a sala de espera. logo que ele saiu o secret�rio voltou a perguntar-me porque chorava. eu respondi que precisava apenas falar alguns minutos a s�s com o secret�rio, se o prefeito me desse licen�a, retirando-se para a sala de espera. logo que ele saiu o secret�rio voltou a perguntar-me porque chorava. eu respondi que ele devia ter ouvido falar de um livro que iria publicar, mas que desisti. acontece que uma revista de mulheres nuas queria publicar, semanalmente, apenas alguns pecados e os respectivos pecadores. com a negativa do secret�rio eu mandaria, para a revista, um artigo sobre a fornica��o que era o que ele havia praticado com uma jovem pobre, mas linda, de ut�, h� muitos anos. a pobrezinha, chamava-se maria divina dos santos e, de repente, viu-se gr�vida e abandonada pelo pai da crian�a, justamente o senhor. eu cuidei dela durante todo o pr�-natal, principalmente psicologicamente, pois ela inclusive tentou o suic�dio, internei-a na hora do parto, fiquei o tempo todo ao lado dela at� a hora do nascimento. empenhei-me tanto que as m�s l�nguas chegaram a dizer que o filho era meu. mas a menina (era ainda uma menina) n�o ag�entou, tendo morrido ap�s dar � luz um lindo menininho. eu cuidei da crian�a durante um m�s, com ajuda de algumas beatas e depois arrumei pais adotivos para ele, com os quais vive at� hoje. o homem me olhava com o queixo literalmente ca�do e a face estupidificada. e continuei falando; quando ela me confessou os seus pecados e a gravidez conseq�ente aconselhei-a a procur�-lo, mas ela n�o cinco vidas o confessor 78 conseguiu convenc�-lo a abandonar a brilhante carreira pol�tica pela frente e um belo casamento de conveni�ncia. nem mesmo na gravidez o senhor acreditou e nunca mais apareceu, nem para saber que ela n�o estava mais viva. naquela altura eu parara de chorar e quem chorava era ele. ficamos em sil�ncio por alguns minutos e ent�o ele admitiu a culpa, no passado, mas afirmou que n�o iria admitir nenhuma chantagem da minha parte. sim, respondi eu, � uma chantagem, mas n�o do tipo comum. se o senhor n�o me atender eu publico o seu pecado, sem d�vida. mas se atender-me ter� se arrependido, pelo menos para
mim, da sua imensa culpa e eu nunca mais o incomodarei e n�o revelarei a ningu�m que possa utiliz�-lo contra o senhor. � uma penit�ncia, mais que uma chantagem, o que estou lhe propondo. mas resumindo � na base do: ou pega ou larga. n�o estou brincando com assunto t�o s�rio. � um bom neg�cio para o senhor. vai gastar dinheiro do governo, pode se arrepender sinceramente junto � sua consci�ncia e ainda, se fizer esta obra que ajudar� muitos pobres, receber� a minha absolvi��o, pois ainda sou um padre e tenho este poder. o homem levantou-se, abra�ou-me, pediu perd�o, quis saber varias coisas sobre o filho, embora eu dissesse que nunca revelaria quem era ele, e, finalmente disse-me. v� em paz, padre, sua estrada sair�. come�aremos os trabalhos em quinze dias. eu estava estupefato. era a segunda vez que eu sabia que o padre havia usado de fato, segredos do confession�rio e acredito que ele deve t�-los usado outras mais, pois muitas coisas que conseguiu parecia imposs�veis a todos. mas, embora eu n�o seja maquiav�lico, acho que estes fins (ajudar os pobres) justificam os meios. gostaria tamb�m, de informar os leitores e principalmente os rep�rteres bisbilhoteiros que, de fato existiu em ut� uma jovem, chamada maria divina dos santos que aos quinze anos de idade, h� muitos anos atr�s, morreu de parto na santa casa local e o seu filho foi adotado numa cidade vizinha, por uma fam�lia, atrav�s do padre dirceu. mas a hist�ria do secret�rio dos transportes � fict�cia. houve sim um pai, muito influente que conseguiu a estrada, mas, se eu dissesse quem � estaria descumprindo a palavra do padre. m as, o que interessa � que, em quinze dias as grandes motoniveladoras iniciavam o trabalho de abertura, para posterior asfaltamento do acesso ao centro para a dignifica��o dos pobres, na antiga ch�cara. foram constru�das duas pontes largas, no final do per�metro urbano, sobre um pequeno riacho e, das mesmas, partiam duas belas pistas, separadas por um canteiro central arborizado e iluminado, que terminavam no p�rtico imponente do cinco vidas o confessor 79 centro. a conclus�o, prevista para seis meses ap�s o in�cio, acabou levando nove meses (o tempo de uma gesta��o humana) pois os funcion�rios da empreiteira diziam que nunca tinham visto tantas pedras num munic�pio s�. enquanto se construiu a estrada a antiga ch�cara foi totalmente e majestosamente reformada, sob o comando do dr. germano e do dirceu. o que me impressionou � que a cidade e todos os seus habitantes n�o ficaram nem um pouco mais pobres com aquela reforma. ao contr�rio, acho que teve imensos lucros. era comum eu ver pedreiros, encanadores, eletricistas e outros, que antes passavam o domingo bebendo em bares
das vilas da cidade, aproveitarem estes mesmos domingos, sem beber, trabalhando na ch�cara. ainda por cima assistiam uma bela missa com um belo serm�o do dirceu, tinham almo�o de gra�a e j� iam se dignificando ao inv�s de se degradarem na bebida. as contas banc�rias do c.d.p. estavam sempre supridas, pelo povo, com pequenos donativos. apenas algumas contribui��es individuais, eram de grande monta. tudo corria como o padre planejara. eu, muitas vezes, naqueles tempos, desejei que a igreja tivesse padres, bispos, cardeais, papas, determinados como o dirceu. eles, se fossem t�o destemidos, poderiam, sim, melhorar, e muito, o mundo. ser� que n�o sabem a for�a que t�m? ou sabem e t�m medo de us�-la? ou n�o lhes conv�m usar? a meu ver, at� esta data, a op��o pelos pobres est� apenas no discurso e em atitudes muito insignificantes, na pr�tica. a igreja convive, inclusive, com ditaduras fascistas, sendo que, se se empenhasse verdadeiramente, estas ditaduras desmoronariam em poucos meses. os ditadores n�o s�o, principalmente na am�rica latina, beatos e grandes confessadores? voltando ao nosso assunto, ap�s nove meses daquela segunda reuni�o do c.d.p., nascia a crian�a. era marcada a data da inaugura��o da sede da entidade, com toda a planta f�sica necess�ria e com um imponente acesso asfaltado. na inaugura��o estava o secret�rio dos transportes (aquele), representando o governador e fazendo um belo discurso dizendo que, assim que conheceu o padre, � primeira vista, sentiu toda a sua bondade e for�a-de-vontade, n�o titubeando um segundo em querer ajud�-lo. contou tamb�m o esfor�o herc�leo que fizera para conseguir as verbas junto ao fundo social do pal�cio do governo, em car�ter de urg�ncia urgent�ssima. mas o que ele via ali hoje era um belo pagamento por todo o esfor�o. e a todo momento pedia aplausos para o padre dirceu. �este grande homem, com �h� mai�sculo�. cinco vidas o confessor 80 ao descerrar a placa inaugurando a obra, o secret�rio empalideceu, mas somente eu e o padre soubemos o motivo. � que o dirceu insistira e conseguira, junto � C�mara municipal, que o novo acesso se chamasse avenida maria divina. era a primeira pobre que ele estava dignificando, embora �p�s-mortem�. e n�o seria a �ltima. entretanto, at� hoje, quem n�o sabe, pensa que � uma homenagem � M�e-de-deus. cinco vidas o confessor 81 vi bem, estava inaugurado o primeiro c.d.p., como previra e, brilhantemente (a meu ver), conseguira, o padre dirceu. aos poucos as engrenagens foram postas a funcionar, como estava previsto nos
estatutos, para conseguir o objetivo final da obra: tornar, o maior n�mero poss�vel de pobres, dignos espiritualmente e materialmente. os centros possu�am a parte te�rica e a parte pr�tica. a teoria era inicialmente ministrada somente pelo padre, fazendo reuni�es com pessoas pobres da cidade e da zona rural, pregando durante as missas dominicais, no centro, distribuindo livretes entre a popula��o pobre, falando na r�dio local, escrevendo no jornal da cidade e de todas as maneiras poss�veis e imagin�veis que aparecessem. teoricamente a filosofia dos c.d.p. consistia, fundamentalmente em relembrar a toda hora, que somos todos irm�os e iguais perante deus. os valores humanos e a dignidade humana s�o os mesmos em todos os homens, ricos ou pobres. acontece que, nos pobres, �s vezes, a mis�ria embota estes valores e indignifica o indiv�duo. � preciso lembrar, continuamente, aos miser�veis, que eles s�o t�o humanos, t�o amados e t�o importantes, perante deus, como qualquer rico. eles receberam uma vida do criador, e n�o foi para jog�-la fora. foi para viv�-la em sua plenitude, dignamente. eram comuns frases padronizadas, como palavras-de-ordem, estarem pregadas por todas as paredes do centro e serem repetidas milhares de vezes, nas prega��es. no momento lembro-me de algumas que mais me impressionaram, tais como: �deus vos estima e vos ama�; �voc�s s�o filhos de deus. � vontade dele que levem uma vida digna e produtiva�; �cristo � fonte de vida, de salva��o e de ressurrei��o para a humanidade toda. n�o s� para alguns�; �a sociedade deve respeitar a dignidade de cada homem que a comp�e. todos t�m direito a uma vida de acordo com esta dignidade�. nas minhas goza��es em cima do dirceu eu dizia que o sofrimento havia tornado-o moderadamente nazista, pois aquilo me lembrava as lavagens cerebrais realizadas na juventude hitlerista, para fanatizar os jovens. a parte pr�tica do centro era, tamb�m, muito interessante. constava de atividades de lazer, de ensino, de capacita��o para o trabalho e de obras assistenciais. cinco vidas o confessor 82 quanto ao lazer t�nhamos v�rias modalidades esportivas, principalmente o futebol, bem ao gosto dos brasileiros, mas tamb�m o basquete, voley, nata��o e at� o t�nis (aristocr�tico, n�o?). t�nhamos tamb�m um videocassete, com sess�es de cinema com filmes (e plat�ias) escolhidos pelo padre e sempre comentados e discutidos, como parte da dignifica��o dos assistentes; os filmes eram emprestados, gratuitamente, pelo dono da v�deolocadora da cidade, ali�s um grande confessador e comungador. havia um pequeno teatro e v�rias pe�as
eram ensaiadas e apresentadas pelos pr�prios freq�entadores do centro, orientados sempre pelo padre. dispunha-se de bibliotecas, sal�o de jogos, pequenos bares e sal�es de festas (costumava-se comemorar, mensalmente, todos os anivers�rios transcorridos naquele m�s). para se freq�entar o centro bastava ser pobre e, em cidade pequena, a classifica��o social em pobre, m�dio e rico � muito f�cil. depois de alguns meses os �s�cios� do centro j� organizavam campeonatos, promoviam suas festas sozinhos e come�aram a aparecer professores de futebol, nata��o e at� diretores de teatro, de modo que o lazer ia muito bem no c.d.p., sempre dentro da simplicidade das pessoas que freq�entavam. a manuten��o dos campos de esporte, das piscinas, do teatro era feita pelos pr�prios usu�rios e por profissionais da cidade que cediam poucas horas do seu trabalho, sem remunera��o. a parte do ensino consistia, fundamentalmente, na alfabetiza��o de adultos. eu ficava admirado de ver os professores estaduais, que tanto reclamavam (e com raz�o) dos sal�rios, irem dar aulas noturnas sem nada receber e com um entusiasmo que dinheiro nenhum produz. e note-se que muitos deles nem cat�licos praticantes eram, pois poder�amos atribuir ao medo do confessor denunci�-los, o fato de colaborarem tanto. o dirceu v�rias vezes disse que o analfabeto n�o participa do mundo como devia e uma das exig�ncias fundamentais para se ter uma vida digna era saber ler e escrever. ele fazia quest�o de andar pelas vilas e fazendas do munic�pio, intimando os adultos analfabetos a comparecerem �s aulas. conseguiu at�, de alguns fazendeiros (confessadores), que se pagasse uma di�ria discretamente maior ao b�ia-fria alfabetizado e isto surtiu efeito surpreendente na freq��ncia �s aulas. quanto � capacita��o para o trabalho inclu�am-se cursos t�cnicos principalmente dirigidos para a �rea rural como: ordenha, insemina��o artificial, cria��o de animais (galinhas, porcos, peixes, etc.), planta��es de hortas, no��es de carpintaria, pintura de paredes, servi�os de pedreiro, encanador, eletricista e outras. era comum ver o padre cinco vidas o confessor 83 perambular pelas vilas e pelas col�nias das fazendas cobrando pequenas obras nas casas como pintura, arruamento, conserto de portas e janelas; ele n�o admitia desculpas de falta de tempo, de conhecimento ou de material. tudo se resolvia com determina��o. �quem n�o sabe cuidar da pr�pria casa onde mora, n�o � digno de ser crist�o�, dizia ele. certa vez eu o vi no mercado municipal quase t�o furioso quanto jesus quando chicoteou os mercadores, no templo. s� que desta vez era com compradores pobres, de verduras. o
padre entrou no mercado e expulsou os �consumistas� dizendo para irem plantar hortas nos quintais das suas casas ao inv�s de gastarem dinheiro que n�o podiam. o centro lhes ensinara como faz�-lo e ainda lhes fornecia as sementes. havia, tamb�m, cursos de capacita��o para o trabalho dom�stico, destinado principalmente �s mulheres, ensinando cuidar de crian�as, cozer, economizar, limpar a casa e os arredores, etc. ensinava, tamb�m, pequenos cuidados m�dicos e de prontosocorro, higiene �ntima, puericultura, m�todos anticoncepcionais naturais, etc.; muitos destes cursos foram totalmente planejados e ministrados por mim. embora eu nunca tenha confessado sabia de muitos parceiros e parceiras de pecados que eram grandes confessadores e precisava me garantir junto ao dirceu. mas, brincadeiras � parte, posso assegurar-lhes que, ap�s alguns meses de funcionamento do primeiro centro de dignifica��o de pobres, do brasil, os resultados eram t�o bons e evidentes que eu diria que ningu�m mais colaborava por medo, mas sim por vontade pr�pria e mesmo os protestantes, esp�ritas, macumbeiros, judeus (apenas uma fam�lia morava na cidade), ortodoxos, ateus, etc., estavam colaborando. assim pensava eu. as obras assistenciais consistiam em conseguir documentos para todos que os tornassem cidad�os de fato, aptos a votar e a ter direitos e deveres. era incr�vel constatar o grande n�mero de pobres sem registro de nascimento, sem carteira de identidade, sem t�tulo de eleitor, sem carteira profissional, sem nada, simplesmente n�o existindo como brasileiro. tamb�m se ajudava a conseguir empregos e a se obter assist�ncia m�dica quando necess�rio. o padre havia conseguido, n�o sei (ou sei?) como duas ambul�ncias novinhas que ficavam estacionadas no centro e os pr�prios familiares aptos ou algum motorista contratado poderia us�-las no caso de remo��es de pacientes, dentro do munic�pio ou para cidades vizinhas. havia, ainda, o ambulat�rio m�dico dentro do c.d.p. que funcionava quatro horas por dia atendendo as especialidades b�sicas: ginecologia-obstetr�cia, cl�nica cinco vidas o confessor 84 m�dica, pediatria e cirurgia geral. era tocado por todos os m�dicos da cidade, sem honor�rios, conforme uma escala elaborada por n�s mesmos. a vida dentro do centro era intensa e produtiva. era comum ver-se, na cidade e na zona rural, exfrequentadores, do local, melhorando e ensinando a melhorar a vida dos seus amigos pobres, principalmente dignificando-as. eu n�o tenho estat�sticas, mas posso jurar-lhes que diminuiu razoavelmente o �ndice de alcoolismo, de analfabetismo, de mortalidade infantil, de desnutri��o, de desquites, de toxic�manos, de prostitui��o, de explora��o de homens por
homens e de muitas outras coisas que indicam um conv�vio social inadequado e mesmo perverso. desta maneira as cidades vizinhas logo se interessaram e come�aram a surgir pequenos esbo�os de centros nos munic�pios ao redor, que seguiam a mesma orienta��o estipuladas pelo fundador dos mesmos: o padre dirceu de ut�. hoje sabemos que, pelo pa�s todo existem quinhentos e sessenta e dois centros de dignifica��o de pobres, nos moldes do nosso, sendo quase a metade deles de grande porte. e isto apenas dois anos ap�s a inaugura��o do primeiro deles, em rockl�ndia. �o neg�cio parece uma praga�, j� ouvi por aqui. � comum termos visitantes, geralmente padres e pol�ticos, de outras cidades, querendo saber de tudo, teoria e pr�tica, do neg�cio, para fundarem similares nas suas cidades. e saem daqui ap�s uma visita extenuante e com v�rios livros, estatutos, depoimentos que o centro lhes fornece, de modo que � s� arrega�ar as mangas e come�ar a trabalhar, quando regressam aos seus munic�pios de origem. em rockl�ndia j� est�vamos, por assim dizer, ap�s dois anos, num est�gio � frente. e digo isto pelo depoimento de um ex-frequentador do nosso c.d.p.: �eu era pobre, miser�vel mesmo, sem a m�nima autoestima, contentando-me com as migalhas que me sobravam na vida. ap�s ouvir aquele santo padre dirceu falar acendeu-se uma luz dentro de mim. eu tenho a vida, passei a pensar. o que h� de melhor que isto? freq�entei assiduamente o centro. valorizeime. hoje sou um oper�rio graduado da revendedora de ve�culos da cidade. tenho uma pequena casa e uma for�a interior e uma vis�o completamente diferentes das que eu tinha (se � que tinha) anteriormente. hoje j� parei de freq�entar o centro para dar lugar a outros mais pobres e necessitados. s� compare�o, �s vezes, para dar o meu testemunho do que uma pessoa valorizada, digna de si mesma, pode fazer�. cinco vidas o confessor 85 vii o padre dirceu, ap�s cerca de um ano, da inaugura��o do centro, conseguiu um padre para ajud�-lo na par�quia e come�ou a trein�-lo para suced�-lo. o jovem, rec�m sa�do do semin�rio, era da �ala progressista� da igreja e, embora tenha tentado introduzir conceitos ideol�gicos na miss�o que lhe era atribu�da, logo percebeu que podia fazer o bem (e muito bem) sem qualquer conota��o pol�tica e aos poucos foi entrando no esquema do seu professor. jogava duro quando algo amea�ava a continuidade da sua miss�o de melhorar a vida dos pobres, mas n�o cedia as tenta��es de usar os frutos daquela tarefa para benef�cios eleitorais de quem quer que fosse. na �poca em que veio o novo vig�rio come�aram a surgir alguns sintomas que podiam sugerir a volta da doen�a, como era previsto. ap�s contatos com a capital
aumentamos as doses de alguns medicamentos e acrescentamos outros. passaram-se cerca de tr�s anos, desde a cirurgia, quando foi necess�rio a introdu��o de medicamentos potentes para cessar as dores e evitar convuls�es. no final do terceiro ano o padre, que ainda continuava muito ativo, foi obrigado a reduzir sua carga de trabalho. ap�s alguns meses vieram os v�mitos e outros sintomas de hipertens�o intracraniana. eu tentei lev�-lo para a capital, novamente, mas ele se recusou. internou-se no hospital da cidade e em alguns dias entrou em sonol�ncia, torpor, coma e finalmente morreu. ele conseguira autoriza��o da igreja e dos homens para ser sepultado na capela do seu centro e assim foi. o seu enterro (e vel�rio), seria desnecess�rio dizer, bateu todos os recordes de presen�a e at� hoje o seu t�mulo � visitado por verdadeiras romarias de fi�is e j� se come�aram a ouvir rumores de que milagres aconteceram aos que l� estiveram ou aos que invocaram o padre como intermedi�rio. o atual p�roco j� come�ou a colher assinaturas para uma futura beatifica��o, na data em que for poss�vel. �parece que as beatifica��es cinco vidas o confessor 86 est�o mais f�ceis, atualmente e, de qualquer maneira esta � merecida. e, posteriormente, sem d�vida, a santifica��o�, disse-me ele outro dia. m as, caros leitores, uma das finalidades destes escritos, al�m de contar-lhes coisas sobre a vida deste grande homem, como lhes dizia no in�cio, � pedir-lhes que me ajudem num pequeno problema. o padre dirceu, meses antes de morrer, veio � minha casa e entregoume, num envelope lacrado o seu famoso livro. e completo. com os pecados e pecadores. pediu-me que o guardasse a sete chaves , mas que n�o titubeasse em us�-lo, como ele o fazia, se algo amea�asse a miss�o de valorizar a vida dos pobres. ele achava que eu iria viver ainda muito tempo e se se mantivesse acesa a luz que criou os c.d.p. por mais alguns anos ela n�o mais se apagaria. depois disto eu poderia destruir o documento, se n�o o tivesse usado. eu aceitei a incumb�ncia a contragosto. mas aceitei. agora, ap�s cerca de tr�s anos da morte do padre estou notando um enfraquecimento nas doa��es e nas colabora��es. o centro est� se tornando ponto tur�stico e os ricos come�aram a explor�-lo com seus hot�is ao redor, suas pens�es, suas frotas de �nibus tur�sticos, suas lojas de medalhas e badulaques e outras bandalheiras mais. o padre local, atual, n�o tem for�as para coibir o desvirtuamento da coisa. e os pobres est�o indo, como sempre, para o brejo.
devo usar o livro do padre dirceu? isto n�o iria prejudicar a sua futura beatifica��o? � melhor ter um santo ou um centro? por favor, quem puder ajudar-me, nesta ingrata incumb�ncia de decidir, favor escrever e dando opini�es e sugest�es para a caixa postal 1.008, de rockl�ndia, o mais breve poss�vel, antes que a deteriora��o do c.d.p. seja irrevers�vel. ser� dado tratamento estritamente confidencial � correspond�ncia recebida mas no final, democraticamente, usaremos a sugest�o mais sugerida. no aguardo. nossos agradecimentos e o de todos os pobres de ut�. cinco vidas o confessor 87 the confessor �stop all that the ancient muse sings, because a higher value arises�. to all those who do not blaspheme, rather, on the contrary, illumine themselves, by suffering. cinco vidas o confessor 88 i ut�, inspite of the fact that it has a name similar to that of an american state, is actually in the interior of brazil. it is on the border of two states, s�o paulo and minas gerais. ut� is the corrupted form of an indian word: �it�, which means rock, because that region is a rocky region. the farmers even plant their coffee and grass, for their dairy herds, between the rocks. practically speaking, this is all that is produced in the region: coffee and milk. �squeezed out of the rocks� as they say there. those who were born and raised there, in that region, are accustomed to the landscape. when one passes in the roads, generally in a high seat of a bus or in the back of a truck, see acres and acres dotted with the dark stains of these rocks all around. visitors are surprised and find it difficult to believe that those lands are labored. but we can affirm that there is no better coffee or greener grass than that which grows there between the rocks. and up until now it has never been necessary to use any type of fertilizer. it seems that the � it�s� protect and revitalize the ground. the multinationals which sell fertilizer detest those rocks. the district, forty years ago, was composed of this farms and, as a consequence, a small urban nucleus, where the farmers lived developed. also there was a little downtown area with shops and services such as a school, a church, professionals services, a little hospital, a police station, etc. the farm workers lived on the very farm in a row of small houses called �col�nias�. they went very little to the town, generally only to shop in clothing and grocery stores for staples, only on saturdays and then only once a month or every two months. the children of the farmers nearest to the school, sometimes attended to the
classes, traveling, by foot, various kilometers in a tiring routine. the rural schools were very rare in those times such that, or they walked much to study, or did not walk and remained illiterate. it is about one of the children from that time that recently was in all the journals, magazines, radios and tvs that i want to talk to you about. certainly i will help to shine light on his dark story and will help whoever takes the time to read these words, to judge that man. and i will tell you, right now, that he was a great man: dirceu de souza. still in relation to this intense news item about father dirceu, i must add another detail. you did not read or hear the word �ut�. this name is known only by the ones that lived in that old town, many years ago. dirceu, for example, considered himself �utaense� until his death and so will i. it so happens that, about 20 years ago, the town council which was not confortable with a name of indian origin, what to speak of a corruption of an indian word, resolved to change the name of the town. the idea was to continue to caricatures the district as a place of many rocks.. they only changed the language in which the name was couched. they went from tupi to english and our ut� came to be called, in a impressive flash of progress, rockl�ndia . it is this name which accompanied the story of the priest which you must have read and heard daily in the media. rockl�ndia today, just like all the cities of the interior, underwent great changes. the most notable, in my opinion, was the migration of rural workers from the �col�nias� on the farms to the outskirts of the urban nuclei creating the so-called �peripheries�. neighborhood after neighborhood shot out in a line from the central area of the all little cities, such as ut�, all over brazil. gigantic urban satellite population centers were created where the plantation workers only had time to sleep. during the day, they work in the same cinco vidas o confessor 89 farms where their fathers lived before. whoever has been to one of these neighborhoods, about five o�clock around dawn, would have noted this, seeing the crowds awaken and get on the back of the farm trucks to only return after sundown. they have the advantage of being close to the conforts of the city and not isolated on the farms like before. as a compensation, they are subject to all the typical costs of this �advantage�: rent, municipal taxes, daily transportation ( with frequent accidents), urban pollution, and a lack of open land for a vegetable gardens or raising animals.
to this day, i do not know if it is better for the workers to live on farms or in the periphery. i can only say that, if i were a farm worker and i had to choose, i would choose the farm without having to thinking about it. it is not that simple, but we are going to go over it here; such is not our aim. so, what happened? the total number of inhabitants increased little in the districts, but the urban nuclei grew quite a bit as while the farms emptied out. a demographic concentration developing sometimes even comparable to those of the big metropolis. this rapid urbanization, along with the technological progress of humanity in general, gave a sense, maybe a false one, of progress to the cities. in fact various problems were created. today there are larger urban areas with sidewalks, public transportation radio stations, newspapers, every type of antennae, telephones connecting to the entire planet, movies sewage, potable work, schools, clubs, hospitals, etc, for part of the inhabitants. but we also have serious housing problems (with the beginnings of shantytowns and slums), problems of sanitary conditions, lack of child care, retirement houses, of schools, medical attention, and also, a portion of the population in abject poverty along with the natural corollaries: abandoned children, prostitution, infant mortality, epidemics, etc. it was in this underprivileged social class that padre dirceu always circulated and worked. cinco vidas o confessor 90 ii dirceu de souza and i studied together in the same class in grade school as well as in most of middle school. from them on we were separated, as i will relate further on . there were differences between the way things were taught back then and nowadays. the principal one was that there were no private schools: only state-run schools. this, for me, was a great advantage because in the same classroom we had rich and poor children. some went to school in starched shirts, good clothes and shiny shoes while others went barefoot, with patches on their clothes and in a state of bad personal hygiene. i remember that various teachers had scissors ( and various other implements) in their drawers for cutting nails and hair, for cleaning ears, etc. nowadays the wealthier children study alone in private schools. today no poor father could pay such expensive tuition. thus, the students hear of poor children without any real experience of them and without feeling theirs
problems. some schools organize excursions to slum areas or child-care facilities for the poor. but these seem more like tourist excursions than any deep incursion into the different world of poverty. i always found that it did a lot of good to have colleagues much poorer than i, to relate with them, to truly feel their problems although, at that time, maybe, i did not really perceive this. it would serve me well in the future and help me to better understand other people and myself and also to better treat persons and my patients. i would advise the big private schools of present day to place a good 10% of poor pupils in each class, free of tuition. the other paying students would learn, from them, things that they would not learn from their teachers. they would have a vision of the various ugly faces that humanity still possesses and maybe, in the future, they would be better to collaborate towards its elimination. in this way, dirceu de souza was my great teacher. he used to walk about seven kilometers to get to the school and the same to come back, daily, from monday to saturday, month after month, rain or shine. i remember that, at the beginning of classes, his father accompanied him until he learn the way. after a few days, only being seven years old, he started coming on his own, without complaining even once. we know that he used to awaken at four o�clock, help to milk the cows, clean the stable, and at five thirty, leave the farm to arrive at seven o�clock at school. we, the other students, found it strange that he always used to come barefoot, but later we found out that he had never used shoes all through his life, until that age. his toes were quite separate from one another, feet calloused, with soles as thick as leather. from this reason, when the teacher wanted to give him shoes, she had to give shoes two sizes too big, which he got used to little by little, until his toes came together a bit, such that callouses softened and fell off. due to this, it was only about eight months that he was able to put on a correct size and walk normally. dirceu�s family did not have enough money to buy him school supplies. such that he belonged to the so-called �school fund� for poor students which used to supply notebooks, pencils, rulers, school books, uniforms and other materials. along with this, they used to get a thin soup and bread, in the middle of the morning . the majority of the materials came with an inscription which read: �defend brazil from communism�. at the time, i did not
cinco vidas o confessor 91 even know what that was. but it was simple; the materials were donated by an american foundation �completely unconnected with politics�. that slogan was hardly for decoration. of course it had nothing to do with subliminal propaganda or attempts at brainwashing, just imagine! but coming back to the issue, i swear to you that i, many times, saw dirceu share his bread with others students which were still hungry. at seven years of age , still caught up in childish egoism, that impressed and intrigued us. his difficulties at school, in the beginning, were great, because the family environment did not help him. he spoke very incorrectly, as is common in the rural environment, in relation to verbs, plural agreement, inadequate language in relation to specific situations and his vocabulary as a whole was extremely poor. but, at the end of his first year, he could already express himself as well any other child from the city. he even told me that he tried to correct, at home, his family�s speech. m any other children, in the same situation as dirceu, quit attending classes after the first months and are illiterate until today. even his brothers did not keep up with the long walks, day after day, and did not frequent the schools. two facts brought me closer to dirceu and helped me to know and like him better. one of them was the whooping cough which i caught. in my case the attacks were very long, accompanied by vomiting at the end. it went on and on for months, without signs of improvement. therefore, my parents took me to a neighboring city, by train to a doctor that was part crazy, part spirit medium and part homeopath, but he cured whooping cough. the doctor recommended to my mother that i daily breathe the dawn air, preferably in the country and in high places. he also recommended a daily shot of cognac with fresh cow�s milk. therefore, we would wake up at four o�clock and we would go by foot toward the farm where dirceu�s father worked, me breathing deeply the fresh morning air (it was summer vacation) and my mother carrying the little bottle of cognac. upon arriving we would go directly to the stable where we would already find the whole souza family milking the cows. my friend would make a point of shooting the milk directly from the udder to the glass with the cognac, just for me. i tried several times to milk the cow like he did, but i could not do it. it seems that the cows knew which people regularly handled it and held back milk from strangers.
