Rota Existencial

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  • Words: 61,747
  • Pages: 257
Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira Presidente da Fundação Cultural Palmares Zulu Araújo Diretor de Promoção, Estudos, Pesquisa e Divulgação da Cultura Afro-Brasileira Antonio Pompêo Diretora de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro Bernadete Lopes Chefe de Gabinete Juscelina do Nascimento Assessora de Gestão Estratégica Clemildes Carvalho Coordenadora de Gestão Interna Simone Hastenreiter Procuradora Geral - Substituta Ana Maria Lima Oliveira Assessor de Comunicação Oscar Henrique Cardoso Equipe de Trabalho Leila Calaça: Chefe do CNIRCN Ialê Garcia Bezerra de Mello: Gerente de Projetos Isabela da Silva Sela: Pesquisadora Emerson Nogueira Santana: Técnico em documentação Marco Antonio E. da Silva: Analista de projetos Edcleide Martins Honório: Secretária Antonia Eliane Martins do Nascimento: Apoio Técnico Clênia Zilmara Barbosa Oliveira: Apoio Técnico Hermeson Alves M. Santos: Auxiliar Administrativo Denyece Raquel dos Santos Chaves: Técnica Administrativa Bruno Felipe J. Coelho: Estagiário Elói Soares Lima Neto: Estagiário

Helena do Sul

ROTA EXISTENCIAL

2007

Copyright 2007 - Maria Helena Vargas da Silveira Capa Nailê Cordeiro de Oliveira Editoração eletrônica Péricles Cruz Revisão Shaiane Vargas da Silveira

Ficha catalográfica: Kelly Martins – CRB1-1633



Sul, Helena do Rota Existencial / Helena do Sul – Brasília, DF: Funcação Cultural Palmares, 2007. 254 p. : il. color.



ISBN 978-85-7572-015-8

1. Literatura – Brasil. 2. Negros – História – Brasil. I. Silveira, Maria Helena Vargas. II. Helena do Sul. II. Título. CDU 82(81=4140

LITERATURA AFIRMATIVA

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ota Existencial, da escritora afro-descendente Maria Helena Vargas da Silveira, a Helena do Sul, aborda aspectos implícitos e ou explícitos das relações étnico-raciais no Brasil, a partir de contos breves, crônicas, depoimentos, sátiras e poesias. A generosidade literária da autora transborda no universo da negritude, fazendo deste novo livro um presente inusitado de Literatura Afirmativa. O livro divide-se em quatro momentos diferenciados, porém de estrita relação. Narrando especificidades do povo negro, que o poder hegemônico tenta tornar invisível, afloram o talento, a criatividade e ousadia da escritora, na produção dos contos, crônicas e sátiras que compõem o ineditismo da primeira parte da obra. Com um olhar que remete à Antropologia Social, ao gênero literário memorialístico e às constatações de realidades atuais, os textos se concretizam na prosa leve sem perder a firmeza da narrativa que caminha, de forma natural, para a contundência de muitas análises sócio-econômicas, culturais, educativas e de gênero, provocativas para os leitores. A segunda parte do livro traz um documento histórico que se configura como revitalização e síntese da obra e da trajetória da escritora. Brinda-nos com um original passeio pelos bastidores dos lançamentos dos livros anteriores, destacando, afirmativamente, algumas pessoas da vida real. Uma “ação afirmativa social” que reconhece e valoriza representantes daquelas e daqueles que, por pertencerem a um segmento cujas identidades são marcadas, lutam por uma nova forma de representação. Ousadia prática e política.

A terceira parte acolhe preciosidades de cada um dos nove livros anteriores da escritora, o que pode ser visto como um “mix” entre a fidelidade com a literatura, a temática escolhida e a sintonia com todas as gerações e os novos tempos. A poesia fecha a Rota Existencial, sem ficar indiferente à negritude, aos espaços, aos processos sociais e emocionais em que a vida transita. Destaca-se a preocupação e solidariedade de Maria Helena, ao mencionar, nas últimas páginas do livro, pessoas e instituições que colaboraram para a concretização de sua caminhada literária. Considero relevante que nesta obra, ao tomar posse da fala, a autora dá passagem para personagens reais atemporais que ajudam a alicerçar a construção do passado, do presente e do futuro do povo negro brasileiro, tendo por viés a dignidade. Sendo, portanto, um poderoso e muito bem-vindo exercício das potencialidades da narrativa pós-colonial, a partir da perspectiva de uma brasileira, negra, mulher Também o bom humor que, na hora certa, perpassa algumas das narrativas apresentadas, mantém o estilo da autora, sempre reconhecido pelo seu público fiel. Ninguém é de ferro! Salve Ogum! Rota Existencial é um livro que pode emocionar. Fazendo rir, chorar, lembrar... Uma obra para estudar, pesquisar. Mas, sobretudo, um instrumento para refletir, acreditar na potencialidade do poder resistente da humanidade e, em especial, da população negra brasileira. Acredito que tais argumentos sejam suficientes para atiçar o desejo de leitoras e leitores que, a cada novo trabalho da autora, multiplicam-se, estando reconhecidamente presentes em todas as regiões do Brasil e em alguns países africanos e da diáspora africana. Diony Maria Oliveira Soares Jornalista, especialista em Antropologia Social, mestranda em Educação

REFLEXÕES DA AUTORA

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ealidades, ideologia e delírios do feminino negro estão presentes por aqui, na “Rota Existencial”, além do deboche saudável e necessário para amenizar algumas verdades mais doloridas. O primeiro momento do livro compõe-se de contos breves, crônicas e sátiras, onde a criatividade busca personagens do passado e do presente, sem distanciamento do universo da população negra, ainda que não ignore toda gama da diversidade étnica brasileira. Mesmo que tentasse, não conseguiria escrever sem um passeio pelas paisagens, pela gente, pelas emoções, pelas realidades de minha negritude. Seria impossível não falar destas realidades próximas. Elas possuem colorido, vivacidade, vozes, cheiros, animação e consistência de coisas vividas, observadas, participadas e, sobretudo sentidas. São quadros que vão sendo fortemente pincelados na mente com matizes intensos, tornando-se figurafundo da existência. A presença dos trabalhadores negros e negras, costureiras, lavadeiras, motoristas, gráficos, professores e artistas protagonizam as narrativas, assim como os militantes pelo desenvolvimento da população negra, os conflitos emocionais, as enfermidades da alma que atormentam os negros e geram morte, a inversão de valores de nossa sociedade de aparências, os absurdos com que se defrontam os que não têm vez de falar e submetem-se aos discursos poderosos que se perdem no ar. São exemplos das realidades que fazem a História.

