Violencia Contra Mulher Pequena Hhistoria Da Subordinacao.pdf

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Violência contra a Mulher Moysés Rechtman1 Luciana Phebo2 Pequena história da subordinação da mulher: as raízes da violência de Gênero O primeiro alicerce da construção da ideologia da superioridade do homem e conseqüente subordinação da mulher tem pelo menos 2500 anos. Na Alexandria romanizada no século I D.C, Filon, filósofo helenista, lançou as raízes ideológicas para a subordinação das mulheres no mundo ocidental. Ele uniu a filosofia de Platão, que apontava a mulher como tendo alma inferior e menos racionalidade, ao dogma teológico hebraico, que mostra a mulher como insensata e causadora de todo o mal, além de ter sido criada a partir do homem (Berman, 1997). A mulher com alma sensual e carnal, cheia de vaidade e cobiça era inferior ao homem racional e espiritual, constitucionalmente superior. O modelo cultural na Grécia clássica é sintetizado por Apolo, divindade do céu, Deus do Sol, da Luz e da Razão (Wilshire, 1997). A Razão, algo de maior valor, moderada, controlada, objetiva, era associada à Verdade e ao Conhecimento e considerada como característica masculina. O oposto do Conhecimento era a Ignorância (no sentido de desconhecido), um estado inferior a ser evitado, considerada como característica feminina (Wilshire, 1997).

As almas superiores da

classe dominante tinham a capacidade de se dirigirem ao bom, belo e racional. Os escravos, os estrangeiros e as mulheres seriam inferiores desde o nascimento e não tinham muita racionalidade em sua alma (Berman, 1997). Aristóteles escreveu que o Conhecimento Racional era a mais alta conquista humana e assim, os homens, mais ativos seriam superiores e mais divinos que as mulheres descritas como monstros desviados do tipo genérico humano, emocionais, subjetivas, enfim, uma espécie inferior (Wilshire, 1997). O mundo de Aristóteles é caracterizado por dualismos hierarquizados e polarizados, com clara dominação de um

1

Médico Ginecologista, Coordenador do Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência, SOS Mulher, Hospital Pedro II, Rio de Janeiro, RJ 2 Médica Sanitarista, Assessora de Prevenção de Acidentes e Violência da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro

1

lado sobre o outro. Assim, a Alma tem domínio sobre o Corpo; a Razão sobre a Emoção; o Masculino sobre o Feminino. Os

dualismos

hierárquicos

com

privilégio

para a Mente (masculina)

e

preconceito contra o Corpo e a Matéria (femininas) estão na base do pensamento e da cultura ocidentais. As imagens positivas e negativas que acompanham os conceitos de masculinos e femininos acumulam muitos milênios, tendo sido culturalmente apreendidos. Representam alicerces, tijolos e cimento de uma sólida construção de papéis

de

gênero

estabelecidos

e

baseados

nos

princípios

de

autoridade

e

superioridade do homem em relação à mulher. A subordinação da mulher, colocada como ser inferior, segundo a teoria dos dualismos hierarquizados é a raiz da violência de gênero, na medida em que buscamse desconstruir os papéis estabelecidos, encontrando resistência dos que querem manter o “status quo”. Esta desconstrução de papéis tem sido tentada, sem grande sucesso ainda, por homens e mulheres que acreditam na igualdade de gênero. Chama a atenção o fato de que “masculinidade” e “feminilidade” , muitas vezes nada tem a ver com o fato de ser um homem ou uma mulher. O mais importante e questão central é o comportamento social. Como

características

atribuídas

ao

gênero

masculino

são

citados

:

conhecimento, mente, razão, controle, objetividade, verdade literal, luz, escrita, formas fixas, imutáveis e duras, isolamento, positivo e bom, esfera pública e o ato de ver. Seriam femininas: ignorância, corpo, emoção, verdade poética, metáfora, escuridão, tradição oral, coisas efêmeras, cíclicas, interligadas e compartilhadas, maciez, negativo e mau, esfera privada e o ato de ouvir (Wilshire, 1997). A busca pelo equilíbrio entre ações e características masculinas e femininas parece ser uma das chaves para a obtenção da igualdade de gênero. A reconstrução dos papéis de gênero, é um objetivo a ser alcançado. Conceitos O conceito de gênero é de grande complexidade e tem ligação

direta com o

movimento feminista contemporâneo. Ele está implicado lingüística e politicamente nas

lutas

feministas

e

sua

incorporação

tem

fundamental

importância

para

caracterização do fenômeno da violência contra a mulher. Nestes casos, a violência ocorre pelo fato da vítima ser mulher.

