3 PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
DO DIREITO PENAL
___________________________ 3.1
INTRODUÇÃO A Constituição é a base – o alicerce – do Estado e da sociedade. É nela que estão
insertas as normas básicas de organização estatal e os princípios fundamentais sobre os quais se assentam todas as relações entre os indivíduos. Na Constituição do Estado, estão estabelecidos os primados sobre os quais tudo o mais existe. É na Carta Magna que está dito: república ou monarquia, parlamentarismo ou presidencialismo; propriedade privada sobre os meios de produção ou propriedade coletiva, estatizada: capitalismo ou socialismo. Desde as questões mais complexas aos mecanismos mais simples da vida, do sistema financeiro à relação de emprego, todos encontram, na Carta Constitucional de um Estado, suas origens, suas bases, suas raízes, suas diretrizes e regras. Na Constituição Federal brasileira, estão estabelecidos todos os princípios que regem o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Comercial, Trabalhista, Tributário, Processual e, não podia ser diferente, também o Direito Penal. Nela está determinado que a base da sociedade é a família, a qual também se constitui por meio da união estável entre homem e mulher. Ali está escrito que nenhum tributo será estabelecido senão para ser cobrado no exercício seguinte. E está definido que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Está inscrito, felizmente, que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. São os fundamentos, os alicerces, que sustentam a vida da sociedade brasileira, do homem. Todas as demais normas do direito devem harmonizar-se com os princípios constitucionais, sob pena de se tornarem inválidas. Todo o Direito Penal, igualmente, é construído com base em princípios inseridos na Constituição Federal, os quais norteiam sua construção e a sua vida, devendo, de conseqüência, ser respeitados. As normas penais ordinárias que vierem a ser
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles elaboradas em dissonância com os princípios constitucionais simplesmente não terão, em substância, nenhum valor, ainda que sejam votadas, promulgadas, publicadas etc. Tudo aquilo que colidir com o preceito constitucional será banido do ordenamento jurídico, ainda que formalmente nele tiver ingressado. Por isso, para se estudar o Direito Penal, o ponto de partida deve ser o estudo de suas bases, seus alicerces, seus princípios mais importantes, os quais, por essa razão, estão escritos na Constituição Federal. São eles: o princípio da legalidade, o princípio da extra-atividade da lei penal mais favorável, o princípio da individualização da pena, o princípio da responsabilidade pessoal, o princípio da limitação das penas, o princípio do respeito ao preso e o princípio da presunção da inocência.
3.2
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
3.2.1 Enunciado e breve histórico O inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, preceito repetido no art. 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena, sem prévia cominação legal”, que já se encontrava no art. 153, § 16 da Carta Constitucional de 1967, no § 27 do art. 141 da Constituição de 1946, no art. 122 da Constituição de 1937, no § 26 do art. 113 da Constituição de 1934, no § 15 do art. 72 da Constituição de 1891 e que constava do § 11 do art. 179 da Constituição do Império, de 1824, assim: “ninguém será sentenciado senão por autoridade competente e em virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”. Já o art. 1º do Código Criminal do Império, de 1830, dizia: “não haverá crime, ou delito sem uma lei anterior que o qualifique”, e o art. 33, “nenhum crime será punido com penas que não estejam estabelecidas nas leis, nem com mais, ou menos, daquelas que estiverem decretadas para punir o crime no grau máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir o arbítrio”. O Código Penal de 1890, no art. 1º, consignava: “Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva por analogia ou paridade não é admissível para qualificar crimes, ou aplicar-lhes penas.”
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 3 O princípio, apesar de expressar-se, comumente, na fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege, não tem, como muitos pensam, sua origem no Direito Romano. Aí, apesar da existência de definições de crimes e penas, a punição sem lei anterior era permitida, a não ser num pequeno tempo, o de Silla, e com a ordo judiciorum publicorum, em que a analogia passou a ser proibida1. No mais, todo o Direito Romano aceitou a aplicação de penas sem prévia definição legal de crimes. Durante toda a Idade Média, em que prevaleceu o direito consuetudinário, “permitiu-se o plenum arbitrium dos juízes. Foi a idade de ouro das penas arbitrárias. Ao juiz só era vedado, quando muito, excogitar uma espécie nova de pena. E ao lado do arbítrio do juiz ainda havia o arbítrio do rei, de que foram atestado, em França, as célebres lettres de cachet”2. JOSÉ FREDERICO MARQUES ensina que “as raízes do princípio de reserva legal nas normas punitivas encontram-se no Direito medieval, mormente nas magníficas instituições do Direito ibérico. Nas Cortes de Leão, em 1186, declara AFONSO IX, sob juramento, que não procederia contra a pessoa e propriedade de seus súditos, enquanto não fossem chamados ‘perante a Curia’. E nas Cortes de Valladolide foi proclamado, em 1299, que ninguém pode ser privado da vida ou propriedade enquanto sua causa não for apreciada segundo o ‘fuero’ e o Direito. Em 1351, essas mesmas Cortes pediram a Pedro I que ninguém fosse executado ou preso sem investigação do foro e direito, no que acedeu o rei. E essa promessa foi depois renovada com ênfase por Henrique II, nas Cortes de Toro, em 1371”3. Na Inglaterra, o princípio constou, pela vez primeira, na Magna Charta de 1215, ao tempo de João Sem Terra, com a proibição da analogia para definir crimes e aplicar penas. Aí também se inscreveu o gérmen da idéia de limitar-se o poder do Estado em face da liberdade do indivíduo que, mais tarde, ganharia foros de princípio maior de todas as nações civilizadas. A fórmula latina foi elaborada por Feuerbach, no princípio do século XIX, mas o princípio constou dos Bills of Rights, as constituições das colônias inglesas na América do Norte, e foi incluído entre os direitos fundamentais do homem no Congresso de 1
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 1, p. 26.
2
Idem p. 29.
