Weber E Foucault

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54 Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006

Max Weber e Michel Foucault: uma análise sobre poder. Resumo

Autores:

Aldo Ambrózio, David Fernando Ramos

Administrador (UFSC) , Especialista em OSM (FURB) e Mestre em Eng. da Produção (USFC). Coordenador do Curso de Administração da Unilinhares.

O poder é um fenômeno que vem merecendo muitos e variados enfoques nos estudos organizacionais da atualidade. Mas, a preocupação com este tema remonta de datas bem antigas. Daí, dado as restrições temporais e em termos de espaço, não nos darmos a uma descrição dos variados autores com os múltiplos olhares sobre o poder, mas sim, centralizarmos nosso foco analítico em duas figuras principais: Max Weber e Michel Foucault. O primeiro entendendo o fenômeno em termos de uma materialidade, que, portanto, poderia se metamorfosear em termos de transmissão da base de origem de uma forma a outra, sendo ela ora a tradição, ora o carisma, ora regras impessoais e universais a certas instituições burocráticas que unidas formariam a sociedade como um todo. O segundo, entendendo o fenômeno como uma correlação de forças no interior de instituições de reclusão denominadas “disciplinares”, nas quais os corpos seriam distribuídos, individualizados, adestrados, vigiados, sancionados e examinados no intuito de aumentar suas forças produtivas a um máximo e reduzir suas forças políticas a um mínimo. Nas palavras de Foucault: criação de corpos dóceis.

Palavras Chaves Poder; disciplina; Estado, Sociedade, Dominação e Foucault.

Power: an analysis by foucaultian perspective. Abstract The power is a phenomenon that comes deserving many and varied focuses in the organizations studies of the actuality. But, the preoccupation with this theme repairs of very old dates. Thence, given the temporal restrictions and in terms of space, do not give us to a description of the varied authors with the multiple looks on the power, but , centralize our analytic focus in two main illustrations: Max Weber and Michel Foucault. The first understanding the phenomenon in terms of a materiality, which, therefore, it could if metamorphose in terms of transmission of the origin base in a way to another, being her sometimes the tradition, sometimes the charisma, sometimes impersonal and universal rules to some bureaucratic institutions that united would form the society as one all. The second, understanding the phenomenon as a forces correlation inside institutions of reclusion denominated “disciplinarians”, in which the bodies would be distributed, individualized, trained, watched, sanctioned and examined in desire of increasing her productive forces to a maximum and to reduce her political forces to a minimum. In Foucault’s Words: creation of docile bodies.

Key words Power, Discipline, Estate, Society, Domination and Foucault.

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1. Introdução. O presente trabalho nasce com a perspectiva de levar em debate um tema bastante estudado, mas, devido às múltiplas abordagens sob as quais tem sido tratado, recebe as mais variadas interpretações e comentários. Assim, se escolheu o pensamento dos dois mais importantes teóricos que se debruçaram a estudar o tema: Max Weber e Michel Foucault. Num primeiro momento se abordou o poder sob a perspectiva weberiana, onde foram apresentadas as formas e modalidades de exercício que o mesmo foi captado na visão do autor. E, num segundo momento se abordou o poder na perspectiva foucaultiana onde foi passado em revista com um acurado grau de detalhe o exercício do poder denominado por Foucault de disciplinar que se exerceria no interior das instituições de reclusão as quais o autor também denomina como disciplinares.

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A questão da legitimidade é caracterizada por Weber como o reconhecimento, da parte de quem recebe as ordens, da autoridade de quem as emite, ou seja, quando todos os indivíduos ou o indivíduo reconhecem e aceitam receber ordens de alguém livremente sem estarem coagidas, conferindo-lhe poder. É importante salientar que o conceito de legitimidade no exercício dos tipos ideais de poder é central no pensamento weberiano. 2

O termo puro (ideal) se caracteriza pela não existência destes modelos teóricos na realidade, ou seja, de estes modelos serem caracterizações gerais e abstratas de fatos observados na realidade.