Rota Existencial é o décimo livro que publico, ocasião em que consolido 20 anos de Literatura. Então, em um segundo momento do livro, aproveito para incorporar de forma desnuda, muito franca, o que representam estas duas décadas de dedicação à Literatura, envolvida com a população negra. Sou eu e os outros e outras, nos bastidores da escrita e dos lançamentos de meus livros. Vou simplesmente narrando os fatos que aconteceram. Mas, ao final, sinto que compus um corolário temático que poderá movimentar os mais atentos sociólogos, antropólogos, psicólogos, educadores e gente preocupada em entender de gente, principalmente de negras e negros e as históricas estratégias de resistência para o alcance de suas aspirações. O ser e o resistir importam muito, na rota existencial da população negra. Inventamos o enfrentamento das adversidades com um jeito próprio ou coletivo, capaz de nos fortalecer para encarar as subidas e as descidas da gangorra vital, nosso cotidiano na sociedade brasileira. Podemos tombar, ralar no chão, em condições adversas. Mas também podemos mudar o rumo da adversidade, inventando estratégias de resistência. Eu invento. Os outros e outras inventam comigo. Nós inventamos. Observo o próprio passo e arrumo um tempinho para assobiar ou cantar uma canção; fico com olho de choro diante do tombo de mau jeito, mas sigo em busca de condições para sorrir dos próprios arranjos que faço para não cair. Coloco um detalhe a mais naquilo que realizo, enquanto realizo. Acrescento marcas muito pessoais ao ato de viver cada história. Muito pessoal é a tentativa ou o alcance daquilo que qualquer pessoa pretende realizar e realiza. Muito pessoal, mas nem sempre tão individual. Nestes vinte anos de Literatura foi assim, os outros e eu, envolvidos por uma gama de situações de toda ordem e a conseqüente aprendizagem. As narrativas da segunda parte do livro comprovam que as realidades de uns se cruzam com a de outros e todas as coisas acontecem, de bom ou de ruim, nas intersecções destas rea-

lidades. Elas permeiam pelos espaços temporais e estão sempre nascendo. A sensação maravilhosa de que cada tempo é o nosso tempo, advém da vivência destes renascimentos, que se deixam acompanhar pelas nossas ideologias. Em um terceiro momento, revisito brevemente a criação de meus nove livros editados, anteriormente. Transcrevo alguns textos desses livros e acredito ser uma estratégia atenciosa para suprir a carência de não poder brindar a todos e todas com a reedição solicitada do que tenho escrito. Exponho o exercício da escrita, desde o nascedouro da minha caminhada literária e ideológica que, fundamentada na “negricite”, meu vírus de nascença, vai tomando formato de ensaios, contos, crônicas e novela social. Sinto o quanto fico sem imunidade cerebral, acometida pelas aspirações do ideário de uma negritude mais feliz. Sendo um processo que me ataca as idéias, isto é ideologia. Procuro conviver com ela sem retê-la em tensão, materializando-a nas faíscas das reflexões e dos deboches de mentiras que mexem com muitas verdades. Nem mais me surpreendo, pois identifico na escrita, minha atitude espontânea de resistência. Sei que não basta. Mas também exercito outros processos ideológicos, no coletivo. Aproveito o imprevisível tempo de viver e poemar. Com todos os seus vértices filosóficos, emocionais e perceptivos, a poe­ sia germina e circula por armadilhas e sonhos a que estão sujeitos os seres, finalizando o livro. A vida é um poema que questiona, ama e resiste no processo álmico, atávico, em paradoxal estado de delírio e consciência. Escrever tem sido um ato solitário, mas publicar o que escrevo só é possível com o envolvimento e movimento de muita gente. Agradeço a todos e todas por me acompanharem. Maria Helena Vargas da Silveira (Helena do Sul)

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Sumário Rota Existencial Parte 1.............................................................................................. 15 Cortes e recortes.............................................................................. 17 Pouco mais que um guri.................................................................. 20 A menina do cartaz.......................................................................... 22 Reportagem de jornal...................................................................... 24 Movimentos de um operário da palavra....................................... 26 De Bilac ao Negro Drama............................................................... 29 Performance aliada.......................................................................... 32 Senhora do avesso........................................................................... 34 As irmãs Limeira e o samba de roda............................................. 36 Contadora de histórias..................................................................... 40 Cambitus............................................................................................ 44 Obituário .......................................................................................... 48 Bailarinos odara................................................................................ 51 Atrás desse mato mora um povo.................................................... 53 Interrogação de um silêncio............................................................ 61 Rota existencial Parte 2.............................................................................................. 67 É Fogo - ano 1987 – Descobertas e polêmicas.............................. 68 Meu Nome Pessoa - três momentos de poesia - ano 1989 – Cidadania no morro......................................................................... 74 O Sol de Fevereiro - ano 1991 – Negritude na periferia............. 78 Odara, Fantasia e Realidade - ano 1993 – Mística e irreverência........................................................................................ 82 Negrada - ano 1995 – Registros vivenciais do universo da população negra.......................................................................... 86 Tipuana - ano 1997 – Escola pública de maioria negra.............. 93

O Encontro - ano 2000 – Saudades e contextos de diversidade........................................................................................ 98 As Filhas das Lavadeiras - ano 2003 – Tributo às mulheres negras e mobilização social........................................................... 101 Os Corpos e Obá Contemporânea - ano 2005 – Transgredindo “normas culturais” e trabalhando o imaginário popular sobre os corpos afrodescendentes............ 107 Rota existencial Parte 3............................................................................................ 112 Identidade........................................................................................ 114 A trova do Bola............................................................................... 116 Simiesca........................................................................................... 119 Iniciação........................................................................................... 122 Rezumbindo.................................................................................... 128 Rebelião dos sambistas.................................................................. 131 Conversa de negro.......................................................................... 143 O super evento................................................................................ 155 Forasteiros de muitos lugares........................................................ 159 Apresentação do nome da lomba................................................. 162 Izolda Maria mais ou menos......................................................... 163 Ata ordinária................................................................................... 165 Capítulo XXVI................................................................................ 167 Casarão das lavadeiras em Caxambu........................................... 171 Do Bengo à paixão pelas Congadas ............................................ 176 Lavação de roupas.......................................................................... 183 Corpo-inquietação......................................................................... 210 Corpo-texto..................................................................................... 212 Corpo-ironia (O ensaio)................................................................ 215 Rota existencial Parte 4............................................................................................ 220 Morro, clave de sol......................................................................... 222 Quero mais que falas . ................................................................... 225 Prece do negro ao professor de qualquer cor............................. 226 Neguinha na rede........................................................................... 228

Palavras............................................................................................ 229 Verdade............................................................................................ 230 Plim! Plim!...................................................................................... 231 Infantil.............................................................................................. 232 A lágrima......................................................................................... 233 Retalhos de esperança.................................................................... 234 Parada cardiáca............................................................................... 235 Sobrevivência.................................................................................. 237 Alvorada dos negros....................................................................... 238 Criança-cidadã................................................................................ 239 Rota existencial .............................................................................. 240 Herança dos deserdados................................................................ 241 Oficina do Rap............................................................................... 242 Histórias........................................................................................... 245 Outro êxtase.................................................................................... 246 Insana............................................................................................... 247 Mórbida........................................................................................... 249 Sonho bom...................................................................................... 250 Descoberta afinal............................................................................ 251

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Rota Existencial Parte 1

Contos breves, crônicas e sátiras. Um passeio da criatividade por espaços e personagens do passado e do presente, sem distanciamento do universo da população negra, ainda que não ignore toda gama da diversidade étnica brasileira. Cortes e recortes Pouco mais que um guri A menina do cartaz Reportagem de jornal Movimentos de um operário da palavra De Bilac ao Negro Drama Performance aliada Senhora do avesso As irmãs Limeira e o samba de roda Contadora de histórias Cambitus Obituário Bailarinos odara Atrás desse mato mora um povo Interrogação de um silêncio