3
Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1997. p. 181-182.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles Filadélfia, de 1774, na Constituição Federal Americana de 1787, e consagrou-se no art. 8º da Declaration des droits de l’homme et du citoyen, de 28-8-1789, assim: “nul ne peut être puni qu’en vertu d’une loi établié et promulgée antérieurement au delit et légalement appliquée”.
3.2.2 Significado É o mais importante dos princípios do Direito Penal, a base, a viga mestra, o pilar que sustenta toda a ordem jurídico-penal. Seu significado é claro e límpido. Só pode alguém receber uma resposta penal, uma pena criminal, se o fato que praticou estivesse, anteriormente, proibido por uma lei sob a ameaça da pena. O homem só pode sofrer a pena criminal – ser privado da sua liberdade, em regra – se tiver realizado um comportamento previamente definido como crime, por uma lei em vigor. Por mais imoral que seja uma conduta humana, a ela só corresponderá uma sanção penal se, antes de sua prática, tiver entrado em vigor uma lei considerando-a crime. O incesto – prática de atos sexuais entre pai e filha ou mãe e filho, ou entre irmãos, sem violência, real ou moral –, apesar de, moralmente, repugnar a todos, não é crime e, por isso, não merecerá nenhuma sanção do direito. “Antes de ser um critério jurídico-penal, o nullum crimen, nulla poena sine lege é um princípio político pois representa um anteparo da liberdade individual em face da expansiva autoridade do Estado. Em reação à estatolatria medieval, adotou-o a Revolução Francesa, incluindo-o em fórmula explícita, entre os direitos fundamentais do homem; e somente o retorno ao ilimitado autoritarismo do Estado pode explicar o seu repúdio nos últimos tempos, como aconteceu na Rússia soviética e na Alemanha de Hitler.”4 Significa, pois, o princípio que só a lei pode definir crimes e cominar penas. A edição de normas sobre crimes e penas é matéria reservada à lei, daí o nome de Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. O Princípio quer dizer: lei, anterior, no sentido estrito e certa. Só a lei ordinária, aprovada no Congresso Nacional, com observância de todas as regras que regem o processo legislativo, vedada esta atividade ao legislador estadual ou distrital e municipal. Igualmente, não se admite a criação de crimes e penas por
4
HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 12.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 5 meio de Medida Provisória ou de Lei Delegada. Do mesmo modo, em nenhuma hipótese, permite-se a utilização da analogia para incriminar comportamentos ou cominar penas. Por outro lado, a Lei Penal há de ser certa, exata, precisa, proibida a utilização de fórmulas excessivamente genéricas ou de interpretação duvidosa, devendo, pois, o legislador, no momento de definir os comportamentos humanos que deseja considerar crimes, evitar a utilização de expressões vagas ou ambíguas, a fim de que todos os indivíduos possam, com facilidade, compreender a extensão e o alcance das normas de proibição. Modernamente, na doutrina do magistral ALBERTO SILVA FRANCO, o princípio adquire novos significados. Segundo o maior dos penalistas brasileiros da atualidade, o caráter material do princípio da legalidade impede a definição de crimes que “retratem atitudes internas, que se refiram a valores puramente morais, que incriminem simples estados ou condições existenciais, que não comprometam interesses básicos da sociedade, que mencionem atos materiais não lesivos de nenhum bem jurídico, que se apóiem mais de uma vez no mesmo pressuposto fático ou que tratem igualmente situações desiguais ou desigualmente situações iguais, fundando no puro arbítrio as razões da igualdade ou da desigualdade”.5 Isso quer dizer, entre outras coisas, que não pode o legislador definir como crime o simples pensar do homem, nem tampouco atitudes exclusivamente morais. Por isso, seria inconstitucional a lei que considerasse crime o simplesmente ser alguém homossexual. Nesse sentido, o princípio da legalidade dá origem aos princípios do fato, da lesividade, do ne bis in idem, e da igualdade, cuja importância adquire, no dia-a-dia, maior relevância. Só haverá crime se houver um fato; impossível a incriminação de atitudes puramente psíquicas do homem. O Direito Penal não se importa com o simples pensamento do homem, com o pecado, tarefa das religiões. Pouco importa o que ocorre puramente no interior do pensamento humano. O homem pode desejar ardentemente, com toda a sinceridade, a morte de seu desafeto, e isso nada importa para o Direito Penal, desde que esta seja apenas uma atitude interna.
5
Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 24.
6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Pode orar o tempo todo, para que ocorra tal ou qual fato lesivo, e se não passar dessa atitude puramente psíquica, tal acontecimento não passa de um indiferente penal. Por essa razão, o legislador está obrigado a só construir definições de crimes que constituam fatos concretos, e não meros acontecimentos psicológicos, sem conseqüência concreta. Do mesmo modo, não pode o legislador incriminar comportamentos humanos que não sejam suficientemente idôneos para causar lesão ou, no mínimo, ameaçar de lesão o bem jurídico. É o mais importante dos primados do Direito, e, segundo muitos, situando-se antes e além do direito positivo, como conseqüência que é da inviolabilidade da dignidade humana, um princípio concreto de direito natural.
3.3
PRINCÍPIO DA EXTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
3.3.1 Enunciado O inciso XL do art. 5º da Constituição Federal dispõe: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” A primeira parte do preceito: “a lei penal não retroagirá” é pura reafirmação do princípio da legalidade, no ponto em que este impõe a anterioridade da lei penal. Cuidadosamente, o legislador constituinte, não satisfeito com impor a anterioridade da lei penal, veio, no inciso seguinte, reafirmar que a lei penal não pode retroagir, isto é, não pode ser aplicada a fatos acontecidos antes de sua vigência. Não havia necessidade, pois o princípio da reserva legal é claro ao dizer que só haverá crime e pena, se houver, previamente, uma lei anterior. Mas o objetivo não era o de reafirmar o princípio da legalidade, mas o de construir outro pilar sobre o qual se sustenta o Direito Penal, o de que a lei penal mais favorável retroagirá ou ultra-agirá.
