Vaneigem E O Trabalho

  • November 2019
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: Vaneigem e o Trabalho :: É só a gente parar um pouquinho pra pensar, e constatamos que, sim, tendemos a virar máquinas. Mas eu me esforço, como muitos copoanheiros, a me negar a me entregar ao esquemão básico-burguês de trabalho-dinheiro-consumo. Daí que a poesia, o lúdico, o prazeiroso, o nada-a-ver, a cervejinha-de-fim-de-tarde são fundamentais pra manutenção da sanidade. Taí o Raoul Vaneigem, num texto de 1967 (não por acaso, o ano em que nasci...): A Decadênciado Trabalho A obrigação de produzir aliena a paixão de criar. O trabalho produtivo é parte dos processos de manutenção da ordem. O tempo de trabalho diminui à medida que cresce o império do condicionamento. Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir sempre foi antagonista do desejo de criar. O que resta de centelha humana, de criatividade possível, em um ser privado do sono às seis horas a cada manhã, que se equilibra nos trens suburbanos, ensurdecido pelo ruído das máquinas, lixiviado, cozido a vapor pelas cadências, os gestos privados de sentido, o controle estatístico, e jogado ao fim do dia nos saguões das estações, catedrais de partida para o inferno das semanas e o ínfimo paraíso dos finais de semana, onde a multidão comunga a fadiga e o embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, nos ciclos de vinte e quatro horas ouve-se o uniforme estilhaçar de vidraças: rachadura da repetição mecânica, rachadura do tempo-é-dinheiro, rachadura da submissão aos chefes, rachadura do tédio, rachadura da fadiga. Da força viva esmigalhada brutalmente ao rasgo escancarado da velhice, a vida se racha por todos lados sob os golpes do trabalho forçado. Jamais uma civilização atingiu tal grau de desprezo pela vida; afogada no desgosto, jamais um geração experimentou tal raiva de viver. Aqueles que matamos lentamente nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, beijam, ocupam as ruas, pegam em armas, criam uma nova poesia. Já está se formando a frente contra o trabalho forçado; os gestos de recusa já modelam a consciência futura. Todo apelo à produtividade é, sob as condições desejadas pelo capitalismo e pela economia sovietizada, um apelo à escravidão. A necessidade de produzir acha tão comodamente as suas justificativas que qualquer Fourastié pode encher dez livros com elas sem esforço. Infelizmente para os neo-pensadores do economismo, estas justificativas são aquelas do século XIX, de uma época onde a miséria das classes trabalhadores fazia do direito ao trabalho o homólogo do direito à escravidão, reivindicada na aurora dos tempos pelos prisioneiros condenados à morte. O mais importante era não desaparecer fisicamente, sobreviver. Os imperativos da produtividade são imperativos de sobrevivência; mas a partir de agora as pessoas querem viver, não somente sobreviver. O tripalium era um instrumento de tortura. Labor significa "tormento". Há uma certa leviandade no esquecimento da origem das palavras "trabalho" e "labor". Os nobres tinham ao menos a memória de sua dignidade, assim como da indignidade que afligia os seus servos. O desprezo aristocrático pelo trabalho refletia o desprezo do senhor pelas classes dominadas; o

trabalho era a expiação à qual foram condenadas por toda a eternidade por um decreto divino, que os queria, por razões impenetráveis, inferiores. O trabalho se inscrevia, entre as sanções da Providência, como a punição do pobre, e, uma vez que ela era também meio de salvação futura, uma tal punição podia se revestir de satisfação. No fundo, o trabalho importava menos do que a submissão. A burguesia não domina, ela explora. Ela submete pouco, ela prefere usar. Como não se viu que o princípio do trabalho produtivo substituiu simplesmente ao princípio da autoridade feudal? Por que não se quis compreender isso? Seria porque o trabalho melhora a condição dos homens e salva os pobres, pelo menos ilusoriamente, da danação eterna? Sem dúvida, mas hoje se torna evidente que a chantagem de dias melhoras sucede docilmente à chantagem de salvação no além. Em um ou outro caso, o presente está sempre sob o punho da opressão. Seria porque ele transforma a natureza? Sim, mas o que farei de uma natureza ordenada em termos de lucros em