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Para Scott (Castro, 1992) gênero apontaria a percepção das diferenças entre os sexos, sendo importante demarcador de poder. Para Castro (1992) gênero é a construção sociológica, política e cultural do termo sexo. Heilborn (Castro,1992) conceitua gênero como a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica de seres humanos. Já Saffioti (Castro, 1992), afirma que gênero é a maneira de existir do corpo como campo de possibilidades

culturais

recebidas e reinterpretadas: gênero se constrói - expressa através de relações sociais de poder, em processo infinito de modelagem - conquista de seres humanos. Inferese que o sexo anatômico e biológico sugere, mas o que determina o comportamento é o lado social e cultural. As pessoas tornam-se gênero embora nasçam biologicamente como homens ou mulheres. O sexo seria socialmente modelado. A biologia geralmente determina o que passa a ser realizado socialmente a partir do nascimento. As características tidas como masculinas ou femininas são ensinadas e colocadas como verdadeiras, no correr do tempo. Assim, por exemplo o menino “não brinca de boneca” e a menina “não joga bola”. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. (Beavoir-1970) A violência de gênero é um padrão específico de violência fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero feminino, e amplia-se e reatualiza-se na proporção direta em que o poder masculino é ameaçado (Saffiote e Almeida – 1995). A expressão “Violência contra a mulher” se refere a qualquer ato de violência que tenha por base o gênero, e que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica. Coerção ou privação arbitrária da liberdade quer se reproduzam na vida pública ou privada, podem ocorrer como formas de violência. (IV Conferência Mundial Sobre a Mulher – Beijing, China 1996). Conceitualmente, a violência física acontece quando há uma ação destinada a causar dano físico à outra pessoa.

A violência psicológica é toda ação ou omissão

destinada a produzir dano psicológico ou sofrimento moral a outra pessoa como sentimentos de ansiedade, insegurança, frustração, medo, humilhação e perda da auto-estima. A violência sexual é todo ato no qual uma pessoa que está em posição de poder obriga outra a realizar atos sexuais contra sua vontade, por meio de chantagem ou força física (Linhares, 1999). A violência contra a mulher que ocorre no âmbito da família, caracterizando-se violência doméstica, é perpetrada por parceiro íntimo, pais, padrastos, conviventes e

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outros parentes. A violência de gênero ocorre também no âmbito da comunidade e do trabalho. O medo e a vergonha por estar sendo vítima são constrangimentos permanente que limitam o acesso da mulher às suas atividades e aos possíveis recursos de proteção – tornando-se obstáculo à obtenção da igualdade de gêneros.

A violação

dos direitos da mulher muitas vezes, não percebida pela própria como violência, deixa de ser denunciada e portanto detectada. Mesmo quando tal violência é denunciada nem sempre se protege as vítimas ou se castiga os agressores. Políticas públicas e violência contra a mulher no Brasil Entende-se por políticas públicas as intenções políticas visando a consecução de objetivos previamente definidos pelo Estado. (Barsted - 1994). As políticas públicas buscam reduzir ou superar desequilíbrios socais, estabelecendo a ordem justa, pautada pelo ideal de cidadania (Linhares, 1994). Em relação à violência contra a mulher é impossível desvincular as políticas públicas do movimento feminista. Até os anos 80, era quase que inexistente qualquer tipo de política pública relacionada ao assunto em discussão. Ao longo da década de 80, com a descompressão política, as mulheres começaram a se organizar em torno de propostas específicas, entre as quais as relativas à luta contra a violência física, sexual e psicológica. As feministas trabalharam em dois viézes: mudanças legislativas e criação de Serviços para atendimento às mulheres vítimas da violência de gênero. Um ponto de partida poderia ser considerado o slogan “Quem ama não mata”. Na virada da década de 70, uma série de assassinatos cometidos contra mulheres por seus parceiros íntimos chamou a atenção da imprensa, principalmente porque vítimas e assassinos eram pessoas de classe média alta. O assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, ocorrido no Rio de Janeiro em 1980 foi um marco. A mídia documentou fartamente o processo judicial que deu visibilidade à questão da violência contra a mulher. Ao mesmo tempo, começaram a surgir grupos de atendimento especializado à mulher vítima de violência em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que incentivaram a reação feminina . A mulher passou a contar com recursos para quebrar a cultutra do silêncio que cerca os atos de violência. Tal silêncio era causado, principalmente, por falta de informação, medo, vergonha ou complacência das autoridades.