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CORTES E RECORTES A freguesia chegava com os panos coloridos para que ela os transformasse em vestes, das mais variadas. Fazia casaco, casacão, camisola, saia justa, de prega, de machos, godê ponche, saia balão, de cadeirão, blusa com nervuras, de golas, decotadas, vestidos tomara que caia, estilo sereia, os inventos da moda que em nome da moda chegam, tornam e retornam novidade. As freguesas variavam como as roupas e vinham de perto ou de muito longe, para os cortes e recortes da costureira. As senhoras obesas, atraídas pelas habilidades da costureira, vinham de muito longe, lá de Povo Novo, de Capão Seco, dois povoados da região da artesã. Valia o sacrifício. Voltavam felizes para casa, com as gordurinhas escondidas nas pregas e machos das saias e vestidos maravilhosos, perfeitos. A costureira cortava os moldes das roupas em folhas de jornais velhos e passava para os tecidos que se transformavam nas vestes que cobriam o corpo das mulheres, ocultando quaisquer imperfeições. Com a velha máquina Singer, movida com a agilidade sincronizada dos pés, uma tesoura mágica e a necessidade de trabalhar, operava milagres. Nada de máquina a motor. Nem havia eletricidade onde morava a costureira. Os panos e os olhos eram iluminados à noite, com os candeeiros, com os lampiões ou com os fedidos carburetos. Às vezes ganhava de presente o brilho do luar, sempre que vinha a lua, no céu das vilas do bairro Fragata. Tratava a freguesia de mulheres, com a delicadeza de anfitriã bem humorada. Costurava coletes para os homens, mas jamais lhes viu a cara. Apanhava os coletes, já cortados, no alfaiate e os aprontava com dedicação, tanto faz de linho ou casimira. A frente do colete tinha a austeridade do bom pano dos ternos. Atrás, aparecia a

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luminosidade do cetim que emoldurava as costas dos machos que usavam tais peças da elite masculina. Era uma elite que gerava um ganho a mais para a costureira que emprestava seus préstimos a um renomado negro, alfaiate da cidade. A costureira também não conhecia a clientela de homens e mulheres que compravam nas lojas dos turcos, para quem fazia uma tal costura de carregação, uma produção em série. No fardo da carregação vinham, já cortadas, as roupas de chita, de pelúcia, de algodão, calça de riscado, cueca samba-canção. Vinham dezenas de peças repetidas, feitios massificados para vender barato. Eram roupas que uniformizavam, deixando igual na indumentária aparente, o povo que comprava na loja dos turcos. A freguesia chamava a atenção das crianças, ora pelos gestos, pelas vozes, pelo exotismo dos adornos pendurados às orelhas e pescoço. E, ainda, pelo tempo enorme que as privavam do convívio com a mãe costureira. Mas bom mesmo, era quando as senhoras não ignoravam os pequenos e lhes davam pirulitos e balas, para compensar as horas que lhes roubavam a mãe, enquanto ficavam indecisas, escolhendo os complicados vestidos dos figurinos. A costureira parecia muito feliz. Sorria. Precisava daquele trabalho. As crianças ficavam assanhadas e riam baixinho, às escondidas, quando aparecia uma freguesa, usando estranho chapéu que exibia os primeiros ensaios da reciclagem de plástico. A mulher usava um chapeuzinho feito de tiras de saco de leite. Quá, quá, quá... Causava uma estranheza que custaram muito tempo para entender. Ainda não alcançavam o significado daquela coisa. Viam no chapéu, qualquer maluquice de sua dona. Como a dona era avantajada na idade, pensavam logo em caduquice - “ela é caduca”. Hoje, o chapéu reciclado que gerava farras e risos, faz até o luxo e recomenda-se a sadia maluquice para conservação do planeta.

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Os panos dos vestidos das matronas obesas, da freguesia dos turcos, dos coletes dos grã-finos que faziam roupas sob medida, deixavam recordações pelo assoalho da casa: fiapos de linha e as sobras dos cortes e recortes que à noite eram expulsos da sala, com a vassoura artesanal de carqueja do mato. E a artesã, costureira e dona de casa, milagreira dos poucos trocados que ganhava, usava uma capa de pano forte, uma veste original que parecia simbolizar seus dias de mulher negra, com filhos e filhas para criar. Sua capa era tecida com retalhos coloridos de esperança, costurados com fios de crença em dias melhores. Destes detalhes especiais, nunca descuidava, em sua moda cotidiana. Salve as costureiras, protegidas de Obalufã!

 Obalufã – Orixá masculino , filho de Odudua, o inventor da tecelagem e das roupas.

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POUCO MAIS QUE UM GURI Era pouco mais que um guri quando fincou o pé no freio e carregou o seu doutor no carro particular. Usava um uniforme que o deixava com jeito de militar. As crianças, depois de mais crescidas, quando viram a foto do pai, até pensaram que ele fazia parte do Exército de Salvação. Já acostumadas com outros padrões de motoristas, nem o concebiam com aquela ordem no visual: terno, gravata e quepe. Ele carregou o seu doutor, cliente exclusivo, até que seu doutor morreu. Carregou muita gente no carro de praça. Com o maior orgulho citava os famosos da época que havia conduzido. Elizete Cardoso, a Divina, a mais lembrada por ele. Era madame pra lá, doutor pra cá, Senhora, Senhorita, um invejável tratamento de respeito, para lidar com os usuários e usuárias que conduzia em seu “pé de borracha”. Carregou passageiros operários e estudantes no ônibus mais veloz de um bairro da cidade. Em minutinhos chegava à praça central, correndo. Fazia a alegria dos trabalhadores que se atrasavam para o serviço. Parecia que estava fugindo e, na correria da fuga, afugentava das paradas quem detestava a velocidade dos coletivos. Os tempos já não eram os mesmos. Conduzia as individualidades no coletivo. Mas chegava em casa são e salvo, contando novidades. Chamava as crianças para comer as frutas que ganhava pelos trajetos percorridos. Depois ia dormir um pouquinho, tão pouquinho... Era escravo do horário da Companhia de Transportes. Acordava na madrugada e acendia o fogão a lenha para esquentar a casa, antes de tomar café com pão torrado, o que podia ter na casa do motorista. Sua velocidade não alcançava certas coisas.

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Depois foi puxar fretes no caminhão, cruzando estados, pontes e balsas de rios. Caiu de pontes, foi náufrago sem barco, lutando com a lataria do carro para poder sobreviver. Rodou, rodou pela vida, até que parou. Ficou sentado na cadeira de balanço que não rodava. Balançou anos e anos as recordações de suas viagens: naquela estrada andou de jipe, mais além fez pausa e caçou capivara, na outra deu carona que se transformou em guarida na própria casa. Ih! Quantas histórias. Teve que dividir os cômodos com os caroneiros, por mais de trinta dias, até que apontou o facão para os indivíduos e fez da porta da rua, a serventia da casa, expulsando os parasitas. Ainda estava lúcido e muito respeitoso, assim como tratava os passageiros, quando era pouco mais que um guri. Mas foi diminuindo a velocidade. Começou a andar devagarinho, muito devagarinho para que ninguém percebesse qualquer arranque na sua partida. Puxou seu carro da vida para a última viagem. As crianças não eram mais crianças e quando chegaram ao cemitério, para dizer-lhe até à vista, iam sendo cumprimentadas: bom dia doutora, meus pêsames doutor.