after drinking that liquid, at the cow�s body temperature, we used to go up a small hill and sit down on one of the famous �it�s� while i would keep breathing deeply for about half an hour. i do not know whether or not it was by coincidence, but after a month the attacks of whooping cough completely stopped. the only aftereffect of that whooping cough is that i like and drink cognac until this day. once, when i was already in medical school, i related this true story to a professor with the department of infectious diseases and he, although he knew of these methods, told me that there was no scientific reason for them to cure whooping cough, even so the causeandeffect relationship was evident. but the professor recommended that i not prescribe it to anyone because �nowadays there are drugs that cure the sickness�. it is just that the drugs are very expensive and several times, disobeying the professor, i advised mothers to do the same with their sons. before coming back to the city, we stopped at the souza residence at the worker�s quarter on the hacienda. we went in for a little conversation and a cup of coffee. their house was easy to recognize; it stood out because of its cleanliness and because it always looked freshly painted. the inside was also impressive.. it would always smell clean. cinco vidas o confessor 92 dirceu�s mother, dona maria silva souza stood out from the other women of that quarter which were generally messy and even unclean. sometimes the father would be in the house and would converse a lot. he was an extremely simple man but very talkative. he always had a cigarette made out of tobacco rolled in dried corn shucks, either hanging out of his mouth or tucked behind his ear. his speech, to me, was very pleasing to hear and even rather humorous. i remember hearing him say: �maria, my wife, cleans and cooks all the time. she slaves over the fire and washes the clothes. she sweeps the house all day long. but she is a good companion and mother. she has taught little dirceu good manners. i hope your son gets along with him� . then he gave a little laugh looking at my mother. i remember, too, that on sundays, when nobody works on the hacienda, i would see the other workers drinking in the wagon of the peddlers who bring fire water and sundry while, my friend�s father would paint, remodel and decorate his house. at that time, i sometimes felt that it was an injustice that dirceu lived in a more beautiful house than the others. but today, thinking about it objectively, i think that
absolute equality among men is impossible. a lot of them, in their free time, like to drink and leave their houses in bad shape, while others prefer to improve them by working instead of drinking. is there a way to reconcile equal rights with unequal effort? m aria silva souza spoke little. she always had a modest smile and was always cleaning something or offering and serving things for us, to drink or eat. she used to cook delicious sweets, breads and cakes in a clay oven, in addition to various preparations made out of corn. during these visits, from what i remember, i already felt, even at that tender age, that theirs was a poor family but a well-structured one. the mother and father were simple people but hard-working, loving and beloved by their children. other rural families, which i sometimes visited, were the opposite; except for the one good quality of simplicity, which is common to that environment, in the rural zone alcoholism, indolence, family arguments and a lack of hygiene are common. few escape, as the souses did, the traumas of the extreme poverty of the rural laborers in brazil. these explanations are so that the reader does not attribute the recent attitudes of dirceu to any great psychic childhood traumas, which generally occur in dysfunctional or stressed families. even though these things happen in the best of families, such that an outsider who visits the house can't tell, i don't think this was so in the case of our character. the other fact which brought us together was the preparation for our first communion. for those that are not, and never were, catholics, this more or less refers to a series of classes given by an catechism teacher ( generally an over pious devotee of the parish ) to prepare the children to receive god, symbolized by the host given during mass, for the first time. these classes were given on sundays after ten o'clock mass. dirceu would come on foot, as always. we used to attend mass and, afterwards, used to attend catechism class. for me it was boring and i believe that those classes had the effect of alienating me from any type of religious practice because of all the nonsense that was taught and which was obligatory to memorize. in dirceu's mind, the exact opposite occurred; he started to become enchanted with those things which the teacher taught: sins, mysteries, sacraments, dogmas, trinities in one, etc., etc. it seems that that kind of thing perked him up and made his brain function better. after classes, we would have lunch in my house. i felt good about it because i felt that i was ( and i was ) thanking him for all the help that he gave me during my
long bout with the whooping cough. my friend was a very quiet child, neither happy nor unhappy. at cinco vidas o confessor 93 mealtime, for example, he never used to say, like the other children, that " i like this " or " i don't like that." he would eat what he was served and would be satisfied and happy. as far as toys and games are concerned, we can't say that he didn't like them, but he wasn't too attached either. when the adults asked him to stop, he would obey right then, even while the others used to take their time and throw a fit. i think that my mother summed it up the best when she would say: " little dirceu is a very pure child, a little angel." today, after years and years, looking back on those times, i would say that he had a neutral childhood, as he was neutral in many other things until almost the end of his life. during his adolescence, in relation to women and sex, he still maintained his neutrality. i always thought that this division between homosexuals and heterosexuals is incomplete; there are neutrals, too, asexuals, which was his case. he never got involved in those types of things. i remember a few times when we showed him magazines of naked women ( rare at that time: imported ); he would look without much interest and walk away every time without saying anything. sincerely, i didn't know what psychic forces were running around in his head to neutralize the enormous charge of sexual hormones ( at puberty ) that he had. other adolescents, with the same charge of hormones, see sex in everything, all day long, 24 hours a day. but the fact is that he calmly navigated through the turbulent waters of adolescence, and i can swear that he died virgin, in thought, word and deed. the only neutrality that he neutralized was in relation to the catholic religion. that he delved into body and soul, even to the point of the consternation of his friends. his father twice came to ask me, with that simplicity of his, to try to change his mind. we were about 12 years old at the time and he had already mentioned something about becoming a priest several times. it seemed to me that his father preferred to see him working in the fields doing something concrete as a pastor of cattle rather than as something abstract such as a pastor of souls. some of his attitudes, which i kept in my mind from those times, told me clearly that nothing would remove him from that religious furor. his bedroom, in his house on the hacienda, became a true sanctuary. so much was this so that his brother who slept with
him, refused to continue in the middle of so many saints, rosaries, medallions, bibles and so moved to another bedroom and left dirceu alone. his mother once told us that he prayed two hours before he slept, in addition to the praying he did before meals and upon awakening. i practically only did the first communion, or maybe up to the second or third. he rigidly went to communion every sunday and religious holiday. interestingly enough, he didn't need to confess because, in fact, he didn't sin. still, for the person who isn't ( and never was ) catholic, to confess means to seek out a priest, tell him all one's sins, be sorry for them, do a little pennace, then have everything resolved. the soul is then pure and can receive god. dirceu, frankly, never found this business of a catholic sinning at will and afterwards making up for everything with a simple confession to be very licit. it's what everyone did, but he didn't. long walks, loving encounters, teasing, dances, and other potentially sinful situations just weren't a part of his life. although he didn't participate, he didn't censure others, either. he simply preferred to keep praying in church instead of going to the movies to see adult films, to dancing at carnivals, to visiting the " red light district " in town and going to the places where other adolescents of his age typically went. besides this, he frequented religious festivals, processions, novenas and, with much dedication, helped with the social work of the church and fund raising. in all fairness, i must make it clear that all this was conscious option chosen by my cinco vidas o confessor 94 friend. nothing of exaggerated religious sentimentalism or pathological needs for religion. he was physically, psychologically and socially very healthy. he was just enthralled by religion early on, as other things didn't interest him much, he dedicated himself to religion exclusively. g iven all this religious baggage, enter the arrival of the missionaries to ut�, and dirceu's departure to the seminary was easily accomplished. as i believe that i am going to be read by a younger generation not familiar with the catholic religion of that time, i must explain that missionaries, in this case refers to a group of priests that, when the ranks of the priesthood diminished, they would go to various cities of the interior, bringing with them a very intense mystic atmosphere and, according to them, awakening latent vocations in various young men ( by coincidence generally poor and without many other
options ). these poor young men's vocation, without all that pomp and paraphernalia, would have remained asleep " ad eternum." but, in the case of dirceu, there was no need to awaken anything. on the contrary, his propensity was so evident that the very missionaries were taken aback. in this way, at about 14 years of age, i was separated from my great childhood and teenage friend. he went with two other young residents of ut� (these two without any real propensity, in confidential aside) to a seminarian belo horizonte from where he would only leave as an ordained priest. i went to s�o paulo to prepare myself for the entrance exams to med. school. he finished his studies before me and was assigned directly to ut�. there he would stay until death, for almost 20 years. when i returned there to practice, he had already been in the parish for nearly five years and he helped me very much in the beginning. for me it was a pleasure to know that i would see him frequently from then on, and not just through correspondence as we used to do during our school years when we were separated. i always considered, when i was a child, the doctor and the priest of a town as two truly mystical figures, above good and evil. thus, to be a doctor and a priest�s friend was a true demystification of my life, which did me well, as it would to any other person. i will stop for a moment to send a message to children who as i did, put such men on a pedestal; that doctors and priests are men exactly the same as others in the community. do not hang any halos over them. iii the lives of a doctor and of a parish priest, in small towns, in the interior, cross paths cinco vidas o confessor 95 often. even a doctor like me, that does not go to church, always ends up running into the priest: at the hospital, at the houses of terminal patients, at baptisms, marriages, etc. besides all this, i always went whenever i could to the rectory where i would spend hours conversing with father dirceu. to tell the truth , i think i was the only friend he had. other people were sheep of the flock of which he was the pastor. his mother and father had died and his brothers worked and lived in distant districts. in one of these visits to the rectory i asked him to return to our old routine from catechism time and so he would come to have lunch at my house every sunday, just like we used to do in the childhood which we missed. and that is the way it went. it was, in fact, a pleasure to receive him. in spite of his having maintained that typical neutrality of his, which i sometimes took for humility, his presence was pleasant
and the conversation was pleasing and relaxing. i used to tease him with materialistic and anti-religious ideas, but even though he was philosophically armed, he wouldn't accept the challenge. he once in a while threw me a barb along the lines of " thank god you're an atheist " or " at the time of death you will implore me to do the last rites." but he wouldn't let such conversation go any further than that. we would even talk about the sheep in his " flock." he would spend hours telling me about how he had, for example, put a poor young girl on the right track who had been heading towards prostitution or a young boy who had been headed for petty thievery and who would have ended up arrested or dead had he not been oriented. or even about the comfort he had brought to the sick, some of whom were my patients. he spoke much about the old men in the retirement home, whom he knew on a one-to-one basis, or about the baptisms or marriages that he performed " pro bono " because the people involved couldn't give even a minimum donation. actually, i would say that father dirceu was extremely zealous and competent he took care of people on an individual basis. he didn't get much involved much with community problems on a political or economic level; he cared for the body and soul of the parishioners, one by one, with love and affection, but didn't get involved with problems on a city-wide scale. it was, more or less, how the church is. there are priests who are more theoretical, with their beautiful habits, that are always found in air-conditioned and finelycarpeted rooms, giving their opinions about everything, giving speeches, holding meetings, traveling, inventing new theologies and destroying others. but at the moment of truth, such as when it is necessary to attend the sick at dawn or to help workers build their houses with their own hands, walk among the poor, in other words, to work in the real sense of the word, those other priests left such things to the father dirceu's of the world. and it's a good thing that there are men like father dirceu in this world, even though they are becoming ever more rare. several times i told my friend that he should abandon such a posture and dedicate himself more to affairs on a larger scale. he could even move up in life, so to speak, and acquire a few fringe benefits. but in order to achieve higher goals, he would have to renounce that humility and neutrality of his; there seemed to be some kind of mental block in his mind when it came to this. we passed several years in that routine. i attended patient after patient and he attended
parishioner after parishioner. it's true that we would sometimes have little disagreements, most of the time brought about by my desire to irritate him because of his intense religiosity. i remember that he once avoided me for three months when, one easter, he cinco vidas o confessor 96 wanted me to take communion along with the nuns and the other hospital workers in the very hospital chapel. i answered him in a joking way by saying: " you want me to eat the body of christ and turn me into a theosophical cannibal, but you're not going to do it". he stopped a minute to think, and made a ugly face. " don't exaggerate in the jokes " , and left right away. the figure of father dirceu seemed to be totally assimilated by the town. one could not imagine ut� (now called rockl�ndia) without this priest running from here to there, daily, to the houses, haciendas, leading mass, blessing the dead, baptizing, performing marriage ceremonies and working. the politicians loved him because he never challenged them; he never helped but he never go in their way. the farmers, the businessmen and the small industrialists liked his conduct very much because he never directly encouraged the demands of the workers, as was happening in many other towns like we read and heard about in the media. sometimes dirceu would complain to me that there was no money for the good works of the church and for the town�s old folk�s home. however he preferred to go personally to the old folk�s home, for example, roll up his sleeves, and help to fix things up together with a few moribund elderly. he preferred this to bothering politicians or organizing festivals or raffles to rise money to pay for the remodeling. that was just the kind of man he was. of the few times he spoke to me about himself, one of them deserves to be related because i think it has a relationship with the later situation of his life. one sunday, we had just finished lunch and were having a drink, he was having coffee and i a shot of cognac (my old vice from the time of my whooping cough). my wife and sons had gone to a party at school. then, all of a sudden, he told me: -- i never sinned in my life. i am tired of having confessions, thousands and thousands of them. i have come to the point of cataloging the sins that i have heard in our town. looking back on my life, i see that i have not committed any of them. you might find this a theoretical and practical impossibility, but it is not. here i am as living proof. --but not even a small sin? i asked. --nothing. it even scares me. i have already received confession from various
priests like me, but all of them have sinned, sometimes severely. if you only knew. --tell me, tell me. thus you will commit your first sinful act. afterwards it will become easier and easier to commit others. --don�t joke around, you lost atheist. maybe my only sin has been to wish that forgiveness after confession were not possible. this makes catholic life very comfortable. it�s a matter of sinning, confessing, being forgiven, sinning again and repeating the whole process. a few times, i almost denied forgiveness to a person that, for the eighth time, come to me to confess the same sin. that conversation shook me, as it would shake any mortal sinner, as practically all men are. would it be possible for a human being to exist that, by an adult age had never sinned? and that according to the rigid standards of the catholic church? would my friend�s case be unique in the world? knowing dirceu as i do, and after rolling in bed all night asking myself questions, i said to myself: --�it�s true. that guy is immaculate. � i turned on my side and slept deeply for a few hours. the next morning, just after the sun rose, i was already in front of the rectory ringing the cinco vidas o confessor 97 doorbell. my friend opened the door and asked: --�what�s up? some extremely urgent last rites?� --�no, no, nothing like that. i want to see the catalogue of sins which you referred to last night. i always wanted a list like that. could i make a xerox copy? � -" friend, you always joke about the serious side of religion. yesterday i told you about the list in the hope that you would give me some scientific explanation of the fact that i never sinned. i don't think that faith by itself explains the total lack of sin and even the will to sin. the brain is a very complex structure. who knows, it might be an sickness already explained in the past." -" sincerely, i have never heard talk of such an sickness before. and really, i don't even think it is a sickness. if it were i would root for it to be contagious and to spread as an intense epidemic to all humanity. how wonderful it would be. but i will consult a neurologist, my friend. today itself i will telephone and i'll tell you about it later. and about the list?" i remembered. -" here it is " he said, opening a drawer and pulling out a few sheets of paper from inside the desk and handing it over to me. it was a list in alphabetic order written carefully, in capital letters, in which there were noted many sins: adultery, envy, greed, gluttony, hatred, homosexualism, robbery, sundry
sexual perversions, and untruthfulness, etc, etc. -" it's not possible that in this little town so many sins could exist " i said, shocked. -" trade places with me for a week in the confessionary and you will change your mind. the worst part is that the same sins are committed by the same person time and time again, and i am always forgiving them. but they always come back with the same sins and the same old faces. but let's forget about the list. i, of course, am not going to lend it to you. it's only for my personal use. anyone who thinks a little about humanity can make a bigger list than this. now, have a cup of coffee and attend to your patients. and also tell your neurologist friend that, at times, i have had incredible headaches, since i was a child, but that resting and praying they go away in about half an hour. bye." that afternoon i made a long distance call to s�o paulo. dr. dalton, a neurosurgeon, a fellow of the university hospital, laughed on the other side of the line. he said " the human brain is, in fact, an illustrious unknown. but this anomaly, the inability to sin has never been described. this comes to the extremes of the deepest psychopathology and i would not know to shine any light on it. now, as far as the headaches are concerned, i suggest that your friend the priest come to s�o paulo and i will be at his disposition." i related all this to dirceu. he agreed to make an appointment, but even after various months had passed, this did not happen. i must say that, since he returned to ut� from his ordination, he never again left the district. about a year after the telephone conversation, in october, we had some news. i remember well that month because it was getting near the day of the dead, a local catholic holiday, which falls on november 2nd. every year about this time, the father got a few poor families together and spent several days with them in the cemetery helping them to fix up their family gravesites. it was hard, manual labor. i was in my office one afternoon on a sunny, hot day when i heard loud voices in the waiting room. as i went out to see what was the matter, one of the women who was helping the father to fix up the cemetery said in an afflicted tone of voice: " doctor, come running. father dirceu fainted and is on the ground in the cemetery. i don't even know if he's alive." cinco vidas o confessor 98 i took off like a bullet and, thanks to the fact that it was a small town, i got there in five minutes. my friend was there lying down under a tree, sprinkled with plaster and cement. around him were various persons, some crying, others pacing back and forth, shocked, and
yet others praying on their knees. a quick examination led me to believe that he had had an epileptic attack that had already stopped, because i did not see any more muscular contractions. but the bitten tongue, smell of urine in his clothing and that panting-type of breathing left no doubt. we carried him to the back seat of my car and one of the faithful drove full speed to the hospital while i made sure that the position of his head and tongue didn't interfere with his breathing. next morning, after medication, he was already out of the hospital with the expressed recommendation of bedrest and an appointment at my office in the afternoon for a " serious talk." he showed up at the office at exactly the appointed time. i performed a long and detailed physical examination. afterwards i fell into my chair in such a way that the priest realized that it was something serious. -" dirceu," i said. -" today is wednesday. the day after tomorrow, on friday, you and i are going to s�o paulo to consult with that neurologist about that matter which we already discussed." -" but what's up? tell me something, at least." -" you have some kind of intra-cranial problem, which provoked a discrete swelling in the brain and a convulsion. it might not be anything too serious, by the same token, it might be something severe. we need to completely clear this up, otherwise, if we don't, we may be taking chances with your life." -" i want to stay in our city and be treated right here, as would be done with any other average man. i detest privileges." -" if you were any other," i said to him, -" i would make a complete report of the case and i would send it to s�o paulo, just like i'm doing with you. you know that our diagnostic and therapeutic resources here are very limited. the only difference is that i'm going with you because i'm your friend. and to have a friend like me is no privilege. it's an arduous journey. but enough of this small talk. you're going even if you have to be tied. bye." and i sent him on his way as i motioned for the next patient. my telephone never rang so much. everyone wanted to know about the priest. the judge, the mayor, the district attorney, the chief of police, the bishop of the diocese, all the devotees, the protestant pastors, businessmen, workers, students, all called me. everybody wanted to know about the severity of the case and offered their help. in the hospital, during my visits to the infirmary, the patients, even those which were bad-off themselves, wanted to know about the priest's health. i realized by these spontaneous offers, that dirceu lived among the poor, shared
with them the anguish and hopes, and comforted them. he was one of them who became a priest. at this point he also walked among the rich, but he didn't become enthralled by them. he detested bourgeois habits and phoney airs. and the reciprocation was true blue. he loved the poor and tolerated the rich. the poor loved him and the rich tolerated him. on friday, as we had arranged, i parked the car at seven o' clock on the dot in front of the rectory. a little crowd had already gathered, mostly the devotees and rural workers. every last one of them had a serious countenance. the priest then came out with a small suitcase and put it in the car. he said good-bye with the following words: " brothers, don't cry and don't worry about me. just pray that i might be strong and i will come back later to our community. your pastor won't be away cinco vidas o confessor 99 for long, god willing. know that he expressed his will through me. both you and i should consider my suffering as a natural complement to the suffering of christ, who gave all, as a man, in benefit of the church. after saying this and remaining profoundly silent for a moment or two, he saw an old laborer quietly sobbing; he embraced him and held his head against his black habit and said: " how is this? crying at your age?" those present understood this gesture better than the previous words. everyone relaxed and we were able to leave with most people smiling. cinco vidas o confessor 100 iv dirceu, after all those years without leaving ut�, seemed like a fish out of water the whole way. i had the impression that, were he offered the papacy, he would certainly say " only if the vatican moved to ut�." and he would really mean it. that was his reality. in this way, he grouched during the whole trip and asked me to help keep his stay in s�o paulo short. -" i practice medicine " i told him, -" and sometimes we have to proceed slowly in both the diagnosis and treatment. the practice of miracles is your sector. it's simply a matter of giving a blessing or two and everything's instantly resolved, isn't it?" but he didn't get involved in these discussions which tended towards philosophy. so we changed the topics for lighter subjects until we got off the highway and ended up in some of the worst traffic in the world: s�o paulo's. by the time we got to the university hospital we had spent almost as much time in the city as we had on the highway. the traffic jams,
general irritability, diesel smell, and finally, the lack of a parking space once we got there topped it off. but, in order to consult the best neurosurgeon in brazil,or maybe in all of south america, it was worth the sacrifice. dr. dalton had been my classmate, and he was the best student in the class, from the first to the last year. on the written tests there were even fights among the students to be able to sit near him in order to cheat. like all good students, he opted for the most difficult specialization- neurosurgery. i, since the beginning, knew that he would be the best. we were good friends during almost nine years and i was anxious and happy at the same time to know that i was going to see him, even under the unfavorable circumstances. he possessed one of the most beautiful offices in the capital, and it was situated in one of the nicest areas. but as we had made an appointment in the hospital where he was a teacher, that is where we were. after circling around a few times we found a parking spot, and another little drama began. the doorman at the principle entrance stopped us saying that it was prohibited to enter without authorization, and sent us to the registration desk. there, we stagnated in a line in which we witnessed various personal dramas. it had to do with various ill persons with the right to be attended, who had been sent to the wrong places. others needed urgent attention, but they were being given appointments only for months later. these are the realities of our public health care that all brazilian people are familiar with; mainly the poor. father dirceu witnessed all this unhappily, with an air of helplessness, as if he were confronting a monster. in fact, it truly was a monster: over population, poverty, and people needing services which were woefully inadequate, all the while running the risk of further complications , even death, by not being attended. when our turn came, i identified myself and gave a quick explanation. the young clerk probably didn't like doctors and priests even less. -" dr. dalton cannot attend personal appointments in the hospital building." she said coarsely. - " that's what the walk-in clinic is for. i can make an appointment for neurosurgery in three months from now. if you have any problem before this time, go to the emergency room. but only if it were urgent, right." -" don't worry about it," i said. " in the afternoon we will go to his private office." i walked off and pulled my friend behind me, who was already in the process of making cinco vidas o confessor 101
an appointment for three months from now with a doctor he didn't know anything about. that doctor would have attended him in three minutes, and would have asked for a handful of exams ( which would have taken a few more months to get done ). by then, he would have had another attack and would have died like many other brazilians, for a lack of efficient and quick service. we went to a side door of the hospital; i had lived there for nine years, and i was familiar with the whole labyrinth like the palm of my hand. luckily, the same doorman from my student days was there. -" hello, severino, " i said as i approached. -" it's been a long time. it must be ten years that we haven't seen each other. how's everything going?" -" gees, doctor, it sure has been. you've been working out in the country. it's the same ol' rat race here." i then felt that there would be no problem to enter, and in fact, after five minutes of shooting the breeze, we were already heading for neurosurgery clinic. that hospital building is a real maze, put together over the long run of many years, with various modifications over the original project. i stood thinking about what it must be like for those poor country workers, illiterate, who were even sent there by me, to pass through that manifold and scary monstrosity. i almost felt that it would be more humane let them die, with less technical resources, in their own habitat, than submit them to that mess. dalton was there as we had arranged. he embraced me with so much feeling and enthusiasm that i resolved to not tell him about our little misunderstanding at the entrance so as not to ruin the emotion of the moment. after about fifteen minutes of going over old times, we got down to business. he conducted a minute interrogation, a general examination and then a specific one, taking about an hour and fifteen minutes in all. finally he announced, as we already suspected, that it was an intracranial tumor; he could only add that it was probably at the frontal lobe of the brain. without a doubt, it was a case for admittance for urgent exams and probably surgery, within a week at most. -� dalton,� i said. � if we were to depend on social services, the most we could hope for would be an appointment for a few months from now with some resident of neurology. maybe we ourselves will have to have dirceu admitted in another hospital. -� it seems as if you never worked here � dalton said. � you forgot about � in the interest of science.� here, take this. this will take care of that idiotic bureaucracy.� in fact, as it was a university hospital, there was, besides the social services section, another part dedicated to research and a professor could sign a paper stating that
a given patient was of � scientific interest � for research or for teaching. that would take care of lines, selection by social services, available beds and other obstacles. this was an artificial way created by interested parties to admit relatives and close associates ahead of the poor whom were, in fact, also needy. hardly ever was the case truly of scientific interest. however, in the interest of my friend�s life, i wasn�t going to take those other points into serious consideration, nor was i going to let him in on it. we went back to the same youth who had attended us at the receptionist�s desk; i left dirceu seated at a certain distance, and took advantage of the opportunity to flash a grin because of the hole i made in the bureaucratic wall she had put up. although she complained under her breath, she was obligated to fill out all the paper work, arrange for a bed and take care of another infinite variety of stupid little things. as i walked away with everything ready, i could still hear her say to a passing colleague: � the church is so rich. it has so much gold but it sends its priests to be treated in the hospitals of the poor. if he were a cardinal he would be sent to cinco vidas o confessor 102 the united states.� it was a half truth and therefore, a half lie. the priests do have certain protection from the catholic church, and all the cardinals don�t get to go abroad for expensive health treatments at the vatican�s cost. at any rate, we went up again and turned in the paper work to the head nurse. by at the end of the afternoon on that friday dirceu was already admitted in the neurosurgery ward together with another five patients. all of them were poor and less cultured than him, yet this was not a problem for him as they corresponded to his very origins and to which he was already accustomed to working with. i spoke with the doctor on duty about dalton�s intentions in this case and he said that the very next morning he would initiate a series of exams: tomographs, angiographs, an examination of brain fluids, and exams of his blood, urine and feces, etc, etc. maybe the presurgery studies would take a week, the case would be discussed on thursday and surgery scheduled for friday morning. i went back to dirceu, explained everything to him, and left him in the hands of the doctors. in the hands of god he always had been. i promised him that, at the moment of the operation, were it finally indicated, i would be present to give moral support. -� even though you don�t pray, your presence could substitute the prayers that i
would like you to do for me � he said. -� but for right now, leave. i don�t want you to see me crying.� -� good-bye, my priestly friend. you have enough back bone to bear things ten times worse than this before crying.� that week was hectic in rocklandia, principally in the main church and in the rectory. they started up �round the clock prayer, such that there would always be someone on bended knee in front of the principal altar, praying until the father�s return. at the rectory, some farm workers stuck a crude wooden cross in the ground. it was common to hear various devotees doing one rosary after the other in front of it. the number of vows and promises to god, what to speak of voodoo rituals in favor of the priest, was enormous. i maintained daily telephone contact with dalton, and i had to transmit the news dozens and even hundreds of times a day for the civil, military and religious authorities, as well as for citizens of every class, for fellow doctors and for the nuns at the hospital. in this way, i felt great relief when, on the next friday, at dawn, i left for s�o paulo. the surgery would start at eight o�clock and would be, as expected, a removal of the frontal-lobe brain tumor. i managed to gain entrance to the operating room a few minutes before the anesthesia was administered. my friend was under the effects of pre-anesthesia sedation, but even so, he showed great relief and relaxed a bit upon seeing me. if his head weren�t completely shaved, he would have seemed like jesus on the cross- his arms, perpendicular to his body, fastened to fixed supports on the surgery table, and semi-nude body, gave that impression. by the way, every patient being operated upon must have that appearance. i have already seen thousands of people in that position, but i had never connected any of them to the crucifixion in my mind. and i don�t really know why that occurred to me at that time. the surgical team of dr. dalton was, in fact, sensational. it was like a true maestro conducting a super-tuned orchestra. it seemed that the fine-tuning was a the award of many years of training. the operation went smoothly. the patient went to the neurosurgery � post op � and i went with the surgeon to have a cup of coffee in his office. -�as you saw,� he said, � it was a benign tumor in the beginning that was crowding the cinco vidas o confessor 103 frontal cerebral lobe. it probably grew slowly over several years, maybe even since childhood. the problem is that the crowded cells around the tumor became, in a
small area, cancerous. the radical removal of these was impossible, as you saw, and some remain. they will certainly multiply but further surgery will not be feasible.� -� and as far as the survival of the patient?� i asked. -� we can�t speak of cure, of course; there will be initial improvement with the cerebral decompression due to the removal of the whole benign tumor and part of the malignant one. the risk of convulsions will diminish sharply. the survival will depend on how long the father�s immunological system, along with the help of medication and possibly radio therapy, can block the growth of that which was impossible to remove. from my experience, i would say that he might live about two years, three at most, with a reasonable quality of life. at the end, symptoms such as swelling will probably manifest more and more, then coma and then death.� -� remember that time i spoke to you on the phone about a � blockage of the will to sin � and the headaches? you didn�t know about this tumor yet. has your opinion changed now?� -� no, no it hasn�t. the headaches may be explained by the tumor. as far as those strange, even bizarre psychological symptoms are concerned, it�s like i said. the day will come, no doubt, when we will be able to explain the entire cerebral functioning purely through physics. we have already taken enormous steps in this regard, but we haven�t gotten to the end of the road. when we get there, it will be the end of psychology, psychopathology, the soul, the spirit, and of various other supernatural suppositions. but they are more natural � than we imagine in our vain philosophy.� until that time, my friend, i won�t be able to explain anything to you. perhaps that colleague of ours, you remember, that guy that was half crazy himself that studied psychiatry, can explain it better. i can only add that that frontal lobe area is intimately connected with the personality and behavior of a person. but to what degree the mechanical compression of the frontal lobe, which the father has, will effect his sentimental and affectionate life, as well as his relationship with his surroundings, i cannot say. if we are alive about forty years from now, i believe that i will have an answer for you. make an appointment for forty years from now, all right?� -� you�re still a joker, but what you are saying makes a lot of sense. my fear is that the father, with the compression relieved, will become a sinner.� -� given the amount of time he has left, that might not be a bad idea. there are a few sins which bring us great pleasure, as you well know, isn�t that right?� -� well, thank you for the coffee and for everything, dalton. besides being a great neurosurgeon, you are a great friend. i�m going to make you an honorary citizen of
rocklandia. tomorrow and sunday i will still be in s�o paulo, after that, i will only come back next friday.� saturday morning dirceu was fine, though only half conscious. he was still surrounded by what i like to call the � christmas tree effect,� with cardiac monitoring, probes of all kinds, and intravenous feeding, etc, hanging from stands. besides that, a noticeable and enormous bandage was wrapped around his head, almost like a hindu turban. there was still a tube through his trachea, hooked up to a breathing machine, such that even though i noticed that he recognized me, he couldn�t say anything. on sunday there was improvement of his general condition, but the paraphernalia of all those tubes and connections continued, such that all i did was take a quick look, say something and clasp his hand. i left and went right away to the interior of the state, only learning about him cinco vidas o confessor 104 during the week by telephone. the religious marathon continued in rocklandia. the had already broken several world records for praying and religious processions. the cross in front of the rectory had already become as dark as the kaba of the muslims, from so much kissing and handling by the faithful, just like that rock in mecca. friday at dawn, which was becoming routine, i said good-bye to that holy town and i went to the state capital again. dirceu was still in post op because he had had a few minor clinical problems, but they had impeded his transfer to the main ward. before seeing him i exchanged greetings and a few words with dalton. my car was full of presents for him sent by the residents of the priest�s parish, on whom he had operated so successfully. there were cheeses, home made sweets, fruits, hand-toasted coffee and various other specialties of the region. i made arrangements to drop it all off at his house, then he told me: -� it seems you were right. i didn�t know your friend very well, but i can swear that there have been psychological changes in him. and from what i can see, for the better. i have conversed quite a bit with the father. it seems that, from that humility of before, a new persona has bloomed; self-assured, captivating, i would even say illuminated, like he himself said the other day. go and have a talk with him. you will perceive the difference.� i went into post-op and, upon seeing him already propped up, without the �christmas tree effect� around him, i smiled and ran to sit next to his bed. -�hello, doctor�, he said. �how good it is to see you. i would like to have
you beside me 24 hours a day. in spite of being a doctor you can not imagine the loneliness that one experiences in post-op. it did me a lot of good to see and hear you after i awoke from that anesthesia. the doctors and nurses here are great, but only in relation to the technical part such as the machines, band-aids, exams, etc. but in no way did they suspect that what i really wanted were those few words that you knew so well to say while you shook my hand. they had more good effect than this whole lot of remedies that i am taking�. there was a certain shortness of breath and he stopped talking. -�as soon as you get your release�, i calmly said, trying to relax him -�you are going to have to tell me all about the mental drama through which a patient passes in this circumstances. i promise to write an article for doctors and nurses to see if we can not help to improve the post-op process. but tell me how you are doing. i see you are talking more and better than before. may be they loosened up the part of your brain which deals with speech?� i noticed that he did not react to my barb, not even a bit, and i noticed that his glance was tranquil and comforting, such that he relaxed me and came me down. as soon as he caught his breath, he spoke again: -�friend, do you remember when we spoke about persons that become illuminated all of the sudden because some highly significant event in their lives occurred, or because of intense, unexpected suffering, or, even, in a tranquil way, such as happened with buddha while sitting under a tree? neither one of us really believed in that, did we? well, today i can confirm, by personal experience that it can really happen. and it happened with me. what has happened over the last month, and especially during the last week, has taught me more than i learn in my entire life. i skipped several steps on my way to perfection, through suffering. today i have seen life with such clairvoyance that i consider myself �illuminated�. from now until my death i am going to take my every steps based on this new vision that i have. read the underlined sentences in this little book i am now reading, cinco vidas o confessor 105 on page 42.� the book, on the small beside table, did not fit into the rest of the environment, so it was easy to pick out. upon opening it to the indicate page, the following sentences were underlined: �...every truly great step forward, in the growth of the spirit, demands the complete collapse of the self, the touching of immense dangers, death in the darkness, a
transformation. but who comes after is reborn, a new and more real man. maybe it does not happen this way with all men. in fact, only with a few. broken and alone, becoming completely vulnerable, without being able to take any visible help, one becomes compelled along this all rapid road which is suffering. in spite of this, at end of the test, greater happiness follows!� something very important in his brain had been, in fact, blocked by that tumor that was removed ( according to my theory ), and was now completely liberated. or according to the theory of the priest himself, would it have been the very suffering which was the liberating and illuminating force? the truth was that i was in front of a new man; my old friend was almost unrecognizable in him. those few words that he had said to me without stopping ( had it not been for the lack of air ) and the continuation of thought in the underlined sentences were totally different from what i expected to hear from the old dirceu. i confess, although i admit a bit surprised, that i had preferred, in fact, that he would come out of that neutrality and humility which had characterised him. he, as if he were reading my thoughts, continued: � i know that you must be thinking that i am crazy or getting that way. my friend, i assure you that i am more lucid than ever. and it is a practical lucidity. you have to see it at work in ut� and maybe in many other places, too.� having said this, he turned over and slept. so tranquil and relaxed that it even bothered me. on the next day of my visit, the priest was released from post-op and after 12 days, he was released from the hospital. for two months he would have to do outpatient radio therapy and quimiotherapy. therefore, he situated himself in a little boarding house near the hospital. there, he passed 60 days completely enclosed, only leaving for the necessary therapy in order to improve the prognosis of his condition. afterwards, he spent one more month under dalton�s supervision. his hair grew back a little, improving his appearance. i, and the whole town, became very happy when he called me saying that we could go and pick him up, as i had promised. i went to get him, received instructions on his care from dalton, and we went back to ut�. the trip back, ( almost three hours long ), i swear i took in the company of a new man. he was not the same dirceu i had brought coming the other way a few months back. if today he were offered the post of church pope he would go to rome and would assume
the position, leaving everyone with their jaws agape, by his eloquence, clairvoyance and culture. that person who had passed the last twenty-some years holed up in ut�, without being interested in other things, besides his priestly life and the spiritual life of the parishioners, did not exist anymore. we now had a man openly discussing philosophy, ( mostly with me ), politics, economy, religion, etc., and with the idea of shocking any conservative christian that he might come across ( like he had been ). my theory that he had had a blockage in his brain due to the benign tumor and, in the cinco vidas o confessor 106 ultimate issue, mixed ( benign and malignant ), could be, in fact, a kind of practical joke of a materialistic doctor that wants to explain everything through physics today ( not several years from now as dalton wanted to ). it was probably the very shock of the intense suffering and of the vision of the grim reaper he had had when he was alone that changed him. unfortunately, it seems that a mortal illness ( or its equivalent ) is necessary to teach us that we don�t have to be so timid and so that we live our lives fully. before facing the grim reaper inn the loneliness of a hospital bed in post-op, it would be hard for any of us not to value material things and life itself. also, it would be hard for us to not fear losing the material and superficial things that surround us. this was not exactly the case with father dirceu. his problem, it seems, was fear of fighting, fear of making a mistake and a life gripped by the fear of sinning. the vision of the grim reaper was able to free him of all that. cinco vidas o confessor 107 v our entrance into rockland was, shall we say, triumphal. on the highway as we approached the city limits, there were already some cars waiting for us. one of them took the lead, followed next by us and then the other vehicles, even truck full of farm workers, most of them honking constantly. we formed a caravan which paraded through the whole city. the pedestrians stopped, some applauded the father, others wanted to touch him, while still others asked for his blessings. dirceu, who would have felt uncomfortable with all that a while back, at the moment was loving it. he even looked like a politician in the middle of his electorate, saying beautiful words to all, kissing the children through the window of the car and blessing by crossing his heart towards the persons that asked. there were more
simple people that got down on bended knee as he passed. i, at the time, attributed this to the homecoming spirit, and to the sensation of seeing again a person whom was supposed to pass away in s�o paulo. there was also that sense of identification that the poor had with the priest, even in sickness, considering the victory theirs, too, although most knew that it was a temporary victory. the parading caravan deliberately passed through the streets over which banners had been placed making reference to the return of the priest. i remember a few of them: " the priest is another christ, the flock recovers its pastor,' viva,' welcome to your community, father dirceu " and " glory be to our lord jesus for conserving him among us." after all that we stopped at the rectory and my friend, who should have been tired out from the trip and the reception, displayed out-of-the-ordinary energy. he got out of the car, kissed the earth, as is the papal custom upon visiting a foreign country, all under the watchful eye of a small crowd. then, in front of the black cross, on the rectory wall which separates the lawn from the sidewalk, he made a speech. not a sermon, but a real speech, without having much to say about evangelism or sacred things. from a distance, still within the car i thought: " this town will never be the same again." and we heard the discourse from the person who used to be mute on such subjects. " to our christian community and to all the inhabitants of this city my sincere thanks for the reception. my kissing the earth is a kiss on the face of each and every one of you, symbolically, of course. from now on i will thank this affection with all my efforts, working for the betterment of the brazilian society. starting here, we will try to construct a perfect model of social cooperation, without inequality, without injustice, without misery, without exploitation and without unemployment or substandard employment. my thanks to all, god bless." s aying this, he retired to the interior of the rectory and the crowd slowly dispersed. in the following days, as i expected, the priest made news again. the authorities, the businessmen, the professionals ( among them, me ), and representatives of all walks of life received a " delicate " invitation ( it was just the opposite ). " on the 25th, next friday at 8:00 p.m., the center for the upliftment of the poor, c.u.p., will be founded in the city of rockland by father dirceu de souza, in the main church. attendance and monetary contributions obligatory." i was beginning to enjoy myself and to enjoy the situation, but that wasn't the case with
cinco vidas o confessor 108 the " bourgeois " of the town. in passing, i began to overhear: " could it be that the priest has gone red? now that he's old, is he going to side with the poor? he was doing so well up until now. if he gets involved in these things, we will have him transferred out of here. no doubt about it. politics in the church, no way." on the day of the meeting, i was there, at the time that the invitation stipulated. the founding ceremony took place in a small amphitheater, set up alongside the sacristy with about sixty seats. it was just me and five other people. we waited as we chatted informally with the priest, until 8:30. then father dirceu stood up on the small podium and quickly spoke: " the c.u.p. of rocklandia is founded. you can't distinguish the size of a tree by its seed. i tell thee that this seed which we plant today is of a full and fruitful tree. in the coming meetings, i guarantee you all that this room will not be big enough to accommodate all which come to contribute. the center will need an ample headquarters for child care, schools, gardens, technical courses, theaters, movies, out clinics, et cetera. it will function as an area of recreation, a place of learning and as a place for the improvement of the poor and miserable. they will be lifted out of poverty through instruction, through wholesome association, through proper diet, through the practice of proper personal and communal hygiene, as well as through other things that will come about. we are open to suggestions. our intention is that, in the future, each town in the interior like ours will have a center such as ours." -" given the number of those present today," i said, " an atheist, a representative of the labor union, a representative of commercial workers, a representative of bank workers and an ex-president of the soccer club, i think you are being very optimistic, my friend. is there going to be some miracle? will the money fall like manna�s bread from heaven? i came ready to help, but i'm not any don quixote fighting for unattainable ideals. i don't see, at least not at the moment, fertile land for the germination of this seed to which you referred." -" you will be able to help attending in the out clinic of the center, one morning or one afternoon each week " dirceu continued on. " as far as money is concerned, i know it will come. the city has many sinners who are very willing to repent and collaborate. the c.u.p. of rockland is founded." i have drawn up articles of incorporation, and you all can sign as
founders. a new meeting is scheduled for the next 25th, a month from now, at this same place, at the same time." we spoke a little more, then we left. all had disbelief stamped on the faces. they all said that times were hard and that nobody would be willing to collaborate with money. but dirceu was so tranquil and sure that it seemed as if he had miraculous powers in order to bring it all about. without saying anything, he seemed to transmit that feeling. that night it took me a long time to fall asleep. does my friend the father know what he is doing? he wouldn't be having illusions of grandeur and losing a sense of reality, would he? with such little time left to live is he going to waste it on impractical projects? how would it be possible to make sinners collaborate with humanitarian projects, donating part of their possessions? how? how? hein? can it be possible? but right at dawn i sat up in bed and laughed so hard that i woke up my wife. -" our city is going very well, " she said. " the priest is already crazy and the town doctor is going right behind him." i laughed for about ten minutes. it just couldn't be! it would be great if it could. i felt so good that i laid down and slept great, in a way that i hadn't for a long time. in the following days, i anxiously waited for some sign that would confirm to me what i suspected. three days later, a few signs appeared which indicated that i was right. one of cinco vidas o confessor 109 the city gossips ( a taxi driver who hears and knows everything ) told me that he saw mrs. clotilde, the biggest devotee of the town, leave the church running, as pale as a sheet of white paper, and go straight home a few blocks away. right afterwards, no less than the mayor, the chief of police, and her own husband, who was the biggest businessman in the region, appeared at her home. -" do you know what she told them, doctor?" the driver said. -" she said that the priest advised her not to make confession with him anymore because he had the intention of publishing a book, within a year or two, telling about all the sins, along with the names of the sinners, whose confessions he had heard in the last twenty years. but i don't believe it. a priest wouldn't do that. didn't he swear when he was ordained that he would keep such things secret?" i asked him to stop the taxi right there. i paid him. i quick-stepped it all the way to the rectory. it seemed surrealistic but what i suspected that early morning was really happening.
i quickly entered the living room and dirceu appeared right away. because of my paleness and distraught appearance, he told me right off: " calm down. everything is well planned out. i will not lose control of the situation. have a seat and i'll make some coffee for us and for a few visitors who will come soon. they just called and made an urgent appointment with me. after about fifteen minutes the mayor, the chief of police, and a lawyer who was with the bar association came in. the father seated them around the table where i already was, served them coffee, sat at the head of the table as if he were going to direct things ( and he did ) and said: -" i am at your service. what's up that is so urgent?" the mayor spoke first: -" first of all, father dirceu, either you have gone crazy or the crazy one is mrs. clotilde. what she told us is unbelievable. it seems like a bad joke." the father shot back: - " neither of the two alternatives is correct, but a third one is. nobody is crazy. i did tell her that, as i have only two or three years of life left, i am going to leave a book ready with a description of the principal and most serious sins committed in a small country town, where everybody thinks nothing happens. i have the intention of publishing it at the end of my time. i will also include the complete name of the sinner that doesn't repent by that time. i have a publisher in sao paulo that is willing to pay a large sum for the copyrights. thus i will be able to leave this money for the c.u.p. of rocklandia." there was a dead silence in the room, which lasted several minutes. i considered myself a privileged spectator of a scene worthy of the greatest authors of suspense, not only because of its intensity, but because of its unpredictable nature. -" i don't believe what i am hearing," said the lawyer. " the good priest certainly knows that he is committing a crime and that he could be arrested for this." -" i am only committing the intention of doing something that i don't even know is criminal ," dirceu said with extreme tranquility and assurance. -" and no one goes to jail because of intentions, isn't that right? it could be that tomorrow, i won't have such nasty intentions. in fact, that is what i'll do. i hereby communicate to you all that i no longer have the intention of pointing out the sinners of rocklandia. in that way, you can't say that i am even making use of the intention of blackmailing anyone. all right? that is all i have to say." i risked a little joke to break the tension: � lucky thing that i only confessed two or three times in my whole life, and that was when i was eight, and it wasn�t with father dirceu.�
cinco vidas o confessor 110 the joke had the opposite effect because this wasn�t so in the case of the mayor and the lawyer, who liked to be seen taking communion on sundays by the voters and clients. they both became more pallid than before. the scene was set. the city gossips never talked so much. a meeting was called the next day for the principal citizens of the city, including the bishop of the diocese. in that tumultuous meeting various conclusions and resolutions were arrived at: a. that the attitude of the father was extremely damaging to the church. b. the bishop should quickly transfer him from the city and at once bring about his excommunication, with immediate loss of permission to exercise priestly duties. c. the lawyer from the bar should petition for a warrant to apprehend the book and to investigate the possibility of lawsuits against the priest. d. various other more simple measures were suggested and approved. for example, the rapid procurement of a new priest to the parish, a free bus for the faithful that wanted to confess in a neighboring city on saturdays, paid by the municipality, and a few more silly things. father dirceu continued his daily routine. the poor, among whom he worked all day long, had nothing to hide. their lives, sometimes miserable, didn�t allow for hiding sins, due to the promiscuity in which they lived. when the bishop called, two days later, i was in the rectory, which i had come to frequent more regularly; i was, in truth, a lot more tense over the situation than father dirceu. the bishop, from the other end of the line, informed him that he would be transferred to another parish within ten days. the father asked who had authorized the transfer, and from his expression i could see that it had been a high ranking member of the church hierarchy. -� and if this very same high ranking person were to cancel the transfer � the priest asked? the bishop responded: - � i could only obey.� at this point i almost had my ear up against the phone, though against the will of my friend. he continued: - � then hold on because he will cancel. god be with our bishop, bye.� i found the attitude of the bishop rather condemnable. in spite of the fact that it was a serious situation for the church ( i was getting a kick out of it ), he should have stuck up for his subordinate and not cede to the pressure of politicians and laymen. right after the bishop hung up dirceu called the high ranking church official. i continued with the phone glued to my ear. -� hello, brother � dirceu said. -�i wanted to humbly ask you to cancel my
transfer from rockland. i have a mission to finish here, and i cannot be away.� -� dirceu, yours is a serious case � the voice on the other end said. -� you want to use a sacred sacrament as the theme of a book. or as whatever! submit yourself to my orders, move from there, and we will forget the whole matter.� -� brother, i only manifested the intention of publishing a book. that doesn�t mean that i will necessarily publish it. now, if i were transferred, i will abandon the priesthood, and the publication will be immediate. i mean to say, that in the chapter on homosexuality, the name of that young and beautiful priest, your favorite, would figure, for whom i was the confessor at the end of the seminary. also the names of all the sexual partners of his.� -� dirceu, you are crazy.� said the voice on the other end, in a worried and dissimulated tone of voice. -� no, i am not. that is what i will do.� there was total silence on the other side. did he hang up? after a few minutes: -� the cinco vidas o confessor 111 transference is cancelled. stay right there but forget about that monster of a book forever. god will illuminate you.� -� he already did, bye.� and he hung up. the question of the transfer was thus taken care of. judicial action never got started; there was not enough judicial substance to even begin a process. people started to perceive that it wasn�t so easy to get rid of that person that knew them so well, in the matter of their sins, and who could denounce them to the world at any time. a few soon realized that, as the proverb goes, if you can�t beat an enemy, it�s better to join him. thus they began to play up to the father, defending him and treating him well, in a way that they had never done before. another little development contributed much so that the rest of the population joined the priest; it seems that, during the week, a small camera crew from a major television network did the favor of showing up in rockland to tape an interview with dirceu, for a sunday night program, which has an enormous audience. it was an emotional experience for the whole city, and the whole country, for that matter, to see that individual who before had been a humble country figure, show up on the screens so self-assured, answering difficult and tricky questions with a precision and clarity. the end of the interview was more or less like that ( most of the readers must have seen him ). � and so, father dirceu, are you going to really tell all about the web of sins of
rocklandia?� � now listen here, my young reporter, i never stated that. confession is a very serious sacrament. many priests would prefer dying rather than to tell what they have heard in the confessionals. i simply have a list of sins, in alphabetical order for my private reference, which any person could come up with. even though such a person were not a confessor. at one point, as a jest, i said that i would put the names of the sinners in front of the respective sin. but this intention, manifested as a jest, is not currently in my repertoire of humor. the people of rocklandia, principally the wealthy, have always collaborated with me, and wouldn�t deserve such a chastisement. the subtle message, sent to all rocklandia residents, had the desired effect. either the rich collaborated or they would deserve the chastisement. in other words, they would have their names as characters in a very interesting book. the reporter continued: � and this list, could you show it to us?� � why not, here it is � the father said, reaching for a folder and opening it. � to tell the truth, it is not a simple list. we can practically consider it a book. on the list are recorded all the sins that i could collect, in alphabetical order, and after each one, there are various data, such as the age at which they are most committed, the sex which most commits them, the social level of the sinners, an index with the rate of occurrence, the consequences of the sins for the sinners as well as for others and finally, there is a wide range of advise on avoiding these mistakes. as rasputin said in the russian court to justify himself: � for us to combat sin, it is necessary to know about it.� he found about sin through practical experience; i came to know by listening. most of the young people aren�t familiar with such sins and how to avoid them; therefore, it would make a useful book. but as i already said, it might not even be published.� the reporter looked over the pages with an evil eye, with a little sarcastic laugh now and then, and asked the priest if he could read a thing or two out loud for all the telespectators in brazil, after a word from the sponsors, of course. � i prefer that you don�t read,� dirceu said in the next segment. � whoever has a doubt about the matter can write to p.o. box number ( i don�t remember the number ), and i will cinco vidas o confessor 112 answer personally and confidentially. the following week was very hectic for dirceu. he gave interviews to various radio stations ( even live by telephone ), to various magazines, newspapers, and avoided
the whole time the editor of a widely known girlie magazine, who wanted at all costs to publish installments of his books, even if he had to pay a small fortune. after about ten days, things calmed down. the routine was back to normal and finally, the next 25th came around, which was the day of the second meeting of the c.u.p. of rocklandia. the father was a true prophet at the first meeting. the room was overflowing with people, all willing to collaborate. those people had, without a doubt, confessed often during their lives and certainly didn�t want to risk having their sins published, even though a few had sincerely repented. but there were still a few who were less intimidated, and who resolved to resist, and who mounted a protest in front of the church door with banners calling the father a communist agitator as well as a few other barbarities, just as the meeting was beginning. minutes before eight o�clock, the father went out, stood in front of the demonstrators, gave them a look which could kill. an absolute silence fell over them, then he said: � let he who has no sins throw the first stone...jose, antonio, juan, he looked at them one by one and called them by name. what i am asking from you is nothing more than your obligation. you should help spontaneously without pressure, but you don�t. all right, i�ll tell you the truth. i am going to pressure you until you do collaborate. and each one present here knows and feels that i can do it. but that�s enough talk. jo�o, you and your son, come into the meeting. i have chosen you to donate the first of the milk cows for the c.u.p. of our city, and your presence is obligatory inside, not outside making a scene. the � jo�o � to whom he referred was the most wealthy dairy farmer in the region, and when he and his son rolled up their banners, hung down their heads and went inside, the rest followed suit. in this way, the meeting had to be transferred to the inside of the church as if it were a mass. dirceu, that night, waxed so eloquent that it could make one cry. he discoursed about life, death, the history of mankind, of religion, in simple, moving words. he created an environment of extreme fraternity among those present, such that when he came to the part about what he wanted, no one could say no. � our c.u.p. would be well situated on the small farm � chacara boa vontade � which is about two kilometers from the center of town. there, as you all know, was the seat of a large farm. therefore, it has a large farm house on it, the house of the previous owners, and
various smaller houses of the workers, all in bad state of repair. the present owner of the property, who is present here ( he pointed out the man ), has already made a donation to the center. we need to resolve the problem of access to the place, the road to which is currently in bad shape and the remodeling of the houses with the necessary adaptations. i will take care of the road problem next week in s�o paulo, with the state secretary of transportation who, as you all know, is the representative of a neighboring town. as far as the remodeling is concerned, everyone here will collaborate under the direction of dr. germano, the illustrious engineer of our town who has volunteered to administer the work. the collaboration can be in the form of money ( all the banks had an account in the name of c.u.p. ) or in service. carpenters, masons and plummers can all work a few hours per cinco vidas o confessor 113 week according to a schedule made up by dr. germano. there can also be donations made of construction materials and of other things directly to the site.� everything was so well planned out that it seemed that the priest had spent years planning it. the next day, there was already activity going on at the place. the road there was , in fact, in very bad shape, but even so, the remodeling had begun. after the reunion, i saw the priest and the mayor making an appointment with the state secretary of transportation by phone. he was a neighbor of our town. several of our votes had even gone towards his election. he was even appointed to the post of secretary by the governor precisely because of the electoral influence that came with that region of the state. but i knew that he wasn�t what he seemed, and i remained doubtful of the success of the father�s mission. it would be a very local road, and an expensive one, which wouldn�t bring much in the way of votes in the next election. i was practically stupified when, upon getting a hold of dirceu when he returned from the capital with the mayor, he said: � everything�s ok. i�ve got the access to our center arranged. i�m going to tell you how i did it because you are my doctor and it will be as if i were confessing.� � confessing to a doctor is safer than to a priest, nowadays. have you thought about what would happen if your idea caught on? it would be very interesting to see priests threatening to reveal the secrets of politicians, beautiful women, of latin lovers and of priests?� � but do you want to hear or not?� the father said. � of course i do. for me, you had taken off on a mission impossible and now you
come saying � i came, i saw, i conquered.� � but it wasn�t easy. the secretary received us coldly after making us wait for four about two hours. the mayor told him what we wanted. he immediately answered saying that there wasn�t money available and that as it was a work which would benefit only one town, it didn�t have priority. he said that he wanted to attend to us, because the next election was coming up, but that it wasn�t possible. then he changed the subject and began to talk about everyday things such as national politics. the mayor joined in with him, until the point when, both of them being scared, they stopped looking at me. i was crying, almost sobbing. they asked me what was wrong and if there was anything i needed, or if i had any pain or anything. i stated that i needed to speak alone for a few minutes with the secretary if the mayor would permit me and wait in the waiting room for a minute. as soon as he left the secretary asked me again why i was crying. i told him that he must have heard tell of a book that i was going to publish, but that i had put aside. it seems that a naked ladies magazine wanted to publish, weekly, just a few sins along with the respective sinners. now with this negative answer from you, i will send to the magazine an article about someone who had sex with a poor but beautiful teenager from ut� many years ago. the poor girl, named maria divina dos santos, suddenly ended up pregnant and was abandoned by the father of the child, who just happens to be you. i took care of her during her pregnancy, principally, i gave moral support because she attempted suicide. i committed her at the moment of giving birth, i stayed the whole time by her side, until the time of birth. i got so involved that a few tongues gossiped that it was mine. but the young girl ( she was still practically a girl ) couldn�t stand it. she died after giving birth to a beautiful baby boy. i took care of the boy for a month with the help of a few devotees and afterwards arranged cinco vidas o confessor 114 for adoption with a good home, where he remains today. the man looked at me with a slack jaw dropped and a stupified face. i continued speaking. when she confessed her sins to me and of her consequent pregnancy, i advised her to look for you, but she couldn�t convince you to abandon the brilliant political career which you had in front of you nor the arranged marriage of convenience. you didn�t even believe in the pregnancy, and you never showed up again, not even to find out that she had died. at that point i had stopped crying and it was he who cried.