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Nos anos 80 e 90 avanços significativos foram conseguidos como a criação das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMS), as casas abrigos, os centros integrados de atenção, os Serviços específicos para mulheres no IML (para exames de corpo delito) e a criação de Conselhos Estaduais de Direitos da Mulher, em alguns estados. Quanto a mudanças legislativas, o movimento feminista enfocou o Código Penal (CP), elaborado em 1940 e em vigor até hoje. O CP prevê os crimes mais comumente praticados contra a mulher. Alguns artigos merecem adequações à atualidade, pois são considerados moralistas e discriminatórios. Os artigos referentes ao estupro (art. 213) e ao atentado violento ao pudor (art. 214) são passíveis desta crítica. Para que se configure o crime de estupro, é necessário que ocorra a conjunção carnal entre o homem e a mulher, através da penetração do órgão masculino no órgão feminino . Se a conjunção se der por penetração anal ou oral, o crime é classificado como atentado violento ao pudor. Apesar dos dois crimes serem igualmente odiosos e aviltantes, as penalidades são diferentes. A penalidade do estupro prevê reclusão de três a oito anos, enquanto a do atentado violento ao pudor prevê de dois a sete anos. Um outro fato referente a estes dois crimes é que ambos estão classificados sob a rubrica de crimes contra os costumes, quando deveriam ser considerados crimes contra a pessoa, já que são formas qualificadas como lesão corporal. O agravo maior desta inadequação classificatória é que os crimes contra os costumes somente se procede mediante queixa, ou seja, mesmo que autoridade pública esteja ciente do crime, não se pode se mobilizar em busca do agressor, a não ser que a vítima dê queixa da violência ocorrida. A obrigatoriedade da ação privada expõe a mulher a novos atos de violência – seja por parte das autoridades despreparadas a atender essa população, seja por parte do próprio agressor, que muitas vezes a ameaça a não denunciá-lo– e transforma-se em um poderoso incentivo ao crime (Linhares, 1994). Uma outra discriminação do CP é a manutenção do adjetivo “honesta” como imprescindível para classificar a mulher como vítima, o que preconceituosamente, nunca se aplica ao homem. Esse qualificativo, por exemplo nos casos de rapto (art. 219) pode deixar sem proteção legal as prostitutas Uma outra evidência de moralismo está contida no art. 107 do CP. Trata-se da extinção da punibilidade se o agressor for o marido da vítima, pois entende-se que nos crimes contra os costumes, o que o agressor danifica não é o corpo físico e sim a honra da vítima. Já que o casamento “preserva”a honra da vítima, não há argumento para processar o agressor.

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Um outro artigo desatualizado do Código Penal é aquele que caracteriza o adultério como crime. Este artigo, na prática só utilizado contra as mulheres, é mais um exemplo da desigualdade de gênero em nossa sociedade. Uma conquista do movimento feminista foi ter conseguido introduzir o repúdio à violência

doméstica

na

Constituição

Federal

promulgada

em

1988.