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A MENINA DO CARTAZ Jovens e crianças dos colégios passavam entre eretos e bamboleantes na frente do coreto da praça que não era a praça principal, mas ganhava ares de destaque por beirar extensa avenida propícia à passagem dos pelotões da juventude... E de crianças, também. Era no ano de 1990. Dia de passeata na cidade, aquelas passeatas cívicas, desfile da juventude em honra da Pátria. Uma banda tocava afinada, repleta de negros músicos. Banda de quartel. Na cadência do Hino da Marinha, “qual cisne branco que em noite de lua”, a menina movimentava os pezinhos sambados, cheia de garbo, pescocinho em pé. Era toda bonita, com os cabelos amarrados no alto da cabeça, voando com a ventania de setembro. Os pezinhos sambados sustentavam seu corpo levinho que se exibia na saia vermelha de pregas e na blusa branca engomada de estalar os punhos das mangas, quando levantava o cartaz que carregava. Será que a menina sabia o que dizia no cartaz? Que nada! Ainda não lia, e talvez ninguém tivesse lhe contado sobre a mensagem que levava. Estava desfilando com a Escolinha do Jardim de Infância, uma escola de brincar, de cantar, de pular, de correr e de viver os primeiros tempos que antecedem e preparam para a descoberta das leituras do mundo. Por enquanto, desfilava, socializando para o público, a mensagem do cartaz. Flash! Flash! Que linda a menininha. Fotografias e mais fotografias. A mídia estava presente. E a mãe da guria, mandou uma fotografia para a vovó que morava longe.

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A foto deixava aparecer algumas palavras da mensagem do cartaz: homenagem aos cem anos do Diário Popular. Vovó ficou cismando: como é que este cartaz veio parar nas mãos desta guria? Capaz! Não deve ter sido por acaso. Alô, alô, telefonou, queria extravasar: este povo aí do colégio sabe que minha neta faz parte da família? – Que família? – Do jornal. Nossas histórias de família, também têm a ver com este Diário Popular... – O que eu sei é que sua neta adorou o cartaz bem colorido. Desfilou meio passista de Escola de Samba, meio Porta-estandarte, mostrando o cartaz. Adorou o desfile. E os flashs, todos. – Não te deste conta que colocaram nas mãos dela um cartaz que também homenageia o bisavô? O acaso não existe. O bisavô Armando .Lembra das histórias? Procura aí a Edição Centenária do Diário Popular. Ele era o negro gráfico que apelou para não fechar o jornal que está fazendo 100 anos. Já estamos em 2007. A menina que desfilou, dançando com o cartaz que veio parar por acaso em suas mãos, guarda junto com a fotografia do desfile, uma reportagem de jornal que é auto-estima para o povo negro. Trata-se do trabalho do bisavô, no Diário Popular, da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

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REPORTAGEM DE JORNAL

Por muitos anos , chefiou a oficina tipográfica do Diário Popular o profissional gráfico (ou artista gráfico, como preferiam ser nomeados alguns) Armando Vargas. Aposentou-se ainda no desempenho dessa função , no mesmo jornal. Já exercia o cargo em 1937, quando o Diário Popular interrompeu sua circulação, pressionado por ato do Estado Novo. Como consta, em pormenores,em matéria deste Caderno, que conta a história do órgão centenário, a paralisação foi de dois meses e 20 dias. A crise financeira em que foi mergulhado, gerada pela interferência da ditadura em seus quadros diretivos e sua linha política, não deixava esperanças de breve retorno. Era total a indefinição. Diante desse quadro, o pessoal da redação tomou seu rumo, reposicionando-se em atividades diversas. Grandes dificuldades, porém, enfrentavam os gráficos. Se já era difícil a situação do jornal, constantemente mantida por seus principais acionistas João Py Crespo e os irmãos Osório (Joaquim Luiz, e

Fernando Luiz), agora ela atingira às raias da calamidade. Foi então que Armando Vargas, em conversa com seu ex-companheiro de trabalho, que fora revisor de provas tipográficas, Maximiano Pombo Cirne (atualmente diretor geral da Associação Comercial), lhe fez um apelo para que intercedesse junto à entidade, sugerindo-lhe providencias para tentar a reativação do Diário. Logo o apelo foi transmitido, encontrou eco e veio a desejada solução. Cirne conta o episódio, com estas palavras, em depoimento dado a este jornal, Edição-Documento, comemorativa dos 90 anos, que circulou a 15-16 de novembro de 1980. “Os funcionários da redação – escreve – logo tomaram outro rumo, mas os tipógrafos estavam a passar dificuldades financeiras por falta de mercado de trabalho. Em encontro casual, na rua 15 de novembro, nas proximidades do jornal, com o chefe das Oficinas e

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paginador Armando Vargas, este me fez um apelo, no sentido de levar ao conhecimento da Associação Comercial de Pelotas o momento por que passavam, a fim de ver se ela se sensibilizava e, quem sabe, tomava a iniciativa de adquirir o jornal e fazer com que voltasse a circular, isso porque, em 1935, Mário Moura, diretor de “A Opinião Pública”, solicitara seu apoio e quase o conseguira. “Logo no dia seguinte. na Secretaria da Associação Comercial de Pelotas, à hora do cafezinho, transmiti ao presidente Victorino Menegotto o apelo, quase dramático, que me fizera o Armando Vargas e, de imediato, tanto o presidente como Carlos Gotuzzo Giacoboni, tradutor publico e representante comercial, com escritório e residência num sobrado quase ao lado

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do Diário, bem como José Faustini, Aires Adures, dr. Sylvio da Cunha Echenique, Balbino Mascarenhas e não recordo se presente se achava mais alguém, se manifestaram simpáticos à idéia e que o assunto deveria ser abordado e discutido na próxima reunião da Diretoria. “E assim, na reunião da Diretoria daí a poucos dias realizada, fazendo-se eco das aspirações generalizadas, após ser o assunto amplamente discutido pelos diretores presentes, deliberou-se, por unanimidade,

nomear uma comissão para estudar a possibilidade de fazer com que o Diário voltasse a circular. Dessa comissão, em seguida designada, faziam parte o sr. Victorino Menegotto, como seu presidente, e mais diretores dr. Sylvio da cunha Echenique, Balbino Mascarenhas, Carlos Gotuzzo Giacobono, José Faustini e Aires Noronha Adures. “Como medida preliminar, a comissão, ainda nessa reunião, pediu-me que, na qualidade de diretor geral da Associação, e, ainda, porque conhecia

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bem o problema do Diário, do qual havia sido revisor, revisor, noticiarista e interpretador de telegramas, estabelecesse os primeiros contatos com os proprietários e, ao mesmo tempo, elaborasse um trabalho, no qual deveria focalizar os meios indispensáveis e necessários ao ressurgimento do jornal”. Seguiram-se, então, as providencias, que iriam culminar com o reaparecimento do jornal, a 20 de julho, portanto, dois meses e 20 dias após a paralisação.