uma ordem de coisas onde a inflação técnica encobre a deflação dos objetivos da vida? Além disso, da mesma forma que o ato sexual não tem por função procriar, mas eventualmente gera crianças, é como subproduto que o trabalho organizado transforma a superfície dos continentes, não como finalidade. Trabalhar para transformar o mundo? Vejam só! O mundo se transforma pelo molde do trabalho forçado; e é por isso que ele se transforma para pior. O homem se realizará em seu trabalho forçado? No século XIX, subsistia na concepção de trabalho um traço ínfimo de criatividade. Zola descreve um concurso de fabricantes de prego onde os trabalhadores competiam em habilidade para realizar sua minúscula obra-prima. O amor pelo ofício e a pesquisa de uma criatividade já sufocada permitia sem dúvida suportar dez a quinze horas às quais ninguém poderia resistir se não houvesse alguma forma de prazer. Uma concepção ainda artesanal em seu princípio deixava a cada um a possibilidade de ter um conforto precário no inferno da fábrica. O taylorismo deu o golpe de misericórdia em uma mentalidade preciosamente entretida pelo capitalismo arcaico. É inútil esperar de um trabalho feito na cadeia de produção mais do que uma caricatura de criatividade. O amor ao trabalho bem feito e o gosto pela promoção no trabalho são hoje a marca indelével da fraqueza e da submissão mais estúpidas. É por isso que, onde quer que a submissão seja exigida, o velho peido ideológico toma seu rumo, do Arbeit macht frei [o trabalho liberta] dos campos de concentração aos discursos de Henry Ford e de Mao Tsé-Tung. Qual é então a função do trabalho forçado? O mito do poder exercido conjuntamente pelo chefe e por Deus achava na unidade do sistema feudal a sua força de coerção. Ao destruir o mito unitário, o poder fragmentário da burguesia abre, sob o signo da crise, o reino de ideologias, que jamais atingirão, nem sozinhas nem juntas, um quarto da eficácia do mito. A ditadura do trabalho produtivo oportunamente entra em cena. Ela tem por missão enfraquecer biologicamente o maior número de homens, castrá-los coletivamente e embrutecê-los, a fim de torná-los receptivos às mais medíocres, menos viris, mais senis ideologias jamais vistas na história da mentira.

O proletariado do começo do século XIX consiste de uma maioria de pessoas diminuídas fisicamente, de homens sistematicamente alquebrados pela tortura da oficina. As revoltas vêm de pequenos artesãos, de categorias privilegiadas ou de sem-trabalho, não de trabalhadores violentados por quinze horas de labor. Não é perturbador constatar que a diminuição do número de horas de trabalho surge no momento em que o espetáculo de variedades ideológicas produzidos pela sociedade de consumo parece ser capaz de substituir eficazmente os mitos feudais destruídos pela jovem burguesia? (Há pessoas que realmente trabalharam para comprar um refrigerador, um carro, uma televisão. Muitos continuam a fazê-lo, "convidados" que são a consumir a passividade e o tempo vazio que lhes "oferece" a "necessidade" de produzir.) Estatísticas publicadas em 1938 indicam que a aplicação das técnicas de produção contemporâneas reduziriam a duração do tempo de trabalho necessário para três horas por dia. Não somente estamos longe disto com nossas sete horas de trabalho, mas após ter usado gerações de trabalhadores prometendo-lhes o bem-estar que ela lhe vende a prazo, a burguesia (e sua versão sovietizada) prossegue a sua destruição do homem fora do trabalho. Amanhã ela exibirá como isca suas cinco horas de desgaste cotidiano exigidas por um tempo de criatividade que crescerá na proporção em que puder ser preenchido de uma impossibilidade de criar (a famosa organização do lazer). Já foi dito corretamente: "A China enfrenta problemas econômicos gigantescos; para ela, a produtividade é uma questão de vida ou morte." Ninguém pensa em negá-lo. O que me parece grave não se refere aos imperativos econômicos, mas à maneira de respondê-lo. O Exército Vermelho de 1917 se constituía em um tipo novo de organização. O Exército Vermelho de 1960 é um exército como se encontra nos países capitalistas. As circunstâncias provaram que a sua eficácia ficava muito abaixo das possibilidades de milícias revolucionárias. Da mesma forma, a economia chinesa planificada, ao