3.3.2 Significado É na segunda parte que está o preceito “salvo para beneficiar o réu”, cuja leitura há de ser: a lei penal retroagirá para beneficiar o réu. O Direito é dinâmico como a sociedade. Os interesses sociais estão em constante
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 7 movimento e, à medida que se desenvolve a sociedade, impõem-se mudanças na ordem jurídica. Novas conquistas tecnológicas impõem novos tratamentos a questões que surgem no dia-a-dia. Valores substituem-se, formas de ver os fatos sociais alternam-se, de modo que se torna sempre necessária a criação de novas leis. A regra geral de aplicação da lei é a prevalência da lei do tempo do fato, decorrência do princípio da legalidade (tempus regit actum). Aplica-se ao fato a lei vigente ao tempo de sua prática. Leis sucedem-se, criando novos crimes, modificando o tratamento dado aos crimes já existentes, ora com maior severidade, ora abrandando a resposta penal e, até, simplesmente, extinguindo espécies de crimes. Nessas hipóteses, incide o princípio, que proíbe a retroatividade da lei mais severa: não poderá a lei mais grave ser aplicada aos fatos ocorridos antes de sua vigência. Se, contudo, a lei posterior é, de qualquer modo, mais benéfica, vai retroagir, para ser aplicada aos fatos acontecidos antes de sua vigência. Não podia ser diferente. A pena é a resposta que a sociedade dá aos indivíduos que atacarem, de modo grave, os bens jurídicos mais importantes. Se, em dado momento, a sociedade entende que a pena deve ser menor do que era, é porque considera que a resposta ao crime praticado deve, igualmente, ser de menor intensidade. Se, a partir de uma nova lei, esta pena é mais branda, deve o ser para todos, inclusive para os que praticaram o crime antes da lei. Não teria nenhum sentido punir alguém com uma pena que já não está em vigor. A pena é a medida da reprovação do comportamento humano. Se o fato antes punido mais severamente passa a ser, depois, punido com menor severidade é porque a sociedade entendeu que a punição anterior – mais severa – não era justa. Se a reduziu é porque ela não se justificava. E se não era justa antes, porque aplicá-la, depois de considerá-la injusta? O inverso, punir alguém, com maior rigor que o previsto no tempo em que ele praticou o crime, seria injusto e iria de encontro à dignidade humana. Quando alguém pratica um fato definido na lei como crime, conhece a pena a ele correspondente, em qualidade e em quantidade. Se esta pena, depois da prática do fato, é aumentada, não pode, em nenhuma hipótese, ser aplicada àquele que violou a norma no tempo da lei anterior, sob pena de violar sua dignidade. Ele, ao violar a norma, sabia que o máximo que poderia receber era a pena então vigente. Se, mesmo assim, violou a norma é porque aceitou, na pior das hipóteses, sofrer aquela pena, somente ela, em qualidade e
8 – Direito Penal – Ney Moura Teles quantidade, e não mais que ela. Aplicar-lhe pena então inexistente – porque maior ou diferente – é violar o princípio da dignidade do homem. É trair o indivíduo e o direito há de ser, sempre, verdadeiro e sincero. A lei penal que for mais favorável ao acusado da prática do crime sempre será aplicada, em qualquer hipótese. Por isso, diz-se que a lei mais benéfica é sempre extraativa: se ela é a lei posterior, é e sempre será retroativa; se ela é a lei do tempo do fato, é e será sempre ultra-ativa. A lei mais favorável é, pois, extra-ativa.
3.4
PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
3.4.1 Enunciado e conceito Dispõe o inciso XLVI do art. 5º da Carta Magna: “A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.” Como se pode observar, o legislador constituinte não definiu o que seja individualização da pena, tarefa que cabe à doutrina. Individualizar significa particularizar, adaptar a pena ao condenado. A cada indivíduo, uma pena. Para particularizar a pena, a lei haverá, evidentemente, de balizar-se em parâmetros que, como não poderia deixar de ser, são o homem que violou a norma e o fato por ele praticado, cada qual, com suas particularidades, suas peculiaridades, suas características próprias, subjetivas
e objetivas,
que os
individualizam. Para adaptar a pena ao homem, seu destinatário, a lei levará em conta suas características e as do fato realizado. A individualização da pena faz-se em três etapas: cominação, aplicação e execução.
3.4.2 Cominação No primeiro momento da individualização, a tarefa incumbe ao legislador, que, ao definir os vários comportamentos humanos que considera crime – cumprindo, assim, o princípio da legalidade –, estabelece, para cada um, uma pena, em qualidade e
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 9 em quantidade. Esta é a chamada fase da cominação das penas. O legislador se orientará pela importância dos bens jurídicos e pela gravidade do ataque contra eles perpetrados, estabelecendo, para cada comportamento considerado criminoso, uma qualidade e uma quantidade de pena, que será de maior severidade, conforme seja mais importante o bem e mais grave o ataque contra ele efetuado. Assim, a morte de um homem por outro, que a desejou, merecerá a mais severa das penas. Já ao simples e leve ferimento do corpo humano, causado intencionalmente por outro, corresponderá uma pena bem mais branda. Se o causador da lesão não a queria, nem a aceitava, mas foi descuidado, a pena será mais leve ainda. Isso porque a vida é um bem jurídico muito mais importante que a integridade corporal do indivíduo, e porque o comportamento de alguém que deseja causar um mal a outro é muito mais grave do que o de quem só agiu com descuido. Já a agressão à liberdade sexual da mulher – bem de maior valor – merecerá uma reprimenda mais severa que a lesão corporal. Após fixar a natureza da pena, o legislador determina, abstratamente, um grau mínimo e um grau máximo, fixos, determinados, precisos, pelo que fica estabelecido um intervalo dentro do qual a pena será aplicada ao caso concreto. Assim acontece com aquele homem que, intencionalmente, matar outra pessoa. Estará sujeito a uma pena privativa de liberdade por, no mínimo seis e, no máximo, 30 anos. Se, todavia, obrigar uma mulher a uma relação sexual, a punição máxima não ultrapassará os 10 anos de perda de sua liberdade. No Código Penal e na legislação penal complementar estão definidos todos os fatos considerados crimes, e cominadas as respectivas penas, em qualidade e quantidade. É este o primeiro momento da individualização. Nele o legislador dá o primeiro passo para adaptar a pena ao que vier a ser condenado. É a primeira particularização. Para os furtos, reclusão de um a quatro anos de detenção e multa. Para os estelionatos, o mesmo grau mínimo e o máximo de cinco anos de reclusão e multa. Já se for um delito próprio de funcionário público, o peculato (apropriar-se o servidor público de dinheiro público em proveito próprio, por exemplo), a pena ficará entre dois e 12 anos de reclusão, além da multa.