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MOVIMENTOS DE UM OPERÁRIO DA PALAVRA Ele chegava cedinho. Com ele, também chegava o carroceiro, anunciando “olha a lenha”. Os paus de lenha, uns em cima dos outros, quietinhos, estáticos formavam um bloco matizado de diferenças de cores e espessuras. Ele, chegando junto com a lenha, trazia a sensação de aconchego, de carinho com quentura, principalmente no inverno gelado. Era sinal de fogo no fogão e de colo, onde sobrava um cantinho para a prole madrugadeira que, mais tarde,acordava para fazer-lhe companhia. Então, quando vinha a lenha e quando a madeira não era tão uniforme no tamanho como parecia na arrumação da carroça, é que entrava em ação o machadinho nas mãos do negro velho para deixar as achas do tamanho das possibilidades de entrarem na fornalha do fogão. E ele cortava os paus, recomendando para as crianças não ficarem por perto por causa das lascas que saiam para todos os lados. Não era um exímio cortador de lenha, o que o fazia preferir o trabalho solitário, para evitar acidentes com a proximidade das crianças. Trabalhava pela noite inteira. E ao chegar em casa, ainda cortava lenha. Queria, urgente, desfrutar do ambiente morninho e acolhedor que o braseiro do fogão espalhava pela cozinha cinza e engordurada, nas primeiras horas da manhã. Na casa, as crianças que amanheciam mais cedo para recebê-lo, vinham chegando, pedindo leite, pedindo pão. Em suas mãos já estava a cuia, o mate. A vida começava ali na volta do fogão. Não ficava tão só. Nem bem dormia e já estava de pé. Sobrevivia do trabalho noturno como gráfico e revisor de jornal.

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Antes de dormir à luz do sol, comia feijão mexido com farinha e muita pimenta. Pimenta braba de fazer chorar o olho. Depois ficava em silêncio, olhando para o prato. Parecia que sonhava um sonho muito bom. Fazia sempre o ritual da manhã: cortar lenha, acender o fogão, receber e atender as crianças, tomar mate, comer feijão, sonhar e dormir. Dormia pouco, pois quando os meninos voltavam da escola, logo depois do meio dia, já estava acordado. Então o menino pedia leite, o menino pedia pão, o vizinho queria o jornal, a moça queria um texto para a sua redação. A cachorrada latia, os gatos miavam. As mulheres nos tanques batiam roupas e cantavam, o rádio tocava, os bebês choravam, as carroças passavam rangendo, os vendeiros gritavam olha a laranja, a banana caturra. A rua estava todinha vivendo e entrava a vida pela casa. Ele fugia para um recôndito secreto e se juntava a uma legião de folhas amareladas, de segunda categoria. Era ele e as folhas em branco, que não eram brancas. As crianças custaram muito a entender o que ele fazia. Até pensavam que era um jogo que jogava. Depois perceberam, muito depois... Perceberam que ele escrevia, quando começaram a ler o jornal dos negros e encontraram o nome dele. Como? Como veio parar o nome dele nesta folha de jornal, indagavam-se. Depois... Muito, muito tempo depois, além do nome dele, descobriram que ele escrevia o sonho bom que sonhava, diante do prato de feijão com farinha. Foi num dia em que falava durante os seus sonhos. Falava contra a discriminação e os preconceitos, exigia direitos iguais, embravecia com os maus governantes, reclamava do custo de vida, de miséria, divulgava o Carnaval, a beleza negra, estimulava a educação, homenageava os operários. Falava sobre o povo que amava. Incentivava o desenvolvimento

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do povo, dizia suas verdades e fazia poemas. Trabalhava muito, colocando a ideologia dos seus sonhos no papel, naquele tempo em que as crianças pensavam que estivesse fazendo um jogo, escondido de todos. E foram descobrindo em suas palavras que ele era um herói, que não guardava para ele o sonho bom. Era um operário da palavra do jornal A ALVORADA. Naquele tempo, escrevia suas idéias no jornal do povo negro, mesmo que sonhasse em frente ao prato de feijão com farinha e estivesse cansado de trabalhar à noite, de tipógrafo e revisor de outro jornal.

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DE BILAC AO NEGRO DRAMA Na escola da vila de um bairro pobre, onde faltava água, onde faltava luz e sobrava barro, sobrava mosquito e muito toque de gaita e violão, os alunos e alunas do quarto ano primário sabiam uma, pelo menos uma das poesias de Olavo Bilac, de cor e salteado: “O Trabalho”. As professoras insistiam nos versos “feliz quem pode orgulhoso, dizer nunca fui vadio e se hoje sou venturoso devo ao trabalho o que sou”. Influenciadas pela poesia de Bilac, as crianças não ficavam paradas. Ao chegarem em casa, queriam ser venturosas a qualquer custo e o jeito mais próximo estava no exercício do trabalho que havia entrado nas cabecinhas de cada uma - “Não nasce à fruta perfeita, não nasce o fruto maduro. Para semear a vida, o trabalho se inventou”. Em casa, ajudavam a estender roupas nos varais, a varrer o assoalho, o chão batido, a dar milho prás galinhas, regar as plantas. Pareciam tão felizes. Alguns meninos iam mais longe para trabalhar de jornaleiros, engraxates, vendedores de frutas, entregadores de lavados que as mães ou as vizinhas faziam, arrumadores de túmulos no cemitério, capinando as catacumbas e jogando água nas flores que as enfeitavam. A ventura de suas primeiras aventuras trabalhistas vinha tinindo com as moedas nos bolsos das calças curtas de riscado. Pareciam tão felizes. Esticavam a parca renda familiar, antes que a renda encolhesse de todo até chegar ao final do mês. A meninada parecia mais venturosa do que a própria ventura apregoada por Bilac. Ficavam donos de uma viva satisfação pela compra de um lápis novo, de um pão sovado, da dúzia de bananas.

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Com a euforia dos versos de Bilac, as crianças do coleginho da vila entravam no mercado de trabalho, muito cedo, transformadas em operários, artesãos ou vendedores de qualquer coisa nobre. Somente não trabalhavam os ricos, estes não moravam ali na vila e nem estudavam no coleginho. Então, somente não trabalhavam os preguiçosos, os doentes ou aqueles a quem faltava algum sentido que o impedia de trabalhar. Estes ficavam em casa, vigiando o portão de entrada, jogando Cinco Marias, fazendo barquinhos de papel, bolinhos de areia. Recebiam o carinho dos irmãos que vinham da rua, quase sempre com um brinde: o pirulito mais recente da bodega. Os meninos e meninas seguidores de Bilac faziam parte de uma escola privilegiada que ensaiava versos para que eles e elas ficassem bem acostumados com o trabalho. Contam que agora, lá na escola da vila do tal bairro pobre, onde faltava água, onde faltava luz e sobrava barro, sobrava mosquito e muito toque de gaita e violão... Lá onde os versos de Bilac podiam fazer a ventura das crianças, agora os versos são outros. De vez em quando as professoras mais ousadas fazem com que os meninos e as meninas aprendam de cor e salteado a poesia do Rap “Negro Drama”, dos Racionais MC’s. Dizem que os meninos e meninas desta escola de ousadas professoras, continuam privilegiados, pois ensaiam versos para ficarem de olhos bem abertos para não caírem em ciladas, para poderem viver, para lutarem pelos seus direitos, para se valorizarem. Na vila já tem água, já tem luz, tem asfalto e não sobra quase nada, a não ser a coragem de viver. Negro Drama (fragmentos) Negro drama entre o sucesso e a lama/dinheiro, problemas, inveja, luxo fama negro drama/ cabelo crespo e a pele escura/a ferida, a chaga, a procura da cura/