não permitir aos grupos federados a organização autônoma de seu trabalho, se condena a tornar-se uma forma de capitalismo aperfeiçoado, chamado socialismo. Alguém se deu ao cuidado de estudar as modalidades de trabalho dos povos primitivos, a importância do jogo e da criatividade, o incrível rendimento obtido por métodos que uma gota das técnicas modernas tornaria cem vezes mais eficazes ainda? Parece que não. Todo apelo à criatividade vem de cima. Ora, só a criatividade é espontaneamente rica. Não é da produtividade que devemos alcançar uma vida rica, não é da produtividade que devemos esperar uma resposta coletiva e entusiasta à demanda econômica. Mas o que dizer mais quando sabemos como o trabalho é cultuado em Cuba e na China, e com que facilidade as páginas virtuosas de Guizot passam de agora em diante em um discurso de 1o. de Maio? À medida que a automação e a cibernética deixam prever a substituição em massa de trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva de seus decretos televisionados. Por qual recompensa trabalhar de agora em diante? A farsa se esgotou; não há mais nada a perder, nem mesmo uma ilusão. A organização do trabalho e a organização do lazer resguardam as tesouras castradoras encarregadas de melhorar a raça dos cães submissos. Veremos qualquer dia os grevistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão,

talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo. Traduzido por Daniel Cunha. Título original: "La déchéance du travail" ( http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/traite-5.html ) Excerto do livro "A arte de viver para as novas gerações" (Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations), Raoul Vaneigem Por Paulo Bicarato, às 15:58 de 29.06.2007 - Categoria: Pensatas

A DECADÊNCIA DO TRABALHO Raoul Vaneigem 1967 A obrigação de produzir aliena a paixão de criar. O trabalho produtivo é parte dos processos de manutenção da ordem. O tempo de trabalho diminui à medida que cresce o império do condicionamento. Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir sempre foi antagonista do desejo de criar. O que resta de centelha humana, de criatividade possível, em um ser privado do sono às seis horas a cada manhã, que se equilibra nos trens suburbanos, ensurdecido pelo ruído das máquinas, lixiviado, cozido a vapor pelas cadências, os gestos privados de sentido, o controle estatístico, e jogado ao fim do dia nos saguões das estações, catedrais de partida para o inferno das semanas e o ínfimo paraíso dos finais de semana, onde a multidão comunga a fadiga e o embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, nos ciclos de vinte e quatro horas ouve-se o uniforme estilhaçar de vidraças: rachadura da repetição mecânica, rachadura do tempo-édinheiro, rachadura da submissão aos chefes, rachadura do tédio, rachadura da fadiga. Da força viva esmigalhada brutalmente ao rasgo escancarado da velhice, a vida se racha por todos lados sob os golpes do trabalho forçado. Jamais uma civilização atingiu tal grau de desprezo pela vida; afogada no desgosto, jamais um geração experimentou tal raiva de viver. Aqueles que matamos lentamente nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, beijam, ocupam as ruas, pegam em armas, criam uma nova poesia. Já está se formando a frente contra o trabalho forçado; os gestos de recusa já modelam a consciência futura. Todo apelo à produtividade é, sob as condições desejadas pelo capitalismo e pela economia sovietizada, um apelo à escravidão. A necessidade de produzir acha tão comodamente as suas justificativas que qualquer Fourastié pode encher dez livros com elas sem esforço. Infelizmente para os neo-pensadores do economismo, estas justificativas são aquelas do século XIX, de uma época onde a miséria das classes trabalhadores fazia do direito ao trabalho o homólogo do direito à escravidão, reivindicada na aurora dos tempos pelos prisioneiros condenados à morte. O mais importante era não desaparecer fisicamente, sobreviver. Os imperativos da produtividade são imperativos de sobrevivência; mas a partir de agora as pessoas querem viver, não somente sobreviver. O tripalium era um instrumento de tortura. Labor significa "tormento". Há uma certa leviandade no esquecimento da origem das palavras "trabalho" e "labor". Os nobres tinham ao menos a memória de