Algumas

Constituições Estaduais absorveram o dispositivo já contido no Código Penal em seu artigo 61, que prevê o agravamento da pena nos casos do agressor ser pessoa da família do agredido ou que com este mantenha relações de intimidade

Apesar do

avanço legislativo, ainda hoje em dia, o que se vê nos chamados crimes passionais, é a utilização freqüente do argumento de “legítima defesa da honra”. Uma outra conquista foi que a partir de 1990, para os crimes hediondos, incluindo entre eles, o estupro e o atentado violento ao pudor, o acusado não tem direito a anistia, graça ou indulto, fiança ou liberdade provisória e que a pena em casos de condenação é cumprida integralmente em regime fechado. A luta contra a violência de gênero tem tido ao longo do tempo avanços e retrocessos, a nível institucional e não governamental. Vários Serviços foram abertos e fechados, as leis ainda são retrógradas, não tendo sido conseguidas as mudanças substanciais pretendidas, há dificuldades na criação de casas de acolhida, os centros de referência ainda são poucos pela demanda existente. Inegavelmente porém, há maior visibilidade da violência de gênero, e uma tentativa mais insistente de integração entre as várias esferas de poder e de governo, fundamental para a formação de uma rede de atendimento que poderá tornar viável a meta de denunciar e até eliminar a violência contra a mulher. Após duas décadas do despertar do feminismo e do início da luta específica contra a violência de gênero, simbolizada pela criação do slogan”Quem ama não mata” temos que reconhecer que

a violência doméstica e de gênero, incluindo os

estupros permanece em grau acentuado e muitas vezes coberta em silêncio e omissão. Os Serviços de assistência às vítimas de violência, embora em maior número, localizam-se,

maciçamente,

nos

grandes

centros.



pouco

entrosamento

e

integração mesmo nos grandes centros entre os vários órgãos que se incubem de lidar com a temática. Só uma integração entre as várias instâncias e áreas de poder com atuação conjunta de Município, Estado e União, Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e áreas de Saúde, Educação, Justiça, Segurança, Trabalho e Promoção Social pode fazer

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com que haja criação de uma política adequada ao tratamento, prevenção e até eliminação da violência contra a mulher nas suas mais variadas dimensões. O ciclo/espiral da violência Após um período variável de “lua de mel” quando o casal se entende às mil maravilhas, por alguma circunstância (ciúmes, sentimento de posse, associados ou não ao desemprego, alcoolismo, por exemplo) começa a haver tensão. Qualquer situação que desagrade ao homem é motivo de reprimendas e após espancamentos, sempre num crescendo em relação ao episódio anterior. Depois do incidente inicial, costuma haver reconciliação com pedidos de desculpas até dramáticas. O incidente é “esquecido” e por algum tempo, volta o carinho do homem em relação à mulher. A tensão, quando volta a acontecer, leva a novas agressões. As agressões acontecem cada vez mais fortes e mais amiúde, configurando o que chamamos espiral da violência: um ciclo em que xingamentos e espancamentos acontecem num crescendo podendo chegar até a assassinatos. Em relacionamentos abusivos o ciclo pode acontecer centenas de vezes. Cada ciclo termina com um diferente grau de violência, geralmente maior que o anterior sendo cada vez menor o intervalo entre os ciclos. O intervalo entre os ciclos pode variar de um ano ou mais até poucas horas para ser completado.

LUA DE MEL

RECONCILIAÇÃO

CADA VEZ É MENOR O INTERVALO ENTRE OS CICLOS TENSÃO

EPISÓDIO VIOLENTO ( cada vez com maior intensidade ) (Desenho inspirado na Internet – http//www.domesticviolence.org//cycle htm).

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Nem

todos

os

casos

de

violência

doméstica

se

desenvolvem

como

ciclos/espirais. Às vezes, à medida que o tempo passa as fases de reconciliação e luas de mel desaparecem. Questões estruturais e violência de gênero As mulheres estão sujeitas à violência em maior ou menor grau em todas as sociedades, sem distinção de nível de educação ou renda, classe social, etnia ou raça. Embora isso aconteça, esses fatores podem agravar as relações de poder existentes, levando a violência às mulheres menos favorecidas. A fome, o desemprego e a miséria ao piorarem as condições de vida, fazem emergir a violência de forma mais acentuada. A violência contra a mulher é agravada por pressões sociais para que a denúncia não seja feita ou pela vergonha ou medo de denunciar . A falta de acesso à informação jurídica, à assistência e à proteção também são impedimento à denúncia. A mulher de maiores recursos, sejam eles financeiros, de informação ou de relacionamento pessoal conta com uma rede social ampla e fortalecida que a protege do ciclo vicioso de violência. Por outro lado, a violência contra a mulher que conta com maiores recursos particulares (muitos dos quais sem compromisso de divulgar seus dados) é mais invisível em relação a violência sofrida por aquela que só conta com recursos públicos. Impunidade A impunidade agrava

