UMA ESCRITA ANTES DA ESCRITA Emmanuel Anati Em mais de 120 países de todas as partes do mundo, grupos humanos deixaram exemplos de arte rupestre pintada ou gravada. O primeiro suporte que escolheram para suas criações artísticas parece ter sido a rocha- pelo menos, a julgar pelo que chegou à nossa época. Outras expressões artísticas- como pintura corporal, tatuagens, adornos e decorações, pintura em casca de árvores e folha de palmeira, desenhos na areia e coleções de pedras de formas e cores singulares- existiram antes do surgimento da arte rupestre, mas não sobreviveram ao passar dos milênios. A música e a dança só deixaram marcas indiretas em certas representações gráficas, ou nos vestígios de instrumentos descobertos por escavações arqueológicas. A arte rupestre é um autêntico produto de populações não-letradas. Começa com o surgimento do homo-sapiens e em geral desaparece no momento em que os povos que a praticaram adquirem um modo de comunicação mais próximo da escrita. Sem dúvida, essa forma de arte constitui o arquivo mais importante que a humanidade possui sobre sua própria história antes da invenção da escrita. É também uma fonte insubstituível para o estudo dos mecanismos cognitivos do ser humano. Daí a importância de se dispor de um banco de dados mundial, que é o objetivo do projeto WARA- World Arquives on Rock Art. A quase totalidade da arte pré-histórica gira em torno de três temas fundamentais: sexualidade, alimentação e território. As principais preocupações do ser humano não parecem ter mudado muito ao longo os milênios... A obra e seu meio ambiente Antes de abordar o conteúdo gráfico, intelectual e ideológico do signo, é necessário especificar alguns pontos essenciais sobre a relação entre a obra e seu meio ambiente. O espaço. – As formas naturais e a localização escolhida na parede rochosa constituem a associação mais evidente- tão evidente, que com freqüência se esquece de considerála. Entre o signo e sua localização há uma relação concreta, física, que obedece a uma opção bem precisa, seja consciente ou inconsciente. Estudos comparativos realizados
em escala mundial mostram a existência de critérios recorrentes na escolha pelo artista dessa localização. O indivíduo. Quem fazia essa escolha certamente tinha uma identidade. Podia ser jovem ou velho, homem ou mulher, xamã ou profano. A arte nunca foi praticada indiscriminadamente por qualquer pessoa. Outra forma de associação é a existente entre a obra que chegou aos nossos dias e o tipo de indivíduo que foi seu autor. Em alguns casos, tanto na arte tribal posterior quanto na arte pré-histórica, é possível reconhecer se a obra foi executada por um iniciado ou um não iniciado, por um homem ou uma mulher. O tempo. O signo foi traçado em um momento preciso do dia ou da noite, do verão ou do inverno e, inclusive, da vida pessoal de seu autor. Esse gesto veio se integrar a um contexto dinâmico, antes, depois ou durante outras atividades e reflexões; antes dou depois da caça, antes ou depois da refeição ou do sono, antes ou depois de se fazerem outros determinados gestos. Também pode ter acontecido em circunstâncias especiais: um momento de solidão ou de sociabilidade, uma cerimônia ou meditação, em um lugar ruidoso ou absolutamente silencioso. Todo ato, inclusive artístico, integra-se em um contexto temporal e seqüencial. Portanto, encontramo-nos ante outro tipo de associaçãoa que existe entre a obra e o tempo. Em nossos esforços para reconstituir esse contexto temporal, não raramente somos obrigados a formular hipóteses, inclusive quando temos condições de saber se a obra que chegou até nós tinha uma função pública ou privada. Os tipos de signo Existem várias classes de signos e associações, tanto entre signos semelhantes quanto entre signos diferentes. Chamo de “sintaxe” seu modo de associação (justaposição, seqüência, cena) e de gramática, a forma singular de cada signo. Em todas as partes encontram-se três categorias recorrentes de signos gramaticalmente diferentes Pictogramas (ou mitogramas) Trata-se de figuras em que é possível reconhecer objetos reais ou imaginários, animais, seres humanos ou coisas. Ideogramas São signos repetitivos e sintéticos que às vezes se apresentam sob a forma de discos, flechas, ramos ou bastões ou que evocam árvores, cruzes, cogumelos, estrelas, serpentes, lábios, motivos em ziguezague, símbolos fálicos ou vulvares, etc.