sua dignidade, assim como da indignidade que afligia os seus servos. O desprezo aristocrático pelo trabalho refletia o desprezo do senhor pelas classes dominadas; o trabalho era a expiação à qual foram condenadas por toda a eternidade por um decreto divino, que os queria, por razões impenetráveis, inferiores. O trabalho se inscrevia, entre as sanções da Providência, como a punição do pobre, e, uma vez que ela era também meio de salvação futura, uma tal punição podia se revestir de satisfação. No fundo, o trabalho importava menos do que a submissão. A burguesia não domina, ela explora. Ela submete pouco, ela prefere usar. Como não se viu que o princípio do trabalho produtivo substituiu simplesmente ao princípio da autoridade feudal? Por que não se quis compreender isso? Seria porque o trabalho melhora a condição dos homens e salva os pobres, pelo menos ilusoriamente, da danação eterna? Sem dúvida, mas hoje se torna evidente que a chantagem de dias melhoras sucede docilmente à chantagem de salvação no além. Em um ou outro caso, o presente está sempre sob o punho da opressão. Seria porque ele transforma a natureza? Sim, mas o que farei de uma natureza ordenada em termos de lucros em uma ordem de coisas onde a inflação técnica encobre a deflação dos objetivos da vida? Além disso, da mesma forma que o ato sexual não tem por função procriar, mas eventualmente gera crianças, é como subproduto que o trabalho organizado transforma a superfície dos continentes, não como finalidade. Trabalhar para transformar o mundo? Vejam só! O mundo se transforma pelo molde do trabalho forçado; e é por isso que ele se transforma para pior. O homem se realizará em seu trabalho forçado? No século XIX, subsistia na concepção de trabalho um traço ínfimo de criatividade. Zola descreve um concurso de fabricantes de prego onde os trabalhadores competiam em habilidade para realizar sua minúscula obra-prima. O amor pelo ofício e a pesquisa de uma criatividade já sufocada permitia sem dúvida suportar dez a quinze horas às quais ninguém poderia resistir se não houvesse alguma forma de prazer. Uma concepção ainda artesanal em seu princípio deixava a cada um a possibilidade de ter um conforto precário no inferno da fábrica. O taylorismo deu o golpe de misericórdia em uma mentalidade preciosamente entretida pelo capitalismo arcaico. É inútil esperar de um trabalho feito na cadeia de produção mais do que uma caricatura de criatividade. O amor ao trabalho bem feito e o gosto pela promoção no trabalho são hoje a marca indelével da fraqueza e da submissão mais estúpidas. É por isso que, onde quer que a submissão seja exigida, o velho peido ideológico toma seu rumo, do Arbeit macht frei [o trabalho liberta] dos campos de concentração aos discursos de Henry Ford e de Mao Tsé-Tung. Qual é então a função do trabalho forçado? O mito do poder exercido conjuntamente pelo chefe e por Deus achava na unidade do sistema feudal a sua força de coerção. Ao destruir o mito unitário, o poder fragmentário da burguesia abre, sob o signo da crise, o reino de ideologias, que jamais atingirão, nem sozinhas nem juntas, um quarto da eficácia do mito. A ditadura do trabalho produtivo oportunamente entra em cena. Ela tem por missão enfraquecer biologicamente o maior número de homens, castrá-los coletivamente e embrutecê-los, a fim de torná-los receptivos às mais medíocres, menos viris, mais senis ideologias jamais vistas na história da mentira. O proletariado do começo do século XIX consiste de uma maioria de pessoas diminuídas fisicamente, de homens sistematicamente alquebrados pela tortura da oficina. As revoltas vêm de pequenos artesãos, de categorias privilegiadas ou de sem-trabalho, não de trabalhadores violentados por quinze horas de labor. Não é perturbador constatar que a diminuição do número de horas de trabalho surge no momento em que o espetáculo de variedades ideológicas produzidos pela sociedade de consumo parece ser capaz de substituir eficazmente os mitos feudais destruídos pela jovem burguesia? (Há pessoas que realmente trabalharam para comprar um refrigerador, um carro, uma televisão. Muitos continuam a fazê-lo, "convidados" que são a consumir a passividade e o tempo vazio que lhes "oferece" a "necessidade" de produzir.)