10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Para cada crime, uma pena, fixada abstratamente, e que paira sob todos os indivíduos como uma ameaça. Todos, portanto, têm conhecimento de que, se cometerem esse ou aquele crime, estarão sujeitos a essa ou àquela pena.
3.4.3 Aplicação Se o homem, apesar da ameaça, não se intimida e pratica o fato definido como crime, poderá receber a pena correspondente. A pena será aplicada – pelo julgador – com observância de normas legais que tratam da individualização. O julgador não é livre para escolher a qualidade nem a quantidade da pena. Se o infrator da norma tiver cometido um crime de estupro – constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça – o juiz deverá, em primeiro lugar, verificar qual a qualidade e quantidade da pena cominada na lei, encontrando-as no art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 a 10 anos”. Para estabelecer a pena concreta, a ser cumprida, o juiz deverá analisar as características do infrator da norma e do fato por ele praticado. A primeira observação, a propósito, é de que a pena a ser aplicada não poderá ser nem além nem aquém do necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Isto quer dizer que, dentro dos limites fixados – mínimo e máximo –, a pena deve ser fixada de modo justo, exato. Para se alcançar esse difícil fim, manda o art. 59 do Código Penal que o juiz considere várias circunstâncias, do homem, e do fato por ele praticado, que são: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do infrator da norma penal, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do fato e o comportamento da vítima. É evidente que, tratando-se de um homem de passado ilibado, de personalidade pacífica, de boa índole, de conduta social respeitável, não haverá necessidade de uma quantidade de pena distante do grau mínimo. Se, ao contrário, tratar-se de pessoa que agiu com muita culpa, a pena haverá de se distanciar do grau mínimo, aproximando-se do grau máximo. Se, entre aquelas circunstâncias, umas favorecem, outras prejudicam o acusado, cabe ao juiz verificar quais preponderam e, entre elas, atentar para as que mais importam para o direito. As de natureza pessoal – a primariedade – haverão de ser relevadas, até porque o fim e a razão de ser de toda a vida, da humanidade, é o homem, objetivo de todos nós.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 11 Após a fixação dessa que se chama pena-base, o julgador verificará se ocorrem circunstâncias agravantes, que se encontram definidas nos arts. 61 e 62 do Código Penal, e circunstâncias atenuantes, dos arts. 65 e 66 e, em conseqüência, agravará ou atenuará a pena-base. Em seguida, observará a existência de causas especiais de aumento ou de diminuição de pena, previstas no Código Penal, seja na parte geral, seja na parte especial, aumentando ou diminuindo a pena, dentro das quantidades permitidas, chegando, então, à pena definitiva. Fixada a pena definitiva, o juiz estabelecerá o regime de seu cumprimento, se privativa de liberdade, como manda o art. 33 do Código Penal, ou a substituirá, conforme determina o art. 60, § 2º, e art. 44 do Código Penal. Assim, terá particularizado a pena ao condenado. Com a individualização da pena, pode uma pessoa que cometeu um estupro ser condenada a seis, sete, nove ou a 10 anos de reclusão, conforme sejam as suas características e as do fato praticado. Desse modo, para um mesmo crime, cometido por duas pessoas, as penas aplicadas não serão, necessariamente, as mesmas. Se Pedro e Célio, irmãos, com mesmas características, pela mesma razão, cometem em conjunto o mesmo crime e são ambos condenados, Pedro, de 20 anos, e Célio de 22, não receberão penas iguais, ainda que todas as circunstâncias judiciais lhes sejam igualmente favoráveis ou desfavoráveis, por uma única razão: Pedro tem, em seu favor, uma circunstância atenuante que não favorece Célio: ter menos de 21 anos ao tempo do fato (art. 65, I, CP). Por isso, se, em face das circunstâncias judiciais, ambos receberem pena-base igual ao mínimo, a atenuante há de fazer a pena ficar aquém do mínimo legal. Esta é posição que se considera a justa, e que melhor será detalhada no Capítulo 17 desta obra, onde esta segunda fase da individualização da pena, da mais alta importância, será examinada de forma mais pormenorizada.