Psicogramas Esses símbolos não parecem representar objetos nem símbolos. Dir-se-ia que foram criados sob o efeito de violentas descargas de energia, a fim de expressar talvez situações como a vida e a morte, ou sentimentos como o amor e o ódio. Mas também poderiam ser interpretados como a expressão de presságios e outras percepções mais sutis. Aparecem com mais freqüência na arte das cavernas ou na arte mobiliária do que na arte rupestre ao ar livre (nesta última, a opção pela rocha e por sua forma parecer cumprir a função de psicograma). A sintaxe própria da arte dos caçadores arcaicos vincula pictogramas que representam diferentes tipos de animais comuns, como o elefante-girafa da República Unida da Tanzânia ou o bisão-cavalo na Europa ocidental. Em ambos os casos, associados a essas figuras encontram-se ideogramas com freqüência idênticos. O significado dessa associação de pictogramas e de ideogramas é hoje estudado por diversos pesquisadores. Mas todos parecem pensar que essas associações baseiam-se na lógica que caracteriza as primeiras escritas pictográficas, e que talvez se trate de uma delas. Conseqüentemente, há 40 mil anos já se tinha posto em marcha o processo lógico que conduziu à invenção da escrita. Uma base conceitual comum Os instrumentos de que dispomos são nitidamente insuficientes para captar toda a dimensão de uma representação. Na pintura do Renascimento, por exemplo, a pomba aparece como um pássaro de uma espécie determinada. Mas quando Fra Angélico a representa na cena da Anunciação, para se captar plenamente o significado que ele lhe atribui não basta dizer que há um pássaro em um canto do quadro- nesse caso, uma pomba. Só quando se conhece o tema ilustrado pelo artista e a bagagem mítica e conceitual característica da região de onde ele procede, a imagem da pomba que encarna o Espírito Santo na mitologia cristã, adquire seu significado simbólico e seu conteúdo específico. Do mesmo modo, a “pomba da paz” de Picasso dista muito de ser uma simples pomba. Ao pictograma o artista acrescentou um ideograma, o ramo de oliva, característico da flora mediterrânea; só entendemos sua significação simbólica porque compartilhamos a bagagem cultural do autor. Os pictogramas pré-históricos, freqüentemente acompanhados de seus ideogramas, deviam ser perfeitamente inteligíveis para todos os que conheciam o seu conteúdo conceitual. Mas a tradição direta foi interrompida. O trabalho do arqueólogo
consiste justamente em reunir o máximo de elementos e observações para tentar precisar seu conteúdo. Em inúmeros conjuntos de arte rupestre, bem como nas escritas mais antigas, os ideogramas são signos que transmitem idéias. Trata-se de um movimento que vai de quem escreve a quem lê, de quem pinta os seres reais ou imaginários àqueles a quem a mensagem é dirigida. As pesquisas têm evidenciado uma série de constantes na arte rupestre de todos os continentes: utilização de técnicas e cores similares, temas restritos e repetitivos, formas semelhantes de associação, e mesmo de lógica, reiteração de uma gama de ideogramas simbólicos e até mesmo representação simultânea de pictogramas, ideogramas e psicogramas. Essa conclusão leva a pensar que toda criatividade artística parte de uma mesma base estrutural e de uma dinâmica conceitual similar. Cinco grande categorias de arte Em matéria tanto de estilo quanto de conteúdo, distinguem-se cinco grandes categorias de arte, cada uma contendo elementos característicos que se reproduzem em escala universal. Dos caçadores arcaicos: arte praticada pelos povos caçadores que não conheciam o arco nem as flechas. Eles associavam signos e figuras, mas sem compor verdadeiras cenas. Sua sintaxe consistia principalmente em seqüências lógicas e associações metafóricas. Dos coletores arcaicos: arte praticada pelos povos cuja economia fundamentava-se nas colheita de frutos selvagens. Eles representavam cenas simples de caráter metafórico que descrevem um mundo surreal. Grande parte de sua produção artística parece ter sido produzida em estado de alucinação. Dos caçadores superiores: arte praticada pelos povos caçadores que conheciam a utilização do arco. Eles representavam cenas anedóticas e descritivas, que tratam principalmente da caça e de eventos sociais. Dos pastores-criadores: arte praticada pelos povos cuja principal atividade econômica representada é a criação de gado. Sua atenção concentra-se na representação de animais domésticos e cenas da vida familiar.
Da economia complexa: arte praticada pelos povos cuja economia diversificada compreendia as atividades agrícolas. Note-se sobretudo a predominância de cenas de caráter mitológico e de composições de signos e esquemas. Essa classificação é forçosamente esquemática. Existem fases de transição e grupos de caracteres mistos, além de diferenças que podem ser significativas no seio de cada categoria. Mas, no atual estágio da pesquisa e considerando-se a importância do material de que dispomos, impõe-se um enfoque centrado no estilo e na temática, a fim de superar os limites das fronteiras regionais. Um conjunto de critérios fundamentados nos temas e na tipologia das figurações permitiu reconhecer elementos recorrentes e significativos. Esses mesmos critérios também permitiram formular a hipótese de que existem, ligados ao modo de vida, reflexos universais que teriam influído tanto no comportamento quanto no pensamento e em seus mecanismos de associação- e, conseqüentemente, tanto na ideologia quanto nas manifestações artísticas. Desde as origens da arte há 40 mil ou 50 mil anos, o homem atua em função de mecanismos mentais específicos que o levam a criar associações, símbolos, abstrações ou sublimações que até hoje constituem uma de suas características universais específicas. Uma linguagem universal Antes do aparecimento do homo sapiens e da arte , nossa espécie evoluiu durante 4 milhões de anos. A arte só existe durante o último 1% da era humana, se contarmos desde a data em que existiram na Terra seres capazes de rir e de chorar, que se interrogavam sobre a vida e o futuro. Em relação aos hominidas que os precederam, isso não constitui uma evolução, mas uma verdadeira revolução. Em diversas oportunidades tentou-se demonstrar que os monos e os pitecantropos também eram capazes de produzir expressões artísticas. Tais hipóteses, a meu ver, carecem de qualquer fundamento. A constituição de nossa identidade de homo sapiens implica a aquisição de um conjunto de especializações e atributos particulares: saber olhar, ouvir e sentir com uma lucidez e uma maneira absolutamente específicas do sapiens. Essa arte das origens contém elementos que se mantém sempre atuais. A linguagem visual dos caçadores arcaicos é uma linguagem universal, pois, além de seus sistemas de representação e de seus estilos à vezes muito próximos em distintas partes do mundo, também apresenta associações de figuras e símbolos resultantes de uma mesma lógica- o que remete a uma forma similar de pensar e expressar-se. Cabe formular a hipótese de que a linguagem falada se baseia em princípios universais.
Ao que parece no plano intelectual o homo sapiens nasceu com a capacidade da criação artística. A denominação um tanto pretensiosa de homo sapiens, às vezes utilizada com a duplicação do sapiens, talvez devesse ser substituída com mais acerto pela de homo intellectualis. Artigo publicado originalmente no Correio da Unesco, Junho de 1998, pg. 11-16