Um Pais Cheio De Solucoes Elísio Macamo

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UM PAÍS CHEIO DE SOLUÇÕES

De Elísio Macamo

Agradecimentos Esta publicação foi possível graças ao concurso de Luís Cezerillo que colocou a imprensa universitária à disposição apesar de não se tratar duma publicação académica no sentido restrito do termo. A ele, ao seu substituto, Dr. Chuquela, bem como à sua equipa técnica vão os meus melhores agradecimentos. Os artigos têm a sua verdadeira origem no interesse e encorajamento de Rogério Sitoi, director do jornal Notícias, bem como no empenho de Moisés Mabunda, editor do suplemento cultural do mesmo jornal. Sem eles os dois talvez nunca tivesse publicado coisa que fosse. A eles também vai o meu muito obrigado. A vontade de continuar a escrever foi alimentada por várias outras pessoas, dentre as quais destaco Manuel Macie, Joaquim Salvador, Carlos Serra, Gabriel Muthisse, Artur Ricardo, Patrício Langa, Hélder Jauana, Ibraimo Chaleca, Carlos Bavo e Orlando Nipassa. Reparo, com amargura, que não consta nenhum nome feminino da lista. A muitos amigos devo conversas intelectualmente estimulantes que duma ou doutra forma estão na base de alguns argumentos. São eles o Severino Ngoenha – que assina comigo um dos artigos – o José Castiano, o Filimone Meigos e o Francisco da Conceição. Mais uma vez, só homens. Endereço agradecimentos especiais aos meus irmãos – e respectivas famílias – por não se importarem de continuar a chamar-me irmão, apesar dos artigos: Mana Iolanda, Laura, Inês, Sérgio e Brigitte. Em penúltimo lugar, devo ao Renato Matusse agradecimentos muito especiais por ter aceite escrever o prefácio, mas sobretudo por me ter sempre encorajado a publicar, sugerindo, por vezes, temas. Finalmente, agradeço aos meus estudantes da UEM bem como aos colegas, demais amigos e ao público leitor o interesse que têm revelado nos artigos. À minha mulher, Heike, e às minhas filhas, Teresa, Xiluva e Misava agradeço o afecto e carinho.

Dedicatória Aos meus grandes amigos António, Emanuel, Feliciano e Saíde.

Prefácio Por Renato Matusse Confere-me o meu grande amigo Elísio Macamo a honra e o privilégio de consignar o meu nome à sua grande obra que, antecipo, será de referência imprescindível para estudantes e professores do ensino médio e superior, bem assim para aqueles que se interessam pelas dinâmicas políticas e sociais de Moçambique. Relendo os artigos reunidos nesta colectânea, recordei-me de um episódio que testemunhei no Centro Educacional de Maciene em 1980. Estava eu assistindo a uma aula de um colega do ensino Primário, na minha qualidade de Director do Centro, quando o professor decidiu desenhar no quadro preto aquilo que ele considerava uma folha sagital para demonstrar aos alunos que forma teria tal folha constante dos seus manuais de Biologia. O que saiu no quadro nada se assemelhava a uma folha com a forma de uma seta! No fim da aula recordei ao meu colega que o meio que nos rodeava estava repleto dessas e de outros tipos de folhas, cujo uso teria, pelo menos, duas vantagens: a primeira é que valorizaria e enriqueceria os conhecimentos que os alunos já traziam das suas casas pois, como pastores e colectores de frutos, conheceriam essas folhas e árvores pelas suas denominações indígenas. Segundo, para a sua própria imagem, o meu colega sairia a ganhar, na medida em que não precisaria de expor a sua exclusão do mundo dos artistas e desenhadores! Um dos maiores méritos da obra deste conceituado académico é de introduzir os leigos na complexidade da pesquisa social sem disso se aperceberem – como pedagodo caldeado, parte do comum, do mundo que os seus leitores conhecem e leva-os a deleitar-se e a fascinar-se pelos conceitos teóricos, que assim fazem mais sentido de serem, porque instrumentos de análise, desenvolvendo, como o instruendo de condução, a sensação de auto-confiança na estrada. Por outro lado, Macamo incentiva pesquisadores e académicos a explorarem o que o nosso professor referido acima dispensou, o meio ambiente e social à sua volta. Se Mahatma Gandhi dizia que nós subdesenvolvidos apenas usamos o diamante para afiar a catana, então Macamo alerta-nos para o facto de que o mundo que nos rodeia não é apenas para se lhe maldizer: ele esconde tesouros por explorar. Efectivamente, à medida que ia lendo e relendo estes textos se adensava em mim a convicção de que estava perante um académico de uma distinta colheita, uma verdadeira floresta do saber onde cada um de nós pode lá ir e colher qualquer coisa, se me posso socorrer da adaptação de um provérbio africano. A qualquer pessoa que folheie as páginas desta colectânea não escapará o facto de que Macamo é um leitor voraz a quem o que não parece interessar não deve, certamente, chamar atenção de mais ninguém. Como qualquer académico da sua estirpe, porém, Macamo nunca fala em termos absolutos, deixando espaço para outras opiniões e saberes: “Provavelmente, coloco perguntas erradas”, “Vou arriscar uma análise sociológica” e “A ser correcta esta tese” são algumas das entradas que usa. Somos nós que então reconhecemos, por detrás dessa humildade, argumentos sólidos e clarividentes, uma contribuição para o melhor conhecimento dos fenómenos sociais, culturais e políticos. Como diria Wole Soyinka, o leão não anda por aí a declarar a sua leonidade. Ele pega na sua vítima e devora-a. Macamo também não anda aí a gritar que é um académico. Fá-lo por actos. Um outro facto a destacar: nesta colectânea Macamo abre um precedente exemplar e útil de emular. Com uma argúcia metódica e desarmante, suportada por argumentos científicos e técnicos, e processados por um “cérebro filtrado”, como diria o músico Francisco Mahecuane, Macamo problematiza o status quo, interroga discursos assumidos e sedimentados, e questiona seguidores de determinadas práticas de ser e fazer. À sua lupa não escapa nem o

Governo nem as organizações internacionais. Porém, ele não termina aí, procura contribuir com possíveis soluções ou outras formas de encarar o fenómeno ou o problema. Destaque vai também para o facto de Macamo destilar nesta obra para linguagem simples, ou, como ele diz, traduzir “em quinhentas”, conceitos ou debates complexos e do domínio de poucos para colocá-los ao alcance de um público mais vasto. Por exemplo, ele socorre-se de uma das obras de Xidiminguana para enriquecer o debate dos conceitos langue e parole, ou língua e fala, de Ferdinand de Saussure, e competência e desempenho linguísticos de Noam Chomsky. Avança depois para incluir a competência social que na sua definição “consiste na capacidade individual de reconhecer ´iscas´ linguísticas e agir de acordo com elas”, algo que fica evidente na interacção entre o guarda e o trabalhador e depois no conluio destes contra a lei estabelecida. O belo de todo o texto é que Macamo nunca chegou a referir-se a esses debates teóricos! Deste modo ele retoma, para o contexto moçambicano, a insistência de Paulo Freire sobre a simbiótica relação entre a teoria e a prática e toda a problemática do papel do intelectual na sistematização da criatividade humana e no reforço da sua auto-estima e que deveria orgulhar o próprio académico moçambicano num mundo cada vez mais globalizado. Num mundo onde as auto estradas são de sentido único, auto estradas que por definição não admitem veículos abaixo de determinada velocidade, que também por definição não ligam senão cidades. Uma das grandes mensagens de Macamo é, pois, o apelo ao professor universitário para se diferenciar do primário. Ambos dão aulas e a semelhança deveria terminar por aí, uma vez que o professor universitário deveria estar a publicar constantemente, a ser citado pelos seus estudantes e outros académicos, a ser avaliado e a ser promovido com base primeira na sua produção bibliográfica e participação em conferências de especialidade. ***....**** Lesly Milroy dizia que um fotógrafo profissional preza produções sem poses ensaiadas, expontâneas. Acrescenta depois que as pessoas normalmente não gostam de aparecer em fotografias com cara de poucos amigos, cansados, sorrindo para expor gengivas desprotegidas. E remata dizendo que uma vista de olhos a álbuns de familia demonstra que há muitos aspectos da sua vida que não gostam de tornar públicos através de fotografias. Neste seu álbum Macamo preferiu fotografar o País real, como se tornou moeda corrente dizer-se entre nós, sem poses ensaiadas: “O chapa somos nós”, “O país da indiferença” e “A moçambicanidade e os seus paradoxos” e outros aspectos das dinâmicas e vivências do País que ele explora, como o nosso fotógrafo profissional, para trazer lições e demonstrar que por detrás do que alguns se ocupam a maldizer há tesouros. Entremos nos aspectos metodológicos. Ele demonstra que mesmo em artigos de carácter popular, um académico não deve descurar o uso de suportes que tornam o seu trabalho cientificamente credível. Aliás Macamo intitulava um seu artigo recente “Para não ficarmos reféns da mediocridade” – que não consta desta colectânea – expressando a sua frustração com publicações que se guiam pela emoção e descuram o rigor que deve reger esta área do saber. Ainda no aspecto metodológico o que também impressiona é o seu recurso a músicas populares para construir e suportar argumentos: Rosália Mboa, Xidiminguana, José Matirandze e os Gorowane desfilam nesta obra. Faço aqui um parêntesis para discutir um pouco a música. Tenho para mim que a música tem o condão de ser as duas coisas ao mesmo tempo, entanto que fonte para a pesquisa. É fonte primária na medida em que ela resulta da espontaneidade popular, registando aquilo que eu

considero sismos sociais e políticos. Também pode reclamar espaço nas fontes secundárias porque se pode colocar no pedestal de livros e outras obras editadas. Classificações à parte, o próprio Macamo não parece menos artista. Pelo menos os seus títulos criativos, provocativos mas academicamente conseguidos, densos mas alegres e humorosos sugerem que ele não é um hóspede na arena artística: “Factos históricos e mentiras nobres”, “Quando o país envelhece ainda jovem” e “Desenvolver o país com desculpas”, apenas para citar alguns exemplos. Ao celebrar a publicação desta obra queria primeiro felicitar o Elísio por esta iniciativa e dizer bem alto um longo Mpoyooooooooombo, Macamo! Em segundo lugar, apelar a outros académicos que lhe sigam nas peugadas. Este não é apenas o caminho, é a via por que têm que caminhar todos os que querem merecer os títulos que a academia lhes quer outorgar. A ver vamos, dizia o cego. Renato Matusse Nhamatanda, Novembro 2004

Introdução Elísio Macamo “Tenho lido os teus artigos” é a forma como muitos conhecidos me cumprimentam hoje em dia. Logo a seguir pedem-me um artigo que falharam porque nesse dia não tiveram acesso ao Notícias. Se a conversa não envereda pelos caminhos já batidos de falar mal do governo, de pessoas conhecidas ou da vida em geral o que vem a seguir é uma breve troca sobre os méritos intelectuais do conteúdo dos artigos. Há duas posições que aparecem com frequência. Uma é daqueles que dizem gostar dos artigos porque dizem o que deve ser dito. A outra é dos que dizem gostar dos artigos porque ninguém mais diz o que neles se diz. Se fosse pessoa importante, era agora que devia mostrar modéstia. Contudo, apesar de me sentir lisonjeado pela apreciação não consigo evitar um certo desapontamento. Por várias razões. Primeiro, porque não concordo muito com a ideia de que os artigos que escrevo abordam questões que mais ninguém aborda. O nosso país tem jornalistas e comentadores de alta qualidade. Cada nova edição dum jornal diário, semanal ou mensal contém reflexões mais ou menos profundas da nossa realidade social. Arrisco-me até a dizer que em certa medida estas reflexões contribuem decisivamente para dar visibilidade a essa realidade. Nesse sentido, não me parece justo apreciar os artigos que escrevo só com base na ideia de que eles fazem o que os outros não fazem. Segundo, incomoda-me um bocado pensar que com os meus artigos retiro aos outros a responsabilidade que têm de intervir com as suas ideias e reflexões para a realização desta ideia de Moçambique que nos vem ocupando há tantos anos. Preferia que os artigos fossem apenas mais uma contribuição no meio de tantas outras para reflectir criticamente o que fazemos no nosso dia a dia. Terceiro, considero preocupante para a saúde da ordem democrática que estamos a construir que exista o sentimento de que há assuntos que têm quase um estatuto de tabú. Nunca consegui perceber porque reflectir criticamente sobre a NEPAD ou sobre o PARPA é um acto de coragem. A ideia que tenho duma sociedade saudável e atenta é precisamente aquela que Carlos Serra – não me farto de citar o nosso sociólogo – no seu livro intitulado “Combates pela mentalidade sociológica” sugere com a sua ideia de indivíduos que desconfiam de verdades simples. Só reflectindo criticamente sobre o que nos é proposto como descrição da realidade é que podemos merecer o estatuto de cidadão que a constituição, de forma ligeira para o meu agrado, confere apenas com base no direito sanguíneo. Para se ter direito à nacionalidade moçambicana, aproveito desabafar, ter nascido em território nacional ou fora, mas de pais moçambicanos, não devia ser o único critério. Devia se exigir também que as pessoas se comprometessem a ser boas cidadãs. O único que vai salvar o nosso país dos tantos problemas que tem é uma atitude crítica. Parto do princípio de que uma atitude crítica não é necessariamente destrutiva. A crítica, bem formulada e fundamentada, nunca é destrutiva. Antes pelo contrário, ela edifica. Esta colecção de artigos representa um pouco a minha ideia do que a crítica pode ser. Apresso-me a dizer que não quero reclamar com estes artigos o direito exclusivo à moçambicanidade. Não, o que quero reclamar é a capacidade de estimular outros ao pensamento crítico. Esta tem sido a minha preocupação quando intervenho no jornal. Não quero ter mais razão do que os outros; não quero exibir erudição; não quero revelar as fraquezas intelectuais dos outros. O que quero, e documento aqui com estes artigos, é que o nosso país se habitue à ideia de que a nossa saúde material, mental e cultural depende do debate de ideias. Os artigos não estão expostos na ordem cronológica de sua aparição como tem sido hábito em livros de crónicas. Organizei-os em blocos temáticos que reflectem o que pensava estar a fazer no momento de produção. Assim, a primeira parte tem o título “criticando”. Nela reúno artigos em que analiso criticamente algumas propostas políticas que nos são feitas. Não reclamo razão, pergunto apenas se pensamos em todas as facetas que os problemas

apresentam. No segundo bloco, com o título “sugerindo”, analiso alguns problemas bicudos da nossa existência e proponho soluções. No terceiro bloco “filosofando” dou largas à minha imaginação. No quarto bloco “opinando” emito a minha opinião sobre alguns aspectos que estruturam a forma como nós apreendemos a nossa realidade social. No quinto bloco intitulado “observando” tento dissecar alguns dos elementos constitutivos do nosso quotidiano. Finalmente, no bloco com o título “lendo” aprecio criticamente algumas análises escritas sobre a nossa realidade ou sobre assuntos que nos são afins. Não posso desejar mais nada senão uma boa leitura. Isso significa uma leitura crítica. Elísio Macamo, Bayreuth (Alemanha), Abril de 2004

Criticando

Porque a corrupção não é o problema que dizem ser, e mesmo assim devemos ficar preocupados

Um País cheio de soluções Para muita gente o que define o nosso País é a quantidade de problemas que tem. Discordo. Não é a quantidade de problemas, mas sim a relação entre problemas e soluções. Se há algo que não faz falta a esta terra, esse algo são soluções. De todos os quadrantes: de filantropos, organizações bem intencionadas, bancos que têm no coração o destino dos menos afortunados. Resumidamente: a indústria da compaixão e do desenvolvimento. Há, em minha opinião, uma grande desproporção entre problemas e soluções, com vantagem para as últimas. Para cada problema há várias soluções. Se o problema é a malária então as soluções são a distribuição de redes mosquiteiras, anti-palúdicos e fumigações; se o problema é o HIV então as soluções consistem na fidelidade, no Jeito, na sensibilização, nos genéricos, etc. O nosso problema não são os problemas, mas sim a escolha das soluções. Em muitos casos até nem precisamos de escolher. A corrupção, por exemplo, é um problema que sugere várias soluções, todas elas perfeitamente compatíveis entre si. Podemos melhorar as condições salariais dos funcionários públicos assim como exigir deles uma melhor conduta moral; podemos reforçar a eficiência do aparelho estatal assim como aumentar o controlo parlamentar sobre o poder executivo; e por aí fora. Com tantas soluções por aí espanta, porém, que volvidos alguns anos desde que se proclamou a cruzada contra a corrupção o problema persista, se calhar até com maior virulência. Nesta reflexão sobre a corrupção tento seguir uma exortação de Carlos Serra, este grande sociólogo que o acaso deu ao nosso País, de desconfiar de verdades simples. É fazendo uso dessa exortação que gostaria de perguntar se o problema está bem colocado. A sua persistência, apesar da multiplicidade de soluções, já constitui razão mais do que suficiente para essa interrogação. O problema de definições simplistas dos nossos problemas O que me interessa não é propriamente a corrupção como fenómeno. Ele é suficientemente real para dispensar dissertações sociológicas. Interessa-me, isso sim, o que se diz sobre ele, quem o diz e quando. Em suma, interessa-me o discurso sobre a corrupção. A minha atenção vai para o discurso porque é no seu contexto que se formulam problemas. Muitas vezes mal, como ainda veremos. A qualidade duma solução, sugiro, não está na sofisticação dos seus elementos instrumentais, mas sim na sua adequação à definição do problema. Esta constatação remete-nos de novo para a questão da formulação do problema, portanto para o discurso. Já agora, só para seguir a ideia até ao fim, a qualidade do discurso é função da cultura de debate que caracteriza uma sociedade. Quanto mais apurada ela for, mais refinada será a capacidade de formular problemas. Numa palestra que proferi numa universidade pública em Maputo defendi a ideia de que o desafio que se coloca à investigação em ciências sociais consiste em elevar a qualidade do debate público. A minha tese era de que um bom argumento não podia prescindir da investigação, pois necessitava de se apoiar em razões sólidas. A nossa condição de cidadãos obriga-nos a procurar sempre fundamentar as nossas opiniões. Infelizmente, isso tem acontecido pouco, na realidade tão pouco que acabamos aceitando definições simplistas dos nossos problemas. Este é o caso da corrupção.

Acusações de feitiçaria e o discurso da corrupção O discurso sobre a corrupção revela qualidades muito semelhantes ao que gostaria de chamar de “acusações de feitiçaria”. Na minha experiência de pesquisa social no meio rural tenho deparado frequentemente com argumentos simplistas. Um camponês bem sucedido num meio onde graça a miséria exacerbada pelas intempéries e pelo facto de muitos serem camponeses forçados - e não por vocação - deve, na imaginação local, o seu bem-estar a forças sobrenaturais. Deixo aqui de lado a questão da coerência cultural e social do quadro de explicação que os camponeses empregam. Não se trata, é evidente, duma manifestação de mentalidade pré-lógica. Contudo, nenhum sentido de deferência cultural ou sensibilidade epistemológica deve obrigar um investigador social a aceitar os argumentos locais como a revelação da verdade. Investigar significa também avaliar a qualidade do argumento. O sucesso dum camponês explica-se, também, por várias outras razões. Para já, ele pode ser um bom camponês. Ele pode ter sido mais previdente. E por aí fora. A sorte, por regra, costuma sorrir aos mais diligentes. Nas acusações de feitiçaria o mérito individual não conta, a não ser num sentido negativo. Uma pessoa só é aquilo que é porque se serviu maldosamente da comunidade para fins individuais. É tão forte esta convicção que até acaba explicando porque é que a comunidade não avança. O seu atraso passa a ser uma condição essencial do bem-estar dos associais. E para que a comunidade avance é necessário fazer a caça aos feiticeiros. Repare-se que não estou a negar a possibilidade de um camponês bem sucedido ter recorrido a artimanhas metafísicas. Não estou também a negar a eficácia dessas artimanhas, um assunto que de resto nem me interessa. Estou apenas a dizer que o argumento é simplista, pois a sua base de sustentação é bastante fraca. Não considera alternativas e parte do princípio de que a conclusão é evidente. Este é o problema do discurso da corrupção em Moçambique. As acusações de corrupção são funcionais à preservação duma ideia de comunidade moral e de degeneração individual. Os que estão bem só o podem estar porque roubam; a grande maioria está mal por causa dos poucos que roubam. Moral da história: o desenvolvimento deste País passa pela caça aos poucos que estão bem. Para o efeito despendem-se energias, tempo, recursos. Aos montões. Reconheço, desde já, que o meu argumento é susceptível de ser interpretado como a defesa da afluência contra a inveja social. Para contrariar essa impressão é necessário descrever um pouco mais esse discurso. Quando a corrupção tira responsabilidades É um discurso cuja emergência não é de todo fortuita. A corrupção começa a ser tema no nosso País sobretudo na sequência da introdução do programa de reajustamento estrutural. Antes disso, nos tempos do puritanismo da Frelimo, quando se falasse sobre corrupção era mais em relação ao comportamento sexual. No respeitante ao desenvolvimento económico e social identificava-se o assalto tecnocrata das instituições do estado como estando na origem de todos os males. Dizia-se, então, que era necessário reforçar o papel dirigente do partido. A pergunta que se coloca, portanto, é de saber porque é que a corrupção se tornou tema. O reajustamento estrutural - outro grande argumento simplista - toma de assalto o nosso País com a proposta aliciante de resolver os nossos problemas. Por razões que não é absolutamente pertinente enumerar aqui, o PRE leva o seu tempo a produzir os resultados esperados. Ao invés disso desestigmatiza a riqueza, a distinção e o bem-estar de poucos. Ele cria um ambiente normativo em que é perfeitamente legítimo viver muito bem num mar de miséria. Esta situação, contudo, colide com dois interesses fundamentais na nossa sociedade. O primeiro é a socialização puritana do período imediatamente após à independência. O discurso catequista da Frelimo ensinou-nos a torcer o nariz perante a riqueza, independentemente da

sua origem. A mistura dessa socialização com certos hábitos culturais problemáticos afecta o nosso discernimento. O segundo interesse é o da indústria do desenvolvimento. Uma vez que as soluções que essa indústria traz ao País são boas o seu insucesso só se pode explicar por alguma deficiência congénita do nosso lado. Hoje em dia já não é politicamente correcto falar do “indígena ocioso” António Eniano. Se apesar das boas intenções da indústria do desenvolvimento o País não se desenvolve então é porque aqueles que deviam dirigir os destinos do País não estão dotados das qualidades morais mais adequadas. O problema, portanto, não está nas soluções, mas sim nas pessoas que devem implementar essas soluções. Dois interesses cruzam-se aqui. Por um lado os interesses dos críticos da ideologia neo-liberal por detrás do reajustamento e por outro lado os defensores dessa ideologia. Os críticos, na sua maioria representantes de organizações não governamentais, dizem que a corrupção é a consequência lógica das políticas neo-liberais; os defensores, o Banco Mundial e o FMI, dizem que a corrupção é o resultado duma imperfeição moral. Os primeiros preconizam, como solução, um controlo directo dos recursos estatais pelos que dispensam auxílio enquanto que os segundos, pelo menos inicialmente, trabalham no sentido de produzir homens íntegros. O jornalista britânico Joseph Hanlon é um bom exemplo da primeira categoria de críticos. O conhecimento deste jornalista sobre o nosso País, amplamente documentado em várias obras de referência académica obrigatória, é tão vasto até ao ponto de a sua inclusão aqui poder parecer iconoclasta. Ultimamente, Hanlon tem dedicado a sua atenção à análise da corrupção em Moçambique identificando-a com a criminalização do Estado. Ele recupera dessa maneira uma imagem muito corrente nos meios da ciência política africanista. O rigor investigativo de Hanlon não se traduz, porém, num rigor também analítico. Em artigos publicados recentemente, alguns dos quais em jornais moçambicanos, mas sobretudo o texto duma conferência que proferiu em Sheffield, Inglaterra, Hanlon é mais polémico do que analítico contribuindo, dessa maneira, para confundir os assuntos do que propriamente esclarecê-los. Alguns exemplos dessa polémica podem ser citados rapidamente. Ele pega na afirmação dos doadores segundo a qual a produção do Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA) seria algo digno de nota quanto ao desempenho do governo moçambicano para concluir que para os doadores produzir um documento é mais importante do que acções concretas. Mais substancialmente, Hanlon sugere que a imposição de cortes à saúde e à educação como parte da disciplina fiscal no combate à pobreza permite ao governo utilizar os recursos poupados para tapar os rombos feitos pelos seus membros no sistema bancário. Hanlon conclui a partir daí que os doadores estão a fomentar a corrupção em Moçambique. Pessoalmente, sou de opinião que o PARPA é um mau documento. Acho também que a ligação entre disciplina fiscal e combate à pobreza é problemática. Contudo, nenhuma destas reservas justifica a acusação de corrupção. Quando Hanlon se torna mais específico nas suas acusações envereda por uma forma de argumentação que é, na melhor das hipóteses, paternalista em relação aos moçambicanos. Assim, os moçambicanos teriam sido no início pessoas íntegras que caíram na corrupção por culpa dos doadores que não tentaram debelar o mal logo desde o início! Apesar disto Hanlon tenta aplicar uma distinção analítica útil entre a corrupção administrativa e a captura do Estado. A primeira corresponderia mais ao menos ao que a Ética Moçambique chama de pequena corrupção e a última à grande corrupção. O tratamento que Hanlon dá ao assunto faz eco do receio legítimo de certos sectores da opinião pública nacional de que o Estado esteja a ser tomado de assalto por sindicatos do crime. As fraudes bancárias bem como o assassinato de Carlos Cardoso e a morte não esclarecida de Siba-Siba Macuácua, entre outros casos de interesse público, sugerem, em certa medida, a captura do Estado através da sua criminalização. Não obstante, mesmo se neste caso os factos falam bem alto o que eles dizem só terá coerência se o argumento que os estrutura for válido. Ora, Hanlon pinta uma imagem dum assalto concertado das instituições do Estado por parte duma elite coerente e

homogénea movida por intentos criminosos. Apesar de persuasiva esta imagem é problemática, pois reduz a complexidade do desenvolvimento do País para a questão da corrupção para além de ser injusta para com muitos membros do governo e do Estado. De resto, o julgamento do caso de Carlos Cardoso, com todas as suas imperfeições, desmente esta unidade de propósito que se atribui a tal elite. Uma consequência desta maneira de ver as coisas consiste em não se pôr em causa, em nenhum momento, a ideia de que a solução dos problemas deste País passa pela sua dependência do auxílio externo. E isto é estranho, pois o próprio Hanlon já forneceu críticas bastante oportunas desta problemática noutras ocasiões. Interessa-me, contudo, salientar dois aspectos que tornam o silêncio sobre a dependência interessante. Primeiro, é difícil perceber porque na conjuntura actual a corrupção constitui um problema na perspectiva neo-liberal. O neo-liberalismo alimenta-se da ideia de que o mercado é o melhor árbitro do jogo económico. A força da famosa mão invisível. Se assim é, quando um funcionário público cobra mais do que devia é o mercado que está a reagir a um desequilíbrio entre o serviço que presta e o custo de reprodução da sua força de trabalho. A solução nos termos neo-liberais não devia ser de lançar apelos morais para a integridade, mas sim de ajustar o preço desses serviços de modo a remunerar condignamente a função pública. O Banco Mundial e o FMI parece se terem apercebido disto. Depois de terem gasto rios de dinheiro inicialmente a tentar medir a corrupção – chamo a atenção para os trabalhos de Vito Tanzi do FMI – têm ultimamente pautado por uma abordagem institucional do problema. Com efeito, eles insistem que só o desenvolvimento institucional é que vai garantir êxitos no combate à corrupção. Esta é uma linha de pensamento que deve ser encorajada. Na sociologia do desenvolvimento dos anos sessenta a corrupção não era vista necessariamente como um mal. Eminentes estudiosos como Samuel Huntigdon, por exemplo sim, o Huntigdon do choque das civilizações! - chegaram mesmo a argumentar que ela era necessária ao desenvolvimento. A corrupção, diziam eles, criava previsibilidade, ou melhor era a única maneira de garantir a prestação de serviços. Daí que muitos países ocidentais com a honrosa excepção dos EUA - tenham até introduzido legislação que permitia aos seus homens de negócios deduzir os subornos das suas obrigações fiscais. Mesmo a fascinação que a noção de capital social exerce sobre o Banco Mundial e FMI sugere, em minha opinião, uma maneira menos histérica de encarar a corrupção. Afinal podemos dizer que a cobrança de “votos” ou exortações para que se “fale bem alto” revelam níveis baixos de capital social. Sobretudo, dos actores externos que têm de comprar esse capital social. O que se requer, portanto, não é, creio, mais integridade, mas sim mais confiança, mais capital social. Segundo, os críticos do neo-liberalismo consideram-se parte da solução quando, também, são parte do problema. É um pouco como a bicha. Dizemos que encontramos uma bicha, nunca que com a nossa presença fazemos a bicha. As organizações não governamentais, com os seus salários completamente desfasados do desempenho económico deste País, com os seus privilégios e assaltos à integridade e funcionalidade das instituições do Estado contribuem para uma estrutura de expectativas da parte de quem deve servir o público que é diametralmente oposta ao discurso moralizante que elas veiculam. A indústria do desenvolvimento criou neste País oportunidades mais do que suficientes para que um pequeno grupo de pessoas viva bem e sempre melhor. É possível neste País enriquecer num ápice e viver bem de forma perfeitamente legal. A estrutura de privilégios e aliciamento de quadros para os projectos encarrega-se disso. Depois há os per diem. Nenhum ministério funciona neste País sem seminários e conferências. Sem falar das inúmeras conferências fora do País. A seguir são as consultorias, muitas vezes uma hipérbole de muito mau gosto para designar um trabalho sem nenhum desafio intelectual. Com efeito, há vezes em que tudo quanto um consultor moçambicano faz é aplicar inquéritos elaborados por outros. Dependendo da organização que encomenda estas consultorias a remuneração pode ser elevadíssima, muitas

vezes representando o rendimento anual do consultor na sua qualidade de funcionário público. Para que não haja mal-entendidos: não estou a dizer que se não devia pagar tanto, muito menos que os beneficiários não deviam aceitar esses montantes por razões morais. Estou apenas a chamar a atenção para os meios perfeitamente legais e honestos de obter rendimentos muito acima da média e garantir, dessa maneira, um certo nível de vida. O bemestar daí resultante - que muitas vezes se reproduz a partir da prestação de serviços variados a esses mesmos críticos sob forma de arrendamento de imóveis, etc. - vai, depois, servir de base para a acusação de corrupção, sobretudo perante a estagnação do País. A solução para isso será a criação de comissões, iniciativas e instituições para combater a corrupção. E essas coisas todas precisam de 4X4, consultores, fazem conferências - e aí vêm outra vez os per diem - e produzem relatórios. O combate à corrupção é uma empresa contraditória. Para se efectivar precisa de reproduzir o tipo de mecanismos e condições que estão na origem das acusações de corrupção. Parece um gato a tentar morder a própria cauda. O discurso sobre a corrupção é funcional. É um discurso que em certa medida transfere a responsabilidade pelo falhanço do desenvolvimento dos bem-intencionados actores externos para os moralmente degenerados actores internos. Esta transferência de responsabilidades não seria, contudo, má ideia se significasse realmente responsabilização. Infelizmente, no momento mesmo de transferência de responsabilidade impõe-se as soluções dos actores externos. O Banco Mundial concede um empréstimo a uma instituição estatal, por exemplo, e impõe que se paguem salários escandalosamente altos aos quadros como forma de os manter no estado. A ideia não seria má se não se tratasse dum empréstimo que em princípio o próprio País deve pagar. De resto, o argumento segundo o qual o Estado tem que pagar o que não tem para manter quadros que só vão servir este País se forem pagos como se estivessem num País mais desenvolvido não me parece muito plausível. Compreendo a necessidade que o Estado tem de quadros de qualidade. Compreendo também a necessidade que esses quadros têm de serem devidamente remunerados pelo seu trabalho. Porque é que a indústria da compaixão e do desenvolvimento não deixa, aqui também, funcionar o mercado? A falácia neste argumento está em partir do princípio de que todos esses quadros teriam melhores empregos fora do Estado. Acho que isso carece ainda de provas concretas. De resto, quando é que um vencimento é suficiente, sobretudo num País onde a ostentação é um dos elementos identitários mais importantes? Onde está, afinal, o problema? Dentre as várias tentativas louváveis de introduzir algum cuidado na discussão sobre a corrupção destaco a intervenção de Joaquim Fumo. Em dois artigos publicados no jornal Zambeze este sociólogo faz uma análise interessante. Ele procura mostrar que a corrupção é um problema estrutural que requer soluções estruturais. Ele constata, contudo, que as soluções até aqui preconizadas são individualistas e que, por isso, o combate está longe de ser bem sucedido. Penso que Joaquim Fumo define o que ele chama de estruturalismo de forma problemática. São dois os problemas que vejo. Primeiro, considerar a corrupção como um “facto social” é uma opção que nos remete para o cientismo que o discurso sobre a corrupção evoca. De tanta preocupação com o fenómeno chegamos ao ponto de pensar que é possível medi-lo cientificamente. Ou por outra, sugere apenas a ideia de que o fenómeno existe para além dos instrumentos que são utilizados para a sua medição. Considerar a corrupção um “facto social” não contribui, em minha opinião, para a sua solução. Torna-o apenas mais visível permitindo até a criminalização de várias formas de comportamento. Segundo, explicações estruturalistas de fenómenos sociais são, por regra, normativas. Elas impõem condutas aos actores sociais. Isto tem duas implicações. Uma consiste na ideia de que é preciso mudar as estruturas - e aqui Joaquim Fumo tem toda a razão - para se poder mudar um certo comportamento que foge da norma. O problema, contudo, é que esse comportamento de

desvio é justamente a estrutura que se quer alterar. Esta é pelo menos a ideia com que se fica depois de se ver a definição da corrupção como “facto social”. É uma espécie de afirmação do antecedente. A outra implicação é de que as soluções ditas “individualistas” não são necessariamente incompatíveis com diagnósticos estruturalistas. Se o problema é o de desvio da norma a solução pode ser mesmo de dar prioridade àqueles que se comportam dentro de parâmetros tidos como sendo normais. Ou por outra, priorizar comportamentos congruentes com a estrutura desejada. Apesar de tudo, Joaquim Fumo tem razão. A análise que ele faz mostra que não estamos perante o problema da corrupção, mas sim perante um problema bem maior, nomeadamente do funcionamento das instituições do Estado. O discurso da corrupção peca exactamente neste ponto. A insistência bastante parcial sobre a corrupção tem, em minha opinião, o efeito perverso de reduzir um problema bem maior a uma questão moral. A corrupção tem muito a ver com moral, mas não se esgota aí. Quando é preciso subornar o agente policial, o enfermeiro, o juiz, o funcionário da repartição de finanças, etc. para ver prestados serviços que nos são devidos na nossa qualidade de cidadãos e contribuintes não estamos somente perante um problema de degeneração do tecido moral da nossa sociedade, mas em princípio perante a ineficácia e ineficiência das instituições públicas. O que me parece urgente fazer nessas circunstâncias não é pregar. Urge, isso sim, rever o funcionamento dessas instituições e prestar sobretudo atenção aos inúmeros nós de estrangulamento que a ineficiência produz. São esses nós de estrangulamento que fazem dos funcionários públicos assaltantes mascarados do público. O documento produzido pela Ética Moçambique mostra que a ineficiência do Estado atenta contra os direitos fundamentais dos cidadãos. Mais uma vez, o desafio não está em acabar com a corrupção, mas sim em salvaguardar os direitos dos cidadãos. Isso implica rever o funcionamento do tribunal administrativo, definir claramente - isto é juridicamente - o estatuto dos consumidores do serviço público, os critérios de acesso à função pública, etc. Considero útil a distinção que se faz entre “pequena corrupção” e “grande corrupção”. Ao contrário da opinião geral, contudo, penso que o maior problema é apresentado pela “pequena corrupção”. Embora nefasta a “grande corrupção” revela a convergência do nosso País com o resto do mundo, incluindo os países mais desenvolvidos. Também na Alemanha, na França e nos EUA, para citar alguns países apenas, o poder político tem a tendência de atrair os mais gananciosos. As várias soluções que são sugeridas, nomeadamente mais transparência, mais integridade, mais controlo, etc. parecem-me instrumentos perfeitamente eficazes para combater o mal, tanto mais que o maior trunfo é a própria democracia que deve ser reforçada. Aos partidos políticos na oposição bem como às organizações cívicas que se interessam pelo bem público recai a tarefa de controlar o desempenho do governo, alertando a opinião pública para a descrepância entre promessas eleitorais e realizações. Estas soluções não são, contudo, as mais adequadas para combater a “pequena corrupção”. E a razão porque não são explica porque devemos ficar preocupados com a corrupção apesar de não ser o problema que dizem ser. É sobretudo a pequena corrupção que infringe com os direitos mais elementares dos cidadãos. Ela revela, no fundo, o problema estrutural que temos: a ineficiência do nosso aparelho de estado através da perversão da lógica burocrática; isto é, ao invés de ele criar previsibilidade cria a incerteza e a arbitrariedade. O problema da corrupção é, portanto, bem mais complexo do que o seu discurso sugere.

Notícias, 19 e 21 de Abril 2003

A (falsa) redescoberta da pobreza “Nos caminhos de ferro agora é proibido roubar” Xidiminguana

Ultimamente, os nossos dirigentes políticos não falam doutra coisa senão da eliminação da pobreza absoluta. Agora em Moçambique é proibido ser pobre. Proibição não é bem o termo. Desiderato, talvez. Com efeito, os níveis de pobreza que graçam neste País atingiram proporções que incomodam os decisores políticos. Mais de dois terços da população moçambicana vive em pobreza absoluta. Trata-se de cerca de 70 por cento da população que vive abaixo do nível considerado necessário para se poder viver: noutros termos, uma esmagadora maioria de moçambicanos não vive. Vegeta por aí. Mas se a existência da pobreza é um facto, a sua redescoberta não passa duma brincadeira de mau gosto. Não é porque a pobreza existe, e de que maneira, que ela foi redescoberta. Houve uma convergência de circunstâncias, dentre as quais as dificuldades da política internacional de desenvolvimento. De facto, a redescoberta da pobreza em Moçambique surge no contexto do perdão da dívida. O PARPA é essencialmente a reacção oficial moçambicana a uma exigência fundamental dos doadores: só haveria perdão da dívida nas condições reservadas aos Países mais pobres se houvesse um compromisso sério de combate à pobreza. Sem esta exigência os moçambicanos absolutamente pobres haviam de nascer, viver e morrer. Graças às contingências do auxílio internacional ao desenvolvimento os absolutamente pobres passam a ter história. No âmbito da satisfação das exigências impostas o governo moçambicano teve que concentrar esforços no sentido de saber quem são esses pobres, onde e como vivem, e, sobretudo, porque são pobres. O PARPA faz constatações interessantes. Parte duma definição da pobreza baseada em níveis de consumo para constatar que milhões de moçambicanos não são capazes de garantir a si próprios ou aos seus dependentes um conjunto básico de condições mínimas de subsistência e bem estar segundo os padrões considerados pela sociedade moçambicana como sendo normais. No processo, o documento revela grandes desníveis regionais na distribuição da pobreza. A província de Sofala, por exemplo, onde se encontra a segunda maior cidade do País e onde nos anos oitenta jorraram milhões de dólares para o corredor da Beira, é a mais pobre com taxas da ordem dos 65,19 por cento. Mais grave ainda é o facto de ter os níveis de pobreza absoluta mais elevados: 87,92%! O documento estabelece correlações entre pobreza e demografia, educação, saúde e nutrição, agricultura, emprego e acesso a serviços básicos. Assim, os pobres, só para dar um exemplo, têm a tendência de viver em agregados familiares grandes com níveis de dependência elevados. O documento chama a estes factores de determinantes da pobreza, confundindo dessa maneira correlação com causa e efeito. Contudo, isso não é o mais grave num documento que constitui um esforço louvável de sistematização do conhecimento sobre a pobreza no País. O PARPA identifica áreas prioritárias de acção que coincidem com as correlações estabelecidas. Assim, as acções incidem sobre o desenvolvimento humano e rural, na melhoria do acesso dos mais pobres à educação e serviços básicos, etc. O documento concerta vários instrumentos que vinham sendo aplicados como, por exemplo, a estratégia de segurança alimentar, a política populacional, o plano de acção pós-Beijing, etc. A ideia é de dar maior coerência ao combate à pobreza. O instrumento mais prioritário, contudo, sobre o qual não só o governo moçambicano como também os mentores do PARPA depositam maior confiança, é a disciplina financeira e o crescimento económico. Joseph Hanlon, o jornalista britânico, critica com razão esta opção. Ele apoia-se em dados que indicam que, pelo menos

até agora, esta opção se tem traduzido na redução do engajamento do Estado com a saúde e educação. Isto mede-se pelos números de professores que, por exemplo, não são contratados e nas despesas que não são feitas no sector da saúde. Não obstante, o argumento do governo é, em certa medida, impecável. O Estado só pode dar aquilo que tem: sem crescimento económico não sobra nada para redistribuição. Este é um argumento característico do quadro neo-liberal que o fundamenta. O combate à pobreza vai ser o resultado do efeito de distilação, o chamado “trickle-down effect”. Noutros termos, a crença na ideia de que quanto maior for a riqueza produzida, mais sobrará para os menos afortunados. Mais adiante veremos que esta crença é um elemento central da natureza problemática do PARPA. Problemas dos outros O PARPA é um documento curioso. Reclama a sua fama com base na convicção de que se trata da solução dum problema claramente identificado e bem definido. Isto é verdade. Contudo, trata-se dum problema que não é moçambicano. E isso é o que está errado com o PARPA: O PARPA formula um problema de doadores como se dum problema moçambicano se tratasse, ao qual dá uma solução também de doadores como se duma solução moçambicana se tratasse. Ele parte da ideia de que Moçambique é um País com pobres. conclui, por conseguinte, que o objectivo do desenvolvimento deve ser a eliminação desses pobres. A ambiguidade é minha e propositada. Trata-se de intenções nobres, mas extremamente problemáticas como definição dum problema moçambicano. Na perspectiva moçambicana, o problema da pobreza não se pode colocar em termos de existência de pobres que precisam de ser eliminados. O problema que se coloca é dum País pobre que deve articular a eliminação da pobreza com o desenvolvimento. O alívio à pobreza, portanto, não pode, nas condições actuais do País, ser um fim, mas sim um meio: um meio para se chegar ao desenvolvimento. As dimensões rituais que as proclamações da necessidade do combate à pobreza assumiram não passam, portanto, de rosários que os nossos decisores políticos devem repetir para expiar os pecados que lhes são atribuídos pelos doadores. O problema para o qual o PARPA é a solução é, em traços gerais, o problema enfrentado pelos doadores de justificar o auxílio ao desenvolvimento, incluíndo o perdão da dívida, a Países que resistem o desenvolvimento. O mais intrigante no insucesso económico africano não é, na verdade, o próprio insucesso, mas sim o facto de que ele se regista apesar das boas intenções e dos rios de dinheiro que os países ricos desembolsam. Com o fim da guerra fria registou-se, no Ocidente, uma redefinição da relação com os países em desenvolvimento. Entre outros aspectos, esta redefinição transferiu a responsabilidade pelo fracasso do desenvolvimento aos últimos. Os tempos já lá vão em que estes países podiam desfiar teorias como a da dependência responsabilizando o sistema mundial capitalista pelo seu atraso económico. O mundo Ocidental, apoiando-se num coro de vozes que incluem organizações não governamentais, instituições semi-governamentais como as agências da ONU e as instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, todas elas directamente implicadas na sorte dos países em desenvolvimento, chegou à conclusão de que é tempo de dar um pouco de responsabilidade a estes últimos. E a maneira mais rápida de se aprender a lidar com a responsabilidade é aceitar culpas. Não é que os Países em desenvolvimento não sejam responsáveis pela sua sorte. A instabilidade política, mesmo se movida de fora, precisa de protagonistas internos para ser bem sucedida. O nosso País, com a guerra da Renamo, é um exemplo claro e trágico desse facto. Assim, o discurso é de que a resistência africana ao desenvolvimento económico não tem nada a ver com as soluções propostas pelos bem intencionados doadores internacionais, mas sim com os próprios africanos. São corruptos, ineficientes e egoístas. As elites não redistribuem a riqueza. Antes pelo contrário, preferem desenvolver o sistema financeiro suíço.