we sat in silence for a few minutes, then he admitted his previous fault. but he made it clear that he would not succumb to any blackmail on my part. yes, i answered, this is blackmail, but not the ordinary type. if you don't attend to me, i will publish your sin, without a doubt. but if you do attend to me, you will have repented, at least as far as i am concerned, for your immense guilt, and i will never bother you again. nor will i reveal this to anyone who could use it against you. what i am proposing is penance more than blackmail. to make it short, will you take it or leave it? i wouldn't play with such a serious matter. it's a good deal for you. you're going to spend the money of the government, you can sincerely repent in your heart and at the same time, if you do this work which will help many poor, you will receive my absolution, because i am still a priest and i have this power. the man got up, embraced me, asked for forgiveness, he asked several things about his son ( although i had said that i would never reveal who he was ), and finally he said to me: "go in peace, priest. your road will be. we will start the work in 15 days." i was stupified. it was the second time that i found out that the priest had actually used secrets from the confessional and i believe that he had used them on other occasions, too, because many things that he was able to get seemed impossible to everyone. but, although i am not machiavellian, i think that his ends ( to help the poor ) justified the means. i would also like to inform the readers and gossip columnists that, in fact, there was a young girl named maria divina dos santos that, at 15 years of age, many years ago, died in labor in the local hospital. her son was adopted in a neighboring town by a family through the agency of father dirceu. but the story about the secretary of transportation is fictitious. there really was such a father, very influential, who did get the road built, but if i were to say who he really was, i would be breaking the word of the father. but the interesting part is that, 15 days later, the big bulldozers began the initial work of building and paving the access road to the c.u.p., on the former farm. two wide bridges were built, on the outskirts of town, over a little river, and from them two first-class roads, with a tree-lined parkway in the middle, and street lights, ran all the way to the grand portico of the center. the conclusion of the work, forecast for six months later, ended up taking nine months ( the duration of human gestation ), because the construction workers said they had never seen so many rocks in one city. while the highway was being built, the farm was being totally and majestically rebuilt
under the direction of dr. germano and father dirceu. what impressed me the most is that neither the city nor its inhabitants ended up any poorer by the effort. on the contrary, i think they both profited. it was common to see masons, plumbers, electricians and others who, previously had passed sundays drinking in the neighborhood bars of the city, take advantage of these same sundays to work on the farm without drinking. on top of that, they would attend a beautiful mass with a beautiful sermon by dirceu, have a free lunch, and in this way began to dignify themselves instead of degrade themselves by drinking alcohol. the bank accounts of the c.u.p. were always fed by the people. only a few contributions were of a great amount and everything went as father dirceu had planned. cinco vidas o confessor 115 m any times back then i wished that the church had fathers, bishops, cardinals, and popes, as determined as dirceu. if they were as undaunted they could really improve, and not a little, the world. could it be that they don't realize the power that they have? or do they realize it but are afraid to use it? or is it not in their interest to use it? as far as i can see, until now, the will of the church in favor of the poor reaches only as far as words, or in practice, in small actions. the church has even gotten along with fascist dictators even though, if it had done its work right, these dictators would have fallen in few months. are not dictators, principally in latin america, devotees and great confessors. back to the point, nine months after the second meeting of the c.u.p., the work was finished. the inauguration of the headquarters was set, with all the reforms that the father wanted carried out, and with paved access. at the inauguration the secretary of transportation ( that same one ) was there, representing the governor. he made a beautiful speech, saying that as soon as he met the father, at the first moment he could feel all his kindness and strength of character, and that he hadn't hesitated one minute in offering to help. he also spoke about the herculean effort that he had made to get urgent funding from the government, real urgent. but what he saw there in front of him that day was a beautiful payment in itself. at every moment he called for applause for father dirceu, " this really great man." upon uncovering the inaugural sign, the secretary went pale, but only the priest and i know why. it's because dirceu had insisted, together with the town council, that the new road should be called " avenida maria divina." she was the first poor person that the priest
was able to elevate, albeit post mortem. she was the first, but she wouldn't be the last. however, until today, those that don't know think that it was a form of homage to the mother of god. vi well, the first cup was inaugurated like father dirceu had forecast and, masterfully ( in my opinion ), gotten. little by little the gears started grinding to reach the aims that were in the statutes: to have the biggest possible number of poor become spiritually and materially well off. the centers had a theoretical as well as a practical part to them. the theoretical part was initially taught only by the priest, by organizing meetings with the poor people from the city as well as from the rural zones, preaching in the center during sunday mass, distributing pamphlets among the poor, speaking on the local radio, writing in the city newspaper and in all ways possible that came up. cinco vidas o confessor 116 theoretically, the philosophy of c.u.p. consisted fundamentally of remembering, at every moment, that we are brothers and equals before god. human values and human dignity are the same in all men, rich or poor. it turns out that, in the case of the poor, sometimes the misery suffocates these values and degrades the individual. it�s necessary to always remind the poor that they are as human, as beloved, and as important, before god, as any rich man. they received life from the creator, and not for the purpose of throwing it away. it was to live it out in fullness, in a dignified way. these became common, standardized mottoes, as if they were orders, and they were postered on all the walls of the center of town. at the moment, i remember a few which impressed me such as: � gods respects you and loves you,� � you are sons and daughters of god, and it is his will that you lead a productive and dignified life,� � christ is the source of life, salvation, and is the resurrection of all humanity, not just for a few,� and � society must respect the dignity of each man who composes it. and all have the right to that dignity in their lives.� joking with dirceu, i told him that the suffering had turned him moderately nazi, because all the propaganda reminded me of the brain washing of the youth by hitler, to make them fanatic. the practical side of the center was also very interesting. it was composed of activities of recreation, teaching, vocational training and public assistance. as far as recreation was concerned, there were various sports available, principally soccer,
which is just what brazilians like, but also basket ball, volleyball, swimming, and even tennis ( aristocratic, wasn�t it? ). we also had a video cassette recorder to show movies with, chosen by the priest, which were always commented on and discussed for the benefit of those in attendance. the films were lent for free by the owner of the local video store, alias, a great confessor and communion goer. there was also a small theater and various plays were rehearsed and put on by the very people which frequented the center, always oriented by the father. we also had libraries, game rooms, small snack bars, and party rooms ( it was usual to celebrate at one time all the birthdays that had passed during that month ). in order to take advantage of the facilities, it was enough to be poor. and, in little towns it was easy to know who was poor, middle class and rich. after some months, the members of the center had already organized championships and parties on their own. from their ranks, instructors appeared to coach soccer, swimming and theater. in this way, the recreation side of things went very well, given the simplicity of the people that frequented. maintenance of the soccer fields, swimming pools and theater was done by the very users and by the professionals of the city which spared a few hours of their time to work without remuneration. the teaching part had basically to do with the alphabetization of adults. i admired seeing the public teachers, who complained so much about salaries ( little wonder ), go to give evening classes without remuneration but with an enthusiasm that money can�t buy. and know that many of them weren�t even practicing catholics, so we can�t attribute their effort to fear of the confessor. dirceu said various times that the illiterate doesn�t take part in the world as he should. one of the fundamental prerequisites to have a decent life is being able to read and write. he used to make it a point to walk through the villas and plantations of the district, summoning illiterate adults to attend the classes. he was even able to get from a few plantation owners ( confessors ) to pay a slightly higher wage to the farm workers who were literate. this had a surprising effect on attendance. in relation to the vocational training, there were several technical courses included, principally in support of the rural areas, such as: milking, artificial insemination, animal cinco vidas o confessor 117 husbandry, gardening, carpentry, painting, masonry, plumbing, electrician and others. it was common to see the father wandering through the villages and plantations, pointing out small
home improvement projects to the owners such as painting, window and door repair, and road repair. he wouldn�t accept excuses about a lack of time, knowledge or material. everything was accomplished through determination. � whoever doesn�t know how to take care of his own house isn�t ready to be a christian.� one time, i saw the priest in the marketplace almost as mad as jesus when he whipped the vendors in the temple. only this time it was against the poor purchasers of groceries. the father went right into the market and kicked out the customers, telling them to go and plant gardens instead of spending money that they didn�t have. the center would teach them how to do it and even furnish them the seeds. there were also training courses for domestic work., principally oriented towards women, teaching child care, sewing, home economics, house and yard work, etc. first aid, personal hygiene, child nutrition, and natural family planning were taught, too. many of these courses were totally planned and taught by me. although i had never confessed i knew of many i had many partners in sin who were great confessors and i needed to be careful about dirceu. but, jokes aside, i can assure the readers that, after a few months of operation of the first c.u.p. in brazil, the results were so positive and evident that i would say that nobody helped anymore out of fear but out of free will. even the protestants, spiritualists, voodoo practitioners, jews, ( there was only one jewish family in the town ) the orthodox, and atheists were helping. at least that�s what i thought. social welfare consisted of getting documents for all so that they would become true citizens, qualified to vote with rights and duties. it was incredible the great number of poor people without birth certificates, voter registration cards, social security, driver�s licenses or anything. they practically didn�t exist as brazilians. the c.u.p. also helped them to get work and obtain medical assistance when necessary. the priest had gotten, i don�t know how ( actually, i do ), two brand new ambulances which stayed parked in front of the c.u.p. the very family of the sick or any driver could use them in case of patient transfers within the municipality or to neighboring cities. there was also a out-patient clinic within the c.u.p. which was open four hours a day, attending gynecology, obstetrics, clinical medicine, pediatrics, and general surgery. it was staffed by all the doctors of the city without pay, according to a schedule made up by the doctors themselves. life within the center was intense and productive. it was common to see, in the city or rural area, ex-attendees of the center improving and teaching to improve the life
of their poor friends. i don�t have statistics, but i can swear the level of alcohol, illiteracy, infant mortality, malnutrition, divorce, addiction, prostitution, exploitation and many other things that indicate a perverse and inadequate social situation were diminished quite a bit. in this way, the neighboring cities soon became interested and smaller versions of the c.u.p started to pop up in the surrounding municipalities. these smaller versions followed the same orientation stipulated by the founder of the original: father dirceu of ut�. today we know that, in the whole country, there are 562 c.u.p.s, along the lines of ours, almost half of them being rather large. and this is hardly two years after the inauguration of the first center in rockland. � the thing�s getting to be like the plague,� i have heard people say around here. it is common for us to have visitors, generally priests or politicians from other cities, wanting to know all about it, theory and practice, in order to start something similar in their cities. they leave here after an exhaustive visit, with various books, a copy of the statutes, and statements that the center furnishes them. in this way, it�s only a matter of rolling up one�s sleeves and starting to work when they go back to their cities of origin. cinco vidas o confessor 118 at rockland, we were already, so to speak, after two years, in a more advanced stage. i say this because of the statement of an ex-attendee of our c.u.p: � i was poor, even miserable, without even the minimum self-esteem, content with crumbs were left over for me in life. after hearing that saintly father dirceu speak a light lit up within me. i have life itself, i came to think. what is greater than this? i used to assiduously attend the center. i came to respect myself. today i have a good position at a car dealer�s in town. i have a small house and an inner strength and a completely different perspective from that which i had before( if i even had one ). now i have quit attending the center in order to give the space to others, poorer and more needy than me. i only show up once in a while to testify what a person who has faith in himself can do.� vii father dirceu, one year after the inauguration, got another priest to help him in the parish and began to train him to take over after he had gone. the young priest, just leaving the seminary, was a member of the political faction of the catholic church, and tried to introduce ideological concepts in the center. soon, however, he noticed that he could do well unto
others (and very well), without any political connotation. then, little by little, he begin to adopt his teacher�s methods. he played hard when something threatened the center but didn�t fall into temptation to use the fruits of that work for whoever wanted electoral benefits. about the time that the new priest came, some symptoms began to manifest that indicated the return of the dirceu�s disease, as was foreseeable. after contacts with the neurologist at s�o paulo, i increased the doses of some drugs and added others. sometime after, the addition of powerful drugs became necessary to stop the pain and the convulsions. three years after the surgery the father was obliged to reduce his work load. some months later, vomiting and other symptoms of intracranial hypertension started to appear. i tried to take him to s�o paulo again but he wouldn�t go. he committed himself in the local hospital. in a few days, he entered into mental confusion, then a coma and he finally died. he had gotten authorization from the church and from his fellow man to be buried in the chapel of his center. and that how it was. his burial ( and viewing ), it goes without saying, broke all the attendance records. even today his tomb is visited by actual crowds of faithful. rumors have already started that miracles have happened to those that have visited the tomb and to those that invoked the priest. the current parish priest has already started to collect cinco vidas o confessor 119 signatures for a possible-future beatification. � it seems that beatification is easier nowadays, but at any rate, this one is deserved. and, later on, without a doubt, sanctification � the new priest told me the other day. but, dear readers, one of the goals of this writing, besides telling you something about the life of this great man, like i mentioned at the beginning, is to ask you all to help me with a little problem. father dirceu, months before dying, came to my house and gave me, in a sealed envelope, his famous book, complete. with the sins and sinners. he asked me to guard it under lock and key, and that i not hesitate to use it as he did if anything threatened the mission to give value to the lives of the poor. he thought that i would live for a long time yet and that, if the ideal behind the c.u.p.s birth were to remain in existence for a while longer, it would never be snuffed out. after this, i could destroy the document if it were no longer useful. i accepted the mission against my better judgement, but i accepted now, almost three years after the father�s death, i am noticing that the donations and
collaborations are slowing down. the center is turning into a tourist center and the wealthy have begun to exploit it with their hotels and guest houses around it, with their fleets of tourist buses, their religious paraphernalia stores, and other banditry. the current local priest doesn�t have enough strength to stop the degeneration of the center. and the poor are heading downhill, as always. should i use the book of father dirceu? would this jeopardize his future beatification? is it better to have a saint or a center? please, whoever can help me in this distasteful duty of decision, write giving opinions and suggestions to p.o box 1,008, in rockland, as soon as possible, before the deterioration of the c.u.p. becomes irreversible. all correspondences will be treated with the utmost confidence, but in the final issue, we will use the most suggested solution. looking forward to hearing from you all, our thanks and thanks from all the poor of ut�. cinco vidas a f� Remove montanhas 120 a f� remove montanhas �aparta o sol a negra escuridade, removendo o temor do pensamento� (cam�Es) aos verdadeiros m�dicos, na sua luta contra o obscurantismo. cinco vidas a f� Remove montanhas 121 pref�Cio h� poucos meses tive conhecimento de um caso de aids, num jovem hemof�lico de 18 anos, que estava sendo acompanhado por um m�dico, especialista em mol�stias infecciosas, e, ao mesmo tempo por um senhor que se dizia m�dium e capaz de curar a mol�stia em pauta. antes de escrever estas notas entrevistei-me com os familiares do paciente, com o m�dico e com o m�dium. os pais do rapaz estavam profundamente decepcionados com o �esp�rita�. contaram que o mesmo morava muito longe (em outro estado) e veio duas vezes ver o paciente e �dar passes�. em ambas foram pagas todas as despesas, de viagem e de estadia, o que pareceulhes muito l�gico. entretanto, na �ltima visita foi apresentada uma conta enorme e assegurado que o paciente estava curado, pois o seu sistema imunol�gico havia sido estimulado espiritualmente. a fam�lia sentiu um grande conforto emocional, na �poca e chegou a recomendar o referido curandeiro a amigos necessitados. o rapaz hemof�lico morreu, ap�s um m�s, na uti de um grande hospital da capital, com v�rias infec��es t�picas do quadro terminal da aids. quanto ao m�dico, estavam profundamente agradecidos, pois o mesmo acompanhou o paciente durante meses e nunca lhes deu falsas esperan�as. al�m disto, pelo trabalho todo apresentou honor�rios menores que os das duas visitas do m�dium. o m�dico, quando
foi entrevistado, estava muito triste, pois revelou-me que tinha mais quatro pacientes com mol�stia semelhante � do rapaz sobre o qual eu viera falar. e, no momento, naquela fase da doen�a, o �ndice de mortalidade continuava em cem por cento. revelou-me que entendeu e aceitou o fato da fam�lia haver recorrido a um �tratamento alternativo� embora, na ocasi�o, tenha ficado profundamente humilhado quando alguns parentes do paciente, amigos do m�dium, haviam sugerido que ele se retirasse do caso pois a cura j� estava assegurada, chegando mesmo a suspender as medica��es prescritas. ele s� continuou pelo apelo dos cinco vidas a f� Remove montanhas 122 pais do doente que, intuitivamente, sentiram ser imposs�vel uma cura t�o f�cil. e, finalmente revelou-me que chegou quase a sentir satisfa��o pela morte do paciente pois, embora fosse um absurdo �tico rejubilar-se com um �bito aquilo provava o seu acerto diagn�stico e progn�stico e fazia os parentes ficarem com cara de palha�os, ap�s haverem humilhado-o. disse tamb�m, que nenhum deles veio confessar-se errado e desculparse, ap�s a morte do jovem. o m�dium, com a maior �cara-de-pau�, disse-me que era capaz, de fato, de curar casos como aquele; tudo dependia do doente ter ou n�o merecimento para receber a gra�a da cura. quando eu, subtilmente, toquei nos honor�rios cobrados, ele corou intensamente, mas, de pronto, respondeu que os mesmos foram totalmente doados a obras assistenciais esp�ritas. o que me impressionou neste caso foi o fato do m�dico, que pratica a medicina dentro de todo o rigor cient�fico que a �poca lhe oferece e que tem um compromisso solene com a verdade e a sociedade em geral, tenha, num determinado momento do tratamento, se sentido humilhado pela a��o de um espertalh�o que, aproveitando-se do estado emocional dos parentes, d�-lhes falsas esperan�as e depena-os e os induz a atitudes, muitas vezes, altamente prejudiciais ao paciente. � uma concorr�ncia desleal entre coisa s�ria e vigarice que, sabemos, desaparecer� com certeza, a longo prazo, com a vit�ria da verdade e dos homens de boa f�. esperamos que este conto colabore para que o prazo n�o seja t�o longo como desejam alguns. cinco vidas a f� Remove montanhas 123 introdu��o gostaria de iniciar estas notas sobre um estranho (mas n�o raro) personagem, dizendo alguma coisa sobre filog�nese e ontog�nese.
a primeira significa a evolu��o gen�tica de todas as esp�cies vivas (por exemplo, at� chegar � nossa esp�cie: o homo sapiens). sem querer polemizar, podemos, com grande grau de certeza, dizer que os seres vivos evolu�ram tornando-se mais e mais complexos e, nesta evolu��o as formas primitivas sobrevivem nas mais elaboradas. assim, o homem, autodenominado s�bio, traz, em si, as necessidades e as qualidades de todas as esp�cies anteriores, e as da sua pr�pria, j� ao nascer. a ontog�nese estuda a s�rie de transforma��es sofridas por um mesmo indiv�duo desde o nascimento at� a morte, sem se preocupar com a filog�nese, isto �, de onde vieram os genes que ao longo da hist�ria se organizaram para produzir aquele indiv�duo. v�rios autores, fil�sofos, educadores, psicol�gicos, etc., consideravam (e ainda consideram) o homem como uma folha em branco, quando nasce. nela, atrav�s da educa��o pode ser escrito o que se quiser, transformando-o em santo ou em bandido, em s�bio ou ignorante ou como na famosa est�ria, em m�dico ou monstro. esta � a vis�o ontogen�tica do problema. mas, a filogenia sempre est� presente. n�o se nasce �em branco�; j� trazemos escrita toda a carga gen�tica da evolu��o geral e a da nossa pr�pria esp�cie e delas somos prisioneiros. a educa��o pode atrofiar, disfar�ar, adiar, mas n�o anular esta heran�a. isto tudo, voltando ao nosso estranho (mas n�o raro) personagem, � para dizer que ele nasceu com o c�rebro muito carregado filogeneticamente; mais do que seria de se esperar numa pessoa normal. todo esfor�o para barrar aquelas tend�ncias primitivas, pela educa��o, esbarrava naquele tipo de anomalia. dizendo mais claramente, podemos afirmar que ele gostava, desde a tenra idade, de acreditar em coisas que a esp�cie humana acreditou nos seus prim�rdios, numa fase, por assim dizer, de mitos e cren�as totalmente irracionais. a carga filogen�tica, no seu c�rebro, era muito forte e as sinapses nervosas parece que sempre conduziam os est�mulos de maneira a faz�-lo acreditar mais nas coisas irracionais e cinco vidas a f� Remove montanhas 124 absurdas do que nas racionais e l�gicas. na sua trajet�ria escolar ele teve s�rios problemas de aprova��o, principalmente nas chamadas ci�ncias exatas. o m�todo cient�fico, com muito esfor�o, foi entendido, mas o interesse mostrado pelo mesmo sempre foi muito escasso. em compensa��o os mitos, as pseudo-ci�ncias, as religi�es estranhas, os milagres, as bruxarias, o sobrenatural sempre foram admirados e enaltecidos, �s vezes com exagerado entusiasmo que chegou a impressionar, e mesmo a converter, muitas pessoas. vejamos um exemplo simples que, talvez, esclare�a tudo que vimos dizendo at� aqui.
quando a professora do curso prim�rio contou-nos que os primitivos homens adoravam o deus-trov�o, ele ficou maravilhado. parece que os genes que determinavam a distribui��o dos seus neur�nios eram os herdados daquelas civiliza��es primitivas, que acreditavam naquilo. ele gostava, e era feliz, quando acreditava que devia haver um deus com a voz t�o potente como o som de um trov�o. aquilo flu�a livre e celeremente pela sua c�rtex cerebral, sem obst�culos e refletia-se na sua eloq��ncia sobre o assunto, chegando, mesmo na tenra idade, a formular teorias e a impressionar os colegas de classe (inclusive eu). entretanto, quando a professora explicou que o som ouvido era o do deslocamento do ar, provocado pela descarga el�trica entre as nuvens e o solo, houve pane naquela cabecinha. ele ficou v�rios dias sem tocar no assunto, at� esquec�-lo. ora, se hav�amos criado um deus, porque destru�-lo? como a ci�ncia � chata. como a l�gica d�i na cabe�a da gente. sem d�vida a filog�nese das culturas primitivas, naquele indiv�duo, era mais forte que o esfor�o ontogen�tico da professora. por que aceitar explica��es racionais se as outras s�o mais f�ceis de entender e mais ben�ficas �s pessoas, pensava �le. como eu conheci muito bem este indiv�duo e fui um dos que tentaram colocar o seu racioc�nio nos trilhos da l�gica, vou contar-lhes, resumidamente, partes de sua vida, relacionados com suas cren�as (e foram v�rias), esperando tirar delas li��es �teis, a n�s mesmos e aos nossos amigos; e s�o muitos os que necessitam. cinco vidas a f� Remove montanhas 125 inf�Ncia, adolesc�Ncia e juventude na inf�ncia, aquela necessidade de acreditar em coisas fant�sticas e sobrenaturais n�o foi muito notada. afinal, todas as crian�as t�m seus super-her�is e o racioc�nio l�gico ainda n�o se desenvolveu na c�rtex imatura. acredito que, se fossem feitos testes mais rigorosos, j� teriam, naquela fase, sido constatados os dist�rbios. v�rios tipos de medo imotivado eram freq�entes, v�rias teorias mirabolantes eram externadas, mas tudo era explicado pelos adultos como �coisas de inf�ncia�. talvez um certo rigor cient�fico na an�lise destes fatos, naquela fase infantil, pudesse ter bloqueado, pelo resto da vida, as explos�es m�sticas daquela mente. mas, infelizmente, a m�e era uma super-beata e o pai vivia metido com coisas do espiritismo e da astrologia (n�o confundam com astronomia) e o ambiente, ent�o, era prop�cio para que aquela p�gina filogen�tica fosse lida constantemente pelo c�rebro sobre o qual estamos falando. na adolesc�ncia o �nosso her�i� tornou-se um congregado mariano. ele tinha educa��o cat�lica ( pelo lado da m�e) e abra�ou com for�a total aquela congrega��o. vivia
enfurnado na igreja da cidade, rezando o dia todo. levava uma vida virtuosa e condenava os amigos (eu entre eles) que n�o eram t�o santos. em v�o tent�vamos resgat�-lo daquele mundo. ele andava sempre de terno de cor escura, gravata e v�rias fitas e medalhas penduradas e, geralmente, com uma pequena b�blia na m�o. era coroinha e puxa-saco do p�roco. ajudava a organizar prociss�es e durante as mesmas cantava hinos religiosos com tal f� que, certa vez, observando o seu semblante cheguei a pensar que ele n�o estava neste mundo, naquela hora. tinha verdadeira adora��o por rituais; seu maior prazer era responder frases padronizadas, em latim, durante as missas, seguindo um rito que eu chamaria de primitivo e que deve vir de nossos ancestrais tribais bem distantes. era at� interessante v�lo responder, com a voz entoada e alta, tudo de cor, ao que o padre dizia. n�s nunca guardamos aquilo na mem�ria e cheg�vamos a julg�-lo mais inteligente que todos. tamb�m gostava exageradamente de novenas, vias-sacras, ter�os rezados em conjunto, promessas, dif�ceis de se cumprir, aos mais variados santos e de �retiros espirituais�. m as, n�o sei se para melhor ou pior, a igreja cat�lica romana foi mudando. cinco vidas a f� Remove montanhas 126 j� n�o tinham mais vez as beatas e carolas, as missas eram ditas em portugu�s mesmo e acompanhadas por jovens tocando viol�es, ou inv�s de corais e os padres usavam roupas comuns e alguns j� namoravam como homens comuns. e a congrega��o mariana foi para o brejo. com raras exce��es, j� n�o era mais moda adorar, daquela maneira, a m�e-dedeus. tudo que lan�asse luz, em alguma cren�a, fazia mal ao nosso personagem e aquelas mudan�as foram demais para ele. como era poss�vel algumas fac��es cat�licas acharem que o inferno n�o existe? e nem o pecado? a ci�ncia estava invadindo as mentes e isto, para ele, n�o soava bem. v�rias vezes discutimos, dentro de nossas limita��es da idade sobre teologia, igrejas, o bem e o mal, a moral, a �tica, etc. mas as suas teorias eram fechadas, mesmo primitivas, ligadas a coisas ditas, geralmente por analfabetos e ignorantes, h� mil�nios atr�s e totalmente fora de prop�sito atualmente. suas frases finais mais comuns eram: �� uma quest�o de f�, �isto foi revelado�, �� tradi��o milenar agirmos assim�, etc. quando ele jejuou, durante toda uma quaresma, at� emagrecer v�rios quilos e ficar fraco e an�mico, n�s tentamos, de todas as maneiras, convenc�-lo de que aquela hist�ria de jejuar fora inventada por algum imbecil que, de certo, jejuava porque n�o tinha, mesmo, o que comer ou, ent�o, porque temia tanto o sobrenatural ou o azar que faria qualquer coisa para
compr�-los e traze-los para o seu lado. mas n�o consegu�amos demov�-lo daquelas mortifica��es, com aqueles argumentos. ele acreditava naquilo e �ponto final�. foi com al�vio que fomos vendo a igreja mudar tanto que se tornou demais para a cuca dele. explicar as coisas para satisfazer os cientistas n�o � religi�o; e era isto o que estava acontecendo. a igreja estava se adaptando � Ci�ncia, com medo de cair no rid�culo e, para ele, o rid�culo � que satisfazia. ent�o, ainda na adolesc�ncia e juventude, aquelas for�as primitivas, que trabalhavam seu c�rebro, come�aram a empurr�-lo para o espiritismo e nisto ele teve o apoio e a orienta��o do seu pai. na minha opini�o o espiritismo, na grande maioria dos casos, � a porta de entrada para cren�as mais esquisitas e cada vez mais estapaf�rdias, que assolam a humanidade. e foi o que aconteceu com o nosso amigo. ele, v�rias vezes, enveredou por trilhas cada vez mais irracionais de pseudo-religi�es e pseudo-ci�ncias. m as, comecemos pelo come�o. ao se decepcionar com o catolicismo ele chegou a freq�entar alguns templos protestantes e alguns sal�es de cura, onde pastores vigaristas curam de tudo, desde verrugas at� c�ncer. seu pai, entretanto, conseguiu traz�-lo para cinco vidas a f� Remove montanhas 127 caminho melhor. os esp�ritas n�o curavam tudo, tamb�m? e al�m disto n�o faziam cirurgias, previam o futuro, conversavam com os mortos, etc.? nosso amigo, eu me lembro, entrou de leve, mas, em pouco tempo j� estava fanatizado, como lhe era caracter�stico. era duro atur�-lo naquela fase. ele come�ou a freq�entar um pequeno, mas lotado, centro da nossa cidadezinha e, ap�s as sess�es, sempre vinha com est�rias mirabolantes. �voc� se lembra do filho do fulano, que morreu afogado, h� 12 anos? pois ele se comunicou com o pai ontem � noite. era a voz exata do falecido e dizendo coisas que s� ele e o pai sabiam.� ou ent�o: �sabe a mariazinha, que foi para a capital e consultou cerca de quinze m�dicos, sem que nenhum resolvesse o seu problema? est� curada. o nosso m�dium realizou uma cirurgia esp�rita na barriga dela, coisa de dois minutos, e adeus dores; sumiram totalmente. quem de fato operou foi um cirurgi�o alem�o, falecido h� cerca de 92 anos�. nesta fase est�vamos ambos com dezenove anos e mudar�amos, breve, para a capital para podermos freq�entar a universidade. ele faria direito e, eu, m edicina. pouco antes de mudarmos, ainda na nossa pequena cidade, aconteceram dois fatos interessantes que eu achei que iriam demov�-lo daquele furor espiritualista. o primeiro foi a cirurgia de urg�ncia que a mariazinha teve que fazer, mas desta vez no hospital regional e por m�dico, ainda vivo, de carne e osso, que lhe retirou um cisto hemorr�gico do ov�rio esquerdo. as dores, que haviam sumido com a cirurgia alem�,
voltaram poucos dias ap�s e se agravaram muito, tendo sido levada, �s pressas, para um centro m�dico maior e, desta vez, realmente operada. o segundo fato, mais pitoresco, hilariante e elucidativo foi o seguinte. o centro esp�rita funcionava num pequeno sal�o, de constru��o antiga e com um pequeno banheiro encostado � parede dos fundos. na sess�o de uma das noites, repentinamente, o sal�o lotado, ouviu-se um estrondo que parecia a descida de mil esp�ritos. mas era somente um velho habitante da cidade (n�o vou citar o nome) que despencava, junto com uma parte do forro. era ele o sonoplasta das sess�es fazendo vozes e ru�dos muito bem elaborados. foi uma correria dos infernos e depois de uma agita��o total. quase lincharam o m�dium. na �poca eu fiz algumas pesquisas e descobri que o sonoplasta conhecia muito bem o filho do fulano, afogado h� 12 anos, inclusive coisas �ntimas ditas na famosa comunica��o com o al�m que tanto impressionara o meu amigo e mesmo a mim, antes da descida cinco vidas a f� Remove montanhas 128 triunfal, atrav�s do forro, do velho safado. soubemos, tamb�m, que este �respeit�vel senhor� (at� aquele dia), todas as noites que havia sess�es, subia no teto do banheiro e atrav�s de uma pequena porta penetrava no forro do sal�o. e virava �esp�rito�. estes dois acontecimentos, na verdade, abalaram um pouco as convic��es do meu amigo. logo ao chegarmos � cidade grande ele dizia que iria abandonar o �baixo espiritismo� e dedicar-se, somente, ao �espiritismo cient�fico�. aquela refer�ncia em seguir alguma coisa chancelada pela ci�ncia (embora n�o fosse bem assim), soava-me muito bem. ser� que ele estava se curando? ou era apenas um per�odo de acalmia dos sintomas? mais tarde eu cheguei � conclus�o que o baixo espiritismo n�o � t�o baixo como os pr�prios esp�ritas-cient�ficos dizem e nem o espiritismo-cient�fico segue exatamente os m�todos que deveria seguir, chegando a ser pior que o primeiro, em v�rias ocasi�es, nas falsifica��es. m as, logo que nos instalamos na nossa rep�blica de estudantes, o nosso amigo come�ou a procurar os grandes, sofisticados e �cient�ficos� centros esp�ritas da capital. fez contatos com m�dicos, engenheiros, advogados, editores, fot�grafos, etc. freq�entava centros altamente especializados e trazia livros e livros para casa. a quantidade de edi��es esp�ritas � enorme, assustadora. tamb�m pudera, os escritores t�m tanta facilidade: � s� fechar os olhos e os escritos fluem e fluem, a mil por hora, sobre o papel. os outros escritores, n�o esp�ritas, devem ficar revoltados por encontrarem tanta dificuldade e perderem tanto tempo para escrever. estes esp�ritos s�o mesmo sacanas, s�
favorecendo alguns poucos autores. houve uma fase em que o meu amigo gastou enormes somas em material fotogr�fico, tentando fotografar, segundo ele, um tal de �ectoplasma� que, at� hoje eu n�o entendi bem o que �. parece que seria uma subst�ncia (ou n�o) que existe, mas, de repente, n�o existe mais e volta a existir e a sumir. os esp�ritas, como ele, fingem entender aquilo e alguns, menos criteriosos acham que entendem mesmo, mas na verdade � uma bela confus�o que n�o resiste a uma an�lise um pouco mais rigorosa. infelizmente eu cheguei a emprestar dinheiro para aquelas compras de m�quinas fotogr�ficas, filmadoras, filmes especiais e at� hoje n�o recebi de volta. em compensa��o posso afirmar, sem sombra de d�vida, que eu colaborei para o progresso do espiritismo, embora contra a vontade. ap�s cerca de um ano, houve uma reca�da. aqueles m�todos cient�ficos (eu diria cinco vidas a f� Remove montanhas 129 pseudo-cient�ficos) de pesquisa n�o eram necess�rios, na vis�o do nosso personagem. �ou se acredita ou n�o se acredita�, foi o brado de independ�ncia que ele proferiu. e voltou a freq�entar sess�es e mais sess�es de baixo, m�dio e alto n�vel. come�ou a se interessar por �encostos�, �maus-olhados�, �trabalhos�, fluxos e por todas as maneiras de combat�-los. certa vez ele insistiu tanto que conseguiu convencer-me que eu estava com �encosto�, isto �, algum esp�rito mal havia encostado em mim e era por isso que eu havia levado o fora da namorada e ficado para a segunda-�poca, em duas mat�rias, no fim do ano. eu n�o sentia o contato de nada �encostado�, mas, pelo sim pelo n�o, l� fui eu. mal n�o podia fazer. o lugar era simples e bem iluminado, ao contr�rio do que eu esperava. um pequeno sal�o com cerca de 40 lugares, separados, por uma grade, de uma esp�cie de altar, no qual viam-se santos bizarros, animais, sereias, �ndios, caboclos e outras est�tuas, formando um cen�rio estranho e, mesmo rid�culo. chegamos, sentamos e aguardamos pouco tempo at� que chegaram v�rias senhoras e alguns senhores, todos vestidos de branco (parecia uma equipe m�dica). todos puseram-se em frente ao pequeno altar e come�aram a fumar enormes charutos, a beber pinga de p�ssima qualidade (pelo cheiro) e a fazer gestos ritmados e repetitivos. uma das senhoras (eu cheguei a cronometrar) ficou duas horas repetindo o mesmo gesto, para l� e para c�, com o corpo, sem tirar os p�s do lugar e com o olhar dirigido ao infinito, simulando n�o estar, pelo menos espiritualmente, presente no local. ap�s algum tempo do in�cio desta estranha encena��o a senhora que parecia ser a chefe da �gang� come�ou a receber, em frente ao altar, as pessoas que estavam na plat�ia. quando chegou a minha vez, meu
amigo levou-me at� ela e a mesma come�ou a dizer coisas desconexas e inintelig�veis, mas que ele traduzia para mim; at� hoje n�o sei onde ele aprendeu a entender aquela estranha linguagem. a chefe apresentava o rosto retorcido, o h�lito misto alcool-fumo e o corpo numa posi��o estranha, parecendo algu�m com problema de dor na coluna vertebral e, segundo a tradu��o do meu amigo, ela dizia que eu era uma pessoa muito boa, de muitos merecimentos e porisso iria bem nos estudos e no amor. eu poderia esperar que a minha namorada logo estaria, novamente, apaixonada e nos exames eu seria um sucesso. nem � preciso dizer que fiquei reprovado e que minha ex-namorada nunca mais apareceu: casouse com outro e foi morar em um estado longe do nosso. m as, al�m dos �furos� de previs�o, o que me impressionou mais foi que a t�o decantada cinco vidas a f� Remove montanhas 130 aus�ncia de pagamentos pelos servi�os espirituais n�o era verdadeira; alguns dias ap�s a sess�o, ao chegar � nossa rep�blica, l� estava a chefe futur�loga junto com meu amigo, aguardando-me. ele avisou-me que ela era, tamb�m, vendedora de j�ias e queria mostrarme algumas, lindas. o pre�o dela era bem mais alto que o de mercado e ela n�o pagava impostos e nem dava garantias de nada. mesmo assim eu acabei comprando alguma coisa. afinal ela n�o havia me socorrido numa hora t�o triste, sem cobrar nada? era, ou n�o era, uma maneira de pagar os servi�os? entretanto consideremos como uma segunda ajuda financeira aos esp�ritas, embora, tamb�m, involunt�ria. para algu�m que nem sabe, ainda, se esp�rito existe ou n�o eu me acho um grande colaborador. cinco vidas a f� Remove montanhas 131 idade adulta assim, terminamos a fase juvenil, das nossas vidas, tendo o meu amigo j� experimentado duas religi�es. mas isto n�o quer dizer que ele se restringiu somente a elas. era freq�entador ass�duo de consult�rios homeop�ticos, consumindo bolinhas e mais bolinhas com nomes esquisitos, fazia acupuntura duas vezes por semana, mesmo sem estar indicado, cortava os cabelos somente em determinadas fases da lua, seguia dietas vegetarianas absurdas, dormia sob uma arma��o em forma de pir�mide, que captava a energia universal, lia hor�scopos diariamente e seguia o que recomendavam e assim por diante. sempre possu�a f�rmulas para advinhar o sexo dos beb�s que iriam nascer (errando quase sempre) e fazia o perfil psicol�gico e via o futuro das pessoas, baseado apenas no dia e m�s de nascimento, como se isto fosse t�o naturalmente poss�vel. inicialmente eu tentava convenc�-lo de que n�o devia perder tempo com aquelas tolices,
mas, depois, observei que as discuss�es, que trav�vamos, serviam apenas para torn�-lo mais convicto da efici�ncia das suas baboseiras. uma de suas aventuras religiosas que muito me impressionou foi aquela na qual ele tentou curar seu av� da cegueira total que o acometia. era um velho, bem velho, que vivia na nossa cidade natal, no interior e h� tempos n�o enxergava nada. pois bem, numa localidade distante, num estado vizinho ao nosso, um determinado cidad�o come�ou a �operar� pessoas quando era �tomado� pelo esp�rito de um m�dico alem�o. por que ser� que os alem�es voltam tanto? bem, talvez seja porque no brasil isto impressione mais; ningu�m iria querer operar-se se fosse um m�dico ugandense, por exemplo. m as, voltando ao av�, foi-lhe imposta, pelo neto, uma longa viagem at� o m�dium. l� chegando tiveram que aguardar cerca de 48 horas para serem atendidos. ficaram hospedados no hotel do irm�o do m�dium, fizeram refei��es no restaurante do tio do mesmo, contribu�ram com �a quantia que pudessem�, para as obras assistenciais dirigidas pela tia, abasteceram o carro no posto do pai, al�m de comprarem v�rias bugigangas no cinco vidas a f� Remove montanhas 132 com�rcio local, dominado pelo pr�prio m�dium. o atendimento ao velho constou do seguinte: o m�dico alem�o, atrav�s do senhor possu�do, esfregou, com uma escova de cerdas de a�o, cortantes, as p�lpebras superiores de ambos os olhos, havendo um pequeno sangramento na hora. fez-se um curativo tamponante em cada lado e pronto. o cego podia ir embora que a sua vis�o melhoraria. eu j� entendia alguma coisa de medicina e acompanhei o velho av�, l� no interior, pois est�vamos de f�rias. as feridas causadas pela escova infectaram e eu tive que indicar-lhe uma pomada de antibi�tico e manter os curativos por cerca de um m�s. durante este per�odo, quando descobr�amos os olhos, o velhinho �s vezes, dizia que via algumas �sombras� e eu percebia, nitidamente, que era para agradar o neto que tivera todo aquele trabalho com ele. mas, aquelas �sombras� que, tenho certeza, ele n�o via, foram o suficiente para o neto sair pela cidade, no clube, nos bares, nas pra�as, dizendo maravilhas sobre o milagre. chegou mesmo a fretar um �nibus e a levar cerca de 25 doentes, agudos e cr�nicos, para serem curados pelo m�dium famoso. ap�s cerca de tr�s vezes sab�amos, eu e ele, que a vis�o do av� era, exatamente a mesma de antes do milagre, isto �, igual a zero. ent�o eu, subtilmente, sugeri-lhe que ele deveria ir a todos os lugares onde estivera fazendo apologia de vigaristas e desmentir tudo. o que ele respondeu, pasmem, foi mais ou menos, o seguinte: �ningu�m me ouvir�; todos adoram aquele m�dium; o caso do meu av� foi uma exce��o�. infelizmente, n�o era uma exce��o; era a regra, pois pouco tempo ap�s tomei conhecimento de outro fato bem mais grave.