É importante salientar que a abordagem foucaultiana não se esgota na descrição do exercício do poder disciplinar, ele ainda abordou outra forma de exercício de poder que denominou biopolíticas que em vez de focalizarem os corpos individuais como alvo de exercício procurariam controlar fenômenos próprios à população para que os mesmos entrassem no interior dos cálculos infinitesimais dos controles estatais. Mas, como o parâmetro de comparação é a teoria weberiana de poder, não faz-se necessária a exposição do conceito de biopolíticas por não haver homologia entre tal descrição do exercício de poder e a apresentada por Max Weber. Destarte, o estudo se restringe ao poder disciplinar por se tratar de tentar mostrar com ele a importância do autor para os estudos organizacionais que foram analisadas pelo mesmo nesta fase de sua obra.

2. Weber e a Burocracia Max Weber ao estudar como se exerciam os processos de dominação na sociedade, onde ele identificava como sendo o poder a probabilidade de um indivíduo impor a sua própria vontade, dentro de uma relação social, sobre outrem, contra toda a resistência e qualquer que fosse o fundamento desta probabilidade, identificou três maneiras legítimas e puras (ideais) que este processo poderia se dar: Forma Tradicional; Forma Carismática e Forma Racional Legal (Burocracia). Tal classificação fica bem clara quando ele afirma que: A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato, pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece. Pode também depender de mero “costume”, do hábito cego de um comportamento inveterado. Ou pode fundar-se finalmente, no puro afeto, na mera inclinação pessoal do súdito (WEBER, 1989, p. 128).

Na forma tradicional a possibilidade da aceitação do exercício do poder era garantida por rituais tradicionais que conferiam à pessoa de quem o mesmo emanava um direito absoluto, divino e alienável somente na forma hereditária, o que fazia das leis e ordens oriundas de sua vontade dogmas inquestionáveis e imodificáveis, dado o caráter divino de sua origem. Como afirma o próprio Weber (1989, p. 131): Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das ordenações e dos oderes senhoriais de há muito existentes. Seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal. A associação dominante é de caráter comunitário. O tipo daquele que ordena é o “senhor”, e os que obedecem são “súditos”,

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enquanto o quadro administrativo é formado por “servidores”. Obedece-se à pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela tradição: por fidelidade. O conteúdo das ordens está fixado pela tradição, cuja violação desconsiderada por parte do senhor poria em perigo a legitimidade do seu próprio domínio, que repousa exclusivamente na santidade delas.

O corte temporal da vigência deste tipo específico de dominação, para Weber, se dá durante toda a antiguidade, idade média se estendendo ainda ao período da aristocracia monárquica, onde são observadas todas as suas características constituintes e suas formas de profusão dominadora. Na forma carismática o motivo da obediência, apesar de continuar na figura de quem ela emana, não se depreende como forma de obediência de um ethos tradicional, ou seja, oriundo de uma formação social específica que lhe conferiria o estatus quo de mando, mas sim, das características imanentes à própria pessoa de quem adviria o mando, as quais Weber denominou carisma. Assim, “carisma” seriam características especiais que figurariam como uma espécie de dom divino que permitiria o encantamento dos seguidores. Pode-se observar nesta caracterização a continuidade da ligação da obediência com o sagrado/divino, mas agora, a transmissão não mais necessita de tradições ou rituais para conferir o poder de mando, mas, simplesmente de a pessoa ter ou não as características especiais materializadas na forma do carisma, ou seja, a questão é elementalmente pessoal. Ouçamos o próprio Weber (1982, p. 285) em sua caracterização: O carisma pode ser, e decerto regularmente é, qualitativamente particularizado. Trata-se mais de uma questão interna do que externa, e resulta na barreira qualitativa da missão e poder do portador do carisma.[...] O líder carismático ganha e mantém a autoridade exclusivamente provando sua força na vida. Se quer ser profeta, deve realizar milagres; se quer ser senhor da guerra, deve realizar feitos heróicos. Acima de tudo, porém, sua missão divina deve ser “provada”, fazendo que todos os que se entregam fielmente a ele se saiam bem. Se isso não acontecer, ele evidentemente não será o mestre enviado pelos deuses.

Na forma racional legal (burocrática) há uma mutação drástica na forma como o mando é estabelecido na sociedade. Neste tipo de dominação, a fonte de poder (ou legitimação) migrará de efeitos sobrenaturais, divinos e pessoais e passará a se estabelecer a partir de um conjunto de regras e preceitos impessoais aceitos pelos participantes de uma determinada organização burocrática. Como afirma Weber (1997, p. 129): Obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à “lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata.