O sociólogo guineense, Carlos Lopes, considera que o auxílio ao desenvolvimento constitui uma maneira de os países ricos saldarem uma dívida de compaixão por tudo quanto infligiram aos Países em desenvolvimento. Pois bem, volvidas várias décadas do serviço dessa dívida as pessoas interrogam-se se as prestações estão a ser bem empregues pelos beneficiários. Porque persiste a pobreza apesar de se dar tanto dinheiro? Porque teimam em continuar subdesenvolvidos apesar de tanto auxílio ao desenvolvimento? Como o inferno são sempre os outros, como dizia o filósofo francês, Jean Paul Sartre, a indústria do desenvolvimento decidiu que o culpado pela ineficâcia do auxílio são os beneficiários. Assim, a condição para se dispensar mais auxílio deve passar por um controlo mais directo do emprego dos fundos. A campanha internacional em prol do perdão da dívida dos Países pobres deu impulsos importantes neste sentido. Ela logrou uma mudança de ênfase que consistiu na ideia de que o perdão não pode premiar governos corruptos, mas sim beneficiar directamente os que foram consequente e sistematicamente ignorados ao longo da história do auxílio ao desenvolvimento. Dois conceitos ganharam primazia: boa governação e participação. Boa governação, participação e brincadeiras de mau gosto Boa governação é uma ideia que se insinuou com maior insistência nos finais da década de oitenta e inícios da década de noventa. Foi promovida principalmente pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. A insistência inicial na democracia pluralista não conduziu necessariamente ao desenvolvimento. Antes pelo contrário, dado o preço cobrado pelas medidas de austeridade exigidas pelos doadores financeiros internacionais o mais provável era que os governos fossem menos arrojados na sua aquiescência. As instituições de Bretton Woods aperceberam-se disto e “mudaram da forma de bater”, para colocar as coisas em changana. Passaram a dizer que a democracia não era exactamente o mais importante, mas sim uma governação transparente e sensível às leis do mercado. Como se o mercado fosse mais do que a soma das relações sociais constitutivas do País. De qualquer maneira, boa governação passou a ser definida estritamente como disciplina fiscal e financeira. A participação tem um passado mais recente. O conceito é mais da autoria das organizações voluntárias. Ele é um correctivo à visão algo estreita que a boa governação propõe como definição da esfera política. O conceito de participação considera que as decisões sociais, económicas e políticas devem envolver toda a sociedade. Na acepção do sector voluntário “toda a sociedade” são as instituições da chamada “sociedade civil”. Esta última é um conceito extremamente vago que procura trazer ao abrigo da mesma definição tudo o que é organização cívica que se constitui de forma autónoma ao estado, governo e partidos políticos. O conceito de “participação” encerra uma componente muito importante na visão do mundo dos seus promotores. Ela consiste na ideia de “propriedade”: a participação dos pobres garante que o País seja dono da estratégia. No contexto da iniciativa para o perdão da dívida dos Países mais pobres altamente endividados - estatuto ao qual o nosso País ascendeu com pompa (!) em setembro de 1999 impôs-se como condição que os Países beneficiários demonstrassem a sua prontidão em fazer melhor uso do auxílio ao desenvolvimento com um compromisso em prol da boa governação e participação. Este compromisso, consubstanciado no PARPA, previa que os fundos libertos pelo perdão beneficiassem em primeira linha os pobres, os quais deviam por via da sociedade civil ser envolvidos no processo. Noutros termos, a condição para que Moçambique visse o peso da dívida tirado dos seus ombros era que os seus governantes elaborassem um plano de alívio à pobreza com envolvimento dos (representantes dos) pobres. Na avaliação que uma comissão conjunta do Banco Mundial e do FMI fez ao PARPA Juergen Reitmaier, Michael Hadjimichael (ambos do FMI) e Callisto E. Madavo e John Page (da IDA) - recomendou-se a sua aprovação. A recomendação baseou-se em três argumentos: o

PARPA, na opinião desta comissão, representa um avanço significativo em relação aos primeiros documentos apresentados pelo governo moçambicano; este último demonstra um forte comprometimento com os objectivos da iniciativa; finalmente, o PARPA é propriedade de Moçambique. Trata-se, como é mais do que óbvio, dum eufemismo diplomático que tem pouco a ver com os pobres e com o desenvolvimento de Moçambique. A melhoria que se verificou nos documentos apresentados pelo governo moçambicano não consistiu numa elaboração mais clara da estratégia de combate à pobreza. O que se verificou foi o ajustamento da estratégia moçambicana à ideologia neo-liberal que informa a acção do FMI. Com efeito, a comissão conjunta de avaliação elogia, principalmente, a insistência do governo moçambicano na disciplina fiscal e financeira como condição sine qua non do combate à pobreza. Mesmo a questão da propriedade do programa é bastante problemática. É um pouco como a história das subvenções à indústria do cajú. O governo moçambicano podia ter mantido as subvenções, mas nesse caso os doadores reservavam-se o direito de retirar a sua ajuda. Com o alívio à pobreza é a mesma coisa: o governo moçambicano podia muito bem ter desenvolvido um programa mais de acordo com a leitura nacional do problema. Contudo, uma vez que se tratava de satisfazer uma condição essencial para beneficiar do perdão da dívida, não havia muito espaço de manobra. De resto, o próprio FMI tratou de garantir a convergência de estratégias preparando, de antemão, guiões que serviram de ponto de referência para a elaboração dos PRSP – sigla inglesa que significa “Documentos Estratégicos para a Redução da Pobreza” – em Moçambique e noutros países. A questão da propriedade é ainda mais problemática do que a hipocrisia da comissão faz supor. A ideia de propriedade está directamente ligada a um preceito fundamental da iniciativa de alívio à pobreza. Este preceito consiste na exigência de que a sociedade civil seja envolvida na elaboração da estratégia. A suposição que se faz é de que os grupos de indivíduos que se organizam longe da tutela de partidos políticos e de organismos do estado representam a sociedade civil. Parte-se também do princípio de que a consulta a estes grupos garante a participação do povo no processo político. A ideia de propriedade é informada por suposições extremamente problemáticas para o processo de democratização no nosso país. Ao invés de se reforçar a arena política propriamente dita, isto é o debate parlamentar, a oposição e a prestação de contas pelo governo junto dos representantes legítimos do eleitorado moçambicano, a ideia de propriedade transfere o político para uma arena difusa. Ela desinstitucionaliza o político no momento em que este precisa de conteúdos para se consolidar. Em todas as democracias bem sucedidas do mundo a força da sociedade civil não vem do apadrinhamento externo de que grupos de indivíduos gozam, mas sim da sua capacidade de articular os seus interesses por via dos canais normais do debate político: os meios de comunicação de massas, os partidos políticos, o parlamento, etc. O melhor serviço que se pode prestar à democracia moçambicana não consiste na responsabilização do governo junto de grupos de indivíduos que reclamam o rótulo “sociedade civil”, mas sim no desenvolvimento dum espaço de confrontação política onde os partidos, da oposição e no governo, debatem as suas opções de desenvolvimento. As implicações políticas do PARPA são ainda mais graves do que isto. A questão até não é da desinstitucionalização do político em Moçambique. O PARPA mostra que o país tem poucas opções. Não tem outro remédio senão satisfazer os doadores. Para tanto o governo nem precisa do aval do parlamento. Qualquer governo moçambicano, seja ele da Frelimo, Renamo, Fumo ou seja que partido for, não tem outra opção senão satisfazer as condições impostas de fora. O verdadeiro parlamento moçambicano passa a não estar na 24 de Julho, mas sim nas comissões dos doadores. Com o seu veto financeiro detêm a maioria absoluta no sistema político de brincadeira que nos encorajam a encenar. No relatório 03/98 de abril de 2003 o FMI avalia o desempenho do governo no quadro do PARPA. Duma forma geral o relatório atesta uma boa prestação ao governo. Critica alguns

aspectos como, por exemplo, o facto de a coordenação entre os ministérios e as províncias não funcionar ainda a contento no que diz respeito à integração do PARPA nos instrumentos de planificação. Não obstante, a tónica geral é positiva. O relatório constata que as metas definidas foram, duma forma geral, alcançadas e, em alguns casos, até ultrapassadas. O relatório faz depois recomendações com vista à melhoria da implementação do PARPA chamando, em particular, atenção à necessidade de maior honestidade na declaração dos resultados. As conclusões são interessantes a vários títulos. Primeiro, elas revelam uma contradição fundamental na filosofia do PARPA. A estratégia assenta na ideia de que só com crescimento económico é que se pode eliminar a pobreza. Muito bem, contudo, as metas que o documento contém não se subordinam necessariamente a esta condição. Para serem compatíveis com o diagnóstico feito as metas deviam privilegiar o mercado como detentor da solução: o sucesso do PARPA devia se medir pelo número de pobres que, de repente, se tornam empresários, por uma maior concorrência na disponibilização de serviços sociais a preços acessíveis, etc. Isso não é o que acontece. As metas têm no estado a solução do problema: o estado deve aumentar os níveis de escolarização, deve construir mais postos de saúde, deve abrir mais latrinas, deve distribuir mais preservativos. O PARPA tem os números exactos e os anos em que isto tudo deve acontecer. O segundo aspecto interessante das conclusões da avaliação é o facto de que a satisfação das metas parece ser independente do desempenho da economia. O importante é que o governo as satisfaça. Assim, pouco importa se a qualidade é boa, um aspecto que a própria avaliação do FMI critica, o que importa é que os números aumentem de acordo com as metas. Pouco importa que o País seja capaz, a longo prazo, de garantir esses serviços, de criar condições para que os efectivos escolares, a infraestrutura sanitária, etc. se mantenham ao nível das metas traçadas. O que importa é que, para os efeitos imediatos do PARPA, os números dancem. Em terceiro lugar, parece que a aparente contradição entre a filosofia económica subjacente – o neo-liberalismo – e o que se espera de Moçambique em termos de desempenho escapa aos próprios missionários da doutrina. Este lapso é sintomático. Ele revela a verdadeira lógica por detrás de todo o empreendimento: solução dum problema de doadores em Moçambique. Quarto, a leitura do relatório da comissão de avaliação revela uma dimensão algo arrepiante do PARPA: não é só um instrumento de combate à pobreza; é também um “work-house”, os tristemente famosos asilos britânicos do século XVIII, para onde eram confinados os indigentes a fim de aprenderem as virtudes do trabalho. Neste caso, o indigente é toda a nação moçambicana. Através do PARPA torna-se visível, qual panóptico benthamiano, ao olhar precrustante e acusador dos doadores. O estigma que acompanha o PARPA reduz Moçambique à condição de não fazer mais nada do que juntar os pedaços duma identidade deteriorada. Finalmente importa destacar um aspecto político: apesar de tudo, o PARPA não é assunto em Moçambique. As metas que o governo definiu constituem um verdadeiro programa eleitoral. Nelas o governo expõe-se duma maneira que nenhum partido político, em nenhuma parte do mundo, nunca iria se expôr. O que as metas efectivamente dizem é que elas são os critérios através dos quais a sociedade deve medir o desempenho do governo. A oposição, provavelmente ainda em transe resultante das batucadas parlamentares, não vê, ou não consegue ver estes flancos expostos. Mas mesmo se os visse, que faria? A quem exigiria contas?

Da nacionalização do problema da pobreza

A pobreza é um verdadeiro flagelo. A sua eliminação é, portanto, uma obrigação mais do que moral. A pobreza não é apenas um entrave ao nosso desenvolvimento. Ela define o nosso subdesenvolvimento. A sua eliminação não pode ser uma acção de caridade. Ela é parte integrante do esforço de desenvolvimento. Para que isto aconteça é necessário que o País defina, por si próprio, o problema. Apesar de bem intencionado, O PARPA não constitui a definição dum problema moçambicano como deve ter sido claramente exposto aqui. É um problema de doadores para o qual alguns moçambicanos foram convidados a sugerir soluções. Para ser verdadeiramente moçambicano o problema da pobreza deve ser integrado no contexto global de desenvolvimento deste País. Esse contexto inclui, no mínimo, o desenvolvimento duma agenda política nacional e a articulação institucional entre o estado e a sociedade. Estes dois aspectos estão estreitamente ligados. O desenvolvimento duma agenda política nacional implica que o debate político deve reflectir os verdadeiros problemas dos cidadãos. Os partidos políticos devem articular os vários interesses que fazem de Moçambique uma sociedade heterogénea. Para serem inteligíveis esses interesses devem tematizar a relação entre o estado e a sociedade. Nos países mais desenvolvidos isto acontece no quadro da política social. A política social institucionaliza os direitos e obrigações dos cidadãos. O debate político, incluíndo as opções económicas, gira à volta desta institucionalização das relações de reciprocidade. Amartya Sen, um prémio Nobel de economia, já chamou a atenção, em várias ocasiões, para a importância da segurança social para o desenvolvimento e para a democracia. O próprio Banco Mundial reconhece esta importância, tanto mais que no contexto do debate interno sobre o desenvolvimento faz reflexões bastante pertinentes sobre estes aspectos. Organizações como a GTZ, a agência alemã para a cooperação, têm unidades que trabalham sobre este assunto e ensaiam soluções. É curioso que nenhuma destas ideias, tão importantes para o combate à pobreza, tenha encontrado eco nos PRSP para já não falar do PARPA. É imperioso que isto aconteça, pois caso contrário o PARPA não só será uma solução alheia como também apenas uma maneira de garantir a participação dos pobres na sua própria pobreza. É, naturalmente, sempre mais fácil encontrar falhas no que os outros fazem. Neste caso concreto a natureza problemática do alívio à pobreza em Moçambique tem muito a ver com a economia política do auxílio ao desenvolvimento. Não há, contudo, nenhuma lei que diga que os doadores tenham de agir de acordo com as nossas próprias definições da situação. Os doadores funcionam através de instituições que também têm de se reproduzir. Não há mal nenhum nisso, é normal. Compete a nós, através das nossas instituições políticas, estatais, económicas e cívicas, definir a situação de maneiras que nos permitam domesticar as necessidades de reprodução das instituições do auxílio ao desenvolvimento aos nossos interesses. Para isso temos que nacionalizar os nossos problemas. Começando, é claro, pela pobreza.

Notícias, 29 e 30 de Maio 2003

NEPAD: A luz no fim do túnel? Há cínicos que chamam à NEPAD de Nova Parceria Económica para os Ditadores Africanos. Isso é injusto, embora a experiência do passado pareça justificar o cinismo. Infelizmente, esta iniciativa não é a primeira que proclama, com pompa e circunstância, a emancipação social, económica e política do continente africano. No passado as mesmas pessoas que fizeram tais proclamações subsequentemente as torpedearam. As coisas vão mal em África, tão mal que as pessoas não confiam nas boas intenções dos seus dirigentes. Em certa medida seria injusto julgar a promessa que a NEPAD representa com base na experiência do passado. Esta iniciativa representa, apesar de tudo, uma declaração coerente e sólida dum diagnóstico do continente. Só por essa razão ela merece uma consideração séria. Mas há mais. A NEPAD é um desafio intelectual sério. É um convite à reflexão para todos que reclamam o estatuto de intelectuais em África. No que se segue proponho uma leitura crítica. Interessa-me, sobretudo, expor os pressupostos sobre os quais a iniciativa assenta para em seguida os problematizar. As linhas que orientam essa problematização obedecem a duas necessidades prementes. Por um lado, gostaria de dar o pontapé de saída, se é que ainda não foi dado, ao debate intelectual e, por outro, proporcionar elementos ao público de forma a que ele participe nesse debate de maneira informada. O túnel A versão portuguesa do documento tem 78 páginas. A motivação para o ler só pode ser profissional, pois pelo amor à África seria necessária uma boa dose de masoquismo. As linhas mestras do documento são, contudo, fáceis de resumir. A NEPAD contém três elementos fundamentais, nomeadamente (i) as pré-condições do desenvolvimento, (ii) os sectores prioritários e, finalmente (iii) a mobilização de recursos. As pré-condições do desenvolvimento referem-se às constatações que são feitas sobre o que é necessário para que o continente se desenvolva. Assim, são enumeradas três condições essenciais. Primeiro: paz, segurança, democracia e governação política; segundo: governação corporativa e económica com enfoque particular na governação política; terceiro: cooperação e integração regional. As áreas prioritárias são em número de cinco: infra-estrutura, informação e tecnologia de comunicações, desenvolvimento humano com ênfase para a saúde, educação e formação vocacional, agricultura e promoção da diversificação da produção e exportações com destaque para o acesso das exportações africanas aos mercados dos países mais industrializados. Por último, a mobilização de recursos consiste no aumento de poupanças e entrada de capitais através do alívio à dívida, maior auxílio ao desenvolvimento e ao capital privado bem como melhorias na gestão das receitas e despesas públicas. No fundo, estas linhas mestras não trazem muita coisa nova. Reiteram o mesmo de sempre. Para uma melhor apreciação da novidade que a NEPAD representa é necessário olhar mais de perto para as suas origens bem como para os pressupostos que estão na sua base. As origens são claramente sul africanas e revelam a ingenuidade de quem está, como a nova RSA, a redescobrir a África. Os pressupostos são os mesmos de sempre, nomeadamente que se sabe o verdadeiro problema de África, agora é só meter mãos à obra. Sobre as origens. Tudo indica que a NEPAD, que resulta da amálgama da Nova Iniciativa para a África do governo sul africano e a iniciativa Ômega do governo senegalês de Abdoulaye Wade – será pura coincidência que ambos são novos nos assuntos africanos? – encontra na política africana sul africana o seu principal fundamento teórico. Na verdade,

desde que a África do Sul decidiu regressar à civilização com a abolição do Apartheid tem estado a braços com a questão da definição do seu papel em África. Esta definição tem que articular dois interesses fundamentais. Por um lado ela tem que documentar a vontade dos novos governantes sul africanos de limparem a imagem de pária que o regime do Apartheid havia conferido ao País. O que esta documentação exactamente significa é muito difuso. Será documentação de boa vontade, por exemplo, que a África do Sul se cale perante o que se passa, digamos, no Zimbabwe? Será documentação de boa vontade que o País não intervenha na República Democrática do Congo? Será documentação de boa vontade deixar que o País seja inundado por imigrantes ilegais? Por outro lado, porém, a África do Sul tem interesses comerciais claros. Precisa de mercados para os seus produtos. O acesso aos mercados internacionais, com a tendência da formação de blocos económicos – mau grado a famosa mundialização e mau grado mesmo a Organização Mundial de Comércio – tem sido cada vez mais difícil. Uma prova concreta dessa dificuldade foram as recentes conversações com a União Europeia que sempre encalharam no proteccionismo agrário europeu. Para a África do Sul, portanto, a África – estável e próspera – constitui uma espécie de tábua de salvação. Estes dois interesses parece terem sido centrais à reflexão feita no quadro da NEPAD. Com efeito, ela dá resposta a estas preocupações sul africanas matando dois coelhos duma cajadada. Essa resposta consiste, em primeiro lugar, em dar ao País um papel de liderança no continente. Na imaginação altruísta da RSA a liderança visa tirar o continente da estagnação. No quadro dessa liderança para o bem do continente Pretória pode usar da palavra sem receio de ferir susceptibilidades. A forma robusta como o governo sul africano se tem ultimamente pronunciado em relação a questões quentes como o Zimbabwe e a RDC revela um pouco a recuperação da sua autoconfiança. Ao mesmo tempo que Pretória ganha um novo perfil diplomático pode, em segundo lugar e em nome do desenvolvimento do continente, implementar a sua política comercial criando e explorando as potencialidades do mercado africano. Estamos, ao que parece, perante uma versão politicamente correcta do velho projecto hegemónico sul africano. Esta sugestão não é contudo uma crítica. De resto, se em alguma coisa o governo sul africano tem sido consistente, tem sido no sentido de responsabilidade com que aborda as questões regionais, por exemplo. Os sul africanos precisam, porém, de definir a sua política externa. É da responsabilidade dos Países que se metem com ela reconhecer os interesses sul africanos e tomá-los em consideração na formulação da sua própria estratégia nacional. Sobre os pressupostos. A NEPAD, tal como o Plano de Acção de Lagos em 1980, os programas de ajustamento estrutural dos anos oitenta, os combates à pobreza de hoje e uma série de outras acções de caridade, pensa que diagnosticou o problema africano bem. Esse diagnóstico assenta numa análise do estado africano que é, em parte, algo darwinista e, em parte, economicista. O aspecto central desses pressupostos consiste na ideia de que o mal africano é a natureza débil do estado. O darwinismo insinua-se na convicção segundo a qual a partilha colonial do continente teria legado estados económica, política e socialmente inviáveis. Para piorar as coisas, a proclamação da inviolabilidade das fronteiras coloniais pela OUA teria, na lógica dos mentores sul africanos da NEPAD, ajudado a conservar essas unidades inviáveis ao preço duma incapacidade crónica de se afirmarem como verdadeiros estados. Só Países como o Zimbabwe, a Namíbia e, é claro, a própria África do Sul, que tiveram de proteger a sua integridade de forma agressiva, é que puderam evoluir como estados e registar um desenvolvimento normal. Este argumento é dum darwinismo que arrepia. A sugestão é de que a existência dum Estado deve depender da sua capacidade de adaptação natural. Sem esta capacidade devia intervir uma espécie de eutanásia política que é, no argumento da NEPAD, elevada ao estatuto duma virtude.

A tese do estado débil tem uma vertente económica. É defendida com muita veemência por Jeffrey Herbst - no livro "States and Power in Africa: Comparative Lessons in Authority and Control", Princeton, 2000 - e que é citado copiosamente por Stephen Gelb, um dos redactores da NEPAD - em "South Africa's Role and Importance in Africa and for the Development of the African Agenda", The EDGE Institute, 2001. Muito sucintamente a tese que se defende é de que o estado débil impossibilitou a emergência duma classe empresarial que pudesse exercer pressão sobre o governo para que este melhorasse a sua gestão. Nessas circunstâncias o mercado nunca conseguiu ser o mecanismo de regulação da economia que devia ter sido. Esse papel sobrou para a influência política, o que a longo prazo fomentou as tendências neo-patrimonialistas que caracterizam os sistemas políticos africanos. As relações de clientelismo, por sua vez, aumentaram as exterioridades nas transações e desincentivaram, desse modo, o investimento, a poupança e a produção. O que sobressai neste diagnóstico é a ideia de que a África não se desenvolveu por culpa própria. Fazem-se as habituais vénias ao comércio de escravos, ao colonialismo, aos termos de troca, etc. Não obstante, a principal mensagem que é veiculada pela NEPAD assenta na firme ideia de que as razões do desastroso desempenho económico do continente são endógenas. É difícil, neste ponto, resistir à tentação de ver nesta convicção mais um exemplo do punho sul africano neste documento. Tal como vimos com a Comissão de Verdade e Reconciliação, parece que a cultura cristã está profundamente enraizada naquele País (quantos Países no mundo têm um salmo como hino nacional?), de tal maneira que a confissão e a contrição têm um estatuto bastante elevado na escala nacional de valores. Não basta, portanto, constatar o atraso económico africano, é ainda necessário mostrar arrependimento. Em larga medida a coerência da NEPAD reside nestes dois pontos, nomeadamente a formulação duma política externa sul africana bem como a natureza débil do estado em África. É a partir destes pontos que o documento desenvolve a sua estratégia de emancipação do continente. Dois pontos são, nessa empresa, de capital importância. Primeiro, a NEPAD identifica a acção colectiva como a única tábua de salvação para o continente. Em abono da astúcia dos que elaboraram esta estratégia importa referir que a debilidade do estado não é vista como uma fatalidade. Ela é, sim, uma oportunidade que o continente deve aproveitar para fazer da necessidade uma virtude. A união faz a força. Aqui se nota o papel central desempenhado por economistas de persuasão analitica “escolha racional” na elaboração do documento. Com efeito, a NEPAD parece sugerir que qualquer outra estratégia que não seja a acção colectiva seria irracional. Os Países africanos só podem tirar melhor partido das suas vantagens e reduzir melhor as exterioridades que enfrentam agindo no contexto da NEPAD. Tudo o resto seria irracional. O segundo aspecto refere-se à implementação. Feito o diagnóstico a NEPAD receita como terapia uma estrutura institucional curiosa. Os Países membros são representados pelos seus respectivos chefes de estado. Esta medida levou alguns críticos a considerar todo o edifício da NEPAD problemático justamente por favorecer uma estrutura “top-down”, isto é que parte de cima para baixo e não o contrário nestes nossos dias de participação da sociedade civil. Esta crítica tem a sua razão de ser, mas a justificação que a NEPAD dá parece plausível. Uma vez que a iniciativa depende da boa vontade de cada País o chefe de estado é visto como a pessoa mais indicada para responder perante os seus pares pela implementação do programa. A participação da sociedade civil está prevista como parte do controlo do funcionamento da iniciativa. Periodicamente, a NEPAD enviará equipas que em consultas com a sociedade civil vão determinar se o País membro está ou não a cumprir com os seus compromissos. Caso o resultado destas consultas seja negativo o País incorre o risco de penalizações que vão até a exclusão. A NEPAD é, assim, mais do que uma nova iniciativa para a emancipação do continente. Ao contrário de iniciativas anteriores a NEPAD não só diagnostica e receita como também, e sobretudo, estabelece critérios de controlo. O doente tem consultas marcadas. A Nova

Parceria para o Desenvolvimento de África não depende, em princípio, da boa vontade dos seus membros, como foi sempre o caso com a OUA, nem da simples evocação de valores culturais africanos, como tem sido hábito no continente. Ela afirma-se como um compromisso pragmático voluntariamente aceite por Países soberanos ciosos de emancipação. Justamente porque a NEPAD transpira novidade por todos os poros parece importante que a adesão do nosso País seja acompanhada por um exame crítico do que ela significa e deve trazer a Moçambique. Não há indicações de que este exame tenha sido feito de forma aberta e consequente. Tal como muitas outras decisões que levam o nosso governo a assumir compromissos em nome dos moçambicanos a adesão à NEPAD processou-se com base no bom juízo dos nossos governantes. A pergunta que se pode colocar no interesse duma reflexão ampla das implicações desta decisão é de saber em que assentou esse bom juízo. Que questões podem ser colocadas à NEPAD como forma de avaliar o bom juízo dos nossos governantes? No que se segue vou tentar abordar alguns pontos críticos desta iniciativa. A ordem de apresentação não corresponde à sua importância. Ela tem apenas a ver com a coerência da própria argumentação. A luz? Há quatro pontos críticos que merecem ser considerados. Antes de tudo, porém, é importante colocar uma questão que devia, em minha opinião, ser sempre posta independentemente da utilidade aparente duma iniciativa: Será que o País possui os meios humanos e materiais para se comprometer? Quando se olha para o número de programas, organizações, convenções, iniciativas, entendimentos, etc. de que o nosso País é membro coloca-se imediatamente a questão de saber onde o Estado moçambicano vai buscar energia e tempo para tanto. Empreendimentos como o Reajustamento Estrutural, o alívio à pobreza, a parceria inteligente, Acordo de Cotonou, Organização Mundial do Comércio, Protocolo de Quioto, e por aí fora não se reduzem apenas à assinatura de documentos. Eles implicam o conhecimento profundo das instituições envolvidas, da sua linguagem, do seu modus operandis, das suas fraquezas, oportunidades, das idiossincrasias dos seus funcionários, do momento histórico, etc. Terá o nosso País a necessária competência humana e os meios materiais para tirar o melhor proveito possível da adesão? Percebe o País as águas em que está a mergulhar? Esta observação não é uma reprovação do entusiasmo que o País demonstra pela adesão a organizações e iniciativas. Muitas vezes, até, o País não tem outra opção. O problema, todavia, é que a impressão que os doadores por vezes têm de que o aparelho estatal moçambicano é lento ou ineficiente advém do facto de os funcionários estarem pura e simplesmente sobrecarregados com coisas que pressupõem o tipo de estado que o País só vai ter se essas coisas forem bem sucedidas. A questão que esta observação coloca é simplesmente de saber se se institucionalizou o hábito de avaliar os custos e benefícios da adesão em termos das reais capacidades do País. Vê-se, nisto, que a Frelimo de hoje não é a mesma dos tempos do Marxismo. Sobrou muito pouca gente que procura saber da mais valia... Mas esse exercício é útil, pois dele pode se chegar à conclusão de que é necessário mudar as prioridades, redireccionar esforços e meios. Este é um exercício que não precisa necessariamente de ser feito pelo governo. A sociedade, através dos canais normais de representação de interesses - partidos políticos, organizações cívicas, meios de comunicação de massas - bem como instituições estatais como o tribunal administrativo, a inspecção do estado e o tribunal de auditoria, entre outros, devem ajudar o governo a considerar estes aspectos. Por mais cínico que possa parecer muitas vezes a possibilidade de mais viagens, mais conferências, mais seminários, consultorias e novas competências pode pesar mais nas considerações dos nossos decisores do que o que a adesão realmente significa para o País. E isso é normal, tão normal que a sociedade precisa de manter uma vigilância constante.

Portanto, o que é que a NEPAD significa em termos humanos e materiais? Que redireccionamentos tiveram lugar em resultado da adesão? Se tiver tudo ficado na mesma haverá razões fortes para duvidar da seriedade do nosso compromisso. O primeiro ponto crítico refere-se ao pressuposto central da NEPAD, nomeadamente o da necessidade de acção colectiva como forma de compensar a debilidade do Estado africano. Este Estado, como aliás vimos mais acima, caracteriza-se por um sector empresarial fraco, estruturas neo-patrimoniais, corrupção e fraca capacidade de intervenção na economia. Estas características tornam a acção colectiva necessária. A sua ultrapassagem constitui um indicador do compromisso de cada País membro. O problema que se coloca aqui é de natureza lógica: o desiderato é o pressuposto da adesão. Isto é, para Moçambique realmente tirar proveito da acção colectiva tinha que ser um Estado forte! Mas se fosse um Estado forte precisaria de razões diferentes das que a NEPAD apresenta para aderir. É uma situação complicada que resulta da ligeireza analítica do próprio documento. A forma como a NEPAD define o Estado débil sugere a ideia de que ele resulta da má vontade dos governantes africanos. Essa é apenas uma meia verdade. O Estado fraco não explica apenas o atraso africano, mas resulta também dele. Noutras palavras, o subdesenvolvimento não é um estado, mas sim um artefacto. Quando os funcionários públicos se deixam corromper, quando os empresários não investem, quando os consumidores não fazem poupanças, quando os bancos exigem taxas de juros horrendas, quando se foge ao fisco, quando os pobres e desempregados recorrem à economia informal, etc. não é porque as pessoas não gostariam de ver o País a se desenvolver. O desenvolvimento, nessas circunstâncias, é algo muito abstracto e longínquo em comparação com necessidades materiais imediatas. Como dizia o famoso economista britânico, John Maynard Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos. A relação entre estado débil e atraso económico não é tão linear como o documento sugere. O atraso económico pode estar na origem do estado débil. Estes problemas lógicos sugerem, quer-me parecer, que o único País capaz de satisfazer este critério da acção colectiva é a África do Sul, onde o Estado, realmente, não é débil no sentido em que a noção é definida pela NEPAD. Nessa ordem de ideias, Moçambique encontra-se perante um problema estratégico deveras sério: para realmente tirar partido da NEPAD teria de, antes da adesão, criar condições para ter um Estado forte, algo aliás que tem constituído as acções de desenvolvimento desde a independência. Contudo, se lograr essa transformação terá de se interrogar se faz realmente sentido se juntar à NEPAD ou se não será prudente procurar a sua sorte sozinho. O pressuposto de racionalidade na base do documento precisa de ser interrogado, pois a acção colectiva não parece racional em todas as circunstancias. Nas circunstâncias actuais a adesão de Países como Moçambique só pode ter duas consequências: ou aderem e correm o risco de serem reprovados na fase de implementação porque necessariamente não vão satisfazer os critérios ou então não são reprovados porque se toma em consideração a boa vontade dos seus governantes. A primeira consequência recupera o espírito da NEPAD, mas é demasiado rígida para ter sucesso a curto e médio prazo. A segunda devolve a África aos maus hábitos do passado de fazer tudo com base na boa vontade dos dirigentes, mas tem a vantagem, por mais estranho que pareça, de ser a alternativa mais realística a longo prazo. Ela tem o mérito da paciência, algo que faz falta nos planos de desenvolvimento que volta e meia são cozidos aqui e acolá. Esta observação conduz-nos directamente ao segundo ponto. A NEPAD é informada por um economicismo latente. Parte-se dum modelo de acção racional em que se pressupõe que se os estados membros agirem no espírito da NEPAD tudo dará certo. Este pressuposto não é apenas um optimismo funcional. Na verdade, tanto acredita a NEPAD nisto que prevê penalizações contra os Países membros que ajam irracionalmente como forma de os obrigar a serem mais racionais. O problema deste pressuposto, todavia, é que vê o desenvolvimento africano em termos duma alternativa entre encorajar e penalizar maus hábitos.

Quem tem sensibilidade para os problemas africanos sabe, porém, que esta alternativa é problemática. O que faz realmente falta ao continente é, provavelmente, a paciência, sobretudo daqueles que, como os europeus, precisaram de muitos séculos – com muito sangue, violação de direitos humanos, miséria, etc. – para construírem o que querem que a África construa em décadas. Não se trata, pois não, de exigir as mesmas prerrogativas para os africanos, tanto mais que devemos realmente aprender dos erros dos outros, mas sim de contextualizar melhor o que se pode esperar dum continente que até há bem pouco tempo, e em nome da civilização, estava sob o jugo colonial, os seus povos foram vítimas de humilhação e opressão. Os retrocessos no processo de desenvolvimento devem ser vistos com mais desenvoltura. Não ajuda muito ao desenvolvimento ver neles sempre, e de forma persistente, a confirmação duma recusa inata africana de progredir. Compreender, é evidente, não significa concordar. O terceiro ponto tem a ver com a relação entre o processo de controlo e verificação da implementação e a consolidação da democracia. A NEPAD prevê consultas com toda a sociedade como base para a avaliação do desempenho dum governo. O facto deste mecanismo ainda não ter sido claramente formulado é menos grave do que o silêncio em torno do papel das instituições nacionais democráticas. A NEPAD representa, na sua essência, os melhores interesses dum País uma vez que tem como objectivo o desenvolvimento, a eliminação da pobreza, o fim das desigualdades de género, entre outros. Como tal a sua implementação constitui um indicador fiável das verdadeiras intenções dum governo. Nesta ordem de ideias levantam-se duas questões fundamentais. A primeira diz respeito a um pressuposto implícito no mecanismo de controlo. Este pressuposto consiste na ideia de que as organizações e grupos envolvidos no processo de avaliação serão motivados pelo interesse nacional no espírito da NEPAD. Este pressuposto, como deve ser óbvio, é problemático. Que interesse tem um partido de oposição, sobretudo no nosso Pais, ou uma organização da sociedade civil hostil ao governo de lhe abonar bom desempenho? E já agora que interesse tem uma organização favorável ao governo de o chumbar? Há aqui uma sociologia específica de grupos de interesse cujo denominador comum não é apenas a avaliação do interesse nacional, mas sim, e sobretudo, a própria reprodução social. O mecanismo de controlo pode ser uma oportunidade bem vinda de cada grupo definir os seus interesses, objectivos, população alvo, etc. O pressuposto do interesse nacional levanta a questão da objectividade da medida do compromisso. A NEPAD ainda não deu nenhuma resposta convincente a esta questão. A segunda questão refere-se à sobreposição de funções. A NEPAD prevê um processo de consulta que, em certa medida, vai funcionar como um processo eleitoral por procuração. Com efeito, uma espécie de colégio eleitoral sem mandato oficial vai avaliar o desempenho do governo por cima do eleitorado e do seu representante oficial, a saber o parlamento. O que significa isto para a consolidação da democracia no País? O problema resolver-se-ia na prática atribuindo peso relativo à opinião de cada interveniente. Nessa lógica, por hipótese, os partidos políticos teriam maior peso que as organizações da sociedade civil. Dentro do grupo dos partidos o de maior expressão podia ter ainda maior peso e por aí fora. Contudo, se se vai até este ponto porque não se prescinde logo com todo o aparelho político? Este ponto crítico problematiza a contribuição, ou não, da NEPAD para a consolidação da democracia nos Países aderentes. A iniciativa corre o risco de reproduzir os mesmos problemas lógicos que a indústria do desenvolvimento não se farta de produzir: democracia como diversão para o entretenimento dos doadores e não como diálogo social interno. A pergunta é, portanto, que tipo de instituições e que tipo de insumos precisam elas para estruturar esse diálogo social. Esta pergunta não parece ter ocorrido aos mentores da NEPAD, muito menos ao nosso País. O quarto ponto crítico é em relação ao que a NEPAD realmente pretende. A discussão até aqui sugere a ideia de que os objectivos desta iniciativa são claros. Mas serão mesmo? Para já,

esses objectivos parecem heterogéneos. A NEPAD quer desenvolver a África; a NEPAD quer acabar com a pobreza absoluta; a NEPAD quer restabelecer a confiança dos doadores na África; a NEPAD quer atrair investimentos, etc., etc. Cada um destes objectivos é nobre e merece a aprovação de qualquer País. Mas se é assim, é necessário fazer uma série de constatações e, no fim, perguntar se a NEPAD é absolutamente necessária. Um, o desenvolvimento de África é o desiderato de todos os governos; dois, a eliminação da pobreza absoluta é o que o PARPA se propõe; três, o cumprimento do que consta nos acordos com o Fundo Monetário Internacional e com o Banco Mundial bem como os entendimentos bilaterais (devia) restabelece(r) a confiança dos doadores; quatro, a implementação do Programa de Reajustamento Estrutural (devia) cria(r) as bases para a atracção do investimento estrangeiro. Daí novamente a pergunta: para que deve servir realmente a NEPAD? É difícil, quando se olha para a iniciativa a partir deste ângulo, não tirar a conclusão de que a NEPAD parece ter sido feita à medida da África do Sul. Para a política africana da RSA a NEPAD parece um instrumento mais do que ideal. E isto não deve ser entendido como crítica, mas sim como um alerta para a reflexão sobre os ganhos que advém ao País da satisfação de interesses alheios. Como dizia Samora Machel, estados não têm amigos, apenas interesses. Ora, qual é o interesse moçambicano na NEPAD que não é satisfeito por outras iniciativas e compromissos? Um bom argumento a favor da NEPAD podia ser o efeito que ele tem de dar maior coerência aos nossos esforços de desenvolvimento. Não obstante, uma vez que os planos de governação patentes nos programas eleitorais têm precisamente esse objectivo justificar a NEPAD nesses termos não me parece absolutamente convincente. Espero que tenha ficado claro que esta reflexão não pretende produzir argumentos para a rejeição da NEPAD. Apesar de tudo a iniciativa constitui um desafio útil. Parece a tal luz no fim do tunel. Por isso é necessário valorizá-la. Essa valorização passa por uma reflexão crítica que não se deve circunscrever apenas aos governantes.

Notícias, 20 e 21 de Junho 2003

Sugerindo

Repensar a soberania arriscando mais democracia (1) Quem tem medo do poder local? Na minha última viagem de carro ao Xai-Xai, há cerca de dois meses, faltou muito pouco para ser emprisionado. Os meus espíritos não me abandonaram. Fiquei tão enraivecido com o estado lastimoso da estrada entre Macia e Xai-Xai – nem parece que haverá eleições daqui há pouco – que se tivesse aparecido alguém a dizer que o nosso país é governado por gente do sul, como é costume dizer no nosso discurso político, tê-lo-ia, de certeza, estrangulado. Felizmente, ninguém apareceu a dizer isso. É por isso que digo que escapei da prisão. A estrada encontra-se naquele estado por razões fáceis de inventar. De certeza que o Banco Mundial ainda não disponibilizou fundos. Se disponibilizou ainda não se fez a recuperação porque alguém que devia decidir sobre a atribuição da empreitada ainda não teve tempo para o fazer. Ou outras desculpas semelhantes. O problema que quero constatar nesta reflexão não diz respeito directamente ao estado das nossas infra-estruturas. Diz respeito à atribuição de responsabilidades. Diz respeito à ordem política do nosso país. O estado da maldita estrada é da responsabilidade de quem? Vejo cinco candidatos. Eu próprio como utente, mas, aí vem a minha desculpa, a minha responsabilização é mediada pelo voto de cinco em cinco anos. Num mundo perfeito, penalizaria aqueles que brincam com os meus impostos. Segundo, o organismo do estado responsável pelas estradas. Aí começa um labirinto institucional. É o ministério dos transportes representado pela sua direcção nacional do assunto, a qual por sua vez é representada pela direcção provincial do assunto, a qual por sua vez, de certeza, é representada por uma direcção distrital ou por uma brigada ou por uma comissão ou por um grupo de trabalho. A seguir vem o governo provincial com toda a cadeia de bonecas russas da marca “babusca” que caracteriza o nosso edifício institucional estatal. Em quarto lugar vem o município de Xai-Xai ou de Macia ou então a administração distrital de Macia ou de Xai-Xai, cada um dos quais devia ter um interesse especial em resolver um problema essencial à viabilidade das suas unidades sociais. Finalmente, talvez seja responsabilidade da comunidade internacional doadora que nos quer ajudar. Só com estradas em condições é que nos podem socorrer de forma mais eficaz. De há algum tempo para cá o nosso país tem vindo a envidar esforços no sentido de resolver este emaranhado institucional. Estes esforços tiveram o seu início sério com o PROL (Programa de Reforma dos Órgãos Locais) em 1991. Desenvolveram-se com a Lei sobre o Quadro Institucional (Lei 3/94) que estabeleceu a autonomia dos distritos Municipais e viria, com a Lei 2/97 de 1996, a sofrer alterações significativas sem, contudo, o acordo dos partidos da oposição. Em 1998, num momento que devia ter sido de grande significado para a nossa democracia nascente, realizaram-se eleições autárquicas fantasmas sem a participação duma porção significativa do eleitorado. Apesar de todos os constrangimentos materiais e políticos os novos orgãos do poder local foram instalados nos 33 locais benditos segundo o sagrado princípio do gradualismo. Este facto aliado à indiferença dos doadores quanto aos protestos da oposição levou esta última a se dar conta de, provavelmente, ter cometido um grande erro estratégico com o seu boicote. E para piorar as coisas, a grande aposta que tinham sido as eleições presidenciais e legislativas ficou gorada. Seguiu-se a isto, como é sobejamente conhecido, o concerto desafinado no parlamento orquestrado pela oposição.

Entretanto, do lado da população presenteada com municípios, aumentou, de noite para o dia, o número de instâncias a responsabilizar pelo não funcionamento das coisas. Só isso, porque as coisas continuaram sem funcionar. O problema do lixo e dos buracos nas vias de Maputo continuou, se calhar até com maior virulência. A degradação da cidade da Beira bem como o tristemente famoso fecalismo a céu aberto não pararam. Entre outros males noutros quadrantes. As coisas continuaram sem funcionar porque ao lado das desculpas de sempre – não há verba, o financiamento não chegou, etc. – os novos órgãos trouxeram mais confusão do que esclarecimento. Embora a emenda constitucional de 1996, que tornava claro que os órgãos locais complementavam e não substituiam os órgãos locais nomeados pelo governo central, tivesse procurado delimitar as competências de cada órgão, a situação no terreno, uma vez instalados os novos órgãos, foi quase sempre de tensão e confusão. Em quase todos os municípios há uma guerra não declarada pelas receitas da taxa de mercados entre o município e a administração. Em Maputo, o primeiro ministro teve que recordar os vereadores do conteúdo das leis para proteger o seu governo da mendicidade do município. Daqui há pouco realizar-se-ão novas eleições autárquicas, desta feita até com a participação da maioria dos partidos da oposição. De 1998 para cá não houve uma melhoria significativa na situação económica do país que justificasse o alargamento do processo a mais locais. Não há nenhuma indicação, salvo o optimismo incorrigível das previsões económicas, de que esta situação mude nos próximos 10 anos. Ou por outra, os argumentos perfeitamente válidos do governo, segundo os quais a funcionalidade dum município depende em grande medida da sua base de contribuição, ameaçam condenar uma boa parte da população ao exercício indirecto da democracia. O que significa esta situação para o futuro da própria democracia? Que contribuição pode a municipalização prestar à consolidação da democracia? O que deve a democracia significar em Moçambique? Estas são as inquietações que estruturam esta reflexão. Vou tentar responder às inquietações em três partes. Na primeira e na segunda parte vou me debruçar sobre a coerência da democracia moçambicana identificando o patrimonialismo como razão de ser do estado. Na última parte vou tentar reflectir sobre a fundamentação da nossa ordem política com base na nossa própria história. Espero com esta reflexão suscitar algum debate. Trata-se, com efeito, dum exercício várias vezes adiado, mas que urge. A questão da democracia em Moçambique tem sido vista essencialmente como um problema técnico. Fazse a descentralização, por exemplo, para tornar o estado mais eficiente. Nesta ordem de ideias, quando se procuram subsídios além-fronteiras, o que interessa é como os outros descentralizam e como isso pode ser aplicado à nossa realidade. Não existe o trabalho mais profundo de reflexão sobre as bases filosóficas e antropológicas da nossa ordem política. Não existe a tradição de reflexão crítica sobre a nossa ordem constitucional. Os únicos livros que conheço a este respeito são dois: um de Óscar Monteiro dos anos oitenta e que já mesmo no momento da sua publicação era algo anacrónico; outro dum jovem jurista moçambicano que vive na Espanha, Américo Simango, que comenta a constituição. Digo bem: os únicos livros que conheço. O que eu conheço não coincide necessariamente com tudo quanto existe. Não obstante, faço esta observação para chamar a atenção à ausência dum debate à volta deste tipo de assuntos. Essa chamada de atenção é uma crítica à nossa classe intelectual – incluindo a mim próprio – por esta grande omissão. Se não somos nós a pensar o país, quem o fará? Os políticos, pelo menos neste aspecto, estão desculpados, pois até certo ponto a qualidade das suas decisões e acções depende da qualidade do debate intelectual que dá substância à nossa esfera pública. A política tem a tendência de ser tão medíocre quanto o ambiente intelectual em que se desenvolve. Ou tão boa. Democracia em Moçambique: uma obra inacabada

A construção da democracia em Moçambique assemelha-se à construção dum edifício, mas pela negativa. Meteram-se mãos à obra sem nenhuma reflexão sobre a planta, nem sobre os fins que o edifício ia servir. Pior do que isso, há vários engenheiros e cada um deles insiste no seu próprio pessoal, material e desenho espontâneo. Este veredicto é duro, mas pode ser fundamentado. O que faz da democracia moçambicana um edifício mal concebido é a constelação de interesses que acompanham a sua construção. Essa constelação encontra nas principais forças políticas a sua razão de ser. Por um lado, podemos identificar os interesses do partido no governo, cuja contribuição no empreendimento tem sido marcada pelo receio de perder a sua hegemonia política. Por outro lado, temos os interesses do principal partido da oposição, cujo contributo se orienta no sentido de reclamar maior protagonismo institucional. Destas motivações resultam formas de acção que dão uma identidade bastante peculiar ao processo de democratização do país. A Frelimo já teve uma visão de estado. Esta visão foi articulada e implementada com coerência nos anos que se seguiram à independência. A viragem política que se verificou nos anos oitenta pôs termo à essa coerência. Seguiu-se um período de fragmentação de propósitos no seio do próprio partido que o tranformou numa espécie de contínuo duma escola: desde essa altura para cá a Frelimo não tem feito mais nada do que guardar o estado ao estilo dum contínuo que também não faz mais do que velar pela manutenção do parque imobiliário. Quando mostra iniciativa é apenas para fazer arranjos. Isto explica a forma ciumenta como vela pela integridade territorial do estado. Qualquer iniciativa de descentralização e democratização do estado é vista, num primeiro momento, em termos do que significa para o poder central. A coerência estatal, na perspectiva do partido no poder, parece depender da integridade deste poder. Só num segundo momento é que entram em jogo considerações que têm a ver com eficiência governativa e participação política. A Renamo, pelo contrário, nunca teve uma visão de estado. Se a teve, nunca a articulou claramente. Sempre esteve na cómoda posição de dizer o que não quer. As condições em que se afirmou como força política nunca exigiram dela que formulasse uma visão de estado. Nas poucas vezes em que fez algo aproximado a isso, sobretudo por alturas de contactos intensos com o governo – como por exemplo por volta do Acordo de Nkomati e na altura das Conversações de Roma – a coerência da sua visão dependeu da sua capacidade de caricaturar a ordem política da Frelimo. Esta lacuna explica, em minha opinião, a obsessão que se tornou a conquista do poder central para o maior partido da oposição. Nada menos do que isso pode satisfazer a sua ambição por uma maior legitimidade política bem como pela legitimação retrospectiva da guerra. A descentralização duma forma particular e a democratização duma forma geral só fazem sentido, para a Renamo, se não põem em risco a sua conquista do poder central. Só depois de resolvida essa questão é que se tecem considerações sobre as vantagens dum maior envolvimento ao nível local. Há razões, portanto, para supor que a ideia do estado em Moçambique esteja refém desta constelação de interesses. O resgate consiste, a julgar pelo debate que tem acompanhado o processo de democratização, em satisfazer os interesses imediatos que orientam a acção dos principais protagonistas. Importa frisar que estas observações não constituem uma crítica a estes partidos. A sua acção é perfeitamente racional nas condições em que se encontram. Mais importante do que lamentar a instrumentalização da ordem política afigura-se-me a tarefa de estimular uma reflexão que vai para além de interesses imediatos. Essa tarefa consiste, julgo, no desafio de repensar a noção de soberania como primeiro passo na correcção dos erros de construção da nossa democracia. A soberania e algumas hipóteses

A ciência política identifica duas vertentes da noção de soberania, nomeadamente a soberania externa e a soberania interna. A primeira refere-se à capacidade dum estado de obter e garantir o reconhecimento da sua integridade territorial por outros estados. A segunda diz respeito à capacidade interna dum poder de se impor como tal. A história do estado revela algo muito interessante. Até à emergência do estado moderno – a partir do século XVIII – o principal desafio que se colocava ao estado era conseguir a soberania externa. Isto não quer dizer que não fosse necessário primeiro que um poder se impusesse internamente. Quer apenas realçar o facto de a existência do estado nessa altura ter sido precária em virtude da ameaça externa. Hoje em dia as coisas são diferentes, sobretudo para os estados de formação recente. Para estes – este é o caso do nosso país – o principal desafio é colocado pela soberania interna. É preciso conquistar a soberania externa, mas o direito internacional torna isso mais fácil do que garantir a coerência interna. A principal ameaça que os países africanos enfrentam é mais interna do que externa. Mas uma vez conquistada a soberania externa há fortes hipóteses de conseguir uma soberania interna nominal. Proponho, então, como primeira hipótese de trabalho a ideia de que a fragilidade da soberania interna está por detrás da incapacidade de pensar a ordem política para além de interesses imediatos. Com efeito, devido à esta fragilidade tem sido preocupação dos poderes estatais africanos garantir a soberania externa como apólice de seguro contra a instabilidade interna. É nesta perspectiva, por hipótese, que podemos avaliar a influência externa sobre o continente. Com efeito, podemos enumerar algumas dessas influências externas como fazendo parte de estratégias dos poderes estatais africanos de se manterem no poleiro. O alinhamento no tempo da guerra fria serviu, por exemplo, para isso. A gestão do auxílio ao desenvolvimento, nos nossos dias, serve os mesmos propósitos. Esta situação cria um dilema aos países africanos. A dependência do exterior torna-se funcional à manutenção do poder. Os governantes precisam dos recursos externos para poderem cimentar o seu poder interno. Eles legitimam-se na base da sua capacidade de atrair esses recursos para posterior redistribuição interna. Nessa ordem de ideias, o critério que se impõe sobre o eleitor no acto de decisão não é o programa político em si. O critério de decisão entre Chissano e Guebuza ou Dlhakama, para um actor político racional, circunscreve-se à questão de saber qual deles consegue atrair mais recursos. Isto trivializa a política. Proponho como segunda hipótese de trabalho a ideia de que a instrumentalização da soberania externa se alimenta duma visão patrimonialista do estado. Noutros termos, o estado é visto como propriedade privada dos detentores do poder, de cuja acção e discrição deve depender o bem estar da sociedade. Há, na prática africana do estado, uma espécie de absolutismo esclarecido anacrónico. Aqui surge outro dilema que importa referir. A distribuição interna do poder bem como a lógica do seu exercício não obedecem, até certo ponto, à funcionalidade, digamos, do aparelho de estado. Elas alicerçam-se em relações clientelistas que se constituem como o principal vínculo político. O critério popular não é a eficiência ou integridade, mas sim os contactos que o representante político tem na “nação” da mesma maneira que à “nação” interessam apenas aqueles representantes que não coloquem em perigo o vínculo clientelista pedindo, por exemplo, mais autonomia para as regiões. Neste caso também, a política trivializa-se. O conceito de patrimonialismo está a conhecer um renascimento na ciência política africana. Muitas vezes, contudo, é empregue de forma problemática. Por essa razão importa especificar o sentido em que eu o emprego nesta reflexão. Patrick Chabal e Jean-Patrick Daloz, por exemplo, num livro mais ou menos recente com o título “Africa works” (A África funciona; na edição francesa os autores preferiram o título “L’Afrique est parti” – a África arrancou – em referência a um livro famoso dos anos sessenta de René Dumond intitulado “L’Afrique est mal parti” – A África arrancou mal) utilizam a noção de patriomonialismo para defender a ideia de que a fragmentação do poder por redes clientelistas é funcional aos sistemas políticos africanos. Através dessa fragmentação as elites

políticas africanas instrumentalizam a desordem e o caos para fins próprios. Um uso mais cuidado do conceito é proposto por Jean-François Médard, africanista francês, que o sugere como uma maneira de explicar a disfuncionalidade do político em África. O uso que faço deste conceito nesta reflexão é meramente descritivo. Pretendo, com ele, destacar duas características da prática do estado em África que me parecem essenciais. Primeiro, quero destacar a ideia de que o poder do estado constitui uma prerrogativa da classe política. Segundo, chamo a atenção para a crença da classe política numa suposta eleição quase divina para trazer a felicidade ao povo. Portanto, a visão patrimonialista do estado consiste na ideia de que o poder do estado só é legítimo se concentrado ao nível central e se tiver como objectivo trazer um bem-estar definido pelos detentores do poder. Esta visão assumiu várias formas na nossa história política, sobre as quais me vou debruçar na segunda parte desta reflexão.