ocorre que um jovem foi examinado em s�o paulo, por um proctologista que constatou um pequeno tumor no reto que, ap�s bi�psia, revelou-se de linhagem maligna. a conduta era, sem d�vida, ressec��o radical, ampliada na regi�o, apesar de todo o trauma que isto provocaria no paciente e na fam�lia. era uma quest�o de vida ou morte. bem, o pai do jovem e ele pr�prio, recusaram-se a autorizar a cirurgia pois foram, naquelas condi��es altamente emotivas, induzidos a realiz�-la, espiritualmente, com o m�dium j� citado. e o pior � que o mesmo, ap�s a encena��o rid�cula simulando uma cirurgia disse, segundo o pai do paciente, com sotaque alem�o: �est� curado�, mostrando um pequeno peda�o de carne gotejando um l�quido vermelho. a verdade � que houve uma melhora dos sintomas, mas n�o da doen�a e, ap�s seis meses, quando o paciente internou-se, por j� estar com obstru��o cinco vidas a f� Remove montanhas 133 intestinal e dores terr�veis, o tumor j� era inoper�vel e o progn�stico de sobrevida era de, no m�ximo, tr�s meses. os familiares abriram um processo judicial contra o esp�rita, mas n�o deu em nada. ele continuou a dar falsas esperan�as de cura e a prejudicar v�rios inocentes. logo que terminamos os nossos cursos universit�rios, dissolvemos a nossa famosa rep�blica e nos separamos. nos tr�s anos seguintes eu, praticamente, isolei-me do mundo enquanto fazia a chamada resid�ncia m�dica, isto �, um curso de aperfei�oamento te�ricopr�tico, logo ap�s o �ltimo ano da faculdade, durante o qual trabalh�vamos em tempo integral, praticamente morando dentro do hospital. neste per�odo eu tive not�cias superficiais do meu amigo, ficando apenas sabendo que, profissionalmente, ele saiu-se muito bem, j� possuindo um escrit�rio de advocacia com algum prest�gio. ap�s tr�s anos e meio sem v�-lo, quando eu j� possu�a meu pr�prio consult�rio, ele l� apareceu. eu atendia at� as 18 horas e ap�s este hor�rio, descansava cerca de uns quinze minutos, punha uns pap�is em ordem, fechava tudo e ia embora. naquele dia, pouco antes da minha sa�da, ele apareceu e conversamos por mais de uma hora. recordamos coisas e pessoas, falamos sobre nossa situa��o atual, como profissionais, sobre nossas noivas, sobre pol�tica, etc. pedi-lhe que aparecesse sempre, naquele hor�rio e como o seu escrit�rio n�o era longe, ele seguiu � risca, aquele pedido. houve longos per�odos em que convers�vamos, religiosamente, duas vezes por semana, sempre naquela hora. o termo �religiosamente� faz lembrar-me o assunto preferido das nossas conversas : as religi�es em geral. quando um materialista radical encontra-se com um esp�ritualista radical, s� pode �sair briga� no
campo religioso. ap�s algumas visitas eu percebi que as suas idas ao meu consult�rio, eram para saber a minha opini�o sobre v�rios assuntos pelos quais ele se interessava e pelos quais sabia que eu nutria desprezo e mesmo avers�o. era como algu�m querendo conhecer as opini�es (� claro, erradas) de um antagonista, para poder fortalecer suas pr�prias convic��es. v�rias vezes, por exemplo, ele me perguntava o que eu achava de um determinado medicamento, como foi o caso de uma f�rmula homeop�tica que servia para evitar a calv�cie, pois havia um conhecido seu que, ap�s tom�-lo, parou de perder cabelos e, inclusive, teria aumentado a cabeleira. eu explicava-lhe que n�o era homeopata, mas, mesmo assim, achava que a homeopatia podia ter algumas coisas �teis. mas esta generaliza��o, querendo curar tudo, era absurdo. no caso do rem�dio para queda de cabelos cinco vidas a f� Remove montanhas 134 eu n�o podia opinar seriamente sobre o assunto e nem pessoa alguma poderia faz�lo, pois ele me citava apenas um caso e eu, para avaliar um medicamento estava acostumado a usar m�todos estat�sticos. assim, sugeri-lhe que fizesse um trabalho cient�fico sobre o medicamento, selecionando, por exemplo duzentos pacientes com queda de cabelos, por motivos semelhantes. cem deles tomariam o rem�dio e cem, n�o. ap�s cerca de uns cinco anos far-se-ia um interrogat�rio e um exame nos duzentos e, ent�o, se poderia ter uma id�ia da efic�cia do rem�dio. se n�o fosse feito assim, era conversar sobre crendices absurdas e sobre milagres, t�o desejados por quem precisa deles, que chega a parecer que acontecem, mesmo sem acontecer. tamb�m precisamos excluir os fatos que n�o dependem do rem�dio. muitas pessoas que t�m queda de cabelos passam per�odos grandes sem t�-la, mesmo n�o estando tomando nenhum medicamento. outro exemplo elucidativo, � o caso de pessoas com �lcera gastroduodenais; muitas cicatrizam sem nenhuma medica��o ou dieta; se um destes pacientes, que melhoraria sem nada, por acaso tomou meio litro de pinga que coincidiu com o in�cio da melhora? voc� entraria aqui e me perguntaria o que eu acho da cura da �lcera pela pinga. ele argumentava que eu sempre fora descrente e que mesmo que um medicamente fizesse bem para um �nico paciente, no mundo todo, ele deveria ser elogiado, pois para aquela pessoa o �ndice de cura � de cem por cento. e enveredava por racioc�nios estapaf�rdios e prometia trazer-me trabalhos cient�ficos sobre o assunto (mas nunca trouxe), pois o m�dico homeopata, que receitou as bolinhas anti-calvicie, tamb�m era um cientista e n�o um charlat�o.
num outro final de tarde ele veio falar-me sobre a efic�cia da raiz de uma planta (n�o me lembro o nome), sobre a cura do c�ncer; um monge oriental havia descoberto as propriedades terap�uticas da raiz e v�rias pessoas j� haviam se beneficiado. eu, pacientemente, ouvi e, depois, perguntei-lhe porque haviam parado de usar ch� de ip�-roxo e de tomar gotas de �gua oxigenada, duas coisas sobre as quais, em �pocas passados, ele dizia a mesma coisa que sobre esta raiz milagrosa atual. ele mudou de assunto e come�ou a falar de futebol, e at� hoje n�o obtive resposta. a vigarice tamb�m t�m modismos. lembro-me, freq�entemente, do dia em que meu amigo entrou, exultante, no consult�rio. ele sabia que eu n�o acreditava em �discos voadores� e similares. de fato, n�o que eu os achasse imposs�veis teoricamente, mas sabia que, praticamente s�o altissimamente improv�veis. e tamb�m sabia que as pessoas que acreditam nos discos e, cinco vidas a f� Remove montanhas 135 mesmo que chegam a v�-los, s�o as que acreditam, igualmente, numa s�rie enorme de outras coisas sem prova alguma; s� pelo prazer at�vico de acreditar. por estes motivos eu combatia estas vis�es e as suas vers�es, j� in�meras vezes provadas como falsas. mas, na noite anterior, a televis�o havia apresentado um casal que dizia ter viajado numa nave espacial, por algumas horas, embarcando e desembarcando numa estrada, pouco movimentada, pela qual transitavam de madrugada. os jornais da manh� deram a not�cia em grandes manchetes e ele os trazia para mostrar-me. eu lhe perguntei desde quando not�cia de jornal ou televis�o era prova de alguma coisa. os propriet�rios de jornais e das emissoras est�o mais preocupados em vender do que com a verdade e os jornalistas est�o mais preocupados em terminar, na hora certa, o notici�rio, do que com a utilidade ou a autenticidade das not�cias. ap�s alguns dias eu me arrependi daquelas pondera��es pois saiu uma pequena not�cia, no p� da p�gina, dizendo que o homem que havia viajado com os extraterrestres, ca�ra em v�rias contradi��es e acabara confessando a farsa. quando eu mostrei o recorte ao meu amigo ele me devolveu tudo que eu havia dito. pelo menos conclui que a maioria das pessoas acha que os meios de comunica��o, e suas not�cias, s�o �timas quando lhe s�o favor�veis e p�ssimos em caso contr�rio. da� pra frente pude constatar, v�rias vezes, a veracidade disto, inclusive quando em rela��o a pessoas �altamente democr�ticas�. as nossas reuni�es foram, ap�s cerca de dois anos de argumenta��es e contraargumenta��es, interrompidas por cerca de seis meses. talvez a maneira como estou contando o envolvimento do meu amigo nestas ci�ncias marginais, nestes mist�rios, nestas fic��es e contra-sensos, n�o d� a id�ia exata da magnitude do problema. m as ao explicar-lhes porque parei de v�-lo por cerca de seis meses, ficar� mais
claro. ele juntou toda a poupan�a que possu�a, vendeu v�rios bens e partiu, com a esposa, para a �ndia (neste tempo eu e ele j� �ramos casados). mas fazer o que, naquela dist�ncia, indaguei eu, v�rias vezes. ver a pobreza material e, a meu ver, tamb�m espiritual em que vive a maioria da popula��o de l�. mas nada o fazia desistir da id�ia. ele queria se aprofundar nas t�cnicas de medita��o, de relaxamento, de controle da dor, da fome, do sexo, etc. eu pedi para ele ver se conseguia se iluminar como um tal de buda e ent�o talvez ficasse um pouco mais gordinho, pois estava muito magro, com a excita��o e os preparativos da viagem. cinco vidas a f� Remove montanhas 136 disse-lhe que as religi�es n�o tinham o direito de fazer as pessoas sofrerem ou sentiremse culpadas ou pecadoras e, al�m de tudo isto, no caso dele, fazendo-o gastar mais do que devia, com uma viagem in�til. tudo em v�o. ele partiu e, quando voltou, achei-o decepcionado e com a sensa��o de ter passado por tolo. logo que retomamos nossos encontros, nas tardes, ao final das minhas consultas, notei um profundo desapontamento dele com as religi�es orientais. n�o consegui bem entender porque, mas para voc�s sentirem bem, a gravidade do caso dele, achei que era porque havia ci�ncia em demasia naquelas religi�es; ele queria mesmo era acreditar em coisas fant�sticas, sobrenaturais, inexplic�veis e imposs�veis de serem provadas ou demonstradas; era adepto do �nonsense� cient�fico e mesmo religioso. a verdade � que eu esperava grandes discuss�es ap�s a volta dele, e nada aconteceu. parecia que ele queria ignorar a viagem, as religi�es orientais e os gastos enormes que teve. voltou a trabalhar, arduamente, pois algo, pelo menos, havia resultado da aventura: sua esposa trazia no �tero, um beb� gerado na �ndia. eu me divertia dizendo que certamente seria um grande guru ou uma gurua (ser� este o feminino?). naquela �poca eu assisti a um filme que, finalmente, respondeu a quest�o que me atormentava: por que meu amigo n�o havia gostado das baboseiras orientais? no filme, um intelectual ingl�s vai visitar o deserto, nas ar�bias, e, ao conversar com um chefe n�made, elogia, romanticamente, a areia, o sol, a imensid�o do local ao que o �rabe retruca: �quem gosta disto s�o os intelectuais ingleses. n�s gostamos � de sombra, muita �gua e clima ameno�. eu diria o mesmo em rela��o � �ndia; quem gosta daquela pobreza, fome, mortifica��es e auto-flagelos s�o os intelectuais estrangeiros; os habitantes locais, de fato, gostariam de
coisas bem diferentes se pudessem. e, como nosso personagem n�o � l� nenhum intelectual e muito menos rom�ntico, s� poderia enjoar, rapidamente, daquilo tudo. ali�s, mesmo os intelectuais, na sua grande maioria, se fossem viver com os bedu�nos n�mades ou com os faquires da �ndia, logo voltariam para o carpete e o ar condicionado, que podem n�o ser t�o rom�nticos, mas s�o bem mais confort�veis e suport�veis. ap�s alguns anos estabilizou-se economicamente, outra vez e, sobrando-lhe algum tempo, oh! carga filogen�tica, come�ou a se interessar, novamente, por tudo de ruim que as religi�es e as cren�as, em geral, criaram durante a hist�ria do homem. cinco vidas a f� Remove montanhas 137 voltou a ler a sorte nas cartas e nas m�os, a consultar hor�scopos de jornais, hor�scopos chineses, a freq�entar esp�ritas que curavam tudo, a fazer dietas irracionais, a usar brinquinho na orelha para parar de fumar, etc. e ainda, pasmem, continuava cat�lico. seu casamento foi na igreja cat�lica e seus filhos foram l� batizados. ele ainda detestava as capitula��es do catolicismo � Ci�ncia, mas continuava adorando a parte m�stica e o ritual tribal daquela religi�o. passaram-se v�rios anos e parece que meu amigo havia encontrado um �modus vivendi� relativamente pacato se consideramos as suas esquisitices. embora vivesse sempre � cata, de novas baboseiras, j� n�o se entusiasmava tanto quanto na juventude. nossos encontros filosoficos-religiosos-futebol�sticos ficaram mais espa�ados e as discuss�es menos acaloradas. velhice ap�s o per�odo de acalmia dos sintomas, no fim da idade madura, houve um fato que parece ter tirado da quietude aquela massa cinzenta cerebral carregada de vontade de acreditar em irracionalidades. certa tarde, quando ele apontou no meu consult�rio, logo percebi que n�o era para conversar sobre cren�as, como sempre faz�amos, pois sua esposa o acompanhava e foi verdadeiramente, uma consulta ao m�dico e amigo. ela estava queixando-se de falta de apetite, emagrecimento h� cerca de dois meses e inapet�ncia moderada. o marido j� havia lhe dado alguns ch�s de ervas bem a seu gosto e disse que havia tido um sonho cuja interpreta��o lhe assegurava que a esposa n�o tinha nada. eu achei-a magra demais, em rela��o � �ltima vez que a vi, e com uma palidez cut�neo-mucosa de chamar a aten��o at� de um leigo, em medicina. ao exame f�sico, um frio correu-me pela espinha; n�o havia d�vida sobre a possibilidade de ser um c�ncer de est�mago, pois j� era palp�vel uma pequena massa tumoral na regi�o correspondente. os exames laboratoriais, radiol�gicos, endosc�picos e as bi�psias confirmaram, com
cinco vidas a f� Remove montanhas 138 certeza, a suspeita cl�nica. conversei horas e horas, com meu amigo, sobre o problema, sem a presen�a da mulher. expliquei-lhe, v�rias vezes, que era uma doen�a da qual n�o se conhecia a causa exata e porisso v�rios pontos ainda eram imprevistos. n�o pod�amos nunca falar em cura, mas somente em sobrevida. eu tinha pacientes que sobreviveram 6 meses, um ano, dois anos e at� 10 anos, ap�s o diagn�stico e o tratamento cir�rgico. al�m da cirurgia poder�amos, se necess�rio, recorrer � quimioterapia e, ou � radioterapia. at� hoje n�o sei se ele prestava muita aten��o no que eu dizia, pois estava verdadeiramente, abalado. de qualquer maneira combinamos que eu diria a ela que havia uma �lcera benigna, grande, com indica��o absoluta de cirurgia e me encarregaria de convenc�-la a operar-se. ele tentou falar-me sobre tratamentos alternativos (muito em moda, mas que nada t�m a ver com a medicina s�ria), mas eu fui t�o rude na negativa que parece que funcionou. afinal, tratava-se de uma quest�o de vida ou morte e se ele fizesse qualquer coisa naquele sentido eu me retiraria, imediatamente, do caso. eu n�o prometia cur�-la mas sabia, tamb�m que ningu�m, deste mundo, ou do al�m, conseguiria faz�lo e s� se perderia tempo tentando. sabia igualmente que eu poderia proporcionar-lhe uma sobrevida de melhor qualidade, mesmo sem cur�-la e isto, at� hoje, s� a medicina cl�ssica conseguiria. a cirurgia, ent�o, foi marcada rapidamente e o resultado foi o esperado. j� havia acometimento hep�tico e ganglionar intensos e fez-se apenas uma opera��o paliativa, retirando-se o tumor prim�rio para se evitar sangramentos futuros e para melhorar a digest�o, mantendo-se perme�vel o tubo digestivo. logo ao sair, do centro cir�rgico, pus o meu amigo ao par da situa��o: a sobrevida seria curta (cerca de seis a oito meses) e a qualidade de vida, com certeza seria regular e ruim, no final. ele parecia n�o acreditar no que eu dizia. ou melhor, parecia n�o concordar com quem s� possu�a uma maneira de tratar. �com certeza existiriam outras alternativas�, foi o pensamento que eu li no seu semblante. al�m disto eu percebi que ele lutaria com todas as for�as, embora com armas erradas, para salv�-la. e, sinceramente, naquela hora dolorosa, eu n�o sabia se o reprovava ou estimulava e n�o fiz nem uma coisa, nem outra. j� no p�s-operat�rio imediato eu precisei ir ver outro paciente, fora de hora, e aproveitei cinco vidas a f� Remove montanhas 139
para passar no quarto da minha comadre (n�o sei se j� lhes disse que eu era padrinho do segundo filho do casal, embora n�o fosse cat�lico e isto fosse um paradoxo). pois bem, o apartamento do hospital, no qual ela estava internada, tinha se transformado em verdadeira sess�o esp�rita. uma pequena m�dium (pequena porque era quase uma an�), havia acendido v�rias cubas com brasas e plantas arom�ticas e estava dizendo coisas inintelig�veis, fazendo-me lembrar da vez que meu amigo levou-me para �desencostar� sei l� o que estava �encostado� em mim. sa� r�pida e bruscamente do quarto batendo a porta com viol�ncia e fui seguido pelo marido da paciente (naquela altura eu j� nem o chamava de �meu amigo�); chamei-o para uma sala reservada e disse-lhe coisas muito �speras. aquele era um hospital onde se praticava uma medicina s�ria e decente, baseada em fatos concretos e n�o em cren�as absurdas. ele devia ter me consultado antes de promover aquele �show� rid�culo. sua esposa poderia ter problemas se sofresse traumas emocionais durante aquelas sess�es bizarras. a dire��o do hospital poderia sugerir a transfer�ncia da paciente se eu contasse o que estavam fazendo, pois aquilo n�o era assist�ncia religiosa ao enfermo e sim alternativa descabida de tratamento, n�o autorizada. falei, falei, falei e s� parei quando o vi chorando. e n�o foi um simples chorinho, mas uma demorada convuls�o emocional. quando cessou e se acalmou, come�ou a falar baixinho, aspirando as l�grimas pelo nariz. pediu mil desculpas e atribuiu tudo ao seu desespero. disse que a m�dium iniciou a sess�o fazendo uma ora��o para mim, para que minhas m�os fossem bem guiadas. que ele n�o permitiria que ningu�m interferisse na minha conduta e mesmo que fizesse a menor cr�tica. no final suplicou-me para n�o conden�-lo por �tentar tudo�, pois na medicina cl�ssica n�o havia mais chance, segundo eu mesmo o informara. ele amava demais a esposa e n�o conseguia imaginar a vida sem ela e n�o queria perd�-la de forma alguma. falou, falou, falou e s� parou quando viu l�grimas nos meus olhos, tamb�m. n�s nos abra�amos e choramos juntos durante uns quinze minutos. ele porque ia perder a esposa amada. eu porque ia perder a amiga, a comadre, a paciente e a luta contra o obscurantismo, pela minha pr�pria incapacidade de curar e talvez de provar que, tamb�m, ningu�m curaria. para encerrar aquela cena, altamente tensa, eu propus o seguinte: de fato, pela medicina que eu conhecia e exercia, e que para mim era a �nica com, pelo menos alguma efici�ncia, cinco vidas a f� Remove montanhas 140
n�o havia mais chance al�m de uns oito meses de sobrevida e, ainda por cima, com muito sofrimento. eu n�o me oporia, de maneira alguma, a que ele tentasse outros tratamentos que quisesse, desde que n�o oferecessem riscos de agravar o quadro da paciente. talvez, n�o fazendo bem, mas, tamb�m, n�o fazendo mal, fosse toler�vel. e, fiz uma promessa solene. prometi que, se ele conseguisse resultados diferentes, para melhor, daqueles previstos por mim eu abandonaria tudo (fam�lia, amigos, profiss�o) e iria com ele acreditar e me dedicar ao estudo de quanto ele houvesse ousado fazer para curar a esposa. ser�amos dois adeptos, estudiosos e propagadores dos mist�rios, dos contra-sensos, das ci�ncias marginais, do ocultismo, do sobrenatural, a vagar pelo mundo, tentando descobrir como fazer milagres, porque saber�amos que eles s�o poss�veis. e fazia aquela promessa com toda a sinceridade pois, como ele sabia, eu, tamb�m, n�o queria perder uma grande e leal amiga; embora soubesse de antem�o o resultado, iria torcer muito para que eu pudesse dizer, no final, que sempre estive equivocado n�o aceitando o uso de armas n�o convencionais (e para mim n�o eficientes) no tratamento de mol�stias. naquele momento meu amigo me surpreendeu pois tamb�m prometeu que, em caso contr�rio ele deixaria de acreditar em tudo que vinha acreditando at� ent�o e me perguntou, de supet�o, em que eu queria que ele acreditasse e ele toparia. como eu n�o possuo religi�o definida foi imposs�vel dizer-lhe que se tornasse cat�lico, ateu, budista, empirista, materialista ou qualquer outra coisa formal. resumindo ao m�ximo que me foi poss�vel, disse-lhe, mais ou menos, o seguinte: �s� h� um grande milagre que � o universo existir, ao inv�s de nada. a pergunta: por que existe mat�ria, energia e espa�o, ao inv�s de nada? , n�o deve ser feita pois n�o pode ser respondida, pelo menos por nossos c�rebros, e, portanto, n�o tem sentido. mas, desde que admitimos isto, n�o existem pequenos milagres (como o que voc� adora). desde o in�cio o universo � inviol�vel; segue de acordo com suas for�as, at� que elas se equilibrem. estas for�as s�o naturais e irrevog�veis. a �nica coisa que podemos fazer � estud�-las, atrav�s do m�todo cient�fico e utiliz�-las a nosso favor, isto �, a favor da preserva��o da mat�ria organizada, viva. n�o podemos anul�-las. se voc� me diz que viu uma levita��o, mesmo que o levitado for muito magro, voc� est� revogando a lei da gravidade e, ent�o, o universo ser tornaria inintelig�vel, il�gico e acabar-se-ia a nossa chance de estud�-lo e de usar suas for�as a nosso favor. portanto se tudo em que voc� acredita for verdadeiro, o universo � inintelig�vel para o homem
e est� cinco vidas a f� Remove montanhas 141 decretada a fal�ncia da ci�ncia. �, porisso que eu tor�o contra suas besteiras e, a priori, me recuso a acreditar nelas. al�m disto, eu tamb�m acho que um milagre isolado, um pequeno milagre, � uma verdadeira sacanagem. por exemplo: naquele tempo (parodiando o evangelho), um leproso foi curado (um milagre). mas, e os milhares e milhares de leprosos que existiam, o que lucraram com aquilo? a maioria deve ter ficado muito revoltada. por que curar ele e n�o eu? porque n�o por a disposi��o de todos os meios de curar? por outro lado, a humanidade, estudando dura e penosamente, com muita paci�ncia, as causas da mol�stia, descobriu medicamentos que, hoje, curam, praticamente todos os hansenianos e n�o discriminadamente, s� um. portanto, sacramentadas as nossas promessas, quero que voc�, ao final , pare de tentar entender as coisas de maneira anti-natural ou sobrenatural (como preferir). pare de acreditar em pequenos milagres. aceite o que a� est�, mesmo sem saber por que est� e tente entend�-lo cientificamente, que � a �nica maneira poss�vel, embora, tamb�m, a mais lenta e dif�cil. assim foi dito e assim ach�vamos que seria cumprido o trato. nos seis primeiros meses ap�s a alta da paciente, o casal, de fato, �tentou de tudo. vou relatar-lhes aquilo que chegou ao meu conhecimento, embora eu saiba que houve muitas outras tentativas. inicialmente foram a v�rios �sal�es de curas�, nos quais h� um pastor que, ap�s esbravejar, fazer trejeitos, apontar com o dedo indicador (como a acusar) e prometer o apocalipse agora, criando um clima de terror na plat�ia (geralmente inculta e muito suscept�vel), come�a a curar a todos os doentes presentes, com simples acenos e toques de m�os. em todos estes sal�es lhe disseram: �v� irm�, voc� est� curada. sua f� lhe salvou�. ao mesmo tempo freq�entaram um esp�rita famoso, numa cidade vizinha � Capital, que, segundo eles, havia curado v�rios casos semelhantes ao dela. as viagens para l�, embora penosas para a paciente, foram feitas semanalmente, todas as quartas-feiras e nas quintas seguintes vinha o meu amigo dizer-me que estava havendo grandes progressos com a comadre e que o m�dium lhe assegurara a cura com tanta certeza que eu j� podia arrumar as malas e preparar-me para ir acreditar e praticar com o esp�rita da cidade vizinha. ali�s, se eu j� quisesse encaminhar alguns pacientes �incur�veis� para l� ele me conseguiria encaix�-los mais rapidamente na agenda do milagroso.
cinco vidas a f� Remove montanhas 142 ap�s cerca de dois meses, os fatos desmentiram, t�o obviamente, aquela farsa, que eles foram deixando de ir l�, mas, segundo soube por terceiros, resolveram tentar uma pajelan�a. foram at� a capital de um estado vizinho onde encontraram-se com dois �ndios que, durante v�rios dias dan�aram e fumaram em torno da paciente, espantando todos os males que haviam entrado no corpo dela. ��ndio fala que homem branco come s� coisa ruim e ataca est�mago�, teriam dito eles e o nosso amigo ficou maravilhado com aquela afirma��o t�o s�bia, mantendo a esposa com comidas naturais e cruas (prescritas pelos ind�genas) durante um m�s, at� que ela pr�pria se recusou pois sentiu no pr�prio organismo a fraqueza e o mal-estar que aquilo provocava. os �ndios ganharam as passagens da tribo at� a capital (ida e volta), tiveram uma tarde toda de compras, pagas pelo cliente, e, ainda voltaram com a sua conta banc�ria aumentada, mesmo ap�s gastarem muito em comida de homem branco, freq�entando v�rios restaurantes. � duro, para um m�dico, ver sua cliente passar por estas asneiras. entretanto, para mim, a tentativa mais perniciosa que fizeram foi a de ir a um charlat�o que, infelizmente, possu�a um diploma de m�dico, e fazia �vacinas contra o c�ncer�. al�m disto ele se autopromovia dizendo aos clientes que era reconhecido internacionalmente e que seus estudos eram pioneiros e rigorosamente cient�ficos (s� ele pr�prio acreditava naquilo, al�m, � l�gico de alguns incautos). na verdade as suas vacinas, no que os m�dicos em geral haviam constatado, eram um verdadeiro blefe em cima de pacientes terminais e desesperan�ados, dando-lhes falsas esperan�as de cura e, �s vezes, o que � pior, retardando a aceita��o, pelo paciente, de tratamentos comprovadamente eficientes. o vigarista que se traveste de homem honesto e s�rio �, se d�vida, o pior tipo. m as, para resumir, o casal freq�entou telepatas, videntes, interpretadores de sonhos, psic�grafos, levitadores, materializadores, gurus, fabricantes de rem�dios esquisitos e a cura n�o vinha. os per�odos de acalmia dos sintomas eram seguidos de fases de agravamento, como v�mitos, dores e desidrata��o, quando ent�o procuravam um hospital convencional e eu a hidratava, sedava a dor, transfundia sangue e derivados e dava alta ap�s melhora do estado geral. o emagrecimento era cont�nuo e suas fei��es j� iam se tornando encovadas ao fim do quinto m�s ap�s a cirurgia. cinco vidas a f� Remove montanhas 143 nesta �poca, um programa de televis�o, tradicional em divulgar coisas s�rias com
uma irresponsabilidade fant�stica, mostrou uma reportagem na qual informava que, na calif�rnia, alguns m�dicos, de �tima reputa��o, estavam conseguindo a cura do c�ncer. � l�gico que se tratava de uma meia verdade, mas para os leigos no assunto, que s�o a maioria dos telespectadores, era uma verdade inteira. a televis�o falou, t� falado. eu mesmo tive que esclarecer v�rios pacientes dizendo que, como o programa � semanal eles t�m que arrumar not�cias de impacto a todo custo e rapidamente e porisso d�o, como completa, experi�ncias iniciais, noticiando coisas que, na verdade n�o tem import�ncia alguma, como se fossem a salva��o da humanidade. m as, l� foram, meu amigo e esposa, rumo � Calif�rnia, para tirar as d�vidas. al�m disto, como todos sabem, l� � o para�so das esquisitices e das vigarices (coisas de pa�s rico) e eles aproveitariam para �tentar tudo� que prometesse a cura da doen�a. os m�dicos que apareceram no programa da tv brasileira estavam furiosos e querendo processar a rede que os levou ao ar, distorcendo a verdade e induzindo as pessoas a procur�-los para fazerem coisas que n�o eram capazes. eles dispensaram o meu amigo em poucos segundos e, ap�s lerem um relat�rio da paciente, enviado por mim, aconselharamno a continuar o tratamento no brasil mesmo, pois o que estava sendo feito era o poss�vel, na atualidade. antes de retornarem eles percorreram toda a calif�rnia � procura de chefes de seitas, gurus, m�diuns, massagistas e todas as outras esp�cimes de esquizofr�nicos que fazem ponto naquelas terras, tirando dinheiro de estrangeiros e principalmente dos pr�prios americanos trouxas. foi numa destas malogradas incurs�es californianas que o nosso amigo conheceu um guru que muito o impressionara e que teve grande influ�ncia em sua vida da� para a frente, como veremos. passados os oito meses que eu havia previsto, nada aconteceu. a minha comadre parecia regular de sa�de, embora muito magra. meu amigo j� come�ava a querer cobrar-me a promessa e eu j� estava at� torcendo para ter que pag�-la, quando... na �ltima consulta notei um pequeno sinal que dizia muito; os olhos da paciente estavam moderadamente amarelados. era a icter�cia que prenuncia o agravamento r�pido do quadro. no m�s seguinte o emagrecimento e a icter�cia se acentuaram, assustadoramente, pelo cinco vidas a f� Remove montanhas 144 ac�mulo de l�quido asc�tico e as interna��es se repetiam t�o freq�entemente que resolvemos deix�-la definitivamente no hospital, at� o �bito. ap�s dez meses da cirurgia, quando ela j� se encontrava inconsciente, sob o efeito de sedativos e analg�sicos
potentes (devido �s dores intensas), houve uma queda irrevers�vel da press�o arterial e paradas card�aca e respirat�ria. o vel�rio foi muito traum�tico para o esposo e os dois filhos, conforme eu soube por terceiros. eu, desde que comecei a clinicar adquiri o h�bito de n�o ir aos vel�rios de meus pr�prios pacientes pois quando tentei ir, no in�cio, senti-me t�o mal que retireime �s pressas. um colega meu, psiquiatra, disse-me que eu levo a profiss�o t�o a s�rio que o meu sentimento de culpa (mesmo sem t�-la, geralmente), pela morte dos pacientes � enorme, e, porisso, n�o tolero vel�rios. ser� mesmo? estes psiquiatras continuam explicando tudo e n�o curando nada. durante o sepultamento, num cemit�rio pr�ximo ao hospital onde eu trabalho, o meu amigo apresentou dores tor�cicas e opress�o retro-esternal, desmaiando a seguir e sendo trazido, �s pressas, para o pronto socorro, e de l� internado, para observa��o. foi constatado uma insufici�ncia card�aca leve e, ap�s a medica��o habitual, houve melhora r�pida, mas ele permaneceu at� a manh� seguinte. � noite conversamos muito sobre v�rios assuntos. eu n�o tive coragem de cobrar-lhe a promessa, naquelas circunst�ncias, mas foi ele que disse-me, espontaneamente, que iria cumpri-la. de fato, dava-me raz�o em tudo que eu lhe dissera na doen�a da sua esposa. todas as promessas que lhe fizeram, os in�meros �vigaristas� que procurou, foram in�teis e mentirosas. daqui para frente pararia de ser um cr�dulo inocente, com mania de milagres e de encontrar explica��es f�ceis e maravilhosas. caminharia a passos pequenos, mas seguro; consideraria o universo perfeitamente l�gico e suas leis inviol�veis e a �nica maneira de estud�-las e utiliz�-las seria o m�todo cient�fico rigoroso que, embora dif�cil, era verdadeiro e impessoal. basta de pequenos milagres q ue embotam a s nossas mentes e n �o levam a n ada na p r�tica. al�m disto, querer construir o nosso conhecimento, pelas exce��es, � absurdo, ainda mais quando estas exce��es, se � que existem, podem apenas ser constatadas, mas n�o compreendidas. ao ouvir isto eu cheguei a considerar �til a morte da nossa amiga. se ela tinha provocado tamanha mudan�a na �cuca� do nosso amigo, ent�o, n�o foi em v�o. para mim, se aquilo, de fato, perdurasse, teria sido a ressurrei��o de uma mente que eu considerava cinco vidas a f� Remove montanhas 145 morta para a l�gica e as ci�ncias verdadeiras. seria uma morte provocando uma ressurrei��o. o tempo se encarregaria de me ensinar que a carga gen�tica, como as leis universais, �
irrevog�vel e ap�s um esfor�o herc�leo para mudar, aquele c�rebro voltaria a atuar pelos atalhos das pseudo-evid�ncias. note o leitor que isto de carga gen�tica � uma teoria minha, n�o comprovada e que n�o tenho a menor vontade de me esfor�ar para prov�-la. mas eu me acostumei a explicar aquela mente insana deste modo e fi-lo tantas vezes que citoa como se fosse inteiramente verdadeira. o que mais me repugna nesta teoria, � que ter�amos que dividir os homens em possuidores de c�rebros geneticamente bons, (a meu ver) e os de c�rebro geneticamente ruins e isto seria uma discrimina��o totalmente infundada, embora, ainda segundo a teoria, estes �ltimos seriam minoria e tenderiam a desaparecer com os anos, com o progresso cada vez mais r�pido das ci�ncias. exceto na calif�rnia. l� n�o. eu at� j� cheguei a sugerir que todos os esquisitos do mundo, e seus seguidores, fossem confinados l�, na meca do sobrenatural, dos exc�ntricos, dos man�acos e dos idiotas que pagam para que eles sobrevivam. voltando � nossa est�ria, vejamos como evoluiu o nosso amigo. ap�s a alta foi aconselhado a diminuir o ritmo de trabalho e a praticar esportes. ent�o, passou a trabalhar meio per�odo e a nadar uma hora por dia, lendo o restante do dia. como havia me prometido dedicava-se apenas a leituras t�cnicas, ou biografias, ou fic��es. nada de hor�scopos, leituras esp�ritas, revistas de magias e de religi�es orientais, como costumava fazer. v�rias vezes eu tive que faz�-lo voltar aos trilhos pois ele, mesmo sem querer, gostava de ir um pouco r�pido nas conclus�es, sobre tudo que lia, pegando sempre atalhos perigosos. era dif�cil faz�-lo caminhar, como a ci�ncia, lentamente, sem criar entidades que explicam tudo, mas s�o elas pr�prias inexplic�veis. passaram-se cerca de dois anos e meio e aquela rotina n�o o agradava nem um pouco. trabalhar, nadar e ler estava ficando intoler�vel para ele. resolveu, ent�o, tirar dois meses de f�rias e, adivinhem para onde ele foi? para a calif�rnia procurar sentido para a sua exist�ncia com o guru que havia conhecido durante a doen�a da esposa, e que tanto o impressionara. voltou com id�ias muito estranhas, criticando todos os bens materiais e proclamando a inutilidade dos mesmos. a vida devia ser simples e em comunh�o com a natureza, cinco vidas a f� Remove montanhas 146 despojada de luxo, de sofistica��o e, mesmo, de tecnologia. era, mais ou menos, a teoria do selvagem feliz, em nova vers�o. em todo caso a argumenta��o n�o era, de todo, inconsistente e eu, de fato, concordava com v�rios pontos. cheguei a dizer-lhe que j� hav�amos vivido uma vida semelhante �quela
que ele proclamava, quando mor�vamos no interior antigo e ambos sab�amos que n�o era t�o boa assim. ele, ent�o, dizia que na �poca n�o �ramos suficientemente conscientes para sabermos o que nos era bom ou ruim e ainda n�o hav�amos vivido na cidade grande e com tanta tecnologia para podermos comparar. ele insistiu v�rias vezes, para eu acompanh�-lo aos estados unidos afim de conhecer o chefe espiritual da seita que ele agora defendia. eu lembrei-me da promessa que ele havia feito e disse-lhe que ele estava agindo como se a esposa dele tivesse sido, milagrosamente, curada. n�o, retrucou ele, enfaticamente. aquilo que era defendido, atualmente, nada tinha a ver com ci�ncia ou pseudo-ci�ncia. era, somente, uma filosofia de vida, ou melhor, eram apenas regras para se adquirir uma maneira de se viver. tudo bem, concordei eu, mas pedi para tomar cuidado e n�o partir de premissas falsas ou duvidosas, pois poderiam levar a resultados desastrosos. deveria usar ao m�ximo, o bom senso e evitar fanatismos. ap�s mais dois meses no brasil, l� foi ele de mudan�a para a costa oeste americana, diretamente para a aldeia californiana, fundada pelo seu guru-guia. e eu que pensei que aquela antiga viagem � �ndia tivesse tornado-o imune � filosofia hindu. bem mas talvez o que o tenha mesmo desagradado tenha sido o pa�s paup�rrimo. guru em pa�s rico fica bem mais suport�vel e com ar mais capitalista. do dia em que eu fui ao aeroporto lev�-lo at� tornar a v�-lo, novamente, transcorreramse oito anos. neste per�odo s� tive not�cias raras sobre ele, atrav�s de seus dois filhos que eu contatava uma ou duas vezes por ano, pelo telefone, principalmente o que era meu afilhado. ao fim de mais ou menos sete anos e meio de aus�ncia do nosso personagem fui surpreendido por uma visita noturna, de surpresa, � minha casa, dos dois filhos do mesmo. eles contavam que as not�cias que o pai enviava eram rar�ssimas, constitu�das de pequenas cartas. o local onde ele vivia recluso n�o possu�a telefone e os contatos eram extremamente dif�ceis, se n�o partissem do pai. nas duas �ltimas cartas, embora muito curtas, perceberam que o velho estava com problemas de sa�de pois citava dores tor�cicas, falta-de-ar noturna cinco vidas a f� Remove montanhas 147 e pernas inchadas. eles vinham pedir-me, encarecidamente, que eu fosse at� a calif�rnia visit�-lo e, se necess�rio, trat�-lo, mesmo que fosse preciso traz�-lo de volta ao brasil. eu tinha, se d�vida, sido o melhor amigo de seu pai, afirmaram eles, e n�o podia negar-lhes aquele
favor. os dois jovens eram muito simp�ticos e sabiam convencer. al�m disto eles iam muito bem, profissionalmente; um deles era engenheiro civil e possu�a uma construtora que ia de vento em popa e o outro era um pequeno, mas s�lido industrial. eles pagariam todas as minhas despesas e mais os honor�rios profissionais. as minhas f�rias programadas estavam pr�ximas, de maneira que, em quinze dias, ap�s a visita, eu parti. a aldeia do guru, onde habitava nosso personagem, ficava no munic�pio de uma pequena cidade californiana, com apenas um motel na estrada principal que passava pr�xima � cidade. de modo que eu l� me instalei e logo parti para executar a minha tarefa. a aldeia era toda cercada e possu�a avisos de �n�o entre� em quase toda a periferia. al�m disto via-se alguns guardas com c�es, desestimulando-se as invas�es. pelas informa��es, que eu facilmente consegui com o gerente do motel, para entrar na propriedade eu deveria dirigir-me a um escrit�rio que a seita possu�a no centro da cidade e l� conseguir uma autoriza��o. foi o que tentei, em v�o. ao chegar fui secamente recebido por dois guardas que me encaminharam a um representante do guru. este, ap�s alguns pequenos sinais de gentileza disse-me que eu s� teria a autoriza��o para ver o meu amigo se este manifestasse, voluntariamente, o desejo de ver-me. eu poderia escrever um bilhete que lhe seria entregue. foi o que fiz. ap�s alguns dias sem resposta, dirigi-me novamente ao escrit�rio e o mesmo representante informou-me que meu amigo lera o bilhete e nada manifestara, at� ent�o. o escrit�rio iria permanecer fechado por algumas semanas pois ele (o representante do guru viajaria para a �ndia para tomar um banho de cultura m�stica, de modo que ele achava melhor eu retornar ao brasil, escrever de l� e quando ele quisesse receber-me eu retornaria. disse-me que meu amigo estava bem, apenas com pequenos problemas de sa�de, comuns na idade dele, mas que estavam sendo solucionadas pelo pr�prio guru-chefe, com t�cnicas especiais por ele elaboradas. e isto era uma grande honra. voltei para o meu pequeno apartamento, no motel, disposto a arrumar as malas e partir cinco vidas a f� Remove montanhas 148 de volta. entretanto, na recep��o, o gerente, j� ent�o muito amigo meu (depois de tantas gorjetas), apresentou-me um senhor venezuelano que ali estava para ingressar na seita e ir morar na aldeia. ap�s alguma conversa, no bar, resolvi ir com ele. depois de tr�s dias est�vamos sendo entrevistados por um outro representante do guru (eu dei gra�as pelo fato do primeiro ter viajado). algumas mentiras na minha ficha, ao preench�-la, principalmente quanto �s minhas posses e rendimentos de im�veis e capitais, que seriam absorvidos pela
seita em troca da minha hospedagem l�, logo abriram-me o caminho e no dia seguinte eu sa� do motel e mudei-me para a aldeia. ficaria l� por cerca de quinze dias e se me agradasse sairia, para transferir todos os meus bens para a �aldeia� e ent�o ganharia o t�tulo de s�ciobenem�rito com direito de uso vital�cio do local. o lugar era, de fato, muito bonito, pelo menos na �rea destinada aos novos adeptos. parecia um mosteiro confort�vel, cercado por um belo bosque. comemos muito bem ao anoitecer e dormimos confortavelmente. o sil�ncio e o ar m�stico do lugar, eram , de fato, verdadeiros tranq�ilizantes. na manh� seguinte l� est�vamos, todos os novatos sentados no bosque a espera do guru para uma palestra. o homem, de fato, impressionava fisicamente, principalmente pelos longos cabelos e barba, esbranqui�ados e pelos olhos que pareciam estar sempre mirando o infinito. quanto � parte intelectual era uma �xaropada� ecl�tica., tirando opini�es e dogmas de tantos lugares diferentes que ficava dif�cil de se entender. na minha opini�o s� aceitava aquilo quem queria ou necessitava, de qualquer maneira, abandonar o mundo e tornar-se recluso. era, mais ou menos, com a est�ria da mocinha riquinha que, ap�s um trauma amoroso, sente a necessidade de ser freira; n�o lhe interessa se no convento praticam religi�o ou o que quer que seja, mas sim o fato de que vai deixar tudo para tr�s e iniciar vida nova, passando um apagador nas coisas pelas quais se magoou. ap�s a palestra eu dirigi-me a um dos auxiliares e elogiei o guru como poucas vezes algu�m o fez, com certeza, comparando-o a buda, a conf�cio, a jesus, a maom� e a einstein. a verdade � que o auxiliar ficou t�o impressionado que facilmente concordou em apresentar-me os �nicos brasileiros que residiam na aldeia que normalmente n�o viam os novatos. o primeiro era um chato que logo descartei. o segundo era meu amigo, que arrastei, imediatamente, para caminhar comigo no bosque, longe dos outros, antes que algu�m percebesse que j� nos conhec�amos. mesmo ele n�o teve tempo de notar isto, t�o r�pido agi. cinco vidas a f� Remove montanhas 149 no passeio contei-lhe, rapidamente, como e porque eu estava ali. perguntei-lhe do bilhete e quando ele me disse que n�o o havia recebido, percebi a gravidade da situa��o. o guru e seus auxiliares n�o tinham interesse em que ningu�m abandonasse a seita, em vida e faziam coisas n�o muito recomend�veis para manter os residentes. a verdade, podiase notar, n�o era o que se v� em alguns filmes sobre seitas malignas que cometem assassinatos e praticam ritos demon�acos. nada disto. era at� uma seita pac�fica e, com certeza, meu
amigo poderia, a hora que quisesse, sair dali simplesmente caminhando para a sa�da e n�o voltando mais e nada lhe aconteceria. havia um contrato assinado que, neste caso, seria ressarcido de seus bens e os rendimentos que tinha voltariam ao seu nome. no caso de �bito natural as suas posses ficariam com a aldeia. de qualquer maneira usavam-se expedientes n�o recomend�veis para que os adeptos vivessem ali at� a morte natural e isto para mim, era grave. ainda mais que a maioria se recusava a utilizar de cuidados m�dicos e farmac�uticos, por influ�ncia da pr�pria teoria religiosa que ali se ensinava. ainda no bosque fiz um breve exame f�sico no meu amigo e, pelo incha�o dos membros inferiores e o pulso acelerado facilmente constatei uma insufici�ncia card�aca moderada. disse-lhe que, com um ou dois medicamento, durante uma semana, estaria controlado e sem sintomas. ele me respondeu, tranq�ilamente que j� estava sendo orientado pelo pr�prio mestre da seita e que vinha sentindo-se melhor, dia a dia, com o tratamento instaurado (dietas, relaxamentos, massagens, plantas orientais). como havia prometido, n�o estava atr�s de milagres mas aquele tratamento era s�rio e cient�fico; era a pr�pria medicina, s� que oriental. eu pensei comigo se existe, mesmo, medicina ocidental e oriental ou se � mais uma maneira de justificar coisas injustific�veis. dei-lhe alguns conselhos diet�ticos, o nome de um diur�tico suave e meu telefone no motel onde eu estaria esperando-o se ele resolvesse tratar-se comigo. senti que n�o haveria meios de for��-lo a aceitar outro tratamento al�m do estabelecido pelo guru; a n�o ser que ele mesmo resolvesse, nada o faria mudar. voltamos para o meio dos outros e ele insistiu veementemente para que eu me tornasse, mesmo, seu irm�o de f�, entrando, como ele, definitivamente para a seita. ele me recomendou a v�rios auxiliares e depois retirou-se para a ala dos veteranos e n�o mais o vi. da� a dois dias, com as recomenda��es do meu amigo e com a convic��o que eu mostrava nas palestras, nas discuss�es e nos elogios, fui dispensado para preparar minhas coisas, cinco vidas a f� Remove montanhas 150 voltar e ficar definitivamente no local. ao sair telefonei, imediatamente para os filhos e deixei-os ao par da exata situa��o e do risco que o pai estava correndo. no mesmo dia ligaram de volta dizendo que estariam comigo em 48 horas e providenciariam, judicialmente, medidas para obrigar o pai a se submeter a uma junta m�dica. j� tinham orienta��es de advogados brasileiros e a indica��o deles para um colega que atuava na calif�rnia e estava habituado com este tipo de coisa.