3.4.4 Execução Aplicada a pena, não sendo mais possível qualquer recurso contra a decisão que a fixou, o Estado adquire o título com o qual deverá executar a pena, que será cumprida pelo condenado. Também a execução da pena não pode ser igual para todos os condenados, que, além de terem cometido crimes distintos, são diferentes entre si, cada qual com sua personalidade, sua necessidade de reprovação e prevenção. O inciso XLVIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “a pena será
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. Individualizar, nesta fase, é proporcionar a cada condenado as oportunidades necessárias para que ele possa, durante e após o cumprimento da pena, ser reinserido na sociedade de modo a, posteriormente, poder ser aceito por ela e com ela viver em plena harmonia. O art. 5º da Lei de Execução Penal (7.210/84) determina que o condenado será classificado, segundo seus antecedentes e personalidade, para orientação da individualização da pena. E o art. 6º manda que a classificação seja feita por uma Comissão Técnica, a quem compete elaborar um programa individualizador, que deverá ser acompanhado no decorrer do cumprimento da pena. Os condenados serão submetidos a exame criminológico – técnico-pericial – capaz de fornecer aos executores da pena os elementos indispensáveis à individualização da execução da pena. Na prática, todavia, a situação é diferente. Infelizmente, o Estado brasileiro não cumpriu, a contento, suas obrigações estatuídas pelas Leis nos 7.209 e 7.210, edificando estabelecimentos
penitenciários,
dotando
o
sistema
prisional
das
condições
indispensáveis à execução das penas privativas de liberdade. O princípio da individualização da pena é uma garantia constitucional, devendo ser observado a fim de que cada indivíduo receba uma pena correspondente a suas necessidades, em face de seu comportamento, e que seja apenas e não mais do que o suficiente para a reprovação que se lhe faz, pelo que ele fez e para a prevenção do crime. A Lei nº 8.072/90, ao determinar o cumprimento das penas aplicadas aos agentes dos crimes hediondos em regime fechado, integralmente, foi o mais contundente e vivo exemplo de violação do princípio da individualização da pena. O Supremo Tribunal Federal, todavia, julgando o HC n° 82.959, declarou a inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, afastando, assim, a proibição da progressão do regime de cumprimento da pena para os condenados por crimes hediondos, de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e de terrorismo. Se o juiz ficasse obrigado a fixar determinado regime de cumprimento de pena para certos crimes – mormente o regime fechado –, estaria impossibilitado de individualizar, particularizar, o regime. Se o condenado por tal crime ficasse obrigado a cumprir sua pena integralmente nesse regime, não teria havido, na execução, a individualização. Isso é da mais gritante obviedade, mas só depois de dezesseis anos é que o STF compreendeu isso.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 13 A individualização só é possível e só é entendível se se puder concretizar nas três fases: cominação, aplicação e execução. Deixando de ser possível individualizar numa delas, não terá havido individualização.
Em todas as etapas, o indivíduo
condenado tem o direito à individualização de sua pena.
3.5
PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL OU DA PERSONALIDADE DA PENA
3.5.1 Enunciado Dispõe o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.” A primeira parte desse preceito constou da primeira Constituição Brasileira, a de 1824, no § 20 do art. 179, tendo sido repetida nas de 1891 (art. 72, § 19), de 1934 (art. 113, § 28), de 1946 (art. 141, § 30), e de 1967 (art. 153, § 13). Apenas a Carta de 1937 não o inseriu entre as garantias fundamentais. A Constituição de 1988, como não poderia deixar de ser, reafirmou-o, com uma importante inovação. Ao lado da garantia individual aos sucessores do condenado, de que a pena não lhes será estendida, estabeleceu a garantia civil ao titular do bem jurídico lesado pela conduta criminosa, de executar, contra os sucessores do condenado, a obrigação de reparar o dano. Antes, essa garantia não tinha status constitucional, estabelecido apenas na legislação ordinária.
3.5.2 Significado O princípio é claro: só o condenado pode sofrer a pena criminal, seja ela privativa de liberdade, de multa, de prestação social alternativa, restritiva de direitos, seja qualquer outra que vier a ser cominada. Hoje, pode-se pensar que essa afirmação é óbvia e, de tão indiscutível, nem precisava constar de uma norma, mormente constitucional. Todavia, voltando-se os olhos para a história, é possível verificar que o princípio
14 – Direito Penal – Ney Moura Teles é uma conquista política penosa6. Em verdade, nos tempos primitivos, da vingança privada, a reação ao agressor do bem importante não só era ilimitada, mas também se voltava contra o delinqüente e outros de seu grupo, familiar ou social. E tal comportamento grassou por longos anos, tanto que somente com as idéias iluministas vitoriosas na França, foi insculpido na Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Basta lembrar que, no Brasil, três anos depois, ainda era lavrada e executada sentença penal contra Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, da qual constou: “Na Capitania de Minas alguns Vassallos da dita Senhora, animados do espirito de perfida ambição, formaram um infame plano, para se subtrahirem da sujeição, e obediência devidda á mesma Senhora; pretendendo desmembrar, e separar do Estado aquella Capitania, para formarem uma republica independente, por meio de uma formal rebellião, da qual se erigiram em chefes e cabeças (...). Portanto condemnam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a quem com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em o lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames praticas, e os mais nos sitios nos sitios (sic) de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Camara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e não sendo proprio será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve na memoria a infamia deste abominavel Reu.”7 Como se vê, há pouco mais de 200 anos, ainda se fazia estender aos sucessores do condenado as conseqüências penais de seu comportamento, o que é inadmissível, já que fere a dignidade humana. Ninguém pode sofrer qualquer restrição em sua liberdade, nem qualquer 6
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Estrutura do direito penal. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 72.
7 BRASIL.
Biblioteca Nacional. Custos de devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1938. v. 2, p. 145 ss e 194.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 15 punição, por fato que não praticou, por dano que não causou, por acontecimento para o qual não concorreu.