Repensar a soberania arriscando mais democracia (2) As metamorfoses da visão patrimonialista Tenho em mim que o que dá coerência ao nosso estado é uma lógica patrimonialista herdada do período colonial. Nesse sentido, identifico três formas de estado, nomeadamente (i) patrimonial-predador, (ii) patrimonial-absolutista e (iii) patrimonial-burocrático. Estas formas correspondem, respectivamente, ao período colonial, socialista e actual. Há variações no meio, mas interessam-me apenas os momentos marcantes. Não incluo nesta categorização o período pré-colonial por se me afigurar pré-estatal no sentido em que entendo a noção de estado. Na verdade, nem mesmo os antropólogos do Ministério da Administração Estatal consideram as formas linhageiras de exercício de poder como sendo estatais. Embora eles sejam pela sua consideração no processo de descentralização não o fazem no intuito de recuperar tradições susceptíveis de fundamentar a concepção do estado. Mais interessante para os meus propósitos aqui seriam as unidades políticas mais abrangentes, como por exemplo o império de Gaza. Não as considero por achar que se baseavam numa estrutura rapinosa auto-destrutiva que dependia, porém, da viabilidade de unidades linhageiras. Vou descrever, em poucas palavras, cada uma destas formas. Utilisarei, para esse efeito, os critérios descritivos com os quais defino o patrimonialismo: Por um lado, portanto, o poder estatal como prerrogativa da classe política e por outro lado o bem-estar do povo como razão do estado. Apresso-me a fazer a devida vénia aos historiadores na esperança de que me perdoem algumas imprecisões históricas. De qualquer maneira, penso que é justo e legítimo situar o início do estado colonial nos finais do século XIX. Foi responsável por ele António Enes, na altura comissário régio para Moçambique. António Enes dirigiu na altura uma comissão que elaborou o famoso regulamento do trabalho indígena. Este documento pouco estudado na nossa história ocupa uma posição central na própria viabilidade do poder colonial. A regulamentação do trabalho indígena surgiu como uma resposta extremamente original à questão que se colocava, na altura, em Portugal, sobre a necessidade das colónias. António Enes e seus colaboradores, a maioria dos quais viria mais tarde a ocupar postos de governadores em Moçambique e noutras colónias portuguesas, argumentou a favor da manutenção das colónias. Ele impôs como condição para isso que as colónias fossem úteis à metrópole. Para que tal acontecesse, argumentou, era necessário, para encurtar a história, obrigar os indígenas a trabalhar. A obrigação de trabalhar, viria a comentar mais tarde, em 1964, um observador francês, M. Aurillac, foi a regra de ouro da colonização portuguesa. Através desta regra os portugueses puseram os africanos literalmente a construir o estado colonial. Este foi erigido em grande medida na base do trabalho migratório e do trabalho forçado de tal maneira que muitos dos colonos que vinham a Moçambique inicialmente enriqueciam com maior facilidade servindo de intermediários entre os africanos e empregadores na África do Sul do que fazendo eles próprios a agricultura. Em termos da prerrogativa do poder estatal o estado colonial partia do princípio de que era seu dever moral assumir a tutela dos indígenas. Para esse efeito, António Enes considerava que não era oportuno aplicar para os africanos os mesmos critérios de cidadania válidos para os europeus. Os africanos deviam ser regidos segundo as suas próprias normas até atingirem a maturidade, no caso até se tornarem portugueses nos seus hábitos. Há uma análise bastante interessante da política de assimilação feita por Domingos Arouca nos anos cinquenta. Num artigo intitulado “Análise social do regime do indigenato” Arouca, um pouco à semelhança de Mondlane, aponta para as contradições dessa política mostrando o seu sustento racista:

enquanto os africanos têm que provar a sua civilização os brancos, analfabetos ou não, não têm que provar nada. O que importa reter da ideia de António Enes, e que foi posta em prática, com muitos solavancos, a partir de 1914, é o princípio que hoje renasce em Moçambique da primordialidade das tradições africanas. Com efeito, o estado colonial português, longe de conferir autoridade às instituições políticas africanas reinventou-as para o servirem. Do ponto de vista da função do estado o princípio geral do estado colonial consistia na ideia de civilização do indígena. O estado arrogou-se o direito de conduzir o indígena à civilização mesmo que este não quisesse, pois era obrigação moral dos povos avançados pegar os atrasados pela mão. Quer a tutela, quer a ideia da civilização constituiam, em minha opinião, um subterfúgio do estado colonial para explorar a mão de obra africana, como aliás ficou patente em vários relatórios internacionais que criticaram Portugal por esta política. A ideia de predação vem justamente desta agenda escondida. Portanto, o estado colonial era patrimonial-predador na medida em que se servia da ideia de tutela e de civilização para sugar os africanos. O estado que, em 1975, substitui o estado colonial tem também uma orientação patrimonialista. Esta orientação manifesta-se de duas maneiras. Primeiro, na obsessão da Frelimo de então de formar o homem novo. O princípio por detrás deste desiderato é a disciplinarização de corpos, isto é a insistência na transformação do homem como condição imprescindível de realização dos objectivos do poder. Não é por acaso que aumentou a indisciplina nas escolas com a chegada da Frelimo. Enquanto que a prerrogativa do poder do estado colonial assentava na tutela do indígena através da obrigação de trabalhar e de instituições políticas indígenas, a do poder socialista assentava na transformação do homem através da sua indoctrinação e integração em estruturas políticas articuladoras do poder central. Segundo, na função do estado que consistia em construir o socialismo como única maneira de trazer o bem-estar ao povo. Hesitei entre chamar este estado despótico, esclarecido ou absolutista. Optei por absolutista por me parecer que captura melhor a essência da vontade do poder da Frelimo no período imediatamente a seguir à independência. Na verdade, a característica marcante deste poder era o absolutismo, isto é a concentração egoísta e ciumenta do poder nas mãos duma nomenclatura. Era um absolutismo esclarecido, disso não pode haver dúvidas, mas absolutismo. Os assomos de despotismo que se verificaram aqui e acolá eram efeitos secundários desse absolutismo. Portanto, o estado patrimonial-absolutista foi o estado que esteve na base da codificação do papel dirigente da Frelimo em detrimento de outros projectos possíveis de sociedade. Não me parece necessário para os meus propósitos aqui tentar descobrir maldade neste projecto totalitário. Provavelmente, este absolutismo veio da própria história do nacionalismo moçambicano. Tendo liberto o povo colocou-se a questão de saber o que fazer com essa liberdade. A Frelimo terá interpretado o seu papel histórico como um dever moral que se traduzia necessariamente na adopção duma ideologia política que prometia a melhor maneira de corresponder ao desafio histórico. Este sentido de dever histórico deu asas missionárias aos novos detentores do poder ao mesmo tempo que os tornou intolerantes em relação a alternativas. Finalmente, a partir dos meados da década de oitenta o estado moçambicano começa a ganhar uma nova orientação. Concorrem para o efeito vários factores, nomeadamente o abandono do projecto socialista, a crescente influência do auxílio ao desenvolvimento bem como a disputa do poder político no contexto multipartidário. O estado patrimonial-burocrático tem duas características essenciais. Uma é a sua transformação em gestor do auxílio ao desenvolvimento. Com efeito, o poder do estado – e reside aí a sua atracção – baseia-se precisamente na coordenação da intervenção externa no nosso país. Governar significa conceber, implementar e avaliar projectos. A outra característica é a submissão da função do

estado ao grande objectivo do desenvolvimento. Através do desenvolvimento o estado vai poder obrigar o povo a ser feliz. Patrimonial-burocrático parece um contra-senso na medida em que o que é patrimonial, por definição, exclui a existência duma burocracia no sentido restricto do termo. Penso que esta designação, apesar de tudo, se justifica. Por um lado, ela justifica-se porque capta um aspecto essencial do poder de estado que reside essencialmente na administração de coisas e pessoas. Por outro lado, contudo, justifica-se pelo facto de trazer à superfície à incongruência de todo o edifício. Com esta proposta de caracterização do estado moçambicano não pretendo sugerir uma nova historiagrafia para o país. Há pessoas mais competentes do que eu que podem fazer isso. Pretendo, isso sim, realçar um aspecto central à concepção da ordem política em Moçambique. Esse aspecto é, como espero ter mostrado, a lógica patrimonialista. Dessa maneira espero, no que se segue, demonstrar que não admira a ausência duma filosofia de estado e, também, que não devemos ficar admirados se o edifício que pensamos estar a construir se desmoronar com facilidade. Da autonomia do indivíduo como princípio regulador da ordem política O que se segue agora é uma aventura em filosofia política. Não tenho nenhuma qualificação especial para isso senão a leitura assídua de filosofia política, sobretudo dos escritos dos filósofos Immanuel Kant, Johan Gottlieb Fichte, ambos alemães, e de John Locke, inglês, todos eles do século XVIII. E um pouco de imaginação, espero. Nestes escritos eles criticam o estado absolutista e procuram fundamentar um estado liberal. Tenho em mim que estas críticas contéem subsídios de alguma utilidade para a tarefa de repensar a soberania em Moçambique, pois é disso que se trata. Interessa-me, sobretudo, a partir destas críticas formular uma antropologia que possa estimular a reflexão. Essa antropologia baseia-se na ideia da autonomia do indivíduo que irei explicar de forma mais detalhada mais abaixo. Antes disso, porém, importa realçar alguns aspectos da crítica ao estado absolutista. Esta rejeita a ideia de que é do pelouro do estado trazer a felicidade às pessoas. Kant, por exemplo, identifica três necessidades, nomeadamente a liberdade, a igualdade e a autonomia em relação às quais o estado deve servir de contexto. Não é sua tarefa satisfazê-las, mas sim criar as condições para que cada um as satisfaça. Fichte é ainda mais radical na sua crítica ao estado absolutista e pela importância do que diz prefiro citá-lo directamente (numa tradução, do alemão, que é da minha inteira responsabilidade): “não sabemos o que torna possível a nossa felicidade: se o Príncipe sabe e sua função é de lá nos conduzir, então temos que seguir o nosso líder de olhos fechados; ele faz connosco o que lhe apetece e se nós lhe perguntamos ele assegura-nos que a nossa felcidade é necessária; ele coloca à humanidade uma corda no pescoço e grita: Quietos! Quietos! É tudo para o vosso próprio bem – Não, Príncipe, tu não és o nosso Deus. Dele esperamos que venha a felicidade; de ti esperamos apenas a salvaguarda dos nossos direitos. Não é bondoso que deves ser para connosco; deves é ser justo”. Sem prejudicar a ideia da justiça e da liberdade penso que é possível fundamentar a ordem política moçambicana com base na ideia da autonomia do indivíduo. Inspiro-me, para o efeito, num dos elementos de Kant, nomeadamente a ideia da autonomia ou auto-suficiência individual. Ao contrário de Kant, porém, que concebe a autonomia como a necessidade individual de prover pelas suas próprias necessidades sem, portanto, a intervenção do estado, proponho uma concepção da autonomia do indivíduo que se articula com a nossa história. Proponho, em poucas palavras, um princípio regulador da acção política que se funda no devir histórico de Moçambique. Faço recurso a um desafio lançado em tempos pelo filósofo Severino Ngoenha para dar à consciência histórica uma dimensão moçambicana. Esse

princípio contém, dentro de si, creio, a ideia de liberdade e de justiça que serve de suporte à fundamentação do estado liberal na sua concepção kantiana. O princípio da autonomia do indivíduo refere-se, no caso concreto de Moçambique, a um aspecto que tem sido central, na história do estado moçambicano, à constituição dum espaço cívico. Esse aspecto é o desejo individual de emancipação no seu sentido mais lacto. Emancipação social, económica e política. Este desejo individual de emancipação manifestase, em todas as fases da história do estado, como um impulso extremamente instrumental na inviabilização do projecto político. Vamos por partes. A erecção do estado patrimonial-predador teve lugar num momento de grandes convulsões sociais em Moçambique. Regista-se, por influência da integração das sociedades autóctones no sistema capitalista mundial, uma profunda desagregação social que se manifesta de várias maneiras. A migração além-fronteiras, a migração urbana, a adopção de novos quadros normativos como por exemplo a conversão ao cristianismo ou suas versões sincréticas. O efeito destas transformações é profundo. O historiador sul africano Patrick Harries, por exemplo, mostrou no seu livro sobre o trabalho migratório no sul de Moçambique, o impacto que a nova forma de acumulação de rendimentos teve sobre determinadas instituições sociais. Um exemplo marcante é o lobolo. Enquanto que no período anterior ao trabalho migratório os velhos levavam vantagem sobre os jovens em virtude do tempo que tinham tido para acumular a riqueza necessária para obter uma mulher, no período subsequente são os jovens, com as suas libras, que estão em vantagem. Mesmo mais recentemente, na altura das carências, vimos a capacidade do trabalho migratório de alterar profundamente as hierarquias sociais. A historiadora do Centro de Estudos Africanos, Teresa Cruz e Silva, revela também, no seu livro sobre o papel da igreja Presbiteriana na formação do nacionalismo moçambicano, o impacto social da sua presença. Este processo de desagregação social não faz dos africanos vítimas passivas da mudança. Antes pelo contrário, ele constitui um contexto dentro do qual o indivíduo se liberta da força opressora do costume e da tradição para se realizar. Em escritos mais académicos publicados noutros quadrantes já defendi a tese de que o colonialismo constituiu uma negação da modernidade. Noutros termos, ao contrário da ideologia colonial que sempre insistiu na ideia de que a colonização visava trazer o africano da tradição para a modernidade, a realidade histórica indica que o colonialismo procurou sempre negar ao africano essa modernidade prometida. A regulação do trabalho indígena, como vimos mais acima, ao introduzir o princípio de tutela, colocou justamente sobre a cabeça dos africanos um pé que os impedia de explorar o mundo prometido pelo trabalho assalariado. Não é por acaso que em quase todas as colónias a questão do africano assalariado é sempre associada à sua degeneração. A sua salvação, estranhamente, é sempre vista em termos do retorno às tradições. A este propósito continua sem paralelo a obra “O mineiro moçambicano” do Centro de Estudos Africanos que mostra as contradições da missão civilizadora do colonialismo. O nacionalismo, portanto, mais do que o desejo de fundação duma nação, como tem sido hábito argumentar, pode ser explicado pelo desejo de autonomia individual negada pelo poder colonial. Esse desejo de autonomia individual encontra, na ideologia do nacionalismo, uma forma conveniente de articulação. É só olhar para a estrutura social do nacionalismo moçambicano para ver que são essencialmente indivíduos frustrados pelo sistema colonial que contra ele se insurgem: enfermeiros, professores, estudantes, funcionários menores. Volvidos 10 anos duma luta gloriosa pela auto-determinação as mesmas pessoas que a empreenderam por se sentirem asfixiados pelo sistema colonial ergueram um estado que fez quase a mesma coisa. Tal como o estado colonial, o estado pós-independência estava cheio de boas intenções. Queria tornar as pessoas mais felizes segundo critérios por ele próprio definidos. A formação do homem novo exigia a submissão da vontade individual à vontade colectiva. O governo da Frelimo criou oportunidades para homens, mulheres e crianças,

alargou o acesso à educação, à saúde, levantou barreiras ao exercício de actividades laborais. Tudo isto segundo critérios que obedeciam às necessidades da nação. E essas necessidades eram definidas pela nomenclatura segundo o objectivo supremo de construção duma nação socialista. A procura de emancipação individual constituiu, também neste período, uma das formas de resistência do indivíduo à insistência do poder em ser o seu intermediário na sua luta pela emancipação. Esta resistência não teve, em minha opinião, a sua principal manifestação na guerra da Renamo, embora esta, como aliás muito bem observou o antropólogo francês, Christian Geffray, na sua análise das causas da guerra, tivesse introduzido um elemento de violência. Para mim, a manifestação típica dessa resistência foi o fenómeno de “abrir”, ao qual mais tarde se juntou a apatia e indiferença em relação à defesa da “pátria”. Tornou-se moda nos círculos académicos, sobretudo nos anos oitenta, explicar a guerra da Renamo com base na ideia de que se tratava duma rebelião das tradições culturais africanas contra o modernismo estrangeiro da Frelimo. A Renamo teria-se-ia, nessa ordem de ideias, servido deste descontentamento cultural para formular uma alternativa ao comunismo. Christian Geffray, o antropólogo há pouco citado, contribuiu muito para reforçar esta impressão, sobretudo por causa do próprio método de investigação que a sua disciplina privilegia. Apoiou-se, na sua investigação, na reconstrução de versões linhageiras do conflito e isto, inevitavelmente, deu uma coerência “africana” à insurgência. O argumento das tradições culturais que fincam pé foi, então, utilizado para criticar aspectos da política de socialização do campo praticada de forma incompleta e desorganizada pela Frelimo. As aldeias comunais passaram a ser, no âmbito desta perspectiva, as principais fontes do descontentamento popular uma vez que separavam as populações dos seus antepassados. Na confusão analítica que se seguiu a estas lucubrações pseudo-científicas abateu-se sobre o debate político interno a ideia de que era imperioso reabilitar a autoridade tradicional como forma de recuperar a legitimidade perdida no campo. A ser correcta esta tese, então a ideia que defendo nesta reflexão, nomeadamente o primado do indivíduo como princípio regulador do nosso devir histórico como nação, precisa de melhor justificação se quer se manter de pé. Nunca concordei e continuo a não concordar com a tese das tradições culturais. Desde 1998 que faço pesquisa de terreno no meio rural sobre problemáticas afins. Provavelmente, coloco perguntas erradas. Mas até aqui o único que consegui apurar é a importância da autoridade – da ordem no dizer dos meus informantes – no seu quotidiano. Trata-se duma autoridade que não tem necessariamente adjectivo. Não é tradicional, nem é moderna. É apenas uma autoridade que garante a integração da comunidade. Como me disse um aldeão, curiosamente de nome Macamo “o problema é que as pessoas novas não são cumprimentadas”. A expressão em changana é “ku rhungulisa” e refere-se ao ritual típico de perguntar pela saúde da pessoa, dos seus familiares e amigos, e de informar à pessoa sobre as normas da terra em que ela se encontra. A autoridade tradicional tem sido justificada com base na ideia de que ela estabelece a ligação com o mundo dos espíritos, o que faz dela um elemento importante de garantia da estabilidade natural. Nas minhas pesquisas o que tenho constatado é que, de facto, a ligação com o mundo dos espíritos é importante para algumas pessoas. O infortúnio, as calamidades naturais e sociais são explicados, por algumas pessoas, com recurso a este mundo. Mas essas pessoas não insistem necessariamente na acumulação de tarefas da autoridade. Isto é, a pessoa que detém o poder político não precisa necessariamente de pertencer à linhagem local, dona dos espíritos. O único que ele tem que fazer é respeitar os usos e costumes da terra. A credulidade de alguns investigadores impede-os, muitas vezes, de ver as coisas que realmente se passam. Não me esquecerei nunca duma comunidade rural que durante o meu trabalho de campo me disse, repetidamente, que tinha uma mata sagrada onde, regularmente, fazia as suas cerimónias (“gandzelo”). Pedi para ver o local e depois de muitas advertências

sobre todos os taboos que era preciso respeitar fui acompanhado por uma comitiva local para o sítio onde a mata sagrada devia existir. Encontrámos apenas uma machamba. De gibóias sagradas, calabaça de água, trapos ornamentais e galinhas rituais nem sombra.

Repensar a soberania arriscando mais democracia (3) Ainda sobre a autonomia do indivíduo O nosso meio rural não é feito apenas de comunidades apegadas às suas tradições. É feito, também, de pessoas que pertencem a confissões religiosas cristãs e maometanas, sincréticas e animistas; é feito, também, de pessoas que estudam, tornam-se médicas, engenheiras ou sociólogas; é feito, também, de enfermeiros e envagelistas que lutaram pela libertação deste país e, consagrados, se viraram contra aspectos do meio que os viu nascer. O nosso meio rural é feito, portanto, também desta vontade de emancipação individual que tem tecido os fios que dão testura à nossa história. O projecto modernista da Frelimo, portanto, não encalhou nas pedras imovíveis da tradição, mas sim na sua própria incapacidade de libertar a energia que é a emancipação individual. Assistimos, agora na fase do patrimonialismo-burocrático, à proliferação de promessas de emancipação. O famoso processo de mundialização é provavelmente responsável por isso. Todos têm agora direitos: altos e baixos, mulheres e homens, adultos e crianças, atrasados mentais e pessoas sãs, homossexuais e heterosexuais, camponeses e mineiros, machanganas e makuas, curandeiros e médicos, indunas e ministros, etc. Finalmente, o progresso está a fazer a entrega da sua promessa. Ainda bem que é assim, já não era sem tempo. O homem, como escreveu há séculos o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau no prâmbulo do seu livro sobre o contracto social, nasceu livre, mas em todo o lado vive em estado de servidão. Ao lado da gestão do auxílio ao desenvolvimento o nosso estado tem que gerir os vários defensores dos direitos inalienáveis das pessoas. Fica sem mãos a medir porque, frequentemente, esses direitos estão a ser produzidos diariamente e precisam de ser ratificados pelo estado a uma velocidade que teria afogado a Europa se, no seu processo de desenvolvimento, tivesse tido que responder à metade das solicitações a que estão submetidos os novos estados. Mais importante do que isso, contudo, é que a autonomia do indivíduo se serve desse discurso de emancipação para reclamar espaço para si próprio. Essa reclamação pode ser vista pela classe política como uma afronta à sua prerrogativa de poder. Noutras palavras, a proliferação das promessas de emancipação pode constituir uma ameaça à soberania interna. Pode, digo bem. Que fazer? Eis a pergunta que com todo o seu peso leninista (para os ateus) e tomista (para os religiosos) se abate sobre nós. A minha sugestão é de que a autonomia do indivíduo pode ser um princípio regulador da ordem política nacional. É o principal impulso por detrás da constituição dum espaço cívico capaz de arbitrar o jogo político. Tenho em mim que ele constitui um ponto de partida indispensável para repensar a soberania em Moçambique. Proponho-o como contributo para uma reflexão sobre a fundamentação da nossa ordem política. Segundo este princípio regulador a prerrogativa de poder do estado funda-se na ratificação dos subsídios externos à autonomia do indivíduo e transmite ao estado a função de garantir essa autonomia ao nível interno. Em quinhentas: Traduzo a autonomia do indivíduo como a procura de emancipação social, política e económica. A Declaração Universal dos Direitos do Homem constitui, nesse sentido, o fundamento antropológico dessa autonomia. O nosso estado obtém soberania externa essencialmente a partir da ratificação destas normas. Como a soberania externa constitui um elemento central de legitimação da prerrogativa do poder de estado penso que não há nenhuma contradição em alicerçar a constituição do nosso estado nesse fundamento. A ratificação destas normas implica, para o estado, que se compromete, ao nível interno, a garantir a satisfação individual dessas normas. A questão interessante a este respeito refere-se ao sentido dessa garantia. O que significa dizer que o estado garante a satisfação individual dessas normas? Garantir não significa que deve ser do pelouro do estado satisfazer as necessidades materiais das pessoas. Significa, isso sim,

que o estado, através do direito, deve garantir que não haja obstáculos de qualquer natureza à satisfação individual dessas normas. A autonomia do indivíduo é abrangente. Todos têm direito a ela e por essa razão compete ao estado criar um quadro através do qual a prossecução dessa autonomia por um indivíduo não afecte a autonomia de outro. O estado torna-se, assim, um mal necessário que vela pela observação do contracto social que Moçambique é. Sirvo-me aqui duma distinção que a filosofia política faz entre direito positivo e direito natural. O direito positivo refere-se ao princípio segundo o qual a única lei válida é aquela que é explicitamente codificada. Nessas circunstâncias, os tribunais só iriam julgar contra a tortura se a sua ilegalidade estivesse estabelecida constitucionalmente. O direito natural, em contrapartida, reconhece uma instância moral e ética superior à constituição e ao que é explicitamente legislado. A ética cristã, maometana ou africana, por exemplo, constituiriam a base da integridade e dignidade humana. Uso esta distinção para sugerir que o momento internacional que vivemos impõe a países como o nosso a Declaração Universal dos Direitos do Homem como uma espécie de direito natural. Não perdemos a nossa soberania reconhecendo a prioridade deste direito como fundamento da legitimidade interna da nossa ordem política uma vez que ele, na essência, satisfaz o impulso de emancipação na base do nosso devir histórico. O leitor atento vai, provavelmente, suspeitar que eu esteja, nesta reflexão, a desfiar uma filosofia política individualista que deitaria por terra todas as conquistas feitas no país ao nível da satisfação de necessidades básicas. A impressão do individualismo é perfeitamente legítima. O princípio que me parece orientar o nosso devir histórico tem na sua base uma antropologia que parte dum indivíduo autónomo. Nesse sentido, ela tem implicações filosóficas individualistas. Mas toda a teoria do estado moderno, mesmo a de orientação marxista, tem no indivíduo a sua principal unidade de partida. Não se trata, contudo, do mónade de Leibnitz, dum indivíduo totalmente isolado e entregue ao seu próprio mundo. Trata-se, antes pelo contrário, dum indivíduo que tem relações sociais, ou melhor ainda, dum indivíduo que precisa dessas relações sociais para articular a sua emancipação. A minha posição nestas coisas aproxima-se da escola pragmática americana, sobretudo do filósofo John Dewey, que definiu o estado como esfera pública. Essa esfera pública é, para ele, o espaço de regulação e controlo das consequências de acções. O que nós fazemos tem sempre consequências que afectam os outros. A esfera pública é o espaço onde domesticamos essas consequências. Nesse sentido, atribuir ao estado a tarefa de garantir a autonomia do indivíduo significa, na realidade, produzir a sociedade. Significa ditar regras de convivência para o bem individual e, por isso mesmo, colectivo. Penso que uma caracterização justa desta posição seria de dizer que se trata dum apelo a um estado minimalista. Acostumados que estamos ao estado patrimonialista é natural que um apelo como este choque. O que será dos pobres, dos excluídos, daqueles para quem a natureza foi madrasta? Quem se ocupará deles? Quem vai reparar as estradas danificadas, de quem será a responsabilidade pela infra-estrutura? E os recursos deste país, quem responderá por eles? Estas e mais questões são legítimas e devem, no processo de reflexão, ser respondidas. A resposta que posso dar aqui e agora, contudo, é simples: o indivíduo autónomo, na sua luta quotidiana pela emancipação, tomará conta de tudo isso. Precisa apenas dum contexto claro de acção que um estado minimalista pode garantir. Direito, polícia, governo.

Conclusão: Arriscar mais democracia Posto tudo isto a conclusão é evidente. A consolidação da democracia no nosso país é impossível sem um processo consequente de descentralização. Esta, contudo, não é apenas um problema técnico. É algo que vai de mãos dadas com uma reflexão séria e abrangente sobre a nossa ordem política. Precisa de visões, mas visões que não se produzem em convénios.

Visões que se produzem na interpelação da nossa experiência histórica como afirmei, com Severino Ngoenha, num artigo publicado no Notícias a propósito da ideia de África. Temos que ter a coragem de arriscar mais democracia. A insistência num poder central desmensurado como prerrogativa do estado parece-me irracional. O nosso estado não tem a capacidade de corresponder a tamanhas expectativas. E se não muda de concepção nunca, provavelmente, terá essa capacidade. A concentração do poder é uma cilada consciente na medida em que põe em perigo a soberania interna com a promoção duma relação patrimonial entre a sociedade e o estado. O nosso país registou avanços extremamente positivos na introdução da democracia. O mundo inteiro admira o processo de paz bem como a relativa estabilidade política alcançada. Já se realizaram duas eleições presidenciais e legislativas. Não foram isentas de problemas, mas nem por isso o país enveredou pelo caminho da instabilidade. É tão notável este desempenho que até a recusa da oposição em assumir o seu devido papel no parlamento pode ser interpretada como sinal duma certa maturidade do sistema. Não devemos, contudo, ficar complacentes. A nossa democracia é ainda deficiente. É deficiente porque para além do sério problema do subdesenvolvimento, que a torna cara, ela não promove a participação política popular. Há muita coisa que é decidida pelo executivo sem consulta popular e, por vezes até, sem consulta do parlamento. A adesão a organismos como SADC, UA, convénios internacionais, etc. é, na maior parte das vezes, por razões de interesse nacional. Contudo, seria útil que o executivo colhesse a opinião e o aval do eleitorado, pois a virtude da democracia não reside apenas em fazer o que é mais certo mas sim em argumentar e defender decisões de forma transparente. A nossa ordem política tem que devolver a responsabilidade ao indivíduo. Isso faz-se reforçando o poder local. Quem visita com frequência o meio rural sabe das consequências nefastas deste patrimonialismo. As pessoas perderam o sentido de responsabilidade. Estão numa espera eterna, e irritante, pelos projectos que os vão desenvolver. E se a espera se circunscrevesse apenas aos tais projectos podíamos suspirar e dizer que ainda não está tudo perdido. Mas não é assim. Não só estão à espera dos projectos como também estão à espera de alguém que lhes faça um projecto para poderem pedir a alguém para lhes fazer um projecto. Reforçar o poder local significa confiar nas pessoas. Aceitar que devam ser elas a definir o que querem fazer da sua vida, e quando. Encorajá-las a assumir a responsabilidade pelo seu próprio bem-estar. O receio de que as pessoas não estejam suficientemente maduras para assumir tamanha responsabilidade é infundado. Parecendo que não, o nosso país está cheio de experiências que desmentem este receio. Os Grupos Dinamizadores da Frelimo foram, apesar de tudo, uma experiência exemplar no exercício local de poder. Foram veios de transmissão de orientações, é verdade, mas foram também verdadeiros viveiros da participação política ao nível local. Nas zonas rurais, onde trabalho, continuam a ser estas estruturas que garantem a ordem. São elas a verdadeira autoridade e gozam de legitimidade local. Alberto Machavele, o malogrado cantor, tem uma canção sobre o lobolo que demonstra a maturidade das pessoas. Nessa canção ele fala duma reunião da OMM em que se está a discutir os argumentos a favor e contra a abolição do lobolo. É um debate franco, aberto e perspicaz. Mostra como as pessoas conhecem e podem defender as suas opções. É uma excelente demonstração da competência no debate que deve ser constitutiva de qualquer sociedade. É também digno de realce o contributo das igrejas na introdução das pessoas ao exercício do poder. Muitas comunidades religiosas, sobretudo as igrejas protestantes como a Presbiteriana, Metodista, Anglicana, Baptista e também as proféticas como a Assembleia de Deus, Zione, 12 Apóstolos, Velhos Apóstolos, etc. bem como as comunidades reunidas em volta das Mesquitas, são verdadeiras organizações democráticas de massas. Há momentos que penso que o sucesso das eleições em Moçambique não se deveu apenas às campanhas de

sensibilização – à chamada educação cívica – mas sobretudo à experiência democrática que muitos moçambicanos trazem das suas afiliações religiosas. Estas experiências são um potencial que deve ser usado para arriscar mais democracia. Se bem que é verdade que quem corre por gosto não cansa, não vejo nenhuma razão plausível para o estado se sobrecarregar da forma como o faz. O argumento financeiro contra a autarcização também não me parece apropriado, pois o dinheiro que faz falta aos municípios é, em certa medida, o dinheiro que sustenta as burocracias provinciais e distritais com os seus mini-governos. Em certo sentido, o meu apelo não é apenas porque quero viajar de Maputo ao Xai-Xai numa estrada em condições. Isso também, mas é sobretudo porque quero saber a quem responsabilizar e fazê-lo pagar pelos estragos à viatura, aos meus nervos e à minha imagem pelo atraso. Quero saber quem atenta contra a minha autonomia individual, e agir para a preservar.

Notícias, 11, 13 e 14 de Outubro de 2003

Duas soluções ao problema dos “cornos da revolução” A nossa sociedade não é coesa. Toda a gente está ciente disso. É só dar uma vista de olhos aos ressentimentos raciais, pseudo-étnicos, regionais e, de certa forma, políticos para se dar conta disso. É uma falta de coesão que não precisa de anunciar o fim de Moçambique como projecto viável de sociedade. Todas as sociedades saudáveis precisam de debate e tensão. São como um organismo que precisa do combate com os micróbios, bactérias e vírus para melhorar o seu sistema de imunidade. Todavia, há certos debates que caiem fora desta regra. De algum tempo para cá o nosso país tem estado a braços com um debate dessa natureza. Já, inclusivamente, custou uma vida. Não tantas quantas a guerra da Renamo. Mas conseguiu polarizar a sociedade de forma bastante perigosa. As partes envolvidas já perderam a capacidade de dialogar. Livram-se batalhas campais que se traduzem numa escalada constante de tensão. E como se isso não fosse suficiente, o assunto está a ser descoberto por alguns partidos políticos como provável cavalo de batalha. O líder do principal partido de oposição, por exemplo, anunciou recentemente que iria mandar prender “os ladrões” quando se tornasse presidente da república. Para alguém que entrou tarde no assunto aprendeu rapidamente a falta de educação que caracteriza este debate. Infelizmente, embora seja perfeitamente racional para um partido político agir da forma como ele está a agir, a forte linguagem que se usa não ajuda a acalmar os ânimos num caso que só pode ter uma solução negociada. Para o bem de toda a sociedade. O caso é extremamente complicado para ser resumido com justiça. Meti na cabeça que talvez fosse oportuno revisitá-lo. O objectivo não é de distribuir culpas, nem chamar nomes aos que estão directamente implicados no assunto. É, antes porém, de propor um compromisso que ajude ambas as partes a sairem do impasse e dedicar as energias que provaram ter na construção do nosso país. Este projecto precisa da contribuição de todos, desde os “Madgermane” até aos representantes das instituições oficiais directamente envolvidas no assunto. O nosso país é demasiado pobre para se permitir o desperdício insensato de energias. O mais engraçado neste assunto é que apesar de todas as indicações do contrário, as posições de ambas as partes não estão distantes umas das outras. A falta de confiança, a violência que caracteriza a confrontação bem como a frustração que acompanham todo o debate impedem os contendores de ver que estão a lutar pelos mesmos princípios. Quer os “Madgermane”, quer os órgãos estatais directamente implicados querem uma solução justa para pôr termo ao conflito; ambas as partes reconhecem a difícil situação em que se encontra o país e têm a consciência de que uma solução justa deve tomar isso em consideração sem prejudicar os interesses legítimos de cada uma das partes; ambas as partes querem, sobretudo, um país forte em que os cidadãos depositam confiança no estado e o estado assume os seus deveres perante a sociedade. Uma breve cronologia do problema Onde está, então, o problema? Duma forma geral pode se dizer que o problema reside essencialmente na história do nosso estado. Moçambique, como estado, tornou-se possível a partir do uso do suor de trabalhadores imigrantes. Sem a genial ideia de António Enes, o Comissário Régio para Moçambique nos finais do século XIX, de tornar as colónias úteis à metrópole através da introdução da obrigação de trabalhar para as populações indígenas, o estado colonial português teria sido, muito provavelmente, um nado-morto. A obrigação de

trabalhar fez dos trabalhadores imigrantes os verdadeiros construtores deste país. Os seus rendimentos é que deram vida à economia colonial ao mesmo tempo que deram receitas ao estado para se constituir como tal. Ou por outra, os moçambicanos erigiram o estado que os oprimiu. Esta tradição parasitária do estado moçambicano continuou mesmo no período pós-colonial. Apesar das dificuldades de relacionamento com a África do Sul do Apartheid, o nosso estado continuou a apostar no empenho dos trabalhadores imigrantes para a sua própria reprodução. Apesar das sanções, da guerra não-declarada, da redução dos efectivos moçambicanos, etc. o nosso estado, ao longo dos anos, não conseguiu criar alternativas sólidas à sua dependência das receitas dos trabalhadores imigrantes. Apesar de toda a retórica socialista da altura, que se traduziu nalguns casos em certas melhorias das condições contractuais dos trabalhadores imigrantes, a reprodução social das populações rurais moçambicanas, sobretudo no sul do país, continuou a depender quase exclusivamente do trabalho migratório. Este breve excurso histórico pode, erroneamente, sugerir a ideia dum estado pura e simplesmente parasitário sempre empenhado na vampírica tarefa de sugar os coitados dos trabalhadores. Essa ideia não seria correcta. Apesar de tudo, o trabalho migratório trouxe, à sua maneira, a emancipação para os trabalhadores. Através dele muitos se libertaram das correntes da tradição, da superstição, do obscurantismo, da pobreza e vulnerabilidade às intempéries do meio ambiente. Muitos investiram os seus magros rendimentos na educação dos filhos, em empreendimentos económicos e comerciais, enfim, no desenvolvimento das suas famílias e comunidades. Muitos trabalhadores imigrantes foram vectores de novas ideias, tecnologias e novas maneiras de estar no mundo. Os vários estados que o nosso país conheceu sugaram os trabalhadores imigrantes, mas estes também tiveram a oportunidade de evoluir. Houve muitos outros que ficaram para trás, vítimas das terríveis condições de trabalho, das suas próprias relações sociais, da sua própria imprevidência e, naturalmente, de circunstâncias. Os “madgermane” fazem parte desta longa tradição estatal moçambicana de viver do suor dos trabalhadores imigrantes. No princípio, contudo, ou no “início da sua cara…” como diria Alberto Machavele na sua canção sobre os “madgermane”, as intenções do governo moçambicano eram nobres. Houve, com efeito, nos finais da década de setenta, com Marcelino dos Santos ainda como ministro da planificação económica, a ideia de solicitar à RDA o acolhimento dum número reduzido – 2000, creio – de trabalhadores moçambicanos para se formarem em empresas socialistas naquele país. Tudo indica que este pedido da Frelimo constituisse uma reacção às sanções sul africanas bem como uma antecipação das necessidades em mão de obra qualificada que o país iria ter para fazer face ao ambicioso plano de luta contra o subdesenvolvimento numa década. O Bureau Político alemão rejeitou o pedido moçambicano. Parece que a recusa teve como razão principal as mesmas desculpas que foram apresentadas, mais tarde, para rejeitar o pedido moçambicano de ingresso no bloco económico dos países socialistas, o CAME (Conselho de Ajuda Mútua Económica): desnível económico e tecnológico bem como incompatibilidade com as prioridades internas da própria RDA. Esta rejeição foi, todavia, de pouca dura. Quando Erich Honnecker visitou Moçambique em 1979 assinou-se um tratado de amizade e cooperação nos termos do qual a RDA se prontificou a acolher trabalhadores moçambicanos em número de 2000 por um período de 4 anos. O ministério do trabalho ficou encarregue de fazer o recrutamento. Seguiu-se, como é do conhecimento de todos da minha geração, uma verdadeira corrida ao ouro. Quase todo o mundo queria ir à RDA. Muitos abandonaram os seus postos de trabalho, cursos, namorados e namoradas para rumarem com destino ao novo “Djoni”. Não era só a promessa dum emprego bem pago e duma vida mais confortável num dos mais importantes modelos socialistas do mundo que os aliciava. Era também a possibilidade de escapar à guerra, à falta de perspectivas no país e, sobretudo, a possibilidade de adquirir uma formação

profissional sólida para o futuro. Entre 1979 e 1989 trabalharam na RDA 21.600 moçambicanos. Com as mudanças ocorridas nessa altura a maioria regressou, mas muitos outros ficaram – cerca de 2800, segundo o instituto federal de estatísticas da Alemanha, entre ex-trabalhadores e estudantes. Um aspecto interessante de toda a história é, contudo, a mudança de opinião da parte do governo da ex-RDA quanto à oportunidade de acolher moçambicanos. Há várias teorias que circulam por aí sobre o assunto. Duas, porém, parecem-me mais importantes. A primeira considera que o recrutamento de moçambicanos tinha como objectivo aliviar a crónica falta de mão de obra na RDA. Os moçambicanos teriam constituido, segundo esta teoria, uma alternativa barata aos trabalhadores cubanos e polacos que até então satisfaziam a procura no mercado de trabalho alemão. Esta explicação é plausível. Contudo, ela ainda não esclarece devidamente porque o governo da RDA mudou de opinião depois de, pouco antes, ter rejeitado redondamente o pedido moçambicano. A segunda, defendida por Hans-Joachim Doering num livro sobre a política de desenvolvimento da RDA, parece-me ainda mais plausível. Segundo Doering, os trabalhadores moçambicanos não estavam apenas a aliviar a falta de mão de obra. Estavam também a contribuir para a redução da dívida moçambicana perante o governo da RDA. Até 1979 a RDA havia acumulado um saldo bastante elevado nas suas trocas comerciais com Moçambique. O recrutamento de moçambicanos constituia, então, uma maneira de o governo moçambicano reduzir o que na sua perspectiva era um saldo negativo. Com efeito, nos documentos oficiais da RDA a contratação dos moçambicanos não aparece nas rubricas sobre a solidariedade socialista. Aparece, sim, monetarizada como prestação de serviços por parte do governo moçambicano. As instituições de direito na RDA chegaram, inclusivamente, a quantificar a contribuição moçambicana na sua economia. O ministério das finanças, que é citado por Doering, calculou que cada trabalhador moçambicano contribuia em média um valor líquido de 18.482 marcos da RDA para o rendimento nacional da Alemanha do Leste. Na base desse cálculo chegou-se, por exemplo, à conclusão de que o emprego de 13000 moçambicanos em 1988 equivalia à uma contribuição de 240 milhões para o rendimento nacional alemão. Houve, na RDA, muita discussão à volta destes cálculos. O Bureau Político, por exemplo, corrigiu a base de cálculo para permitir o recrutamento de mais moçambicanos. Magid Osman, ministro das finanças em 1988, é citado por fontes oficiais da RDA como tendo exprimido o desagrado do governo moçambicano com as condições impostas pelo governo da RDA. O ministro moçambicano considerava a posição da RDA moral e financeiramente inaceitável. O estado moçambicano precisava também das remessas para uso interno e não podia passar a vida inteira a desviar o dinheiro para o serviço da dívida com a RDA tanto mais que nessa altura até os países capitalistas haviam suavizado as suas condições. Os alemães não se deixaram impressionar. A viragem política moçambicana há-de ter facilitado a sua rigidez. A história é muito longa e não precisa de ser contada com todo o detalhe. Ela reveste-se, contudo, de interesse para perceber o debate que opõe o estado e os “madgermane”. Trata-se dum debate que, sem factos concretos, é uma conversa de surdos. Nos termos dos acordos entre Moçambique e a RDA 60% do salário dos trabalhadores era transferido para Moçambique. O resto era pago na RDA. Do montante transferido para Moçambique o governo devia não só pagar os trabalhadores no seu regresso como também prover pela sua segurança social nos moldes praticados no país. O ministério do trabalho cobrava uma taxa administrativa de 35%. Escalada Em condições normais o sistema teria funcionado. Na verdade, não houve problemas com as primeiras vagas de regressados. Mesmo a infeliz situação de desviar estes dinheiros para o

serviço da dívida com a RDA não teria sido grave se tudo tivesse permanecido na mesma. Mas não foi assim. A RDA desmoronou-se e muitos trabalhadores moçambicanos viram-se forçados a regressar apressadamente ao país. Ao aterrarem em Maputo encontraram um país imprevidente com cofres vazios, instituições bastante morosas e, pior do que isso, com uma moeda desvalorizada. Estavam reunidas todas as condições para a desconfiança. Inicialmente, o que opunha as duas partes era a ineficiência no desembolso do dinheiro bem como a falta de ajustes cambiais. Com o crescer das tensões foram surgindo novos problemas. O mais bicudo parece assentar completamente num mal-entendido. Os acordos com a RDA não previam que o governo alemão assumisse responsabilidades relacionadas com a segurança social dos trabalhadores. Isso cabia ao governo moçambicano que, nos termos dos acordos, devia utilizar as remessas para esses efeitos. Não obstante, o governo da RDA proporcionava aos trabalhadores moçambicanos segurança social enquanto estivessem no país. Quando o socialismo da RDA se despediu da história a Alemanha federal herdou um problema jurídico sério. Esse problema referia-se ao tratamento a dar aos muitos moçambicanos que conseguiram ficar no país e continuaram a trabalhar. Muitos tinham trabalhado cerca de 10 anos. As instituições da segurança social alemã recusaram-se, inicialmente, a considerar os anos que eles tinham trabalhado na RDA como sendo relevantes para a sua própria segurança social. Como eles não tivessem pago nada – a não ser o que fora transferido para Moçambique – as autoridades alemãs argumentavam que só contavam os anos de trabalho depois da mudança política. Uma bofetada sonora nos moçambicanos. Houve, na sequência da multiplicação de litígios nos tribunais sociais alemães envolvendo moçambicanos e seus empregadores, muitas campanhas, discussões e debates que culminaram com o reconhecimento dos anos de trabalho na RDA. Esta notícia, nos tempos da mundialização, chegou com muita celeridade aos regressados em Moçambique. Muitos começaram a pensar que também tivessem direito a esse reconhecimento, o que em termos práticos significaria, por exemplo, a transferência das suas contribuições para Moçambique. Na realidade, todavia, os que regressaram a Moçambique não têm nenhum direito a esse reconhecimento uma vez que em termos estritamente legais eles não fizeram nenhuma contribuição à segurança social. Na Alemanha. De facto, o governo federal alemão assumiu essas contribuições que “não foram feitas” como forma de ultrapassar o impasse. Na barulheira que se seguiu à celeúma levantada por estas esperanças falsas já ninguém teve tempo, nem vontade de procurar conhecer a verdade dos factos. Entretanto, surgiu um novo problema que complicou a situação ainda mais. Em 1990 o governo moçambicano e o governo da RDA haviam feito uma revisão do acordo sobre os trabalhadores. Enquanto que no período anterior nenhum trabalhador moçambicano podia ser despedido por uma empresa alemã, com o novo acordo isso se tornou possível. Contudo, caso fosse despedido um moçambicano e tivesse que regressar ao país antes do fim do período contractual a empresa tinha que pagar uma indemnização de 3000 marcos bem como 60% do salário por um período não inferior a três meses. Há, neste ponto, fortes razões para supor que as nossas instituições estatais tenham sido muito desleixadas. Houve muitos moçambicanos que foram despedidos sem nenhuma indemnização. Outros houve que foram pura e simplesmente enganados. Prometeram-lhes a entrega do montante devido no aeroporto, mas ninguém apareceu com o dinheiro. Outros ainda foram vítimas de ostracismo nas empresas até eles próprios se demitirem. Nesses casos, naturalmente, não podia haver indemnização. Não há nenhuma indicação de que este problema jamais tenha sido levantado pelo nosso governo junto do governo alemão. O ambiente de desconfiança mútua que caracteriza as relações entre os regressados e o governo também não era o mais adequado para permitir uma concertação de iniciativas deste género. Assim que chegou aos ouvidos dos regressados que tinham sido vítimas de mais esta afronta, ganharam mais um assunto para o seu catálogo de reivindicações.