na realidade chegaram em tr�s dias, justamente algumas horas ap�s o m�dico da cidade, ao qual eu havia me apresentado, ter telefonado e dito que havia sido chamado � aldeia para constatar um �bito. o do meu amigo. a causa mortis foi um edema agudo no pulm�o, disse ele. e acrescentou: �� comum eu atender estes casos l�. s�o velhos que se recusam a tomar rem�dios produzidos pela tecnologia e acabam morrendo antes do tempo. mas j� existem v�rios processos contra a seita e acredito que esta situa��o n�o perdure.� a meu ver a causa mortis foi outra: foi aquela procura insana de apoios imagin�rios e inexistentes de aliados sobrenaturais e de coisas esquisitas, tentando resolver os problemas pela magia ou pelos milagres ou por caminhos muito curtos, abandonando a trilha certa e verdadeira que, quando n�o consegue resolver, diz que n�o consegue e continua trabalhando arduamente para conseguir. mas, o que fazer? a humanidade, at� h� pouco tempo atr�s (no longo per�odo da evolu��o) ainda era constitu�da de primatas irracionais. estas crendices, e mesmo as religi�es em geral, foram necess�rias para transformar nossos ancestrais das cavernas no que somos hoje, atrav�s da nossa marcha evolutiva. hoje as cren�as e religi�es poderiam ser abolidas e esquecidas, mas acredito que ainda perdurar�o por longos anos, em nome da fase em que tiveram alguma utilidade. mas chegar� a �poca em que n�o precisaremos mais nos apegar ao que diziam os homens, analfabetos e incultos, h� mil�nios ou mesmo h� s�culos atr�s e aceitar tudo que diziam naquelas �eras� totalmente diversas da nossa atual ou futura. � como andar de carro�a numa corrida de f�rmula i. a verdade � que eu estava possesso com a morte est�pida do meu amigo. se naquele dia eu visse algum m�dium, �tomado� por algum esp�rito eu seria capaz de enforcar os dois, se � que esp�rito tamb�m pode ser enforcado. se encontrasse com um guru, ent�o, atravessando a rua, n�o titubearia em passar por cima dele com o carro. porisso tratei de n�o sair do motel e de l� ajudei os filhos a providenciarem o traslado do corpo para o sepultamento no brasil. confesso que consegui ir ao vel�rio do meu grande amigo. eu n�o cinco vidas a f� Remove montanhas 151 sentia, como diria meu colega psiquiatra, culpa nenhuma pela sua morte. ao contr�rio, passara a vida toda tentando evitar que aquilo ocorresse. passei por v�rios meses criticando, xingando, maldizendo tudo que era pastor, padre, m�dium, milagreiro, chefe de seita, vegetariano, acumputurista, guru e todos que se apresentam com id�ias absurdas e prometendo que curam tudo e, na verdade, n�o curam
nada. meus amigos, e clientes, aprenderam a n�o mais me perguntar o que eu achava de tal raiz ou se deviam levar um parente a uma sess�o de cura (esp�rita ou protestante) ou se deviam fazer uma novena, promessa ou o raio que os parta, pois sabiam que a resposta seria grossa, curta e mal educada. com o tempo fui voltando a aceitar os homens, inclusive eu mesmo, como eles s�o e n�o como eu gostaria que fossem. ent�o, no natal seguinte � morte do meu amigo, recebi uma carta longa, de agradecimentos, dos filhos dele. por coincid�ncia (ou n�o) eles citavam textos do meu autor preferido, um grande fil�sofo ingl�s, na parte em que se referiam ao meu esfor�o, para com o falecido pai deles, no sentido de mudar �aquela mentalidade insensata�: fa�o quest�o de copiar-lhes um destes trechos: �neste mundo podemos, agora, come�ar a compreender, um pouco, as coisas e a domin�-las, com a ajuda da ci�ncia que abriu caminho, passo a passo, contra a religi�o crist� contra as igrejas e contra a oposi��o de todos os antigos preceitos. a ci�ncia pode ensinar-nos, e penso que tamb�m os nossos cora��es podem faz�-lo, a n�o mais procurar apoios imagin�rios, a n�o mais inventar aliados no c�u, mas a contar antes com os nossos pr�prios esfor�os aqui em baixo, para tornar este mundo um lugar adequado para se viver... um mundo bom necessita de conhecimento, bondade e coragem; n�o precisa de nenhum anseio saudoso pelo passado, nem de encarceramento das intelig�ncias livres por meio de palavras proferidas h� muito tempo por homens ignorantes. necessita de esperan�a para o futuro e n�o de passar o tempo todo voltado para tr�s, para um passado morto que, assim o confiamos, ser� ultrapassado de muito pelo futuro que a nossa intelig�ncia pode criar�. viva. viva. viva . a � doen�a � cerebral do meu amigo n�o era heredit�ria e nem contagiosa. os seus descendentes tinham o c�rebro capaz de andar nos trilhos da l�gica. era apenas uma caracter�stica gen�tica (segundo minha teoria) que o tornava inapto e se adaptar ao novo ambiente cient�fico que estava se criando. cinco vidas a f� Remove montanhas 152 e os inaptos desaparecer�o na competi��o da evolu��o das esp�cies, j� dizia darwin. a humanidade cient�fica estava salva. ep�Logo m ais alguns anos transcorreram quando, numas f�rias que eu passava no litoral paulista, soube que um dos filhos do meu falecido amigo, justamente o meu afilhado, estava construindo um pr�dio de apartamentos junto � Serra, num local maravilhoso. n�o resisti � tenta��o de ir visit�-lo, no local das obras. ao chegar, ainda a certa dist�ncia, impressionei-me com a grande remo��o de terra que
cinco vidas a f� Remove montanhas 153 faziam. praticamente estavam ganhando o terreno da montanha, com grandes terraplanagens e grandes muros de arrimo. o barulho dos tratores e caminh�es era infernal. felizmente logo chegou a hora do almo�o e finalmente pudemos conversar, tranq�ilamente. m eu afilhado repassou toda a vida do pai com cr�ticas firmes e, ao mesmo tempo carinhosas. ainda n�o se conformara com a morte do mesmo naquelas circunst�ncias. contou-me que a seita havia sido judicialmente encerrada e que �le e o irm�o haviam se credenciado como credores da mesma e provavelmente reaveriam os bens paternos. mas isto n�o era nada para eles. coisa alguma os consolaria daquela morte desnecess�ria e antes do tempo. reafirmou todos os termos da bela carta que havia, junto com o irm�o, escrito para mim e conversamos longamente sobre as id�ias daquele autor preferido e pude constatar que, filosoficamente falando, o afilhado sair� ao padrinho. depois falamos de amenidades e das nossas pr�prias vidas at� que, terminado o hor�rio da refei��o dos oper�rios e o descanso p�s-prandial, reiniciou-se o barulho que desestimulava qualquer conversa, por mais interessante que fosse. ent�o despedi-me, deixei meu telefone na praia, prometi que voltaria algumas vezes enquanto estivesse em f�rias e disse que eu ficava muito bravo quando ele passava meses e at� anos, sem me procurar. estava retirando-me quando fui chamado de volta pelo meu afilhado. do lugar onde ele estava viam-se praticamente todas as m�quinas trabalhando. ent�o ele, apontandoas, disse com ar ao mesmo tempo filos�fico e debochado:� meu pai acreditava que a f� remove montanhas. eu acredito que o que remove, mesmo, s�o os tratores�. eu fiquei alguns minutos parado, olhando a for�a da tecnologia transformada em trator e depois fui afastando-me vagarosamente, olhando repetidas vezes para tr�s e depois dei uma sonora gargalhada. tinha vindo do filho a melhor frase que j� ouvira sobre o pai, este estranho (mas n�o raro) personagem. cinco vidas o convertido 154 o convertido �acredito que, quando morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviver�. n�o sou jovem, e amo a vida. mas desdenharei os calafrios de terror ao pensamento da aniquila��o total. a felicidade n�o �, absolutamente, menor e menos verdadeira apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim e tampouco o pensamento e o amor perdem o seu valor por n�o serem eternos� (bertrand russel). �queles que ousam divergir da maioria, cinco vidas o convertido 155 o pronto socorro de um grande hospital, numa grande cidade do terceiro mundo �, sem sombra de d�vida, uma grande escola que nos ensina a conhecer a ra�a humana.
qualquer m�dico ou param�dico que ali trabalhou por muito tempo e se interessou em analisar os v�rios �esp�cimes� que por l� passaram pode ser considerado um mestre na arte de conhecer o ser humano. � l�gico que existem os que por anos e anos trataram de pacientes em condi��es extremas e nada aprenderam al�m da parte mec�nica da coisa, assim como existem pessoas que sobrevivem e n�o entendem a vida, mesmo quando t�m oportunidade de conhec�-la. num mesmo plant�o de 24 horas podemos atender um senador, uma prostituta, um boxeador, um �gay�, uma crian�a morrendo e outra com um simples arranh�o no joelho, um pol�tico, um comerciante, um general, um estudante, um padre, um soldado, um bandido, etc. e a� vemos que todas estas denomina��es s�o apenas r�tulos pois as pessoas em condi��es extremas mostram o seu verdadeiro conte�do. podemos ver uma prostituta, fr�gil, com um desprendimento e altivez impressionantes e um halterofilista enorme, urinar nas cal�as de medo. uma das cenas que me marcou foi o fato de eu ter visto uma parada militar na tv onde aparecia um general imenso, com seu quepe enorme e o peito brilhando de medalhas, com um �ray ban� monumental, dando a impress�o de um grande atleta, apesar da idade e ap�s alguns dias este mesmo general dar entrada no pronto socorro sem as vestes militares, com um infarto no mioc�rdio e ter metade do tamanho que demonstrava na parada, parecendo um velhinho sa�do de algum asilo. eu entendi, como nunca, e como poucos, a necessidade das vestimentas vistosas, usadas nas corpora��es militares, eclesi�sticas, acad�micas e pelos civis. aquele velhinho era, sem d�vida, um grande ser humano como eu constatei durante a sua interna��o, mas se aparecesse perante a tropa sem os enchimentos, os quepes, as ins�gnias, seria motivo de riso. sem o fardamento ele n�o seria nem soldado raso. e todos os ramos da atividade humana s�o assim; a embalagem � que vende. v�amos a mesma situa��o em lindas artistas de tv, em cardeais imponentes, em jovens executivos que esbanjam rios e rios de dinheiro para parecerem mais bonitos e perfumados. no pronto socorro s�o todos despidos e se restringem a eles mesmo, na urg�ncia, no momento em que a vida e a morte apresentam diferen�a de tempo de apenas cinco vidas o convertido 156 um segundo. � verdade que algumas mulheres (e alguns exemplos citados) logo que melhoram pedem a bolsa de maquiagem, as roupas, chamam os maquiadores, etc., e recebem as visitas com a sua cara para consumo, n�o a verdadeira. mas os que as assistiram conhecem-lhes a face oculta e, confesso, muitas vezes � mais bonita que a mascarada. aprendemos tamb�m com os acompanhantes: alguns torcendo descaradamente para um velho morrer, de olho na heran�a; outros perdendo totalmente o controle e outros ainda apresentando uma maturidade e serenidade diante da morte que chegam a comover
mesmo os m�dicos que lidam com isto diariamente. entretanto, mesmo nesta escola de vida existem casos mais e menos ilustrativos. eu posso afirmar-lhes que um dos mais proveitosos em mat�ria de aprendizado passou por minhas m�os e eu tive a felicidade de aproveit�-lo, digamos, integralmente e vou tentar transmitir isto, nestes escritos. trata-se do caso do pastor r.r. (r�mulo romanini). � l�gico que a �tica n�o me permite nomes verdadeiros, datas verdadeiras e nem mesmo assegurar-lhes que a est�ria � verdadeira. entretanto, qualquer semelhan�a com fatos e pessoas reais n�o � mera coincid�ncia. estava eu de plant�o na noite de natal de 1968 e tudo corria tranq�ilamente. apenas alguns b�bados que tomaram glicose na veia, levaram alguns pontos no couro cabeludo e foram dispensados e algumas pessoas solit�rias que entraram em crise, como � comum nas festas natalinas onde a vis�o das fam�lias reunidas agrava a depress�o dos solit�rios isolados na multid�o e ent�o aparecem as crises neur�ticas, as tentativas de suic�dio, as �fossas�. eu havia ministrado tranq�ilizantes a duas jovens e suturado o pulso de uma terceira que, sendo destra, iniciou o suic�dio cortando o pulso esquerdo, mas t�o superficialmente quando pode e logo desmaiando quando viu aquele �l�quido vermelho horroroso�. ela pediu-me para ficar no hospital at� a manh� seguinte pois poderia tentar se matar novamente se fosse para a solid�o do seu pequeno quarto de pens�o. deixei-a sentada na sala de espera, pois n�o t�nhamos leitos nem para casos que necessitavam de fato, e pedi que a enfermeira sempre que pudesse fosse conversar com ela, mas ap�s algum tempo vi que ela estava ajudando os que chegavam, apesar do pulso enfaixado, e muito satisfeita, sem sinal nenhum de depress�o suicida, ou crise de solid�o. chegou a meia noite, apareceram alguns rep�rteres e fot�grafos que parece que estavam cinco vidas o convertido 157 fazendo uma mat�ria, para certa revista, com o t�tulo: �aqueles que trabalham enquanto todos se divertem�. fotografaram tudo, fizeram perguntas tolas (como s� os rep�rteres sabem fazer) a todo mundo e se retiraram t�o r�pido quanto haviam aparecido. logo em seguida a enfermeira-chefe apareceu com um bolo, disse algumas palavras sobre o nascimento de cristo e ofereceu um peda�o a cada um dos presentes no plant�o. alguns, casados, telefonavam para suas esposas. era engra�ado comermos naquele ambiente onde h� poucos minutos passados ou nos pr�ximos seguintes poderia haver algu�m morrendo, ou alguma art�ria esguichando sangue ou algum abcesso drenando pus ou mesmo algum paciente comatoso com elimina��o involunt�ria de fezes enchendo todo o
ambiente de um cheiro intoler�vel para a maioria dos mortais e mesmo para alguns m�dicos e param�dicos. mas era comum, em v�rios anivers�rios, inclusive no de jesus, fazermos estas festinhas �macabras� quando desocup�vamos as macas e us�vamos como mesa, cort�vamos os bolos com l�minas de bisturi, us�vamos gases como guardanapos, ench�amos luvas cir�rgicas para simularem bal�es e outras brincadeiras de residentes de medicina que, na nossa jovialidade, faz�amos para atenuar a imensa carga psicol�gica que se impunha sobre n�s ao sermos lembrados, a todo instante, que a diferen�a entre a vida e a morte � m�nima. se um proj�til de arma de fogo passar um mil�metro mais � esquerda ou � direita, dependendo do caso, pode haver les�o mortal ou n�o; se o paciente chegar com trinta ou quarenta segundos de atraso pode perder a chance de continuar vivendo; se uma crian�a aspirar um pequeno corpo estranho pode chegar-nos totalmente cian�tica e morta; se o pedestre atropelado ou o motorista ou passageiro acidentados tiverem uma pequena les�o de uma arteriazinha milim�trica na cabe�a podem morrer ou em caso contr�rio continuar vivendo. j� li em algum lugar que a vida � como uma chama de vela que pode se apagar com a menor brisa. e, repetindo-me, eu entendia como nunca, e como poucos, que aquilo era verdade, gra�as ao meu trabalho ali. passou a meia-noite, e dividimos o restante de plant�o, da 1:00 �s 7:00, entre os tr�s residentes da noite, cabendo-me as duas primeiras horas. quando o movimento era pequeno permitiamo-nos aquela divis�o; nos dias de grande afluxo trabalh�vamos sem repouso e �s vezes t�nhamos que contar com a ajuda tamb�m dos dois chefes de plant�o e mesmo convocar os outros residentes que moravam no pr�prio hospital. dan�ava-se conforme a m�sica, que podia ser uma sonolenta balada ou um �rock�n roll� fren�tico. cinco vidas o convertido 158 cerca de meia hora ap�s eu ter ficado sozinho, por volta de 1 hora e 35 minutos, ouviuse a sirene de uma ambul�ncia aproximando-se, em velocidade espantosa, e logo ap�s entrando no p�tio de estacionamento em frente, � porta principal. era o sinal para nos pormos de prontid�o e o faz�amos com extrema perfei��o. parecia que uma corrente el�trica percorria a medula de todos e desde o guarda da porta, passando pelas recepcionistas, maqueiros, enfermeiros e m�dicos, tudo se transformava. as portas eram escancaradas, o caminho desimpedido e desde a abertura da porta da ambul�ncia estacionada at� o paciente encontrar-se na sala de recupera��o cardio-circulat�ria e respirat�ria, sendo atendido, transcorriam apenas uns 4 ou 5 segundos. ao mesmo tempo p�nhamos, � m�o, os soros, os aspiradores, as sondas, o oxig�nio, os medicamentos e todo
o material de ressuscita��o, neste curto espa�o de tempo. deste modo, quando a maca entrou com um indiv�duo corpulento, com os l�bios e dedos azulados, respirando muito mal, com restos alimentares saindo pela boca e o cora��o batendo apenas 5 vezes por minuto, j� t�nhamos tudo pronto para tentar salv�-lo. um exame superficial revelou aus�ncia de traumatismos maiores, comuns em atropelados, e tamb�m aus�ncia de tiros ou facadas, muito comuns nestas noites de bebedeiras. a urina molhando a roupa e a mordida na l�ngua vista logo que a cavidade oral foi esvaziada sugeriam um p�s convulsivo com v�mitos e aspira��o, para os pulm�es dificultando a respira��o e levando o paciente �quela situa��o de pr�-�bito, por falta de oxig�nio. imediatamente a boca e a faringe foram desobstru�das e passada uma sonda na traqu�ia do paciente; atrav�s dela ele poderia respirar melhor, poderiam ser ligados a aparelhos para ajudar a respira��o e poderiam ser aspirados os restos alimentares e as secre��es que haviam entrado nos pulm�es. ap�s todas estas manobras, quando conseguimos limpar razoavelmente os br�nquios e introduzir oxig�nio sob press�o, observamos que o cora��o n�o se acelerou, continuando com batimentos muito lentos e, subitamente, parou. a� a correria aumentou. enquanto um enfermeiro ventilava o �morto� atrav�s da sonda na traqu�ia eu fazia massagem card�aca externa no mesmo, para manter o fluxo sang��neo, principalmente para o c�rebro, mesmo que m�nimo. ap�s cerca de dez minutos de massagem externa e de v�rias inje��es intracard�acas de adrenalina n�o havia sinais de recupera��o dos batimentos. ent�o, a meu pedido, apareceu o chefedeplant�o que era um m�dico tamb�m jovem e um dos melhores cirurgi�es que eu j� vi operar (e n�o foram poucos). mas, al�m da habilidade t�cnica ele era extremamente teimoso e cinco vidas o convertido 159 levava esta qualidade a absurdos, �s vezes. neste caso ele achou que o paciente se recuperaria e simplesmente achou pois n�o havia sinal algum que permitisse pensar assim. as extremidades continuavam roxas e mesmo os sinais de que havia irriga��o cerebral estavam desaparecendo. mas ele �achou� e ent�o eu tive a certeza que ficar�amos ali horas e s� parar�amos quando o �cad�ver� esfriasse. ele continuou a massagem externa por quase uma hora, revezando-se �s vezes, com algum enfermeiro. eu sa� para atender outros casos, atendi, voltei e l� estava ele, tentando. j� haviam sido fraturadas v�rias costelas e eu achei que ele iria desistir quando vi que n�o sabia ainda avaliar aquela teimosia. ele
virou-se para uma enfermeira que observava e disse com um tom de voz imposs�vel de ser desobedecido: - bisturi, urgente. a mo�a abriu a caixa de pequena cirurgia e passou-lhe a l�mina. enquanto o enfermeiro massageava externamente ele abriu com uma rapidez incr�vel, o t�rax do paciente, ali mesmo naquela sala, que nem de cirurgia era, e pegando o cora��o totalmente com a m�o direita come�ou a massage�-lo a �c�u aberto� como se diz na g�ria m�dica. o t�rax aberto tamb�m permitiu a inje��o mais precisa de drogas e, no final de uns 18 minutos (incr�vel), o cora��o estava batendo novamente. cobrimos o paciente e levamos em disparada para o centro cir�rgico. agora as art�rias e veias, seccionadas na abertura do t�rax, come�aram a sangrar, e deviam ser ligadas urgentemente, e a parte tor�cica devia ser fechada com assepsia e respeitando-se os planos anat�micos. com o cora��o batendo e os pulm�es recebendo oxig�nio, o restante do tratamento era importante, dif�cil e trabalhoso, mas n�o se comparava com a gravidade do que havia se passado. o paciente estava salvo, pelo menos do risco de morte imediata. restavanos envi�-lo para a unidade de tratamento intensivo e aguardar a evolu��o quanto aos pulm�es, ao pr�prio cora��o, aos rins e principalmente ao c�rebro. afinal ele ficar� cerca de uma hora e trinta minutos com o cora��o parado e todos aqueles �rg�os receberam pouqu�ssimo sangue e ainda por cima mal oxigenado. foi o que fizemos; ele foi para a uti do pr�prio pronto-socorro, eu dei todos os detalhes aos plantonistas de l�, e fui para casa dormir, pois j� eram 7 horas e o dia j� clareava. a suave balada havia se transformado num �rock� fren�tico e todos haviam dan�ado muito naquele ritmo infernal. dormi o sono dos justos, das 7 �s 9, levantei, tomei banho e caf�-da-manh�, no pr�prio hospital onde eu morava e �s 9:30 j� estava novamente em atividade, �tocando a rotina� cinco vidas o convertido 160 como diz�amos naqueles duros tempos de resid�ncia m�dica, nos quais muito se aprendia, mas � custa de um trabalho muito �rduo, f�sica e psiquicamente. era o dia de natal, mas, mesmo assim, passei visita nos internados, atendi doentes do ambulat�rio, discuti casos com meus professores e entrei em duas cirurgias de porte m�dio. entretanto durante todo o tempo, �aquilo� sempre voltava � minha mente: eu estava morrendo de vontade de me dirigir � Uti do pronto socorro e ver como estava passando o meu ex-falecido. �s 17:30, quando folguei, desci correndo as escadas para l�.
ele ainda permanecia em coma, com respira��o artificial, com drenos e cateteres para todo lado, mas os sinais vitais estavam est�veis. os sinais neurol�gicos indicavam sofrimento cerebral intenso, mas n�o se podia ainda prognosticar o grau de seq�elas que restariam se ele n�o morresse. fiquei quase meia hora examinando-o e analisando os exames laboratoriais e o colega de plant�o, ao ver meu interesse pelo caso aproximou-se e disse: - o pastor ainda n�o vai abandonar suas ovelhas. pode ser que ele nunca mais consiga fazer serm�es, mas acredito que n�o morrer�. - ele praticamente permaneceu morto por 1 hora e 30 minutos na noite passada. se escapar desta vai ser um verdadeiro milagre, retruquei eu. o colega afastou-se e eu procurei, rapidamente, no prontu�rio do paciente, o item identifica��o. na �nsia de atend�-lo, na urg�ncia, eu n�o havia me importado em saber quem era ele. constava o seguinte: nome: r�mulo romanini; estado civil: solteiro; idade: 33 anos; nacionalidade: brasileira; profiss�o: pastor protestante; religi�o: batista; natural de: s�o paulo (sp); observa��o: dados preliminares acima fornecidos por amigos; o irm�o do paciente comparecer� amanh�, com familiares para maiores esclarecimentos. conversei novamente com o plantonista e ele informou-me que o irm�o do paciente havia telefonado de outro estado pedindo not�cias e informando que no dia seguinte, logo �s 6 ou 7 horas estaria aqui para visita e maiores detalhes sobre dados de interesse m�dico. dormi como uma pedra, das 19 �s 5 horas e �s 6 estava novamente na uti vendo o �meu� paciente e aguardando os familiares. o colega deu �gra�as a deus� por eu estar ali e cinco vidas o convertido 161 me dispor a conversar com os parentes. ele j� teria mais cinco ou seis fam�lias para atender naquela manh� e eu estava aliviando-o de mais uma. logo ap�s a minha chegada, por volta das 6:30 horas, a enfermeira avisou-se que o irm�o do paciente j� se encontrava na sala reservada ao atendimento dos familiares dos pacientes internados na uti. quando entrei l�, levei um susto; parecia que o �meu� paciente havia se levantado, vestido um belo terno e sentado confortavelmente, na velha poltrona da sala, tal a semelhan�a dos dois irm�os. eu j� havia visto v�rios g�meos id�nticos, mas aqueles dois batiam todos os recordes em semelhan�a f�sica. ele se apresentou como sendo remo romanini e eu n�o pude deixar de lembrar-me do r�mulo e remo da funda��o da lend�ria roma. � muito comum g�meos italianos terem estes nomes, supus eu, no momento. agradeceu de uma maneira muito sincera e elegante o que hav�amos feito pelo seu irm�o, pois j� soubera atrav�s da enfermagem e do servi�o social as condi��es dram�ticas do atendimento. eu lhe disse que faltavam dados precisos para a ficha m�dica que facilitariam bastante o atendimento. passamos ent�o a falar sobre estes dados, eu perguntando e ele
respondendo. anotei todas as doen�as em parentes pr�ximos, como diabetes, hipertens�o arterial e outras doen�as cr�nicas e ou heredit�rias. ele respondeu-me com detalhes sobre as doen�as que o irm�o j� tivera: doen�as pr�prias da inf�ncia (sarampo, catapora, caxumba, etc.) crise de apendicite (com extirpa��o cir�rgica do ap�ndice) aos sete anos, cirurgia das am�gdalas aos 9 anos e outros dados sem import�ncia maior. contou tamb�m que na inf�ncia e adolesc�ncia o irm�o apresentara cerca de uns oito �ataques epil�pticos�, tendo sido tratado por um neurologista infantil muito famoso (citou o nome e era, de fato, o melhor), tendo sido medicado at� cerca dos 21 anos quando abandonou a medica��o e nunca mais sentiu nada at� a presente crise. o neurologista atribu�ra o fato, segundo ele, a uma pequena les�o cerebral pois o �r�mulo havia nascido depois de mim cerca de uma hora e 45 minutos e neste per�odo deve ter ocorrido um trauma, pois foi um parto em casa, com assist�ncia apenas da parteira�. relatou-me que o irm�o n�o fumava e n�o bebia, embora levasse uma vida irregular quanto a hor�rios, devido �s m�ltiplas viagens, reuni�es e prega��es das quais participava. terminadas as perguntas de ordem m�dica eu permiti que ele entrasse na sala de cuidados intensivos para ver o irm�o, ap�s ter se paramentado devidamente. a express�o de cinco vidas o convertido 162 amor e ang�stia que ele demonstrou foram emocionantes. eu senti isto e fui explicando-lhe da melhor maneira poss�vel, o que estava se passando. assim, a traqueostomia, aquele buraco horroroso para o leigo, feito no pesco�o do paciente era para podermos �limpar� com mais efic�cia os pulm�es e para ligarmos os respiradores; a sonda no nariz ia at� o est�mago e logo come�ar�amos a aliment�-lo por ela; o dreno no t�rax era normal em todos os casos em que se abre a parede tor�cica, mas seria retirado em dois ou tr�s dias e assim por diante. eu vi que ele entendeu a gravidade e a complexidade do caso, e ficou profundamente agradecido pelo que est�vamos fazendo. tanto � verdade que ao me despedir dele, na porta da uti, eu tinha a certeza de ter arranjado um grande amigo e, com certeza, dois grandes amigos, se o irm�o n�o morresse. eu lhe dei os telefones e locais onde poderia encontrar-me, disse-lhe que me manteria constantemente ao par do caso e que ele poderia consultar-me quando quisesse. ele colocou o bra�o direito sobre meus ombros, abaixou a cabe�a, chorou baixinho, depois recomp�s-se e saiu. os m�dicos, em geral, sabem que a noite do dia 24 para o dia 25 de dezembro e a noite do dia 31 de dezembro para o dia 1� de janeiro, caem no mesmo dia da semana.
quando um residente de medicina, tem o azar de ter que dar plant�o na noite de natal ele ter� azar dobrado pois estar� trabalhando tamb�m, na noite da passagem de ano, pois, geralmente os plant�es s�o semanais. naquele ano eu tive este duplo azar. m as, como nunca tudo � s� ruim ou s� bom, eu tive a felicidade de conhecer remo romanini. a �ltima semana do ano, em termos m�dicos, � muito tranq�ila. as enfermarias quase esvaziam, os ambulat�rios quase fecham, os laborat�rios quase param. s� se atende, praticamente, �s emerg�ncias. nenhum paciente quer estar internado neste per�odo e todos os procedimentos, que podem esperar, s�o, por eles mesmos, adiados. desta maneira, como eu trabalharia no natal e na passagem de ano, fiquei a semana toda sem poder viajar, com pouco servi�o de rotina, trabalhando muito somente nos plant�es. ent�o sobrou-me tempo para viver o que relato-lhes a seguir. remo romanini devia ser um homem muito rico. o mercedes benz �ltimo tipo, com motorista, parado na porta do pronto-socorro, indicava isto. al�m disto recebemos a visita cinco vidas o convertido 163 de uma �junta m�dica� que veio visitar o irm�o internado, com autoriza��o da dire��o do hospital. s� de honor�rios, para que aqueles figur�es estivessem ali, daria, pensei eu, para comprar outro mercedes. o remo ficou cerca de duas horas explicando-me (e desculpando-se) pele presen�a dos m�dicos de fora. eu, do meu lado, estava at� gostando, porque dividiria a responsabilidade com colegas t�o famosos. mas eles vieram, viram, acharam tudo �muito correto�, designaram um dos figur�es para continuar acompanhando o caso e se foram. este designado, nos dias seguintes, telefonava-me para saber o que estava se passando, nunca sugeriu nada, absolutamente nada e quem cuidou mesmo do caso foram alguns residentes e principalmente eu. a obsess�o em manter as vias a�reas aspiradas, os cuidados de enfermagem, os exames repetidos a toda hora, com controle absoluto de tudo, a disponibilidade de tempo do m�dico, etc., nestes casos s�o mais, muito mais importantes, que um nome famoso. um dos nossos professores dizia que � melhor ser tratado por um residente, rec�m-formado, que trabalha, do que por um catedr�tico que s� d� palpites, n�o mete a �m�o na massa�. e � a pura verdade. o remo logo percebeu tudo isto e a sua amizade para comigo e com outros residentes estreitou-se mais. naquela semana ele levou-nos tr�s vezes para jantar em restaurantes nos quais um residente s� entra, mesmo, se algu�m estiver pagando, como era o caso. al�m disto, na noite do dia 31 de dezembro ele montou, com a ajuda da sua mulher e filhas, uma verdadeira ceia (numa sala cedida pela dire��o), para os m�dicos de
plant�o no pronto-socorro e na uti. at� hoje tenho as abotoaduras de ouro que ele deu-me de presente naquela noite. nestes contatos todos (inclusive em mais um jantar na pr�pria casa do remo), fiquei sabendo toda a est�ria dele e do irm�o que passo a resumir. o av� de ambos viera da it�lia, no final do s�culo passado, por volta de 1898, tendo se deslocado para o interior do estado de s�o paulo onde trabalhou na lavoura e tornou-se um pequeno sitiante. era, juntamente com a av� de ambos, muito religioso, praticando o catolicismo com todo o fervor. tiveram oito filhos, sendo que o pai deles, o terceiro da prole, veio para a capital assim que atingiu a maioridade; aqui casou-se com outra descendente de italianos e tiveram apenas os g�meos. segundo remo, o seu pai era completamente contra qualquer religi�o. cinco vidas o convertido 164 havia levado uma vida muito dura, como oper�rio, tendo se envolvido inicialmente com anarquistas e depois com partidos radicais de esquerda. no final da vida (ele morrera h� cerca de 5 anos) ele morava s�, vi�vo, no bairro italiano da cidade, numa casa no meio de pr�dios bem maiores, da qual se recusava a sair �para manter a face hist�rica da cidade� e n�o se conformou, at� a morte, com a profiss�o dos filhos que ele chamava de �artistas da religi�o� ou de �pastores via embratel�, conforme nos contava rindo o filho. mas, como tamb�m me contava o remo, parece que � comum pais muito religiosos terem filhos ateus e estes, por sua vez, terem filhos muito religiosos. seria uma compensa��o natural? ap�s ele ter-me dito isto passei a observar que, de fato, grandes pensadores ateus, do passado, eram filhos de pais beatos ou rigorosamente religiosos e moralistas. desta maneira, seguindo a regra, o av� era muito religioso, o pai ateu e os filhos novamente religiosos. quem primeiro se interessou por religi�o foi o r�mulo que, logo jovem, passou a freq�entar a igreja dos batistas e logo se destacou como pregador. o irm�o fora mais tarde, levado pela semelhan�a f�sica e pelo sucesso do outro. ap�s v�rios cursos, est�gios no exterior, principalmente nos eeuu, ambos eram considerados os melhores pregadores do pa�s e da am�rica latina, apesar do r�mulo ser sempre o preferido dos fi�is. a sua marca registrada eram as belas descri��es que conseguia fazer do para�so. se voc�s notarem, dizia o remo naqueles jantares, o para�so nunca foi descrito. cada um imagina como quiser. alguns acham que � um lugar onde n�o se trabalha, cheio de lindas mulheres (ou homens), sempre � disposi��o, naquele clima enfuma�ado e quente, por todos os s�culos e s�culos. os maometanos chegam a prometer orgasmos com dura��o de 600 anos
a seus fi�is. mas, por mais que nos esforcemos, sempre imaginamos a vida ap�s a morte com as coisas que estamos habituados a ver e sentir aqui. o r�mulo, nos seus serm�es, conseguia transmitir mais �alguma coisa� sobre o para�so (e tamb�m sobre o inferno), al�m do clima ameno e do fogo terr�vel. ent�o ele nos colocava fitas dos serm�es e mesmo nos emprestava algumas para ouvirmos em casa para ver se sent�amos �aquilo�. eu me esforcei muito, mas n�o senti nada de mais. era a mesma repeti��o das coisas terrestres, idealizadas como se fossem perfeitas. cinco vidas o convertido 165 a verdade � que, nesta trilha, os irm�os romanini constru�ram um verdadeiro imp�rio. possu�am r�dios em v�rias cidades, em ondas m�dias e freq��ncia modulada, v�rias propriedades urbanas e rurais e um poder pol�tico impressionante; o seu apoio a um candidato numa elei��o era uma enxurrada de votos a favor, nas urnas. ao contr�rio, quando um candidato revelou-se ateu, moveram uma campanha t�o grande contra o mesmo, dos p�lpitos de suas igrejas, que a vit�ria quase certa transformou-se em derrota fragorosa. toda a fam�lia trabalhava nos servi�os religiosos, como � um nos eeuu. os fi�is gostam de ver a mulher e os filhos dos pastores ajudando. assim a equipe era constitu�da do r�mulo (solteiro) do remo, de sua esposa, do seu filho e de suas tr�s filhas. faziam prega��es em v�rias igrejas, em canais de televis�o, em pa�ses da am�rica latina e at� da am�rica do norte. ent�o eu havia ajudado a salvar a vida de um dos maiores pastores do pa�s. o famoso pastor r.r. naquela noite ele era a vedete de uma prega��o de natal num est�dio de futebol com milhares de pessoas presentes. durante o seu serm�o, quando descrevia, como gostava, o para�so, sentiu um pequeno mal-estar, como notaram seus amigos, por uma pequena pausa que ele nunca fazia. ao passar a descrever o inferno ele inflamou-se e a certa altura, quando apontava o dedo em riste para os poss�veis pecadores da plat�ia, seus m�sculos parece que se contra�ram enormemente e n�o se descontra�ram mais at� ele cair e come�ar a apresentar convuls�es t�nico-cl�nicas. nesta altura os assessores e guarda-costas cercaramno e, com muita correria e desespero levaram-no para a ambul�ncia que se encontrava no local (aquela que entrou com a sirene e a velocidade toda no pronto-socorro onde eu estava de plant�o naquele natal). estes casos de convuls�o, na sua quase totalidade, n�o trazem grandes riscos de vida. o
nosso pastor teve o azar de haver comido bastante naquela noite, antes do serm�o e vomitado durante a crise e aspirado os v�mitos. o remo naquela noite estava, tamb�m, fazendo um serm�o, com toda sua fam�lia, num est�dio de futebol, num estado vizinho. ent�o o que t�nhamos no final de janeiro de 1969? era o que eu me perguntava durante um pequeno descanso no plant�o que eu dava na uti do pronto socorro. t�nhamos um dos pregadores mais famosos do mundo (o pastor rr.) internado num cinco vidas o convertido 166 hospital p�blico, ap�s ter tido uma crise convulsiva durante o serm�o do �ltimo natal, com v�mitos, aspira��o e paradas card�aca e respirat�ria, tendo sido salvo por um residente e um jovem e teimoso chefe de plant�o. no momento, por incr�vel que pare�a, ele estava se recuperando de todas as fun��es org�nicas. apenas continuava em coma superficial. o dreno tor�cico havia sido retirado e a infec��o pulmonar estava no final; os aparelhos digestivo, urin�rio e circulat�rio estavam praticamente normais. ainda continuava a sonda para alimenta��o, mas o paciente come�ava a apresentar movimentos de degluti��o e ela logo seria removida. o que nos preocupava, ap�s um m�s de interna��o, era o estado de atrofia muscular do paciente que havia emagrecido uns 35 quilos. por isso insist�amos com o servi�o de fisioterapia do hospital para que os exerc�cios fossem rigorosamente realizados e as mudan�as de dec�bito fossem freq�entes, evitando-se as escaras. eu acreditava, e com raz�o, que dentro de mais alguns dias o paciente poderia sair da uti para um quarto comum e que logo voltaria a contatar com o ambiente. por coincid�ncia, enquanto descansava as pernas numa poltrona, via televis�o e pensava naquelas coisas, pela madrugada afora, uma emissora de tv come�ou a apresentar um breve relat�rio sobre a vida do pastor r.r. mostravam a casa onde ele havia nascido, fotos da sua inf�ncia, no bairro italiano, e �tapes� de alguns serm�es que eram, de fato, eletrizantes. eu olhava aquele homem alto, saud�vel e super bem vestido e olhava aquele paciente com o pijama horroroso que o hospital fornecia, intensamente emagrecido, em coma, com a barba mal feita e um tubo no nariz. n�o pareciam, embora fossem, a mesma pessoa. o paciente levaria, no m�nimo, um ano, para recuperar toda aquela apar�ncia e eloq��ncia. entretanto, o que mais me interessou no programa sobre o pastor foi a s�rie de entrevistas que o mesmo havia feito com pessoas que como ele, haviam �morrido�, durante segundos, minutos ou, mesmo horas. a televis�o mostrava o r�mulo com o microfone na
m�o entrevistando v�rias pessoas, de norte a sul do pa�s, que passaram por aquela experi�ncia. algumas diziam que foi um simples sono, sem sonhos, nada recordando ao acordar. a maioria contava experi�ncias interessantes, mas, principalmente, a vis�o de luzes fortes, geralmente de um branco ofuscante e tamb�m de ambientes enfuma�ados e com uma temperatura muito agrad�vel. outras referiam ter ouvido vozes que entoavam hinos celestiais e mesmo conversavam com elas. alguns chegaram a ver anjos e querubins cinco vidas o convertido 167 e diziam que veriam a face de deus se n�o tivessem sido trazidas de volta pelos m�dicos. o relato mais pormenorizado era o de uma mulher que disse ter sa�do o seu esp�rito do seu corpo e que o mesmo ficou flutuando na sala, tendo visto todas as manobras de ressuscita��o que foram feitas; neste tempo, tamb�m, o esp�rito havia sido conduzido pela m�o de um anjo, a visitar paragens estranhas onde ela se lembra de ter visto v�rias cenas do futuro da humanidade e de lhe terem sido desvendados v�rios mist�rios sobre o universo; mas quando os m�dicos a trouxeram de volta ela foi bruscamente arrancada daquele lugar, reintegrou-se no corpo que estava morto e n�o se lembrava mais do que havia visto e ouvido; apenas sabia que vira e ouvira. no final do programa o pastor fazia severas cr�ticas aos que n�o acreditavam na vida ap�s a morte. com aqueles testemunhos, como era poss�vel, ainda duvidar? aquilo era, sem d�vida uma revela��o divina. mais ou menos ele fazia o seguinte racioc�nio: quando a humanidade era atrasada, cientificamente falando, os homens aceitavam mais facilmente a id�ia de um deus; atualmente o progresso tecnol�gico torna mais dif�cil aceitarmos aquela id�ia. ent�o o pr�prio deus, pela tecnologia m�dica, que ele possibilitou ao homem desenvolver, permitiu que algumas pessoas morressem e voltassem para nos provar que existem coisas ap�s. era um racioc�nio meio esquisito e cheio de sofismas, mas acredito que ele acreditava firmemente no que estava dizendo e, sem d�vida, transmitia com uma verdade incontest�vel, aos telespectadores mais incautos. no final o pastor r.r. convocava a todos para levarem uma vida virtuosa e n�o blasfemarem quando sofressem. no para�so, para onde iriam ap�s a morte, n�o haveria mais dores, sofrimentos, injusti�as. �qual a import�ncia de 80 ou 100 anos de sofrimentos e priva��es da vida terrena, em compara��o com a eternidade do reino dos c�us?�, terminava ele perguntando. o pastor foi para um quarto comum do hospital, ficou mais uns trinta dias e teve alta para casa. como era de se esperar ficaram v�rias seq�elas daquele quadro dram�tico pelo qual
ele havia passado. assim houve moderada amn�sia para alguns fatos do passado, falta de capacidade de concentra��o, choro f�cil, fraqueza muscular e descoordena��o motora, impedindo o andar correto e mesmo prejudicando a fala. lembro-me que ele ficava em casa aos cuidados constantes de uma enfermeira e com visitas freq�entes de um psiquiatra, um fisioterapeuta, uma fonoaudi�loga e, tamb�m, a cinco vidas o convertido 168 minha, mais como um amigo que como m�dico. entretanto eu sempre o examinava e fazia alguns testes e notava progressos importantes. com certeza, ap�s alguns meses ele teria pouqu�ssimos sinais lembrando o que passara. transcorridos tr�s meses as minhas visitadas tornaram-se mais ass�duas e mais profissionais. o r�mulo apresentava icter�cia e alguns exames que eu pedi revelaram hepatite, do tipo ainda muito comum (infelizmente) em pacientes que receberam muitas transfus�es de sangue. eu havia sugerido um colega especialista em mol�stias infecciosas mas ele insistiu em ser tratado por mim. ent�o eu fazia os exames cl�nicos e laboratoriais e os levava �quele especialista e a doen�a evoluiu bem, servindo apenas para estreitar ainda mais os la�os de amizade entre n�s. foi assim, numa das visitas, que o r�mulo disse-me que lembrava-se de coisas �muito interessantes que aconteceram quando ele estava �morto�. ele estava esperando que melhorassem a sua capacidade de concentra��o e a sua fala para poder gravar tudo em fitas. eram coisas t�o importantes que n�o poderiam morrer com ele. haveria de revel�-las ao mundo em tempo h�bil e de uma maneira clara e intelig�vel, mas antes disto prometeu mostrar-me e pedir minha opini�o sobre o assunto. passaram-se meses e meses. eu terminei a minha resid�ncia e mudei-me para longe dali, para outra cidade no interior do estado. o r�mulo recuperou-se quase totalmente. fizeram tentativas de voltar a transform�-lo no pastor mais famoso da am�rica do sul, mas aquelas faculdades natas de fala, de concentra��o e outros filigranas que diferenciavam um astro de uma pessoa comum, foram afetadas. e tamb�m ele n�o mostrava mais convic��o e cren�a nas coisas que pregava. desta maneira ele manteve-se como auxiliar da igreja da qual seu irm�o tornou-se o cabe�a. o remo, entretanto, n�o tinha o carisma do r�mulo e, desta maneira, a seita de ambos que era uma das mais pr�speras do pa�s tornou-se uma seita comum, como v�rias outras, entre os protestantes. ap�s a minha mudan�a da capital eu nunca mais vi os g�meos. raras vezes lia uma not�cia de ambos nos jornais. entretanto, todos os natais, eu recebia,