os casos, principalmente de violência doméstica. A

desqualificação do delito de tentativa de homicídio para lesão corporal dolosa ou desta para ameaça, sempre com penas mais suaves a serem cumpridas, é fator frequente e perpetuante do ciclo violento A lentidão da justiça e o tratamento discriminatório sofrido pelas mulheres vítimas de violência nas delegacias distritais ou até mesmo nas DEAM também são motivos para perpetuação da violência. A lei 9.099/95 constitui um verdadeiro avanço no mundo jurídico, na medida que

desafoga

o

judiciário,

introduzindo

um

modelo

consensual

que

busca

prioritariamente a conciliação ou acordo. Por outro lado, nos casos da violência doméstica, essa lei tem sido vista como retrocesso porque os acordos são constantes,

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o agressor mantém a agressão e a questão não é solucionada adequadamente. Ficando no campo do acordo, o agressor fica com folha corrida limpa, muitas vezes tendo como penalidade pagar uma cesta básica - adquirida muitas vezes com o orçamento da própria família, e portanto penalizando duplamente a mulher. A lei traz uma polêmica, de todo modo, existem aspectos positivos e negativos que devem ser aprimorados para permitir que o avanço legal alcançado não seja utilizado como mais um componente à impunidade que cerca a violência. Muitas famílias permanecem em silêncio temerosas do julgamento público e resistentes a de aderir à via jurídico – policial preconizada para resolução desses conflitos. O silêncio e a omissão são cúmplices da impunidade e da violência. O tratamento da mulher vítima de violência doméstica Existe um tripé de objetivos a ser alcançado no atendimento uma mulher agredida: -

A – sustar a agressão.

-

B – tratar a vítima.

-

C – cuidar do agressor.

As mulheres vítimas de violência quando procuram ajuda, geralmente chegam com a auto-estima muito baixa pela humilhação sofrida. A tentativa de resgatar a auto-estima é feita por técnicas de empoderamento, que podem ser através de atendimento individual ou em grupo. Procura-se que a mulher agredida/vitimizada, recupere a sua auto-estima para quebrar o ciclo de violência e os pactos conjugal e doméstico a que está submetida. Estimula-se

o fortalecimento interno com

reestruturação da auto-estima. Ao lado disso, procura-se criar condições para geração de renda nos casos das mulheres que não têm remuneração. O

objetivo do

tratamento é ajudar a mulher a sair do ciclo/espiral de violência a que está submetida, através da ruptura da relação ou pela reconstrução da mesma em outros moldes. Ressalta-se o cuidado ao tratamento de mulheres vítimas da violência de gênero. O momento de ruptura da relação é considerado como de maior risco para o agravamento da violência. É o momento da perda irreversível do controle. (Almeida 1998)