Podemos perceber assim, uma transmissão da legitimação (o reconhecimento da ordem estabelecida) da pessoa de onde emanava o mando para um código normativo que passará a prescrever tanto os atos dos subordinados como os atos dos mandatários. O poder, na visão de Weber, assim, se desloca do corpo da pessoa que manda para se infiltrar dentro de um código de leis e normas que são aceitos em comum acordo tanto pelos que mandam quanto pelos que recebem ordens. O corte temporal que estabelece o início da instauração deste tipo de dominação é o estabelecimento do Estado Moderno e da empresa privada capitalista como afirma Weber (1982, p. 229): “A burocracia, assim compreendida, se desenvolve plenamente em comunidades políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na econo-

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mia privada, apenas nas mais avançadas instituições do capitalismo”.

3. Foucault e a Sociedade Disciplinar Foucault (2002) ao analisar as metamorfoses na forma de se executar as punições na passagem do século XVII para o XVIII, acabou por descobrir não uma simples nova metodologia na forma de punir que foi substituída por um sistema de vigilância, mas sim, uma verdadeira metamorfose na forma de se exercer o poder na sociedade ocidental. Foucault visualiza que no Absolutismo Monárquico o poder possuía uma física que se encontrava fundamentada e configurada na expressão corpórea do monarca. Ou seja, era do corpo do Monarca que irradiavam todas as formas de poder. “Este, com sua presença ‘material e mítica’ era quem ordenava, ameaçava e punia, vingando-se nos corpos dos condenados a serem supliciados, por insurgirem-se contra suas ordens (ROSA, 1997, p. 233)”. Tal materialidade do poder ficava bem evidenciada nos procedimentos do suplício, considerado por Foucault (2002) como a representação da presença encolerizada do rei que se vingava dos infratores de suas leis, sentenciando-os à morte de rodas, forca, ao patíbulo, esquartejamento ou ao pelourinho. É importante lembrar que neste período os corpos e vidas dos súditos não lhes pertenciam, ou seja, eram em sua totalidade do monarca, e como não havia utilidade econômica forte desses corpos, o Rei fazia deles o que bem entendesse, desde que pelas cerimônias cruéis do suplício seu poder absoluto fosse mantido. Tal materialidade de apresentação do poder começou a ser questionada em fins do século XVIII pelos reformadores do sistema judiciário que já almejavam um castigo que não destruísse o corpo e seus elementos ao ser exercido, mas que, ao contrário incidisse sobre a “alma” dos condenados e tivesse o objetivo maior de corrigir as ações do corpo no intuito de torná-lo útil à sociedade em seu conjunto. E tal mudança de direcionamento e de objeto onde incidiria a pena não poderia estar relacionado a outro evento que a emergência da sociedade industrial em fins do século XVIII, que deixou evidente não mais o extermínio e o controle dos corpos via rituais violentos e sangrentos, mas sim a necessidade de sua utilização no sistema produtivo nascente. “O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja ‘anatomia política’, em uma palavra, podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas (FOUCAULT, 2002, p. 182)”. Foucault nesta transição identificou a transição da física do poder para a microfísica. Ou seja, o poder se deslocou do corpo do soberano e se capilarizou nos corpos dos súditos e, não mais no sentido de os machucar ou matar, mas sim no sentido de os utilizar e os consumir: Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (FOUCAULT, 2002, p. 117).

Assim, foi constituída toda uma nova mecânica para basilar o exercício do poder que agora possuía um novo objetivo em sua relação com os corpos dos condenados. Na realização desse novo tido de exercício vão ser utilizados procedimentos precisos de modo a se conseguir além da obediência/controle dos corpos, também a sua utilida-