religiosamente, um belo cart�o, com lindos dizeres assinado por ambos. eu nunca respondi a estes cart�es como, ali�s, n�o respondo a correspond�ncias deste tipo. embora eu goste de receb�-las, n�o me sinto � vontade em envi�-las. as frases pr�-impressas nos cart�es soam-me muito cinco vidas o convertido 169 artificiais e para eu mesmo escrever alguma coisa sairia algo t�o longe do cristianismo que nada teriam a ver com o natal. passaram-se vinte anos. eu tinha os vinte cart�es de natal guardados na gaveta da minha mesa do consult�rio. no vig�simo primeiro ano houve uma modifica��o da rotina; o cart�o vinha assinado somente pelo remo e al�m de falar sobre os votos de bons natal e ano novo, contava sobre a morte do r�mulo, de infarto do mioc�rdio, no m�s de novembro pr�ximo passado. pode parecer esquisito, mas eu senti muito. parecia estar perdendo um filho que eu n�o via h� vinte anos, mas que, secretamente, tinha grandes esperan�as de tornar a encontrar. a morte, como algo definitivo e irrevog�vel, acabara com aquelas esperan�as. entretanto, a tecnologia, esta deusa adorada por muitos, j� havia vencido a morte de r�mulo h� anos atr�s e, novamente tornou a faz�-lo. no m�s de fevereiro, tr�s meses ap�s o �bito, no dia do meu anivers�rio, entra em meu consult�rio, nada mais, nada menos que o remo romanini. o envelhecimento de 20 anos n�o impediu, a mim ou a ele, de nos conhecermos imediatamente. ele havia vindo dirigindo seu autom�vel (atualmente um modelo brasileiro mesmo e bem velho, por sinal) desde a capital. ent�o eu convidei-o para jantar e dormir em minha casa para podermos conversar mais longamente. tiramos o atraso dos fatos ocorridos nestes longos anos sem not�cias e ent�o ele entrou no assunto que o trouxera at� l�. - o r�mulo viveu atormentado (ou n�o?) com a vis�o que ele teve naquele natal fat�dico em que esteve morto e ressuscitou. v�rias vezes ele quis contar-me o que viu, mas n�o contou e em certa ocasi�o disse-me que n�o contava porque as revela��es que faria poderiam abalar a minha f� e, portanto, prejudicar a nossa igreja. alguns dias antes dele morrer chamou-me e disse que tinha tudo gravado em fitas e pediu-me que eu as entregasse a voc�, a �nica pessoa a quem ele havia prometido contar tudo. nas fitas, segundo ele h� as orienta��es necess�rias sobre o que fazer. aqui est�o. s�o suas. considero cumprida a minha obriga��o para com meu irm�o. o jantar do meu anivers�rio terminou, meus amigos reclamaram muito por eu conversar
tanto com aquele estranho para eles, o remo dormiu e no dia seguinte, de madrugada, levantou-se, deixou-me um bilhete de agradecimentos e partiu sem se despedir de ningu�m. durante aquele dia pareceu-me que eu tinha tido uma vis�o e, n�o fossem as fitas cinco vidas o convertido 170 amontoadas sobre a minha mesa, eu acharia que havia sonhado com o remo e que ele, de fato, n�o estivera visitando-me. passei os tr�s meses seguintes ouvindo exaustivamente as fitas, nos momentos de folga. meus familiares e amigos perguntavam em tom de cr�tica, o que havia de t�o interessante para me prender tanto, pois muitas vezes eu deixei de comparecer a festas, jantares e mesmo a sacrificar horas de lazer para ficar enfurnado, ouvindo, ouvindo... de fato, era interessant�ssimo. uma verdadeira revela��o (divina?). logo no in�cio o r�mulo (novamente ressuscitado nas fitas) pedia-me desculpas pela longa aus�ncia. dizia que n�o havia esquecido a promessa de revelar-me o que vira e ali estavam as fitas para comprov�-lo. pedia-me para fazer o que quisesse com as revela��es, mas s� ap�s a morte do remo, pois n�o queria que o irm�o soubesse daquilo, e se eu decidisse divulgar o conte�do ele poderia tomar conhecimento. ap�s v�rias orienta��es ele entrava no assunto propriamente dito que eu passo a transcrever, com pequenas modifica��es, para sintetizar um pouco, mas sem desvirtuar o conte�do do texto. estas transcri��es j� podem ser publicadas hoje, ap�s tr�s anos. ontem eu li, nos necrol�gicos dos jornais da capital, que faleceu mais um romanini: o remo. n�o consigo nem esperar o cad�ver esfriar para mostrar o que ouvi a outras pessoas. uma revela��o destas n�o pode ficar desconhecida. vamos l�. �logo ap�s eu perder a consci�ncia durante um serm�o de natal, passei a ter pesadelos horr�veis. meu c�rebro parecia que n�o cabia dentro da caixa �ssea da minha cabe�a e minha consci�ncia era vaga e imprecisa; meu corpo era r�gido, duro e im�vel como um bloco de pedra. minha l�ngua parecia enorme, maior que meu pr�prio corpo, extravazando do mesmo, pela boca. eu me encontrava s�, na escurid�o absoluta, longe de tudo, sofrendo desesperadamente sem saber bem por qu�. de repente sinto o contato com alguma coisa. pareceu-me uma m�o gigante que, de s�bito, retirou aquela l�ngua enorme que eu carregava contra a vontade, restituiu os movimentos do meu corpo e acariciou a minha cabe�a tornando o meu c�rebro novamente de tamanho compat�vel com a caixa �ssea. ao mesmo tempo mostrou-me uma cesta com v�rios alimentos como frutas e p�es e tamb�m com cubos parecidos com gelo que eram o ar para eu respirar. engoli v�rios cubos daqueles, cessaram meu desespero e minha ang�stia e eu pude relaxar e descansar daquele
esfor�o cinco vidas o convertido 171 herc�leo que fizera. ent�o dormi t�o profundamente como nunca houvera dormido (acredito que este tenha sido o momento da minha morte cl�nica). era um sono num sil�ncio absoluto: sem consci�ncia, sem sonhos, sem movimentos, sem ar, sem nada. somente ao acordar dei-me conta destas caracter�sticas. eu tamb�m n�o sabia quanto havia dormido: poderia ter sido um segundo ou v�rios mil�nios e n�o fazia a m�nima diferen�a diante da �sensa��o� de eternidade que estava me envolvendo. logo ap�s acordar eu tive a certeza n�tida que estava vivo, im�vel, na escurid�o total. ent�o, mesmo sem ter olhos, ou mesmo quaisquer outras partes do corpo, eu comecei a ver cenas t�o reais que posso jurar que aconteceram de fato. vi meus familiares, meus amigos, meus vizinhos, meus compatriotas, a humanidade, todos morrerem e ficarem junto a mim, na mesma situa��o em que eu me encontrava naquele momento. tive a sensa��o de que veria o ju�zo final, mas nada aconteceu. apenas fomos nos separando cada vez mais uns dos outros, sem cessar, pela eternidade at� eu me sentir �nico no universo. em seguida pareceu-me que meus pr�prios �tomos foram se separando uns dos outros e eu passei a sentir-me como um g�s, num recipiente infinito, que iria expandir-se, expandir-se at� sumir. mas eu j� vinha notando que a expans�o era cada vez mais lenta, at� que parou. em seguida, pareceu-me, ap�s alguns instantes estacion�rio, que eu comecei a contrair, perdendo a forma gasosa, voltando ao estado anterior. pouco a pouco n�o mais me senti s�. Todos aqueles que eu vira no in�cio voltaram para perto de mim, na posi��o inicial e mesmo retornaram � vida, s� restando eu naquela situa��o, regredindo, regredindo. ent�o reencontrei (e vivi novamente), a minha juventude, a minha inf�ncia, a vida dos meus pais, av�s, bisav�s, tatarav�s... n�o havia fronteiras de tempo. um segundo, mil anos, um milh�o de anos eram iguais naquela eternidade, como devem ser iguais em todas as outras. vivi todas as etapas da hist�ria humana, em v�rios ancestrais meus. parecia-me (e era o que de fato acontecia) que eu estava rastreando o percurso seguido pelos �tomos que formavam o meu corpo no momento da minha morte. passei pelos homin�deos, mam�feros menores, r�pteis, anf�bios, peixes, pelo caldo primordial oce�nico, pelos bilh�es de anos de exist�ncia da terra, sem vida, pelo aquecimento progressivo da crosta do planeta, pela regress�o de todo o sistema solar fundindo-se numa �nica estrela na qual os meus �tomos cinco vidas o convertido 172
ficavam no n�cleo central super-denso, o qual, ap�s milh�es de anos foi se decompondo, perdendo elementos at�micos e voltando a ser composto de h�lio e hidrog�nio e depois s� hidrog�nio at� que a estrela toda juntou-se com outras, formando uma gal�xia gasosa e esta juntou-se com outras e a homogeneidade voltou a reinar havendo somente uma massa enorme de �tomos de hidrog�nio que se contraia, se aquecia tremendamente, se transformava em part�culas subat�micas, que se contraiam mais, se aqueciam infinitamente, se transformavam em energia pura e continuavam contraindo. neste momento o estado das coisas era t�o denso que tudo estava contido num pequeno volume: todos os corpos celestes, toda a luz, todas as outras formas de radia��o, todo o espa�o e todo o tempo. o tudo e o nada se tocavam. era imposs�vel observar. at� a plat�ia do espet�culo (somente eu, no caso) era massacrada neste colapso total. o universo evolu�a para uma singularidade, um ponto, nada. eu iria desaparecer totalmente ap�s ter-me sentido, como nunca algu�m relatou, t�o integrado no universo de onde eu nascera. as part�culas transformadas em energia, que pertenceram ao quasar mais distante (a bilh�es de anos-luz, estavam junto aos restos dos meus �tomos, t�o pr�ximos que eu era elas e viceversa. tudo era tudo e evolu�a para o nada. tentei, antes que a for�a brutal atra�sse inclusive o meu pensamento, encontrar alguma divindade que impedisse aquilo e nada vi. havia apenas a mat�ria e suas leis inexor�veis. mas poderia o que existe sumir? nada � igual a tudo? tudo � igual a nada? a grande contra��o parou. um trilion�simo de segundo a mais seria o fim. talvez eu visse a deus depois disso. mas parou. por qu�? n�o sei. ent�o voltei a ser espectador e tudo se passou como num filme muito acelerado. uma grande explos�o. energia abundant�ssima, o in�cio do tempo e do espa�o. a expans�o, o resfriamento, a aglutina��o em part�culas subat�micas, em �tomos simples. as altera��es da homogeneidade e as forma��es gal�cticas. as estrelas, forjando �tomos mais pesados, explodindo, cuspindo s�is e planetas. o resfriamento, a crosta terrestre, o caldo primordial, as mol�culas longas, o dna, a vida no mar, na terras, os mam�feros, a humanidade, eu. flutuando, na mesma posi��o inicial, at� perceber, com mais nitidez os alimentos, os cubos de ar, as m�os que os ofereciam a mim e acordar, num leito de terapia intensiva�. ap�s este relat�rio, das vis�es que havia tido, o r�mulo gravou um segundo lote de cinco vidas o convertido 173 fitas nas quais analisava sua vida antes do acidente, sua vis�o e sua vida ap�s. aproximadamente, e resumidamente, ele dizia o seguinte: �a minha vis�o, perturboume
durante longo tempo ap�s eu ter retornado � vida. eu, que sempre dei enorme import�ncia aos relatos de pessoas que haviam tido morte cl�nica, estava atordoado. eu usara aqueles relatos como prova da vida p�s-morte e da exist�ncia de deus e, na minha vez, nada vira que provasse uma coisa ou outra. ap�s muito pensar e consultar muitos amigos cheguei � seguinte conclus�o: o que eu vira e sentira, era, nada mais, nada menos, que a teoria cient�fica mais recente sobre o universo, a qual meu pai v�rias vezes me contara na inf�ncia, inclusive obrigando-me a ler livros sobre o assunto. ent�o, estes relatos n�o t�m valor algum como prova de coisas sobrenaturais. o que acontece � que o paciente, de fato, n�o morreu, isto �, n�o houve necrose de c�lulas, principalmente as cerebrais e tudo passase como um sonho que nada mais � do que a libera��o do subconsciente quando a pessoa dorme ou passa por situa��es de depress�o da c�rtex cerebral. e todas as revela��es, que s�o coisas vistas, ou ouvidas ou sentidas por apenas uma pessoa, devem ser encaradas sob este �ngulo. eu cheguei a sentir raiva em pensar como a hist�ria b�blica da leitura dos sonhos do fara�, por jos�, atrasou a humanidade. at� hoje existem pessoas que encaram os sonhos como coisas que v�o acontecer e n�o como recalques do seu subconsciente. quantos sonhos deixaram de acontecer no futuro ou mesmo aconteceram ao contr�rio? podemos excluir coincid�ncias quando acontece igual? estatisticamente n�o. e as revela��es divinas? n�o seriam o mesmo? no meu caso se nada havia na minha vis�o, al�m da mat�ria, o que ent�o teria se revelado a n�o ser eu mesmo? por tudo isto eu perdi a convic��o que tinha em minhas prega��es. e um pastor sem convic��es n�o convence ningu�m. retirei-me, ent�o, a mim mesmo, pretendendo apenas estudar e analisar, sem medos e sem preconceitos. e jamais tentar transmitir impositivamente as conclus�es a que chegar.�. h� in�meras outras considera��es filos�ficas nas fitas, ditas mansamente, n�o lembrando o pastor rr, amea�ador, de dedo em riste, apontando para sua cara e prometendo-lhe o fogo do inferno. mas, paremos por aqui. quem se interessar por esta parte restante saber� onde encontrar-me. cinco vidas as fugas do formigueiro 174 as fugas do formigueiro �biologicamente o homem � um ser moderadamente greg�rio e n�o completamente social uma criatura mais parecida com um lobo por exemplo, ou um elefante, do que com uma formiga. em sua forma primitiva, as sociedades humanas nada tinham em comum com uma colmeia ou com um formigueiro... um grande abismo separa o inseto-social do mam�fero n�o muito greg�rio e dotado de um grande c�rebro�. (aldous huxley), a uniformidade e a sa�de mental s�o incompat�veis... o homem n�o foi preparado para ser
um aut�mato e, se se transformar em aut�mato, a base da sa�de mental estar� arruinada� (erich fromm). aos meus contempor�neos, obrigados a viver numa sociedade t�o adversa ao ser humano. cinco vidas as fugas do formigueiro 175 era a madrugada do dia 5 de janeiro de 1950 e o chuvisqueiro e a neblina tomavam conta da velha pequim. poucas luzes estavam acesas devido do racionamento de energia e pouqu�ssimos carros circulavam. mesmo assim uma ambul�ncia tinha sua sirene soando na altura m�xima e desenvolvia uma velocidade espantosa at� frear, derrapando num verdadeiro �cavalo-de-pau�, em frente � Maternidade central da cidade. os maqueiros logo tiraram de dentro da mesma uma jovem e bela chinesa, ainda adolescente, com uma barriga enorme e acompanhada por uma velha que demonstrava estar ali mais por medo do que para ajudar a paciente. - corram. corram. a mo�a est� tendo convuls�es, dizia um dos encarregados da admiss�o dos pacientes. em poucos segundos a jovem estava sendo examinada pelo obstetra de plant�o. - � um caso de ecl�mpsia. foi gravidez muito mal conduzida; a paciente est� toda inchada e com a press�o arterial nas nuvens, dizia o m�dico � parteira que o auxiliava. mas ainda consigo ouvir batimentos card�acos do feto. vamos fazer uma cesariana urgent�ssima para ver se o salvamos. fa�a uma tricotomia a todo o vapor, aplique esta medica��o e leve a paciente para a sala de cirurgia que eu j� estarei pronto aguardando. passe sondas no est�mago e na bexiga. a parteira obedeceu com a rapidez surpreendente que s� os muitos anos de profiss�o conferem e em dois ou tr�s minutos a paciente estava pronta para ser operada, com uma veia cateterizada, oxig�nio ligado nas narinas, sondas g�stricas e uretral e tudo mais que era necess�rio. - bisturi, pediu o m�dico. vamos torcer para este beb� sair com vida. a m�e, a meu ver, tem poucas chances de sobreviver. do lado de fora do centro cir�rgico a velha que acompanhava a pobre gr�vida, foi abordada por um funcion�rio muito sisudo e levada para uma sala rec�m inaugurada do cinco vidas as fugas do formigueiro 176 hospital onde ficavam os funcion�rios especialmente designados pelo partido comunista e encarregados de fiscalizar a tudo e a todos e informar posteriormente ao servi�o de informa��es, centralizado. - sua cafetina imunda, disse o funcion�rio � velha. o que foi que voc� fez a essa pobre mo�a? a velha era conhecida em toda a china por agenciar jovens para os invasores ingleses, japoneses e para os pr�prios chineses ricos. sua casa de prostitui��o fora famosa
em pequim, pois oferecia as mo�as mais lindas do pa�s, al�m de v�rios outros servi�os que supriam a quaisquer taras sexuais poss�veis ou imagin�veis. foi uma das primeiras casas fechadas pelos comunistas ao assumirem o poder, tendo sido transformada numa creche modelo. - eu n�o fiz nada, senhor, disse a velha, tremendo e muito nervosa. a pobre mo�a foi acolhida por mim h� cerca de dois anos pois perambulava faminta pelas ruas de pequim. deixei-a morar comigo e com as outras mo�as na casa que eu dirigia. ela melhorou muito a sa�de, engordou, tornou-se bela. eu a ensinei a evitar a gravidez, mas, esta nova gera��o n�o escuta a velha e veja o que aconteceu. ela engravidou, n�o se cuidou direito e agora � capaz de morrer. - mentira, mentira, berrou o funcion�rio, assustando mais ainda a velha j� tr�mula. voc� vai, agora mesmo, ser encaminhada a uma casa de reclus�o para se arrepender de tudo que fez de mal nesta sua vida porca. ser� tamb�m reeducada e a readaptada � nova vida, na nova china, que est� nascendo. infelizmente o grande mao n�o permite a pena de morte no seu caso, pois, por mim, mandaria fuzil�-la em pra�a p�blica. eu mesmo meteria uma bala na sua testa. outro funcion�rio do partido que tamb�m fora designado para aquele hospital, era redator de um jornal comunista de grande penetra��o e, ao presenciar a chegada da paciente e aquele di�logo com a cafetina, logo cheirou uma boa not�cia para ser publicada, metendo o pau no regime anterior e enaltecendo o atual. tomou nota, rapidamente, do endere�o da casa de reclus�o e reeduca��o para a qual a velha iria e, nos dias seguintes, l� compareceu para conversar horas e horas com a mesma. sob amea�as e sob promessas de melhorar sua p�ssima situa��o sob o novo regime, a antiga cafetina contou tudo que o rep�rter queria saber. deste modo, ap�s quinze dias desde aquela madrugada chuvosa, saiu publicado, num cinco vidas as fugas do formigueiro 177 dos principais jornais do pa�s, um extenso artigo, mais ou menos nestes termos: �h� cerca de 17 anos, nascia uma chinesinha, numa casa da regi�o do porto de tien tsin, de parto normal domiciliar. era a d�cima-segunda dos filhos vivos de um pobre casal, t�pico da china daquela �poca. o pai, antigo campon�s, mudou-se para a grande pequim ap�s v�rios infort�nios clim�ticos na lavoura que levaram a fam�lia � fome, � doen�a, � mis�ria total e � morte de cinco filhos; a m�e, ao todo, parira 17 crian�as, contando-se a menina atual.
na cidade a fam�lia vivia como podia e, na maior parte do tempo, todos passavam fome e frio, al�m de contra�rem doen�as freq�entemente, como � comum nos subnutridos. o pai e a m�e, assim como os filhos maiores viviam de biscates e esmolas e moravam todos amontoados numa pequena casa de um quarto e uma cozinha, sendo o banheiro coletivo para v�rias moradias similares. o nascimento da chinesinha, sobre a qual falamos, foi presenciado por v�rios vizinhos e irm�os, como acontece na promiscuidade total em que viviam. o pai e a m�e sentiram-se muito tristes com mais um nascimento; seria mais um filho a suportar tanta dor que a vida impingia a todos. a menina cresceu aos trancos e barrancos, an�mica, desnutrida, sem amor, sem educa��o, nas ruas, esmolando. aos 12 anos sofreu viol�ncia sexuais, n�o se sabe bem se pelos japoneses ou por estivadores chineses, tendo, aos 14 anos, j� praticado dois abortos com parteiras imundas da zona do porto. nesta idade fugiu de casa e ningu�m, nem os pais e nem os irm�os, se deram ao trabalho de ir procur�-la, tendo a mesma sido recolhida por uma antiga cafetina de pequim pois a garota, apesar da vida sofrida que levara, apresentava seus encantos e logo manifestou interesses em v�rios clientes da casa de prostitui��o. ap�s dois anos naquela vida a menina viu-se gr�vida e escondeu o fato da dona de casa, com medo de ser expulsa. somente com quase seis meses de gravidez � que, sem poder mais disfar�ar o volume do abdome, contou o fato �s colegas. a cafetina passou a hostiliz�-la, prometendo que a expulsaria para as ruas, de onde viera, se ela n�o continuasse tendo rela��es com os clientes at� o mais pr�ximo poss�vel do parto e, tamb�m, se, logo ap�s o nascimento do beb�, ela n�o o doasse e voltasse, o mais breve poss�vel, ao trabalho. esta adolescente deu entrada, h� poucos dias, na maternidade onde este articulista trabalha, em p�ssimas condi��es gerais, tendo sido submetida a uma cesariana de urg�ncia para se salvar o feto. a m�e faleceu poucas horas ap�s a cirurgia. os m�dicos atribu�ram a morte a uma cinco vidas as fugas do formigueiro 178 doen�a chamada ecl�mpsia que se desenvolve em algumas gr�vidas que n�o tiveram assist�ncia pr�-natal adequada. os mesmos m�dicos lutam, desesperadamente, para salvar a crian�a, que � um menininho que nasceu com v�rios problemas devido ao pr�-natal mal conduzido da m�e. o menino recebeu o nome de yuan li-ma e, atualmente, a sua salva��o, no hospital, � o s�mbolo da luta do novo regime contra os crimes cometidos contra a vida de todos os chineses, no regime anterior.
camaradas, analisemos este assassinato. sim, pura e simplesmente foi cometido um crime, um homic�dio. uma patr�cia nossa, um ser humano como n�s, foi trucidada. e qual � a anatomia deste e crime? primeiro vemos os pais da v�tima sendo expulsos da zona rural por total falta de prote��o aos camponeses pelo regime capitalista anterior, e vindo acampar (sim, acampar e n�o morar) na periferia de uma grande cidade. um regime que obriga o cidad�o a isto � um regime assassino. a falta de prote��o ao homem do campo j� havia produzido cinco cad�veres (os dos outros filhos mortos). em seguida vemos a falta de condi��es de habita��o e de servi�os sociais nas zonas urbanas. amontoam-se pessoas como galinhas em caixas, quando v�o para o matadouro. n�o h� escolas, creches, educadores sanit�rios, n�o h� nada. as crian�as crescem nas ruas, � pr�pria sorte (ou ao pr�prio azar) e, quando ainda muito jovens, fogem de casa, os pais at� agradecem, como aconteceu com a nossa patr�cia. esta crian�a, � ent�o aproveitada pelo crime organizado (que j� foi desmantelado), sendo induzida a lidar com t�xicos, prostitui��o, roubos, assassinatos, etc. tudo muito t�pico e conseq��ncia quase que natural do capitalismo selvagem e da camarilha que o praticava. quando uma destas crian�as engravidava (como foi o caso que estamos narrando) n�o havia a m�nima prote��o materno-infantil do ponto de vista nutricional, educacional m�dico ou simplesmente de solidariedade humana. felizmente os dem�nios capitalistas foram exorcizados e espantados para formosa. que l� apodre�am, para pagar por seus crimes. hoje sabemos que tudo est� sendo feito para acabar com estes assassinatos de chineses. o grande timoneiro levar� toda a china para um ponto onde ser� imposs�vel pensar em desprezar-se tanto a vida de um chin�s. viva o pc chin�s. viva mao�. dizem os que se lembram daqueles tempos que a alta dire��o do partido se comoveu com a leitura do artigo e que, no dia seguinte � sua publica��o o hospital recebeu um cinco vidas as fugas do formigueiro 179 bilhete, mais ou menos nos seguintes termos: �fa�am tudo que for poss�vel para salvar yuan li-ma. este beb� � um s�mbolo para o novo regime. usem todo o amor e toda a tecnologia para salv�-lo, sem se importarem com os custos�. a assinatura era a do secret�rio-geral do pc da regi�o de pequim e portanto n�o havia d�vidas de que as ordens iriam ser cumpridos � risca. conta-se que chegaram a importar, de moscou, uma incubadora que era a �ltima palavra em t�cnica, para ber��rios de beb�s de alto risco e, junto com a mesma, veio um dos melhores pediatras sovi�ticos, para ensinar os chineses a us�-la e para assumir o tratamento intensivo a que yuan devia ser submetido. no ber��rio do hospital havia, quase que constantemente, cerca de duzentos rec�mnascidos, todos sendo tratados sem muita tecnologia. os chineses nunca foram fortes neste
item. havia at� uma ala em que eram usados m�todos de acupuntura, embora nem sempre indicados, pelo menos isoladamente, como era feito. a vinda do pediatra sovi�tico foi muito oportuna. ao mesmo tempo que cuidava de yuan, fazia grandes mudan�as no setor, separando os beb�s normais daqueles prematuros e dos infectados. al�m disto inaugurou uma ala de terapia intensiva para rec�m-nascidos, com a instala��o da sua famosa incubadora. nos dois meses seguintes, que foi o prazo que yuan permaneceu no ber��rio, at� ter alta, o �ndice de mortalidade caiu vertiginosamente, sob a orienta��o do especialista sovi�tico. era o partido comunista em a��o, usando a tecnologia a favor do povo chin�s e aumentando assustadoramente a popula��o do pa�s. talvez esta seja a sina da humanidade contempor�nea: tecnologia aplicada, queda do �ndice de mortalidade, superpopula��o, massifica��o, mais tecnologia aplicada... o item deste ciclo vicioso que poderia ser contestado � o de que a superpopula��o leve a massifica��o. entretanto parece que n�o h� d�vidas quanto a isto. um quartel, uma colmeia, um formigueiro, uma nuvem de gafanhotos, massas enormes de pessoas, etc. podem tolerar por algum tempo o individualismo, mas, � medida que a densidade de habitantes aumenta, sem d�vida haver� limita��es, centraliza��o de comando e controles r�gidos da produ��o e distribui��o; n�o h� outra sa�da. o perfeito funcionamento necess�rio, para a sobreviv�ncia da super-comunidade, n�o deixa lugar para o mundo do liberalismo e das iniciativas individuais. pode, � claro, haver regime massificado sem superpopula��o, mas, o contr�rio deve ser imposs�vel. parece que os primeiros comunistas cinco vidas as fugas do formigueiro 180 chineses sabiam destas coisas e n�o titubearam em usar tudo que foi poss�vel para ter uma popula��o enorme e garantir o sistema econ�mico rec�m instalado, al�m, � claro, do fator ideol�gico envolvido: o comunismo n�o � altamente humanit�rio e n�o deve zelar pelas massas? assim, yuan tornou-se exemplo t�pico do que estamos falando. ele nasceu numa �poca em que a humanidade passara a usar a tecnologia como nunca antes tinha sido poss�vel e, como conseq��ncia, o n�mero de habitantes havia crescido assustadoramente. isto provocou a queda, em alguns pa�ses, dos antigos regimes, sendo substitu�dos pelo comunismo que, sem d�vida, nos casos de superpopula��o, aumentava, pelo menos temporariamente, o padr�o de vida e o n�mero de habitantes, formando um ciclo vicioso inexor�vel. m as, voltemos ao nosso her�i. ap�s cerca de dois meses de intensas lutas, contra a morte, ele come�ou a ganhar peso e saiu da famosa incubadora sovi�tica, indo para um bercinho comum. j� mamava diretamente da mamadeira, sem necessidade de sondas e de
soros na veia. as v�rias afec��es que o acometeram estavam debeladas. a cada progresso verificado saia um pequeno artigo, ou um relat�rio m�dico, nos jornais. desta maneira o caso foi seguido por milh�es de chineses e o �xito conseguido aumentava sensivelmente a f� no novo governo. ap�s a alta, o j� famoso chinesinho foi encaminhado para a creche mais sofisticada, de pequim, em mat�ria de t�cnicas psicol�gicas, pedag�gicas, m�dico-sanit�rias e educacionais. entretanto, l�, junto com ele, havia cerca de setecentas crian�as e n�o havia tanto impacto nos progressos conseguidos com ele, como quando estava entre a vida e a morte. desta maneira, ap�s um per�odo curto de fama nacional, yuan caiu num ostracismo total, sumido no meio de outras seiscentas e noventa e nove crian�as, todas com olhinhos puxadinhos e com a mesma carinha. a creche parecia uma f�brica de crian�as: todas igualmente vestidas, igualmente cal�adas, igualmente limpas e penteadas e reagindo quase que igualmente aos mesmos est�mulos f�sicos e emocionais. havia sido exaustivamente discutido se o chinesinho devia ser adotado por uma fam�lia comum, mas, mesmo a psiquiatria da �poca estava impregnando-se dos princ�pios comunistas de coletivismo total e a ida para uma creche, onde eram aplicados todos os princ�pios mais modernos de cria��o de crian�as, foi o caminho escolhido. os pais, e cinco vidas as fugas do formigueiro 181 principalmente a m�e, podem ser eficazmente substitu�dos pela educa��o coletiva, vaticinaram os psiquiatras membros do partido; �e com melhores resultados�, completaram. m as, vejamos como era o dia de yuan, na creche mais moderna da �poca. as crian�as eram todas acordadas � mesma hora por um tipo de sirene de f�brica, embora a idade variasse de 2 meses at� 3 anos, naquela reparti��o. ap�s o despertar as crian�as eram banhadas e trocadas por um n�mero suficiente de funcion�rios que, logo em seguida, ofereciam a primeira alimenta��o, de acordo com a idade. em seguida vinha a ludoterapia, com professores especializados e orientada segundo os mais puros princ�pios do comunismo aplicados na pr�tica. em seguida vinham os exames m�dicos di�rios: peso, exame f�sico geral e r�pido, controle de vacina��es, medica��es necess�rias, etc. ap�s, mais banhos, trocas de fraldas e roupas, mais brincadeiras educacionais e, finalmente as alimenta��es restantes. � noite, o sil�ncio total, s� quebrado na �rea dos menores, pelo choro dos beb�s e pelo barulho discreto dos funcion�rios nas trocas das fraldas e da roupa dos ber�os. repetia-se tudo no dia seguinte. o pequeno yuan, como toda crian�a, logo ap�s o grande risco que passou no hospital
e do qual se safou gra�as ao pediatra e � incubadora sovi�ticos, passou a ter as exig�ncias normais da idade: ele procurava, instintivamente, uma fonte de prazer e de amor que seria, normalmente, suprida pela m�e. como nada conseguiu, concretamente, apesar de toda efic�cia dos funcion�rios da creche, ficou desde aquela idade, com uma sensa��o profunda de perda: a perda da m�e, embora os psiquiatras (do partido) jurassem que a crian�a seria capaz de identificar-se com uma m�e - substituta. no in�cio ele chorava muito; era um brado contra a aus�ncia materna efetiva. com o tempo o choro foi cansando e ele apenas solu�ava e, mesmo os solu�os, cessaram, restando, apenas, um beb� ap�tico, quieto, sem receber amor e prazer e tamb�m sem capacidade de manifestar essas duas emo��es t�o importantes. tornou-se uma crian�a bem ao gosto dos funcion�rios de creche: enquadrada, quieta, massificada, deprimida, f�cil de lidar. o desenvolvimento f�sico, pelo contr�rio, era espetacular: peso acima do normal, estatura idem, corado, pele bem cuidada, desenvolvimento muscular perfeito, etc.; faltava-lhe, se bem observado, um certo brilho no olhar, comum em crian�as com uma m�e carinhosa ao lado. este � o tipo de educa��o impessoal, t�o comum em super - popula��es, onde proliferam as creches e os conjuntos habitacionais com fam�lias compostas somente de pais e filhos, cinco vidas as fugas do formigueiro 182 sendo os primeiros quase sempre ausentes para trabalhar; n�o h� forma��o de comunidades verdadeiras. o indiv�duo assim �fabricado�, sem uma m�e verdadeiramente dispon�vel e sem uma comunidade familiar saud�vel onde se desenvolver, ser� �timo para viver numa sociedade massificada, sentido-se s� na multid�o. ao mesmo tempo poder� se adaptar ao tipo de trabalho contempor�neo, no qual o indiv�duo fabrica, durante horas, repetitivamente, uma pequena parte de um objeto, recebendo de um funcion�rio anterior e passando para o seguinte, na famosa produ��o em s�rie, que despersonaliza totalmente o trabalhador. que diferen�a do antigo artes�o, que aprendia a profiss�o com o pai que havia aprendido com o av�, na mesma casa, na mesma cidade, que era uma verdadeira comunidade. al�m disso via a fabrica��o total do produto e n�o uma �nfima parte da mesma e chegava a acompanhar o uso posterior da sua produ��o, dentro da pr�pria comunidade. yuan n�o sabia de nada disso. como poderia supor o que estavam lhe fazendo, mesmo quando j� tinha idade para compreender? a maioria da humanidade n�o percebe o que est� acontecendo e n�o seria ele, um protegido do partido e das autoridades que iria contestar. seus av� e sua m�e haviam levado uma vida miser�vel. ele, entretanto, havia sido
salvo pelo comunismo e pela tecnologia. seria l�cito sequer analisar onde levaria o tipo de vida e de educa��o que estavam lhe oferecendo? alguns ide�logos do novo regime chegaram a vislumbrar a possibilidade de haver problemas a m�dio e longo prazos, mas todos estavam t�o envolvidos emocionalmente que apagaram as d�vidas de suas mentes, mesmo antes de se tornarem claras. como seria o novo homem chin�s, j� nascido sob o regime comunista? esta pergunta s� tinha uma resposta para todos: seria bem melhor que o do regime anterior, com boa sa�de f�sica e psiquicamente falando. isto era, praticamente, um dogma e, portanto, incontest�vel. todas estas considera��es estavam longe da cabecinha do nosso chinesinho, agora com 6 anos e ainda morando nas famosas creches de pequim, divididas por idade. j� estava come�ando a ser alfabetizado, juntamente com as milhares de outras crian�as que moravam com ele. a vida era uma rotina muito bem padronizada: carinhas iguais, cabelinhos penteados do mesmo modo, uniformes impressionantemente semelhantes, sapatos idem, alimenta��o idem, tudo idem; uma verdadeira fabrica��o em s�rie; fabricava-se o novo homem, o novo oper�rio, em s�rie, como ford houvera descoberto para fabricar cinco vidas as fugas do formigueiro 183 autom�veis. era impressionante ver aquelas crian�as, a maioria sem nenhum v�nculo familiar entre si, cantarem, em coro, igualzinhas, hinos de louvor a lenin, a marx e a mao. tamb�m impressionante v�-las andando, em passeio, pelas ruas de pequim, as de tr�s segurando, com a m�o direita, a cintura da cal�a da crian�a da frente, formando uma fila intermin�vel, com os professores ao lado. lembrava as manadas de elefantes com os de tr�s segurando, com a tromba, o rabo do da frente. se tir�ssemos ou aument�ssemos algumas crian�as, ningu�m perceberia, tal a despersonifica��o dentro da manada. a fase infantil transcorreu sem muitos percal�os, embora psicologicamente pud�ssemos dizer que yuan estava se tornando uma bela �rvore, mas sem ra�zes fortes e profundas. a sua educa��o impessoal, sem a m�e, dera-lhe ra�zes superficiais e fracas de modo que a �rvore iria tremer e mesmo cair, mais cedo ou mais tarde, a um vento mais forte. na puberdade, esta fase t�o humana e dif�cil da vida das pessoas, a sua educa��o para agir como uma m�quina igual �s outras, come�ou a surtir efeito. a sua incapacidade para receber amor e prazer, e tamb�m para do�-los, era quase que total. desta maneira, todas as emo��es mais profundas foram banidas e o organismo funcionava mecanicamente em rela��o a praticamente tudo; dormir, comer, relacionar-se com os outros, divertirse, estudar, sentar, andar, etc. tudo era feito conforme o programa. mesmo as atividades
sexuais, j� no fim da juventude, eram praticadas mecanicamente, sem nenhum envolvimento emocional com as parceiras (n�o sabemos se houve envolvimento homossexual, mas n�o importa; se houve foi, tamb�m, como uma m�quina). diga-se de passagem que, nos regimes comunistas, com o controle centralizado dos meios de comunica��o, facilmente se forma a opini�o das pessoas; o governo, sem nenhuma dificuldade, induz o povo a agir exatamente como o desejado e, na maioria das vezes, isto corresponde � massifica��o marxista. marx quis livrar o homem da aliena��o capitalista e acabou jogando-o na massifica��o das super-popula��es de oper�rios comunistas. com o nosso yuan aconteceu exatamente isto. ele foi salvo pela tecnologia implantada num pa�s miser�vel pelo regime marxista. este mesmo regime deu-lhe uma educa��o esmerada intelectualmente, mas numa creche, sem uma m�e efetiva. ao mesmo tempo massificou-o no meio dos milhares de outros habitantes. ele usava, como todos, as mesmas cinco vidas as fugas do formigueiro 184 roupas e sapatos, comia as mesmas comidas, divertia-se da mesma maneira, via os mesmos programas de televis�o que todo o pa�s, tinha o mesmo passado, o mesmo presente e o mesmo futuro que todos os cidad�os chineses da sua �poca; at� a sua vida �ntima era padronizada: aprendera a masturbar-se e a copular na escola, com os psic�logos, da mesma maneira que aprenderam milhares de colegas seus. sentia-se s� embora totalmente padronizado. pode o homem ser massificado desta maneira, seja em que tipo de regime for, sem conseq��ncias s�rias? o comunismo ou o capitalismo resolvem os problemas das grandes concentra��es humanas criadas pela superpopula��o e pela urbaniza��o r�pidas que foram poss�veis pelo avan�o tecnol�gico atual? o que acontece ao indiv�duo quando ele se sente s�, no meio da multid�o, como uma formiga no formigueiro? yuan vivera, at� cerca dos vinte anos, baseado numa imagem que o regime lhe fornecera. para se viver, em grandes aglomerados o indiv�duo tem que seguir um modelo determinado; n�o pode ter muitas id�ias pr�prias ou diferentes que baguncem o formigueiro. assim, disseram-lhe que ele era um exemplo de oper�rio chin�s saud�vel, bem instru�do, trabalhador, mas sem possibilidades de sair da fila, como acontecia quando passeava com as outras crian�as, segurando a cintura da cal�a da que ia � sua frente. ele teria tudo, desde que se comportasse como programado; como aquela imagem de homemm�quina que os meios de comunica��o enalteciam. teria que morar como os outros, pensar como os outros e todos da mesma maneira. havia o peso da imagem que criaram para ele esmagando toda a sua individualidade. era muito semelhante � vida do soldado-raso, num quartel; ele tem garantida a comida, a moradia, a assist�ncia m�dica, mas tem que se vestir como todos, andar em fila, obedecer sem perguntas, etc. n�o � ningu�m como pessoa;
somente existe como parte �nfima do todo, podendo at� ser suprimido, sem mudar a caracter�stica da tropa. vejamos o que aconteceu a yuan e, talvez, concluamos que o futuro da humanidade massificada � tr�gico. aos vinte anos, yuan li-ma encontrava-se perfeitamente apto segundo as autoridades do regime, a ser chamado de oper�rio-padr�o chin�s. n�o apresentava o m�nimo sinal de necessitar ou mesmo desejar qualquer liberdade individual. estava totalmente adaptado � organiza��o total. o controle da mente, desde a inf�ncia, pelo enaltecimento constante do cinco vidas as fugas do formigueiro 185 tipo de comportamento desej�vel para um verdadeiro chin�s, havia surtido efeito. os limites estabelecidos para se viver numa popula��o sob regime comunista, massificada, estavam bem n�tidos e nunca foram ultrapassados. ele morava num pequeno apartamento tipo quarto e cozinha e banheiro, o que era um privil�gio, pois n�o tinha que habitar os verdadeiros dormit�rios coletivos gigantes dos outros funcion�rios da sua f�brica, que pareciam um verdadeiro alojamento de quartel. embora o apartamento ficasse num conjunto habitacional enorme, monstruoso, constitu�do por milhares de pr�dios iguais, permitia-lhe uma discreta intimidade, que os seus colegas n�o possu�am. al�m disso ele possu�a m�veis razo�veis e um pequeno aparelho de televis�o(que na china s� transmite programas oficiais). desta maneira, acordava �s 6 horas, banhava-se rapidamente (o consumo de �gua era controlado rigorosamente), vestia o uniforme que era igual aos milhares de outros, descia, apanhava sua bicicleta e, ap�s pedalar por alguns quil�metros, chegava � F�brica nacional de roupas que era a maior fabricante de uniformes que toda a popula��o usava. na portaria estacionava o seu ve�culo junto com milhares de outros id�nticos e, �s 7 horas em ponto entravam, em verdadeira prociss�o, para o interior da f�brica. tomava o caf�-da-manh� e dirigia-se, imediatamente para o setor onde realmente trabalhava. seu trabalho consistia em se sentar em frente a uma m�quina de costura que estava situada no meio de milhares de outras, em v�rias fileiras; recebia, continuamente, do funcion�rio que ficava antes, um casaco semiconfeccionado no qual ele fazia uma costura pr�-determinada e, em seguida, passava o mesmo para o funcion�rio seguinte. e assim era por doze horas seguidas, com pequenos intervalos de cerca de 1 hora para o almo�o e jantar. apesar de ter recebido uma instru��o esmerada, falando e escrevendo, correntemente o chin�s, o ingl�s, o franc�s e, apesar ainda, de ser capaz de desenhar os moldes do casaco e de confeccion�-lo por inteiro, com toda a seguran�a e efici�ncia, yuan era obrigado �quele trabalho massificado, sem o menor
interesse e sem ter, ao menos, o gosto de ver a pe�a terminada e de saber quem iria us�-la, o que seria normal para um alfaiate de uma pequena comunidade antiga. yuan, no fundo do seu ser, sentia que estava sendo transformado num rob�, mas a carapa�a que a propaganda intensa criara n�o deixava aquele sentimento ser expresso e nem mesmo entendido. n�o haviam lhe dito, a vida toda, que qualquer trabalho enobrece? que quanto mais cinco vidas as fugas do formigueiro 186 produzirem, mais recompensas ter� todo o povo chin�s? que para o bem do formigueiro, cada formiguinha deve executar sempre e sempre a sua parte, sem pensar em si mesma, mas somente no todo? tamb�m n�o adiantava ser diferente. a organiza��o total do pa�s, necess�ria para que se pudesse conviver com a superpopula��o, n�o permitia que fosse de outra maneira. e, mesmo que yuan pudesse gritar: - estou virando um rob�!!! garanto-lhes que ele n�o o faria. o seu chefe poderia ouvir e, talvez, gostar da id�ia e substitui-lo por uma m�quina de verdade, pois o seu trabalho era, de fato maquinal. a� ele perderia as �nfimas mordomias que aquele emprego lhe oferecia. terminada a jornada de trabalho, a mesma rotina. saiam em prociss�o, pegavam suas bicicletas e dirigiram-se a seus alojamentos. n�o eram permitidas sa�das de casa sem autoriza��o pr�via. as f�rias eram rigorosamente controladas quanto � dura��o, ao transporte ao local e ao tipo de lazer e em v�rios anos foram canceladas sem explica��es. havia um dia por semana em que n�o se trabalhava, mas o lazer era totalmente programado para todos, intercalado com a propaganda e aulas de persuas�o, magistralmente ministradas atrav�s de alto-falantes, filmes e de v�rias t�cnicas de condicionamento do comportamento. yuan chegando ao mini-apartamento, fazia uma pequena faxina, lavava suas roupas pessoais e mandava outras para a lavanderia comunit�ria. em seguida lia alguns livros que eram selecionados para os oper�rios na biblioteca da f�brica e depois via televis�o, quase sempre adormecendo ap�s horas e horas vendo a face de mao, no v�deo. o casamento era desestimulado antes de determinada idade, pois nem mesmo a superorganiza��o, implantada pelo comunismo, e a melhoria tecnol�gica da produ��o, estavam dando conta de suprir tantas pessoas. deste modo os habitantes casavam-se com a idade mais avan�ada poss�vel e nunca antes dos 30 anos. o sexo entre solteiros tamb�m n�o era bem aceito e quando praticado, se resultassem em gravidez era severamente punido. como yuan n�o era muito afeito �s pr�ticas masturbat�rias, muito comuns quando h� restri��es, desde que recebeu seu pequeno apartamento individual passou a levar, para l�, mo�as com as quais satisfazia-se sexualmente. as jovens eram do pr�prio conjunto habitacional e aceitavam o convite desde que ele se comprometesse a praticar o
coito interrompido, de modo a evitar a gravidez (os preservativos e as p�lulas ainda eram de dif�cil obten��o). qualquer manual de psiquiatria pode nos informar sobre os malef�cios cinco vidas as fugas do formigueiro 187 deste tipo de coito, ainda mais se praticado por um indiv�duo massificado e com a personalidade n�o muito bem assentada na realidade do ser humano, como � a maioria dos jovens atuais. passaram-se anos, naquela rotina: acordar, pedalar, costurar, comer, ler, trepar, ver televis�o, dormir... quando yuan completou 28 anos come�aram a soprar os ventos que a �rvore mal enraizada n�o ag�enta: tomba. a mudan�a frequente de parcerias permitia-lhe n�o ter envolvimento emocional mais profundo com nenhumas delas. mas, de um ano para c�, como ia se aproximando a idade em que seria permitido o casamento e filhos, ele come�ou, como era natural, a convidar uma das jovens com mais freq��ncia e se iniciou um verdadeiro namoro e um envolvimento emocional mais intenso, digamos, mesmo, pr�-nupcial. yuan havia sido educado para agir como uma m�quina e n�o como um ser humano. havia uma barreira enorme que impedia que ele amasse e que sentisse o verdadeiro prazer. ele nunca fora, verdadeiramente, amado e, tamb�m, fechara-se para o verdadeiro amor. como era de se esperar, era capaz de copular como uma m�quina; como ser humano era sexualmente impotente. bastou haver um pouco mais de intimidade e de humanidade e amor no relacionamento para o chin�s n�o conseguir a ere��o ou, se ap�s grande esfor�o a conseguisse, n�o a manter por tempo necess�rio para um ato sexual normal. trocou de namorada v�rias vezes, mas o problema repetia-se. n�o era capaz de amar nada al�m da sua pr�pria imagem. aquilo balan�ou a cabe�a do mo�o. ele n�o era um atleta, instru�do, bem alimentado, bem empregado? n�o fora o protegido e o s�mbolo do regime na inf�ncia? n�o fora educado nas melhores creches? como poderia ser impotente? observava o p�nis fl�cido, sobre a bela chinesa deitada na sua cama e nada entendia. o que estava errado? pensou em procurar o m�dico da f�brica mas n�o o fez. talvez fosse coisa passageira. mas n�o era. a �rvore psicol�gica de yuan como j� dissemos, n�o possu�a ra�zes profundas e come�ara a desabar. no ano seguinte ele come�ou a apresentar-se triste e depois, verdadeiramente deprimido. n�o achava mais raz�o para viver ou para trabalhar ou para ler. vivia cansado, continuava sexualmente impotente, fazia grande esfor�o para conseguir trabalhar e, ultimamente, at� para levantar-se da cama era muito penoso. cinco vidas as fugas do formigueiro 188