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Muitas vezes nos casos de violência doméstica contra a mulher é necessária a saída da vítima do local da agressão sob pena de estar correndo risco de vida. Sabese que alberguar institucionalmente é um último recurso, pois com isso tira-se a mulher do seu meio, o que é uma forma de penalizá-la. Porém existem circunstâncias em que não há outra solução. As casas de acolhida abriga , em caráter sigiloso e provisório (aproximadamente por 4 meses) a mulher e seus filhos. O papel das casas de acolhida é o de em primeiro lugar salvar vidas. Os pricipais objetivos de tratamento, em geral, são: interromper o ciclo de violência, garantindo condições de proteção à mulher e seus filhos, propiciar orientação jurídica, social e psicológica, possibilitar reflexões críticas sobre as questões de gênero e cidadania, possibilitar o atendimento em saúde às mulheres e aos seus filhos, e garantir aos filhos um espaço sócio-educativo, com a manutenção ou inserção à vida escolar. . Existem ainda pouquíssimas casas de acolhida no Brasil. Há projetos para ampliá-las, porém dependem de liberação de verbas e vontade política. A violência sexual A violência sexual merece ser colocada em um tópico à parte. Ela atinge geralmente meninas, adolescentes, mulheres jovens e ocorre no espaço doméstico. A existência do estupro é a mais cruel manifestação da violência contra a mulher, que é tratada como uma coisa inanimada. Segundo o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (1989), considerá-lo animalesco seria uma séria crítica aos animais. A maioria dos casos é fruto de ação de parentes, conhecidos ou do próprio parceiro íntimo, ao contrário do que pensa o imaginário popular ( Warshaw, 1996). O estupro domiciliar, praticado pelo parceiro íntimo ou parente consangüíneo, é pouquíssimo denunciado devido ao medo e vergonha da vítima. Em relação aos estupros não domiciliares, uma preocupação: no Rio de Janeiro, menos de 10% das mulheres vítimas de estupros que procuram as delegacias chegam aos Serviços de Saúde especializados no atendimento às mulheres vítimas de violência.

Talvez essas mulheres estejam buscando assistência nos Hospitais de

Emergência, o que pelo menos garantiria o tratamento inicial, porém o seu acompanhamento psicológico, social e até mesmo a profilaxia de doenças, que exige visitas periódicas ao Serviço,

podem não estar ocorrendo.

O estupro deve ser

compreendido como problema de saúde pública. É fundamental que seja feita ampla

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divulgação à população e aos profissionais de saúde sobre o encaminhamento das vítimas de estupro. Nos casos de estupros ou atentados violentos ao pudor são preconizadas as medidas de profilaxia e tratamento do protocolo do Ministério de Saúde - Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, 1999. O protocolo inclui a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (sífilis, gonorréia, tricomoníase, clamídia, hepatite B). Nos casos de estupro deve ser oferecida ainda a anticoncepção de emergência ( pílula do dia seguinte) para mulheres em idade fértil.

A eficácia do tratamento é tanto maior

quanto menor o tempo ocorrido da violência sexual até a procura do atendimento médico, sendo que o intervalo máximo para efeito da anticoncepção de emergência é de até 72 horas após ocorrido o estupro. Exames para estabelecimento do diagnóstico e rastreamento de doenças sexualmente transmissíveis são também solicitados. Cerca de 16% das mulheres que sofrem violência sexual contraem alguma DST e uma em cada 1000 é infectada pelo HIV (Ministério da Saúde 1999). A quimioprofilaxia do HIV, não é preconizada pelo Ministério da Saúde, porém a questão é bastante polêmica e vem sendo discutida. Atuação do Setor Saúde frente a violência contra a mulher - SOS Mulher de Santa Cruz Em, 8 de março de 1999, foi inaugurado o Centro de Atenção à mulher Vítima de Violência (CEAMVV) – SOS Mulher, por iniciativa da Secretaria de Estado e Saúde do Estado do Rio de Janeiro a partir da constatação dos crescentes índices de violência contra a mulher. Localizado no bairro de Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro, nas dependências do Hospital Geral Pedro II, o Centro destina-se ao atendimento de mulheres encaminhadas principalmente por delegacias especializadas , Serviços de emergência e associações comunitárias. O Centro oferece atendimento interdisciplinar de natureza médica, psicológica, social

e

de

enfermagem

e

tem

como

objetivo

principal

proporcionar

um

acompanhamento adequado e diferenciado às mulheres vítimas de violência dentro do setor saúde.