Estatísticas publicadas em 1938 indicam que a aplicação das técnicas de produção contemporâneas reduziriam a duração do tempo de trabalho necessário para três horas por dia. Não somente estamos longe disto com nossas sete horas de trabalho, mas após ter usado gerações de trabalhadores prometendo-lhes o bem-estar que ela lhe vende a prazo, a burguesia (e sua versão sovietizada) prossegue a sua destruição do homem fora do trabalho. Amanhã ela exibirá como isca suas cinco horas de desgaste cotidiano exigidas por um tempo de criatividade que crescerá na proporção em que puder ser preenchido de uma impossibilidade de criar (a famosa organização do lazer). Já foi dito corretamente: "A China enfrenta problemas econômicos gigantescos; para ela, a produtividade é uma questão de vida ou morte." Ninguém pensa em negá-lo. O que me parece grave não se refere aos imperativos econômicos, mas à maneira de respondê-lo. O Exército Vermelho de 1917 se constituía em um tipo novo de organização. O Exército Vermelho de 1960 é um exército como se encontra nos países capitalistas. As circunstâncias provaram que a sua eficácia ficava muito abaixo das possibilidades de milícias revolucionárias. Da mesma forma, a economia chinesa planificada, ao não permitir aos grupos federados a organização autônoma de seu trabalho, se condena a tornar-se uma forma de capitalismo aperfeiçoado, chamado socialismo. Alguém se deu ao cuidado de estudar as modalidades de trabalho dos povos primitivos, a importância do jogo e da criatividade, o incrível rendimento obtido por métodos que uma gota das técnicas modernas tornaria cem vezes mais eficazes ainda? Parece que não. Todo apelo à criatividade vem de cima. Ora, só a criatividade é espontaneamente rica. Não é da produtividade que devemos alcançar uma vida rica, não é da produtividade que devemos esperar uma resposta coletiva e entusiasta à demanda econômica. Mas o que dizer mais quando sabemos como o trabalho é cultuado em Cuba e na China, e com que facilidade as páginas virtuosas de Guizot passam de agora em diante em um discurso de 1o. de Maio? À medida que a automação e a cibernética deixam prever a substituição em massa de trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva de seus decretos televisionados. Por qual recompensa trabalhar de agora em diante? A farsa se esgotou; não há mais nada a perder, nem mesmo uma ilusão. A organização do trabalho e a organização do lazer resguardam as tesouras castradoras encarregadas de melhorar a raça dos cães submissos. Veremos qualquer dia os grevistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão, talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo. Traduzido por Daniel Cunha. Título original: "La déchéance du travail" ( http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/traite-5.html ) Excerto do livro "A arte de viver para as novas gerações" (Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations), Raoul Vaneigem

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Filosofia da técnica

A expressão “filosofia da técnica” pode ser compreendida tanto em sentido restrito como em sentido amplo. No sentido restrito, a filosofia da técnica é definida como um problema ou campo disciplinar específico da filosofia em geral. Desta forma, ele figuraria ao lado da lógica, metafísica, epistemologia, filosofia política, estética e outros como uma questão essencial da filosofia. Nesta direção, a filosofia da técnica se distingue nitidamente pelos seus problemas e abordagens de campos vizinhos, particularmente da epistemologia e da filosofia da ciência. No sentido amplo do termo, a filosofia da técnica refere-se a todo aquele conjunto de pensadores que têm a técnica como uma de suas temáticas centrais, mesmo que estes autores não utilizem expressamente o termo “filosofia da técnica” ou mesmo concebam-na como um campo específico da filosofia. Cabem ainda nesta compreensão alguns pensadores que, mesmo não sendo estritamente filósofos de formação, desenvolvem uma reflexão ampla e fundamental