� prov�vel que tenha passado pela sua cabe�a que tudo aquilo que haviam lhe ensinado at� aquela data estava errado. marx, segundo lhe disseram, havia profetizado que, no comunismo, o oper�rio seria um homem completo, feliz com o seu trabalho e com a vida. entretanto n�o era o que ele estava sentindo. ao contr�rio, n�o sentia mais gosto ou vontade de viver. haviam lhe prometido p�o e circo ou melhor, arroz e lazer ou melhor ainda, comida e divers�o e ele se contentou com aquilo, achando que seria o suficiente para toda a vida. mas agora percebia como havia aprendido pouco sobre a mente humana, que possui muitas e mais complexas necessidades. o homem poderia amar uma imagem que lhe ofereciam como ideal, mas, uma imagem � uma imagem e pode desaparecer subitamente. e foi o que aconteceu. quando seu corpo real falhou ele percebeu que toda aquela parafern�lia em que fora levado a acreditar era falsa. e tudo desmoronou. acreditamos que se yuan tivesse nascido muitos anos antes, quando a humanidade ainda n�o possu�a �reas com super-popula��es como atualmente e se tivesse vivido numa pequena, e verdadeira, comunidade, como eram as cidades de outrora, talvez n�o tivesse tido a grave depress�o que o acometeu. talvez n�o tivesse nem sobrevivido, sem a sua m�e e sem os recursos atuais. mas este � o cerne da quest�o da modernidade: a t�cnica permitiu-nos coisas maravilhosas mas cobrando um pre�o alt�ssimo, ainda que n�o totalmente avaliado. este pre�o nos � cobrado com a possibilidade do crescimento explosivo da popula��o, com a devasta��o do meio ambiente, com a necessidade de enquadrar o homem � super-organiza��o, modificando suas formas seculares de produ��o, distribui��o e lazer e trazendo altera��es psicol�gicas muito graves, e at� certo ponto desconhecidas, para todos os componentes destas sociedades contempor�neas. diz-se, com muito acerto, que o final do segundo mil�nio ser� a �poca de uma imensa epidemia de depress�o, como conseq��ncia daqueles fatos. yuan tinha sido um s�mbolo de um novo regime e agora poderia, de novo, ser considerado um exemplo: aquele que nos mostra o que n�o dever�amos deixar acontecer aos nossos jovens. alguns dos amigos de yuan, com uma base familiar mais s�lida, apresentavam, em conseq��ncia do ambiente em que foram criados, crises de �lcera gastroduodenal, hipertens�o arterial, asma, dermatites, colites, impot�ncia sexual, anginas, etc. etc. no entanto n�o era a maioria que apresentava crises de depress�o t�o grave como a do amigo. cinco vidas as fugas do formigueiro 189 o que era poss�vel notar na juventude chinesa, j� nascida comunista era uma certa frouxid�o, uma acomoda��o aos padr�es existentes de vida. se fosse permitido fazer uma pesquisa, garanto que a maioria estaria satisfeita. temos p�o e circo, diriam, e onde h� muita gente n�o � conceb�vel a anarquia individualista, acrescentariam; portanto fiquemos como estamos, sem projetos individualizados de vida, pertencendo � massa,
terminariam. n�o se notaria nem sombra da ra�a e da fibra dos antigos pioneiros e revolucion�rios chineses. se atualmente fosse necess�ria uma nova grande marcha, mao tse tung a faria sozinho ou com mais alguns velhos do seu tempo; a juventude, espontaneamente, n�o iria. poderia acompanh�-lo, mas n�o por esp�rito revolucion�rio ou pioneiro, e sim se fosse convencida pelos m�todos modernos de manipula��o de massas. ent�o, a que foi reduzida a parte jovem da humanidade comunista do final do s�culo vinte? a indiv�duos frouxos, conformados, exigentes somente quanto ao p�o e ao circo, incapazes de grandes sacrif�cios, facilmente manipul�veis enquanto massificados, propensos a usar drogas, a terem crises de depress�o freq�entes, a praticarem a autodestrui��o cronicamente, al�m de se tornarem violentos em rela��o aos pr�prios semelhantes, por n�o sentirem muito valor numa �nica vida em rela��o � milh�es existentes. estariam os dirigentes aptos a deixar isto transparecer? deixariam que a popula��o em geral percebesse as causas e os efeitos dos problemas? poderiam divulgar que o homemmassa, que os dirigentes, de uma maneira ou de outra permitiram, teria graves conseq��ncia psiquico-f�sicas? acreditamos que n�o, pois vejamos o que fizeram com o jovem t�pico destes tempos: yuan li-ma. ap�s anos sem faltar ao trabalho e ao lazer programado, num s�bado, yuan n�o compareceu � F�brica, permanecendo trancado em seu quarto. � noite falaram com ele atrav�s da porta, mas ele referiu apenas inapet�ncia, provavelmente por uma gripe; passaria no servi�o m�dico se n�o melhorasse. no domingo n�o compareceu �s festividades e aulas programadas. na segunda-feira ele n�o levantou, n�o tomou banho, n�o pegou a bicicleta e n�o foi trabalhar. eram cerca de 9 horas da manh� quando chegaram, ao pequeno apartamento, o m�dico e o encarregado da f�brica onde yuan trabalhava. a porta estava trancada. bateram. bateram. cinco vidas as fugas do formigueiro 190 bateram. n�o houve resposta. o encarregado desceu, voltou com um p�-de-cabra e, em poucos segundos arrombou a porta. a cena era dantesca. havia manchas de sangue por toda parte, nos len��is, nas paredes, no ch�o. no meio da confus�o um casal formado por dois belos esp�cimes da juventude chinesa, nus, abra�ados, com os quatro pulsos cortados profundamente. imediatamente o m�dico separou os dois examinando rapidamente a mo�a que se apresentava totalmente p�lida e com sinais inconfund�veis de �bito, h� pelo menos 30 minutos. em seguida o facultativo voltou-se para o outro �cad�ver�, que era o yuan
e, apesar de estar t�o branco quanto a mo�a e praticamente n�o apresentar movimentos respirat�rios ou batimentos card�acos, ao examinar a boca da art�ria cortada no pulso ele percebeu que a mesma ainda pulsava; muito fracamente, mas pulsava; ent�o o cora��o ainda batia. iniciou, em seguida, a respira��o boca-a-boca enquanto o encarregado, sob sua orienta��o, providenciava torniquetes para estancar qualquer outra perda de sangue e fazia massagens no t�rax para ajudar o cora��o. permaneceram nestas manobras at� ouvirem a sirene e passarem o paciente para a maca da ambul�ncia que havia sido chamada. yuan foi levado, ainda vivo, para um hospital pr�ximo e o regime comunista, eficient�ssimo nestes casos, logo promoveu a evacua��o do local, a transfer�ncia da fam�lia da mo�a, do m�dico e do encarregado, a pintura e limpeza do quarto e o sumi�o de tudo que pudesse lembrar o ocorrido. deste modo, dentro de uma semana n�o se falava mais no assunto, pois n�o havia not�cias e nem com quem se informar. o objetivo � sempre preservar a imagem do regime, custe o que custar. yuan j� se safara do risco de vida pior que aquele, logo ao nascer. e, como j� dissemos, fisicamente, ele era bem constitu�do; o problema era s� psicol�gico. ele tolerou muito bem o per�odo de v�rias horas que passara em choque hemorr�gico e, em poucos dias, ap�s algumas transfus�es de sangue estava, fisicamente, perfeito. infelizmente sua namorada n�o tinha o mesmo vigor corporal e morreu. os dois nus, abra�ados, no pequeno apartamento, poderiam lembrar romeu e julieta. mas havia duas diferen�as fundamentais. os her�is shakespearianos suicidaram-se por excesso de amor e os nossos por incapacidade para amar. e, tamb�m, no segundo caso, s� um dos suicidas teve sucesso. n�o sabemos, exatamente, porque a namorada de yuan suicidou-se; entretanto deduzimos que as causas sejam as mesmas que as do namorado: o desmoronamento da imagem que tinham de si cinco vidas as fugas do formigueiro 191 mesmos, a aus�ncia de sentimentos, a sensa��o de uma vida vazia e sem significado e, finalmente, a perda dos valores humanos reais que se d� em praticamente todos os grandes conglomerados de pessoas, como nas grandes metr�poles, derivando para o ego�smo, para a ambi��o compensat�ria e para a irrealidade. n�o h� mais a possibilidade de se formar uma comunidade real, de se amar ao pr�ximo, de se admirar o meio ambiente, as flores, o campo, o c�njuge, o pr�prio corpo. tudo isto fora muito bem escondido da popula��o, pelos dirigentes. da mesma maneira
que fizeram apologia da salva��o de yuan quando ele nascera, agora esconderam as causas que o levaram tentar se matar. eles haviam dito que o regime anterior era assassino porque levara a m�e de yuan � morte e, agora n�o poderiam se considerar culpados da tentativa de morte do filho. acreditamos, mesmo, que a maioria dos pr�ceres do pc chin�s n�o sabia as causas e, tamb�m, n�o concordariam se lhes fosse dito que o jovem foi v�tima da tecnologia, da superpopula��o, da super-organiza��o e do artificialismo a que foi atirada toda a juventude contempor�nea. se lhes dissessem que o oper�rio chin�s �, cada vez mais, uma m�quina, distanciando-se da origem animal humana, eles n�o acreditariam. quando acreditarem talvez seja tarde. se o homem n�o for capaz de se transformar em rob�, as conseq��ncias ser�o funestas. ainda resta a esperan�a de que a ra�a humana sofra alguma muta��o gen�tica e consiga ser constitu�da de bilh�es de ex-seres humanos, hoje m�quinas. voltando ao assunto, o jovem ex-suicida foi entregue a um famoso psiquiatra chin�s que deveria trat�-lo sigilosamente, como j� fizera com v�rios outros jovens, enquanto ele ficava internado numa cl�nica psiqui�trica, tamb�m usada para casos de reeduca��o, de readapta��o pol�tica e de aux�lio a casos que necessitem de autocr�tica. foram dois anos de intensa an�lise por parte do m�dico, embora, desde o in�cio, ele j� suspeitasse das causas da profunda depress�o que acometera yuan. in�meros jovens haviam passado por suas m�os e as caracter�sticas eram semelhantes. deste modo, ap�s aquele longo per�odo de interna��o e de sess�es quase di�rias de an�lise, o psiquiatra emitiu o seguinte relat�rio sobre o caso: �yuan li-ma, 28 anos, natural de pequim, solteiro, oper�rio, deu entrada neste hospital h� cerca de 2 anos, ap�s tentativa de suic�dio, em intensa depress�o. a an�lise do caso mostrou-nos, nitidamente, o que chamamos de � s�ndrome do formigueiro�. trata-se de uma sociedade com n�mero muito grande de indiv�duos, devendo, portanto, cinco vidas as fugas do formigueiro 192 inexoravelmente, caminhar para uma super-organiza��o; a outra op��o seria a anarquia. nestas sociedades a uniformidade � obrigat�ria; o anseio de individualidade � totalmente destru�do em favor do controle total. como fica um componente humano deste formigueiro? totalmente anulado como indiv�duo. sua fun��o � encaixar-se no esquema global, sem projetos subjetivos de vida. para uma formiga isto � normal, natural, gen�tico. e para o homem? criam-lhe uma imagem que ele deve ser no formigueiro humano e ele tem que agir exatamente daquela maneira, para o bem geral. as id�ias individuais, o direito de divergir, os projetos pr�prios quanto � pr�pria vida, embora n�o pare�a, s�o imposs�veis.
os valores realmente humanos s�o destru�dos, em nome da sobreviv�ncia da esp�cie (super-numerosa) e da ordem. o indiv�duo perde o contato consigo mesmo com o seu pr�prio corpo e suprime seus sentimentos de ternura, de dignidade, de amor, de solidariedade, de seguran�a interior. ele torna-se um sucesso para o mundo, para a sociedade, para os outros mas um fracasso para si mesmo. exatamente como um rob�: altamente eficiente para as tarefas para as quais foi programado, mas sempre uma m�quina, sem sentimentos. como o inseto no formigueiro ele torna-se altamente eficiente para a colossal comunidade, anulando-se a si mesmo. � poss�vel fazermos isso, com a esp�cie humana, sem pagarmos um pre�o? o caso de yuan e da maioria dos jovens chineses, mostramos que n�o. tivemos que pagar pela superpopula��o e pela super-organiza��o. o homem que nelas vive � cada vez mais suscept�vel de doen�as mentais e cada vez menos capaz de ser feliz. e, quando o seu corpo responde �quela situa��o anti-natural em que foi colocado e � qual foi condicionado, aparecem, ent�o, as depress�es, a impot�ncia sexual, a hipertens�o, as �lceras, os dist�rbios mentais, as ins�nias, etc. e qual a sa�da para esta desumaniza��o da esp�cie? para esta transforma��o de um animal moderadamente greg�rio, por natureza, em um animal com a vida semelhante 1a dos insetos sociais, totalmente anti-natural para o homem? uma sa�da ideal seria voltarmos, r�pida e compulsoriamente, a ser uma esp�cie com poucos componentes, como fomos na grande parte do tempo da nossa hist�ria. entretanto como isso parece imposs�vel e indesej�vel existem as sa�das individuais, n�o ideais, com a que sugiro para o meu paciente em quest�o. ele tentou resolver sua depress�o, seu vazio vital, sua incapacidade de sentir qualquer prazer verdadeiro atrav�s do suic�dio. existem outros jovens que tentam o �lcool e as drogas em geral; outros v�o vivendo como podem, para ver onde vai dar e pagam o seu cinco vidas as fugas do formigueiro 193 pre�o em qualidade e quantidade de vida; morrem mais cedo por doen�as que poderiam ser evitadas e, os anos em que permanecem vivos s�o totalmente vazios e sem sentido. portanto, encerrando este relat�rio, que � igual a outros tantos anteriores, concluo que yuan li-ma tentou suic�dio por estar intensamente deprimido porque estava se transformando num aut�mato, num rob�, numa formiga ou no que quiserem, menos num indiv�duo da ra�a humana. sugiro para o caso a inclus�o do paciente no �plano de ilus�o de individualidade�, pois a perman�ncia do mesmo no ambiente da superpopula��o superorganizada chinesa, seria desastrosa com recorr�ncia da depress�o intensa�. diga-se, de passagem, que este relat�rio era estritamente confidencial e dirigido, apenas, a altos dirigentes. o psiquiatra que o elaborou era detestado em muitos escal�es do partido, pois suas teorias, como � f�cil de perceber, contrariavam frontalmente a id�ia do para�so
marxista em que deveriam viver os povos sob o comunismo e trazia para o centro das aten��es a aliena��o causada pela superpopula��o e, relegava a segundo plano, a aliena��o capitalista. mas, como nos v�rios casos em que n�o seguiram a sua orienta��o, os pacientes haviam piorado e, mesmo, morrido, o partido resolveu adotar as suas t�cnicas de tratamento, independente de suas id�ias politico-filos�ficas. o tratamento radical, bolado por aquele psiquiatra, era o referido �programa de ilus�o de individualidade� que consistia em, diagnosticada a causa, isolar o paciente do formigueiro. se a sociedade semelhante � dos insetos-sociais era desastrosa para a humanidade e, se alguns indiv�duos n�o a suportavam, era l�gico isolar estas pessoas, dando-lhes uma falsa ilus�o, pois o pr�prio psiquiatra achava que o individualismo verdadeiro, natural e sadio ou a vida em pequenas comunidades era, na sua plenitude, imposs�vel no planeta terra atual, transformado no local de habita��o de bilh�es de homens-massa ou de formigas-humanas. entretanto, ainda havia raras �reas menos habitadas e menos organizadas para a massifica��o, embora os meios de comunica��o, de transporte e o pr�prio crescimento populacional as amea�assem constantemente. desta maneira aquele grande psiquiatra conseguia enviar varios jovens pequineses, desajustados, para pequenas comunidades nos confins da china, ap�s ter feito os mesmos entenderem a causa dos seus problemas e de concordarem com a mudan�a. os relat�rios que recebia eram animadores e os problemas somente reapareciam se as pequenas comunidades come�assem a aumentar, principalmente quanto ao n�mero de habitantes. no cinco vidas as fugas do formigueiro 194 caso de pacientes muito famosos, como era o de yuan li-ma, o m�dico havia conseguido que os mesmos fossem �exportados� para pa�ses capitalistas, com nova identidade, cortando terminantemente todas as suas liga��es com o regime no qual foram criados e ao qual n�o se adaptaram. embora ele soubesse que a falta de adapta��o n�o era devida ao tipo de regime, sabia, tamb�m, que nos regimes capitalistas, por enquanto, e por alguns anos a mais, a semelhan�a com formigueiro n�o era t�o grande. no in�cio os l�deres do pc chin�s se opuseram violentamente a este plano meio maluco, segundo eles. entretanto, quando um dos pacientes famosos, que deveria ser �exportado� e n�o foi, cuspiu num retrato de mao tse tung, numa sess�o solene do partido, logo reabilitaram o psiquiatra e concordaram com o seu plano. j� haviam enviado chineses famosos e deprimidos para v�rios pa�ses da asia, �frica e am�ricas e parecia que o plano era bom. no caso de yuan o pa�s escolhido foi o brasil, sendo esta a primeira, mas n�o a �ltima, experi�ncia neste pa�s. ap�s longas e
longas conversas com o famoso paciente, este entendeu o problema e aceitou a solu��o, prometendo colabora��o total. a impot�ncia, a depress�o e o vazio vital foram t�o traum�ticos que ele toparia qualquer coisa para n�o voltar a t�-los. ap�s a concord�ncia do paciente o mesmo foi submetido a uma pequena cirurgia pl�stica nas p�lpebras, para uma ocidentaliza��o dos olhos; come�ou, tamb�m, a freq�entar um curso intensivo de portugu�s. como ele j� falava franc�s, houve facilidade e, em seis meses, expressava-se razoavelmente na nova l�ngua. ap�s oito meses da inclus�o de yuan no plano, ele partia para uma �tourn�e� pela am�rica do sul, junto com uma equipe chinesa de jogadores de t�nis de mesa, embora nunca tivesse sido bom neste jogo. as autoridades alfandeg�rias n�o observaram bem, mas faltava um jogador quando a equipe saiu do aeroporto de s�o paulo, com destino � China. tudo fora minuciosamente planejado. agentes chineses, infiltrados principalmente na comunidade coreana da cidade de s�o paulo, haviam providenciado documentos de identidade para o novo �brasileiro�. ele se chamaria jo�o lima (tradu��o livre de yuan lima) e seria filho de jos� de lima, brasileiro, e de kioko takaashi lima, nissei, ambos j� falecidos. nascera na cidade de s�o paulo em 05 de janeiro de 1951 (mesmo dia em que nascera em pequim) e sempre vivera nesta megal�pole brasileira, conforme toda a cinco vidas as fugas do formigueiro 195 documenta��o falsificada indicava. h� algumas semanas havia comprado um alqueire de mato, com um casebre no centro, a alguns quil�metros da periferia da cidade, num lugar pouco valorizado e pouco habitado, pela dificuldade de acesso, e era onde iria morar aquele que agora era brasileiro, filho de brasileiro com nissei, paulistano e nada mais. os agentes deixaram-no na porta do casebre, entregaram-lhe os documentos pessoais e a escritura do terreno, disseram-lhe que dali para a frente era �nica e exclusivamente por conta dele, que nunca os procurasse sob nenhum pretexto, e que, se desse com a l�ngua nos dentes sobre seu verdadeiro passado, seria sumariamente executado por pistoleiros chineses que viviam no brasil. jo�o lima, pela primeira vez na vida, viu-se s�. At� aquela data ele havia vivido com tudo programado e organizado, sempre no meio de muitos iguais a ele (era o formigueiro sobre o qual o psiquiatra tanto falava), sendo obrigado a trabalhar e viver de acordo com o esquema geral tra�ado. agora ele estava ali, no meio do mato, s�, podendo resolver o que queria fazer, ou , mesmo, n�o fazer nada. sentiu, pela primeira vez, ap�s mais de trinta anos, o sentido da palavra individualidade e gostou do que sentiu. n�o tinha a
garantia de alimentos, de lazer, de assist�ncia � sa�de, mas n�o se importou. tamb�m n�o tinha toda a super-organiza��o, da sociedade em que vivera, a sufoc�-lo, a deprimi-lo, a lev�lo � morte. nos primeiros meses, jo�o lima enfrentou a fome, os mosquitos, o frio, a chuva, a solid�o, mas estava t�o satisfeito consigo mesmo e com tanta energia vital, que a tudo venceu. a depress�o, que sempre voltava, mesmo no per�odo de interna��o, n�o mais se manifestou naquele ambiente, como previra o amigo psiquiatra que o tratara e enviara para ali. quem voltasse � pequena propriedade, ap�s um ano da chegada do novo habitante, n�o a reconheceria. o mato parecia um bosque, pois s� restaram as grandes �rvores e o ch�o entre as mesmas estava muito limpo. o casebre havia sido reformado, ampliado e, em torno do mesmo existiam v�rios canteiros de verduras. jo�o vivia como um verdadeiro ermit�o. seu �nico contato com a sociedade era nos dias da semana em que ele enchia de verduras uma pequena carro�a, puxada por ele mesmo, e ia at� um vilarejo pr�ximo onde vendia e comprava o que podia, al�m de treinar um pouco o portugu�s. passaram-se alguns anos e ele sentia-se �timo. tinha vontade de escrever a seu m�dico chin�s, mas n�o podia faz�-lo: havia prometido segredo total e nada faria que pudesse, cinco vidas as fugas do formigueiro 196 talvez, desmascar�-lo. j� conseguira freq�entar um pequeno prost�bulo do vilarejo e podia afirmar que a sua pot�ncia sexual renascera plenamente. ele entendeu, ent�o, a frase do m�dico durante as sess�es de psican�lise, no hospital chin�s sempre repetida: �as formigas-oper�rias s�o assexuadas para melhor realizar o seu trabalho�. a sua vida no formigueiro chin�s o transformara numa formiga oper�ria e acabara com a sua capacidade sexual e vital. mas ele se libertara; como era bom ter entendido o que acontecera e ter se curado... m ais alguns anos e jo�o j� possu�a uma bela produ��o de verduras, algumas economias, e uma noiva com a qual pode envolver-se intensamente e receber e doar amor, como � natural ao ser humano, sem a interfer�ncia quanto � principal atividade do homem: viver a vida. possu�a um cora��o aberto, sentia-se especial, os prazeres simples lhe davam grande alegria. integrava-se e entregava-se totalmente � noiva, embora, �s vezes, sentiase triste por n�o poder contar-lhe o seu verdadeiro passado e ter que inventar v�rias hist�rias. as cicatrizes nos pulsos ele explicava como um acidente de inf�ncia e o sotaque meio oriental ele atribu�a � m�e que s� falava em japon�s, com ele, nos seus primeiros anos de
vida. casaram-se, mas n�o tiveram filhos. ambos concordaram em n�o procurar m�dicos para estudar o problema da esterilidade do casal. continuariam tendo rela��es sexuais e tentando a gravidez a vida toda, mas naturalmente, sem tratamentos e sem ang�stias. tamb�m descartaram a ado��o. bastavam-se a si mesmos e um filho n�o era t�o fundamental quanto pode parecer a outros casais cuja uni�o depende de tudo, menos do amor entre os parceiros. a cidade crescera vertiginosamente (oh sina humana) nos �ltimos anos. o acesso � ch�cara do jo�o j� era inclusive asfaltado e havia �nibus na porteira de meia em meia hora. no seu terreno havia, agora al�m da planta��o de verduras, uma pequena granja, com produ��o de aves e ovos, de primeira qualidade. o antigo casebre virara uma casa confort�vel, com televis�o, telefone, um carro pequeno na garagem e at� uma piscina nos fundos. o comunista se aburguesara. ele havia sido orientado pelo experiente psiquiatra para estar preparado para ser propriet�rio, pois como chin�s era dif�cil de imaginar aquilo. m ais dez anos e ch�cara do jo�o estava praticamente dentro da cidade e ent�o ele entendeu porque o plano em que fora inclu�do chamava-se de plano de ilus�o de individualidade e n�o plano de individualidade, simplesmente. j� no final do s�culo vinte era quase que imposs�vel viver-se longe da sociedade massificante. cinco vidas as fugas do formigueiro 197 atualmente, quando jo�o saia com seu pequeno autom�vel, j� havia congestionamento na rua em frente a sua ch�cara e, para chegar ao centro do bairro, onde ia com a carrocinha, �s vezes levava o dobro do tempo com o ve�culo motorizado. os limites da sua propriedade, antigamente totalmente desertos, hoje apresentavam conjuntos habitacionais enormes e o n�mero de pessoas que ele via, diariamente, era imenso principalmente na madrugada e no final do dia. eram verdadeiras prociss�es indo das in�meras casas e apartamentos at� o terminal rodo-ferrovi�rio e em sentido contr�rio. ele vivera ali, sozinho, por v�rios anos, feliz, com pouca gente; agora, cada vez mais, come�ava a lhe passar pela cabe�a, a velha pequim com seus milh�es de oper�rios padronizados, seguindo um modelo que lhes era mostrado e imposto pelo regime; todos iguais. as vestimentas lembravam, sem d�vida o regime chin�s, pois, embora n�o fosse uma ordem direta, como era na china, todos usavam cal�a de brim azul e camisetas de um �nico modelo. se aqui podiam comprar o que quisessem, por que ser� que s� compravam roupas t�o iguais? jo�o percebia que o regime capitalista fazia a mesma coisa, com seus cidad�os, que o regime comunista. s� que de uma maneira mais dif�cil e cara, al�m de sutil. enquanto na china vinha aquela roupa padronizada e pronto, aqui tinha que se criar uma sensa��o de
que a pessoa estava escolhendo o que iria usar; mas no fim o resultado era o mesmo: a uniformidade. jo�o sentiu saudades do tempo em que cosia suas pr�prias roupas ou ent�o escolhia, pacientemente, um tecido nas lojinhas do vilarejo e o velho alfaiate tirava, cuidadosamente, suas medidas e fazia uma roupa �especial� para ele. lembrava-se, tamb�m, do sapateiro que media seus p�s e fazia um sapato �sob medida�, de couro alem�o, que era o melhor. hoje n�o. h� somente jeans, camisetas e t�nis, todos iguais, mudando somente a marca. seria o in�cio da forma��o do formigueiro? na alimenta��o ocorria a mesma coisa: a massifica��o. ele lembrava-se do tempo que ia ao vilarejo, com algum dinheiro, e o dono do pequeno bar lhe preparava um sandu�che � moda da casa , com a carne bem passada e o molho feito pela pr�pria mulher do propriet�rio. e, as vezes o dono comia junto com ele. e, se n�o estivesse do agrado, ele tornava a passar o bife na chapa e punha um pouco mais de molho e trazia a jarra de limonada de dentro da pr�pria casa, que era no fundo do bar. hoje, quando jo�o resolvia comer um sandu�che, ia a uma destas lanchonetes padronizadas na constru��o, que vendem coisas padronizadas nos eeuu e que parecem que j� nascem prontas, n�o s�o cinco vidas as fugas do formigueiro 198 confeccionadas. basta pedir e elas pulam para a bandeja � nossa frente. tamb�m � padronizada a fila para pagar, para pegar os alimentos, para conseguir uma mesa e para devolver os restos. certa vez, jo�o lima encontrava-se numa fila destas f�bricas de servir comida em s�rie e, aos servirem-lhe o hamb�rguer pedido ele resolveu fazer um pequeno teste. abriu a caixinha de isopor, olhou para a carne no meio do p�o e disse: �eu quero mais bem passada. n�o est� do meu gosto�. a rea��o dos que estavam atr�s dele foi violenta: �bicha, caipira. fora. fora�. estavam todos t�o bem condicionados a viverem massificados que estranhavam atitudes fora do padr�o que outrora, com popula��es pequenas, haviam sido naturais e saud�veis. na china aquela comida vinha padronizada e fim de papo. aqui era a mesma hist�ria: achavam que estavam escolhendo, mas j� haviam escolhido para eles. seria o in�cio da forma��o do formigueiro? jo�o havia feito amizade com um dos oper�rios que moravam nos conjuntos habitacionais vizinhos � sua ch�cara e que ali vinham comprar verduras e ovos. a amizade nasceu pelo fato dele trabalhar numa f�brica de roupas, semelhante aquela em que jo�o trabalhara em pequim. ambos conversavam muito sobre a t�cnica e as dificuldades de fabrica��o que t�o bem conheciam. ultimamente a amizade entre ambos aumentara e o oper�rio j� nem precisava pagar as verduras e ovos que levava. certo dia ele disse:
�convenci o meu chefe a deix�-lo conhecer a f�brica. se voc� for � minha casa amanh�, as 5 horas, sairemos juntos e iremos at� l�. enquanto eu trabalho ele lhe mostrar� todas as m�quinas e depend�ncias�. jo�o aceitou correndo e, no dia seguinte, �s 5 horas em ponto, batia na porta da casa do amigo. n�o fora f�cil achar a casa, pois naqueles conjuntos todas s�o iguais e, �s vezes, o pr�prio propriet�rio se perde. nada mais lembrava as pequenas cidades em que cada habitante morava, a vida toda, na mesma casa e todos sabiam quem era quem e onde habitava e era comum dizer-se: �na casa ao lado da casa do fulano�; �na rua da casa do sicrano�, � o fulano de tal mora na casa de janelas azuis�, etc. atualmente os oper�rios mudavam freq�entemente de conjunto habitacional para conjunto habitacional e era tudo a mesma coisa: rua z, n� 1. o indiv�duo j� come�ava a se desindividualizar pela moradia. tomou caf�-da-manh� com o amigo e sa�ram. aquela hora saiam v�rios oper�rios, de modo que, ap�s alguns passos j� estavam dissolvidos no meio da massa prolet�ria que cinco vidas as fugas do formigueiro 199 caminhava em dire��o � esta��o de trem de sub�rbio. no vag�o viajavam, literalmente, como sardinhas em lata. se algu�m levantasse o bra�o para segurar-se, n�o mais conseguiria abaixa-lo, por falta total de espa�o. da esta��o em que desciam at� a f�brica caminhavam dentro de outra massa compacta. n�o se podia parar. seguia-se o ritmo do formigueiro. na f�brica o amigo dirigiu-se rapidamente para o seu posto enquanto o chefe levava jo�o para uma sala de visitas onde ap�s v�rias explica��es te�ricas, sa�ram para ver a coisa na pr�tica. o ex-chin�s n�o podia demonstrar que conhecia muito bem aquilo, para n�o ter que revelar o seu passado. como ex-oper�rio ele sentiu algo esquisito por dentro, pois al�m de conhecer as m�quinas estava aprendendo a conhecer os homens que as operavam e o que acontecia com eles quando eram tratados como aut�matos. ao passar pela sec��o do seu amigo, sentiu uma tristeza profunda, pois viu que ele ficava ali, por 8 horas, fazendo o mesmo trabalho que era uma parte insignificante da produ��o total, em s�rie e que, por isso mesmo, o tornava, tamb�m, insignificante. ap�s v�rios anos de vida naqueles moldes o seu amigo s� poderia apresentar o que ele pr�prio apresentara: depress�o, perda do significado da vida, crises de auto-destrui��o, doen�as, etc. jo�o voltou correndo para casa e, naquele dia, chorou v�rias vezes. os meios de produ��o, no capitalismo ou no comunismo, anulam o indiv�duo como tal. a produ��o em s�rie transforma-o num aut�mato e s� quem sentiu na carne os efeitos disto, pode avaliar como � cruel. como poder�amos voltar aos tempos do alfaiate, da costureira, do pequeno
sapateiro em que o oper�rio tinha orgulho do que fazia, e fazia o produto todo, e sabia quem iria us�lo. com tantas pessoas para vestir e cal�ar n�o haveria solu��o. s� se a humanidade voltasse a ter o n�mero de habitantes que tinha no final do s�culo dezenove. ou isto ou aquela vida anulada e massacrada na aglomera��o das massas, como era o caso do seu amigo. jo�o lima possu�a uma pequena televis�o e assistia a alguns programas; n�o porque gostasse, mas porque via naquele tipo de comunica��o a maior for�a de organiza��o do formigueiro e queria analis�-la melhor. poucas pessoas, como ele, entenderam a profundidade da influ�ncia daquela telinha na super-organiza��o da comunidade de insetossociais em que estavam transformando os homens. as crian�as eram condicionadas desde a mais tenra idade, a agir de uma maneira totalmente padronizada. os sentimentos eram atenuados, pois ver uma morte na televis�o e ao natural n�o tem o mesmo impacto cinco vidas as fugas do formigueiro 200 emocional; a pessoa aprende a n�o ser afetada pelos in�meros est�mulos que aparecem na tela: assassinados, terremotos, inunda��es, guerras, cenas de viol�ncia e de sexo � exaust�o, etc. e torna-se, desde cedo, indiferente e pr�pria para ser massificada. al�m disso recebem influ�ncias quanto � maneira de se vestir, de comer, de amar, de trabalhar e tudo dentro do esp�rito da �poca atual que � o de total embotamento de sentimentos verdadeiramente humanos; � a era da robotiza��o dos homens. as vezes ele passava em frente a um col�gio enorme e observava os milhares de adolescentes e crian�as, uniformizados, perdidos naquele mar de estudantes que parecia aumentar ano a ano. como algu�m podia ter um projeto individual de vida? se alguns o tivessem pareceriam anormais e anarquistas, pois a norma era ser adaptado aquela condi��o social anormal. os jovens, como ele o fora, eram, no lar e na escola, intensamente condicionados para serem uniformes, iguais, desindividualizados, normais dentro da anormalidade. a vida humana em si perdia muito do seu valor, pois naquelas grandes comunidades, uma �nica e apagada exist�ncia tinha pouco significado. e isto acabava refletindo no aumento da viol�ncia e da crueldade. n�o � o pobre que se torna cruel pela pobreza. e, isto sim, o jovem criado em concentra��es demogr�ficas brutalmente antinaturais, como nas megal�poles, seja ele rico ou pobre. e esta viol�ncia se mostra de v�rias maneiras: agress�o aos mais velhos, homic�dios imotivados, auto-destrui��o atrav�s de t�xicos e mesmo do suic�dio, fanatismo, ego�smos, forma��o de bandos contra o resto da comunidade, falta de amor ao pr�ximo e mesmo incapacidade total de amar, etc. era
comum ele ouvir e ver not�cias de bandos de adolescentes, nas grandes cidades americanas, muitas vezes de fam�lias ricas, que se rebelavam contra a massifica��o e formavam suas pequenas tribos, como as dos homens primitivos e naturais, e lutavam contra todo o resto do formigueiro que n�o pertencia ao seu pequeno grupo. via, tamb�m, mesas-redondas televisionadas, nas quais autoridades, pol�ticos e �especialistas� discutiam as causas da viol�ncia �gratuita�, como chamavam; poucas vezes chegavam perto da verdadeira causa: o homem estava sendo transformado em inseto social, estava sendo massificado violentamente na superpopula��o e ele � um primata moderadamente greg�rio e n�o uma formiga. a viol�ncia n�o era gratuita; ela brotava nos indiv�duos submetidos a esse esquema odioso. e n�o se falava em parar de empilhar gente como galinhas nas caixas, quando v�o para o matadouro. ao inv�s, cada dia, cada m�s, cada ano, aumentava-se o cinco vidas as fugas do formigueiro 201 n�mero de habitantes e concentrava-se mais nas megal�poles. os pol�ticos preferiam atribuir a viol�ncia �s condi��es de pobreza pois assim acreditavam, e as vezes era verdade, que estavam ganhando os votos dos pobres. eles eram incapazes de captar todas as fases deste ciclo vicioso infernal. jo�o lima havia passado dois anos internado e fazendo psican�lise. havia aprendido muito com o seu analista. sabia que o seu �eu� era influenciado pelo seu pr�prio corpo, pela sua mente e pela sociedade em que ele vivia. quanto ao corpo, ele aprendera a fazer exerc�cios de relaxamento, que o mantinham muito bem. a sua parte mental fora esmiu�ada pelo m�dico e todos os seus conflitos e repress�es da inf�ncia foram trazidos � tona, de modo que sabia perfeitamente lidar com todos eles. a sociedade, entretanto, incomodavao, e muito. ele j� havia se submetido � ela, na china, e os resultados foram desastrosos. agora queria, lenta, mas inexoravelmente, envolv�-lo novamente. e n�o s� ele, pois notava-se, nitidamente, que todas as pequenas popula��es tornavam-se m�dias e, depois, grandes, massacrando seus indiv�duos, para poderem, elas pr�prias, subsistir sem anarquia. quando a sua esposa teve um �derrame� cerebral, grave, o seu contato, com a sociedade patol�gica, aumentou. ela passou mal logo ao acordar, l� pelas seis horas da manh�. jo�o colocou-a deitada no banco traseiro do seu carro e saiu em disparada para o pronto-socorro do bairro. mas, a disparada s� durou at� o port�o da ch�cara, pois logo estavam metidos
num enorme congestionamento, que era a norma, naqueles dias. n�o adiantava acender os far�is, buzinar e �fechar� os outros carros. isto s� servia para provocar a ira aguda de motoristas cronicamente irados. ap�s cerca de 1 hora, estacionou na porta da emerg�ncia. o movimento, era assustador. pessoas sangrando, v�timas de atropelamento, pessoas com crise de asma, de press�o alta, de dor abdominal e tor�cica, p�s-convulsivos, etc. sua esposa foi posta numa maca e levada para a sala de atendimento a pacientes muito graves; ele ficou aguardando no amplo sagu�o, sentado em uma pequena cadeira, juntamente com centenas de outros acompanhantes de pacientes. aqueles ambientes com muitas pessoas incomodavam-no muito e ele s� os freq�entava quando era estritamente necess�rio. logo apareceu uma enfermeira que o chamou e informou que sua esposa estava em estado muito grave, pois tivera um sangramento intracraniano intenso com depress�o da respira��o e dos batimentos card�acos. seria transferida, urgentemente, para a uti especializada, no centro de s�o paulo. ele poderia acompanh�-la, na ambul�ncia pr�pria para este tipo de remo��o. cinco vidas as fugas do formigueiro 202 ap�s algumas horas, ainda no per�odo da manh�, ela estava internada e ele avisado que poderia v�-la uma vez por dia, atrav�s do visor de vidro e ter not�cias sobre a evolu��o do quadro, tamb�m neste hor�rio. qualquer intercorr�ncia (provavelmente o �bito da paciente) seria comunicada pelo telefone. jo�o lima, ap�s v�rios anos, viu-se novamente s�, no meio da multid�o. ao sair do hospital foi tentar engolir algum lanche, naquelas lanchonetes padronizadas. depois andou pelas ruas apinhadas de gente, a esmo. viu v�rios menores sentados nas esquinas, esmolando; viu prostitutas rodando as bolsinhas; viu congestionamentos quilom�tricos de ve�culos; viu v�rias �trombadas�, principalmente em velhos e velhas; viu atropelamentos e muitas outras desgra�as, mas o que mais viu, mesmo, foi gente, gente, gente... onde o mundo iria parar? as pessoas que viu eram padronizadas no modo de comer, de andar de dirigir autom�veis, de se vestir, de serem neur�ticas e de serem marginais. e continuavam se multiplicando. depois disso o que viria? no final da tarde, no hor�rio estipulado para as visitas � Uti, voltou ao hospital. viu a esposa pelo visor e soube que ela estava muito mal. aquela unidade de terapia possu�a cerca de oitenta leitos e centenas de familiares aflitos se comprimiam nos corredores e salas ao redor; o elevador que dava acesso ao andar estava sempre superlotado e abafado e,
mesmo, o ambiente todo era assim. no retorno para a ch�cara, o mesmo: as ruas com milhares de pedestres, a esta��o do metr� com pessoas comprimidas uma contra as outras e pior ainda dentro dos vag�es. ele respirou aliviado, quando chegou ao isolamento relativo onde, ainda, conseguia viver. na madrugada, o telefonema esperado. n�o fora poss�vel salvar sua companheira. o m�dico disse que usaram todos os meios poss�veis que a tecnologia atual oferecia, mas o quadro era mesmo, muito grave. o vel�rio, juntamente com v�rios outros, foi muito simples: apenas o marido estava presente e, de vez em quando, algum curioso entrava. no mesmo dia foram enterradas cerca de trinta pessoas, uma ap�s a outra, padronizadamente, como se faz tudo, ultimamente. se o homem faz tudo em s�rie, por que os enterros tamb�m n�o podem ser feitos assim? a morte e o vel�rio da esposa serviu para mostrar, a jo�o, que o mundo capitalista era exatamente igual ao comunista. a superpopula��o, que era a causa verdadeira do tipo de vida atual, igualava-os. o capitalismo, � verdade, era mais cruel, pois havia grande desperd�cio de recursos para provar aos cidad�os que eles eram livres e podiam optar. estes cinco vidas as fugas do formigueiro 203 recursos, no comunismo, podiam ser usados para suprir os mais necessitados. no �mundo livre� alguns, mais ricos, podiam praticar um certo grau de individualismo, embora n�o o verdadeiro; mas, tamb�m, era quest�o de tempo para que isso terminasse. n�o se pode manter regalias e mordomias enquanto milhares e milhares de formigas-oper�rias vivem miseravelmente. se fossem poucas talvez fosse poss�vel, mas com o n�mero atual e com o aumento explosivo � intoler�vel; � s� aguardar para ver. e, mesmo aqueles ricos, praticam o que o seu m�dico chin�s muito bem lhe explicara, isto �, a �ilus�o de individualismo�. o verdadeiro s� � poss�vel em pequenas comunidades, onde cada um tem sua fun��o e � importante para o funcionamento e exist�ncia daquela comunidade. nestas comunidades, atualmente quase inexistentes, um jovem parece n�o ter, e n�o t�m, grandes op��es de vida que a t�cnica atual oferece, mas em compensa��o n�o s�o massificados e n�o s�o submetidos a um trabalho repetitivo da fabrica��o em s�rie e � pouco prov�vel que virem rob�s. nas megal�poles, o jovem rico, que mora numa mans�o e que ganha um autom�vel �ltimo tipo do pai, tem uma falsa impress�o de que � um indiv�duo; ele percebe isso quando sai com o carro e se v� num congestionamento enorme e pergunta se n�o seria melhor que o seu carro n�o existisse; n�o faria falta nenhuma e ningu�m notaria a aus�ncia. entretanto, numa pequena comunidade, um jovem pobre que � o �nico vendedor de verduras do
local, n�o pode ter quebrada ou parada a sua carro�a; todos sentir�o muito a sua falta e, provavelmente ajudar�o no conserto e o jovem se sentir� importante e necess�rio. � uma quest�o simples de muita ou pouca gente. podemos amar o pr�ximo, mas n�o � poss�vel amar dez ou cinco bilh�es de pessoas, ou um bilh�o ou, mesmo, um milh�o. sabendo tudo isso, jo�o continuou vivendo s�, o mais isoladamente poss�vel na sociedade. mas, a solid�o exagerada tamb�m � cruel e a tecnologia e o aburguesamento tem os seus encantos. com o tempo ele come�ou a achar que conseguiria viver, novamente, no meio do formigueiro, como os outros homens, sem apresentar problemas de doen�as f�sicas e mentais. agora ele entendia o mecanismo da sociedade atual e saberia defenderse. necessitava, principalmente, de contatos sexuais com mulheres, pois tinha inibi��es quanto � masturba��o e a prostitui��o, atualmente, era cara, totalmente despersonalizada e arriscada quanto ao risco de adquirir mol�stias ven�reas das quais ele ouvia falar e tinha muito medo. deste modo a solid�o estava perturbando-o, pois ainda possu�a muita energia vital e sexual e, n�o descarregando-as, sentia-se mal. resolveu, ent�o, manter um pequeno cinco vidas as fugas do formigueiro 204 apartamento no centro de s�o paulo, onde passaria, de vez em quando, alguns dias. assim, devagar e discretamente poderia freq�entar cinemas, teatros e boates, al�m de ter amigos e amigas. a burguesia tem, de fato, seus encantos. ap�s poucos anos, jo�o lima aburguesarase. sua ch�cara, onde s� havia verduras e uma pequena produ��o de ovos, transformarase numa grande granja, com cria��o e abate de frangos que eram facilmente vendidos a bom pre�o; eram tantas bocas para se alimentar que qualquer produ��o de alimento era bemvinda. o pequeno apartamento fora trocado por um grande onde ele morava permanentemente. a granja possu�a v�rios empregados e um gerente, como uma verdadeira empresa capitalista. os lucros permitiam uma vida totalmente entrosada na frivolidade da classe m�dia e rica, brasileiras. ap�s passar pelo formigueiro chin�s, pelo isolamento individual, pelo isolamento com a mulher, agora estava ele, novamente, voltando a sociedade dos insetos-sociais. entretanto ele achava que n�o mais seria envolvido. lembrava-se da li��o, no hospital chin�s: �se fores consciente, das causas dos teus problemas, j� ter�s solucionado os mesmos�. ele julgava j� conhecer estas causas e os seus mecanismos de a��o, de modo que estava invulner�vel.