3.5.3 Reparação do dano A indenização do prejuízo causado pelo condenado é sanção civil, e por isso pode ser estendida aos sucessores e contra eles executada, é óbvio, até o limite do valor do patrimônio transferido. Se o condenado por crime contra o patrimônio vier a morrer logo após a sentença condenatória irrecorrível, o prejuízo sofrido pela vítima poderá ser cobrado dos sucessores do infrator da norma penal, que estarão obrigados a indenizar o credor, observado o limite do patrimônio que tiverem recebido. Se tiver sido transferido valor inferior ao da indenização, o credor só poderá executar o valor da importância transmitida. Se nada tiver sido transferido, nada poderá ser cobrado. Não podia ser diferente, já que, no direito das sucessões, são transmitidos obrigações e direitos, e estes só são partilhados após o cumprimento daquelas. Primeiro, pagam-se as dívidas do autor da herança e, somente após a liquidação de todas as suas obrigações, inclusive as tributárias e decorrentes da própria morte, é que se apura o saldo a partilhar. Como o dever de indenizar se inclui entre as dívidas do morto, só após seu pagamento é que os sucessores receberão a herança. A importância do preceito é considerar também os direitos da vítima do crime, por longos anos esquecida pelo Direito Penal. Em sua tarefa de romper com a vingança privada e, depois, pública, o Direito Penal acabou por olvidar os direitos da vítima, que só às vésperas do terceiro milênio voltou a colocar-se entre os interesses do Direito Penal. A Lei nº 9.099/95, que instituiu no Brasil os juizados especiais criminais, privilegiando a composição e a reparação do dano, constituiu o primeiro grande passo do legislador ordinário, para colocar os direitos da vítima do crime como uma das preocupações do Direito Penal. A pena de prestação pecuniária, instituída pela Lei nº 9.714/98, é outro instituto importante para a proteção do direito da vítima, já que pode constituir-se em antecipação, no âmbito da jurisdição penal, da obtenção da reparação do dano causado. Se para evitar as perseguições, as arbitrariedades, a violência contra o delinqüente, o Direito Penal se posicionou e construiu os direitos do delinqüente, é
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles hora, mais do que nunca, de criar os instrumentos para, igualmente, proteger os direitos do ofendido, daquele que teve seus direitos violados.
3.6
PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DAS PENAS
3.6.1 Enunciado e significado Diz o art. 5º, XLVII, da Carta Magna: “Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.” A Constituição Federal proibiu, expressamente, a adoção dessas cinco espécies de penas, inserindo tal proibição no rol dos direitos e garantias fundamentais do homem, de modo que é impossível sua adoção em nosso direito, conforme manda o art. 60, § 4º, inciso IV: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... IV – os direitos e garantias individuais.” Essas penas foram banidas do ordenamento jurídico, porque não se coadunam com o estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, uma vez que ferem a dignidade humana e violentam profundamente o princípio da humanidade e do interesse social. Não passará muito tempo e no mesmo dispositivo constitucional (art. 5º, XLVII) certamente constará uma alínea a mais: “f) privativas de liberdade”, tempo em que se terá alcançado um novo estágio de civilização. Em verdade, como já se disse anteriormente, a própria pena privativa de liberdade é um mal, não resolve coisa alguma, ao contrário, traz enormes prejuízos para a sociedade. O caminho é outro, a criação de novas modalidades de sanções penais, com a abolição da própria pena de prisão.
3.6.2 Pena de morte Vigente no Brasil até o Código Criminal de 1830, a pena de morte, desde o advento da República, com o Código Penal de 1890, não consta do Direito Penal brasileiro, a não ser como exceção, nos casos de guerra externa declarada, como resposta à agressão estrangeira. A pena de morte é demonstração da mais absoluta irracionalidade que ainda
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 17 preside certos ordenamentos jurídicos. Em verdade, é resquício de pensamento autoritário que imaginava ser possível a criação de um mundo povoado por homens superiores, dotados de características diferenciadas, destinados a dominar os demais seres vivos sobre a face da Terra, neles incluídos os homens das outras raças. Aceitá-la, no terceiro milênio, é de uma incongruência inominável. Trata-se de pena que apenas retribui o mal causado com outro mal. Revela, por isso, um pensamento grotesco, de quem não consegue entender a natureza humana e, especialmente, a daquele que delinqüiu. Ignora que o crime tem causas que não são combatidas, e que o homem que o cometeu é, na maioria das vezes e antes de tudo, um desajustado social, um doente que não recebeu qualquer tratamento, e que não teve as mínimas oportunidades a que tinha direito, para não delinqüir, vítima de uma sociedade desigual, injusta e desumana. Se o homicídio é crime, assim definido no Código Penal, porque se volta contra o interesse público, igualmente a pena de morte não passa de um homicídio, oficializado, o que é mais grave, e atinge, igualmente, o interesse público. O princípio humanitário exige que se busque a recuperação do condenado e não sua eliminação. O objetivo da sociedade há de ser eliminar o crime e não o criminoso. É preciso combater a doença, e não se acaba com ela matando o doente. O preceito exclui da proibição a hipótese de guerra declarada, sob a justificativa de que se trata de situação excepcionalíssima, em que há perigo para a própria soberania do país. Nem assim se pode aceitar a hipótese, especialmente nos dias de hoje em que, mesmo em se tratando de guerras, pugnam todos por tratamento humanitário aos homens dos Estados beligerantes.
3.6.3 Penas perpétuas Igualmente abomináveis, as penas de caráter perpétuo também violam os princípios humanitários e do interesse social, ferem a dignidade humana e não apontam para a recuperação do condenado. Se ele não vislumbrar a perspectiva de voltar ao convívio social, não terá motivo para aprender a respeitar os valores sociais. A pena de prisão perpétua é mais odiosa que a própria pena de morte. Se esta é, como se diz, irreparável, e só por isso hedionda, a manutenção de um homem encarcerado pelo resto de seus dias é de uma crueldade inimaginável.