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negro drama/ tenta ver, e não vê nada/ a não ser uma estrela, longe meio ofuscada/ sente o drama, o preço, a cobrança/ no amor, no ódio a insana vingança/ negro drama/ eu sei quem trama e quem tá comigo /o trauma que eu carrego/ prá não ser mais um preto .../...passageiro do Brasil... ...periferia, vielas, cortiços/ você deve tá pensando o que você tem a ver com isso/ desde o início, por ouro e prata/ olha quem morre então/ veja você quem mata/ ...me ver pobre, preso ou morto já é cultural ...histórias, registros escritos /não é conto nem fábula, lenda ou mito/ não foi sempre dito que, preto não tem vez/ (então)...

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PERFORMANCE ALIADA Quando a noite estava chegando, as luzes acendendo nas casas e nos palcos, entrava em cena uma atriz negra para fazer sua performance artística, tomando a realidade cruel e anônima de um poema de mulher, para transformá-la em beleza. A atriz brincava com os poemas. Brinquedo tem que ter boniteza. Bailava um monólogo, fazendo trajetos de voltas e saltos com quedas bruscas no solo, ensaiadas quedas, diferentes da vida que não tem ensaio prévio. Dançava com o poema, agitando-se graciosamente nos poucos panos coloridos que lhe cobriam o corpo lépido e jovem. Em sua performance, os versos simples de vidas simples tornavam-se bases construtivas para os seus pés, enquanto liberava gritos com ecos de sonoridade útil aos movimentos que fazia. Na linguagem cênica exibia o pensamento do que já estava pronto para dizer: Memórias Na Cabeça –“A tina escorreu sua água derradeira /e lavou o chão, onde nasceu uma flor/ que subiu seus galhos no redondo adorno/ multiplicando-se coroa/ para a lavadeira da tina de madeira. A humilde Senhora agradeceu o mimo/ e de mãos calejadas/ lavou a cabeça com as pétalas das flores. E eram tantas flores/ que caíram todas, no fundo da tina/ E subiram à tona, eternizando um florido vaso/ com as memórias da cabeça/ da lavadeira da tina de madeira/ dos tanques e dos tonéis/ dos córregos, das sangas/ das fontes, dos rios e das cachoeiras/ das divinas águas do Brasil.” Na metamorfose da apropriação libertária das palavras enclausuradas nos contextos das mulheres, aproximava-se de

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uma velha senhora, abraçando-a, acarinhando-a num repente de aconchego. Descobria as memórias de mulheres negras, sobreviventes das angústias e dos pesadelos. Com seu potencial de artista conseguia revelar no gesto, o mistério do poema que dava vida à vida dessas mulheres. Contam que a artista negra vai chamando a atenção dos desatentos, apropriando-se da realidade do abstracionismo poético para transformar em beleza, qualquer realidade, por mais feia que seja.

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SENHORA DO AVESSO Diziam que aquela senhora era do avesso. Contrariava muitos princípios da boa apresentação e aparência das mulheres da época. Chamava a atenção pelo acervo de roupas que vestia. Muitas saias em cima de outras saias, um monte de panos dependurados, da cabeça às pernas. Parecia uma colcha de retalhos de exposição de artesanato. Era cabide humano de um ambulante guarda-roupa. A estranha criatura despertava os olhares de desaprovação das senhoras direitinhas, sem avessos por fora. Recebia, na frente da cara, os insultos de gente ordinária, que pensa que vale mais que os outros, só porque os outros deixam seus avessos expostos. Mas a mulher não ligava para o alheio e seguia pelas ruas, centrada nela mesmo. Andarilhava até a hora de tomar café da tarde. Parecia hora sagrada de voltar para casa. O importante era voltar para casa, na hora do café. Quem a observava de mais perto, conseguia perceber o seu cansaço, as mãos calosas onde pendurava um rosário de pérolas no dedo indicador o qual, de vez em quando, apontava para o céu. Quando apontava o indicador para o céu, ela gritava: Papai é o maior. Os torcedores de um clube de futebol da aldeia, batiam palmas; dizendo que ela era da torcida, pois estaria dando início ao hino do clube: “papai é o maior, papai é que é o tal, que coisa louca, que coisa rara, papai não respeita a cara.” Mas as beatas da igreja rejeitavam a euforia esportiva. Capaz! Diziam que ela saudava o Pai do Céu. Este sim, era o Maior.

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Ninguém decifrava a chamada que aquela senhora do avesso fazia ao pai. Capaz! Ninguém decifrava. Papai é um nome tão comum que cada um pensa o que quer a seu respeito. Nada de especial revelava a procedência do pai aclamado pela senhora maltrapilha. Mas bah! Ainda tinha a turma que chamava a mulher de louca. Era uma gangue que não entendia de gente e muito menos de gente que andava do avesso. Mas não era uma pedinte. Tinha casa com cama e colchão. Estava fora da linha de miséria das estatísticas da aldeia. Recebia visitas que não resistiam aos seus bolinhos de milho. E o café que preparava com açúcar queimado, era delicioso. Quando voltava para casa, sempre à hora do café da tarde, fazia uma fumaceira no estreito pátio dos barracos onde também era proprietária. Deitava na panela o açúcar para queimar. Preparava suas balas de açúcar queimado, para a alegria das poucas crianças dos arredores. Chamava outras pessoas que não andavam do avesso e lhes oferecia café com pão. Contava casos, muitos casos de negras como ela. De memória lúcida e sanidade total, terminava o assunto com uma pregação sociológica e religiosa: Papai é o Maior. Ele é que sabe quem sou eu. Ando do avesso por opção. Tenho casa, tenho café, tenho milho e tenho pão. As aparências enganam.