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de econômica. O primeiro destes procedimentos a ser adotado é a distribuição espacial dos corpos. Neste procedimento forão utilizadas quatro técnicas específicas a saber: • o enclausuramento. Que corresponde ao trancamento dos corpos em instituições com forma arquitetural homogêneas tais como: escolas; quartéis; fábricas; hospitais; etc; • o quadriculamento. Que corresponde a individualização dos corpos no interior das instituições supracitadas. “O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir. [...] Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos” (FOUCAULT, 2002, p.123); • as localizações funcionais. Aqui os corpos que já estão trancados e individualizados serão agora ligados a uma atividade produtiva. “É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção a diversas formas de atividade na distribuição dos postos” (FOUCAULT, 2002, p. 124); • a organização do espaço em séries (hierarquia). Que corresponde a criação de um intercâmbio entre os corpos individualizados nas técnicas anteriores traçando nestas relações, níveis diferenciados de desenvolvimento em relação à atividade executada onde os corpos se encontram encerrados, prescrevendo nestas séries uma idéia de progresso de uma série a outra. Em síntese podemos observar que este procedimento constituído por suas quatro táticas: [...] organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas (FOUCAULT, 2002, p. 126).

O segundo procedimento utilizado é o controle da atividade que, para se exercer utilizará de cinco técnicas: • o horário. Onde a execução da atividade vai ser demarcada em minúcias temporais, ou seja, cada atividade receberá um intervalo de tempo ótimo para a sua realização de modo que se possa estabelecer um início e um fim bem especificados; • a elaboração temporal do ato. Aqui uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento é estabelecido, ou seja, cada ato é decomposto em uma série de movimentos precisos que serão rigorosamente medidos em termos temporais no sentido do próprio ato ser melhorado à medida que o corpo executa a atividade a ele direcionada; • a correlação entre corpo e gesto. Corresponde a imposição de uma melhor rela-

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ção entre um gesto e a atitude global do corpo, ou seja, nesta técnica o corpo é absorvido pela atividade e para melhor executá-la deverá ter bem posicionados todos os demais elementos que o compõem; • a articulação corpo-objeto. Cada gesto do corpo é relacionado a uma operação do objeto que a atividade requerer para o seu perfeito desempenho. Agora quem invade o corpo é o objeto; traçando naquele inúmeras relações entre os elementos que o compõem e os elementos que compõem o próprio objeto; • a utilização exaustiva. Oriunda das técnicas anteriores, aqui o corpo se vê posto diante de uma maximização de sua utilização, que à medida que se desenvolve no interior de toda a sistemática, é investida de um controle cada vez mais minucioso para que nem um segundo do tempo seja desperdiçado na operação. O terceiro procedimento é a organização das gêneses que teria como objetivo principal a acumulação do tempo no corpo. Tal procedimento se inicia com a organização das séries e a imposição nas mesmas de ritmo e continuidade para que à medida que o corpo fosse passando por elas a experiência fosse se acumulando no mesmo de modo que uma evolução pudesse ser traçada entre uma série e outra no que tange ao aprendizado do corpo na execução de sua referida atividade. Neste procedimento são utilizados quatro processos: • divisão da duração da atividade em segmentos sucessivos ou paralelos, ou seja, uma atividade complexa é fragmentada em várias atividades mais simples; • organização das seqüências segundo um esquema analítico, ou seja, depois de a atividade ser decomposta em vários segmentos de execução mais simples ela é reagregada em uma ordem específica de complexidade; • finalização dos segmentos temporais, ou seja, cada um dos segmentos nos quais a atividade foi dividida receberá um prazo específico para o seu término; • estabelecimento de séries de séries, ou seja, são ligadas as séries de grupos humanos divididos no interior dos espaços disciplinares às séries de funções resultantes da fragmentação das atividades. Resultando num quadro vivo onde é prescrito, [...] a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convém; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos. Ao termo de cada série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua vez. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria (FOUCAULT, 2002, p. 134).

O quarto e último procedimento é a composição das forças, onde os procedimentos anteriores são rearticulados e postos em funcionamento por meio do exercício e do treinamento, montando-se assim combinações entre os múltiplos procedimentos e técnicas de modo a se conseguir a máxima utilização de todos os elementos. Em síntese podemos demonstrar o funcionamento deste aparato fisiológico temporal nas palavras do próprio Foucault (2002, p. 141): [...] pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial) é

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orgânica (pela codificação das atividades), é genérica (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza “táticas”.