18 – Direito Penal – Ney Moura Teles É próprio da natureza animal a vida em liberdade. Todos nasceram livres. O irracional privado de liberdade torna-se agressivo ou passivo. Em qualquer das hipóteses sua natureza resta violentada. Com o homem se dá o mesmo, com uma diferença: sua enorme capacidade de adaptação, que dá a aparência de que ele aceita a perda da liberdade, mas que na verdade significa sua redução a uma condição inumana, pior do que a do irracional, posto que, às vezes, nem reage. A proibição constitucional impõe ao legislador ordinário o dever de não cominar penas muito elevadas, pois, se o fizer, poderá, na prática, estabelecer penas de caráter perpétuo. Se vier a ser cominada uma pena de, no máximo, 40 anos de reclusão, o condenado com 20 anos somente sairá do presídio aos 60 anos, ou nem sairá, pois muito provavelmente morrerá antes, especialmente se se levarem em conta as condições de vida em um presídio. Além disso, esse princípio há de ser conjugado com o da humanidade e o do interesse público, pelo que se conclui que, sendo um dos fins da pena a recuperação do delinqüente, não se pode mantê-lo por muito tempo privado de liberdade. De conseqüência, não só são proibidas penas muito longas, mas o princípio exige a cominação de penas não muito elevadas. Desejando recuperá-lo, reinseri-lo no meio social, inclusive para que ele possa ser útil à sociedade, deve-se trabalhar para que o condenado possa viver o máximo possível com dignidade e com respeito aos valores importantes. A pena excessivamente longa, tanto quanto a perpétua, desestimula o condenado, quando não gera nele verdadeira revolta, capaz de transformá-lo não no recuperado que se almeja, mas no marginalizado indesejado. No Brasil, o limite máximo de cominação é de 30 anos, o que já é um tempo muito longo, mormente se se considerar que a vida média do brasileiro pouco passa dos 70 anos. Se o homem começar a cumprir sua pena aos 25 anos, pouco tempo de vida útil lhe restará em liberdade. Em obediência ao preceito, o art. 75 do Código Penal estabelece que o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade é, igualmente, de 30 anos e que o condenado a várias penas, cuja soma superar aquele limite, não cumprirá senão os 30 anos, a não ser por fato posterior ao início da execução da pena (§§ 1º e 2º). Lamentavelmente, nos últimos anos, o legislador brasileiro vem, influenciado por manipuladores de opinião, marchando para exasperar penas de delitos de maior gravidade, com o objetivo de diminuir sua incidência. Foi assim com a Lei dos Crimes
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 19 Hediondos, e o que se colheu foi o aumento dessa criminalidade. É preciso caminhar exatamente no sentido contrário, o da diminuição do grau máximo das penas privativas de liberdade e o de sua limitação aos crimes de maior gravidade. Infelizmente, ainda é necessária a pena privativa de liberdade, que, por isso, há de ser restringida apenas aos casos em que for absolutamente indispensável. Como diz CERNICCHIARO, “repensar as penas excessivamente elevadas é pensar o homem”8.
3.6.4 Trabalhos forçados A proibição da pena de trabalhos forçados harmoniza-se com as conquistas obtidas pela humanidade contra o arbítrio e a prepotência. Os trabalhos forçados nas galés, de triste memória na história do Direito Penal, afrontam os princípios da humanidade e de respeito à dignidade do homem. Mormente quando se busca na pena a idéia de ressocialização, torna-se inadmissível a idéia de trabalhos forçados como pena criminal. Nem se coadunaria com o fim do regime escravagista, de mais de um século. Outra coisa, permitida e que deve ser incentivada, é a atividade laborativa nos presídios, cuja finalidade é a educação e, também, a produção, devendo, como é óbvio, ser remunerado o trabalho do preso. Não se confunde, igualmente, com a prestação de serviços à comunidade, que é uma modalidade de pena alternativa da mais alta importância e que é objeto de estudo no Capítulo 15 deste manual.
3.6.5 Banimento O banimento existiu no Brasil durante o Império, ao lado do degredo e do desterro, e foi ressuscitado pela ditadura militar, como sanção política, mas, felizmente, vigorou por pouco tempo e foi expurgado do ordenamento jurídico. Banimento era a privação, para sempre, dos direitos de cidadania e proibição perpétua de habitar o território da nação. Degredo era a imposição ao condenado de residência em determinado lugar, que não o da moradia da vítima, dele não podendo sair, por um tempo determinado. Desterro era a proibição do condenado de residir ou mesmo ir ao lugar do crime, ao de sua principal residência e ao da moradia da vítima, 8
Op. cit. p. 114.
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles por tempo determinado. O banimento era perpétuo no Império, mas o Código Penal de 1890, já no período Republicano, o admitiu por tempo determinado; todavia, a Constituição de 1891 o aboliu, definitivamente. No regime de ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, o banimento foi instituído em 1968, não como pena criminal, mas como instrumento de ação do Poder Executivo, que o aplicou a seus adversários políticos. Naquela época de trevas, tudo se fez.
3.6.6 Penas cruéis Igualmente proibidas as penas cruéis, porque “o Estado não pode, na execução das penas, infligir padecimentos físicos ou morais ao condenado. E mais. Vedado até cominar penas que, em si mesmas, conduzam a essa situação”9. É de todo óbvio. Nenhuma pena pode voltar-se contra a dignidade do ser humano. A inflição de sofrimento físico ou moral, a tortura, física ou psicológica, a privação das condições mínimas de existência, a desmoralização, a marcação a fogo, a amputação de membros, os maus-tratos, todos esses meios conhecidos e, infelizmente, utilizados no país há pouco tempo são terminantemente proibidos. A pena privativa de liberdade, por si só, já constitui enorme sofrimento para o homem, de modo que haverá de ser executada com todas as cautelas necessárias a fim de que o condenado sofra apenas os efeitos da perda da liberdade. Nada além. Dessa forma, há de se verificar que, na quase totalidade dos casos, as penas de prisão no Brasil estão sendo cumpridas de modo cruel. São inúmeras as notícias de prisões superlotadas, onde 20 ou mais homens convivem em ambientes em que não poderiam ficar nem quatro. É tratamento desumano e degradante, verdadeira crueldade, violador da Carta Constitucional. Já de há muito que existem regras para o tratamento aos presos, detalhadas adiante, e não se pode admitir a continuidade do descuido do Estado brasileiro, que não se preocupa com dotar o sistema de estabelecimentos adequados quantitativa e qualitativamente.
9
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Op. cit. p. 123.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 21
3.7
PRINCÍPIO DO RESPEITO AO PRESO
3.7.1 Enunciado Diz o art. 5º, XLIX, CF: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” e o inciso L: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. O preceito se especifica no art. 38 do Código Penal: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” Também a Lei de Execução Penal (LEP) contém dispositivo semelhante: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” (art. 40). O princípio abrange não apenas os condenados, mas também todos aqueles que estiverem presos, seja a prisão civil ou penal, processual ou definitiva.