Os “madgermane” sentem-se burlados. Os seus argumentos são plausíveis. Eles sacrificaram anos da sua juventude, seu esforço e engajamento em prol do desenvolvimento do país. A história traiu-os porque mudou sistemas políticos e obrigou-os a regressar ao país numa altura altamente inconveniente ao estado moçambicano. Tiveram imensas dificuldades em receber os pagamentos que lhes eram devidos. E quando isso aconteceu o montante recebido era pouco por causa da desvalorização. Daí a suspeitar que alguém tenha desviado o dinheiro é apenas um passo, sobretudo num país em que os níveis de confiança nas instituições do estado são extremamente baixos. O governo não acha que tenha procedido mal. Os seus argumentos são plausíveis. O envio de trabalhadores à RDA servia ao país, mas também aos próprios trabalhadores. Eles foram remunerados nos termos dos compromissos assumidos pelo governo e que eram do conhecimento dos próprios trabalhadores. As dificuldades de pagamento com o regresso maciço de trabalhadores são normais. Que a moeda tenha sido, entretanto, desvalorizada não é normal, mas não é, no fundo, da responsabilidade do governo. Em qualquer transação existem sempre riscos. Seria interessante, porém, perceber porque o governo preferiu manter a taxa de câmbio anterior em prejuízo claro dos trabalhadores. É verdade, contudo, que o estado moçambicano não foi muito transparente. Nisso foi igual à tradição estatal moçambicana. Contudo, também não precisava de ser transparente. Pelo menos do ponto de vista superficial cada uma das partes fez, na altura, um bom negócio. Os trabalhadores tiveram a oportunidade de ir à RDA. Muitos tiveram a sorte da formação. Muitos ainda fizeram economias que lhes permitiram melhorar as suas condições uma vez no país. Houve alguns até que usaram esta parte da sua biografia para ir mais além na vida. Não me parece que a transparência por parte do estado em relação aos verdadeiros motivos por detrás do intercâmbio com a RDA tivesse diminuido o entusiasmo daqueles que se alistaram. Da mesma maneira, o governo moçambicano beneficiou do acordo. Talvez até muito menos do que muitos trabalhadores, mas sempre beneficiou. Através do envio dos trabalhadores o governo pode aliviar a tensão social criada pelas sanções económicas sul africanas. Pode também assumir os seus compromissos financeiros com a RDA. Ganhou, finalmente, uma certa liquidez que lhe devia ter permitido perspectivar o futuro melhor que só agora é que está a ser prometido. Parece, portanto, uma grande pena que o conflito tenha escalado ao ponto em que se encontra agora. Bem vistas as coisas, cada uma das partes tem mais razões para estar revoltada consigo própria do que contra o adversário. Houve muitos trabalhadores incautos, cantados por Alberto Machavele, que não souberam gerir a sua condição. A sua fúria é compreensível, mas não é contra o governo que devia ser dirigida, mas sim contra a própria iniciativa num momento bastante difícil do nosso desenvolvimento. Nota-se no desabafo de alguns “madgermane” a frustração de quem não foi previdente. Igualmente, o governo fez mal os seus cálculos. É verdade que a evolução da situação não ajudou. De qualquer maneira era da responsabilidade do governo usar as remessas com juízo e ponderação, sobretudo, na criação de condições para a integração social dos regressados. A falta de ideias a este respeito é um mau atestado à capacidade de previdência do nosso governo. Que fazer? Não há nenhum problema sem solução. Quando muito só soluções sem problemas, sobretudo em Moçambique. Uma má solução é uma solução. Neste caso há duas soluções possíveis. A primeira é a mais simples porque exige menos das partes em conflito. Exige apenas que continuem iguais a si próprias. O governo mantém-se rígido e vai reprimindo as manifestações. Um dia os regressados vão acabar. Naturalmente ou com a ajuda da força de intervenção rápida. Os “madgermane”, por seu lado, podem também se manter rígidos continuando a formular novas exigências e a

perturbar os funcionários do ministério de trabalho. Um dia o governo vai mudar. Democraticamente ou com a ajuda da instabilidade política. Todos ganham uma vitória pírrica. O governo não tem sossego, mas não desembolsa nada. Os regressados não recebem nenhum dinheiro, mas vão sustendo os golpes da polícia de intervenção rápida. Mesmo no cenário sugerido pelo líder da oposição, os “ladrões” – se ladrões houve – vão ao tribunal, o governo não desembolsa nada e os regressados não recebem nada senão “justiça”. A segunda solução é mais difícil. Ela exige a vontade de compromisso de ambas as partes. Nada faz supor que essa vontade exista. Se calhar até não é preciso que ela exista. É preciso que existam instituições de boa vontade no nosso país dispostas a intervir e a servir de medianeiras. Ocorrem-me várias: o Concelho Cristão de Moçambique, a Igreja Católica, a Comunidade Islâmica, os Sindicatos, o Município de Maputo e mesmo os partidos de oposição menos oportunistas. Essas instituições podem apelar ao sentido patriótico de ambas as partes. Podem fazer ver a cada uma das partes os perigos que uma má solução encerra. Podem mostrar que a distância que separa as duas partes não é grande. A agressividade que envolve o conflito serve apenas para impedir que as partes vejam quão próximas estão uma da outra nas suas posições. O governo quer estabilidade, confiança dos cidadãos nas instituições do estado, força de trabalho livre, disciplinada e consciente dos seus direitos. Não creio que os regressados estejam contra este desiderato. Os regressados querem um estado que os proteja, represente condignamente e leve a sério os seus problemas. Não me parece que haja alguém dentro do nosso aparelho de estado que se oponha a isso. É, porém, difícil ver isto tudo porque se partiu muita loiça. Para se abrir os olhos à realidade será necessário um trabalho delicado de construção de confiança, trabalho esse que os medianeiros podem assumir. Algumas medidas que me parecem poder contribuir para o desanuviamento consistiriam, da parte do governo, no reconhecimento do contributo dos trabalhadores moçambicanos na RDA para o seu próprio projecto de modernização do país. O escritor angolano, José Eduardo Agualusa, utiliza a noção de “cornos da revolução” para descrever os que foram traídos pelas mudanças políticas. Os “madgermanes” são os cornos da nossa revolução. Apesar de tudo, estes jovens deram o melhor de si para erguer bem alto a bandeira de Moçambique. Os que ficaram na Alemanha continuam, ainda hoje, a fazer isso. A comunidade moçambicana na Alemanha, cuja espinha dorsal é constituida pelos trabalhadores, é exemplar na sua conduta. Dela saíram indivíduos que dão um bom nome ao nosso país. Essa comunidade é mais do que uma embaixada. Porque não, por exemplo, uma homenagem a estes jovens em forma dum monumento ou da rebaptização duma rua, avenida ou mesmo do jardim onde se costumam reunir no Alto-Maé? Sempre faria mais sentido do que Vladimir Lénine, cuja contribuição para o devir deste país me parece menos directa do que a dos trabalhadores imigrantes. Da parte dos regressados constituiria um enorme contributo para o desanuviamento se mudassem a linguagem e deixassem o vocabulário forte para o líder da oposição. Ajudaria também declarar uma moratória às suas manifestações, sobretudo as marchas ao ministério do trabalho que não ajudam sequer a ganhar a compreensão e simpatia do público em geral. Não será com estas medidas que as partes vão cair nos braços uma da outra. Qualquer compromisso que for alcançado terá que ter em conta os interesses básicos de cada uma das partes. Os trabalhadores precisam duma perspectiva. Talvez seja possível reflectir na possibilidade de criação duma espécie de fundação que pudesse, numa primeira fase, proporcionar apoio aos regressados nos seus esforços de reintegração na sociedade. A acreditar no que os economistas nos dizem o nosso país está a atrair muitos investimentos. Porque não utilizar as qualificações que os regressados têm bem como as aptidões que eles adquiriram na Alemanha desde a disciplina até à perserverança – qualidades bem demonstradas ao longo do conflito – como recursos adicionais na atração de mais investimentos?

O governo também precisa de perspectiva. O conflito dá-lhe uma oportunidade ímpar de redefinir a sua relação com os trabalhadores. Isso passa provavelmente pela redefinição do papel do próprio ministério do trabalho, cuja função, relevância e utilidade permanece, pelo menos para mim, um mistério. Uma função importante que poderia adquirir consistiria em estabelecer o vínculo entre o estado e a sociedade. Na maior parte das sociedades civilizadas esse vínculo é garantido pela segurança social. A segurança social, que ainda tem lamentavelmente pouca expressão no nosso país, é o meio mais seguro de definir os direitos e obrigações que tornam o estado e a sociedade possíveis. É verdade que o nosso país não reúne as condições que tornem essa ideia imediatamente viável. Mas isso não implica que não valha a pena pensar nesse sentido. De resto, existem várias instituições – desde o Banco Mundial até à OIT – que têm vindo a reflectir sobre esse tipo de assuntos. A redefinição da função do ministério de trabalho nestes moldes pode torná-lo mais relevante e útil ao mesmo tempo que contribui para ultrapassar um dos problemas mais perigosos da nossa sociedade. Mesmo se o assunto nunca chegar a explodir de forma ainda mais violenta, não me parece que os nossos decisores políticos devessem dormir sossegados sabendo que sectores da população moçambicana se sentem melhor representados pela embaixada alemã do que pelo seu próprio estado. esm

Notícias, 4 e 5 de Dezembro de 2003

A dupla maldição que é a democracia

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Em certos momentos dá para pensar que Moçambique só se podia desenvolver se fosse desenvolvido. Uma vez subdesenvolvido, sempre subdesenvolvido. No espaço de duas semanas desde que o ano académico iniciou na Universidade Eduardo Mondlane, estudantes de diferentes disciplinas na nova Faculdade de Letras e Ciências Sociais paralisaram as aulas e toda a actividade administrativa. Fecharam as instalações com correntes e fechaduras em protesto contra a falta de resposta a reivindicações por eles feitas. Faz dois anos que se introduziu na UEM uma nova modalidade de gestão das salas de aula e anfiteatros. Criou-se para o efeito a Unidade de Gestão de Espaços Comuns (UGEC) com o objectivo de assegurar a afectação e gestão racional de espaços reservados à actividade docente. Pretendia-se, assim, solucionar o problema da escassez de salas de aulas agravada pelo crescente número de ingressos à UEM. Os estudantes queixam-se de falta de condições apropriadas para assistirem às aulas. Dizem que as salas de aulas não estão devidamente iluminadas, nem climatizadas. Deploram ter de andar duma faculdade a outra para irem assistir aulas. Acham caricato que estudantes duma faculdade não possam assistir aulas numa sala ou anfiteatro situado em sua faculdade por este ter sido atribuído a estudantes duma outra faculdade. Para além disso, os estudantes notam que os horários estabelecidos para uso dos espaços comuns não coincidem com os horários das aulas, elaborados pelos respectivos departamentos ou registos académicos. Não é preciso ser estudante da UEM para considerar as suas reivindicações legítimas. Da mesma maneira, não é preciso ser membro dos órgãos directivos da UEM para considerar também legítima a incapacidade da Universidade em dar resposta satisfatória às exigências dos estudantes. Estamos, num primeiro momento, perante uma situação deveras problemática: em ambos os lados da trincheira existem razões legítimas que explicam as posições assumidas. Com efeito, temos, por um lado, uma situação em que os estudantes se sentem forçados a insistir nas suas posições. Para tal, recorrem a meios extremos como o bloqueio das instalações. Por outro lado, temos órgãos da Universidade que não se sentem à altura de responder positivamente às exigências dos estudantes. Pode ser cansativo repetir a coisa, mas a Universidade Eduardo Mondlane é pobre e pertence a um estado pobre. É provavelmente ineficiente, deve gerir alguns dos seus recursos de forma duvidosa. Contudo, e isto devia ser importante, não deixa de ser uma instituição profundamente inserida neste meio: seria de estranhar que fosse melhor do que o próprio meio. E isto não é desculpa. É, antes pelo contrário, a constatação dum problema bem mais profundo do que o compromisso a que estudantes e órgãos directivos irão, um dia, chegar. Se chegarem. Ou se ao chegar esse dia os estudantes estiverem lá com as chaves dos cadeados. Não há nenhuma indicação de que nas condições actuais do país este tipo de conflitos se resolva com base em compromissos. O que os caracteriza é, quer nos parecer, a escalada. Seja de que conflito se tratar, se de Madjermanes e Ministério do Trabalho, Sindicatos e empresas, oposição e governo ou desmobilizados e Ministério da Defesa, a tendência mais natural na nossa sociedade parece ser de exploração de posições máximas e radicais. Nunca parece haver meio termo. O conflito escala vertiginosamente. No fim ganha quem tem maior poder de permanência, mas o conflito continua. Enquanto os vencidos lambem as feridas e se vão preparando para novas investidas radicais.

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Com Patrício Langa.

A greve num mundo ideal A greve é uma das mais importantes manifestações da liberdade que a democracia traz consigo. É uma arma que o sistema político dá aos mais fracos para se defenderem. É mais eficaz quando usada judiciosamente. Num mundo ideal, é mais eficaz a ameaça da greve do que a própria greve. E isso porque a possibilidade de greve activa os mecanismos que o sistema politico tem para resolver conflitos. Num mundo ideal uma situação de insatisfação como a dos estudantes da UEM pode accionar vários mecanismos reguladores. Primeiro, os órgãos directivos e académicos podem imediatamente procurar formas de satisfazer os estudantes com receio de que o aproveitamento fique afectado ou a imagem da universidade sofra. Segundo, se os órgãos forem incapazes de reagir podem suscitar o descontentamento de funcionários e académicos interessados num melhor funcionamento e que estejam dispostos a utilizar os mecanismos internos da instituição para se imporem. Esses mecanismos podem incluir a substituição dos órgãos. Terceiro, o assunto pode merecer a atenção do Ministério de tutela, das forças políticas, da imprensa e demais interessados que vão debater melhores maneiras de resolver esse tipo de problemas. Quem sabe, se calhar o resultado desse debate vai ser de que o sistema universitário que temos é incomportável, que apesar de o país precisar de quadros, não tem meios para garantir melhores condições. Num mundo ideal. Moçambique não faz parte desse mundo ideal. Por enquanto. Aqui as regras do jogo são outras. É tudo ou nada. E quem fica a perder é, primeiro, o vencido imediato, e depois, todo o país. A última greve dos estudantes de geografia da Faculdade de Letras e Ciências Sociais bloqueou a instituição o dia inteiro. Não houve aulas, os funcionários não trabalharam. Ficaram coisas por fazer, houve respostas urgentes que não foram dadas, muita gente perdeu tempo precioso. Foram despesas inúteis que, de certeza, tornarão a Universidade ainda mais pesada e incapaz de responder satisfatoriamente as exigências dos estudantes. Estes vão ser obrigados a voltar às barricadas. Perder-se-á mais tempo. Tornar-se-á a Universidade mais obesa e inoperacional, os estudantes vão entrincheirar mais... É um circulo vicioso. O preço da democracia Trata-se de um círculo vicioso que reflecte a dupla maldição que a democracia representa. Se por um lado ela é necessária ao avanço deste país, com ela esse avanço emperra. Durante o bloqueio das instalações podiam se ouvir algumas vozes que amaldiçoavam o dia em que veio a democracia ao país. Diziam que havia democracia a mais, aliás até não era democracia, era desrespeito, indisciplina, anarquia. Estes desabafos não são novos, nem são necessariamente motivados pela greve dos estudantes. De quando em vez surgem vozes que se interrogam sobre a democracia, sobretudo em relação ao facto de se tratar de algo desenvolvido longe daqui e transplantado para aqui. Uns dizem que é simplesmente cara para um país como o nosso. O candidato presidencial da Frelimo disse algo assim numa entrevista recente nesta mesma revista. Disse que o modelo de democracia era bastante caro. Outros questionam simplesmente a adequação do modelo democrático à cultura africana. A política de ”autenticidade” de Mobutu Sese Seko no ex- Zaire, a ideia do “Ujamaa” de Julius Nyerere na Tanzânia, o “humanismo” de Keneth Kaunda na Zâmbia e muitas outras experiências políticas tentaram dar substância à ideia de que era possível inventar uma democracia africana. Nos dias de hoje, Yoweri Museveni do Uganda, com maior ou menor sucesso, ensaia alguns passos nesse sentido com os seus Conselhos de Resistência. Embora haja razões fortes para supor que o problema da dupla maldição se reduza ao questionamento do modelo de democracia que praticamos, as respostas à inquietação que a

maldição suscita não são necessariamente desta natureza. A dupla maldição levanta, essencialmente, o problema do que realmente devemos aprender dos outros para podermos ir para frente. Os que nos dão lições de democracia e procuram nos transmitir a sua experiência costumam sugerir a ideia de que primeiro se democratizaram e depois se desenvolveram. Insistem na ideia de que a democracia é uma condição imprescindível do desenvolvimento. Sem democracia não há desenvolvimento. Ao mesmo tempo, porém, parecem acreditar na ideia de que a consolidação da democracia depende da atitude das pessoas. Elas têm que acreditar nas suas virtudes e viver de acordo com essa crença para que a democracia possa funcionar. Os problemas surgem, contudo, justamente na articulação entre a crença nas virtudes da democracia, por um lado, e a prossecução de interesses individuais, por outro lado. O problema é de fácil colocação, mas difícil solução. Numa situação de reivindicações como as que vemos na Universidade Eduardo Mondlane, nas relações laborais entre os Madjermanes e o Estado, etc., as partes em conflito deviam demonstrar a sua crença nas virtudes da democracia colocando os interesses do país (?) acima dos seus interesses individuais. E isto por uma razão muito simples: se cada um insiste no seu interesse próprio põe em perigo a democracia. Ela é um bem demasiado valioso para ser sacrificado no altar de interesses egoístas. Parace fácil colocar o problema porque se pressupõe fácil a solução. É só as pessoas mudarem, serem conscientes e tudo vai dar certo. Ignora-se que o problema reside justamente aí: mudar. As pessoas não mudam porque assim se tornam melhores pessoas. As pessoas mudam no intervalo permitido pela satisfação das suas preocupações e o interesse colectivo. As preocupações individuais têm, invariavelmente, prioridade, qualquer que seja a motivação. Um de nós escreveu em tempos no jornal Notícias sobre a racionalidade do cabrito. Dizia que essa racionalidade não estava no facto de o cabrito comer onde está amarrado. Estava, sim, no cálculo que ele fazia em relação à acção dos outros cabritos: que garantias tenho eu de que o capim que deixo agora para uma melhor distribuição mais tarde não vai ser comido pelos outros cabritos? Justamente por não ter elementos para tomar uma decisão a favor do bemestar do colectivo dos cabritos, o cabrito individual preferia comer o capim mais perto. É a mesma lógica que opera nos conflitos sociais que dão substância à nossa democracia. Os estudantes acham que se tomam em consideração a necessidade de poupar o parco orçamento da Universidade, esta, através dos seus órgãos, não vai ser assim tão comedido. Daí a opção tudo ou nada. Repensar o político no país A dupla maldição coloca um sério desafio à nossa sociedade de repensar o político no país. Pode ser que de facto a questão se reduza à inconveniência material e cultural de importar modelos. Contudo, como seria necessário experimentar com outros modelos para ajuizar dos seus problemas não parece prudente limitar a reflexão agora à rejeição do modelo democrático que temos. Embora seja necessário o debate sobre a utilidade de modelos importados, mais premente ainda parece ser a consideração de formas de gestão do modelo que temos agora. Essa consideração deveria ter em conta a dupla maldição que consiste na ideia de que ficamos a perder com ou sem democracia. Noutros termos, o país precisa de reflectir sobre mecanismos institucionais e sociais que pudessem levar as partes em conflito a ser menos radicais nas suas exigências preservando, contudo, o seu sentido democrático. Como forma de dar inicio ao debate gostaríamos de sugerir, pelo menos, três mecanismos. Primeiro, tudo indica que fomos muito rápidos no abandono de certas formas de estruturação do aparelho estatal. Isso explica-se obviamente pela submissão ao modelo neo-liberal que nos é imposto pela nossa condição de dependência económica. Contudo, o modelo pós-

independência de integração dos trabalhadores na gestão das empresas através dos Conselhos de Produção contém subsídios extremamente importantes. Na altura, esse modelo obedecia à lógica política predominante de dar protagonismo à chamada classe operária. Muitos dos preceitos dessa lógica não são agora úteis. Todavia, a ideia de integrar os trabalhadores na gestão da empresa devia ser revisitada. No caso da Universidade seria a integração dos estudantes, obviamente organizados, na gestão de alguns órgãos como a Unidade dos Espaços Comuns onde poderiam dar um contributo valioso, visto serem eles próprios os primeiros e maiores beneficiários e/ou prejudicados. Segundo, o protesto precisa de maior institucionalização. Parece trivial, mas não é: Karl Marx e Friedrich Engels riram-se dos trabalhadores alemães que perdiam horas a discutir a legalidade da revolução, mas nós não nos devíamos juntar ao riso. No contexto de transformação radical duma sociedade pode, de facto, parecer pedântico consultar as leis. No contexto de preservação dum bem frágil como a democracia em Moçambique não é. O país precisa de legislação que regule de forma mais restrita o direito ao protesto. Sem prejuízo da reivindicação devia ser institucionalizada a obrigação de o protesto ser apenas legal quando decidido democraticamente. A institucionalização desta obrigação implica o abandono da solução radical e a criação de um espaço para o debate democrático. As associações dos trabalhadores, os sindicatos etc., representam esse espaço e são regidas primeiro pelos seus próprios estatutos, e segundo, pelas leis mais gerais do país. O bloqueio da Faculdade de Letras e Ciências Sociais foi, ao que parece, da autoria duma única turma e mesmo nessa turma apenas de alguns estudantes. As reivindicações não deixam de ser justas por isso, mas até que ponto é que o processo de decisão sobre a realização da greve foi democrático no seio dos reivindicadores? Que direito tem um lesado de lesar mais pessoas (na circunstância todos os outros estudantes da Faculdade) na reivindicação dos seus direitos? Isto é, o nosso sistema jurídico não devia permitir protestos espontâneos em contextos institucionais. Devia ser obrigatório que a decisão de realização dum protesto fosse tomada democraticamente por órgãos com estatuto jurídico. Os trabalhadores deviam o fazer através dos órgãos sindicais; os madjermanes deviam se organizar em associação; os estudantes deviam protestar por decisão maioritária dos seus órgãos representativos. A nova lei de manifestações aprovada em 2001 abre espaço para um exercício da manifestação como um direito de cidadania. Contudo, esta nova lei refere-se a um aspecto deveras importante. O exercício do direito de reunião, manifestação pelos cidadãos não pode ofender a constituição, a lei, os bons costumes e os direitos individuais e colectivos. Para o caso em questão aqui talvez nos devéssemos ater somente a este último aspecto da lei. A reivindicação dos direitos de um grupo, neste caso de alguns estudantes, mesmo que legítimo, não devia impedir a realização dos direitos dos restantes estudantes. Aliás, este último grupo constitui uma maioria absolutíssima, que não parece ter sido sequer consultada, apenas prejudicada. Isto não é típico dum exercício democrático. Mas é a tendência que tentamos expor dos movimentos de protesto no nosso país. A ideia não é só de dificultar o protesto. É de estimular o debate racional no seio dos que se sentem prejudicados. Dessa maneira reduz-se também o incentivo para a tomada de posições radicais. Terceiro, o nosso quadro jurídico devia montar instâncias mediadoras a todos os níveis. Devia ser obrigatório que partes em conflito se sentassem na presença dum mediador que poderia ter a tarefa de produzir um compromisso. Cada uma das partes poderia ter a liberdade de aceitar ou não o compromisso depois das devidas consultas à base. Mas a prática de deixar partes em conflito à sua sorte que é característica do nosso sistema político não parece a mais prudente. Ela encoraja as posições radicais e extremas que dificilmente conduzem à solução negociada de conflitos.

O direito ao protesto é inalienável. Em certa medida ele define até a democracia. Mas mal empregue ele pode pôr em perigo essa democracia. Deve ser exercido com a prudência que o bom senso, as boas regras do respeito pelos outros e o futuro deste país exigem. Revista MAIS, Maio 2004

Filosofando

O problema das soluções Ser sociólogo é uma profissão ingrata. Nunca se tem soluções. Só problemas. Os economistas, pelo contrário, oferecem soluções. Os engenheiros também. Na verdade, quase todos os que se chamam cientistas definem a sua ocupação como incidindo sobre a procura de soluções. Muitos destes estarão representados na cimeira da União Africana. Ao lado dos profissionais da política, a quem eles têm vindo a alimentar com soluções, vão cozinhar soluções para os problemas africanos. Nas salas aclimatizadas onde se vão sentar para esse efeito, não haverá espaço para sociólogos. Nem mesmo para filósofos. São profissões que aos seus próprios praticantes dificilmente dão pão, quanto mais ao povo. A sociologia é um movimento religioso amplo. Tem espaço para muitas denominações. Algumas delas vêm as coisas na perspectiva das soluções. São construtivas. Quando olham para o que as pessoas fazem vêm nisso a satisfação de normas, por exemplo de boa conduta social, política e económica. Vêm também o cumprimento de funções, por exemplo de garantir a ordem, a harmonia e a reprodução de tudo quanto permite que vivamos em sociedade. Não são só construtivas. São também optimistas. Há, na sociologia, denominações menos optimistas. Essas só vêem problemas por todo o lado. Reconhecem que a satisfação de normas e o cumprimento de funções são importantes para a conduta individual. Insistem, contudo, que só isso não garante que as coisas se passem segundo o que se espera. A vida e o quotidiano são empreendimentos arriscados. Não porque podemos calhar nascer num país subdesenvolvido e termos uma esperança de vida de 45 anos; não porque podemos ser atropelados por um chapa que sobreviveu à operação "talão". O quotidiano é arriscado porque entre o momento em que fazemos alguma coisa e esperamos pela reacção dos outros muita coisa pode acontecer. Algo tão simples como cumprimentar alguém pode provocar várias reacções, a partir de "donde me conheces?" até "não falo com brancos/pretos/Macuas/Bitonga" para não falar do silêncio. E isso tem consequências imprevisíveis que nem o mais exímio predigistador de teorias de jogo pode vaticinar. O quotidiano, para ter continuidade, depende da forma como os outros interpretam o que nós fazemos. O inverso também é válido. Portanto, há um grande elemento de incerteza no nosso quotidiano. E isso torna a nossa vida arriscada. Confortamo-nos apenas na esperança de que tudo vai correr bem. É claro que temos razões para isso. Partimos do princípio de que sabemos como os outros vão reagir. Os amigos, os familiares, os colegas de serviço, pessoas bem educadas, os da terra, etc. Com esses pressupostos tentamos reduzir a incerteza. Disfarçamos a fragilidade do tecido social que envolve o nosso quotidiano. Na verdade, quanto mais incerta a reacção dos outros mais forte é a nossa tendência de procurarmos contextos de acção mais restrictos. Damos prioridade aos laços familiares, residenciais, étnicos, regionais, raciais, religiosos, políticos, etc. Criamos uma economia moral que fortalece o tecido social restricto em que nos movimentamos. E isso aumenta o grau de previsibilidade. Esta economia moral tem consequências. A valorização de grupos restrictos costuma ir de braços dados com a desvalorização dos outros. Não basta crer, por exemplo, que os Machangana são os melhores; é preciso também acreditar que os Macuas não inspiram confiança. E isso muitas vezes justifica um tratamento menos digno do outro que pode ir até à aceitação da agressão física como meio adequado de comunicação. Isto tudo reforça a incerteza no quotidiano e confirma a natureza arriscada da vida. Mesmo nos grupos restrictos o tecido social só permanece sólido enquanto a hostilização dos outros for ainda funcional. Não se pode pôr de parte a possibilidade de dentro desses grupos

surgirem mini-grupos que se vão legitimar da mesmíssima maneira. Também é sempre possível que as expectativas das pessoas no interior dos grupos sejam goradas. Não é sempre que um presidente changana nomeia um ministro changana. E o candidato desiludido pode encontrar na religião, na linhagem, na região, no nível de escolaridade uma justificação para não ter sido escolhido. E essa justificação tem consequências para como ele vai lidar com os outros. O pessimismo desta denominação sociológica reside na sua convicção de que é muito arriscado dar as coisas da vida por adquirido. Nesse sentido até é destrutiva. Interessa-se apenas indirectamente pelas soluções que as considera sempre do ponto de vista de problemas. Porque a NEPAD é uma solução? Porque a integridade moral é a solução da corrupção? Porque o PARPA é a solução da pobreza? Porque a União Africana é a solução das crises africanas? Do ponto de vista dum sociólogo desta denominação essas coisas todas são, acima de tudo, problemas. Na verdade, esta reflexão é a propósito da cimeira africana de Maputo. Que contribuição podem os sociólogos dar para o sucesso do convénio dos construtivos? Na lógica da argumentação aqui seguida essa contribuição só pode ser destrutiva. Mas ser destrutivo, isto é criar problemas pode ser construtivo. Pode ajudar a chegar às melhores soluções. Há alguns chefes de estado e governo que vão perder o jantar de Maputo. Charles Taylor da Libéria é um candidato forte. Laurent Gbagbo da Costa do Marfim é outro. Kabila, Museveni, Kagame, Eyadema são outros prováveis candidatos. A situação nos seus países está tremida. Correm o sério risco de ter de pedir asilo em Moçambique ou na África do Sul onde há mais conforto. Se ficarem nos seus países para "controlar a situação", como de certeza vão justificar a falta de comparência, terão agido no sentido de reduzir a incerteza. Curiosamente, eles podem vir a ser os afortunados. O golpe de estado vai atingir aqueles que menos o esperam. Não é necessário citar nomes para não assustar ninguém desnecessariamente. Hão-de ter partido do princípio construtivo segundo o qual a vida é previsível. Se calhar terão, antes de sair, encarcerado o líder da oposição, colocado o irmão à frente do exército ou promovido os descontentes. Mas mesmo com essas precauções nunca terão sossego até estarem de volta para “controlar eles próprios a situação”. Não é preciso ser “Anibalzinho” para encontrar maneiras de furar vários cordões de segurança, sobretudo se esses cordões são feitos de palha. Porque é tão difícil ter a certeza de que as coisas políticas vão correr bem? A resposta não é simples, mas a perspectiva dos problemas pode ajudar. Falta a certeza não só porque a vida é arriscada, mas porque a base sobre a qual as pessoas têm que interpretar as acções dos outros é bastante frágil. Os nossos sistemas políticos assentam sobre tecidos sociais frágeis. Estamos num círculo vicioso terrível. O político só se pode tornar previsível se o nosso tecido social for mais forte, mas para que assim seja seria necessário que os nossos sistemas políticos fossem mais previsíveis. Em muitos dos nossos países o que determina o debate público são, invariavelmente, temas que denotam falta de confiança nos outros e que, consequentemente, debilitam o tecido social. Somos pobres no Norte porque as elites dominantes são do Sul. A riqueza está lá concentrada. Como é que podemos promover os interesses nacionais se essa gente do Norte nos inveja? Os brancos são oportunistas, não têm patriotismo. Os deputados só querem encher os bolsos. Aquele não é ministro por mérito próprio, é porque é do Sul, Norte, Centro ou conhece certos segredos. Não se está a sugerir aqui que estes assuntos não sejam reais ou que não sejam importantes. Nem mesmo que não sejam discutidos ou levantados. O único que se pretende demonstrar é que com este tipo de esfera pública é difícil prever, com certeza, a reacção dos outros. Hoje grande escritor nacional, amanhã grande racista. Hoje fazedor da unidade nacional, amanhã regionalista. Hoje grande técnico, amanhã ladrão. Hoje obreiro das células do partido nas aldeias comunais, amanhã obreiro da IURD.

Estas pequenas incertezas são pingos de água que vão tornar a pedra mole. E de repente tudo explode. Foi assim na Costa do Marfim. Começaram por inventar o conceito de "ivoirité" - a “marfinidade”, por assim dizer - como forma de impedir que Outtara fosse presidente. A coisa alastrou até conduzir ao golpe. O golpe provocou ainda mais desconfiança. O general foi baleado. Hoje, a Suiça de África de ontem, está em brasas. E o pior de tudo nestas guerras africanas, como aliás o nosso país ilustra muito bem, é que para as resolver não interessa quem tinha razão ou era menos culpado. A violência impõe os seus próprios critérios. Quem teria previsto que a Costa do Marfim ia terminar assim? E o Zimbabwe? Os fazedores de soluções que vão estar tão ocupados nos salões do novo centro de conferências de Maputo têm já a solução para a questão da instabilidade política: democracia. É mais fácil dito do que feito, como a história não se farta de mostrar. E isso porque a democracia, tal como tudo o resto na vida, é uma coisa muito arriscada. Que certeza se pode ter de que se vai aceitar a derrota ou a vitória? Que certeza se pode ter de que os outros fizeram tudo correctamente? Que certeza se pode ter de que os que subirem ao poder não vão abolir a democracia como parece estar a acontecer na Guiné-Bissau? Nenhuma a não ser a consciência de que a solução é, acima de tudo, um problema que precisa de ser resolvido. Isto significa que um dos grandes temas de reflexão política dentro e fora da cimeira seria, talvez, a exposição do que nos leva a supor que tudo vai correr bem. Se calhar com tudo na mesa veremos o que falta e atinaremos com o que se tem que fazer para que possamos antecipar com alguma certeza a reacção dos outros. Se calhar não. Tudo é arriscado. Mesmo as reflexões dum sociólogo, pois o sociólogo que promete soluções é um impostor.

Notícias, 5 de Julho de 2003

A ideia de África

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Maputo, neste mês de julho, estará em festa. Vai acolher a cimeira da União Africana. Quem quisesse estragar a festa podia perguntar, como nós o fazemos aqui, mas sem querer-mos estragar a festa, se de facto é a África que estará reunida em Maputo. Em que circunstâncias é que podemos dizer, quando dois ou mais estadistas africanos se encontram, não importa de que maneira ascenderam ao poder, nem de que maneira lá se manteem, que é a África que se encontra? O que faz duma cimeira de chefes de estado uma cimeira africana? O que significa, já agora, África? Ou melhor ainda, o que devia significar África? Nós partimos dum pressuposto simples. A África, em nossa opinião, é uma ideia com consequências. Propomo-nos fazer a genealogia desta ideia. Queremos, num primeiro momento, descrever os impulsos por detrás da construção da ideia de África. Em seguida vamos analisar as suas manifestações práticas. No processo iremos precrustar as contradições que acompanharam a sua realização. Finalmente, vamos sugerir alguns elementos que nos possam permitir fundamentar uma visão actualizada, mas não menos respeitosa de tradições culturais, de África. A construção de África Reduzir a África a uma ideia pode ser um empreendimento arriscado. Sobretudo num contexto em que toda a gente tem a certeza de que sabe o que é a África. Uma simples lista das imagens que circulam por aí seria suficiente para criar alguma confusão. Há pessoas, por exemplo, que associam a África aos famosos três “Cs”: crises, catástrofes, conflitos. A História recente do continente parece confirmar esta imagem. Más notícias em África são boas notícias na Europa: só faz sentido noticiar sobre a África se um dos “Cs” estiver em acção, no Congo ou na Serra Leoa, na Libéria ou no Ruanda, no Zimbabwe ou na Costa do Marfim. É como se de um conluio se tratasse entre as classes políticas africanas e os meios de comunicação de massas ocidentais para produzir sensação. Há outras pessoas que associam a África à alegria, ao canto, à dança, ao prazer de viver. Muitas vezes fazem-no por paternalismo. Neste contexto, é normal ouvir coisas como “o que mais aprecio nos africanos é que apesar de tudo ainda se riem”. Admiram-se que os africanos sejam humanos. Recusam aos africanos a perfeição que resulta do trabalho e da vontade de aprender: sabem dançar, jogar futebol, correr e cantar por talento natural, não porque se aplicaram. Os fundistas quenianos são bons porque vêm das altitudes. Não treinam. A Lurdes Mutola, bom, essa não vem das altitudes, mas tem talento natural. Outras pessoas ainda identificam o futuro do continente com a cor da pele da maioria dos seus habitantes: preta, escura. A África não tem futuro. Na Alemanha, um grupo de académicos criou muita polémica há dois anos com um memorando em que aconselhava o governo alemão a reformular a sua política africana. Essa reformulação, rezava o memorando, devia ter em conta o facto de que muitos países africanos já perderam o comboio do desenvolvimento. Não há esperança para esses países. O auxílio a esses países nem faz sentido, senão como um paliativo de caridade para que morram com alguma dignidade. Existem ainda os românticos, os que olham para a África como o berço da humanidade, onde a natureza ainda preserva o seu encanto e deve ser conservada. Esta romantização manifestase, muitas vezes, no discurso ecológico que dá prioridade aos elefantes, mesmo se estes não demonstram sensibilidade para com as poucas culturas que os camponeses têm para continuarem a vegetar por aí. Se os ecologistas soubessem que os elefantes, na luta pela água 2

Com Severino Ngoenha.

no interior da província de Gaza, até o aguardente dos camponeses bebem... O bom selvagem retornou, desta feita, contudo, tem que também alargar a sua tradicional hospitalidade aos anseios, detritos humanos e tóxicos do mundo desenvolvido. Tem que acolher os hóspedes que constroem casas e colhem sem terem semeado, como canta Rosália M’boa. Como se pode ver, as imagens sobre a África são várias, tantas, na verdade, que devia ser obrigação oficial definir o conceito antes de o fazer sair da boca ou da caneta. Os africanos também partilham destas imagens, muito embora no seu caso predominem as positivas, as que cantam o sofrimento, celebram a tenacidade dos seus povos e espalham rosas pelos atalhos que levam ao futuro. Não se valoriza este optimismo admirando-o. Valoriza-se-lhe articulando-o com uma vontade sempre presente no continente de imaginar uma comunidade de valores e de destino capaz de servir como orientação para confrontar a batalha quotidiana pela sobrevivência. Com efeito, ver a África como uma comunidade de valores e de destino oferece várias vantagens. Primeiro, os africanos ocupam o lugar de destaque que merecem, e pelo qual eles sempre se bateram, na produção do continente. Segundo, o que a África deve representar sobressai e, por via disso, se impõe como referência para uma introspecção necessária: o que fizémos, e fazemos, nós desta ideia? Terceiro, a história recupera o seu sentido como lugar privilegiado de sedimentação da experiência. Afinal, a consciência histórica não é mais nem menos do que a capacidade humana de acumular experiências, reflectir sobre elas e, por via desses mecanismos, marcar um espaço identitário próprio. O que é a África? Existe, em África e fora, a tendência de atribuir as condições de possibilidade do continente a uma vontade ocidental de poder. Em vários escritos, veicula-se a noção segundo a qual as condições objectivas e existenciais do continente africano seriam o resultado da dominação colonial pela Europa. Os problemas actuais que o continente enfrenta, sobretudo as dificuldades que tem de se juntar ao resto do mundo no progresso e bem estar, resultariam duma conspiração europeia para manter o continente dependente, subserviente e dócil. Há um cunho de verdade nestas teorias da conspiração. A possibilidade de África está intimamente ligada ao comércio de escravos, ao colonialismo, à descolonização contra a vontade, à ordem económica mundial e à distribuição internacional de oportunidades e riqueza. Os conflitos que em todos os pontos de África produzem noticiário são como as passadas que se dançam nas discotecas de Maputo: como o tango argentino, são necessárias duas pessoas para se dançar uma passada. A segunda pessoa nos nossos conflitos é invariavelmente a ganância ocidental: O que teria sido do conflito angolano sem o petróleo e os diamantes? O que seria do Congo sem as suas riquezas naturais? O que seria da Libéria e da Serra Leoa sem o ouro e diamantes? Num mundo simples, e aborrecido, seria fácil definir a África. Podia-se dizer que a África é o continente dos negros, como sugere, de forma ambígua, o rótulo “África negra”. Contudo, essa é uma redução bruta. Os africanos apresentam-se em várias cores: preta, amarela, branca, castanha e toda uma série de cambiantes no meio. A cor é um critério problemático. Podia-se dizer que a África é o continente entre os oceanos Índico e Atlântico, entre os mares Mediterrâneo e Vermelho. O discurso quotidiano, porém, que faz referências à África subsahariana, ao Maghreb, à diáspora americana – na América do Norte e na América do Sul – desafia a utilidade deste critério geográfico. De resto, desde quando é que geografia foi critério cultural? Só faz lembrar o determinismo que caracterizava o africano como sendo preguiçoso, tradicional e feio com base na relação madrasta que a natureza com ele estabeleceu. Podia-se, ainda, dizer que a África é o continente subdesenvolvido. Aqui o desafio iria residir na especificação do significado de “subdesenvolvimento”. Um exemplo simples: em muitos Países europeus, onde a xenofobia muitas vezes assume um carácter

agressivo – na Alemanha já pereceram moçambicanos por isto – é normal as pessoas apregoarem a sua hospitalidade com base no argumento segundo o qual na sua cidade, aldeia ou vila não se bate em estrangeiros. Nós, contudo, retemos ainda na memória o sentido de hospitalidade do meio em que crescemos. Nesse meio, hospitalidade é quando se oferece água ao forasteiro e não, como sugere o argumento acima, quando não se bate nele... Quem é mais desenvolvido nessas circunstâncias? Portanto, mesmo o PNB é um critério problemático. O critério histórico O único critério que nos parece válido para definir a África duma forma útil é o histórico. Segundo este critério a África não é uma essência, mas sim um processo. É algo que se constitui ao longo do tempo como consciência das suas próprias condições de possibilidade. Nesta ordem de ideias, o desafio intelectual na definição de África não reside na demonstração de algo anterior à influência externa. Ela reside, quer nos parecer, na descoberta do momento que conduz à tomada de consciência histórica. Noutros termos, a pergunta que se deve colocar é de saber quando surge a história africana. É a partir deste momento que mesmo o período pré-colonial ganha coerência como parte integrante do percurso duma cultura, se assim quisermos. O momento que nos parece crucial na produção da consciência histórica é o contacto violento com a Europa. Foi principalmente a escravatura, o trabalho forçado e a ocupação efectiva do continente pelas potências europeias que impulsionaram a tomada de consciência. Embora o contacto com a Europa e com outros continentes fosse já de longa duração, quando ele ocorreu pela primeira vez a sua qualidade não foi suficiente para que se cristalizasse uma identidade africana. Curiosamente, a violência posterior desse contacto fez uso dos vários critérios de definição de África para se legitimar. Assim, a cor da pele, associada a tudo quanto de negativo ela sugere na imaginação metafórica de várias línguas humanas, serviu para justificar a negação de humanidade aos africanos. Mesmo sob o risco de repetir algo sobejamente conhecido é bom recordar que ao mesmo tempo que a constituição americana anunciava no seu preâmbulo que todos os homens nascem livres, o País produzia a sua riqueza com base na força de trabalho escravo. A geografia, com o argumento do isolamento do continente e da abominação natural, também servia para legitimar a ocupação colonial. Não se deve esquecer o papel das sociedades de geografia europeias, cujo trabalho cartográfico consistia, na essência, no mapeamento da diferença selvagem que devia ser domesticada. Finalmente, o critério de subdesenvolvimento também teve a sua utilidade, sobretudo na ideia da civilização. Este é talvez o elemento mais coerente e consistente de toda a empresa. Só mudaram, ao longo do tempo, os instrumentos para a sua realização: comércio, colonização, descolonização, auxílio ao desenvolvimento, reajustamento estrutural, combate à pobreza. O contacto violento com a Europa constitui, portanto, um momento crucial. Ele permite a definição dum espaço e dum tempo que se afirmam diferentes da Europa. Mas mais do que isso essa definição afirma-se como a formulação duma comunidade axiológica e de destino. Comunidade axiológica no sentido em que aqueles que se definem como africanos fazem-no no intuito de recuperação duma dignidade humana que lhes é recusada: o africano tem direito à emancipação social, económica e política. Em poucas palavras, a dignidade humana deve ser extensiva ao africano, aliás, a sua conquista define o africano. Aqui intervém o segundo elemento de comunidade de destino. Com efeito, a definição dum espaço e dum tempo próprios formula um horizonte, cujo conteúdo deve ser negociado pelos que se definem como africanos. Essa negociação ocorre em lutas sociais entre os africanos eles próprios, entre os africanos e os europeus, entre os africanos e a ciência, entre os africanos e a tradição e modernidade.

