Voa nas asas de uma gaivota Esta é uma singular noite de Verão. No céu negro e imenso a lua sorri majestosa e no caminho de terra que faz o percurso longo e serpenteante rente ao mar, ouve-se os grilos que cantam na erva descuidada e um cagarro solta o seu grito alto. Ao longe no horizonte marítimo, pequeninas luzes marcam a presença dos barcos de pesca iluminados pelo largo luar que no calmo oceano vai desenhando brilhantes caminhos de sonhos e poesias. E o viajante que parou para descansar do seu périplo nocturno, senta-se na rocha negra junto ao mar, mergulha os pés na água fria e divaga para si: gostava de estar ali, naquela azáfama e participar da simbiose entre o homem e o mar, acompanhar os movimentos dos braços fortes de veias salientes, queimados pelo sol impiedoso em dias longos, braços que lançam, em gestos vigorosos e largos, grandes redes que depois serão puxadas já preenchidas com peixes vermelhos, azuis e prateados que brilham ao luar e acabam a saltar no chão da embarcação. Nestes pensamentos sente-se feliz e livre. Fixa a imagem e tira uma fotografia que irá ampliar, escolhida entre as muitas que registou nesse dia. Então respira fundo absorvendo o ar salgado e voa nas asas de uma garça. De uma casa de pedra e cal com janelas de guilhotina abertas e porta escancarada, pintadas de vermelho fresco, sai o som quente e ritmado de música do Brasil que se espalha baixo e suavemente até ao exterior da habitação, envolvendo todo o ambiente. É de Caetano Veloso a voz e a melodia. Depois, talvez se ouvirá Chico Buarque e Bethânia cujas vozes embalarão a noite. Na esplanada da casa, debaixo dos ramos largos de uma amoreira, um pequeno grupo de pessoas sentadas em cadeiras de palhinha e despojadas das armaduras da rotina diária, conversam despreocupadamente baixo para que não se percam os mágicos sons desta noite de verão. E a rua é a descer em direcção ao mar e ao basalto negro das rochas que desenham a costa que a espuma branca abraça voluntariosa. A noite está quente mas não abafada, uma suave brisa refresca os rostos e os braços dourados pelo sol do estio. De vez em quando alguém solta um riso aberto e as bebidas são frescas e sabem a limão. Um cão deitado na soleira da porta suspira prazenteiro e o ar nocturno traz o perfume doce da uva branca que será colhida em Setembro. O concerto de Caetano ao vivo faz a ligação com o mundo exterior, até agora necessariamente distante: no cd está registada a voz da multidão eufórica que acompanha, em uníssono, o refrão e o violão do baiano “... cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...” e alguém vê as palmeiras, as praias sem fim de areia fina e branca e sente a Gabriela Cravo e Canela que no seu bambolear natural se aproxima dele e lhe dá um beijo... sonhos inconfessáveis numa morna noite de verão. E conversa-se, na esplanada da casa de pedra e cal, sobre viagens a ilhas de perto e a lugares distantes, percursos de vida sem se nomear os curriculum vitae que hoje não contam para nada, filmes vistos no Inverno, leituras e livros, poemas, pinturas e retratos, encontros e desencontros, ausências e presenças, sobre a insustentável leveza do ser e o peso insuportável da espera... Recorda-se o já distante tempo de estudantes, as coloridas noites de festas e as madrugadas de conversas, risos e abraços, confissões de gostos e desgostos, amores e desamores, os bons tempos em que havia cumplicidades e o futuro vinha carregado com uma esperança anunciada. Estas pessoas estão na casa dos trinta anos e gostam de 1
recordar o passado que os une e as vivências que os ajudaram a crescer e falam da amizade. Este sentimento há quem diga que é um tesouro que podemos encontrar, a tal pedra preciosa que se dá e se recebe, sem porquês mas com muita liberdade. Outro cagarro sobrevoa o lugar e grita. São onze horas da noite, aquela hora quase encantada porque ainda não bateu a meia-noite e esta convida a ser longa porque o reencontro aconteceu. Mas entre a terra e o céu há uma dimensão imensa e os astros que brilham lá no alto nunca nos deixam sós e tristes, convidam à contemplação do cosmos e a pensar nos porquês da vida, de onde vimos, para onde vamos e na importância de estarmos cá. O que perdemos e quem perdemos? E confortavelmente se exclama: “nada se perde e tudo se transforma!”. A casa fica numa ilha. Espaço geográfico onde à noite o céu é inigualavelmente escuro e as estrelas brilham mais, o cheiro da terra é intenso e húmido e o vento traz o perfume do mar profundo que é um rei poderoso. Num lugar assim ainda se conversa devagar ao cair da tarde acompanhando o voo baixo de uma gaivota. Ao longe, outro cagarro grita. O viajante levanta-se da pedra onde se sentou por instantes para contemplar a paisagem simples mas poderosa. Regressou do seu voo de garça e tem de se fazer ao caminho... Agarra numa pequenina pedra negra molhada, sente-a na palma da mão e arruma-a na bolsa junto às outras que amealhou na viagem. Quando estiver longe poderá apertá-la junto ao peito quando as saudades apertarem. De manhã bem cedo irá de barco até à ilha mais próxima para descobrir mais encanto e riqueza. As hortênsias estão floridas e belíssimas nesta extensa e clara noite de Agosto. Poderosas no seu esplendor e singeleza. Abertas. Vivas. Para quando este reencontro? Pode ser apenas no imaginário de cada um de nós porque os bons momentos vividos pela alma não se perdem nunca. Ficam bem guardados naquele quarto do coração mobilado com a amizade. A lua continua alta e os barcos regressam a terra, carregados de peixes, luar, cansaço e alegria. Elizabete Sales 30/7/2002
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