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AS IRMÃS LIMEIRA E O SAMBA DE RODA As irmãs Limeira eram remanescentes de africanos que foram escravizados e trazidos para trabalhar nos engenhos e lavouras de cana-de-açúcar do Recôncavo Baiano. Moravam em Cachoeira, na Bahia. Seguindo a maioria das mulheres negras de tempos passados, eram lavadeiras de exímios dotes que ficavam escondidos, enquanto estavam nas beiras das tinas. Durante a semana, de segunda a sexta-feira, não davam trégua ao trabalho. Gastavam as mãos nos lavados das patroas. Mas quando o sábado chegava, viravam as costas para a lavação de roupas. Faziam coisas sempre iguais, porém muito diferentes de esfregar sabão em pano sujo. Revelavam um tanto dos dotes invisíveis. No sábado, o ritual era somente de prazer especial, só para elas. E o prazer começava na sala do barraco que deixavam bem limpinha; vinha da cozinha que deixavam com aquele brilho de sábado. Até recortavam guardanapos de papel para enfeitar os armários das louças, das panelas e caçarolas de barro. Tiravam o pó das molduras dos quadros que mantinham na parede, exibindo as entidades de devoção. O trabalho tornava-se demorado, mas alegre, pois a limpeza dos quadros era acompanhada por um democrático recital de cantorias religiosas. As irmãs Limeira cantavam pontos e rezas, afinando a garganta para o sábado à noite. Depois da faxina caseira e devoção às entidades, as irmãs apoderavam-se de uma nova estrutura energética. Tranqüilas, preparavam enroladinhos nos cabelos para que ficassem crespinhos e bonitos na hora de pentear. Passavam uma lixa grossa nos pés para tirar a grossura dos vincos deixados pelos tamancos. Massageavam as mãos com gordura de Galinha de

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Angola para amenizar as rachaduras do sabão de soda. Davam um banho no sexo, um banho de assento com malva cheirosa. Ficavam novinhas e perfumadas. Cada uma fazia a reparação afirmativa de si mesma. Pronto! Começavam a expandir muitos dotes da boniteza que ficava escondida na beira das tinas. Nos encostos das cadeiras, já lhes aguardavam as saias de chita colorida, de babado grande nas extremidades; as batas maravilhosas de renda branca e os colares de contas, de pedras, de fios dourados e prateados. As sandálias, em cima da esteira, espiavam a arrumação das moças. Estavam prestes a botar o pé na rua. Um baton vermelho, a água de cheiro e... Um sorriso no rosto. As irmãs Limeira ficavam feitinhas da cabeça aos pés, para pegar o rumo do samba de roda. Sábado era dia do samba de roda das lavadeiras, no quintal de tia Gonçala. No quintal se reuniam as lavadeiras das bandas da Pinguela, da Ladeira do Rosarinho, da Ladeira da Cadeia, as lavadeiras do terreiro de Ogum da Lei e as que vinham das vielas próximas da Irmandade da Boa Morte. O samba de roda era uma beleza de reunião dançante. Lá estavam as meninas, em todos os sábados. O seu Júlio cantava um samba bom, que as lavadeiras conheciam. Toda gente batia palmas, na marcação do ritmo. Com a marcação dos tambores e pandeiro, o samba de roda ia ficando melhor do que já estava, na palma da mão. Começava o toque das violas, que estas não podiam faltar, no quintal de Tia Gonçala: - Ai que samba bom. “Xô, xuá cada macaco no seu galho, xô, xuá, eu não me canso de falar”. O samba ficava cada vez melhor, mais animado, mais sambado ao som dos cavaquinhos, dos violões, dos bandolins, no quintal de Tia Gonçala. Êta samba divino. Tirando as festas religiosas, era o único lazer das lavadeiras do lugar.

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Tia Gonçala, distante da roda, sorria de contente. Ficava escutando o samba na cozinha, na volta do panelão onde aprontava o Caruru para servir com feijão e rapadura, no intervalo do samba. As irmãs Limeira eram as primeiras sambadoras a chegar e as últimas a deixar o quintal, onde revelavam muitos outros dotes que ficavam invisíveis na beira das tinas. No domingo, ainda tinham fôlego para subir a ladeira do Rosarinho para ir à igreja. Pediam forças para aprontar os lavados e muita alegria e saúde para tia Gonçala perpetuar o samba de roda. Afinal, era a única diversão das moças de Cachoeira. Durante a semana, a mesma vidinha, lava roupa todo dia. Menos no sábado. Até que veio aquela semana de abril, com chuva o tempo inteirinho. Nenhuma roupa secava no varal. Foi um inferno de molhação. O sábado chegaria e as irmãs, com certeza, não teriam terminada a lavação. Andavam de um lado para outro, tentando solução para o caso da natureza que conspirava contra elas. Procuraram até o seu Maurício Rezador para que benzesse o tempo. O bondoso rezador disse que era fácil, que elas atirassem sabão virgem no telhado e pedissem para Santa Clara clarear, que repetissem sete vezes o pedido. Confiavam muito nas rezas e benzeduras do ancião. Então, mãos à obra, sabão virgem nas mãos e o pedido para Santa Clara, sete vezes. Mas acharam que sete pedacinhos de sabão, somente sete pedacinhos seria pouco para dar a uma Santa que poderia fazer o milagre tão grandioso de parar a chuva. Resolveram jogar sete vezes sete pedaços de sabão virgem em cima do telhado, quarenta e nove pedaços... Bastante sabão, todo estoque da casa, à espera do milagre. Era sexta-feira quando a chuva parou. Foi quando se deram conta que não tinham mais sabão. E agora? Nem dinheiro para comprar. Recebiam o pagamento por semana, na sexta-feira, quando entregavam as roupas para as patroas. E agora? Como lavariam a trouxa acumulada por conta do aguaceiro?

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O sol brilhava, convidando para secar todas as roupas que fossem lavadas e penduradas nas arvores, nas farpas dos galinheiros, nas cercas de taquara. O sol estava forte. As meninas, sem sabão. Foi quando uma delas resolveu subir no telhado para apanhar todo o sabão que haviam dado para Santa Clara. Não tinham escada. Armaram uma “arapuca” de cadeiras velhas para subir nas telhas. Sobe uma delas, vai, vai subindo, vai... Escorregou e...Puft, plaft, foi devolvida para o chão. Caiu de mau jeito, de pernas para o ar, com a bunda grande, bem bundada na areia. Ficou toda quebrada. A outra irmã gritava, chorava. Maldizia o rezador. Lembrava do samba de roda. Naquela semana, o sábado não teve graça para as irmãs Limeira. No quintal de tia Gonçala, o samba de roda corria solto. Cadê as meninas, cadê? Estavam em casa, comentando: “antes de consultar o rezador, a gente nem lembrou do conselho que ‘mãinha’ nos dava com versos:” Tanta roupa prá secar/ e esta água a escorrer. /Vou pedir a Santa Clara/ para cessar de chover./ Meu pedaço de sabão/ vou no telhado atirar/ e repetir por três vezes/ Santa Clara, clarear/ Mas mamãe dizia sempre/ não se da tudo que tem/ nem mesmo se for pro Santo/ porque depois vem o pranto./ Conselho de lavadeira / não pode ser desprezado./para não correr o risco/ de cair lá do telhado/ prá tomar o que foi dado.”