É assim que a ideia de África, partindo dum impulso que desafia os africanos a ganharem consciência de si próprios como sujeitos da sua própria história, se concretiza nas lutas que lhe vão dar visibilidade. A concretização assume várias formas. Na diáspora o “renascimento negro” aceita o ceptro da história como um desafio para definir em que consiste a identidade africana e o que significa se orgulhar dela. A ideia da personalidade africana e o movimento da Négritude fazem essencialmente o mesmo. Como Jean-Paul Sartre muito bem observou na sua introdução à antologia de poesia negra, os que recuperam este sentido de identidade são um verdadeiro Orfeu que, tal como a figura da mitologia grega, vai mesmo ao inferno para salvar a sua Euridice. O inferno do renascimento é a experiência de humilhação, de opressão, enfim, de desumanização que define o lugar do africano na ordem das coisas num momento histórico em que a modernidade celebra a justiça, a fraternidade, a igualdade. Não é por acaso que C.L.R. James vê na realização prática destes ideais, vê na unidade africana, o verdadeiro destino do Homem negro. Mas mais sobre isso mais adiante. A conquista e perversão da ideia de África A principal manifestação concreta da tomada de consciência é, no entanto, a luta pela autodeterminação. Com efeito, as independências africanas são uma verdadeira epopeia, um canto e uma celebração da tenacidade humana. Independentemente da perversão que o período póscolonial foi da ideia africana, os homens e mulheres que por ela se bateram merecem, mesmo hoje, se calhar sobretudo hoje, um panteão em sua memória. O que é a pseudo-luta pela democracia e direitos humanos que, frequentemente, atola os nossos países no lodo da auto-destruição, comparada com a reclamação da nossa dignidade como humanos? Não é que a democracia e direitos humanos não sejam essenciais ou incompatíveis com a auto-determinação. Mas quantas vezes não serviu a sua reclamação sangrenta de subterfúgio para o cálculo pessoal ou para a instrumentalização por interesses alheios? Com as independências o horizonte abandonou o firmamento para se instalar numa distância palpável. De repente a África deixou de ser uma simples ideia para ser uma realidade. A ideia passou a ser estado-nação. Vários. A ideia passou a ser uma bandeira, um hino, um aeroporto internacional e um plano de desenvolvimento. A ideia passou a ser a dor de parto dum estado, a obra de Marracuene dum vai-vem interminável. Ganhos, retrocessos, ganhos, retrocessos. Golpes de estado. Na Nigéria, conta o cientista político ugandês, Ali Mazrui, atingiu-se uma taxa de regicídio de 50 por cento! Guerras civis. São honrosas as excepções. Guerras intraestatais. Calamidades naturais. Epidemias: Ébola, HIV-SIDA; malária, cólera. Apesar de tudo, como dizem os europeus cheios de comiseração, os africanos dançam, cantam e riem-se. É mesmo humor negro. Estás a mentir meu filho, tu não és o Deremussa; tu és o meu pequeno Daniel, de Lionde, Gaza. Quem canta isto é José Matirrandze. O filho foi levado pela música para a África do Sul, lá chegado mudou de nome, de local de nascimento, em poucas palavras: mudou de identidade. Passou a dizer que era sul africano. Enlouqueceste meu filho, tu não és de Nguiane, tu és de Lionde, Gaza. José Matirrandze, o tal que foi explorado, não canta sobre as vicissitudes dum quotidiano incerto em Moçambique. Ele canta a impostura que tem caracterizado a nossa história pós-colonial em África. Ele canta a perversão da ideia de África, a expropriação da consciência histórica no período pós-independência. Vidas falsas Uma ilustração útil desta perversão é a trajectória do Congo, palavra que mal pronunciada em Changana pode indicar a maldição que ela representa para todos nós. Ao mesmo tempo que a

Europa reflecte hoje sobre o aprofundamento da sua própria união com a discussão dum projecto de constituição que vai ser submetido à apreciação pública, está a ter também que reservar algum tempo para acudir, uma vez mais, a África. O Congo está a arder. Tribos hostis e assanhadas, como dizem os noticiários cá na Europa, precisam de ser separadas. Os jornais que estão contra o envolvimento europeu alertam, em títulos de parangona, para a caldeira de bruxas que o continente é para qualquer força de intervenção. Dizem que há canibalismo no Congo. Dizem que as milhares de crianças feitas orfãs pelo conflito não estão a ser socorridas por ninguém. São “enfants-sorcillières”, feiticeirzinhos, que trazem o infortúnio para as famílias que as abrigam. O Congo é a primeira guerra mundial africana. Até que enfim, já não era sem tempo que assinávamos também um acontecimento de impacto universal! Três momentos ilustram a maldição que este país representa. Primeiro, o ultimatum inglês de 11 de junho de 1890. A disputa entre a Bélgica, a Inglaterra e Portugal sobre a África central culmina com a humilhação de Portugal, que perde o “direito histórico” que se reclama sobre a região a favor da hegemonia moral – discurso abolicionista – e comercial britânica. O aspecto importante desta humilhação é o efeito que tem para os territórios portugueses bem como para o resto do continente. Para os primeiros o ultimatum significou um esforço concentrado português de ocupar efectivamente os territórios que reclamava seus. O mapa côr de rosa. Para os segundos foi o início dum processo que iria culminar com a partilha do continente em Berlim – cidade que a História se encarregou de penalizar com a sua própria divisão em pleno século XX – à régua e esquadra ignorando completamente unidades culturais, religiosas e linguísticas. O segundo momento intervém com as independências e tem duas vertentes. O Congo ganha a independência sob a liderança carismática de Patrice Lumumba. As Nações Unidas sofrem um desaire total nos seus esforços de manutenção de paz no Catanga enquanto que um conluio belga e americano vai conduzir à execução ignomiosa de Patrice Lumumba pelos próprios compatriotas. No primeiro caso, o desaire das Nações Unidas constituirá nos anos que se seguem a prova evidente de que o continente está perdido, que ninguém de fora pode trazer a ordem. No segundo caso, a subida ao poder duma das maiores vergonhas do continente – Mobutu – vai iniciar uma longa tradição de ingerência camuflada e aberta nos assuntos africanos. Franceses e americanos exceder-se-ão nessa empresa à medida que governos africanos, legítimos ou não, vão cambaleando na ressaca do pós-independência. Finalmente, a queda de Mobutu e a ascensão de Kabila ao poder, este último com um discurso político anacrónico, acompanhado duma verdadeira fogueira das vaidades políticas – Mugabe, Museveni, Kagame, Santos, Nujoma, Mbeki – e a queda do país para o pricipício do caos vão de novo trazer à agenda política internacional a legitimidade da intervenção externa em África. Tal como no passado a justificação é a incapacidade africana de se governar. A ironia do problema actual do Congo está no facto de a intervenção europeia estar a ser planeada, discutida e avaliada pelos europeus no mesmo momento em que os africanos, em Maputo, se preparam para transpor as portas do nirvana político da harmonia eterna: União Africana e NEPAD. O mais perverso, contudo, é que esta ironia escapa aos fazedores da União, ninguém se queda para perguntar que sentido faz uma União que não é capaz de se concretizar na prática através da resolução dum problema tão premente como é o Congo hoje. E isto para não falar da Libéria, da Serra Leoa, da Costa do Marfim, da Somália, do Zimbabwe, da Argélia, do Uganda e por aí fora. O Congo é uma maldição para o resto do continente não só porque ilustra a impostura que tem sido a identidade africana no período pós-independência. Em nenhum outro país se perverteu tanto a ideia duma cultura africana como no Zaire de Mobutu. Com efeito, esta ideia foi colocada ao serviço duma vontade de poder. Foi aqui onde se praticou a política da “autenticidade”. Os zairotas foram obrigados a mudar os seus nomes cristãos em troca de

nomes africanos. Deixaram de ser “monsieur” para serem “citoyen”. A ganância dum único homem foi empacotada num invólucro político que, selectivamente, elevava aspectos duma suposta cultura africana ao estatuto de filosofia política: os africanos respeitam os seus chefes, dizia Mobutu, le Roi du Zaire, por isso o seu poder não pode ser contestado. Isto tudo num país que deu ao continente tanto de que se orgulhar: o “quoi-ça, quoi-ça”, a rumba africana, a forte teologia fenomenológica de Lubumbashi com Vincent Mulago, Tshiamalenga, a exilarante literatura de Puis Gandu Kashama, as análises incisivas de Valentin Mudimbe, o olhar histórico de Elikia M’bokolo e tantos outros. Tudo isto num país mimado pela natureza com recursos naturais da mais variada e valiosa gama: diamantes, madeiras, cobre, coltrão, terras férteis, água. Enlouqueceste meu filho, enlouqueceste meu filho, tu és o meu pequeno Daniel de Lionde, Gaza. A tentação é muito forte para julgar ver na sorte deste grande país a mão invisível do Ocidente. Há, na realidade, muito que se diga a este respeito. Contudo, o essencial dessa história ainda por contar não é exterior ao Congo ou África. O essencial dessa história está no que se fez à ideia de África. Da verdadeira cultura africana Dissémos, na nossa tentativa de definir a África, que o critério que nos parece útil é o histórico. É chegado o momento de tornar ainda mais explícito o nosso argumento. A essência dum povo não está em nenhum conjunto de características inalteráveis e inevitáveis. A essência dum povo está na sua capacidade de aprender dos seus erros. Está na sua consciência histórica. Nós entendemos a consciência histórica como a constituição voluntária duma comunidade axiológica e de destino. A África como comunidade constituiu-se como uma vontade de recuperação da dignidade humana dos seus povos. Na sua vertente prática a dignidade humana abarca todos os direitos que definem a condição moderna: abrigo, alimentação, livre expressão, livre movimento, exercício de direitos políticos, liberdade religiosa, etc. A prossecussão destes objectivos é que dá, em nossa opinião, substância à ideia de África. Não obstante, a oportunidade histórica desta ideia assentou sempre num paradoxo: A ideia de África só se articula com coerência como negação da modernidade europeia. O movimento da Négritude demonstra este paradoxo muito bem. Senghor, Césaire, Dumas e tantos outros desenvolveram a sua exaltação do homem negro essencialmente como crítica à hipocrisia ocidental. O mesmo discurso que proclamava o progresso, a irmandade e a justiça era utilizado para desqualificar os africanos. Daí a sugerir, como o fez Senghor, que a identidade africana só podia assentar numa maneira completamente diferente de apreender a realidade – a emoção é negra, a razão é grega – é uma pequena distância. Este equívoco, pelo qual Senghor e os seus companheiros de luta já foram sobejamente criticados, é instrutivo na medida em que é revelador da centralidade do paradoxo acima mencionado. O verdadeiro equívoco, todavia, não é a suposição de que os africanos têm uma essência cognitiva diferente. O verdadeiro equívoco está em supor que a modernidade seja europeia. Em nossa opinião, porém, os europeus apenas se apropriaram da modernidade. Eles reclamaram direitos de autor sobre algo que, no seu conteúdo, é elementar à humanidade, a saber a dignidade humana. A modernidade, despida de etnocentrismos baratos, é a condição sine qua non da realização da dignidade humana. Ela está no centro da construcção da ideia de África. Por isso, temos que resistir à ideia de que os europeus detêm sobre ela direitos de autor. A dignidade humana não pode ser invenção dum povo. Ela é o resultado da experiência, da vida, do diálogo do Homem consigo próprio. No seu fundo mais nobre a África significa justamente isto. O paradoxo que nos prende, que constantemente joga escombros no entulho para que o Fénix não se levante e recupere o seu voo, é a ideia de que temos de recuperar uma identidade

primordial, a-histórica e esplendidamente ignorante do mundo da vida. De tantas árvores perante os nossos olhos não vemos a floresta. A ideia de África é um convite à libertação deste paradoxo. Ela convida-nos a procurar na nossa experiência concreta o verdadeiro significado de África. Feliz coincidência A realização da cimeira da União Africana em Moçambique pode ser vista como uma coincidência feliz. Apesar de todos os retrocessos, de todas as vicissitudes, o nosso País pode reclamar para si próprio um papel exemplar na realização da ideia africana. Moçambique, tal como a África em si, é também uma ideia que se concretiza quotidianamente. Surgiu como a tomada de consciência histórica pelos seus habitantes. Materializou-se na luta pela independência. No esforço de consolidação da comunidade axiológica e de destino que ele representava enveredou por caminhos aberrantes. Perverteu o seu próprio significado com a regimentação do pensamento e aspirações. Perdeu-se na instrumentalização dos seus próprios habitantes por interesses alheios convenientemente legitimados com recurso à ideia de que era necessário recuperar a verdadeira essência cultural do País. Felizmente, depois de muito sangue corrido, de muitas vidas destruídas, de muito vandalismo o País voltou a si. Ainda precisa de sarar as feridas, reconstruir o que foi destruído e reconstituir biografias. As assimetrias persistem. A pobreza mantém os cintos apertados. As várias cores que compõem o mosaico demográfico moçambicano continuam ainda à procura duma plataforma comum de diálogo. O sistema político continua a ensaiar formas de participação inclusivas. Com passo de camaleão o País vai andando. Essa andança traz o nosso País de volta à ideia de África. Trá-lo aos atalhos que vão conduzir os moçambicanos à realização da dignidade humana. É neste sentido que a realização desta cimeira no nosso País pode constituir uma feliz coincidência: no momento em que a África procura de novo o caminho de volta às suas tradições, isto é em que recupera a sua consciência histórica, é acolhida por um País em que a materialização dessa ideia se coloca como um desafio incontornável. A África, em Moçambique, é uma necessidade, mas provavelmente Moçambique, em África, é uma invenção fortuita. Alguns, olhando para a cimeira africana, vão afirmar espantados que Maputo nunca viu tanto ditador junto duma assentada. Com efeito, estarão reunidos em Maputo vários chefes de Estado que devem o seu estatuto à violência armada, à aterrorização dos seus próprios habitantes, em suma, à perversão da ideia de África. Numa altura em que as condições existenciais dos habitantes deste continente são mais difíceis do que nunca só podemos esperar que nem mesmo o mais surdo dos ditadores seja capaz de ignorar a oportunidade que o momento representa para acabar com a impostura e trazer o continente de novo à história. A União Africana só faz sentido se se afirma como uma resposta ao desafio deste momento tão crucial. Notícias, 10 de Julho de 2003

Observando

Da racionalidade do cabrito Numa canção dedicada às forças da lei e da ordem Xidiminguana, o nosso grande trovador, encena o seguinte diálogo entre o guarda duma empresa e um dos trabalhadores no portão de saída: Guarda (voz áspera): hey, filho, o que trazes aí nesse saco? Trabalhador (voz defensiva): nada pai, só trago trapos. Guarda (depois duma breve pausa e em voz de comando): entra aí nessa casota! Trabalhador (voz desesperada): por favor pai, desculpe-me. Guarda (com voz metálica e apressada): já não há desculpas agora, a polícia já nos viu! (longa pausa)... oiça lá, quantas pernas tens? Trabalhador (confuso): tenho duas pernas. Guarda (voz decidida): escuta bem: esta perna aqui é minha, esta é tua. Vai-te embora. Havemos de nos encontrar lá fora... A canção é sobre um trabalhador que entra no serviço magro, de manhã, e sai gordo, à tarde. Xidiminguana, para além de excelente músico, é maestro da observação sociológica. Tal como Mia Couto na literatura, ele possui uma rara faculdade de penetrar situações sociais para além do que apresentam à superfície. Ele lê o social como um livro aberto. Neste pequeno diálogo, que de forma bastante exímia consegue representar, ele levanta o problema da corrosão do tecido social que torna o quotidiano imprevisível. Ele aproveita a oportunidade para advertir as forças policiais para não lhe prestarem favores especiais, por mais que apreciem a sua música. Favor não compra pão, diz ele a rematar e a despropósito. Um dos grandes enigmas do desenvolvimento refere-se ao que faz com que as pessoas – o povo – se porte bem. O que é necessário para que as pessoas sejam cidadãs conscientes? O que os outros países, os desenvolvidos, fizeram para conseguir que as suas populações cumpram as leis, respeitem o património público e sirvam os interesses da sociedade? Este enigma resume-se, em certa medida, na questão de saber como garantir bens colectivos que estão dependentes da acção individual. A democracia, por exemplo, é um bem colectivo, mas a sua possibilidade depende da conduta individual. Cada um de nós tem que se registar, votar conscientemente e participar construtivamente na confrontação de ideias. Uma característica saliente dos países com democracias estáveis é justamente a disponibilidade de cidadãos conscientes. Esta constatação tem, também, levado alguns estudiosos a supor que haja uma relação de causa e efeito entre a existência de cidadãos conscientes e a possibilidade duma democracia estável. A implicação costuma ser de que se os países ainda subdesenvolvidos tivessem um povo consciente tudo seria diferente. Esta ilação revela-se, frequentemente, na forma pouco rigorosa como se supõe que a constatação dum problema e consequente identificação duma solução é tudo quanto seria necessário para se ter o fim esperado. Está, por exemplo, na moda agora supor que o problema do desenvolvimento africano se poderia resolver com maior facilidade se se lograsse a estabilidade política. Ora, embora verdade, esta suposição levanta apenas problemas, problemas muito próximos da proverbial pergunta sobre quem vai pôr o guizo ao gato. O problema desta suposição está na questão de base identificada mais acima: como garantir bens colectivos na base da acção individual? O problema reside no pressuposto segundo o qual a mera existência dum interesse colectivo seria suficiente para garantir um comportamento conformado ao nível individual. Ora, embora plausível este raciocínio é problemático na medida em que colide com a experiência do quotidiano. Em muitas situações do quotidiano as pessoas não vêem nenhuma contradição entre, por um lado, considerar o desenvolvimento essencial e desejável e, por outro, agir de acordo com a lógica do cabrito.

Perante a alternativa entre cumprir uma lei ou não a tendência de muita gente, mesmo nos países mais estáveis, é de não cumprir na esperança de que os outros o façam. Esta pode parecer uma atitude extremamente individualista, mas muitas vezes é até perfeitamente racional agir dessa maneira. Se o município promulga uma lei para a poupança de água aqueles que, no interesse do colectivo, a cumprirem não serão os mais conscientes, mas sim os mais irracionais que não conseguem ver que a maioria, na ausência de coerção e controlo, não vai cumprir a lei, por muito congruente que ela seja com os interesses colectivos. É assim em muitas coisas da vida: gostaríamos de ver a cidade limpa, mas jogamos lixo na rua e esperamos que os outros deitem o seu nas respectivas latas; gostaríamos que os “chapas” e outros utentes das nossas estradas respeitassem as leis de trânsito, mas quando estamos com pressa, e isto é sempre, não temos nenhuma consideração pelas leis, pelos peões e pelos outros automobilistas; gostaríamos que o estado fosse mais disciplinado nas suas despesas, mas insistimos nas nossas regalias e esperamos que os outros o não façam. E por aí fora. Esta dupla moral tem as suas raízes provavelmente na própria condição humana. Não somos individualistas, mas quando tomamos uma decisão partimos sempre de nós próprios. Mesmo um altruísta pratica as suas boas acções como forma de satisfazer o seu interesse individual de praticar uma boa acção. Trata-se, contudo, duma condição que se constitui, e reconstitui, no nosso dia a dia. Pode ser algo inacto, mas tem que ser representado para ganhar substância. Isto é, nas situações do quotidiano estamos constantemente a encenar esta dupla moral como forma de confirmar a sua existência. Perceber este processo, digamos, de manutenção institucional da realidade pode ser um instrumento bastante útil para a análise da tensão entre o reconhecimento do desenvolvimento como bem colectivo por um lado, e sua recusa individual, por outro. O diálogo de Xidiminguana ajuda-nos um bocado nesse empreendimento. Com efeito, a própria estrutura revela alguns dos mecanismos através dos quais a acção individual produz a rejeição colectiva do desenvolvimento. Essa estrutura consiste essencialmente em três fundamentos, a saber uma certa competência social, ética e prática. Cada um destes elementos é essencial à produção de situações do quotidiano. Quando no nosso dia a dia somos capazes de realizar compras, por exemplo, do princípio ao fim, isto é interpelar o empregado da loja, percorrer com ele os meandros das nossas preferências, muitas vezes mal formuladas, até chegarmos à compra ou não, estamos essencialmente a revelar os tipos de competência aqui mencionados. A competência social consiste na capacidade individual de reconhecer “iscas” linguísticas e agir de acordo com elas. No caso da situação proposta por Xidiminguana, o guarda inicia o diálogo utilizando palavras como “filho” e perguntando ao trabalhador o que tem no saco. Esta pergunta, para qualquer pessoa competente, é uma proposta. O normal, isto é num país normal, seria que o guarda pedisse para ver o conteúdo do saco. Aliás a sua função de guarda exige isso. O trabalhador percebe isto e insiste utilizando o comportamento correspondente. Ele rebaixa-se, e desse modo reconhece a autoridade do guarda, através do uso duma voz desesperada. Trata-se, essencialmente, dum compasso de espera para verificar se percebeu a “dica” por assim dizer. O guarda reage mandando-lhe entrar na casota – mais uma vez não pede para ver o conteúdo! O trabalhador precisa, agora, de confirmação mais segura das verdadeiras intenções do guarda e por isso abre o jogo indirectamente pedindo desculpas. E esta não se faz esperar: o guarda, sempre bem guarnecido, diz que não pode haver perdão porque a “polícia já nos viu”! É aqui onde intervém a competência ética. O guarda oferece ao trabalhador um contrato social no qual a polícia é o mau da fita. Nós e eles. A questão já não é a eminente violação duma lei, mas sim a possibilidade duma comunidade moral entre o guarda e o trabalhador ladrão contra a autoridade. E este contrato é selado com o uso duma imagem biológica bastante sugestiva. Eu e tu, excede-se o guarda na sua imaginação estética, somos um mesmo corpo: uma perna para ti, outra para mim. Perfeita união que se vai consumar na violação individual duma lei

feita para servir a todos, incluindo ao guarda e ao trabalhador. A competência prática surge, aqui, como a capacidade individual de reconhecer situações idênticas no futuro e agir competentemente. Isto é, saber agir no nosso quotidiano passa a ser uma função da capacidade de reconhecer e apreciar ofertas de alianças ilícitas. Mesmo um olhar descuidado à sociedade em que vivemos revela a enorme atracção que tal competência exerce sobre o indivíduo. A racionalidade do cabrito não está em comer onde está amarrado, embora isso seja elementar. Está, isso sim, no cálculo que o cabrito de certeza deve fazer: se eu não comer este capim aqui e agora à espera duma distribuição mais equitativa corro o risco de nada apanhar porque os outros cabritos onde estão não vão ficar à espera. A multiplicação destas situações explica em larga medida porque o desenvolvimento é tão elusivo. Ao contrário dele, que promete um “futuro melhor”, para usar um slógan político bastante ambíguo, e para a colectividade as situações do quotidiano produzem resultados imediatos e não só: constituem-se como a base de alianças sociais que, por sua vez, tornam a vida mais previsível, ainda que apenas a curto prazo. O suborno pago ao agente policial, ao enfermeiro, ao funcionário sénior que faz a sub-contratação duma consultoria, etc. constitui uma moeda de troca mais sólida e fiável do que a expectativa do cumprimento de leis. É esta capacidade de dar maior previsibilidade ao quotidiano que dá ao comportamento “irracional” individual vantagem sobre o comportamento orientado para a garantia de bens colectivos. Os apelos morais podem ser úteis nos esforços dos bem-intencionados para conciliar o egoísmo individual e o bem colectivo. Não obstante, mais importante ainda do que estes apelos morais é a insistência nos mecanismos impessoais que tornam possível o funcionamento de instituições. É assim que se consegue, na maior parte do tempo, controlar o problema da corrupção – para usar o grito de batalha de alguns concidadãos – nos países mais desenvolvidos. Os cidadãos destes países não são mais conscientes do que os moçambicanos. Na verdade, se tivessem as mesmas oportunidades que estes últimos teriam também dificuldades em resistir à tentação de seguir a lógica do cabrito. Entre um futuro melhor abstracto e um presente concreto e imediato todo o indivíduo racional opta pela segunda alternativa.

Notícias, 30 de Julho de 2003

Desenvolver o país com desculpas Peço desculpas aos estudantes de sociologia da UFICS pelo protagonismo negativo que vão ter aqui. Peço igualmente desculpas aos nossos linguistas por trespassar um território que eles já deviam ter explorado. Enfim, peço desculpas aos leitores por abordar uma questão que era melhor ignorar. Pedir desculpas, quer seja a propósito quer não, parece o passatempo favorito dos moçambicanos. Melhor ainda, desculpar-se e não pedir desculpas. Pedir desculpas é o que agentes da polícia de trânsito, empregados de balcão e os funcionários que atendem o público nas repartições deviam fazer, mas não fazem. E têm desculpa para isso. Esta reflexão vem a propósito da experiência de ensino na UFICS. Onde ensino a maior parte do tempo, na Alemanha, os estudantes entregam os seus trabalhos a tempo. Há um e outro caso de atraso, mas geralmente quando é assim, o atraso é antecipado e acordado previamente comigo. Em Moçambique, é diferente. Há sempre um bom número de estudantes que não entrega os seus trabalhos a tempo e, pior do que isso, não vê a necessidade de acertar a questão comigo previamente. E isso não acontece só com trabalhos de avaliação. Acontece também com outro tipo de compromissos, por exemplo, artigos para publicação ou encontros de trabalho. Invariavelmente, julgam ter uma boa desculpa: falecimento na família ou no círculo de amigos; malária ou outra doença; falta de acesso ao computador; rumores de que o trabalho foi desmarcado, etc. O aspecto interessante destas desculpas não está nem no tipo nem no facto de serem feitas. O interesse está na expectativa de que surtam o efeito desejado. O mais curioso ainda é que essa expectativa se confirma, vezes sem conta. As desculpas funcionam. Mais uma vez, não funcionam por se tratar de falecimento, doença ou dificuldades materiais. Isso, quando muito, só mostra a escala de valores sociais entre nós. Nem funcionam porque as pessoas se lembraram de pedir desculpas. Elas funcionam, começo a pensar, porque são um elemento central da nossa vida em sociedade em Moçambique. Sem desculpas, gostaria de sugerir, o nosso país parava de funcionar. Vou também sugerir que com desculpas, a longo prazo, o nosso país vai também deixar de funcionar. A função social da desculpa O nosso país já não anda, nem desanda. Os estudantes servem-se dum lubrificante útil das relações sociais deste país. Desde empregados domésticos, passando por operários e camponeses, até aos funcionários públicos e o próprio país, investimos, em Moçambique, mais tempo, energia e criatividade em encontrar uma boa desculpa para não termos feito o que devíamos ter feito do que em tentar fazer. Há momentos em que tenho pesadelos: vejo metade da população moçambicana em cortejos fúnebres – é engraçado que ao funeral ninguém chega atrasado – e a outra metade a disputar lugar no caixão. Na pedra duma campa gigante está escrito o seguinte: “não te disse que tinha malária?”. As desculpas funcionam porque são parasitárias e fazem chantagem. Elas são parasitárias na medida em que desafiam o ouvinte ou receptor a construir ele próprio o seu verdadeiro significado. Para justificar o não cumprimento dum compromisso profissional é suficiente dizer “tive um falecimento” ou “tive malária”. Compete à pessoa a quem esta frase é dirigida construi-la como desculpa. É como se fosse uma premissa num argumento, cuja conclusão deve ser deduzida com recurso a toda competência social que um indivíduo tem. Assim, quando alguém diz “tive falecimento” a minha responsabilidade é de fazer as devidas associações: perdeu um ente querido; a sua rotina está quebrada; tem que atender a obrigações familiares; falecimento é algo muito importante na nossa tradição; se não cumprir com as obrigações familiares corre riscos metafísicos, etc. Portanto, está completamente justificado.

As desculpas fazem chantagem na medida em que transferem ao ouvinte ou receptor a responsabilidade de tirar as devidas conclusões. Quem não é capaz de tirar as devidas conclusões é socialmente incompetente. Se em resposta a alguém que me dissesse “tive falecimento” eu dissesse “estou-me nas tintas” ninguém iria aplaudir o zelo profissional que por ventura estivesse por detrás dessa reacção. Antes pelo contrário, considerar-me-iam analfabeto social, uma pessoa iletrada em relações sociais. A dedução que tenho que fazer perante as premissas apresentadas por uma desculpa é sempre: logo, está justificado. Felizardos são os estrangeiros no nosso país, cuja incompetência social lhes proteje das desculpas. O parasitismo e chantagem têm uma função social muito importante. Fazem das desculpas uma explicação. E o que está explicado, está bem. Isto tem uma longa tradição no nosso país. Pelo menos isso. Os portugueses colonizaram-nos porque não estávamos unidos; militámos na PIDE porque fomos obrigados; punimos alguém durante a luta armada porque era da linha reaccionária; metemos no campo de reeducação porque era Xiconhoca; mutilámos porque éramos contra o socialismo; queimámos porque o exército também fez; perdemos um jogo ganho com a Zâmbia porque estávamos cansados. Nos tempos de Samora dizer “insuficiências” era suficiente para explicar tudo; a falta de “condições” era tudo, como quando um camponês, ao tentar descrever-me o perfil de Jesus Cristo, disse “bom, ele não tinha condições”. A força das normas sociais Enquanto reflicto sobre o verdadeiro significado das desculpas esforço-me por resistir à tentação de lhes atribuir um estatuto cultural. A maior parte das pessoas com quem tenho conversado sobre o assunto não tem quaisquer tipos de escrúpulos a esse respeito. Para elas as desculpas fazem parte dum sistema cultural tipicamente africano que é, ainda para mais, responsável pelo nosso atraso. O tipo bem como o mero uso de desculpas para justificar omissões fazem parte dum sistema de valores e normas que se opõe vivamente ao tipo de sistema político e económico necessário à satisfação das necessidades básicas dos membros da sociedade. As desculpas, diriam os antropólogos, obedecem a uma lógica directa e imediata de acção (face-to-face). Elas reflectem um fraco nível de formalização. Explicações culturalistas revelam mais sobre os preconceitos da pessoa que as faz do que sobre o assunto em questão. Não é que não tenham um cunho de verdade. É preciso, contudo, trazer esse cunho à superfície. A explicação que eu próprio encontro para a cultura da desculpa não prescinde totalmente de preconceitos culturais. Ao contrário destes, porém, ela vê os elementos culturais numa perspectiva dinâmica, como coisas que se constituem no nosso quotidiano. Noutros termos, as desculpas têm o uso que têm na nossa sociedade porque elas se revelaram úteis. Foram integradas na nossa experiência de lidar com outras pessoas, instituições e condições naturais. No processo revelaram-se extremamente úteis. A famosa frase dos anos oitenta “ganhar experiência” pode explicar o que tenho em mente. Ganhar experiência significa duas coisas. Primeiro, significa identificar uma situação específica, isto é não confundi-la com nenhuma outra. Uma viagem para o exterior como membro duma delegação, para usar o contexto privilegiado do uso dessa expressão, não é uma viagem de sensibilização da população à aldeia comunal. Segundo, ganhar experiência significa antecipar acontecimentos. Isto é, prever a reacção dos outros e agir de acordo com essa previsão. O que dá segurança e previsibilidade à nossa acção quotidiana é precisamente esta sedimentação da experiência. É a natureza regular e padronizada de situações do dia a dia que nos permite dar o mundo por adquirido. Por norma, isto é feito por via de convenções. Ou por outra, através da nossa experiência damos à regularidade e à padronização o estatuto duma convenção. Em situações de contacto imediato, em que conhecemos muito bem as pessoas

com quem estamos a lidar, basta a qualidade das nossas relações para dar força de convenção a essa regularidade e padronização. Mas como o mundo social é feito de mais do que as nossas relações imediatas é preciso um outro tipo de garantias para que as convenções sejam eficazes como tal. É assim que para além da minha ou da palavra do leitor é necessário um mecanismo impessoal que garanta a observação duma convenção. As burocracias têm esse papel. Na realidade, todo o tipo de institucionalização de relações sociais, a saber polícia (ordem), hospital (saúde), escola (educação), sistema político (debate público), etc. constitui uma maneira impessoal de garantir a observação duma convenção que tem a sua génese na acumulação quotidiana de experiência. Quanto mais complexa for uma sociedade, maior necessidade tem ela destes mecanismos impessoais. Os apelos morais, muitas vezes informais, têm mais força de Macamo para Macamo do que de Macamo para Sousa, Capurchande, Sitoi ou Nipassa. Têm mais força no bairro do Tavene dentro de Xai-Xai do que na Mafalala, em Maputo, ou na Manga, na Beira. Têm, provavelmente, mais força no Sul do que no Centro ou Norte. E por aí fora. Ser moderno significa, na sua forma mais elementar, a simples garantia do funcionamento destes mecanismos impessoais como forma de dar maior previsibilidade ao quotidiano. A diferença entre tradição e modernidade, neste caso, e nisto os antropólogos estão mais do que certos, é a diferença entre a força duma norma social e a força dum dever. A primeira é pessoal, a segunda é impessoal. Provavelmente, o nosso problema de desenvolvimento reside justamente na tradução de normas sociais em deveres. As desculpas fazem parte do universo cultural das normas sociais. Se eu ou o leitor não nos sentimos bem com a ubiquidade das desculpas é porque nós, muito provavelmente, observamos o critério do dever na nossa acção quotidiana. Com isto não quero sugerir que seja irracional observar o critério da norma social. Na verdade, tudo até indica que é mais racional agir assim. Em Moçambique. De cada vez que cumpro a minha palavra, muitas vezes à custa de noites perdidas e fricções familiares, surpreende-me a surpresa dos que não esperavam pelo cumprimento da palavra. Isso acontece com mais gente, mas fica mal dizer em voz alta porque atenta contra a ética dominante da norma social. Para defender essa ética tudo vale: desde acusações de feitiçaria até ao ostracismo aberto. A questão que se coloca é de saber porque é tão ubíqua a norma social apesar de sermos uma sociedade complexa? Pessoalmente ainda não tenho resposta, apenas palpites. Suponho que a explicação deste fenómeno seja tão circular quanto vicioso o círculo da nossa existência. Predomina a norma social porque o dever ainda não se impôs; o dever ainda não se impôs porque a norma social teima em se manter bem viva. Eis um problema. Porquê o círculo vicioso? Suponho que tenha a ver com a precariedade da nossa existência. O universo cultural do dever, no nosso país, é menos seguro e previsível do que o universo cultural da norma social. O recurso ao directo, imediato e informal constitui uma melhor economia de esforços do que o recurso ao indirecto, distante e formal. No caso concreto das desculpas, pela sua própria estrutura, elas produzem a norma social. O parasitismo e a chantagem de que vivem são parte integrante da sua economia política. Através da sua função explicativa criam as condições necessárias à sua própria reprodução. Se aceito “tive falecimento” como desculpa e explicação é porque aceito as normas e os valores que se atribui ao fenómeno aludido. Aceito fazer parte dessa comunidade moral. Abaixo as desculpas! Se o problema das desculpas se circunscrevesse apenas aos estudantes seria grave, mas não tão grave ao ponto de merecer a nossa atenção. Podíamos até dizer, como de certeza estarão alguns leitores a pensar, que essas desculpas é que nos tornam diferentes dos outros. De resto, dirão, somos africanos e faz parte da nossa identidade respeitar os defuntos. Sim, mas faz

parte também da nossa condição humana respeitar compromissos profissionais. O que torna o problema das desculpas grave é a sua forte tendência de se tornar numa verdadeira cultura. Isto é, ao invés de se manifestar como um entre vários aspectos dum sistema cultural, como diriam alguns, desculpar-se passa a ser a marca distintiva dos moçambicanos. Há vários exemplos disso que mostram a gravidade da questão. A atitude do ministro do interior, a julgar pelo que foi noticiado pela imprensa, no julgamento do caso Carlos Cardoso é altamente sintomática dessa cultura. Quando Anibalzinho se escapuliu o ministro disse, segundo a imprensa, qualquer coisa como “isso acontece em qualquer parte do mundo”. Na altura, alguns observadores classificaram o comentário de arrogante. E se calhar até têm razão. Mas também pode se dizer que o ministro estava a recorrer ao grande lubrificante das relações sociais que é a desculpa no nosso país. Por mais disingénua que tenha sido a afirmação tratava-se duma desculpa no bom estilo moçambicano: parasitária e chantagista. Parasitária porque como bons cidadãos que somos devíamos ter a competência social para reconhecer que se até em países mais desenvolvidos do que o nosso criminosos se evadem como é que não se podem evadir das nossas cadeias? Chantagista porque nos convidava a tirar a conclusão de que o que aconteceu era perfeitamente normal sob pena de nos passar um atestado de loucura por expectativas exageradas. E de desculpa em desculpa o país vai se afundando na sua própria inércia: Não temos meios; não temos fundos; o financiamento não veio a tempo; não temos capacidade institucional; não temos pessoal; faltaram viaturas adequadas; o governo não investe na nossa região; choveu muito; choveu pouco; não choveu; já era tarde; calhou mal; os outros governos africanos não nos apoiaram; não havia verba; somos pobres; as estradas estão cheias de buracos; morreu o tio do amigo do meu colega; tive malária, etc., etc. Para cada uma destas situações há todo um arsenal de explicações. O que se esquece é que uma explicação é bem diferente duma desculpa. Esta parece-me uma nota bastante negativa para terminar a reflexão. Contudo, se me ponho a procurar uma explicação para as reais dificuldades que enfrentamos no nosso dia a dia com a confusão que se faz entre explicação e desculpa corro o sério risco de apenas arranjar desculpas para desculpas.