ent�o, pouco a pouco, foi aceitando, novamente, as regras do jogo. tornou-se um executivo, burgu�s, classe m�dia e come�ou a ver-se como tal. ele havia sido ensinado, na juventude, a ver-se como um oper�rio padr�o e era f�cil voltar a identificar-se com uma outra imagem. como o mitol�gico narciso, paulatinamente, passou a ser capaz de amar somente a sua imagem e incapaz de amar-se a si mesmo. adorava seus lindos ternos, seu autom�vel do ano, seu apartamento, suas viagens, suas noitadas em boates e sua vida transformou-se numa busca compulsiva do pseudo-prazer a que se dedica a sociedade ocidental; ao mesmo tempo ia perdendo o contato consigo mesmo, com a alegria dos pequenos prazeres, com o seu pr�prio corpo. a sociedade, como um todo, impelia-o para isso. o consumismo exagerado era continuamente estimulado em todos os meios de comunica��o. a neofilia, isto �, o amor pela coisa nova, pelo simples fato de ser nova, era a moda. j� n�o se podia usar uma cal�a, um sapato ou um carro se fossem velhos, mesmo que estivessem bons; comprava-se um novo, pelo simples prazer de comprar, embora se soubesse que esta cinco vidas as fugas do formigueiro 205 vontade fora subtilmente plantada na mente das pessoas. produzia-se em s�rie e era imperioso vender em s�rie; a roda-viva n�o podia parar de girar. jo�o parecia estar gostando daquilo. j� conseguia ir a praias super lotadas, a est�dios de futebol com gente saindo pelo �ladr�o�, a cinemas e shopping-centers com milhares de pessoas disputando, palmo a palmo, os lugares, os corredores e as vagas nos estacionamentos, a restaurantes e lanchonetes onde se espremiam as pessoas em salas de espera e filas, a bancos e a servi�os p�blicos com seus guich�s entupidos de gente, etc. etc. aquela dilui��o na multid�o, embora mascarada pela ilus�o de que ele era um indiv�duo, foi, vagarosamente, voltando a agir sobre o chin�s. ele foi apresentando, lentamente, aquele comportamento desej�vel dentro de uma concentra��o exagerada de pessoas a que era levado, quase imperceptivelmente, pela sociedade moderna massificadora. j� vivera daquele modo como oper�rio amado do comunismo e voltava a viver como executivo adorado do capitalismo. em ambos os casos amava uma imagem produzida pela sociedade e tornava-se incapaz de amar-se a si mesmo e aos outros que o cercavam. o narcisismo � a grande arma usada para que o homem viva t�o anti-naturalmente como atualmente. e como se criasse uma grande casca em torno do indiv�duo; este passa a adorar esta casa e, muitas vezes, quando ela se quebra, n�o h� nada dentro. uma imagem n�o � uma realidade; pode desaparecer como que por encanto. e, ent�o, o que restar�? um homem mentalmente doente, neur�tico, sem objetivos e com o seu organismo pagando pelas brincadeiras que se
fizeram com o mecanismo mente-corpo. e, mesmo que a imagem n�o desapare�a e o indiv�duo continue amando-a, como narciso amava seu reflexo na �gua, este estado de coisas, mais cedo ou mais tarde, repercutir� na estrutura corporal animal, que n�o foi feita para viver assim. s�o as doen�as da �civiliza��o e dos grandes aglomerados: �lceras, hipertens�o, infartos, colites, impot�ncia sexual, neuroses, depress�es, etc. em jo�o lima, o mais cedo ou mais tarde, aconteceu mais cedo. logo ele passou a apresentar os mesmos sintomas da mocidade. a sua capacidade de amar uma mulher logo desapareceu; com sua esposa ele entregava-se totalmente e era capaz de, verdadeiramente, tirar benef�cios do sexo com amor e com uma descarga org�stica relaxante e ben�fica para o corpo e a mente; agora continuava potente, mas apenas sexualmente e usava as mulheres mais por compuls�o que por necessidade afetiva. os contatos voltaram a ser frios como os da juventude. quando tentou relacionar-se mais intensamente com uma �nica mulher, cinco vidas as fugas do formigueiro 206 aquele velho fantasma voltou a atorment�-lo: n�o conseguia a ere��o. com o tempo tornouse, novamente, totalmente impotente. com a perda das descargas org�sticas, aquela energia acumulada come�ou a estimular as velhas chagas e as crises de depress�o voltaram a esbo�ar-se. a vida, �s vezes, parecia totalmente sem sentido. a inapet�ncia f�sica e a incapacidade para sentir prazer estavam come�ando a reaparecer. sentiu enorme necessidade de falar com um psiquiatra t�o bom quanto o chin�s; entretanto o risco de ter que revelar suas verdadeiras origens impediram-no disso. estava s� consigo mesmo, embora no meio de uma multid�o. � o pior tipo de solid�o que existe. ele estava disposto a tudo para n�o mais ser levado, por aquelas for�as terr�veis, a tentar o suic�dio. o que faria sem a ajuda de ningu�m? sabia controlar o corpo e a mente, mas a sociedade atual n�o lhe permitia viver uma vida verdadeiramente digna e com amor, exigindo que gostasse de coisas sup�rfluas, tolas e que competisse por elas, mesmo pagando com a pr�pria sa�de. neste clima de desespero, jo�o lima passou v�rios dias trancado no seu apartamento, sem atender ningu�m. avisara seu gerente que estaria em casa, em repouso e n�o queria ser incomodado, a n�o ser por assunto de suma import�ncia. pensou em mudar-se para um lugar com pouca gente, outra vez. quem sabe a amaz�nia; mas logo as pessoas chegariam, chegaria a televis�o, os v�rios meios de transporte, as necessidades fict�cias de consumo, a luta por bobagens, a massifica��o, o pseudo-individualismo. era melhor tentar resolver por aqui mesmo. outra op��o seria nova tentativa de suic�dio e, desta vez, mais aperfei�oada, para n�o haver erros. restava uma op��o intermedi�ria que, talvez, n�o fosse
diferente desde �ltima: ele poderia drogar-se e ir suportando, temporariamente as crises de depress�o. mas, as drogas e, entre elas o �lcool, s�o maneiras de se suicidar cronicamente e ele preferia, se fosse o caso, o suic�dio agudo. tornar-se cirr�tico e morrer vomitando sangue, tornar-se d�bil mental, ser viciado e depois traficante e, mesmo ladr�o, para conseguir dinheiro para comprar t�xicos e outras mazelas mais, n�o eram do seu feitio. ou encontrava uma solu��o ou suicidava-se j� e n�o a longo prazo. viver em depress�o era intoler�vel. jo�o lima dirigiu-se ao balc�o de an�ncios do maior jornal da cidade e gastou uma pequena fortuna. anunciou, ao mesmo tempo, a inten��o de vender dois apartamentos na capital, dois no litoral, v�rios terrenos por todo o estado, dois autom�veis, v�rios lotes de m�veis, eletrodom�sticos, televisores e videocassetes, linhas telef�nicas e in�meras outras coisas de valor, por pre�os irrecus�veis. ao mesmo tempo cancelou todos os seus cart�es cinco vidas as fugas do formigueiro 207 de cr�dito, liquidou todas as suas presta��es, fechou todas suas contas banc�rias e pediu para um despachante muito eficiente, para encerrar, o mais rapidamente poss�vel, a sua empresa, dispensando os funcion�rios (podia pagar o que fosse necess�rio de indeniza��o trabalhista) e vendendo tudo que pudesse ser vendido, pertencente � firma. pagou adiantado a todos os fornecedores, cancelou pedidos futuros de frangos e ovos e desativou totalmente a granja, enquanto aguardava o encerramento jur�dico. dirigiu-se � Administra��o regional, da prefeitura do munic�pio, � qual estava subordinado o seu terreno e resolveu uma pend�ncia que havia. acontece que o poder p�blico municipal queria desapropriar o seu im�vel; um alqueire, que quando jo�o comprou n�o valia nada, atualmente era um verdadeiro tesouro, pois o crescimento incontrol�vel da cidade tornou-o quase central em rela��o ao bairro em que estava. a prefeitura estava de olho no local para a constru��o de casas populares como as que j� o cercavam por todos os lados. entretanto o er�rio p�blico andava muito pobre e o pre�o de mercado era alt�ssimo. deste modo o administrador regional ficou estupefato quando jo�o disse-lhe que resolvera doar o terreno � cidade, impondo apenas uma �nica condi��o: ele poderia us�-lo, como quisesse (� l�gico, dentro da lei), at� a sua morte. o administrador logo pediu audi�ncia ao prefeito e explicou-lhe que o dono j� era idoso e, embora fisicamente fosse bem dotado, n�o parecia que ia durar muito. e, al�m disso, mesmo que durasse, a �rea ficaria preservada para um futuro pr�ximo onde as condi��es de necessidade de moradias seriam bem mais dram�ticas e a utiliza��o do terreno seria sentida
como muito mais ben�fica, pela popula��o; isto ocorreria na sua pr�pria gest�o ou, o mais tardar na do sucessor que seria algu�m ligado a ele. o prefeito assinou um decreto e oficialmente ficou tudo acertado. os vereadores foram atr�s do poder executivo, como sempre. no dia seguinte, jo�o lima chegou, novamente, ao local onde anos atr�s aportara, vindo direto da china. atualmente, encontrava-se, segundo seu pr�prio julgamento, em piores condi��es ps�quicas. embora ele j� se achasse melhor ap�s ter vendido tudo, ainda apresentava crises de depress�o, dores no peito, azia, desinteresse pela atividade sexual, crises de diarr�ia, press�o arterial aumentada, cefal�ias freq�entes, falta de disposi��o para o trabalho e �saco cheio� de tudo que o cercava. a �sociedade formigal�, como ele dizia, sufocava-o. mudou-se para uma pequena casa que havia no interior da granja, com apenas um quarto e cinco vidas as fugas do formigueiro 208 um banheiro, dotado de fossa sanit�ria. logo em seguida chegaram os engenheiros e oper�rios de uma empreiteira que jo�o contratara para realizar, com urg�ncia m�xima, as obras que ele imaginara. foram cavados dois po�os artesianos, que deram �gua boa e abundante; o terreno foi todo terraplanado, ficando com v�rios plat�s e dois locais para a forma��o de futuros pequenos lagos. n�o sobrou pedra sobre pedra; do que fora uma granja e abatedouro modelos s� ficou a pequena casinha que se localizava no centro do terreno, al�m das grandes �rvores que foram poupadas. entretanto a obra principal demorou mais para ser conclu�da pois era, de fato, uma obra imensa. jo�o lima gastara toda a sua fortuna para pag�-la � empreiteira. ele havia raciocinado da seguinte maneira: �se a china conseguiu construir uma muralha gigantesca para isolar-se dos inimigos que poderiam invadi-la, por que yuan li-ma n�o poderia construir uma pequena muralha que n�o permitisse que os inimigos, que existem na sociedade atual, o invadam?� era uma quest�o de sobreviv�ncia como na��o ou de sobreviv�ncia como indiv�duo, simplesmente. o seu terreno era praticamente quadrado, com cerca de cento e cinq�enta e cinco metros de cada lado, de modo que a muralha, linearmente seria de seiscentos e vinte metros de comprimento. jo�o lima fez quest�o que a mesma fosse bem alta (cerca de 5 metros) e bem larga (cerca de 1 metro), de modo que se pudesse andar facilmente sobre a mesma. n�o poderia haver nenhuma interrup��o na mesma, nem mesmo um �nico port�o ou janela; quem quisesse entrar ou sair teria que pul�-la. os construtores acharam esquisito, mas estas construtoras, pagando bem, constr�em at� uma estrada para o inferno e n�o querem
saber quem se dana com isso. e, no caso estavam sendo regiamente recompensados. os �ltimos oper�rios e m�quinas sa�ram por uma pequena abertura que foi fechada pelo lado de fora, ficando, do lado de dentro, apenas aquele cliente estranho, com cara de japon�s, que ningu�m sabia como iria sair dali, pois nem uma escada havia. de fato, apenas ficaram com ele, algumas provis�es para cerca de um m�s, algumas roupas, sementes e mudas de �rvores frut�feras, algumas galinhas e alguns peixes nos lagos que come�avam a encher. n�o havia telefone, televis�o, r�dio, a energia el�trica fora desligada, assim como a �gua da municipalidade. jo�o lima, pela segunda vez na vida, viu-se s�. Ele havia, novamente, vivido no meio do formigueiro, com tudo programado, at� as doen�as que levavam as �formigas� � morte. sentiu, pela segunda vez na vida, o reencontro consigo mesmo, e gostou, novamente, do cinco vidas as fugas do formigueiro 209 que sentiu. n�o tinha nenhum tost�o, n�o tinha nenhuma seguran�a quanto � alimenta��o, � sa�de, ao lazer; mas, como da outra vez, n�o se importava. tamb�m n�o tinha todo o peso da sociedade capitalista a massacr�-lo, a obrig�-lo a trabalhar e a competir desumanamente, para poder consumir o que eles queriam e que aparecia na telinha de televis�o e a sustentar e amar uma imagem totalmente distante da de um ser humano verdadeiro, que � a imagem do homem que vive nas grandes metr�poles (capitalistas e comunistas) de hoje e nas pequenas cidades, que logo se transformar�o em formigueiros com o crescimento explosivo da humanidade. a sua energia vital come�ou a reaparecer. as crises de depress�o foram se espa�ando. o apetite sexual deu sinais de que voltaria (desta vez ele venceria a inibi��o masturbat�ria, na falta de coisa melhor).ao fim de um m�s ele j� possu�a v�rios canteiros de verduras e cereais, principalmente arroz e as galinhas e os pintainhos iam muito bem. algumas �rvores frut�feras estavam se desenvolvendo e podia-se notar que elas foram escolhidas a dedo para fornecer frutas o ano todo, intercaladamente; nos lagos j� notavam-se peixes nadando. jo�o viveu, como da primeira vez, s� que agora mais isolado, pois n�o possu�a mais o pequeno vilarejo para visitar. sentiu muita falta da eletricidade, do sal, do a��car, do fogo, das not�cias, das pessoas inclusive. entretanto sua sa�de ps�quica melhorava t�o rapidamente que ele n�o se importava com o resto. n�o mais cairia no erro de se julgar capaz de viver com as massas sem se massificar; � imposs�vel; o processo envolve-nos sem percebermos e
s� notamos pelos sinais indiretos, pelos efeitos, que s�o as doen�as mentais e f�sicas que assolam a humanidade atual. agora, o contato com o formigueiro era m�nimo. as vezes ele subia na muralha por uma corda, com v�rios n�s, que ele mesmo fabricara e conseguiria prender no topo do grande muro. como a largura era suficiente, ele contornava todo o per�metro do terreno e observava as coisas l� fora, mas s� por curiosidade; agora era um mundo estranho do qual ele fugira e para o qual n�o mais voltaria. via os grandes congestionamentos de ve�culos, via os bandos de crian�as maltrapilhas, pedindo as coisas nas janelas dos carros, os bandos de jovens que se reuniam nas noites e madrugadas, encostados na parte externa da muralha, para fumarem maconha e cheirarem coca�na. jo�o deslizava sorrateiramente quase que deitado e ia observando do que se livrara. algumas vezes sua propriedade fora invadida, principalmente por moleques interessados em dinheiro e eletrodom�sticos; mas a pobreza cinco vidas as fugas do formigueiro 210 que encontravam e a dificuldade para entrar e sair, desestimulavam totalmente estas empreitadas. logo os marginais da redondeza sabiam que nada havia para roubar. era s� �o japon�s louco� que l� morava, com suas quinquilharias. certa vez, tamb�m a pol�cia saltou o muro, pois suspeitaram que podia haver assaltantes usando o lado de dentro como esconderijo. entretanto o aspecto t�o pobre e vazio do interior, com apenas aquela sombra perambulando, mostrou-lhes que ali ningu�m se esconderia, pois um simples guarda sobre a muralha vislumbraria todo o terreno; um ladr�o que pulasse para dentro estaria se autoencarcerando, como numa penitenci�ria. ali�s o aspecto atual da antiga granja era justamente este. deste modo n�o entravam os marginais, n�o entravam os policiais e, tamb�m, n�o entravam os cidad�os comuns, pois estes n�o �pulam muro�, pelo menos neste sentido. jo�o havia conseguido isolar-se. passaram-se anos e sua vida era uma deliciosa rotina. n�o mais apresentou dores de cabe�a, a queima��o epig�strica desapareceu, as depress�es sumiram, o apetite era �timo, tanto alimentar como sexual (tinha sonhos er�ticos e masturbava-se com descarga plena da energia sexual). a alimenta��o, no in�cio, era dif�cil, mas, com o tempo, acostumou-se com peixe cru, tratado � japonesa, pois a feitura de fogo era muito dif�cil; as frutas e verduras e legumes iam bem e supriam-no satisfatoriamente. � verdade que emagrecera v�rios quilos, mas isto era bom, pois quando era executivo estava v�rios acima do normal, cheio de gorduras desnecess�rias; agora tinha, apenas m�sculos e
um pequeno pan�culo adiposo. m uitas vezes o pessoal dos conjuntos habitacionais ao redor, jogavam lixo para dentro da muralha. no in�cio jo�o irritou-se muito com isso, mas depois percebeu que, devido � grande altura, s� conseguiam jogar coisas pequenas e passariam anos at� que aquilo come�asse a incomodar. al�m do mais usava o lixo como adubo e podia, certas vezes, ler algumas not�cias em peda�os de jornal que vinham junto; n�o havia nada de novo: guerras, mis�ria, fome, viol�ncia urbana, estupros, menores abandonados, doen�as, suic�dios, drogas, acidentes de transito e o crescimento e aglomera��o das pessoas, agravando tudo. era de fato, atualmente, um mundo totalmente estranho para ele. seu habitat era um privil�gio, t�o tranq�ilo e t�o simples. ele se surpreendia, �s vezes, nadando com os peixes no lago e, as vezes, cantando para os mesmos sentado na margem; achava melhor parar com aquilo, pois sen�o n�o teria mais coragem de pesc�-los e com�-los. tamb�m as frutas cinco vidas as fugas do formigueiro 211 ele via brotar e crescer; lustrava uma a uma e conversava com elas. conseguiu que v�rias pombinhas viessem brincar pr�ximo a sua casinha jogando cereais no local; algumas vezes n�o resistia e ca�ava uma delas, pois neste tempo j� n�o tinha mais galinhas, que morreram por uma praga. era quando ele tinha que fazer fogo para comer ave assada que era um prato digno dos deuses, na sua modesta alimenta��o. ele dormia, praticamente no ch�o sobre apenas alguns trapos e folhas, como colch�o. no in�cio possu�a roupas, mas ap�s v�rios anos precisou tecer abrigos para o corpo, principalmente no inverno, a partir de fibras vegetais as mais variadas que ele, habilmente, e com todo o tempo do mundo, tecia. os contatos com o mundo l� fora, t�o estranho e, ao mesmo tempo t�o previs�vel, foram diminuindo. nada de novo acontecia, al�m do que ele j� sabia. n�o valia a pena observar uma sociedade t�o previs�vel quanto aos seus tr�gicos destinos. os anos foram passando e a velhice chegando. ele n�o possu�a calend�rio, mas achava que estava no primeiro quarto do s�culo xxi. sabia apenas quando era domingo, pois notava diminui��o no ru�do basal que sempre existe nas grandes cidades, devido ao transito intenso. e, tamb�m, ouvia sinos, ao longe, mais freq�entemente, nestes dias. as pessoas ainda possu�am uma religi�o onde se agarrar, naquele mundo selvagem, l� fora. ele, �s vezes, ao ouvir os sinos dobrarem, ajoelhava-se como um verdadeiro ermit�o, com a barba
e os cabelos longos e rareando, soltos ao vento e rezava. benditos eram os peixes, a �gua, as frutas, o sol, a chuva, a sombra das �rvores, a vida. bendita tinha sido a sua id�ia de fugir do formigueiro que ele sabia, instintivamente e mesmo racionalmente, o levaria � loucura e � morte precoce, como quase acontecera. nos outros dias da semana sua reza era o trabalho, o que n�o era f�cil, para conseguir comer. ainda conseguia colher arroz e replantar �rvores frut�feras. os peixes, embora v�rias vezes chegassem a rarear e quase sumir, voltavam a proliferar e ele sabia exatamente quando e quantos pescar para n�o acabar com a cria��o. certo dia pulou, para dentro, um funcion�rio da prefeitura. o prefeito atual queria saber se o �japon�s louco� ainda iria viver muito. aquele terreno, se usado para novas moradias, facilmente promoveria a reelei��o de qualquer pol�tico. jo�o lima mostrou ao homem o �nico documento que possu�a que era o decreto, muito bem elaborado, que n�o deixava d�vidas quanto ao seu direito de ali permanecer enquanto vivesse. achou uma enorme dificuldade em conversar com algu�m do mundo exterior e aquele neg�cio de burocracia j� cinco vidas as fugas do formigueiro 212 era t�o long�nquo para ele que, no dia seguinte pareceu que tinha sonhado. o enviado do prefeito fez um relat�rio da visita enfatizando os riscos que correra ao ter que saltar um muro t�o alto e ir conversar com um louco, que ningu�m sabia como reagiria. concluiu que o homem estava muito magro, velho e com falta-de-ar, de maneira que aconselhava n�o importun�-lo pois morreria em breve; havia, tamb�m, a possibilidade do prefeito consider�lo insano e obrig�-lo a sair de l� e intern�-lo, compulsoriamente, num hospital de velhos loucos. ap�s este relat�rio, cerca de uns quinze dias, a muralha era novamente pulada por um m�dico que, a duras penas, a prefeitura conseguira fazer aceitar a tarefa de entrevistar, examinar e relatar as condi��es psico-f�sicas do ermit�o. o relat�rio elaborado era muito bem feito e n�o deixava d�vidas: o habitante da ch�cara murada era perfeitamente s�o, mentalmente falando. vivia aquela vida por op��o pr�pria e, nada, dentro da lei, poderia obrig�-lo a mudar de l�. afinal ainda restavam alguns direitos individuais e esta da pessoa recusar tratamento m�dico ainda era respeitado. com a superpopula��o cada vez mais super, os pol�ticos conservavam este direito, pois atualmente a medicina prolongava demais
a vida das pessoas. num regime ditatorial o prefeito teria mandado tanques derrubarem a muralha mas aqui est�vamos numa democracia, de modo que apenas ordenou que o caminh�o do corpo de bombeiros passasse por l� a cada dez dias e levantasse um homem numa longa escada e que o mesmo observasse o interior at� ver o louco se movimentando, para ter certeza que ele estava vivo. se n�o o visse tinha ordem de invadir e procur�-lo. mas isto nunca aconteceu. jo�o era facilmente visto, como se fizesse parte do terreno, carpindo, nadando, pescando, limpando, dormindo � sombra de uma �rvore ou deslizando como uma sombra por todos os cantos do local. certa vez o bombeiro viu-o deitado bem no meio da ch�cara, pr�ximo ao casebre, sobre a terra, im�vel, em plena luz solar. ser� que morrera? ou estava apenas dormindo? voltaram horas mais tarde com uma luneta e ele se encontrava no mesmo local. conseguiram ver seus movimentos respirat�rios e mesmo um movimento do bra�o direito, espantando uma mosca. ent�o ele estava vivo e eles podiam ir embora. cada louco com sua mania e aquele era louco mesmo, embora manso. o motivo que fizera jo�o lima deitar-se daquela maneira, em pleno dia era faltade-ar que vinha sentindo, al�m de �batedeiras� no cora��o, que o deixavam tonto e nem mesmo conseguia parar em p�. nesta altura j� dev�amos estar pelos meados do s�culo xxi, cinco vidas as fugas do formigueiro 213 pensava ele e, ent�o, sua idade seria em torno dos cem anos. apesar da vida saud�vel que ele levava, naquele terreno, antes e depois de se reintegrar, temporariamente, na loucura externa, j� n�o era mais mo�o e, mesmo, achava que estava para morrer, em breve. se morresse, queria que fosse naquele lugar: o centro geom�trico da ch�cara, que ele, meticulosamente calculara com galhos de �rvore, que serviam como metro e que era o ponto que ficava mais longe poss�vel da muralha e da sociedade para l� dela. era um simbolismo que ele jurara respeitar. na primeira vez que o bombeiro o vira ele tinha uma destas crises e, toda a vez que as tinha, deitava-se ali e ficava horas e horas at� que o cora��o voltasse a pulsar na freq��ncia normal. se morresse j� estaria no lugar desejado. a crise, naquela vez, fora, de fato, muito forte e ele teve quase a certeza absoluta de que morreria, tal a sensa��o que a arritmia card�aca causava-lhe. em determinado momento a circula��o cerebral deve ter diminu�do muito e ele come�ou a delirar. ouvia apitos fortes e longos, tipo de navio, que o psiquiatra chin�s havia ensinado a interpretar com os que ouvira quando ainda estava no �tero da sua m�e e ela
voltava ao porto de tien tsin para passear e esquecer um pouco do ambiente deprimente da casa da cafetina. de fato ele havia sonhado v�rias vezes com aqueles sons e sentia-se muito bem ao ouvi-los. parecia que ele estava num meio gasoso, flutuando, sem peso, com uma temperatura sempre agrad�vel e sem necessidade de comer e de respirar, para viver. mas o seu del�rio continuou e ele sentiu-se arrancado daquele para�so por um vendaval que o jogava, abruptamente, para todos os lados, por passagens estreitas que o espremiam e traumatizavam. depois chegava aquela c�mara super-iluminada onde era obrigado a respirar com for�a pois o pouco ar parecia que n�o entrava nos pulm�es; seria a incubadora, sugerira o psiquiatra. depois lembrava-se da inf�ncia nas creches, do amor artificial e formal dos funcion�rios, da revolta por n�o ser amado de verdade que se convertia numa incapacidade de amar; n�o fora amado de verdade e, em compensa��o n�o amaria a ningu�m, de verdade, tamb�m. voltava-lhe, em v�rios sonhos, e naqueles del�rios, aquela imagem da fila enorme de chinesinhos todos igualzinhos, andando pelas ruas de pequim, a de tr�s segurando a cintura da cal�a do da frente. todos os transeuntes admiravam o conjunto, mas, uma a uma, elas n�o tinham nenhum valor; podia-se tirar qualquer delas, sem fazer falta. fora sua primeira experi�ncia consciente em ser cinco vidas as fugas do formigueiro 214 massificado e, talvez, tenha influ�do, pelo restante da sua vida, no fato dele n�o querer se anular como verdadeiro indiv�duo para que o conjunto ficasse bonito e harmonioso. em seguida repassava a juventude, sempre padronizada, e as afirma��es dos dirigentes de que aquela era a vida ideal, de acordo com os princ�pios marxistas, que levariam o oper�rio a ser saud�vel f�sica e mentalmente. ser� que marx n�o fora capaz de prever que a massifica��o � prejudicial em qualquer sistema econ�mico? os seus sintomas precoces mostravam nitidamente aquilo: os fatores som�ticos e ps�quicos, por si s� geradores de problemas quando associados ao fato de se ter que viver numa sociedade despersonalizante desencadeiam, sem d�vida, s�rios transtornos. lembrava os horrores que passara ao achar que ia ficar impotente sexualmente, em plena juventude, e para sempre. sentia o sangue jorrar pelas art�rias radiais ap�s os cortes profundos nos pulsos, junto com a namorada, que tivera a sorte de ser bem sucedida. lembrava-se dos dois anos que passara internado no hospital psiqui�trico onde encontrara os verdadeiros pai e m�e que nunca tivera; lembrava, tamb�m, como aquele homem e m�dico, mais homem que m�dico, havia ensinado-o a entender o que acontecia e quais as causas que provocavam aqueles sintomas; como ele
ficara agradecido por ter sido inclu�do no plano que permitiria tentar uma nova sociedade, longe daquela, onde, pelo menos temporariamente, conseguiria viver e se tratar, at� que a massifica��o o alcan�asse novamente. recordava os tempos felizes que viveu no meio do mato e no pequeno vilarejo, naquele brasil t�o agrad�vel. a sua esposa vinha-lhe � mente: a primeira pessoa que conseguira amar verdadeiramente na vida e que lhe proporcionara, por isso, tanto bem estar e prazer. lembrava-se, com pesar, da loucura que fizera em achar que estava apto para voltar a viver, novamente, no �mago da sociedade massificada e na id�ia genial que tivera ao sair de l�, correndo, para dentro da muralha onde conseguira se recuperar, outra vez de que todos aqueles sintomas da �civiliza��o�. achava que j� podia morrer feliz. n�o mais precocemente como quase acontecera ao nascer e ao tentar suicidar-se. mas, a arritmia cessou, o del�rio cessou e a vida retornou. ap�s v�rias horas ali deitado ele levantou-se e retomou suas atividades. aquele sonhodel�rio havia feito bem ao seu animo. ele repassara toda sua vida e achar que agiu certo. apenas sentia-se triste pelos outros jovens que n�o podiam, como ele, fugir ao massacre ps�quico a que era submetidos a n�o ser entregando-se a drogas, ao fanatismo, a viol�ncia, ao suic�dio, a auto-anula��o para ag�entar viver no �formigueiro�. cinco vidas as fugas do formigueiro 215 ap�s dez dias, o mesmo bombeiro subiu na escada �magirus� para observar o �japon�s louco�. desta vez j� trazia a luneta consigo. l� estava ele, na mesma posi��o, naquele sol infernal, bem no centro do terreno, parecendo morto. usando a luneta, n�o conseguiu ver movimentos respirat�rios e nem outros quaisquer. falou pelo r�dio com o quartel central e comunicou o fato a um superior que, sem mais, ordenou a invas�o. a escada posicionou-se por cima da muralha e o bombeiro desceu, por uma corda, para o interior do terreno. bastou tocar o ch�o para sair em disparada em dire��o ao recluso. ajoelhou-se ao lado do mesmo e, com os conhecimentos que havia adquirido no curso de primeiros socorros, logo percebeu que o velho japon�s louco estava muito mal, respirando muito superficialmente, com o cora��o batendo muito lentamente, mas n�o estava morto, ainda. pegou-o do ch�o e colocou-o sobre os ombros, voltando em disparada para a corda, sendo i�ado rapidamente. com as sirenes ligadas e, naquele hor�rio do dia, n�o foi dif�cil alcan�ar o servi�o de emerg�ncia. m ais uma vez toda a tecnologia seria usada para salvar a vida daquele indiv�duo, embora ele assim n�o o desejasse. naqueles anos o cora��o artificial j� era um
sucesso; estava sendo usado o modelo jarvic 2000, com �timos resultados, mesmo em velhos. e aquele velho possu�a �art�rias perfeitas�, como havia dito o cirurgi�o-chefe da equipe que lhe tirara o cora��o arr�tmico e colocara o modelo artificial, novinho. era muito raro encontrar algu�m com aquela idade e com aquela idade e com os vasos sang��neos t�o perme�veis. parecia que aquele indiv�duo n�o havia sofrido todo o �stress� da sociedade contempor�nea que entope todo o nosso encanamento e engrossa o l�quido que corre por ele. se o cirurgi�o tivesse conhecido melhor o tipo de vida que aquele anci�o levara, n�o teria se surpreendido tanto. o velho havia conseguido fugir do formigueiro, mortal para o homem, durante um bom tempo da sua vida. mas, agora, tinha sido resgatado da sua solid�o e preparavam-no para a reentrada naquele tipo de sociedade. ap�s a alta hospitalar ele foi encaminhado para o interior do estado, para um asilo de idosos, rec�m-inaugurado, do qual foi um dos primeiros h�spedes. jo�o lima conhecia muito bem as regras do formigueiro e uma delas era: �deixe um peda�o de doce exposto e logo aparecem milhares de formigas, n�o se sabe de onde�. e foi o que aconteceu: o asilo logo estava lotado de velhinhos e, logo mais, superlotado. substitu�ram as camas por beliches, as refei��es individuais por imensos refeit�rios, os cinco vidas as fugas do formigueiro 216 banheiros privados por enormes lugares de banhos conjuntos, as aten��es dispensadas a cada um por procedimentos padronizados para velhos-massa, etc. tudo era assim, ele j� sabia. bastava inaugurarem um hospital e logo estava lotado; uma pra�a e logo estava apinhada de gente; uma rua ou estrada e logo estava congestionada; um servi�o p�blico qualquer e logo havia filas na porta; um conjunto habitacional e logo era necess�rio outro e mais outro. a multid�o crescia e sufocava a tudo e a todos. os que tinham problemas para se adaptar, e era a maioria, apresentavam sintomas graves de adapta��o; poder�amos, mesmo, dizer que a sociedade, como um todo, era doente e incapaz de fornecer um ambiente saud�vel, em termos humanos, para seus componentes. os pensamentos que o levavam a depress�o come�aram a voltar; via que os meios de comunica��o, os divertimentos, os meios de produ��o, a busca desenfreada de poder e sucesso criavam e mantinham o homem sem uma identidade pr�pria, o homem-massa. e, isso, o levava ao desespero e a procedimentos obsessivos, que culminavam, sempre, com perturba��es emocionais, sentimentos de frustra��o e depress�o. ele come�ava a se sentir, novamente, devorado pela televis�o, pelo r�dio, pelos jornais, pela necessidade fabricada de comprar produtos de massa, pela propaganda desenfreada e constante e pela impossibilidade de fugir de tudo isso.
yuan li-ma (o jo�o lima) n�o iria tolerar mais aquilo. aguardou mais um ano de vida como um inseto-social, naquele asilo; num ensolarado final de semana, fugiu. dirigiu-se � esta��o mais pr�xima, tomou o trem-bala (baseado no uso de supercondutores) e, em uma hora, estava no centro de s�o paulo. na viagem, apesar da enorme velocidade do trem (cerca de 400 km por hora) ele conseguiu ver, com tristeza, que o estado de s�o paulo era, praticamente, uma �nica cidade, tendo se juntado todas que outrora existiram separadas e, mesmo, isoladas. n�o havia mais zona rural, com pequenos n�cleos de casas. a sociedade formigal era uma realidade vis�vel e n�o apenas previs�vel. do centro da cidade dirigiu-se ao terreno onde havia morado. a prefeitura havia conseguido anular o decreto de uso at� a sua morte. no local j� estava constru�do (que rapidez!!) um belo conjunto de pr�dios populares que abrigavam cerca de trinta mil pessoas. onde morara um agora estavam morando mais vinte e nove mil novecentos e noventa e nove. em termos de insetos era fenomenal. em termos de primatas era cinco vidas as fugas do formigueiro 217 catastr�fico, pensou ele. foi direto ao centro do local. a muralha havia sido destru�da e o terreno homogeneizado com o restante do bairro. mas ele sabia bem onde era o centro que t�o penosamente demarcara. por coincid�ncia havia ali uma pedra trabalhada com uma placa com a seguinte inscri��o: �conjunto habitacional t�rmitas. inaugurado na gest�o do prefeito fulano de tal, com capacidade para 30.000 moradores. mais uma demonstra��o de que uma boa administra��o e capaz de dar casa a todos, independente de quantos sejam�. jo�o lima chorou, sentado no ch�o e encostado na pedra. os pol�ticos, ao inv�s de atacar a causa, continuavam atacando os efeitos e fazendo apologia disto. em seguida tapou o ouvido esquerdo com a palma da m�o esquerda. com essa manobra ele conseguia ouvir o seu cora��o artificial batendo. com a m�o direita pegou o fio que saia pelo seu umbigo e ia at� um gerador at�mico de energia, do tamanho de um ma�o de cigarros, preso na cinta. a tecnologia tanto fizera que conseguira salv�-lo da morte, separando-o, em tempo, da sua m�e natural, moribunda, e, por fim dotara-o de outro cord�o umbilical e outra fonte de energia, cerca de um s�culo ap�s. mas a tecnologia d� e a tecnologia tira. salvara-o fisicamente, mas tirara-lhe as condi��es de uma vida ps�quica normal. com um pux�o violento arrancou o fio do gerador. ouviu mais duas batidas do cora��o de pl�stico e depois veio a escurid�o total e o sil�ncio total, como antes dele ser gerado para a vida. era a �nica maneira de fugir, definitivamente, do formigueiro. cinco vidas resumo informativo 218 resumo informativo salvo pela �ltima vez em:
09/06/99 09:50 impresso pela �ltima vez em: 3/7/2000 11:10 nome do arquivo: cvword97.rtf nome e path do arquivo:d:\litera\cvword97.rtf n�mero de palavras: 88090 n�mero de caracteres: 443007 n�mero de p�ginas: 218