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A abertura do CEAMVV possibilitou orientação, reflexão e tratamento às mulheres vítimas de violência doméstica, com caráter emergencial, preventivo e curativo através da aplicação de técnicas de empoderamento e melhora da autoestima. São prestados atendimentos em grupo ou individuais com o objetivo de dar a essas mulheres condições de sair do ciclo de violência a que são submetidas. Os resultados relativos à violência doméstica já se fazem sentir. Várias mulheres já deram sinais da capacidade de se libertar do ciclo de violência seja pelo rompimento da relação com o parceiro íntimo ou pela formalização de processos judiciais ou mesmo por mudanças relacionadas aos pactos domésticos e conjugais. - Os hospitais públicos e o aborto legal O artigo 128 do Código Penal permite o aborto em casos de risco de vida para a gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro. A nível regional, avançou-se essa questão com a inclusão nas ConstituiçõesEstaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, garantindo o direito do aborto legal em hospitais públicos. Em São Paulo, município pioneiro na efetivação do dispositivo legal, desde 1989 funciona no Hospital Jabaquara um serviço de aborto legal. No município do Rio de Janeiro, o Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães também iniciou o serviço de aborto legal. -Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro Desde julho de 1999, a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, entendendo que violência é um problema de saúde pública, implantou a Assessoria de Prevenção de Acidentes e Violência (APAV). Entre os diversos projetos de prevenção de acidentes e violência que a APAV está desenvolvento, está o de criar uma rede de atendimento e acompanhamento à mulher vítima de violência. A enorme demanda reprimida da população vítima de violência e os dispositivos legais (Estatuto da Criança e do Adolescente, Política de Prevenção da Morbi-Mortalidade das Causas Externas do Ministério da Saúde, Direitos das Mulheres na Legislatura 1999-2003) reforçam a necessidade de garantir o atendimento físico e psicológico às vítimas de violência doméstica e sexual pelo SUS. Neste sentido a APAV vem capacitando os profissionais de saúde que irão participar da rede de atendimento especializado.

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Dados Estatísticos Dados do IBGE (1990) mostram que no Brasil a violência contra a mulher é três vezes maior que contra o homem. Cerca de 60% das agressões

físicas contra as

mulheres acontecem em suas próprias residências e são cometidas pelos parceiros íntimos ou membros familiares. Segundo o Conselho Estadual do Direito da Mulher, a cada hora há 7 mulheres em situação de violência, e essa tendência vem aumentando. Os indicadores de violência entre homens e mulheres no Rio de Janeiro montram-se bem diferentes. Enquanto os homens morrem, as mulheres apanham São os homens as principais vítimas dos homicídios: em 1999, de acordo com as estatísticas da Secretaria de Segurança, foram assassinadas 4.812 homens (81,1%) e 498 mulheres (8,4%). Em 620 casos (10,5%), o sexo não foi informado. No caso das lesões corporais dolosas, os indicadores apontam uma realidade bastante diversa. São as mulheres as grandes vítimas das agressões. Dos 58.696 casos registrados em 1999, 59,3%as vítimas eram mulheres. Os casos contra homens foram apenas 35,7% - nos restantes o sexo não foi informado (quadro 1). Pesquisa realizada em São Paulo aponta na mesma direção, porém indica ainda que apesar das mulheres não serem as vítimas preferenciais nos casos de homicidios, o crescimento das vítimas fatais femininas superou o das vítimas masculinas. Além disso, cerca de 20% dos homicídios, entre os do sexo feminino, foram por motivo passional (Folha de São Paulo, 2000) Registro da Polícia Civil - Estado do Rio de Janeiro, 1999 Sexo

Homicídio doloso

Lesão Dolosa

Masculino

81,1%

35,7%

Feminino

8,4%

59,3%

Não informado

10,5%

5,0%

A agressão contra a mulher no Brasil era uma caixa preta até a criação dos primeiros Serviços especialiazados no atendimento a essas vítimas. Os dados do SOS Mulher, por exemplo, indicam que a mulher apanha em casa e seu maior algoz é o marido ou parceiro íntimo. –mais de 50% das vítimas atendidas foram agredidas pelo cônjuge. As mulheres que procuram este Serviço, freqüentemente, têm 19 a 29 anos, 1º grau completo e não têm ocupação remunerada. Os números indicam ainda que o alvo das agressões é principalmente a face, o que denota a intenção do agressor em