Notícias, 14 de Agosto de 2003

O chapa somos nós

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O chapa representa o que há de mais negativo no tecido moral da nossa sociedade. O chapa é mal-criado, criminoso no sentido de desrespeitar as regras de trânsito, egoísta, sujo e oportunista. Não há ninguém que não tenha uma história feia para contar acerca dele. Todos os dias o chapa que circula pelas nossas vias – suburbanas assim como rurais – proporciona episódios que podiam alimentar uma telenovela das coisas mais desagradáveis da vida. O chapa é uma vergonha. O chapa está em todo o lado. E mata. Deve haver para além desse número legal mais uns tantos que levam uma existência falsa fora dos registos oficiais. Tanto os legais quanto os ilegais, com raríssimas excepções, contribuem para tornar as vias das nossas cidades, sobretudo da cidade de Maputo, zonas perigosas da humanidade. O insulto e a agressão espreitam em cada transbordo do chapa, em cada viragem cortante, em cada travagem repentina, em cada ultrapassagem perigosa. Um mal necessário Ninguém gosta do chapa, embora muitos de nós o utilizem. É um mal necessário. A atitude geral na sociedade não foge da caracterização negativa feita mais acima. O chapa é coisa de boçais. Pelo menos neste sentido a sociedade ainda não perdeu a capacidade de se indignar moralmente. Muitos, contudo, vão mais longe do que isso. Eles consideram que o problema do chapa é o problema da ineficiência e fraqueza das instituições públicas. Era necessário um outro tipo de concelho municipal para controlar o problema; era preciso um outro tipo de polícia de trânsito para conter o problema. O chapa mostra de forma bastante inequívoca a fraqueza das nossas instituições de ordem e segurança pública. O que não se diz, mas devia dizer-se, é que o chapa somos nós. Embora custe aceitar, o chapa é o espelho da nossa sociedade. Na sua correria constante e apressada bem como nos ares de importância que assume, como se tivesse uma missão urgente e inadiável com um objectivo claramente definido e bem na mira, o chapa lembra o nosso país. Este também corre há dezenas de anos. No mesmo lugar. Também assume ares de importância e urgência, tem o desenvolvimento como objectivo claramente definido e almejado. Na azáfama vai destruindo tudo o que vai precisar para chegar a esse desenvolvimento. Tanto o chapa quer o país precisam um do outro. O chapa precisa deste país porque com as suas frágeis instituições ele oferece as condições ideais para se desenvolver. A situação lembra a relação entre um porco e uma pocilga. Mas o país também precisa do chapa. Mais precisamente, a nossa sociedade precisa do chapa como ameaça do corpo social. A desordem do chapa é funcional à preservação dum certo sentido de moralidade. Ajuda, nas reclamações do dia a dia dirigidas contra o chapa, a fazer a lavagem ritual necessária. Quando o chapa nos define Há razões mais fortes para dizer que o chapa somos nós. Na verdade, o chapa define o país que somos. Faz isto de três maneiras. Primeiro, o chapa representa o fim da cortesia. Segundo, a entrada em cena do chapa marca de forma dramática a interrupção do processo civilizacional da nossa sociedade. Finalmente, o chapa é o símbolo mais forte da nossa 3

Com Manuel Macie.

resistência à modernidade. É uma resistência com traços pós-modernos que mereciam ser festejados pela nossa literatura pós-colonial. Há ideias que têm uma capacidade incrível de resistir à evidência empírica. A ideia de que os moçambicanos são corteses por natureza é uma delas. É provável que no passado – nessa altura tudo foi possível, sobretudo em retrospectiva – tenha sido assim. Nos tempos acessíveis à nossa memória, contudo, os moçambicanos deram provas de serem capazes de tudo. A violência sangrenta e barata da última guerra é um exemplo particularmente trágico. Entre nós o tratamento é caracterizado por tudo menos cortesia. Os empregados de balcão nas lojas e os de mesa nos restaurantes ralham com os clientes; os funcionários públicos – pelo menos aqueles com quem sempre calhamos nas repartições – assumem ares de pequenos chefes feudais na forma de lidar com o público; a polícia de trânsito sente um prazer sádico em atormentar motoristas. Da mesma maneira, os clientes, público e motoristas não sentem a necessidade de lidar de forma cortez com os seus servidores. A nossa sociedade está de pernas para o ar, um pouco à maneira da canção do grupo Ghorwane: a polícia rouba aos ladrões; os coxos fogem das muletas; os jovens recusam o serviço militar. O chapa acaba com a ilusão duma cortesia natural do povo moçambicano. O assédio sexual, o roubo, a música a furar os tímpanos, a falta de espaço, a alta velocidade, enfim, o catálogo de indelicadezas que caracterizam a normalidade do chapa colocam um espelho defronte da sociedade. Esta pode virar os olhos, com medo de se reconhecer. Mas ninguém pode fugir à sua identidade por muito tempo. Houve um sociólogo chamado Norbert Elias que defendeu uma tese pertinente para nós. Ele interessava-se particularmente por aquilo que chamou de processo civilizacional. Esse conceito referia-se à forma paulatina como os indivíduos lograram o auto-controlo. As suas obras conteem exemplos divertidos. Ele escreve, por exemplo, sobre tempos em que era normal nos meios aristocráticos europeus fazer necessidades – maiores e menores – na presença de outros. E não só. Diz-se que Martinho Lutero consumou o seu casamento na presença de outros. Com o andar do tempo, as pessoas, sobretudo as classes superiores, foram assumindo maior controlo dos seus afectos e instintos. Passaram a controlar melhor o seu metabolismo, por exemplo, resistindo estoicamente à urgência de necessidades até se encontrarem na solidão da retrete. O que é que o chapa tem a ver com a civilização? Muito. Muito mais do que podemos imaginar. Para já, andar e parar constituem dois dos mais tenazes instintos humanos. O semáforo interfere com esses instintos. Em princípio um indivíduo civilizado, isto é com autocontrolo, devia reagir às ordens do semáforo de forma igualmente civilizada. O chapa tem enormes dificuldades de reagir dessa maneira. Mas esta dificuldade não se explica pela pressa que caracteriza o chapa. Não se explica pelo receio, por vezes justificado, de que apareça alguém com uma arma em riste no sinal vermelho. O chapa não reage ao semáforo porque o chapa não tem auto-controlo. A falta de auto-controlo tem a ver com a falta de respeito e consideração pelos outros. O processo civilizacional não é apenas uma maneira de ser diferente. É uma maneira de acomodar os outros na nossa vida. Só considerando os outros é que podemos ter a certeza de que os outros nos vão considerar. Esta certeza, em Moçambique, não existe. Nesse sentido, mais uma vez, o chapa representa de novo a nossa sociedade. Uma sociedade de desconfiados que preferem a agressividade à cooperação. O veicúlo automóvel interrompeu o nosso processo civilizacional. O carro mata da forma mais desumana possível. São pessoas que se matam, mas dizem que se tratou dum “acidente”. Acidentes acontecem. O carro integra-se melhor na civilização quando a sociedade em questão respeita a dignidade humana. Quando esta condição não está satisfeita, o carro é uma arma potente através da qual os indivíduos exprimem os seus instintos mais básicos: ser o mais poderoso, o primeiro, o mais forte, o mais admirado. Na segurança falsa que o interior

do carro dá ao motorista, separado do mundo exterior pela magia da automobilidade, toda a gente se sente dona do mundo. De lá pode-se gesticular contra outros motoristas e peões, pode-se ralhar, lançar impropérios, mijar água estagnada aos peões. A proliferação de carros em Maputo, que se exprime no congestionamento quase que crónico das vias, nivelou a sociedade. Todos, isto é os que têm carro, são iguais. Os Zé-ninguém adoptam a má educação dos poderosos. Se no interior do seu carro mostrassem consideração pelos outros estariam a admitir que não pertencem à classe dos que têm direito a carro. Estariam a demonstrar a sua inferioridade de classe. O chapa é uma demonstração de igualdade. Uma igualdade alcançada ao preço da trivialização da dignidade humana. O fim da cortesia e a interrupção do processo civilizacional são aspectos intimamente ligados dum fenómeno mais abrangente. Esse fenómeno é a nossa recusa da modernidade. Preferimos o perigo da cólera, da malária, dos acidentes de viação e da pobreza aos riscos duma existência socialmente regulada. O chapa representa uma maneira de viver com o risco. Cada viagem é uma aventura com ou sem fim. O chapa mapeia os espaços de sociabilidade da resistência à modernidade. Quem quiser confirmar isto pode ir a Xiquelene. Não é exactamente uma praça de chapas. Antes pelo contrário, é uma imitação duma praça de chapas. Mas uma praça de chapas não existe na realidade. Xiquelene é um simulacro, como teria dito um sociólogo francês, Jean Baudrillard, uma representação de algo que não existe. Muita gente, aparentemente em convívio. Quando se olha de perto, todavia, descobre-se que ninguém tem nada a ver com ninguém. Pelo menos não no sentido de socialidade. Vai-se a Xiquelene para se ser roubado, assaltado, agredido, insultado. E fazer o mesmo aos outros. Mais uma descrição da nossa sociedade. ocupamos o mesmo espaço, não vivemos juntos. O chapa existe para representar a corda bamba que é a nossa existência. A única razão de ser do chapa é de minar a ordem. O chapa somos nós que nos insurgimos contra qualquer forma de ordem. Achamos mais criativo destruir a ordem e produzir a desordem. Sem o chapa algumas instituições deixavam de fazer sentido. A polícia municipal, por exemplo. Não existe para impôr a ordem na cidade, mas sim para viver da ilegalidade do chapa. E é assim em muitas áreas da nossa sociedade. O chapa é a pós-modernidade moçambicana: a subversão da meta-narrativa positivista da ordem. Não fazer nada Chegados a este ponto no desabafo resta a seguinte pergunta: que fazer? Nada. Nada, senão o reconhecimento de duas verdades dolorosas. Primeira verdade: o chapa somos nós. O chapa define o nosso subdesenvolvimento. Se não houvesse o tipo de chapas que há, não seríamos o que somos. Não seríamos subdesenvolvidos. O raciocínio central aqui aplica-se a outros aspectos do nosso quotidiano. O lixo, a malária, a cólera definem o nosso atraso. Segunda verdade: por detrás das manifestações externas do chapa – acidentes, poluição sonora, etc. – escondem-se coisas muito simples que têm a ver com a negociação da vida em sociedade. Viver em sociedade significa, no mínimo, criar condições para que as acções de uns não afectem os outros. Toda a acção tem consequências. A sociedade começa a existir quando os membros controlam as consequências das acções. Quando se civilizam. Aliás, são três as verdades dolorosas. Terceira verdade: o problema do chapa é um problema político. Não é técnico. É político. Como toda a questão política precisa de ser seriamente debatido. E a pergunta a colocar é a seguinte: como se pode garantir o respeito e consideração entre os cidadãos? A resposta vai ser muito provavelmente “através da ordem”. O debate prosseguirá debruçando-se sobre as condições que devem ser satisfeitas para que haja ordem, que tipo de ordem e com que fim. Revista MAIS, Abril, 2004

O país da indiferença O subdesenvolvimento do país começou nos anos oitenta, mais precisamente entre 1983 e 1984. Ainda me recordo muito bem como foi. Foi numa carpintaria e estava-se a preparar um caixão. Quando já estava pronto e os carpinteiros se preparavam para ir fazer a entrega um deles reparou que havia um prego projectado pelo caixão adentro. E chamou a atenção do mestre para o facto. O mestre, que não se estava para chatear, disse, em ronga, “sva fana, a nga ta sviyingela” (tanto faz, ele – o cadáver, portanto – não vai sentir nada). Num país como o nosso, onde os mortos são mais importantes do que os vivos, não é nada inofensivo deixar pregos picarem um cadáver. Mas na carpintaria em questão o mestre não se chateou. Ficou indiferente à sorte do cadáver. Aliás, ficou pura e simplesmente indiferente. Parecendo que não a indiferença, quer seja contra cadáveres, quer contra os vivos, objectos e tudo o mais que nos rodeia é uma das características mais marcantes do nosso quotidiano. Duma forma geral estamos indiferentes a tudo. Ao lixo, aos buracos, às águas estagnadas, ao estado degradado dos nossos edifícios, à apatia das autoridades municipais perante esses problemas. Nenhum de nós, no seu posto de trabalho, se inquieta por as coisas não estarem a andar bem. Ninguém fica preocupado porque os colegas não fizeram o que deviam ter feito. Os nossos governantes utilizam estradas esburacadas, muitas vezes até várias vezes durante o mesmo dia, e ficam indiferentes ao seu estado. A erosão tomou de assalto a avenida Julius Nyerere, o acesso ao ministério das finanças assim como às novas instalações do ministério dos negócios estrangeiros está visivelmente dificultado por buracos, e mesmo assim a situação não parece incomodar ninguém. Até dá para pensar se é legítimo esperar a solução de problemas mais longínquos de gente que nem se preocupa pelos que estão sob as suas próprias barbas. Quando a indiferença é estudada A indiferença é um fenómeno interessante. Se calhar é o fenómeno mais interessante deste país, mais do que a corrupção, pobreza absoluta ou mesmo NEPAD. E já agora, mais do que o tráfico de órgãos humanos. Muito provavelmente, cada um destes problemas constitui uma dimensão da indiferença como fenómeno mais abrangente. Pessoalmente, comecei a interessar-me pelo assunto muito recentemente enquanto esperava pela minha vez de ser atendido numa repartição pública em Xai-Xai. O funcionário, que me conhecia e não tinha mãos a medir para atender ao muito público lá presente, não me viu durante 15 minutos. Foi duma indiferença estudada, pareceu-me. Os seus passos eram controlados. Descreviam sempre a mesma trajectória, do balcão à sua secretária, desta ao balcão. Não se afastava nem um centímetro da sua rota habitual. Nem trocava os passos. Até parecia estar a dançar “Ndihamba Nawe” numa das muitas discotecas do nosso país. Primeiro, pé esquerdo para girar sobre os pés, depois o direito com uma ligeira inclinação para escapar ao canto esquerdo da secretária da colega. Os olhos sempre virados para os mesmos objectos, com o mesmo enfoque, nunca com a cabeça erguida para um panorama mais amplo, sempre cabisbaixo numa pose que lhe permitia só ver o cliente mais próximo. Só os levantava quando tinha a certeza de que ia acertar na cara do cliente a seguir. Achei estranho que não me tivesse visto à minha chegada. Nos quinze minutos de espera até cheguei a pensar que tivesse fingido não me ver. Só depois de reflectir sobre a forma estudada como se comportou é que me dei conta de que se tratava provavelmente duma indiferença propositada e com função. Toda aquela rotina fazia parte duma estratégia que o protegia do assédio constante dos que o conheciam. Para não ter que violar o seu próprio sentido de justiça no atendimento ao público vestiu a indiferença. Procurou refúgio numa atitude

consciente de ignorância total do mundo que o rodeia. Insulou-se. Fez o que seria necessário para pôr este país a andar seriamente rumo ao tal desenvolvimento. A razão da indiferença Vou arriscar uma análise sociológica da indiferença. Parece que no nosso país ela resulta da tensão entre uma moral social asfixiante e o desejo individual de emancipação. Não é uma tensão que se resolva facilmente. A moral social que caracteriza o nosso país dá prioridade ao colectivo imediato, muitas vezes em detrimento do individual. O colectivo imediato é a nossa família, são os nossos amigos, é a nossa etnia, a nossa região, o nosso clube de futebol, o nosso partido político, os nossos amigos. Entre nós, um indivíduo tem que estar para estes colectivos. Por exemplo, é imperioso dar apoio aos seus familiares menos afortunados, mesmo os que se sentam sobre as próprias mãos – como se diz em changana. É obrigatório estar para a malta, região, etnia e partido político. Só com esse tipo de atitude é que um indivíduo é julgado socialmente competente. Isto é, quando, independentemente das circunstâncias, coloca o colectivo mais imediato à frente. Não importa se o colectivo tem razão ou não, nem se o que se espera dele é lícito ou não. O colectivo mais imediato tem razão pelo simples facto de ser o colectivo mais imediato. O colectivo forma uma maioria moral, em todas as circunstâncias. E o que é moral, no nosso contexto, está acima do que é lícito ou correcto. Este tipo de moral tem a tendência de asfixiar o indivíduo. Ninguém escapa a ela. Na verdade, em cada momento do nosso quotidiano cada um de nós tem que decidir entre lesar a moral social e fazer o que muitas vezes seria o mais lícito ou correcto. Muitos de nós optamos por não lesar a moral social. É uma má opção, mas antes de vermos porque é má, seria bom recordar que ela nos garante a sobrevivência. É verdade que essa garantia só é válida a curto prazo, pois a longo prazo o tipo de moral social que cultivamos no nosso país tem potencial suficiente para inviabilizar a nossa sobrevivência colectiva. Ela garante, por enquanto, a nossa sobrevivência porque as relações pessoais e informais é que são mais fiáveis. É mais cómodo e seguro esperar obter uma certidão de nascimento com a ajuda dum funcionário conhecido do registo civil do que com a crença na eficiência do procedimento burocrático. Esta moral social entra em choque com uma tendência natural típica de qualquer sociedade complexa. Essa tendência consiste no que podemos chamar de processo de individualização. Esta individualização verifica-se como resultado da sobreposição de colectivos de referência – desde a linhagem, passando pela etnia, região, partido político, confissão religiosa, clube desportivo até à própria nacionalidade. Isto é, porque vivemos numa sociedade complexa somos obrigados a procurar nós próprios as nossas próprias referências. No contexto restrito da aldeia, no campo, essa procura não se impõe, pois a autoridade linhageira dá a referência que os indivíduos precisam para se portarem bem. No contexto alargado da cidade, que cada vez mais caracteriza a sociedade moçambicana, nenhuma estrutura se impõe com naturalidade. Cada indivíduo tem que procurar por si próprio. Nisso até chega a rejeitar as referências que lhe são oferecidas como sendo as mais naturais, isto é a etnia, a raça ou mesmo, no caso de Raul Domingos, a Renamo. Cada um de nós procura um espaço individual de afirmação da sua própria pessoa como ser consciente, reflectido e dono do seu próprio destino. A individualização colide com a moral social porque ela se manifesta melhor num contexto em que o que é lícito e correcto tem prioridade sobre a ditadura do colectivo. A individualização só funciona num contexto caracterizado por regras impessoais. Na aldeia, o protótipo da moral social, é fácil impor regras de conduta baseadas num conhecimento tácito do que é bom ou mau. Esse conhecimento não precisa necessariamente de ser formalizado. É transmitido verbalmente, dos mais velhos aos mais novos, dos homens às mulheres, dos

“donos da terra” aos que vieram pedir abrigo. Na cidade, o protótipo da individualização, o conhecimento tácito é pura e simplesmente insuficiente. Só é possível garantir espaço a todos numa base individual se os preceitos que regulam a convivência na sociedade são independentes dos compromissos morais que cada um de nós tem para com os colectivos imediatos. Isto é, não é possível viver de forma sã na cidade de Maputo se cada um de nós insiste em respeitar apenas a sua família, os seus amigos, os membros da sua igreja, etc. Isso implica que são necessárias instituições soberanas que funcionam de acordo com regras independentes da moral desses colectivos imediatos. São necessárias regras impessoais, pois será na base delas que nos relacionaremos uns com os outros. Não é que a família, os amigos, a igreja, etc. não sejam importantes, mas quando só eles é que contam, está-se mal. Ora, o problema do nosso país reside precisamente aqui. Embora o nosso destino seja a individualização – porque a nossa sociedade se torna cada vez mais complexa – são poucos os que entre nós têm coragem suficiente para arriscar uma confrontação aberta com a moral social. Ninguém pode arriscar conflitos com a sua família, os seus amigos ou o seu partido político. Não é pelo receio de represálias metafísicas do tipo “espíritos de mudhliwa”. É, sim, porque as condições que deviam estar reunidas para que a individualização funcionasse não estão ainda no lugar. Melhor ainda, é porque apesar de tudo a fidelidade aos colectivos imediatos é mais eficiente do que o respeito pelas regras impessoais. Era preciso muita coragem para ir contra os colectivos imediatos. E porque nos falta essa coragem ficamos condenados à reprodução dum círculo vicioso: alimentamos a moral social e, dessa maneira, enfraquecemos os preceitos que regulam o funcionamento das instituições, o que por sua vez torna a observação da moral social cada vez mais necessária. Noutras palavras, por ser mais cómodo e eficiente, nas nossas condições actuais, obter a certidão através da pessoa conhecida no registo civil preferimos obrigar essa pessoa a desrespeitar os demais membros do público saltando-os da bicha para nos atender a nós; isso por sua vez inviabiliza a formalização dos procedimentos dentro do registo civil o que torna cada vez mais necessário o recurso à pessoa conhecida para tratar da tal certidão. A moral social asfixia porque cria obstáculos à afirmação dum espaço de individualização. Prende o indivíduo ao dever de fidelidade ao colectivo imediato. Nesse contexto, a indiferença surge como uma resposta individual à tensão entre a moral social e o desejo de emancipação individual. Ela constitui uma forma de agir num meio tornado precário pelas exigências colectivas sobre o indivíduo. Se a opção é entre lesar a moral social ou violar as regras impessoais as pessoas, muito racionalmente, vestem a indiferença por tudo que seja maior que o colectivo imediato. A indiferença e a construção da nação É uma resposta com um efeito perverso. A moral social que observamos refere-se aos colectivos imediatos, isto é à família, aos amigos, à etnia, raça, etc. Estes colectivos imediatos passam a ser o nosso verdadeiro universo de referência em detrimento duma ideia mais alargada de sociedade moçambicana. Noutros termos, de tanto nos preocuparmos com o colectivo imediato perdemos de vista o facto importantíssimo de que fazemos parte duma sociedade que é bem maior. O resultado disso é que tudo o que diz respeito à essa sociedade bem maior nos é indiferente. Não nos diz respeito. Está fora de categoria. E por isso mesmo pouco importa se anda bem ou não. Se anda bem fazemos tudo para a instrumentalizar a favor do nosso colectivo imediato. Se anda mal, tanto faz, alguém vai reparar se for útil ao seu próprio colectivo imediato. Dessa maneira ficamos reduzidos à condição de espectadores da degradação do nosso próprio país, sem remorsos nem piedade porque achamos que não fizemos nada de mal porque não fizemos nada. Quem não faz nada, quem observa uma situação qualquer de desleixo calado, e reage

mudo, não pode ter a consciência de que o que está mal está-o em parte por causa da sua própria indiferença. Alguns não vão concordar com este diagnóstico. Vão dizer, com razão, por exemplo, que apesar de tudo há gente que se indigna com o estado das coisas. Há gente que não fica indiferente à sorte deste país. As cartas de leitores dos jornais, os editoriais, as crónicas, etc. estão repletas de reclamações. Mesmo os músicos reclamam. Os jovens do grupo “G. Profam” reclamaram a bom som no seu “país da marrabenta”. É verdade, mas essas reclamações simbolizam a indiferença. Nessas reclamações não se lamenta a degradação de algo comum ou colectivo. Lamenta-se a degradação de algo que nos é distante. Os que são vistos como estando a estragar o país já não pertencem à mesma comunidade moral. Estão fora de categoria. O que há de mais assustador nessa composição, por exemplo, não é a crítica política em si, por superficial que seja, mas sim a distância que os jovens criaram com o país. Teria ficado melhor se nessa composição tivessem posto Samora Machel a falar dos indiferentes, não dos ambiciosos. Ele devia ter dito “um indiferente é capaz de tudo, vender a pátria só por causa da sua indiferença; só por causa do seu interesse individual. Não sei se um indiferente muda, mas a minha experiência prova que não, muda de táctica, mas não elimina a indiferença. Um indiferente é criminoso [bom, não sei] ao mesmo tempo”. Isto teria sido melhor porque a indiferença é provavelmente um dos problemas mais sérios que o nosso país enfrenta. E não se trata da indiferença dos governantes. Trata-se da indiferença de cada um de nós nas pequenas coisas da vida. Trata-se da nossa subserviência em relação aos colectivos imediatos em detrimento das regras impessoais. É neste contexto que males como a corrupção, pobreza absoluta e vulnerabilidade a doenças como a malária e HIV-SIDA, entre outros, se tornam efeitos realmente secundários da indiferença. Para que a corrupção deixasse de ser o problema que dizem ser era preciso que cada um de nós insistisse na observação dos preceitos impessoais que regulam o funcionamento das instituições. Só eles é que nos podem libertar das garras da moral social. Para que a pobreza absoluta deixasse de ser o drama que é para milhões de moçambicanos era preciso que cada um de nós se indignasse pela forma como as oportunidades são distribuídas no nosso país. Só um debate concentrado sobre como se distribuem oportunidades de vida no país é que poderia trazer à superfície as várias ideias que são necessárias para atacar o problema da pobreza. Finalmente, para que doenças como a malária deixassem de ceifar vidas como o fazem agora era preciso que cada um de nós visse o problema da higiene e salubridade como um desafio individual. Só uma atitude de intolerância em relação a todos quantos põem em perigo a saúde pública é que poderia ser uma alternativa eficaz à rede mosquiteira. Era preciso, portanto, que fossemos menos indiferentes. A indiferença descreve de forma drástica o grande desafio que é a construção duma sociedade moderna. A sua predominância significa, lamentavelmente, que não estamos à altura desse desafio. Estamos a perder a batalha da civilização enganados pela nossa própria falta de coragem de enfrentar o assédio da moral social. Para invertermos a situação tínhamos que começar por passos pequenos: não jogarmos lixo no chão só porque tanto faz, está tudo sujo; não deixarmos de reparar os buracos da nossa rua só porque é tarefa do município; não nos contentarmos com trabalho medíocre só porque somos um país subdesenvolvido; não saltarmos a bicha só porque achamos ter mais pressa do que os outros. É mais fácil dito do que feito. Mas a verdade crua é que o desenvolvimento é feito destas coisas pequeninas. NEPAD, PROAGRI, PARPA, Reforma do Sector Público, Agendas 2025, etc. não valem o papel sobre o qual foram escritos se quem promove estas iniciativas, ou se quem as devia executar, não se indigna com as pequenas coisas da vida, as coisas que dão realmente substância à vida. Coisas tão simples como martelar um prego mais pequeno no caixão ou, na falta disso – apesar de tudo somos subdesenvolvidos, já se sabe – dobrar o prego que se projectou pelo caixão adentro. Duma ou doutra maneira o morto não vai sentir nada,

mas no fundo não é por ele que fazemos bem o nosso trabalho. Nem é pela sociedade. É por nós próprios. Que juntos somos a sociedade. esm Notícias, 13 e 14 de Abril 2004

Opinando

Quando o fim da credibilidade fomenta a irracionalidade Segundo sondagens públicas realizadas recentemente na Alemanha um em cada cinco alemães acredita que os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos foram da autoria do próprio governo americano. Parece brincadeira, mas é verdade. Entre os jovens são 20 por cento que acreditam nisto. A tendência é a mesma noutros países europeus e nos Estados Unidos também. Nos últimos meses alguns livros que articulam e defendem esta tese estão a vender a uma velocidade superior ao tempo que leva um “bipeiro” a desligar. Na Alemanha, mais uma vez, são principalmente dois livros que estão a dar que falar. Um é da autoria dum jornalista, Matthias Broekers, e outro é da autoria dum ex-ministro federal, Andreas von Buelow. O primeiro considera que as autoridades americanas falsificaram e esconderam provas para impedir que se apurasse quem está realmente por detrás do atentado. O segundo sustenta que uma firma israelita, Odigo, avisou os seus funcionários a abandonarem o edifício muito antes do atentado. Ele pensa que essa advertência sugere o envolvimento da Mossad no assunto. A loucura, como se diz, tem método. A tese que estes livros alimentam é muito simples. De acordo com ela, o governo americano liquidou friamente quase três mil dos seus cidadãos para ter uma desculpa para fazer guerra contra todo o mundo e dominá-lo duma vez por todas. Para quê, só a mente torturada que inventa estes argumentos é capaz de responder. A forma como os Estados Unidos forçaram a comunidade internacional a aprovar o seu curso militar mostra que já antes de fazerem a guerra para dominar o mundo eles dominavam o mundo. Mas o que torna esta questão interessante é a teoria de conspiração que a sustenta. Do outro lado da loucura há aqueles que se servem do mesmo padrão de reflexão para defender um argumento diametralmente oposto. Segundo esse argumento, os atentados do 11 de setembro foram uma armadilha de Osama Bin Laden aos Estados Unidos. Quem defende isto são analistas de segurança, os mesmos que falharam desastrosamente na previsão dos atentados. Bin Laden, dizem eles, planeou tudo até ao ínfimo detalhe. Calculou que com uma afronta como os atentados de Nova Iorque obrigaria os EUA a invadir, primeiro o Afeganistão e depois o Iraque. Com essas invasões os americanos iriam concentrar tropas e equipamento militar no Médio Oriente onde, então, o El Quaida havia de tratar de os liquidar um por um. Segundo estes pseudo-analistas é o que está a acontecer agora. No Iraque, por exemplo, os americanos perderam mais homens depois da guerra do que durante ela. No Ocidente estas teorias da conspiração são interpretadas pelos meios de comunicação de massas de duas maneiras. Uns dizem que a ameaça terrorista está a afectar a capacidade de discernimento das pessoas. As pessoas estão a ficar irracionais por causa do medo. Outros, contudo, dizem que não é a insegurança em si que torna as pessoas irracionais. É, sim, o conforto que esse tipo de explicações lhes dá. Não há quase nenhuma tentativa de abordar a questão de forma mais profunda que tenha como referência imediata a integridade dos sistemas políticos. Na verdade, o que estes argumentos absurdos revelam e documentam é, fundamentalmente, a perca de credibilidade de certas instituições. O que alimenta a credulidade das pessoas não é a plausibilidade das teorias de conspiração. É, ao que tudo indica, o sentimento de que tudo é possível. E tudo é possível porque nos últimos anos as instituições não têm feito outra coisa senão dizer meias-verdades. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, depois do fervor patriótico que acompanhou o desenrolar da guerra no Iraque, está a vir agora a sobriedade. As pessoas dão-se conta de que os seus governos foram muito ligeiros com a verdade. Houve falsificação de provas, materiais e circunstâncias para justificar a decisão de fazer a guerra. Os jornalistas que noticiaram da linha da frente dão-se conta, se é que já na própria altura não se deram conta, de que as forças aliadas lhes alimentaram com desinformação.

Sem esta experiência de meias-verdades, senão mesmo mentiras, as pessoas teriam dado aos seus governos o benefício da dúvida, como dizem os ingleses. Se aparecesse alguém a desfiar teorias de conspiração as pessoas iriam defender os seus governos ou pelo menos os valores que eles representam dizendo “não é possível, esse governo não era capaz disso”. Na América um dos grandes temas dos meios de comunicação de massas é justamente a perca de credibilidade das instituições estatais. O estranho, contudo, é que essa perca de credibilidade não seja associada directamente ao aumento da irracionalidade. A questão que interessa analisar mais de perto, portanto, é de saber exactamente o que é a credibilidade e porque a sua perca conduz à irracionalidade. Esta questão é extremamente importante, sobretudo no nosso país, onde as instituições do estado têm que se haver com o problema do déficit de credibilidade. Os inúmeros escândalos em que algumas dessas instituições, incluíndo personalidades importantes, estiveram envolvidas afectaram negativamente os níveis de credibilidade. As acusações de corrupção, por exemplo, fundadas ou não, ganham também plausibilidade porque as instituições e as pessoas deixaram de ser credíveis. O que é, então, a credibilidade? A definição mais simples que me ocorre pode parecer algo insatisfatória. Credibilidade, diria eu, é um recurso que as pessoas utilizam para compensar lacunas no conhecimento. Ninguém sabe tudo, nem mesmo a CIA como ela, aliás, não para de demonstrar todos os dias. Não é possível verificar tudo quanto nos é dito, quanto lemos ou quanto vemos superficialmente. Como isso não é possível precisamos de maneiras mais simples de nos certificarmos que as coisas são o que elas realmente aparentam. Para isso puxamos pela credibilidade. A credibilidade é feita de várias coisas. Por exemplo, é mais prudente confiar na previsão de tempo dos serviços meteorológicos do que na previsão da avó camponesa em Gaza. Reconhecemos a estes serviços competência para dizer coisas certas a respeito deste assunto. Não é que a avó não possa ter razão. Na verdade, é bem possível que a avó acerte sempre, razão mais do que suficiente para também confiar nela. Nesse caso, porém, apoiamo-nos num outro aspecto da credibilidade, nomeadamente a experiência. Se certas pessoas ou instituições nos habituam a certas coisas e nós podemos contar com elas com certa segurança não há nenhuma razão para não depositar confiança nelas. Até porque alguém nos serviços meteorológicos podia ter o interesse de anunciar bom tempo só para ter mais argumentos para convencer alguém a passar esse fim de semana consigo no Bilene. Confiamos porque consideramos que certas pessoas e instituições são íntegras. A sua conduta não nos dá nenhum motivo para recear que elas façam algo de má fé. Se o ministério da saúde nos aconselha a vacinar os nossos filhos acatamos porque julgamos ter a certeza de que essa instituição não ia, propositadamente, nos fazer mal. Pode acontecer, mas se for esse o caso tiramos as nossas ilações e em ocasiões seguintes desconfiamos. Há os que exageram e isso em dois sentidos. Uns precisam de várias fontes antes de acreditar. Por exemplo, para além do conselho do ministério eles querem ouvir a opinião dum médico amigo ou do curandeiro, consultam livros e páginas da internet. Outros, todavia, chamemo-los minimalistas, preferem a palavra do chefe do seu partido, de alguém da sua região ou duma tia curandeira para todos os casos e situações. A credibilidade, portanto, é feita da competência, experiência, integridade e autoridade que nós reconhecemos em certas pessoas e instituições. Ela funda-se na confiança e é, por isso, imprescindível à vida em sociedade. A confiança numa sociedade é tanto mais forte quanto maior for a credibilidade das instituições. Sem confiança nenhuma sociedade funciona. Com baixos níveis de confiança as sociedades funcionam mal. A confiança é uma espécie de moeda de troca que usamos para confirmar a credibilidade das pessoas e instituições. Numa sociedade em que desconfiamos de tudo e de todos, isto é em que não há credibilidade, estão reunidas as condições para se fomentar a irracionalidade. Tudo se torna possível.

Esta é mais ou menos a situação que dá sustento às teorias de conspiração sobre os atentados de 11 de setembro. Que razões temos nós para confiar em alguém que ascendeu ao poder de forma obscura, ignora ou instrumentaliza o direito internacional e vem duma família e emprega gente com ligações empresariais com a indústria militar? Poucas. Esta é mais ou menos a situação em que se encontra o nosso país há já vários anos. Pelo menos nisso batemos o Ocidente. Qualquer opinião, por mais bizarra que seja, muitas vezes até justamente por causa disso mesmo, tem fortes probabilidades de ser aceite. Ninguém confia em nada nem ninguém, só na plausibilidade dos seus próprios receios e pesadelos. E para piorar as coisas, à semelhança do que se faz em países como os Estados Unidos – Enron é um exemplo que nos é próximo – a mentira descarada está a tornar-se num desporto nacional. É só ver os depoimentos nos julgamentos do caso Carlos Cardoso e fuga de Anibalzinho. Cada qual mente como pode. Salve-se quem mentir melhor. Nesta questão de credibilidade o nosso governo tem estado na defensiva por razões institucionais e particulares óbvias, mas o julgamento do caso Carlos Cardoso constitui um passo importante para o restabelecimento da credibilidade dos nossos órgãos oficiais. Parecendo que não há quem se interesse pela transparência e integridade das instituições. E isso é bom, pois vai levar muito tempo para restabelecer a credibilidade. Melhor começo não podia ter havido. É verdade que as testemunhas vão mentido nos tribunais. Mas elas mentem em público e ainda mais com o risco de serem detectadas imediatamente. Podem depois saber como se arranjar, subornando como sempre, mas terão, de qualquer maneira, dado ao público novos elementos para decidir se pode confiar ou não. Isso permitirá ao público separar o que está podre do que está bem. É claro, isto tudo só vale se o leitor acredita na palavra dum sociólogo ou, pelo menos, deste sociólogo. Notícias, 22 de Outubro de 2003

A moçambicanidade e os seus paradoxos Henry Louis Gates Jr. é um dos intelectuais afro-americanos mais conceitudados. É professor na Universidade de Harvard. Há alguns anos realizou um documentário para uma cadeia americana de televisão. O documentário levou-o a muitos países africanos, dentre os quais o Gana, se a memória não me estiver a pregar nenhuma partida. De qualquer maneira, foi a um país da África ocidental. Ele visitou uma aldeia onde foi recebido de forma efusiva pelos aldeões. Receberam-no como um filho. No meio da conversa Henry Gates disse aos anciãos reunidos o seguinte: “vocês sabem que os vossos antepassados é que venderam os meus antepassados como escravos?”. Longe de perderem a compostura, os anciãos, representados pelo chefe da aldeia, responderam com as seguintes palavras: “olha meu filho, se os meus próprios avós tivessem sabido que os filhos dos que eles venderam à escravatura haviam de regressar como professores de Harvard eles teriam, de certeza, mandado os meus pais”. Conto esta história à propósito duma história quase idêntica que Mia Couto conta numa palestra que ele proferiu à associação dos economistas. Nessa história é uma senhora de origem serra leonesa que, para o espanto da sua audiência afro-americana nos EUA, confessa que os seus antepassados é que venderam os antepassados dos membros da audiência à escravatura. Mia Couto, contudo, enfatiza sobretudo a perspectiva de Henry Louis Gates, Jr.. Dá destaque à responsabilidade africana no comércio de escravos, algo que muitos de nós temos a tendência de ignorar. Com essa história Mia Couto chama atenção à necessidade de assumirmos os aspectos negativos e positivos da nossa história. Os bons e maus encontram-se em ambos os lados da história. Mas ele faz mais do que isso. Ele não responsabiliza os africanos apenas. Em vários artigos que ele tem escrito nos jornais não se cansa de advertir, com bons argumentos como seria de esperar dele e, porque não, de alguém que nasceu e cresceu na Beira, contra o perigo de ver Moçambique como uma essência. Ele insiste sempre que Moçambique é um processo. O que ele quer dizer com isso é que Moçambique se constitui como nação historicamente. Não é possível identificar algo externo à história como essência da moçambicanidade. Na palestra em questão, contudo, ele introduz um elemento que me parece controverso e que parece contradizer a sua cruzada contra o essencialismo. Ele diz que os seus estudantes universitários não querem ir à aldeia, não reconhecem o meio rural e o meio cultural donde os seus pais e familiares vêem como sendo seu. E lamenta o facto. Os jovens, diz Mia Couto, sentem-se muito melhor no mundo sugerido pelos vídeo-clips de Michael Jackson. Pelo menos esta analogia não é difícil de perceber, pois – reconheço com vergonha – também me sinto melhor nesse mundo do que numa ideia vaga de tradição cultural que só se torna concreta em forma de espíritos que devem ser constantemente acompanhados ou missas que nunca são perfeitas. Se os jovens de que Mia Couto fala têm uma biografia mais ou menos igual à minha, não me é difícil perceber porque o mundo dos pais, tios e avós é um mundo distante. Com efeito, a biografia de muitos moçambicanos é marcada por uma forte tensão entre as frustrações da promessa dum mundo cosmopolita e a instrumentalização dum falso sentido de identidade cultural. O que me parece difícil de perceber nesta parte do argumento de Mia Couto é a relação que ele estabelece entre a indiferença cultural da nossa juventude e a ideia de Moçambique como um processo. Se Moçambique, como ele diz, é mesmo um processo porque devem os nossos jovens preservar a ligação com o meio tradicional? Provavelmente a resposta seria de que só assim é que seremos capazes de produzir a tal mestiçagem que é constitutiva do nosso país. Mas a ser esse o caso, estaríamos a produzir um país por encomenda que se iria impor, ainda para mais, como uma essência. Um resultado completamente diferente do desiderato na base

do convite para o debate que Mia Couto lança. Por mais triste que possa parecer a alienação cultural dos nossos jovens não é, estranhamente, o problema para o qual ver Moçambique como um processo é a solução, mas sim um aspecto central dos paradoxos da moçambicanidade. Penso que não é este o seu argumento. Ou melhor, não devia ser este. Pessoalmente, sinto-me atraído pela ideia de Moçambique como um processo. Ninguém nasce moçambicano, mas temos todos a possibilidade de nos tornarmos moçambicanos se nos esforçarmos. A questão que se coloca, contudo, é de saber como esse esforço se manifesta e que constrangimentos tem de enfrentar. Penso que a discussão destas questões pode conduzir ao debate que desde há muito se impõe. Um debate menos emocional do que tem sido o caso na nossa esfera pública. A necessidade dum debate desta natureza, já agora, é fácil de entender numa cidade como a Beira, onde muitas vezes o debate político se reduz a ressentimentos contra uma suposta ou real dominação do sul sobre o resto. Precisamente por causa da existência desses ressentimentos o debate sobre a moçambicanidade transcende as simples barreiras raciais e étnicas e impõe-se como um acto de introspecção necessário à imaginação do país que chamamos nosso. Moçambicanização: esforços e constrangimentos O aspecto mais importante do esforço de moçambicanização consiste, em minha opinião, em aceitar a diferença como elemento constitutivo da nossa nacionalidade. Devia ser fácil perceber este reparo. O facto de muita gente precisar de antropólogos ou de relatórios de missionários para saber a que linhagem ou clã pertence não implica necessariamente que as pessoas que fazem Moçambique sejam uma massa sem forma. Cada um de nós é portador duma identidade, deteriorada ou não, traz consigo uma biografia rica à ideia de Moçambique, incluindo maus espíritos que um dia terão de ser acompanhados de volta com custos incalculáveis. Penso que devia ser possível aceitar, sem problemas, a ideia de que se pode ser branco, castanho, amarelo e preto, do sul, do norte e do centro, changana, sena, macua e ajaua, etc. e, mesmo assim, ser moçambicano ou poder reclamar essa nacionalidade. Dizer que a diferença é constitutiva da nossa nacionalidade não significa, contudo, que só na defesa teimosa dessa diferença é que podemos ser moçambicanos. Esse é o argumento simplista daqueles que, paradoxalmente, rejeitam o direito à diferença dos outros em nome duma ideia essencial de Moçambique. Também não significa que devemos diluir todas as diferenças como pré-condição para a formação duma identidade nacional. A diferença é o material a partir do qual podemos moldar uma ideia mais coerente de moçambicanidade, mas é preciso ter em conta que não há nada de inevitável nisso. Podemos moldar, digo bem, mas devemos contar com todo o tipo de resistências. Aceitar essas resistências significa, então, aceitar a ideia de Moçambique como um processo. Noutros termos, insistir na ideia de que só é moçambicano o que faz parte da maioria racial, mesmo se de difícil digestão, faz parte da processualidade que Mia Couto gostaria de projectar sobre Moçambique. Não é irracional, é legítimo e necessário. As resistências são importantes porque nos remetem aos constrangimentos enfrentados pelos esforços de moçambicanização. Cada qual argumenta do seu canto. A ideia de Moçambique como um processo é atraiente porque tem uma aura cosmopolita. Os que aceitam a ideia do processo podem, em boa consciência, acusar os outros de paroquialismo. A distância mais curta até essa aura cosmopolita pertence, em Moçambique, às minorias raciais e aos jovens urbanizados. É mais fácil e cómodo pensar Moçambique como um processo quando se é moçambicano branco ou jovem do que quando se é moçambicano preto, sobretudo preto sena, ndau ou macua, enfim, do norte ou centro. A coerência com que a Frelimo foi capaz de proclamar uma unidade nacional fundada na ignorância da diferença deveu-se, em grande medida, ao papel desempenhado pelos moçambicanos deste extracto: descendentes de

portugueses motivados por um ideal de justiça e à procura de espaço identitário bem como jovens pretos também movidos por um ideal de justiça e à procura de identificação com o resto. Não obstante, pertencer a uma minoria não é uma condição suficiente para adoptar um argumento cosmopolita. Na Europa, por exemplo, as minorias preferem o argumento paroquial. Africanos, asiáticos e árabes reclamam espaço de cidadania com base na prerrogativa cultural. Exigem respeito por serem africanos, asiáticos, maometanos, não por serem pessoas. De cada vez que os alemães me pedem opinião sobre os jovens neo-nazis na minha qualidade de membro duma minoria por eles assediada, recuso o estatuto de minoria. Digo-lhes que a minoria são eles os neo-nazis que não aceitam os valores que a sociedade alemã reclama para si. Os alemães ficam confundidos porque esperam de mim o discurso de vítima típico da minoria. Contudo, eu dizia que o discurso cosmopolita, no nosso país, ocorre mais facilmente aos representantes de “minorias visíveis” porque representa, suponho, o meio mais seguro de se identificarem com o resto. Encurta distâncias. Mesmo assim, não deve ser fácil ser branco e moçambicano, pois os termos em que se reclama nacionalidade no mundo, termos esses impostos pela modernidade europeia, impõem critérios bastante precários. Existe sempre o perigo de as maiorias verem em qualquer projecção identitária uma vontade de poder. A história que criou Moçambique insinua-se constantemente como fonte de insegurança e desconfiança. Mas, julgo, não temos outra saída senão construirmos a ideia de Moçambique sob esse pano de fundo. Quando Mia Couto sugere, com razão, que Moçambique é feito de mestiçagens não pode esquecer que está a defender, antes de tudo, uma posição existencial específica passível de ser desafiada. Não é por causa das mestiçagens que vão deixar de existir brancos, pretos, etnias, regiões. Não é por causa das mestiçagens que essas essências vão deixar de fazer sentido como fontes identitárias. Não será por causa do desiderato da definição de Moçambique como um processo que as pessoas vão deixar de instrumentalizar fontes identitárias como forma de construir a sua própria ideia de Moçambique. Aceitar Moçambique como processo implica, julgo, abandonar a ideia algo totalitária de que a sua verdadeira promessa está na realização dessa mestiçagem. Moçambique é um processo porque o seu desfecho permanece necessariamente em aberto. Os jovens que se recusam a ir à aldeia são representantes típicos da condição existencial da maioria. Suspeito que Amílcar Cabral estivesse enganado com a ideia de que o regresso às origens fosse um problema só dos intelectuais. As condições históricas que produziram este país constituem um desafio constante à integridade cultural que se supõe preservada no nosso meio rural. Mesmo o famoso camponês, que só recentemente ouviu dizer que os portugueses já se foram embora, constroi a sua identidade num contexto largamente determinado pela história da dominação, pela vulnerabilidade do país aos desígnios externos e pelo brilho forte das luzes da cidade. Regressar às raízes, se fosse opção, não seria, em princípio, um acto de afirmação cultural. É muito provável que o proverbial camponês visse nisso a negação dessa moçambicanidade cosmopolita pela qual se apaixonaram os nossos jovens. E insistir nessa identidade cultural só para ter alguma coisa para misturar parece-me uma brincadeira de mau gosto. A mera existência de jovens que dão as costas a essa cultura é prova da vulnerabilidade da integridade cultural da maioria. A distância que separa as maiorias moçambicanas do desiderato cosmopolita projectado por Mia Couto é enorme e pontuada de indecisões, receios fundados ou infundados, incertezas e riscos. Essa distância impõe-se sobre forma de constrangimento aos esforços de moçambicanização. Assim, é muito mais seguro insistir numa diferença excludente porque só dessa maneira é que se pode criar espaço individual: Moçambique pertence a pretos; o Norte é desfavorecido; a minha etnia merece maior protagonismo político; esta profissão devia mandar neste país, e por aí fora. Não interessa se

estas categorias identitárias não se referem a nenhuma essência: a simples crença na sua existência dá-lhes essência. E é a partir delas que muitos procuram se encontrar no nosso país. É a partir delas que muitos dão sentido à sua existência e à sua moçambicanidade. Elas reflectem a precariedade do conceito de moçambicanidade, conceito de formulação fácil quando o quotidiano individual não é atravessado por correntes tão contraditórias como a descriminação racial, regional e material. Como pensar Moçambique Continuo a pensar que Mia Couto tem razão quando insiste sobre a ideia de Moçambique como um processo. Mas para ser ainda mais persuasiva essa ideia deve observar dois aspectos. Primeiro, a rejeição do meio rural pelos jovens é sintomática dessa processualidade. Nesse sentido, até, ela reflecte a grande distância que a maioria dos moçambicanos deve percorrer para realizar o ideal de moçambicanidade que Mia Couto preconiza. A vivência desses moçambicanos é marcada precisamente pelo paradoxo que é a afirmação da sua identidade: para serem moçambicanos precisam de insistir na diferença; essa diferença, contudo, é no contexto do nosso debate político sempre excludente. É excludente e silencia. Excludente porque para se afirmar eleva a sua própria diferença ao estatuto de único atributo que qualifica à nacionalidade. Silencia porque torna tudo suspeito: Porque tem que ser um branco a falar de moçambicanidade? Porque havia de ser logo um machangana a dissertar sobre os paradoxos da nossa identidade? Que motivos obscuros se albergam por detrás disso? Segundo, como objectivo a moçambicanidade não interessa só pela possibilidade de mestiçagem que ela oferece. Para que valha a pena ela precisa de ser defendida como expressão de algo que recupera os anseios das pessoas. Pessoalmente, sou de opinião que esse algo é a dignidade e emancipação individuais. A nacionalidade só é defensável, em minha opinião, nestes termos. Mia Couto recorda na palestra aos economistas que produtos como a mandioca ou banana, que pensamos ser indígenas, são na realidade de origem estrangeira, trazidos pelos mesmos ventos que produziram este país. Tornaram-se moçambicanos pela forma como nós nos apropriamos deles. Bom, penso que com dignidade e emancipação garantidas será mais fácil observar direitos de autor sobre a mandioca e a banana. Será também, espero, mais fácil atribuir e assumir responsabilidades históricas como o flagelo do comércio de escravos.