Descritas a mecânica do poder microfísico (disciplinar) em seu exercício no interior das instituições disciplinares, é-nos necessário analisar ainda os procedimentos que dinamizam tal exercício no sentido de relacionar os corpos aos procedimentos criados pela disciplina. Para Foucault o poder disciplinar não poderia ser desarticulado de um processo de adestramento. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor (FOUCAULT, 2002, p. 143)”. Este adestramento é que seria responsável pela fabricação dos indivíduos necessários ao funcionamento das instituições a que estivessem ligados. E, no decorrer deste adestramento, alguns instrumentos simples e precisos seriam fundamentais no sentido da efetivação do duplo objetivo das disciplinas: o olhar hierárquico; a sanção normalizadora e o exame. No primeiro instrumento vemos ser construída uma pirâmide de olhares que atravessariam de cima a baixo e de uma extensão a outra as instituições disciplinares fazendo com que nenhum gesto escapasse a essa organização óptica. Ouçamos o próprio Foucault (2002, p. 148): A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes “invenções” técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar, graças a ela, torna-se um sistema “integrado”, ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; uma rede “sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados.

No segundo instrumento, a sanção normalizadora, foram dosados de forma precisa os castigos e os benefícios de forma a criar-se uma visão clara do tipo de comportamento ideal para o funcionamento das instituições disciplinares: Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a provações ligeiras e pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universidade punível-punidora (FOUCAULT, 2002, p. 149).

O terceiro instrumento, o exame, talvez seja o mais abrangente dos três por combinar os instrumentos da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora no intuito de estar unindo através da atividade do registro que lhe é imanente os laços entre as

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relações de poder e a criação de um saber sob os corpos que estão sendo vigiados e punidos: [...] o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto do poder, como efeito e objeto do saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a diferença individual é pertinente (FOUCAULT, 2002, p. 160).

Conhecidos os instrumentos que forneciam a dinâmica do exercício a partir do qual o poder disciplinar poderia inserir-se nos corpos moldando-os, adestrando-os e melhorando-os, nos resta apreciar apenas a forma arquitetural que serviu de modelo para as instituições disciplinares. Se trata do Panóptico de Jeremy Bentham. Tal modelo de arquitetura possuía o seguinte princípio: [...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha (FOUCAULT, 2002, p. 166).

A idéia central de tal aparato óptico era fornecer uma visibilidade total do lado de quem vigiava e uma visibilidade nula do lado de quem era vigiado no sentido da idéia de uma vigilância constante e ininterrupta cujas regras acabassem por se internalizar nos corpos dos indivíduos que se encontravam sob processo de vigília tornar-se uma possibilidade real aos seus olhos. Ao serem incididos por tais dispositivos de poder os corpos se desenvolviam no sentido de elevar ao máximo sua utilidade econômica e de reduzir a um mínimo sua força política “digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força ‘política’, e maximizada como força útil (FOUCAULT, 2002, p. 182)”, ou seja, na mais clara denominação se transformavam em verdadeiros “corpos dóceis”. Mas, não apenas na anatomia do corpo este processo surtiria efeitos, outro importante desdobramento aconteceria em um nível bem mais profundo que as suas formas físicas: Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo, o poder excedente exercido sobre o corpo submetido do condenado não suscitou um outro tipo de desdobramento: o de um incorpóreo, de uma “alma” moderna, como dizia Mably. A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma gene-

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alogia da “alma” moderna. A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia de poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos ideólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a libertar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo (FOUCAULT, 2002, p.28).

Assim, podemos afirmar, que enquadrados, distribuídos espacialmente, individualizados, postos em relação a uma atividade, vigiados para por fim gerarem um registro que dará forma e conteúdo a diversas disciplinas de saber; os corpos, além de se tornarem dóceis e úteis, ainda produziriam um incorpóreo que possuiria nele próprio todas as regras e princípios da clausura, e este incorpóreo seria nada mais, nada menos que suas próprias subjetividades. O tipo de sociedade que poria em funcionamento este tipo específico de poder foi classificada por Foucault de sociedade disciplinar “na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42)”, sendo posta em funcionamento através de instituições também classificadas por Foucault como disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e etc) que estruturariam o terreno social e forneceriam explicações lógicas e adequadas para a razão da disciplina (HARDT; NEGRI, 2001).