sobre o fenômeno técnico. De acordo com Gilbert Hottois, a filosofia da técnica em sentido restrito possui três escolas fundamentais: alemã, francesa e americana. No entanto, se utilizarmos o uso da expressão “filosofia da técnica” como critério de definição da filosofia da técnica (como faz Hottois), ficam excluídos deste campo importante pensadores e filósofos que fizeram desta temática uma questão essencial de suas reflexões ainda que não recorram diretamente ao termo. Assim, tomada em seu sentido amplo, podemos dizer que a filosofia da técnica atravessa a própria história do pensamento filosófico. Entre os autores da era clássica (filosofia antiga e medieval) da filosofia não podem deixar de ser nomeados autores importantes como Platão e Aristóteles e suas reflexões a respeito da “Téchné”. Durante a idade média, a técnica fazia parte das “artes mecânicas” que se opunham as “artes especulativas” do trivium (gramática, retórica e lógica) e do quatrivium (aritmética, astronomia, geometria e música), como mostram Gregório de Nissa, Santo Agostinho, Hugo de São Vítor, Tomás de Aquino e Marcílio de Pádua, entre outros. Na era moderna, por sua vez, costuma lembrar-se do nome de Francis Bacon, René Descartes e dos enciclopedistas ou iluministas (Diderot, D’Alembert, Rousseau, etc.) como os principais representantes de uma filosofia da técnica. Mas é especialmente na era contemporânea que o tema da técnica começa a ganhar maior destaque no campo do pensamento científico e filosófico. No campo do pensamento francês, além dos precursores já nomeados (especialmente F. Reuleaux, F. Dessauer e J. Lafitte), um dos nomes mais citados é o de André Leroi-Gourhan, autor de obras como: “Evolutions et techniques” (composta de dois volumes: L’Homme et la matiére, de 1943 e “Milieu et techniques, de 1945); Technique et language” (de 1964) e ainda “Le geste et le parole” (de 1965). Completam este quadro também as importantes figuras de Gilbert Simondon (Du mode d’existence des objets techniques) e de Jacques Ellul e suas obras já mencionadas: “La technique ou l’enjeu du siécle” e “Le systeme technicien”. O tema da técnica também mereceu um forte desenvolvimento no campo do pensamento alemão. Entre os autores mais importantes da escola alemã, figuram os nomes de Karl Marx (no século XIX) e Oswald Spengler (O homem e a técnica, 1918), Ernst Jünger (O Trabalhador, 1923), L. Mumford ( O mito da máquina, 1953) e ainda Arnold Gehlen (A alma na era da técnica, 1949) que desenvolvem uma visão fortemente negativa da técnica. Especial destaque, contudo, deve ser dado ao nome de Martin Heidegger que, desde os anos 30, em obras como “Introdução à Metafísica” (1935), “Nietzsche” (1936), ou “As épocas da imagem do mundo” (publicada em “Caminhos do Bosque”, 1950) já chamava a atenção para a centralidade da técnica na sociedade moderna. Esta visão foi plenamente desenvolvida por Heidegger em um importante texto de 1953 chamado “A questão da técnica”, onde ele apresenta sua interpretação da “essência” da técnica como “desocultamento” e sua visão da técnica moderna como “Ge-stell” (armação, dispositivo) Martin Heidegger também influenciou pensadores como Karl Jaspers e Hannah Arendt. O tema da técnica também é central no campo do neo-marxismo com a “Teoria Crítica da Sociedade”, especialmente com as obras de Adorno e Horkheimer (A dialética do esclarecimento, 1947), Herbert Marcuse (O homem unidimensional) e Jürgen Habermas (Técnica e ciência como ideologia, 1968). Atuando fora dos contextos francês e alemão, também é importante a obra do espanhol Ortega y Gasset, intitulada “As massas e a técnica”. Atualmente, o tema da técnica também está presente nas obras de importantes autores como Michael Foucault (As técnicas do cuidado de si) e Hans Jonas (O princípio da responsabilidade) ou de Ulrich Beck (A sociedade de risco) e Anthony Giddens (As conseqüências da modernidade) e sua “teoria da sociedade de risco no campo das ciências sociais”.

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