Diário da Beira, data, ##

Factos históricos e mentiras nobres Se os animais tivessem historiadores haveria muitos caçadores mortos. Este é um provérbio Ioruba. Reproduz de forma mais gráfica a observação segundo a qual a história é sempre escrita pelos vencedores. De facto, quando os historiadores não estão entretidos a repetir o que os seus colegas já disseram podem, se forem descuidados, se pôr a deturpar os factos para servir certos interesses. Nalguns casos até são forçados e os que resistem passam a fazer parte das muitas histórias possíveis que nunca foram contadas. Aprendemos na escola que a história é feita de factos. Para os efeitos de obtenção da nota para a aprovação nunca, de certeza, nos interessou saber o que realmente significa a palavra “factos”. Sempre foi suficiente a suposição de que é algo que tem a ver com acontecimentos que ocorreram em certas datas. Decorar essas datas e ter uma ideia do que nelas aconteceu tem ajudado gerações de alunos a transitar de classe na disciplina de história. Alguns fixam mal as datas e reprovam. Mas a vida não pára, muito menos a história que eles ainda não conseguiram perceber. O acaso até pode querer que essas mesmas pessoas se tornem célebres e façam parte da história de forma mais directa. O dia em que reprovaram o exame de história pode passar a ser histórico. Um facto. A questão que me ocupa estes dias, e neste artigo, é a seguinte: será que para a história ser história é necessário que os factos estejam correctos? Se um dos nossos historiadores, a minha irmã por exemplo, viesse um dia a descobrir que Ngungunyan não foi capturado pelos portugueses, que na realidade conseguiu escapar e viveu o resto dos seus dias como capataz da fábrica de descasque de castanha de cajú da Mocita, no Xai-Xai, que os portugueses capturaram apenas um sósia, será que o império de Gaza, as guerras de ocupação portuguesas, a subjugação do sul do Save deixavam de fazer sentido como momentos históricos? No vale do Limpopo, numa localidade que se chama Hlangeni, os aldeões têm um monumento local na margem do rio que comemora a passagem de Ngungunyan prisioneiro dos portugueses. Nesse local, segundo o que me contaram os aldeões, o imperador derrubado pediu para pararem o barco que o transportava para poder fazer necessidades maiores. Será que sabendo que, afinal, se tratava apenas dum sósia o local perdia a sua importância para os aldeões? Já agora, o que seria dos restos mortais trazidos de volta com pompa e circunstância nos anos oitenta? Seria essa a confirmação definitiva de que os portugueses nos deram apenas ossadas? E que diferença faria isso para o que esse acto significou no contexto da distensão das relações entre Moçambique e Portugal? Teríamos de regressar à nossa “guerra fria” não declarada dos anos setenta? Não resisto aqui à tentação de abrir um parêntesis para recordar uma passagem duma canção do malogrado Alberto Machavele sobre o regresso dos restos mortais do imperador de Gaza. Quando Samora Machel diz aos portugueses que foi a Portugal para trazer de volta Ngungunyan, canta Machavele, os portugueses respondem que Ngungunyan já morreu. Que forma subtil de criticar a arrogância! Estas interrogações vêm à propósito de dois “emails” que circulam em Portugal e vieram também cair à minha caixa de correio. São da autoria dum português de nome Fernando Gil e questionam um facto histórico moçambicano. O facto em questão é o dia 25 de setembro de 1964. Todos sabemos, ou supomos saber, o que aconteceu nesse dia. Aprendemos nas aulas de história: Alberto Chipande, acompanhado de outros guerrilheiros da Frelimo, deu o primeiro tiro da luta armada de libertação nacional. A história reza que pereceram sete portugueses nesse ataque e que as autoridades portuguesas atribuíram a sua morte a um acidente. Ora, nos “emails” em questão são citadas testemunhas oculares ou portugueses que lá viviam no fatídico dia. O autor dos “emails” diz que tinha oito anos na altura. Essas pessoas contradizem redondamente a versão de Chipande. Dizem que só se registaram duas rajadas de metralhadora e que ninguém foi morto. Algumas dessas fontes pedem para não serem

identificadas e o autor dos “emails”, enigmaticamente, não diz porquê. Que represálias podem advir da correcção de imprecisões históricas? Viviam na altura vinte portugueses em Chai, escreve-se no “email”, pelo que a morte de sete teria constituído um massacre! O “email” remata: assim se escreve a HISTÓRIA. Da reposição de factos históricos A minha primeira reacção ao ler estas mensagens foi de pânico: Meu Deus, exclamei, onde é que o ministério da educação vai arranjar projectos para financiarem um programa de reescrever os livros de história? Que nome se vai dar agora à avenida 25 de setembro em Maputo? As nossas forças armadas perderam agora um dia? Quem vai retirar as patentes a todos aqueles que as ganharam pela força simbólica do dia 25 de setembro? Mas não só isso. Comecei também a interrogar-me se de facto tínhamos ficado independentes? Estes últimos 40 anos foram apenas um sonho, ou de forma historicamente mais correcta, um pesadelo? A Frelimo existiu? Mondlane existiu? A cadeia da Machava internou apenas gatunos? Terá ela agora, com a reclusão dos assassinos de Carlos Cardoso, recuperado a sua função histórica? Depois do pânico veio a reflexão que estou agora a partilhar com os leitores. Na realidade, pouco importa quantas pessoas morreram no posto administrativo do Chai no dia 25 de setembro de 1964. Pouco importa se morreu lá alguém. Pouco importa se nesse dia Alberto Chipande conduziu guerrilheiros na gloriosa missão de iniciar a libertação deste país. Não é repondo a verdade de acordo com outras fontes que esse dia vai perder o significado que tem para muitos de nós, independentemente do que pensamos da Frelimo, sobretudo da Frelimo de hoje. Esse significado está estreitamente ligado à liberdade e nacionalidade que hoje gozamos. Neste sentido até podemos concluir que o problema da pessoa que circula estas mensagens não é de fidelidade histórica, mas de falta de imaginação. Parece-me falta de imaginação não ser capaz de ver que o elemento mais importante desta história não é realmente a verdade. A história é feita de factos, mas muitas vezes esses factos se fundam sobre mentiras nobres. Os historiadores vivem um pouco deste tipo de controvérsias. No caso da reconstrução da nossa história, em que se depende muito de fontes orais, essas controvérsias são resolvidas retoricamente. A plausibilidade (logos), o carácter (ethos) e a persuasão (pathos) são determinantes para decidir que versão dos factos aceitar. No caso do 25 de setembro a plausibilidade viria da resposta a perguntas sobre o número de portugueses que lá viviam, sobre as possibilidades de sucesso dum ataque audaz como esse, etc. O “email” português baseia a sua refutação na ideia de que sete mortos teriam dado muito nas vistas. Como não deram nas vistas, conclui, é improvável que tenham ocorrido. O carácter interviria na questão da idoneidade da fonte. Acreditar em Chipande ou nas supostas testemunhas oculares e físicas? O “email” português baseia a sua refutação na ideia de que as fontes portuguesas são mais idóneas do que as fontes moçambicanas. Finalmente, a persuasão desempenha um papel importante no que diz respeito à forma como a refutação é feita. No “email” português há um ataque à pessoa de Chipande (ad hominen), diz-se que ele tem agora interesses comerciais na região. A implicação parece ser de que ele, na melhor das hipóteses, não deve inspirar nenhuma confiança e, na pior, que fez o ataque ao posto de Chai para, 40 anos mais tarde, ter lá interesses comerciais. Cada um destes argumentos pode ser contrariado de forma igualmente plausível. Podíamos, por exemplo, dizer que o facto de não se ter feito nenhum alarido à volta das mortes se deveu à capacidade das autoridades portuguesas de ocultar o acontecido. As autoridades foram tão exímias nisso que até os poucos portugueses que lá viviam não se deram conta de nada. Podíamos, no que diz respeito ao carácter, dizer que as autoridades portuguesas também mentiram em relação a Wiriamu e Mueda, porque razão devemos nós considerá-las fontes fidedignas? Por último, podíamos dizer que os portugueses que lá viviam perderam os seus próprios interesses comerciais e estão agora a fazer campanha contra os seus substitutos. Se

calhar é por causa disso mesmo que não querem ser identificados. Podíamos fazer isso tudo. De certeza que alguém vai fazer isso. Os nossos historiadores deviam fazer isso, esse é seu trabalho. Não obstante, no final de todas as contas havemos de chegar à conclusão, julgo, de que não é a verdade dos factos que faz do 25 de setembro uma data histórica, mas sim aquilo que ele representa para a nossa consciência histórica. Neste ponto levanta-se, naturalmente, a questão de saber porque se tornou importante apurar a verdade dos factos neste caso específico. Se a refutação portuguesa fosse ao contrário, isto é, o “email” defendesse a ideia de que Chipande e a sua malta mataram portugueses e Chipande negasse isso poderíamos, provavelmente, dizer que alguém está a montar um caso para pedir indemnização. Este não é o caso. É uma pena, pois do lado de cá haveria todo o interesse em trazer à justiça aqueles que torturaram e mataram moçambicanos ao serviço da manutenção do sistema colonial. Muitos portugueses com as mãos tintas de sangue moçambicano andam por aí à solta e com ares arrogantes. É uma pena ainda maior que Moçambique se tenha tornado independente numa altura em que o Ocidente ainda não tinha descoberto as virtudes do tribunal internacional de justiça. O interesse é, aparentemente, de repôr a verdade histórica. Uma vez que está claro, pelo menos para mim, que isso não vai alterar nada na relação que os moçambicanos têm com o 25 de setembro tudo indica que o interesse pela reposição da verdade histórica tem um objectivo maior. Suspeito, mas não tenho a certeza, que se trate duma tentativa de contestar a independência de Moçambique. É tudo mentira, proclama a refutação, não é nada disso, todo o vosso percurso político é uma aberração! O 25 de setembro não foi assim, logo, os 10 anos de luta armada também não. É tudo uma impostura. O problema da reposição da verdade histórica é de que parte do pressuposto segundo o qual a verdade existe independentemente de nós. Parte-se do princípio de que a verdade é uma espécie de virgem numa espera eterna pelo homem que lhe vai desflorar. Mas uma virgem é só virgem, para insistir numa posição construtivista radical, porque nós atribuímos a certas partes dos seus órgãos reprodutores determinados significados. Sem esses significados uma virgem não é nada. Ou melhor, é apenas uma pessoa. Portanto, a verdade histórica pela qual muitos se batem heróicamente reproduz apenas o nosso consenso sobre o que a realidade deve ser. Reconheço que esta posição é algo cínica. Contudo, parece-me a única maneira de manter a sanidade num mundo feito de vontades de poder em concorrência. Mentiras nobres É por esta razão que dizia mais acima, e repito aqui, que os factos que fazem a história baseiam-se não raras vezes em mentiras nobres. Mentiras nobres são mentiras cuja refutação e exposição não alteram de forma significativa a interpretação que as pessoas fazem do seu devir histórico. Os europeus dizem que “descobriram” a América, mas a reposição da verdade histórica diz-nos claramente que Cristóvão Colombo estava perdido. O pobre homem estava à procura do caminho para a Índia. O que altera essa constatação nos significados que os europeus atribuem ao contacto com aquela parte do mundo? Os “descobrimentos”, uma verdadeira instituição nacional em Portugal, são também uma mentira nobre. Vasco da Gama não descobriu a “boa gente” de Inhambane; a “boa gente” socorreu-lhe. E mal agradecidos que eram os seus conterrâneos voltaram para subjugar as mesmas pessoas que lhes ajudaram. É bem possível que haja portugueses que se envergonhem pelo que os “descobrimentos” significaram para os “descobertos”, mas não será por isso que os “descobrimentos” vão deixar de ser um elemento central na construção da identidade nacional portuguesa. E ainda bem para os portugueses. A questão da reposição da verdade histórica não é pacífica. Sobretudo no nosso país, mas não por causa dos portugueses. Há poucos dias o secretário-geral da Renamo anunciou que o seu partido quer governar para pôr em prática as ideias de André Matsangaíssa. Segundo ele

Matsangaíssa bateu-se pelos ideais de liberdade pelo que implementá-los constituiria uma forma de o exaltar. Ainda que muito arrojada – nunca me ocorreu que a pessoa em questão tivesse jamais tido ideias – esta é uma tentativa legítima, diga-se de passagem, de introduzir uma mentira nobre. Há por detrás dela a sugestão de que este indivíduo que, pelo que se saiba, não deixou sequer um discurso ou pronunciamento sobre a liberdade, nem mesmo preferiu seguir o princípio segundo o qual não se faz nenhuma omoleta sem partir ovos – mas antes pelo contrário, partiu ovos pelo prazer de partir – teria lugar no nosso panteão histórico. Até que ponto essa tentativa será bem sucedida vai depender de muita coisa. Para já, dependerá do resultado das próximas eleições. Os que ganham escrevem a história. Dependerá também do debate que a sociedade tarde ou cedo terá de realizar sobre o que quer reter como referência útil para a nossa consciência histórica. Não vai ser um debate fácil. Apesar de tudo, o conceito de mentira nobre não permite tudo. Há diferenças grandes entre Eduardo Mondlane e André Matsangaíssa. A parte menos interessante dessas diferenças é a sua origem regional e étnica. O debate que a sociedade realizar deve trazer essas diferenças à superfície. Deve também procurar determinar se podemos colocar estas duas figuras no mesmo pedestal. As razões que se impuserem vão também legitimar qualquer mentira nobre que daí surgir. Teremos que incluir também figuras como Domingos Arouca ou Máximo Dias, gente que pelo que tudo indica, também defendeu ideais relacionados com o futuro deste país, mas ao contrário de muitos outros, parece ter primado pela rejeição da violência ou sempre soube retirar-se a tempo. Não é a orientação ideológica do conteúdo político da sua acção que é determinante, mas sim, no caso de Matsangaíssa, se houve conteúdo, e, no caso dos outros, que ideia de Moçambique eles projectaram e se nos sentimos bem com ela. Esse debate entre os moçambicanos, sobre assuntos verdadeiramente moçambicanos, pareceme mais interessante e premente do que os ressentimentos daqueles que com ar preceptorial como o português dos “emails” gostariam – de mãos nas ancas e pernas afastadas – ainda de corrigir a história. esm

Notícias, 22 de Dezembro de 2003

Quando o país envelhece ainda jovem No rescaldo das eleições autárquicas tudo já foi dito. O único que falta, talvez, é que toda a gente tenha dito o que já foi dito. Os resultados foram suficientemente claros, embora sejam necessários mais elementos para saber exactamente o que eles significam. A conclusão mais rápida e segura que se pode tirar é de que apesar dos elevados índices de abstenções – a confirmar a rapidez com que se tiraram conclusões aquando das primeiras eleições – os eleitores preferiram a coesão nacional – dizer “unidade” seria propaganda – e substância a ressentimentos e inocuidade. Esta conclusão é mais segura porque um aspecto marcante de todas as eleições realizadas no país desde 1994 é o desempenho equilibrado da Frelimo ao nível nacional. Com os quase 60 por cento dos lugares parlamentares que as cinco províncias do norte representam se a Frelimo fosse mesmo um partido do sul nunca teria hipóteses. O debate político promovido pela oposição tem a tendência de nos sugerir duas explicações: ou os eleitores do norte têm consciência falsa – não reconhecem os seus verdadeiros interesses – ou então há burla. É evidente que nenhuma destas explicações é satisfatória da mesma maneira que a conclusão segura tirada mais acima tem em seu abono apenas o facto de ser rápida. Mais do que a abstenção do eleitorado e a projecção nacional da Frelimo o que parece relevante reflectir com urgência é a natureza do debate político em Moçambique. O debate faz uma sociedade, logo a saúde duma sociedade depende da qualidade do seu debate. Com a nossa história violenta recente o que caracteriza o nosso debate é sobretudo a desconfiança. Sentimo-nos melhor, e confortados, desfiando teorias de conspiração do que confrontando ideias com ideias. Nisto o partido no poder detém as melhores cartas. Uma vez que tem que governar, a Frelimo tem menos tempo para participar nesse tipo de debates estéreis. A oposição, contudo, investe toda a sua pólvora nisso. Reclama espaço de duas maneiras, a saber acusando o governo de ser composto por ladrões e insistindo em ressentimentos regionais. Essa estratégia pode em certos contextos e circunstâncias ser bem sucedida. Na Beira, por exemplo, e sempre que a Frelimo for infeliz na escolha do seu candidato. Duma maneira geral, porém, essa estratégia não pode senão provocar o tédio dos eleitores. Que depois não votam. Ou incitar apenas os da Frelimo a votarem. Se ao invés de “ladrões” se dissesse “incompetentes” e se ao invés de ressentimentos regionais se falasse dos desequilíbrios estruturais da economia moçambicana é bem possível que a qualidade do debate aumentasse. No primeiro caso, a oposição ver-se-ia obrigada a pensar em critérios de competência que provavelmente conduziriam a alternativas políticas; no segundo caso poderia haver reflexão sobre o que é necessário fazer para que os desequilíbrios estruturais sejam reduzidos. Como nada disso acontece, mas a oposição continua convencida da justeza das suas posições, quando os eleitores pura e simplesmente não ficam impressionados grita-se logo “falta”. Um governo de ladrões e que se interessa apenas por uma região só pode ganhar eleições burlando. Desta maneira, criam-se tempos diferentes no seio do mesmo país em que cada qual fala para o ar. Não há comunicação entre governo, oposição e eleitores. Cada qual vive no seu próprio mundo e imagina-se o seu próprio país. Esta situação para além de ser perigosa para a estabilidade da democracia cria problemas aos investigadores que têm dificuldades em discernir o fundamento das decisões dos actores políticos. Tempos diferentes

Este é um problema que conheço da minha curta experiência académica. Sempre que tenho de preparar as minhas aulas para a UEM penso no tempo. Quando e como passa? É o tempo que passa ou nós as pessoas que ficamos velhas? Ou a pergunta não faz sentido? Se ficamos velhos é porque o tempo passa, pois a idade marca o tempo. Fico sempre confuso. Preparar aulas não significa só escolher o conteúdo, a bibliografia e elaborar os testes para apurar se os estudantes perceberam a matéria ou não. Significa também pensar na melhor maneira de estabelecer o contacto com os estudantes. Esse contacto depende de muitos factores, o principal dos quais é ter algo em comum com eles. E aqui começam as minhas dificuldades de ano para ano. Os estudantes mais novos na universidade nasceram por volta de 1983. Estão nos seus 20 anos de idade. São quase duas décadas que nos separam e encontrar algo em comum com eles é um desafio, sobretudo num país como o nosso que sofreu tantas transformações e de forma tão rápida. Nenhum deles viu o país tornar-se independente e por isso, provavelmente, nenhum deles é capaz de perceber a emoção que acompanha os debates sobre a moçambicanidade, por exemplo, por muito pobre que seja o conteúdo. Mas isso não é o mais interessante. Dificilmente posso gracejar com referências históricas. Se lhes disser que na escola fazíamos trabalho voluntário eles vão pensar que esse trabalho era mesmo voluntário. Se lhes falar de “estudo político” não vão saber que essa actividade tinha as mesmas características que o estudo da bíblia em algumas igrejas pentecostais que eles frequentam. Se lhes falar de “discussão de teses” vão pensar que éramos muito eruditos. Se lhes contar que se queria criar o “homem novo” vão pensar numa poção mágica qualquer de rejuvenescimento. Se lhes disser que na altura tínhamos sempre que nos precaver das manobras do inimigo vão achar estranho porque só os inimigos tinham carro. Politicamente está tudo mais complicado. Na sua experiência um bandido armado foi sempre bandido com armas. Não placam quando ouvem um estrondo. Os que são da Beira, Tete, Nampula e Niassa não saberão, por exemplo, que na década de oitenta jorraram milhões no corredor da Beira, que se queria mesmo utilizar o carvão de Moatize, que se construiu uma das maiores fábricas têxteis de África em Mocuba e que Unango ia ser uma espécie de modelo. Muitos vão preferir dar ouvidos àqueles que insistem, com ou sem razão, na ideia de que em Moçambique só se investe no sul. E que mesmo antes de a vizinhança com a África do sul se ter tornado numa benção sempre foi assim. Pior ainda, não vão saber que, no sul, a ideia de que a Frelimo é do sul, é muito recente. Dantes, antes de eles nascerem, o machangana que quisesse ser identificado claramente com a Frelimo precisava de falar português com sotaque dum maconde ou dum macua. Nunca foram membros da OJM. Nunca dançaram “funk” na discoteca do Chai em Maputo. Eu também não, mas convivi com pessoas que o fizeram. Nunca vão conseguir perceber porque os mais velhos prefeririam voltar a andar com um quilo de documentos no bolso – bilhete de identidade, cartão de serviço ou de estudante, cartão de recenseamento militar, cartão de residente, cartão de abastecimento, guia de marcha, etc. – se, em troca, pudessem andar à vontade a altas horas da noite nas ruas da cidade de Maputo. Pensam que machimbombos chamaram-se sempre chapas. Nunca tiveram professores que falassem pior português do que eles. Na escola nunca ouviram falar de actividades culturais. Pensam que isso é privilégio de escolas privadas. Quando se precisa de dinheiro para a festa dos finalistas. Os únicos comícios que eles conhecem são as missas da IURD. Para eles ir à África do Sul, Suazilândia ou Zimbabué ao fim de semana é a coisa mais natural deste mundo. Não imaginam que dantes era preciso “abrir”, nem sabem o que isso significa. Não percebem a lírica de intervenção de Yana, quando ele fala dos que traíram o país por um par de adidas. Se alguém sugerisse, por exemplo, que se desse ao PARPA o nome de “Operação repolho ou chá” não iriam perceber a piada. Ou a seriedade da sugestão. Se calhar nunca ouviram dizer que no ano de 1983 o repolho salvou este país, que o chá é o único produto que se manteve no

seu posto de combate quando todas as outras mercadorias desapareceram das prateleiras. Coitados, nem vão perceber a importância da linguagem militar. Porque toda a iniciativa tinha que ser uma “operação”, porque um grupo de mais de duas pessoas era uma “brigada”, porque o local de trabalho era uma frente, enfim, porque a única coisa que dava significado ao dia seguinte era a necessidade de continuar com a luta. Não fazem a mínima ideia o que significam siglas como “GD”, “CP”, “CM”, “DF”, “CC”, “BP”. Se tivessem que esticar a imaginação iriam logo pensar num grupo de “rapp”. Ou numa categoria de matrícula para carros dos estrangeiros que nos acompanham na nossa longa marcha para o desenvolvimento. Pobre geração, jamais irá à casa velha ouvir malta Carlos Cardoso, Machado da Graça, Leite de Vasconcelhos e tantos outros a falar mal do Apartheid. Para eles a África do Sul é tudo o que há de aliciante nas lojas de Nelspruit e nos concertos de pop que marcam o aniversário natalício de Mandela. Que este país precisou de ficar de rastos para que MTV fizesse de Mandela a figura de culto que merecidamente é escapará aos estudantes. Mais do que o tic-tac incessante do relógio, os cacos de garrafas partidas nas orgias de bebedeira que acompanham o fim do ano ou o nosso próprio ritmo biológico o que marca a passagem do tempo é ter pouco em comum. É não poder dar nenhum tema por adquirido quando conversamos com um estranho. Envelhecer é não ter conversa, para já não dizer parceiro de conversa. O significado das eleições autárquicas Nesse sentido, se calhar podemos até dizer que o nosso país está velho, caduco mesmo antes de atingir a maturidade. Para escondermos o nosso envelhecimento prefirimos chamarmo-nos nomes, “ladrões” ficando, infelizmente, como o único substantivo reservado àqueles que nos governam e que à partida deviam merecer o nosso respeito. Ninguém sabe perder. Os outros fizeram sempre batota. Em política como no desporto. A última vez que o Maxaquene foi campeão nacional de futebol foi-o três anos consecutivos. Na altura ninguém gritou “falta!”. Havia desportivismo e civismo. Ninguém aventou a hipótese de se terem comprado os árbitros. Decorria a ofensiva política e organizacional que hoje, os nossos jovens, de certeza confundiriam com uma táctica qualquer de Arnaldo Salvado. Tenho em mim que os resultados das eleições autárquicas significam justamente isto: que somos um país velho; que vivemos em tempos diferentes, cada um de nós fechado no seu próprio mundo. O que trarão as legislativas? Na ausência duma noção comum de tempo é difícil tecer qualquer tipo de vaticínios. O único que me parece seguro é o seguinte: se o Maxaquene se sagrar de novo campeão, a Frelimo volta a ganhar.

Notícias, 27 de Dezembro de 2003

Dos custos do desenvolvimento e da necessidade de demónios Para se pintar o diabo ele tem que existir. O presidente zimbabweano não é propriamente um santinho. Disso já deu provas mais do que suficientes pela forma errática como conduz o seu país. Se calhar nem tudo o que se diz sobre ele é verdade. Que é militantemente hostil aos homossexuais, que lida com a oposição, farmeiros e críticos de forma agressiva isso é verdade. É mais do que certo que as coisas principais de que ele é acusado não correspondem muito bem à verdade. Uma delas é a história consensual nos meios de comunicação de massas, sobretudo no Ocidente, segundo a qual ele seria a razão principal da crise económica, política e social zimbabweana. É uma história simples. As negociações para o fim do regime de minoria nos finais da década de setenta, reza a história, teriam legado ao país um fundamento jurídico, económico e político que, bem gerido, iria conduzir os zimbabweanos ao desenvolvimento de forma linear. Com efeito, nos anos imediatamente a seguir à introdução do regime democrático o Zimbabwe excedeu-se nos seus esforços. Registou uma estabilidade económica e política de fazer inveja aos vizinhos. Para muitos moçambicanos o Zimbabwe, nos anos oitenta, exercia a mesma atracção que a África do Sul hoje exerce. Tão estável era o país que até se permitiu o luxo bastante oneroso – em termos materiais e humanos – de socorrer Moçambique durante o seu conflito interno. O Zimbabwe era uma espécie de celeiro dos países civilizados da região. Produzia alimentação em excesso até ao ponto de exportar o excedente para países em crise como o nosso. Nos anos oitenta, Mugabe chegou a ser premiado pelo seu engajamento em prol do combate à fome. Como uma boa parte de todas as histórias simples a da crise do Zimbabwe não é necessariamente certa. A certeza não depende somente da simplicidade. Muito menos da comodidade. Na verdade, parece muito mais cómodo, em África, reduzir problemas complexos a diagnósticos simples feitos por cima do joelho. Para isso basta apenas encontrar uma figura que satisfaça o apetite insaciável por demónios de leitores menos discernentes. Mobutu, Taylor, Eyadema. Naturalmente que cada um deles precisou de se qualificar por mérito próprio ao estatuto de demónio. Uns enriqueceram à custa do seu próprio povo, outros agarraram-se tenazmente ao poder. Eyadema continua e a paranoia atingiu níveis tão altos que chega a acreditar que seja uma espécie de Jesus Cristo do seu próprio país. Mugabe também teve que se qualificar. Com a sua hostilidade e intolerância para com os homossexuais, o seu anacronismo político – ele ainda quer construir o socialismo! – bem como as suas invectivas raciais Mugabe impôs-se como o espantalho ideal. Prestou um serviço à sensação e à superficialidade. E, muito provavelmente, à preguiça intelectual que caracteriza a análise dos problemas africanos. O problema de fundo é, contudo, o próprio desenvolvimento. Muitos acham que é linear. Esta é pelo menos a ideia que a indústria do desenvolvimento parece ter. Pensa-se que com as receitas certas tudo dá certo. Mas na verdade, o desenvolvimento só é linear na imaginação de quem não se quer maçar com os seus estragos colaterais, para utilizar o eufemismo militar americano. É mais simples e cómodo supor que o desenvolvimento consista apenas em aplicar as receitas passadas pela indústria do desenvolvimento. Basta liberalizar, democratizar, descentralizar, eliminar a corrupção, aliviar a pobreza. Tudo o resto se seguirá. Pudera. Muito mais difícil, e se calhar é por isso que só poucos é que se maçam, é procurar saber o que fazer quando aquilo que deve ser liberalizado se recusa, aqueles que devem ser democratizados

preferem a ditadura, os que devem ser descentralizados sentem-se melhor em relações clientelares, a corrupção garante a sobrevivência do dia a dia e os pobres persistem na sua pobreza. A realidade do desenvolvimento é essa. A plausibilidade dos seus argumentos não é suficiente para levar toda a gente a apostar da mesma maneira no desenvolvimento. Mas os das resposta simples têm sempre uma resposta. E repetitiva: Liberalizar, democratizar, descentralizar, acabar com a corrupção, eliminar a pobreza. O desenvolvimento, que é muito mais complexo do que as receitas que o devem tornar possível, produz ele próprio os seus problemas. Não é um acto mecânico. Não é como remendar um pneu furado. O pneu furado pode nos fazer chegar atrasados. Podemos até nos sujar. Mas fica-se mais ou menos por aí. O desenvolvimento, todavia, influi directamente na forma como as pessoas vivem, estruturam as suas relações sociais e domesticam o destino. É uma intervenção de grande envergadura no quotidiano das pessoas. Ninguém abandona de ânimo leve o que a experiência lhe ensinou para abraçar o que, numa primeira fase, é apenas plausível. As pessoas resistem, os sistemas resistem, a vida quer manter o status quo. Estas resistências são os custos do desenvolvimento. A ideia simplista que se tem do desenvolvimento impede-nos de apreciar com a devida justiça quão difícil e complexo ele é como processo. Essa ideia encoraja-nos a distribuir responsabilidades quando, numa primeira fase, devíamos perguntar em que medida o que acontece é resultado das circunstâncias. A ideia simplista torna-nos impacientes. Com a impaciência agimos, muitas vezes, emocionalmente. Sanções, boicotes, demonização. Ao mesmo tempo endurecemos as posições das pessoas que precisamos para nos ajudarem a suportar os custos do desenvolvimento. E esses custos vão crescendo. Perante esses custos o mais simples é procurar um espantalho e atribuir-lhe as culpas: Mugabe destruiu o sonho do Zimbabwe. O mais difícil é procurar perceber como justificar as desigualidades no acesso à terra. E explicar isso aos milhares de zimbabweanos negros que constituem o eleitorado de Mugabe. O mais difícil é procurar perceber como explicar as prerrogativas políticas e económicas dum sector da população que recusa a integração. E explicar isso aos milhares de zimbabweanos que sempre estiveram à margem da história no seu próprio país. E, já agora, explicar isso aos africanos, árabes e asiáticos que vivem na Europa e que todos os dias são instados a se integrarem. Mugabe não é herói de ninguém. Mas reduzir as contradições e paradoxos do desenvolvimento e da modernização ao seu mau feitio é preguiça intelectual. Provavelmente, o maior desafio que os nossos países enfrentam não é propriamente o desenvolvimento. É, suspeito, a imposição pela indústria de desenvolvimento de pessoas perfeitas como condição sine qua non do desenvolvimento. Como se tivesse sido assim noutros quadrantes. esm (extraído, com ligeiras alterações do autor, da Revista MAIS, N°1, Janeiro 2004, com a devida vénia) Diário de Moçambique, 2004

Jogar política e ladrão Nos meios jornalísticos moçambicanos o político tem quase o direito de ser mau governante porque é considerado bom ladrão. No seio da população ele tem quase o direito de ser ladrão porque é governante. Não sendo nem uma, nem outra coisa gostaria de reflectir sobre a qualidade do debate político no país. O leitor que pertence à geração que viveu a euforia revoluccionária do pós-independência se tiver estudado bem o seu Marx vai reconhecer nesta entrada traços cortantes do sarcasmo contra Proudhon. Não é fácil ser político em Moçambique. Não só por causa da quantidade de problemas sem solução aparente que pontuam o quotidiano. Também porque é difícil imaginar como um dignatário moçambicano se sente na presença de outros. Como se representa um dos países mais pobres do mundo? A única resposta que me ocorre é “com dignidade”. Mas que dignidade quando se vem dum país onde o substantivo mais usado para descrever um membro do governo é “ladrão”? Segundo um ditado changana, um homem que está no chão não pode cair. Nenhum governo pode ser menos digno do que a pobreza que representa. E este é o problema da política em Moçambique. A tenacidade com que a pobreza resiste ao governo, à ajuda internacional e aos protestos da sociedade é algo impressionante. Tão impressionante que acaba explicando, provavelmente, porque se afigura mais confortante recusar integridade às pessoas que devem representar a nossa pobreza. Se há alguma coisa em que políticos da oposição e membros activos da sociedade civil estão de acordo, essa coisa é a recusa de integridade aos membros do governo. E isto por uma razão que parece simples: se apesar de tudo a pobreza persiste, então é porque os que a deviam eliminar estão mais preocupados com a sua própria pobreza. Comem sozinhos, como o povo diz. Por mais absurdo que pareça, porém, o problema dos nossos governantes não é de serem ladrões, oportunistas e incompetentes, como se costuma dizer. O seu problema é de serem políticos. Apesar de várias provas em contrário em todo o mundo, persiste, em Moçambique, a ideia de que na política só ingressam pessoas íntegras cuja característica principal é o altruísmo. Esta há-de ser uma das heranças mais persistentes do período revoluccionário. Um político com estas características é a excepção à regra. O reconhecimento deste facto poderia contribuir bastante para melhorar a qualidade do debate político. Apesar de tudo, os problemas que resistem às soluções não o fazem porque estão à espera de políticos íntegros. Fazem-no porque a existência desses problemas define a nossa condição de subdesenvolvimento e, como tal, deteem um enorme potencial de auto-reprodução. Os problemas que temos é que criam as condições para que os políticos continuem iguais a si próprios. Pregar integridade não vai convencer os problemas a desaparecerem. Só a insistência numa esfera pública atenta e construtiva é que parece deter argumentos mais convincentes. Isso implica um debate menos emocional do que tem sido característica da política moçambicana, um debate em que não só se procura falhas morais nas pessoas, mas sobretudo se interpelam os problemas. Parecendo que não a recusa de integridade aos nossos governantes faz parte do problema geral que trava o nosso país. Esse problema é a trivialização do político que resulta da nossa condição de socorridos. A dependência do auxílio externo retira todo e qualquer sentido de responsabilidade dos governantes. Quando a nossa agenda política responde a impulsos externos não é só o governo que perde o seu sentido de responsabilidade. É também a sociedade civil que critica porque criticando instrumentaliza também a dependência para fins pessoais. Ser crítico do governo pode ser uma ocupação profissional sem referência imediata aos problemas do povo. Esta é a verdadeira tragédia do político em Moçambique. Esm.

Revista Mais, Fevereiro 2004

À espera do pós-guerra Em Mocambique podemos fazer a cronologia do nosso devir político da seguinte maneira: antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra. Refiro-me à guerra civil ou banditismo armado. O “depois da guerra”, por sua vez, subdivide-se em dois. Há o “pós-guerra” propriamente dito e há também o “depois de tudo o que aconteceu”. Há fortes razões para supor que o país se encontre ainda na fase do “depois de tudo o que aconteceu”. Ou por outra, o país ainda não está a viver o pós-guerra. Desde que se assinou o acordo de paz em 1992 realizaram-se duas eleições legislativas, presidenciais e municipais. Apesar das habituais acusações de fraude, o país mantém-se calmo e ao contrário do cravo de Angola cantado por Bonga, em Moçambique deixaram-no entrar na espingarda do soldado. A consolidação da paz e da democracia até dá trunfos ao país na partilha das migalhas do auxílio ao desenvolvimento. Pelo menos neste ponto o país tem um produto exportável para outros países africanos. Na opinião de alguns observadores, contudo, o processo político moçambicano tem uma mancha. Essa mancha é a falta de alternância política. A democracia, diz-se, vive da alternância política. Felizmente, não se atribui a responsabilidade pela falta de alternância à fraude eleitoral. A oposição faz isso e bem melhor. Sem resultados palpáveis. Infelizmente, diz-se que não há alternância política em Moçambique porque a oposição é fraca. Também já pensei e disse isso, em privado. Para que a democracia se consolide, argumenta-se, é necessário que haja uma oposição forte, capaz de fazer frente ao partido no governo. Esta é uma opinião ecoada por muitos sectores pensantes da nossa sociedade. Alguns consideram, por exemplo, que o país precisa duma terceira força. É preciso quebrar a hegemonia da Frelimo e da Renamo. Só assim é que o processo vai andar, reflecte-se. Depois de muita reflexão e, sobretudo, na sequência dos desastrosos resultados da oposição e da atitude de indiferença do eleitorado aquando das últimas eleições municipais, cheguei à conclusão de que o que faz falta ao nosso país não é propriamente uma oposição forte. Cada sociedade tem os políticos que merece e como bem diz um ditado changana “se o chefe coxeia, os súbditos também coxeiam”. Mas isso é cinismo demais. O mais estranho no processo político moçambicano não é a ausência de alternância política. Apesar de tudo, as mãos que têm detido o poder desde que os moçambicanos começaram a escolher livremente os seus governantes são melhores dos que as que o reclamam com toda a veemência que o sentimento de usurpação empresta. O que é estranho, e isto deve ser entendido como a confissão dum estudante das coisas sociais que mais uma vez foi vencido pela imprevisibilidade dos homens, é que a oposição que temos goze de tanta simpatia. Não me refiro às atrocidades da guerra. Esse assunto ainda não é assunto. Refiro-me à qualidade dos políticos da oposição, sobretudo, dos políticos do principal partido de oposição. Fidel Castro disse uma vez que o único que era necessário para que alguém fosse chefe era que houvesse uma vaga. Queria ele dizer com isso que qualquer pessoa podia ser chefe. O Líder Máximo tinha provavelmente razão. Mas não consigo imaginar nenhuma pessoa de bom senso que pudesse dormir sossegada sabendo que o inquilino da Ponta Vermelha é o actual inquilino do fim da Kenneth Kaunda. Ao contrário das biografias políticas do actual inquilino da Ponta Vermelha e do aspirante a sucessor pelo próprio partido, ambas marcadas, pelo menos no início, por um ideal de emancipação da gente da nossa terra, a biografia do inquilino da Kenneth Kaunda só em retrospectiva é que contém ideais nobres. Mesmo quando se enrola na bandeira da luta pela democracia, a forma como dirige o seu próprio partido permite ver o que ele entende por democracia. Mas as pessoas mudam. É difícil perceber em que a democracia moçambicana ganharia alternando nesse sentido. Alguns diriam, provavelmente, que a democracia é isso mesmo. A alternância política é um

aspecto importante da democracia, mas não a define. Não é por não se verificar que a democracia deixa de existir. O que define a democracia é uma governação responsável que se sujeita ao escrutínio crítico do público. Se a alternância política fosse o principal critério a Itália seria o país mais democrático do mundo e a Suécia, o Japão e o Botswana os menos democráticos. Ao país só pode fazer falta aquilo que não existe. Em Moçambique não faz falta uma terceira força porque ela existe. É o eleitorado, ou melhor ainda a esfera pública. Ela detém o potencial de terceira força de duas maneiras. Primeiro, a esfera pública decide, efectivamente, qual das mercadorias políticas em oferta é mais atraiente. E nunca decide mal. Decide sempre em função do que os mercadores lhe apresentam. Segundo, a esfera pública constitui-se como um espaço de intercâmbio de ideias e de produção do país como uma realidade política. Os debates que ocorrem nos jornais, na rádio, na televisão, no serviço, na rua, em casa dão substância a Moçambique. Através deles o país torna-se palpável, cada um de nós ganha por intermédio desses debates uma referência concreta para o pensar. O problema da nossa esfera pública, contudo, é de ser dominada por assuntos aborrecidos, mas que para alguns fazedores de opinião são altamente emocionais. Se metade da paixão, energia e afinco que alguns investem na discussão de assimetrias regionais, racismo e corrupção fosse à discussão de propostas concretas de saneamento deste país Moçambique estaria alguns lugares mais acima no ranking internacional de desenvolvimento humano. Mas alguns devem pensar cá para os seus botões de que valem alguns lugarzinhos quando é mais confortante provar pela milésima vez que o norte e o centro são discriminados, que os brancos não têm espírito patriótico e que o governo é composto por ladrões. A ascendência de assuntos aborrecidos na nossa esfera pública reflecte, creio, o período histórico em que vivemos. Vivemos, como já referi, o período do “depois de tudo o que aconteceu”. Os ressentimentos ainda são fortes. As desconfianças persistem. Somos paralizados pelo reconhecimento horrorizado do que fomos capazes de fazer uns aos outros. Enquanto estamos à espera de motivos mais fortes para fazer uma reconciliação mais coerente connosco próprios, e individualmente, procuramos conforto em assuntos que nos permitem libertar emoções com maior rapidez. O nível de adrenalina ainda é muito alto. A esfera pública, ou melhor, a verdadeira terceira força neste país é refém do “depois de tudo o que aconteceu”. É prisioneira de debates importantes para a nossa identidade como compatriotas, mas irrelevantes para o quotidiano de cada um de nós. São debates com substância, pelo menos isso deve ser reconhecido: pouca para a vida propriamente dita e muita para a morte. O resgate consiste em insistir nos debates relevantes para o nosso quotidiano e menos importantes para a nossa identidade: PARPA, NEPAD, Reforma do Sector Público, PRES, PROAGRI, etc. A identidade, como proposta filosófica, só faz sentido se a pessoa vive. E bem. Esm

Revista MAIS, Maio 2004

Lendo

A democracia e os seus riscos “A confusão é a certeza de uma mente, sem pista de direcção” Estas não são minhas palavras, mas sim de alguém que, muito provavelmente, não sabe o que diz. São do excelentíssimo Presidente da Guiné, Dr. Koumba Yalá. É um presidente democraticamente eleito. A citação é extraída dum livro recentemente publicado com o título pomposo de “Os pensamentos políticos e filosóficos”. Trata-se de pensamentos, para citar o próprio autor, “sem pista de direcção” e duma incoerência vergonhosa que acabam colocando a questão importante de saber se os guineenses não terão cometido um erro grave. Ou melhor ainda, será que os africanos estão suficientemente maduros para a democracia? O livro é uma espécie de “best-seller” em Portugal, contudo à maneira africana: passam-se fotocópias do mesmo no seio da comunidade africana e portuguesa que se interessa por assuntos africanos. Não é, porém, a sede do conhecimento que está por detrás do interesse. Todos querem se rir à custa dos guineenses. O livro não desaponta. É duma ridicularidade perversa: em 90 páginas contendo os tais “pensamentos”, alguns dos quais vou colocando aqui para a apreciação do leitor, o livro cumpre várias missões. Para algumas pessoas confirma apenas a opinião generalizada de que algo não está bem com o dirigente guineense. Para outras confirma certos preconceitos sobre os africanos. Para outros ainda o livro explica tudo quanto está errado naquele País. “Vento é o baralho da realidade flutuante em movimento constante”. Depois do riso vem um misto de consternação e desalento. Os “pensamentos” não são apenas ridículos porque incoerentes. São-no também porque é difícil imaginar o que deve estar a torturar uma mente para supor que o pobre povo guineense seja capaz de decifrar algo tão críptico como o que o autor propõe. A leitura causa consternação porque a Guiné já produziu cabeças excelentes: Amílcar Cabral é o exemplo eminente, provavelmente o intelectual mais coerente do movimento nacionalista das ex-colónias portuguesas; mais recentemente juntaram-se a ele jovens como Carlos Cardoso e Carlos Lopes, cuja excelente produção intelectual nos ajuda a apreciar quão aberrante esta obra é. “O infinito é consciência do limite do próprio infinito, que assim se define com perfeição”. Mas há também o desalento. Koumba Yalá não subiu ao poder por via de golpe de estado. Não fez guerrilha. Convenceu o eleitorado guineense que era o político mais capaz de resolver os seus problemas. Costuma-se dizer que cada povo tem os dirigentes que merece. Os guineenses, pelo que tudo indica, merecem Koumba Yalá. Eles estão a pagar bem caro um grande equívoco. Segundo muita gente que passou pela Guiné recentemente, o País já deixou de existir como estado. Faz parte dos chamados “failed states”, estados falhados. Está de rastos: descapitalizado, desabastecido, desesperado. Embora seja evidente que os guineenses estão a pagar bem caro a sua preferência eleitoral, é menos evidente que essa preferência tenha sido um equívoco. O povo, num sistema democrático, não se engana. Tal como o cliente na economia de mercado que serve de suporte às democracias mais eficientes o povo tem sempre razão. “O não tempo é o tempo de não poder ser tempo, com o tempo”. Em Moçambique avizinhase um período de eleições. O caso da Guiné pode ser altamente instrutivo para os políticos moçambicanos de boa fé que apesar de todas as tentações estão na política pelo bem do País. O eleitor raramente vota pelo País, mas sim por si próprio. Ele entrega o seu voto àquele que, mesmo contra todas as regras da cautela, lhe promete o paraíso na terra. Atravessando o nosso País um momento delicado da sua evolução democrática e socio-económica é muito natural que as eleições atraiam todo o tipo de demagogos: desde aqueles que prometem acabar com as

famosas assimetrias regionais num ápice até aos que vão dar emprego a todos. Seria cego o político que não visse nesta conjuntura um excelente potencial de demagogia. “A morte do mundo é a impossibilidade da sua morte”. Oxalá que os mais responsáveis entre os nossos políticos resistam à tentação. A história remota e recente está cheia de casos como o da Guiné, o que prova, de resto, que o equívoco, se equívoco há, não é privilégio dos africanos. O mais perverso é o de Hitler na Alemanha. George W. Bush na América é outro, embora neste caso quem paga as favas imediatas é a comunidade internacional e não o eleitorado americano (se calhar todo o mundo devia votar nas eleições presidenciais americanas). Não obstante, em nenhum desses casos o povo se enganou. O povo escolheu os que, nas circunstâncias, falaram para os seus receios, ansiedades, sonhos e fins imediatos. É assim na democracia. É uma empresa arriscada, mas risco não quer dizer perigo. Risco é, quando muito, um perigo calculado. A democracia vive do risco como a forma mais segura de auscultar o povo e levá-lo consigo. “A beleza duma mulher elegante, é a atrapalhação do cabrão do macaco da indochina!”. A experiência dos sistemas políticos anteriores em Moçambique parece revelar que foi melhor apostar no seguro. Todavia, as aparências, como diz o velho ditado, iludem. Tanto no período colonial como no da experiência socialista o sistema político procurou proteger-se do risco do erro do povo projectando nele as suas próprias fantasias. O estado colonial arrogou-se a missão civilizadora ao preço, como aliás Eduardo Mondlane com muita perspicácia observou, de só reconhecer os africanos como pessoas na condição de estes recusarem a sua africanidade. A Frelimo revolucionária, por sua vez, preferiu inventar um novo povo, todo ele fundado na ideia dum “homem novo”. Ambas as opções falharam porque não puderam manter o dedo no pulso do povo. No primeiro caso o povo preferiu ele próprio “civilizar-se” sem a tutela colonial. No segundo caso o povo pura e simplesmente ficou apático. “A mentira é o movimento do cérebro pensante em direcção da falsidade, no seu quotidiano contacto com a realidade objectiva”. Numa das teses menos compreendidas do pensamento político recente Francis Fukuyama, um autor americano, defende no seu livro intitulado “O fim da história e o último homem” a ideia de que a democracia liberal constitui a solução final, e melhor, do problema do instinto auto-destruidor do homem. A existência deste instinto é discutível, mas o argumento de Fukuyama é válido, mesmo se apresentado bombasticamente e com a convicção apodíctica típica dos americanos. A democracia liberal desenvolveu um aparato que encoraja os governantes a manter o vínculo com o povo. Este encorajamento implica responsabilidade e dignidade na gestão dos bens públicos. Implica humildade e integridade na conduta pública. Implica uma governação pelo País. Os políticos moçambicanos responsáveis que não querem dizer, depois da vaga de eleições, que o povo se enganou, precisam de prestar muita atenção à experiência da Guiné. Se bem que a alternância democrática seja salutar, ela precisa de assentar numa base que dá ao eleitorado uma verdadeira oportunidade de decidir racionalmente. Como bem diz Koumba Yalá, como que a confirmar que apesar de tudo os caminhos da sabedoria são sinuosos, “grandeza é sentido de responsabilidade”. O seu livro tem o sub-título “volume I”. Estão todos avisados. O livro: Koumba Yalá, 2003: Os pensamentos políticos e filosóficos, Vol.I, editora escolar: Bissau