4. Conclusão Na exposição dos pensamentos dos dois autores em relação à forma como são exercidas as relações de poder nas sociedades ocidentais podemos notar diferenças quanto ao método de abordagem e quanto à forma que o poder é compreendido nas exposições de ambos. Quanto ao método, podemos perceber que Weber trabalha com o tipo puro (ideal), ou seja, características gerais que não existiriam na realidade, mas que derivariam de apreciações genéricas do funcionamento das instituições e do comportamento dos indivíduos nas mesmas. Em uma palavra: Weber teria a partir de observações consistentes do funcionamento das instituições no decorrer do tempo sistematizado e agrupado certos traços que poderiam assim caracterizá-las em um esquema amplo,

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mas não representá-las em sua forma real, que no caso se distanciaria do modelo proposto. Foucault, ao contrário de Weber, partiria para a observação do que descreveu em sua forma real, ou seja, as observações acerca do funcionamento da prisão, da fábrica, da escola e etc, seriam em sentido lato, “o como” o poder realmente é exercido nestas instituições e as descrições sobre os efeitos desse poder, realmente apresentariam os resultados nos corpos dos afetos das relações de força características deste poder. Quanto à forma de funcionamento podemos ver em Foucault a inexistência de uma fonte onde o poder emanaria e também uma inexistência de algo que o possuísse, assim, como a inexistência de uma materialidade e de certa forma de uma negatividade em seu exercício. O poder não seria algo que uns deteriam e outros não. O poder também não emanaria a partir de um determinado ponto fixo, seja o chefe da tribo ou o guerreiro, no caso da sociedade tradicional ou do cargo, no caso da sociedade Burocrática. O poder aconteceria em um exercício e assim, não consistiria em nada além de uma relação de forças. Podemos dizer também que o poder não possuiria uma negatividade, ou seja, agiria negando e reprimindo a quem não o detivesse, mas sim, agiria de forma positiva no sentido de produzir as realidades e as subjetividades próprias ao seu exercício. Mas, ponto comum entre as duas abordagens é o contexto do exercício do poder. Tanto para Foucault quanto para Weber relações de poder só poderiam existir caso os membros envolvidos em tais relações gozassem de liberdade. Ao contrário do pensamento usual, o poder não é contrário à liberdade. Sociedades nas quais seus membros não gozem de liberdade política estão sob o jugo de relações de submissão e não relações de poder. Concluímos assim, ser de extrema importância a introdução dos estudos de Foucault para a compreensão do funcionamento das relações de poder no interior das organizações. Primeiramente pelo fato dele ter apresentado com maestria sem igual o funcionamento dos dispositivos de poder no interior das mesmas, como afirma Deleuze (1992, p. 219): “Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma forma produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares”. Em segundo lugar pelo fato de ter trabalhado com formas reais em oposição a tipos ideais ou puros o que ajuda a análise ao tirar seu foco de elementos transcendentes. Mas talvez o que mais torna o pensamento de Foucault importante para compreender as relações de poder nas organizações contemporâneas é o fato de que com as modificações da estrutura das organizações – a estrutura departamentalizada foi substituída por estruturas voltadas para processos – e na forma com que o trabalho é executado – de uma extrema separação entre a concepção e a execução para a realização do trabalho em equipes multifuncionais – fica difícil ainda acreditar que os sujeitos aceitam o mando por serem fiéis às regras e prescrições de seus cargos. Parece fazer mais sentido acreditar que as pessoas aceitam serem lideradas por o conteúdo do trabalho as afetarem de alguma forma, ou seja, as atividades que tem de executar fazerem algum sentido para as mesmas e, como última observação, podemos citar também a importância do conceito da produção subjetiva como fator explicativo para a atual debilidade e inoperância dos movimentos trabalhistas.

Rev. Universo Administração, v. 1, Ano 1, p. 54-64, jun./dez. 2006

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Max Weber e Michel Foucault: uma análise sobre poder.

5. Referências DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. ______.Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001. ______. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. ROSA, Ronney Muniz. Subjetividade produzida: poder e disciplina em uma problematização foucaultiana. In: BAPTISTA, Dulce. et al. (orgs). Cidadania e subjetividade. Rio de Janeiro: Imaginário, 1990. WEBER, Max. Sociologia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997. ______. Ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

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