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humilhar a mulher. A maior parte das queixas é feita na segunda-feira e são relativas as agressões sofridas no domingo, dia referido como o de maior agressão doméstica. As denúncias ou solicitações de atendimento, de um modo geral, vêm aumentando em número no decorrer do tempo em todos os Serviços de atendimento à mulher vítima de violência. Em 1991, por exemplo nas Delegacias Distritais e nas DEAM foram registradas 17.596 queixas de lesão corporal dolosa cometida contra a mulher. Em 1999, houve 34.831 queixas, um aumento de 84%. Se por um lado esse aumento leva a hipótese que a violência de fato pode estar se agravando, a criação e implantação de instrumentos e recursos de atendimento à mulher violentada é também uma outra causa do aumento de notificações. Conclusão É preciso aceitar que existem diferenças entre homens e mulheres. A idealização de uma igualdade tem muitas vezes sido fonte de conflitos. É necessário também

perceber como em cada cultura ou extrato cultural estas diferenças se

organizam e se expressam Não é possível supor uma postura hierarquizada que durasse milênios sem que a mesma tivesse base em algum pressuposto válido aceito por ambos, homens e mulheres. Parece ter havido, nos primórdios da civilização, uma concordância generalizada de que era necessário para a sobrevivência da espécie uma ação enérgica sobre o meio ambiente, o que permitiu a valorização das características de força e dominação. Desta maneira a diferenças de tamanho, de força e de predominância na direção de ação - nos homens centrífuga ( para fora) e nas mulheres centrípeta (para dentro), permitiu o surgimento de uma exaltação do ser humano masculino. Esta questão ainda prossegue no que hoje denomina-se “sociedades de produção, onde a própria ação “para fora” (centrifuga) vem sendo confundida com ação produtiva. Formou-se então uma cultura (principalmente ocidental) onde o homem apresenta-se como produtor “natural” de bens, como o homem “provedor”, e por outro lado entregou-se à mulher os papéis de mantenedora, preservadora, e cuidadora. Durante séculos prevaleceu esta visão que acabou por demarcar e definir os papéis de gênero em nossa sociedade ocidental, envolvendo uma educação que cumpriu e continua a perpetuar o foco produção. Esta cultura terminou por aprisionar e escravizar homens e mulheres em estreitas faixas de papeis sociais.

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Sabe-se que uma força enérgica, centrífuga, que tenha perdido sua conexão com algum contexto criador ou produtivo pode tornar-se facilmente uma força destrutiva, causando danos principalmente a pessoas e seres mais frágeis em termos físicos, ou seja : mulheres , crianças, idosos, animais e outros. Neste momento, temos uma sociedade em crise que vem trazendo à tona as mazelas do pensamento “produção” mostrando o quanto este perdeu o sentido de "Para que?" "Para Quem?" e "Para onde?" Hoje em dia o consenso geral é: “Se não produzir você não é nada!” A discussão pública da violência contra mulher não é uma ação de amparo a mulher, apenas. É a discussão sobre a crise de valores que vem sendo vivida e tem demonstrado, cada vez mais evidente, que os valores considerados femininos são essenciais à sobrevivência de todos, sendo alguns deles : o cuidado, a atenção , o abrir-se à compaixão, a intuição e a sensibilidade. O que vem acontecendo é o fato de que homens e mulheres vem rompendo a escravidão de velhos papéis. É um trajeto com muitos erros de avaliação e interpretação. As

mulheres vieram abrindo espaços em terrenos

considerados

masculinos inicialmente. Sem dúvida é mais fácil entrar em terrenos já valorizados, além do que os papéis masculinos são mais visíveis do ponto de vista social (“ são para fora”). Ao homem vem sendo mais duro aceitar e abrir-se para papéis e atitudes mais femininos já que

historicamente foram menos valorizados, É da maior

importância ressaltar que estas mudanças vem a ser sua própria salvação, e a possibilidade de terminar com o pesado jogo do: “ homem não chora”, “ homem tem que enfrentar” , “homem tem que agüentar”, “homem não pode vacilar” e assim por diante. A discussão pública da violência contra mulher é a oportunidade de homens e mulheres criarem um novo pacto absolutamente essencial para

a sobrevivência da

própria espécie.

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apoio

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