Notícias, 2003

Um olhar intelectual sobre Moçambique Para um país de língua oficial portuguesa Moçambique exerce uma atracção enorme sobre estudiosos estrangeiros. É um dos países mais estudados fora das suas próprias fronteiras. Pode-se, até, dizer que Moçambique é mais estudado por estrangeiros do que pelos seus próprios nacionais. Esta situação explica-se pelo facto de só agora começarem a surgir moçambicanos com formação sólida para esse efeito. O facto não deixa de ter algumas implicações negativas. A primeira é que as imagens produzidas sobre o país reflectem preocupações que não precisam necessariamente de reflectir os nossos melhores interesses. Não é que o estudo de Moçambique por moçambicanos fosse garantir isso. Mas é sempre diferente. A segunda implicação é que os estrangeiros muitas vezes não têm a vivência que é necessária para perceber com maior profundidade a lógica da acção social a partir da qual eles fazem as suas abstrações. Mais uma vez, a vivência do moçambicano não iria garantir isso. Mas seria sempre diferente. Muitas vezes, as análises feitas fora são a primeira referência para as instituições que interveem no nosso quotidiano. A autoria externa constitui até, no imaginário dessas instituições, a garantia de objectividade. Esta situação coloca ao país dois desafios de igual importância. O primeiro diz respeito à necessidade de produzirmos argumentos que nos permitam discutir com essas instituições em pé de igualidade. Para isso precisamos de falar com conhecimento de causa. Não basta a nacionalidade para termos esse conhecimento de causa. É preciso falar a língua que essas instituições falam. Aí está o segundo desafio. Antes de tudo o mais temos que discutir com os que produzem imagens do nosso país. Na verdade, se há alguma tarefa que possa legitimar a existência da nossa classe intelectual ela consiste na necessidade de aceitarmos o desafio ao debate que os estudiosos de fora nos lançam. Eles levam vantagem. Não são, para usar uma expressão que peço emprestado a Renato Matusse, funcionários da sobrevivência como a maior parte de nós. Eles vivem da produção intelectual sobre o nosso país. Estudar Moçambique é a sua razão de ser profissional. Nós, em contrapartida, só estudamos o nosso país se uma consultoria nos obriga. O problema da consultoria, porém, é que já tem os termos de referência bem delineados. Estudar por encomenda é diferente de estudar por vocação. A produção intelectual sobre Moçambique O estudo de Moçambique conheceu o seu grande apogeu nos anos oitenta e princípios dos anos noventa. Essa história até é fácil de contar. Enquanto que nos anos imediatamente a seguir à independência proliferavam livros que celebravam a audacidade da via socialista, nos finais da década de setenta começaram a inundar o mercado obras, sobretudo na Inglaterra e nos EUA, que destacavam o papel da guerra fria e do Apartheid na inviabilização do projecto revolucionário. Mais tarde, mais precisamente durante a década de oitenta, abandonou-se gradualmente esta abordagem a favor duma perspectiva analítica que olhava para a própria prática da revolução. Há várias obras que são dignas de nota a este respeito. O livro de Joseph Hanlon, “the revolution under fire” – a revolução sob fogo – merece destaque. Foi das primeiras obras a problematizar a prática revolucionária. Na sua análise destacou sobretudo o encrustamento burocrático como a causa principal da estagnação. Esta análise encontrou eco na obra de John Saul, neo-marxista canadiano simpatizante da Frelimo desde os tempos da luta armada, “A difficult road” – Um percurso difícil. Nela Saul lamentava a perca do carácter popular da revolução. Ambas as obras foram duramente criticadas por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, do Centro de Estudos Africanos, que

viam na perspectiva analítica adoptada por esses autores a projecção dos seus próprios anseios ideológicos. Na mesma linha analítica que Hanlon e Saul, mas mais crítica ainda, surgiram as obras dos franceses Michel Cahen e Christian Geffray. Enquanto o primeiro em “la revolution implosée” – a revolução que implodiu – negava à Frelimo a prática dum marxismo genuino e via nos protestos nesse sentido apenas a vontade de poder duma elite crioula o segundo, um antropólogo prematuramente malogrado, via na negação das tradições culturais africanas a principal razão por detrás da guerra dita civil. O seu livro com o título “la cause des armes” – a causa da guerra – aprofundava um argumento que ele já havia elaborado numa crítica acérbica ao Centro de Estudos Africanos a quem acusava de ter produzido um discurso científico de negação da realidade cultural do país. Bridget O’Laughlin, uma socióloga irlandesa que trabalhou em Moçambique, criticou na altura a tese de Geffray com argumentos que nunca foram contrariados. Eu próprio interpelei Michel Cahen criticando a sua abordagem por ser, em minha opinião, bastante normativa. Como é costume nestas coisas as poucas palavras produzidas sobre Moçambique produziram muito eco. Na Alemanha, França, Inglaterra, EUA e mesmo no Zimbabwe – com Mark Chingono e o seu “The state, violence and development”, estado, violência e desenvolvimento – surgiram várias obras a repetir estes argumentos. A tónica geral insidia sobre os erros cometidos pela Frelimo. Esses erros estariam na origem dos problemas enfrentados pelo país. Eram eles a própria via socialista, a política de socialização do campo, a hostilidade à religião, a hostilização do regime do Apartheid e o desrespeito pela tradição. Correu muita tinta a este respeito. Paralelamente, desenvolveu-se uma literatura especializada sobre a guerra. Um dos autores principais foi Alex Vines, um jovem britânico filho de diplomata, que produziu uma das melhores obras sobre a génese e natureza da Renamo. O livro com o título “Renamo: Terrorism in Mozambique” – Renamo: terrorismo em Moçambique – conheceu mais tarde uma edição actualizada que dava conta da transformação do grupo num movimento político. Faz parte desta literatura a obra de William Minter sobre “Apartheid’s Contras: an inquiry into the roots of war in Angola and Mozambique” – Os contra do Apartheid: uma investigação das raízes da guerra em Angola e Moçambique – assim como o relato impressionante do jornalista americano, William Finnegan, “A complicated war: the harrowing of Mozambique” – Uma guerra complicada: o suplício de Moçambique. Do ponto de vista analítico ao lado da condenação dos métodos da Renamo estas obras apontavam também para os proverbiais erros da Frelimo como explicação dos problemas do país. Com o fim da guerra o interesse intelectual transferiu-se para aquilo que era visto como uma nova recolonização de Moçambique. Mais uma vez o percursor desta abordagem foi Joseph Hanlon, provavelmente o melhor conhecedor das relações entre Moçambique e as instituições de Bretton Woods, com a sua obra “Mozambique: who calls the shots? ” – Moçambique: quem manda? Nesta obra Hanlon alertava para a vinda de novos missionários sob forma de organizações de ajuda que, sob a capa do auxílio ao desenvolvimento, estariam, em sua opinião, a tirar a soberania ao país. Na mesma linha de pensamento situam-se as obras de John Saul “Recolonization and resistance in Southern Africa in the 1990s” – Recolonização e resistência na África Austral na década de noventa – e de Abrahamsson e Nilsson “Mozambique: Thre troubled transition” – Moçambique: uma transição conturbada. Em todas elas deplora-se a dependência de Moçambique do auxílio ao desenvolvimento e os seus efeitos nefastos. Enquanto isto desenvolvia-se uma literatura avulsa que abordava todo o tipo de assuntos. Na Alemanha deu-se muita importância ao processo de descentralização. É paradigmático o livro de Sabine Fandrych com o título “Kommunalreform und Lokalpolitik in Mosambik – Demokratisierung und Konflikttransformation jenseits des zentralistischen Staates?“ – Reformas municipais e política local em Moçambique – democratização e transformação pós-

conflito para além do estado centralizado? Este interesse teve eco nas publicações algo reacionárias do Ministério de Administração Estatal sobre a autoridade tradicional. O outro grande assunto tratado neste período foi o processo de paz. De realçar, aqui, as obras de Della Rocca “Mozambique: de la guerre à la paix - Histoire d'une médiation insolite” – Moçambique: da guerra à paz – história duma mediação insólita – uma celebração romantizada da transformação da Renamo em parceiro de diálogo pacífico. Mais sóbrio e informativo é o livro do diplomata americano Cameron Hume com o título “Ending Mozambique's war - the role of mediation and good offices” – Pondo fim à guerra de Moçambique – o papel da mediação e dos bons ofícios – bem como a obra de Stephen Chan e Moisés Venâncio, “War and peace in Mozambique” – Guerra e paz em Moçambique. Merece também realce, ainda que pela negativa, a obra de João Cabrita, Mozambique: the tortuous road to democracy – Moçambique: um percurso tortuoso rumo à democracia – um esforço mal disfarçado de reescrever a história da democracia moçambicana com maior protagonismo para a Renamo. Os temas anteriores continuaram a ter eco. O livro da americana Merle Bowen, “The state against the peasantry” – O estado contra o campesinato – revisitou a questão dos erros da Frelimo sob forma duma análise da sua política agrária. Merece menção também o livro de Tom Young e Margaret Hall sobre a tarefa hérculea de construção dum estado capaz de impôr a ordem. Daí também o título “Confronting Leviathan”. Esta revisão só inclui as principais tendências analíticas produzidas em livros. Não refere os inúmeros artigos que saíram em revistas científicas. Essas tendências analíticas revelam, na sua essência, dois tipos de abordagem que parecem dominar os estudos moçambicanos fora do país. A primeira abordagem é simpática ao projecto revolucionário da Frelimo no período pós-independência. Explica o seu insucesso com base na influência externa, nomeadamente a guerra de desestabilização e a conjuntura internacional hostil a esse tipo de experiências. Os estudiosos desta persuasão deploram, duma maneira geral, o abandono do projecto revolucionário e consideram que o país está agora a ser vítima duma segunda colonização pelas teias do auxílio ao desenvolvimento. A segunda abordagem é menos pessimista. Ela mantém uma certa distância ideológica em relação ao projecto pós-independência da Frelimo. Considera o seu falhanço uma consequência lógica e necessária. Vê no rumo neo-liberal que o país adoptou a condição essencial da sua emancipação social, económica e política. Um novo olhar sobre Moçambique A americana M. Anne Pitcher, uma cientista política da universidade Colgate, nos EUA, publicou recentemente um livro com o título “Transforming Mozambique – the politics of privatization, 1975-2000” – A transformação de Moçambique – aspectos políticos da privatização, 1975-2000. Trata-se duma proposta analítica bastante interessante e que devia merecer a nossa atenção. Pitcher analisa o contexto político do processo de privatizações em Moçambique e propõe uma forma diferente de ver a história recente do nosso país. O livro encontra coerência na crítica às abordagens que têm dominado o estudo de Moçambique. O livro tem três partes distintas. Na primeira parte M. Anne Pitcher critica as abordagens dominantes e propõe o seu próprio modelo analítico. Na segunda reconta a história do pósindependência. Na última parte apresenta alguns exemplos dos efeitos da privatização e propõe, no último capítulo, uma análise da retórica política que só ela deve saber o que quer dizer. A sua crítica às abordagens dominantes assenta em dois pressupostos. O primeiro consiste na tese segundo a qual o projecto revolucionário da Frelimo que, em sua opinião era uma mistura de nacionalismo, marxismo e modernismo, estava à partida votado ao fracasso. Nessa perspectiva Pitcher não concorda com aqueles que partem do princípio de que noutras circunstâncias e noutra conjuntura histórica a via escolhida pela Frelimo teria sido bem

sucedida. Ela considera que a verdadeira realidade é sempre aquela que temos pela frente pelo que ela deve constituir o ponto de partida tanto para a análise quanto para as opções políticas. O segundo pressuposto diz respeito às condições e fins do processo de liberalização. Em sua opinião o sucesso das privatizações não depende da plausibilidade da teoria neo-liberal que está na sua base. Depende, isso sim, da história específica dum país, sobretudo do tipo de forças sociais que entram em confrontação para determinar o processo. Ela sugere, com muita razão, que se tome essas forças sociais em consideração como forma de garantir uma liberalização mais adequada ao devir histórico moçambicano. O modelo analítico que propõe é sensível a estas críticas. Com base em escritos de outros autores M. Anne Pitcher utiliza uma classificação analítica fundada em tipos e formas de intervenção do estado. Os tipos são, em sua opinião, históricos e estabelecem-se numa linha contínua. Num extremo encontram-se os estados de rapina e noutro os estados desenvolvimentalistas. Os primeiros caracterizam-se por uma forte inclinação da classe burocrática em saquear o tesouro nacional. Os segundos, pelo contrário, estão interessados no desenvolvimento. A autora situa Moçambique no meio. Nem rapina, nem desenvolvimentalista, embora em diferentes momentos possa assumir elementos de ambos os tipos. Os tipos ganham substância através das formas. Pitcher identifica para o efeito quatro formas: “semi-deus” (demiurge), “custódio” (custodian), “parteira” (midwifery) e “criador” (husbandry). Um estado semi-deus é um estado exageradamente intervencionista que não deixa nenhum espaço para a iniciativa individual e privada. O estado custódio é, em contrapartida, aquele que utiliza as suas capacidades para restringir e regulamentar o capital. O estado parteira incentiva a criação de novos empreendimentos através de isenções fiscais e outros rebuçados para os investidores. Por último, o estado criador é aquele que protege a indústria existente e o investimento já feito. Partindo deste quadro analítico a autora considera que o nosso país passou, historicamente, por estas quatro fases. No período imediatamente a seguir à independência o estado actuou como um semi-deus chamando à si toda a responsabilidade e asfixiando toda a iniciativa. Ela explica o fracasso do projecto da Frelimo com base nesta característica do estado. A partir da década de oitenta, mais precisamente 1983, o enfraquecimento progressivo do estado moçambicano conduziu a uma actuação mais ao estilo de custódia. Ultimamente, o estado moçambicano tem actuado, segundo a autora, como parteira e criador ao mesmo tempo. A história que a autora reconta na segunda parte do livro assenta justamente nesta periodização. Repete os mesmos argumentos já proferidos por outros autores: os males da planificação, do colectivismo, do desrespeito pela tradição. A única coisa que é diferente são os rótulos. Esta repetição dos mesmos argumentos é uma pena, pois o livro legitima-se precisamente com a promessa duma nova abordagem. Não é que uma nova abordagem tenha forçosamente que produzir novos argumentos. Não obstante, Anne Pitcher não tem nenhuma hipótese de produzir novos argumentos porque repete as imprecisões analíticas das abordagens que critica. Há duas imprecisões fundamentais na sua abordagem. A primeira parece ser uma questão de atitude. Como tudo indica que o projecto da Frelimo falhou a autora parte do princípio de que a análise não tem mais nada a fazer senão explicar esse falhanço. Nessa perspectiva, tudo quanto se fez no período de tempo em consideração é problemático. Esta atitude parece-me questionável tanto mais que não vejo, hoje, menos planificação – olá agenda 2025 e cenários fiscais de médio prazo – menos colectivismo – comunidades tradicionais e associações rurais – nem mais respeito pela tradição – o Ministério da Administração Estatal diz agora abaixo à tendência monárquica da autoridade tradicional! É sobretudo questionável porque as opções políticas do pós-independência devem, para o bem duma apreciação equilibrada do nosso passado recente, ser julgadas segundo os seus próprios méritos. A autora dá muito destaque ao facto de ter havido mistura de marxismo, modernismo

e nacionalismo na formulação dessas opções como se isso só pudesse explicar a inviabilidade do projecto. Ela critica em particular a fascinação da Frelimo pela ciência que se traduziu na crítica ao obscurantismo e na preferência por empreendimentos de grande escala. Fora de revelar as preferências pessoais da autora esta crítica ao modernismo alto – ela usa uma expressão dum antropólogo americano James Scott – não explica porque a mania das grandezas não teve sucesso. Carlos Serra parece mais pertinente neste aspecto. A segunda imprecisão é mais grave. Ela faz a sua análise com base num estado moçambicano coerente e homogéneo. Este tem sido o calcanhar de aquiles de várias análises. A compreensão do período imediatamente a seguir à independência passa pela rejeição desta pressuposição. Há fortes razões para supor que o estado da Frelimo tenha sido sempre um campo de batalha entre várias visões e perspectivas. Isso explica as viragens constantes e as inconsistências que se foram notando. Uma nova abordagem deve ser sensível a essas lutas para ser útil. Um dos efeitos perversos do não reconhecimento dessa incoerência interna do estado é a atribuição de erros à Frelimo por coisas que se explicam mais facilmente pela própria natureza do problema que está a ser estudado: a construção do estado. Na análise proposta pelo livro de Pitcher as dificuldades naturais de construção do estado, independentemente da persuasão política dos detentores do poder, são vistas como erros do próprio projecto revolucionário. A terceira parte do livro é mais imaginativa e convincente. Pitcher propõe uma grelha de leitura bastante informativa ao processo de privatizações. Melhor do que qualquer outro livro sobre o assunto ela proporciona argumentos fundados para reflectir sobre se o país está a ser recolonizado ou não. Embora chegue à conclusão de que o capital estrangeiro é predominante Pitcher identifica o capital doméstico como um actor fulcral no processo de privatização. Nesta ordem de ideias merecem destaque empresas como a João Ferreira dos Santos e Madal que operam no país já desde o tempo colonial e sobreviveram o fervor revolucionário. Também merecem destaque os novos empresários, muitos deles com ligações políticas muito fortes. Para além de terem adquirido empresas estatais a baixo preço ou se associado a investidores estrangeiros estes novos empresários ocupam lugares nas direcções administrativas de bancos e companhias estrangeiras. O único senão nesta análise é a insistência da autora em ver nisso a continuação da influência do estado da Frelimo no sector privado. Este é um ponto de vista que, infelizmente, encontra também eco nas várias análises que se fazem ao panorama político nacional. Domingos Arouca já alertou, em tempos, para os perigos de ver toda a gente que não está na oposição como sendo da Frelimo. O que está a acontecer ao nível dos negócios é um processo interessante de diferenciação social que não precisa necessariamente de corresponder com a vontade de poder da Frelimo. Os novos empresários, independentemente das suas alianças políticas e da forma como chegaram à sua riqueza, estão a desenvolver interesses distintos. A forma como eles vão defender esses interesses é mais importante para o sucesso da transformação económica do que os favores que eles devem ao partido no poder. A descrição de Anne Pitcher é mais forte quando ela se debruça sobre casos concretos como o são o sector algodoeiro e a indústria do cajú. Sobre este último caso a sua intervenção é extremamente útil porque proporciona uma análise mais equilibrada e cuidada do papel do Banco Mundial e dos nossos empresários na destruição do sector. Ao contrário da opinião generalizada, os empresários nacionais que se apossaram do cajú são tão responsáveis pelo descalabro quanto a própria posição dogmática do Banco Mundial. A leitura deste livro vale pelos subsídios que ele fornece para uma compreensão equilibrada do rumo que o país tem vindo a tomar nos últimos anos. A autora ofecere razões muito fortes para questionar a ideia de que o país esteja a ser recolonizado. A descrição empírica que devia sustentar esta apreciação não está muito presente no livro. Essencialmente, o que a autora faz é apenas questionar os argumentos que sustentam esse receio. Seria necessário alargar o olhar concentrado que ela lança aos sectores algodoeiro e do cajú para fundamentar melhor a sua

refutação. Ao mesmo tempo que refuta a tese da recolonização a autora rejeita a crença neoliberal numa privatização linear. Na verdade, ela demonstra que o sucesso da privatização depende muito dum papel central do estado. O exemplo paradigmático que utiliza para o efeito é a Coca-Cola, um empreendimento conjunto entre o estado e uma empresa privada sul africana, que é uma das empresas melhor sucedidas do país. A autora resume a sua apreciação do país numa expressão: preservação transformativa. Não está muito claro no livro o que esta expressão significa. Dá para entender que se trata dum processo de transformação em que a continuidade e a ruptura se influenciam de forma dinâmica. Ela tem na mira a capacidade das elites no poder de sobreviver às mudanças e continuar a determinar o rumo dos acontecimentos. É uma conclusão bastante lisonjeira à Frelimo que peca por insistir na coerência do seu poder e fechar os olhos ao surgimento de novos interesses sociais. M. Anne Pitcher, Transforming Mozambique – The politics of privatization, 1975-2000, Cambridge University Press, Cambdrige, 2002. Notícias, 8 e 9 de Agosto de 2003

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes O que é um País? (1) Moçambique existe? Esta pergunta foi colocada há alguns anos atrás por um historiador francês, Michel Cahen. Ele falava à propósito da ideia duma nação moçambicana que, em sua opinião, não era em dias ou mesmo anos que se podia materializar, mas sim séculos. Ele criticava a forma como essa ideia tinha sido instrumentalizada pelo movimento nacionalista liderado pela Frelimo. Esse movimento não era, segundo Cahen, nem mais nem menos do que a expressão dos anseios duma elite crioula que usou o discurso da nação para legitimar a sua vontade de poder. Os detalhes desta acusação são menos importantes do que a estrutura da pergunta. Na verdade, é tão pertinente perguntar se Moçambique existe como também se o próprio Michel Cahen existe? O que dá existência a uma coisa como Moçambique ou, já agora, a uma pessoa? Se o historiador francês não tivesse feito de Moçambique objecto da sua reflexão Moçambique existiria? E já que estamos nisso, se ele não se tivesse pronunciado ele próprio existiria? O que dá existência às coisas? Qual é a essência das coisas? Se as coisas têm existência e uma essência como é que temos nós a certeza de que é mesmo assim? Donde vem essa certeza? A existência duma pessoa parece simples de comprovar. Precisa apenas de ser manifestada: falando, cantando, dançando, comendo, lutando. Manifesta-se apresentando um conjunto de características e atributos aos quais nós damos um sentido específico. Isso, por sua vez, dá identidade à pessoa: homem ou melhor, criança ou adulta, campesino ou urbano, etc. Como é que um País manifesta a sua existência e essência? Geografia não pode ser, pois seria necessário explicar as fronteiras. Recursos naturais e humanos não podem ser, pois esses são posteriores à proclamação dum País. Resta-nos apenas uma bandeira, um hino e o exercício dum poder duma ou doutra forma legitimado à escala dum território. Este critério é bastante circular, como se pode ver. E por isso surgem novos problemas. Quer no que diz respeito à existência e essência duma pessoa quer na dum País parece que o critério fundamental não é inerente às coisas em questão. O mais importante é a atribuição que as pessoas fazem. Assim, uma pessoa existe na medida em que essa existência é reconhecida pelos outros. Para o efeito, usam-se estratégias de tipificação como as que vimos mais acima: género, idade, residência. Mesmo na religião, onde o recurso à ideia de criação sugere uma essência humana, o momento crucial é o da atribuição duma qualidade que os outros reconhecem. Uma pessoa tem alma ou é o invólucro através do qual os espíritos dos antepassados se exprimem. Na mesma linha de pensamento, um País existe na medida em que ele exprime a vontade duma comunidade de pessoas para que exista. Essa vontade encontra expressão simbólica no que a bandeira e o hino dizem sobre ele. Há, portanto, fortes razões para privilegiar, na resposta à pergunta se Moçambique existe, uma abordagem que faz essa existência depender do que as pessoas querem. Nessa ordem de ideias Moçambique, como realidade, apresenta-se-nos como um desiderato. De certas pessoas ou de muitas. Pode ser até de todas. Mas isso é raro. Justamente por ser um desiderato, mais do que uma realidade, a sua existência está necessariamente sujeita à contestação. Não é por acaso que um grande historiador francês, Ernest Renan, definia a nação como um plebiscito de todos os dias. Moçambique é posto à prova todos os dias e tem que se sujeitar ao veredicto do

povo. É uma obra sempre inacabada, cujos planos mudam ao sabor da discussão que lhe dá substância como realidade. Em termos mais concretos poderíamos dizer que Moçambique não se reduz ao que a Frelimo gostaria que o País fosse, muito menos ao que a Renamo, Pimo, Fumo, Monamo, etc., gostariam que fosse. Reduz-se, isso sim, ao que resulta do debate entre esses muitos desideratos. Só num sistema totalitário é que se impõe uma única definição. Mas mesmo nessas circunstâncias, as pessoas continuam livres de imaginar o País que querem. Retenhamos, portanto, esta ideia de que a realidade dum País consiste no desiderato. Vai ser útil para a compreensão do que vem mais adiante.

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes Bolas de cristal? (2) Bush sénior, quando ainda presidente, ficou tristemente famoso por uma gafe mediática. Em resposta à acusação que os meios de comunicação de massas lhe faziam de que o problema da sua presidência era a falta duma visão ele referiu-se "à tal coisa que chamam de visão" (the vision thing). Dessa maneira revelou de facto não ter nenhuma visão. Nas eleições que se seguiram teve que ceder o lugar a Bill Clinton, apesar de ter feito a guerra do Golfo e outras coisas aventureiras que o eleitorado americano parece apreciar nos seus dirigentes. Até hoje há pessoas na América que acreditam que Bush sénior não foi reeleito por falta de visão. Parece, portanto, que em política é importante ter visão. A questão, contudo, é de saber o que é uma visão concretamente. O conceito em si parece ter duas dimensões. A primeira é temporal e a segunda prática. A temporal consiste na implicação de que uma visão é algo ainda por vir. Não existe, ainda. Mas pode existir. Se houver vontade. Esta nota optimista define a segunda dimensão. Uma visão só é digna desse nome se encontra expressão num conjunto formulado de acções que têm como objectivo torná-la realidade. A acusação de que Bush sénior não tinha visão referia-se ao facto de ele não ter aparentemente - nenhuma ideia donde ele queria conduzir o País e, por conseguinte, não ter nada que fazer para justificar o seu papel de líder. Ao recusar-se formular a sua visão Bush sénior estava também a recusar-se a definir a América. Nesse sentido ,podemos até dizer que Clinton ganhou porque ofereceu aos americanos uma definição da sua existência. Como podemos ver a ideia duma visão, no contexto político, está intrinsecamente ligada à ideia dum País. Podemos, em certa medida, concluir que se o desiderato é o que dá substância à existência e essência dum País a visão, por sua vez, é o que dá substância ao desiderato. A Frelimo, a Renamo, a Fumo, a Monamo, o Pimo, etc. proclamam a sua ideia de Moçambique através da formulação duma visão. Essa visão tem como ponto de partida o devir histórico do País, isto é a coalescência de desideratos - por via do debate político - que se foram exprimindo e acumulando ao longo do tempo. Quando um partido político ou um grupo de pessoas quaisquer formula uma visão está, na essência, a monologar. Na verdade, o que acontece nessas circunstâncias é que o partido ou o grupo de pessoas projectam os seus anseios, esperanças e desideratos sobre o que fez do País um País. A visão dum grupo, não importa a sua representatividade, é sempre a visão dum grupo. A vitalidade dum País, podemos começar a tirar conclusões, está, muito provavelmente, no espaço que ele proporciona para a formulação e confrontação de visões. A ideia dum País é profundamente narcisa. Ela constitui-se como uma auto-contemplação. Ela só se realiza na sua plenitude quando consegue estimular esta introversão. Um País com apenas uma visão é um País morto, senão mesmo impossível. A nossa história colonial prova isso. Justamente porque se procurou reduzir a ideia de Moçambique à vontade colonial portuguesa de poder surgiram novos espaços de contestação, imaginação e sonho. Foi o mesmo no período pósindependência. A regimentação do pensamento e dos anseios e sua submissão à necessidade de criação do "homem novo", apesar de aliciantes acabaram criando novos espaços para a imaginação dum outro Moçambique. Postas as coisas nestes termos coloca-se a questão de saber quando é que uma visão é uma visão. A nossa história pós-independência insinua-se, neste ponto, com muita insistência. Com efeito, embora seja muito natural que surjam novas visões elas não precisam necessariamente de serem boas ou más. Uma visão reflecte a vontade dos que a formulam. Se não encontra espaço para se exprimir pode se tornar bastante destrutiva. O único contexto de domesticação de visões é a confrontação com outras. É um pouco como o trabalho científico, mesmo se algo idealizado. O conhecimento científico é acumulado e avança onde se podem pensar paradigmas alternativos. Conforme demonstrou

o filósofo da ciência Thomas S. Kuhn, os paradigmas, esses grandes consensos teóricos, ajudam a produzir conhecimento só até um certo ponto. Depois disso têm um efeito totalitário sobre a imaginação. E esta, como dizia o grande Einstein, é muito mais útil do que a inteligência. Ideia a reter: as boas intenções que possam estar por detrás de visões não impedem que estas últimas sejam totalitárias.

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes O mundo é um palco (3) Num dos contos de Mia Couto relata-se a história dum casal, cuja mulher tem dificuldades com o parto. O casal encontra-se em casa de vizinhos, cujo marido, descobre-se mais tarde, é afinal o pai do bebé que demora nascer. Durante as horas em que as dores de parto se estendem o marido está mais preocupado em beber na sala do que em se ocupar da mulher que se contorce em dores na varanda na companhia de sua vizinha. Quando, contudo, a pobre mulher decide que o bebé não sai porque é ilegítimo e confessa o facto, o marido, segundo Mia Couto, “sai para fora com cara de marido”. Mia Couto, para além de confirmar o seu grau bastante apurado de observação dos detalhes da vida, confirma também um pormenor extremamente importante da vida social. Esta, à semelhança do mundo, e como dizia o grande dramaturgo inglês, William Shakespeare, é um palco. É nesse palco da vida que cada um de nós vai desempenhando papeis e através disso dá sentido ao quotidiano. A expressão de Mia Couto enfatiza esse aspecto: não basta ser marido para ser marido. É preciso ainda fazer o papel de marido. Cada um de nós pode imaginar que cara o marido deve ter feito para representar fielmente o seu papel: a de um homem que se sente ultrajado no seu amor próprio e que, por via disso, se sente justificado em agir como entender – incluindo o uso da violência – perante a mulher. É na representação destes papeis que nos reencontramos e somos capazes de confirmar a existência da realidade social. Somos, com efeito, personagens, múltiplas personagens, e seguimos nas várias situações do quotidiano roteiros já escritos que interpretamos de acordo com as experiências que vamos colhendo ao longo da vida. A mesma pessoa pode interpretar vários papeis: homem, marido, irmão, primo, empregado doméstico, campesino, de Gaza em Maputo, etc. Para cada papel há um repertório de acções que temos que aprender a praticar para podermos justificar a nossa representação. Um homem bem educado, uma vez deputado da oposição, por exemplo, tem que aprender que faz parte do seu papel como deputado de quando em vez se portar mal no parlamento – destruindo o mobiliário em protesto contra o que o seu partido considera fraude eleitoral. Portanto, a imagem evocada por alguém que “sai com cara de marido” é teatral. O teatro consiste num palco, actores e audiência. Estes três elementos estabelecem relações entre si para produzir sentido. É quase a mesma coisa na vida real. Quando desempenhamos os nossos diversos papeis no quotidiano estamos, na realidade, a fazer muito mais do que simplesmente interpretar um papel: estamos a analisar as relações sociais em que vivemos e usamos o resultado para produzir os contextos de acção que dão sentido aos nossos papeis. A “cara de marido” indica ao auditório – à mulher infiel, ao homem infiel, à mulher ofendida – que o marido é o marido. A reacção destes três, que se orienta no sentido de aceitar como válido o sentimento de ultraje do marido feito marido, confirma o marido no seu papel de marido. E nesse processo, que alguns sociólogos chamam de "dupla constituição", torna-se possível produzir a realidade através da representação de papeis. O contexto é muito importante para que a representação seja convincente. No teatro, para além de bons actores e duma boa peça, é preciso que a encenação seja boa. O cenário tem justamente a função de proporcionar o pano de fundo sobre o qual os papeis representados possam cativar ainda mais a imaginação do auditório forçando-o a enquadrar o que vê e ouve num único contexto de acção. A polícia, por exemplo, tem muita sensibilidade para este detalhe. É através da reconstrução do cenário - por exemplo, carta de despedida, ausência de sinais de violência, problemas financeiros ou maritais, despromoção no serviço, etc. - que ela decide se o corpo pendente dum lençol enrolado na viga do tecto conta a história dum suicídio ou dum homicídio. O exemplo é algo macabro, admitamos, contudo enfatiza a importância da encenação para o sucesso da interpretação dum papel.

Na vida real a encenação apresenta-se como uma estrutura que age sobre os indivíduos. Nessa qualidade, ela impõe formas e regras de conduta ao mesmo tempo que escreve os roteiros da interacção. Não admira, por exemplo, que muitas áreas da nossa vida sejam caracterizadas pela rotina. Paramos o carro no semáforo, aponta-se-nos uma arma, faz-se-nos um sinal para sairmos sem as chaves, vemos o carro a partir em alta velocidade numa grande bola de fumaça, vamos à polícia - ou não - e contamos aos amigos e familiares a peça em que actuamos no papel de assaltados. O elemento ritual na rotina vem do facto de o desempenho de certos papeis se sujeitar à uma estrutura. A imagem teatral é bastante persuasiva, mas problemática. Quem define Moçambique precisa não só duma visão como também dum contexto dentro do qual essa visão se pode concretizar. O problema da vida real, contudo, é que o quotidiano apesar de ser bastante rotineiro permite aos actores sociais muita criatividade. O assalto há pouco relatado tem vários desfechos possíveis, incluindo a possibilidade de aparecer nesse preciso momento a polícia. No teatro a criatividade aparece em forma de improvisação, mas o seu fim último é levar a peça a um desfecho já assente. Retenhamos, então, como conclusão desta parte a ideia de que a criatividade humana é inimiga implacável de estruturas monolíticas.

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes A nova fisiocracia? (4) Existe um ditado chinês muito conhecido: se der peixe a um homem esfomeado, ele vai matar a fome nesse dia. Se lhe ensinar a pescar, ele vai matar a fome para toda a vida. É um dos ditados mais preferidos da indústria do desenvolvimento. Serve para legitimar a nobre ideia de que o seu papel não é de alimentar as pessoas, mas sim de lhes ensinar a serem autosuficientes. Só se aprende fazendo. Eis aqui um sacrilégio: aprender a pescar não é a única maneira possível de tirar lições para a vida. Há tanta coisa que se pode aprender quando se nos é dado peixe: podemos aprender a distinguir tipos de peixe e sabores; podemos aprender a saber fazer ou dizer o tipo de coisas que vão assegurar que continuemos a receber peixe. Podemos, em suma, utilizar a caridade como um recurso na luta pela sobrevivência. A prática do desenvolvimento confirma este lado bastante didáctico do provérbio chinês. Até aqui a grande lição aprendida não foi como desenvolver os nossos países. Foi, isso sim, como continuar a receber ajuda: articular as nossas necessidades em termos de projectos ao mesmo tempo que as adaptamos às preocupações conjunturais dos doadores. Se o que está na moda é "gender", então façamos tudo nesse sentido; se é a pobreza, idem. A lição da vida, a nobre ideia de que podemos aprender a fazer o desenvolvimento nós próprios, essa custa a entrar. De resto, de que vale aprender a pescar para depois ficar a saber que a cana de pesca custa mais do que as nossas pobres finanças podem conseguir despender, que é preciso ter licença de pesca para ter acesso às águas que ficam mais perto, que os melhores sítios já têm donos, etc., etc.? O problema do desenvolvimento, contudo, não é ser uma empresa contraditória. É ser perfeito. Quando se olha para os programas de desenvolvimento, quer seja os que combatem a pobreza, os desajustes estruturais ou promovem sistemas políticos eficientes é difícil encontrar pontos fracos que não sejam susceptíveis de correcção pela própria indústria do desenvolvimento. E o mais importante ainda é que se esses programas de facto se desenrolassem conforme os planos traçados iriam, com muita probabilidade, alcançar os objectivos almejados. Infelizmente, esse não é o caso. E é aqui onde se coloca o problema da perfeição. O desenvolvimento é perfeito no sentido em que sempre tem razão; tem razão no sentido em que as soluções que ele preconiza para os problemas por ele definidos são correctas; correctas no sentido em que são as únicas capazes de conduzir aos resultados desejados; desejados no sentido em que eles tornam possível a realização dos objectivos do desenvolvimento; possível no sentido em que criam as condições necessárias à realização dos objectivos do desenvolvimento; necessárias no sentido em que elas definem, no fundo, o próprio desenvolvimento. É difícil imaginar um empreendimento mais narciso do que este. Isto para não utilizar um termo mais adequado, mas fora da moda: fetichismo. A perfeição torna-se problemática porque transforma o desenvolvimento num grande programa de reeducação. Para que ele seja bem sucedido é necessário inventar pessoas perfeitas: incorruptíveis, altruístas, que colocam o País sempre a frente, cumpridoras fieis de leis, mesmo quando ninguém está a olhar. Em suma: pessoas que aprendem a pescar, mesmo quando é mais fácil viver do peixe oferecido. As pessoas têm que perder a sua humanidade em prol do desenvolvimento. O desenvolvimento é um espírito difícil, para dizer as coisas em bom changana. É muito exigente. É preciso sacrificar muito para o satisfazer. Não é que o que ele representa não seja positivo. Quem não quer acabar com a fome, nudez e miséria? Quem não gostaria de viver num País são, com poucos analfabetos e politicamente estável? Quem não gostaria de viver num País com índices de desenvolvimento humano e PNB de inspirar orgulho? Ninguém. O problema do desenvolvimento é que na sua perfeição libidinosa, para parafrasear a feliz

expressão do sociólogo francês, Michel Maffesoli, parte do princípio de que a realidade social se resume a um diagnóstico correcto da situação que só permite uma única solução. Tudo o resto que não corresponda a esse diagnóstico é aberrante e precisa de ser eliminado. Os cenários que alimentam visões fazedoras de nações partem de pressupostos idênticos. Até porque o desenvolvimento é o denominador comum dos cenários. Traçam-se vários, mas só um é que é correcto. E é correcto porque é o único que conduz com segurança ao desenvolvimento. Para que isso seja possível, todavia, é necessário que os actores sociais assumam os papeis que lhes são atribuídos na nova edição da fisiocracia a que estamos a assistir com o fetichismo do desenvolvimento. A pergunta que se coloca, em jeito de conclusão, é de saber como aqueles que se desenvolveram o fizeram. Será que a perfeição é o único caminho?

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes Os cenários que não desenvolveram a Europa (5)

Nos meados da primeira metade do século XVIII registou-se na vizinha África do Sul um suicídio colectivo com o nome "o grande movimento Xhosa de matança de gado". Essa grande etnia sul africana decidiu deixar de alimentar o gado e de cultivar a terra em preparação dum evento importante: o ressuscitar dos antepassados. Uma menina de 12 anos convencera a etnia que tinha tido visões - outra vez as malditas visões. Vira, durante uma ida ao rio, e falara com os antepassados que lhe haviam informado que viriam libertar o povo do jugo europeu e trazer a abundância eterna. Para que isso acontecesse era necessário que todos deixassem de trabalhar, matassem o seu gado e se mantivessem asseados. Para os efeitos do que se segue aqui os detalhes desta história não são importantes. Segundo J.B. Peyres, um historiador sul africano que escreveu o melhor livro sobre este acontecimento, este comportamento aparentemente irracional explica-se por vários factores: um cristianismo mal digerido, o receio duma doença animal trazida pelos europeus bem como relatos de desaires militares europeus na guerra da Crimeia. O importante é a trágica simplicidade da solução Xhosa do problema do desenvolvimento. Porque não procuraram saber como os europeus se haviam desenvolvido? A resposta é que, naquela altura, eles não dispunham dos instrumentos científicos que o PNUD nos proporciona hoje em dia. Na verdade, se os tivessem tido teriam tentado reconstruir o desenvolvimento europeu pelo menos teoricamente. Vamos tentar esse exercício e ver até onde nos leva. O período da história europeia mais semelhante com o que a África vive actualmente é a idade medieval. Grassam, na altura, epidemias como a peste bubónica, verifica-se um empobrecimento crescente das zonas rurais, a superstição reina, o estado dificilmente se consegue afirmar, antes pelo contrário, a lei do mais forte é que se impõe. A Europa medieval representa o que o filósofo inglês, Thomas Hobbes, chamou de estado natural: A vida é curta, bruta e horrível. Só Leviatão, a comunidade que vai dar liberdade ao homem ao mesmo tempo que tempera a sua vontade de poder, é que é a solução. Abra-se, aqui, um pequeno parêntesis para referir que câmara inferior do parlamento inglês baniu os livros de Hobbes por suspeitar que o fogo que consumira quase toda a cidade de Londres bem como a peste eram a retribuição divina pela tolerância de escritos anti-religiosos como os deste filósofo! Imaginemos que os europeus tenham optado por elaborar uma agenda. Chamemo-la "agenda século XIX e XX" em homenagem à supremacia europeia neste período. Que cenários eram possíveis na altura? Há quatro que se sugerem: do javali, do alce, da raposa e do esquilo. A comissão encarregue de elaborar estes cenários teria sido composta pelas melhores cabeças europeias do tempo: estadistas, filósofos, teólogos e matemáticos. Estas individualidades começariam por fazer uma vénia à rica história europeia. Identificariam a civilização grega e romana bem como a subjugação estrangeira como um património útil para a grande tarefa de perspectivar o futuro da nação europeia. Veriam na filosofia e nos passos titubeantes da matemática, astronomia e geometria importantes recursos para o futuro. O primeiro cenário é o do javali. Come tudo o que pode esgaravatar. Não olha para os meios para alcançar os seus fins. A sujidade é a condição da sua existência. Se os europeus não conseguissem manter uma certa paz e estabilidade entre os vários principados e controlar os bandos de cavaleiros à solta prejudicariam seriamente as suas possibilidades de desenvolvimento. Correriam o risco de produzir sistemas políticos corruptos, ineficientes e criminosos em que a ganância reinaria. O alce é mais abundante nas densas florestas escandinavas. É o terror dos automobilistas. Tem o hábito de aparecer de repente na estrada e obrigar o carro a guinar. A indústria

inventou até um teste de estabilidade de veículos automóveis com o nome de alce. Um dos modelos da Mercedes ridicularizou-se há alguns anos quando reprovou este teste: sempre que guinava, capotava. O cenário do alce seria o dum desenvolvimento em que a Europa não manteria um curso recto. Tanto iria para a frente como retrocederia. Na mais das vezes teria que fazer viragens repentinas. Esse cenário resultaria duma fraca integração social, isto é do fracasso no alargamento do Agora grego a todos os europeus. O terceiro cenário seria o da raposa. A raposa, na imaginação europeia, é um animal esperto, mas individualista e traiçoeiro. Está mais preocupado com a conservação da beleza da sua pele e do aprumo do seu rabo. Devido à sua audacidade a raposa representaria um desenvolvimento em que os europeus seriam capazes de tirar vantagens do conhecimento científico emergente, mesmo se persistissem desequilíbrios entre as várias regiões e povos. Finalmente, o cenário do esquilo, este mimo de animal, pacífico, trabalhador e providente. O seu pleno desenvolvimento requer integração social, participação e o uso do conhecimento científico para resolver problemas reais. Só o bom desempenho destes elementos todos é que iria tirar a Europa da escuridão medieval. Volvidos uns seculizinhos a Europa encontra-se onde gente de boa vontade na era medieval teria sonhado vê-la. Olhando em retrospectiva poder-se-ia dizer que havia custado, mas valera a pena. De tudo houve um pouco: caça às bruxas, inquisição, guerras religiosas, guerras feudais, guerras étnicas, emigração massiça, colonização interna, colonização externa, escravatura, “limpezas étnicas”, genocídios, revoluções socialistas, revoluções fascistas, epidemias, opressão de minorias, etc. A única coisa que não houve foi auxílio ao desenvolvimento e nenhum dos cenários se ter materializado. Que lição teriam os Xhosa aprendido do desenvolvimento europeu?

A propósito da Agenda 2025 – Uma reflexão em seis partes Curtir a vida agora? (6) A indecisão é como um enteado, reza um ditado africano: Se não lava as mãos, é porco; se as lava, está a gastar água. O nosso País tem futuro, independentemente do que nós fizermos. Só que esse futuro pode ser o que não queremos. Para que o País tenha o futuro que nós queremos precisamos de mostrar poder de decisão. Daí a necessidade de o perspectivar. A questão que se coloca, contudo, é de saber como devemos perspectivar o futuro. É mais do que evidente que faz parte desse exercício saber donde viemos, do que dispomos e contra que perigos nos devemos precaver. Em princípio, um exercício dessa natureza devia ter como efeito secundário a sensibilização das pessoas para a renitência da realidade ao desígnio humano. Vimos ao longo desta série de artigos alguns aspectos dessa renitência. Um País, por exemplo, deve a sua essência à vontade da sociedade. É uma essência falsa na medida em que a vontade social é dinâmica. Não é, contudo, arbitrária. Ela forma-se continuamente na confrontação de vontades. Como, nestas circunstâncias, fixar a identidade do País para sempre? Vimos também que essas vontades são articuladas publicamente por meio de visões. Para se ter uma visão é necessária a capacidade de reflectir uma experiência social e histórica específica. Cada qual fala do seu canto. É possível que, nisso, exprima a experiência de outros. O mais provável, todavia, é que esse catolicismo seja sentido como sendo opressor. Até ao ponto de formulação de visões contrárias. O lado prático duma visão articula-se por meio de cenários. Estes últimos fazem medições acríbicas sobre tudo quanto possa influir sobre a materialização da visão. Os cenários são verdadeiras instituições totalitárias. Enfeitam o palco, atribuem papeis e escrevem a peça. Estão tão convencidas da sua infalibilidade que qualquer contratempo em direcção à visão é um erro ou desvio. Esquecem, contudo, que uma boa parte do nosso quotidiano é feita do erro. No quotidiano domina uma lógica discursiva que mede a plausibilidade das coisas e acções segundo critérios locais que permitem várias soluções. Trata-se duma lógica diferente da dos cenários: cartesiana e dirigida à solução de problemas. Só uma solução é válida. Os cenários estão seguros de si porque têm um objectivo nobre na mira: o desenvolvimento. Se Marx ressuscitasse não era sobre o capitalismo que iria escrever. Ele escreveria sobre o fetichismo do desenvolvimento. É explorador e ópio ao mesmo tempo. Estamos a ser disciplinados em seu nome, mas em prol de tudo quanto desejamos: alimentação, roupa, abrigo, liberdade. Como é que os outros se safaram? Que lições podemos aprender deles? Tudo indica que no caso dos outros, mesmo os que a eles se juntaram recentemente – caso dos tigres asiáticos – o acaso desempenhou um papel importante. Estes últimos aplicaram-se e foram recompensados pela conjuntura. O acaso não quer dizer aqui que eles deixaram tudo ao critério da sorte. Quer apenas dizer que eles se saíram bem apesar de todos os erros que cometeram: ditaduras, proteccionismo, exploração do homem pelo homem. Na Europa foi também a mesma coisa e a obra continua. Posto isto, a elaboração duma visão não parece a tarefa mais premente que se coloca a Moçambique. A elaboração de visões, talvez. Visão da Frelimo, da Renamo, da Fumo, do Pimo, do Pademo, etc. Para essas visões serem úteis, e aprenderem, têm que se confrontar todos os dias. No processo vão ser reformuladas, refinadas e ajustadas à realidade. E isso é difícil de fazer em comissões especiais com mandato fixo. Não importa o mérito incontestável dos seus membros. A tarefa mais premente que se coloca a Moçambique, uma tarefa de todos os dias, é de garantir regras de jogo claras e justas para a grande obra de preservação da integridade política, social e económica do País. A constituição proporciona essas regras de jogo. Se os

consensos alcançados na discussão da Agenda 2025 não são passíveis de integração na constituição então a sua utilidade parece limitada. A constituição é a única visão possível porque de visão não tem nada: ela estabelece apenas um quadro de acção que não é imune à alteração e aperfeiçoamento pelas pessoas se a sua maturidade assim o exigir. Não se pode legislar contra o espírito protestante por detrás do impulso de perspectivação do futuro. Para a maioria hedonista e insensata, contudo, o lema que vale é o de Swit: curte a vida agora; ninguém sabe a hora. Não é bom para o desenvolvimento, mas é o único ponto de partida realístico.

Notícias, 26 e 27 de Agosto de 2003

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