3.7.2 Significado O homem, apesar de condenado ou apenas preso, não deixa de ser humano, e continua com todos os seus direitos, com exceção apenas dos incompatíveis com a perda da liberdade. De conseqüência, deve ser protegido, enquanto ser humano e cidadão. Principalmente, porque é um ser destituído de liberdade, incapaz de, por isso, defender-se em sua plenitude. O homem encarcerado, algemado, não é capaz de enfrentar a maior parte das dificuldades e dos percalços da vida em prisão. O art. 41 da Lei nº 7.210 enumera direitos do preso: alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer espécie de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de
22 – Direito Penal – Ney Moura Teles correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. O art. 88 da LEP contém uma norma da mais alta importância: “O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).” Lamentavelmente, a mesma lei, no art. 92, permite o alojamento do condenado em compartimento coletivo, que atenda aos requisitos da alínea a do art. 88. A realidade brasileira é outra. Não faz muito tempo o Brasil assistiu, pela televisão, à notícia de que presos de Belo Horizonte, numa cela superlotada, chegaram ao ponto de celebrar um pacto de morte, mediante sorteio, a fim de obter mais espaço para os sobreviventes e, com isso, chamar a atenção das autoridades responsáveis. Não se esqueça ademais das mortes por asfixia e intoxicação por fumaça noutra cela, da cidade de São Paulo. Massacres como os do Carandiru continuam na memória de todos, quando dezenas de homens foram fuzilados sem a menor possibilidade de defesa. Na verdade, o que se pode afirmar é que a quase totalidade dos presos brasileiros está cumprindo penas em total desrespeito à Constituição e à Lei de Execução Penal. Penas cruéis, com desrespeito à integridade física e moral dos condenados, são absolutamente inconstitucionais. Infelizmente, é essa a realidade que o operador do Direito não pode ignorar. O mais lamentável é que a situação se perpetua, integra o cotidiano, chega a parecer normal, passando a não mais indignar. De tanto visitar os presídios, as cadeias dos distritos policiais, o operador do Direito corre o risco de ir-se acostumando com todas essas mazelas, e de se esquecer de combatê-las apropriadamente. Juízes, promotores e advogados, especialmente, não podem, em nenhum momento, descurar de seus deveres éticos, do senso de justiça e de humanidade, e devem, diante de quadros como aqueles, adotar as medidas indispensáveis à preservação da ordem constitucional e da dignidade do homem, fim do Direito.
Princípios Constitucionais do Direito Penal - 23
3.8
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
3.8.1 Enunciado Está no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Esse princípio, também chamado do estado de inocência ou da nãoculpabilidade, aparece pela primeira vez numa Constituição Brasileira, e significa uma das maiores conquistas do cidadão brasileiro às vésperas do terceiro milênio, como coroamento de uma série de vitórias do homem contra o arbítrio.
3.8.2 Significado Já se falou que a pena só pode ser aplicada pelo julgador, que é o funcionário do Estado encarregado de dizer o Direito, distribuindo a justiça. Para concluir, se alguém deve sofrer a punição, o juiz adotará uma série de medidas, realizará um conjunto de atos, dirigirá várias atividades destinadas a descobrir a verdade: o homem é ou não culpado pelo que fez? Se for culpado, então sofrerá a pena. A descoberta da verdade dá-se no âmbito do processo, o conjunto daqueles atos que culmina com a prolação de uma decisão do juiz, chamada sentença. Essa sentença pode ser atacada pelo condenado, e será submetida a instâncias superiores do Poder Judiciário, que poderão modificá-la ou não. Existe um conjunto de normas jurídicas que tratam do processo penal, da busca da verdade real, que devem ser obedecidas por todos os operadores do Direito Penal. A certa altura, aquela decisão acerca do crime, sobre ser o homem culpado, torna-se definitiva, já não pode ser alterada dentro do processo. Diz-se, então, que a sentença penal condenatória transitou em julgado. Antes disso, enquanto está sendo processado, mesmo que estiver preso provisoriamente, ele não poderá ser considerado culpado. Talvez porque esteja inscrito em nossa Carta Magna pela vez primeira, o princípio não tem sido bem compreendido, inclusive por instâncias superiores do Judiciário brasileiro. O preceito, no entanto, surgiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no art. 9º, e já estava inscrito na Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1948, e não deveria ensejar tanta incompreensão de nossos tribunais.
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles “O art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, em virtude de uma redação não muito feliz, permitiu no começo da sua vigência certa tergiversação interpretativa. Agora, no entanto, como bem destacou MAGALHÃES GOMES FILHO (1994, p. 30), com amparo no art. 5º, § 2º da CF, tornou-se indiscutível no nosso ordenamento jurídico a extensão da presunção de inocência ‘desde que o Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio de 1992, aprovou o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Governo brasileiro, em 25 de setembro de 1992, depositou a Carta de Adesão a essa Convenção, determinando-se seu integral cumprimento pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, publicado no Diário Oficial de 09-11-92, p. 15.562 e ss’. Referido Pacto de San Jose, que também foi publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais (do IBCCrim, nº 1, jan./mar. 1993, p. 253 e ss.), em seu art. 8º, nº 1, consagrou o citado princípio, dizendo: ‘Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.’10 O preceito projeta-se principalmente no campo do direito processual penal – por, entre outras conseqüências, impor o ônus da prova legal da ocorrência do fato e da culpabilidade do acusado ao acusador e permitir ao réu o direito ao silêncio, sem que possa o julgador interpretá-lo em seu desfavor – mas tem também importante reflexo no Direito Penal: nenhuma norma penal poderá estabelecer a responsabilidade com base em fatos presumidos, porque ninguém pode ser punido por presunções, mas apenas por fatos reais.
10 GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 3637.