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CONTADORA DE HISTÓRIAS Utilizava-se de todas as técnicas para prender a atenção das pessoas, mas sua maior estratégia, a mais genial era a palavra colocada na hora certa de rir ou de chorar. Dava vida ao sussurro, ao grito, aos mistérios. Contava as histórias, fazendo gestos, caras estranhas, alegres e tristes. Fazia mímicas exóticas. Tirava sons, tudo na boca, de toque de instrumentos, vozes de animais, barulhos de coisa quebrando, de chuva chovendo, de portas batendo, de pedras rolando, de água escorrendo, escorrendo nas encostas dos morros. Encantava os ouvintes. Entre dezenas de histórias, havia uma preferida que recontava para um grupo de senhoras. Lembro que andava de um lado para outro, de olho no olho de quem estivesse ao seu redor. Começava com aquele começo que nem precisava do tradicional era uma vez. Afinal, seriam muitas vezes o mesmo conto. Entrava direto no tempo, lá pelos anos de quando ainda eram crianças, as suas ouvintes. Tinha repertório para todas as idades. Falava pausadamente para que pudessem apreender o que dizia e para que tivessem tempo de colocar no imaginário, a cidade do Rio de Janeiro, de muitos anos atrás. Quando julgava que todas as pessoas já estivessem com o Rio de Janeiro na cabeça, fazia um convite para que subissem o Morro do Boreo, na década de cinqüenta. Cada uma criava o morro, nos pensamentos, e pendurava-o na cidade que já havia imaginado com a imaginação de cada uma. Então, ela começava a descrever o Morro do Boreo com fábricas de tecido, com muitos homens pretos e mulheres pretas que trabalhavam nas fábricas. Falava muito bem da negrada operária da tecelagem. Explicava que as fábricas também tingiam os tecidos.

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No momento em que falava, surpreendia a platéia, enfeitando o galpão onde contava histórias, com dezenas de lenços coloridos que jogava para o alto. Dizia que os lenços de todas as cores lembravam os panos que os negos e negras tingiam nas fábricas. Contava que o tingimento dos tecidos sujava as águas de um córrego do Boreo, onde as lavadeiras costumavam fazer os seus lavados. Falava com tristeza que as águas fluíam coloridas para dentro do córrego, impedindo que as lavadeiras do Boreo lavassem as roupas das patroas, pois ficariam manchadas. As lavadeiras ficavam esperando muito, muito tempo até que a água ficasse limpa. Não tinham condição de saber o dia e muito menos a hora em que as fábricas soltariam as águas tingidas. Nenhum aviso prévio era dado. Se ficassem tingindo os panos por longo período, as mulheres não podiam trabalhar, nem ganhar dinheiro, enfatizava, indignada. A partir daí, parecia que a história iria se transformar em narrativa de queixa trabalhista. Mas... Pausadamente, voltava à geografia do morro. Contava que a maioria das lavadeiras morava na parte bem alta do Boreo e que para chegarem às margens do córrego, tinham que descer uma escadaria, carregando enorme bacia de alumínio, cheinha de roupas sujas. Chamava a atenção para o longo trajeto acidentado que as mulheres faziam, equilibrando na cabeça o bacião das roupas, assentado na rodilha. Para amenizar o conto de trabalho, convidava a platéia para imitar as lavadeiras, descendo o morro do Boreo. Surgia uma, mais uma, uma porção de mulheres para o voluntariado. Improvisava trançados afro-brasileiros com os lenços que havia jogado para o alto e aprontava as rodilhas que ia colocando nas cabeças das voluntárias. As mulheres faziam de conta que desciam o morro imaginário, acariciando a bacia na cabeça. Os gestos, os trejeitos, os bamboleios femininos tornavam o ambiente mais alegre e a história ganhava muita animação. conto.

Passada a hora da divertida performance, continuava o

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Narrava que na volta da lavação, o caminho se tornava mais difícil para as mulheres. As lavadeiras teriam que fazer o trajeto inverso e subir... Subir as escadarias do Boreo com crianças pela mão, bacias na cabeça. Era um exercício nada agradável no cotidiano das lavadeiras. Subida íngreme, degraus desordenados, de espaço muito curto entre um e outro. Apressava a fala e antes que as ouvintes imaginassem a subida do morro, com tombos e tropeços das lavadeiras, revelava um mistério, um grande mistério de proteção que rondava as escadarias. Era uma força vinda do céu que fazia com que ninguém caísse ou tropeçasse na escadaria. Ninguém tombava na subida do morro, nenhuma lavadeira, mesmo cansada, carregando filhos e bacias, mesmo assim, com fome e cambaleantes, depois de tanto esperar que as águas do córrego ficassem limpas para que pudessem fazer a lavação. Ganhavam forças misteriosas que amparavam suas canelas. Tudo era mistério até que começou a correr o boato que na escadaria do Boreo morava o espírito de uma dona que se tornara guardiã de todas as lavadeiras que subiam pela encosta. As mais videntes engrossavam a boataria, jurando que viam a dona se aproximar e dar a mão para as mulheres. As mais sabidas e arrojadas até descreviam o mistério, dizendo ser uma antiga lavadeira do Boreo que cantava e trabalhava sem parar. Até mesmo quando as águas fluíam coloridas, trabalhava tanto. No córrego, Paraí­so das Lavadeiras, enquanto trabalhava, também cantava Jamelão, Dolores Duran, A Noite do Meu Bem, Ave Maria! Esquecia das dificuldades da vida, enquanto a água corria aguaceiro, força vital que ia molhando as roupas, as sujeiras, suas vestes, seu sexo, seu eu, todinha ela que transparecia mulher, límpida, independente da correnteza. O boato corria: o espírito da antiga lavadeira rondava a escadaria. Ela havia feito uma passagem misteriosa para o além e estaria voltando em forma de mistério. Contavam que, em vida, era esquecida dela própria, submissa a um marido castrador de seus desejos femininos e que carregava um grande desgosto conjugal. Corria boca a boca que

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ela cantava na beira do córrego e confidenciava com suas águas coloridas, as coisas íntimas que a atormentavam. Prosseguiam dizendo que em certa manhã, depois de lavar muita roupa, a mulher entrou nas águas e cantou um canto triste sem fim, enquanto ia despindo suas vestes. Ficou nua, nuinha, bem no momento em que a fábrica de tecido tingiu as águas de preto, colorindo a mulher negra com sua própria cor. Olhando o corpo nu, suas formas, os seios e o sexo negros rejeitados, entregou-se ao córrego e foi desaparecendo nas águas, devagarinho, submissa à correnteza. O povo inventa boato em cima de boato e até falavam as Mães de Santo, que a doce Oxum, com lástima da mulher, tomou-a nos braços, envolvendo-a em seu manto, poupando-lhe da exposição da intimidade. Levou-a para que sentasse na escadaria do Boreo, onde descansou dos pensamentos, com dignidade, rodeada de anjos negros. Assim, de boato em boato, as lavadeiras foram sabendo de onde vinha o mistério que as protegia na subida do Boreo. E as mais irreverentes fizeram uma homenagem coletiva para a dona que morreu de baixa-estima. Juraram, ajoelhadas na escadaria do Boreo, que iriam trabalhar, cuidar dos filhos e exigir o respeito dos maridos nas camas ou nas redes, nos tapetes ou nas esteiras, nos catres, nos beliches, no chão batido ou no assoalho... Antes só do que não valorizadas. No final, a contadora de histórias dava um fechamento apoteótico ao que contava. Viva as mulheres! Viva a mulher que, vence a morte para viver na vida de outras mulheres, protegendoas dos perigos. A contadora de histórias sabia contar histórias de fadas, de príncipes, histórias inventadas mesmo... E histórias reais, com muita propriedade.

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CAMBITUS Pois é... Aqui em Brasília me deparei com uma loja chamada Cambitus. E para mim, não foi surpresa que exibisse um painel luminoso com varas finas de madeira em formato de forquilha. Cresci, ouvindo minha família chamar de cambitus, as canelas dos meninos e meninas. E era comum dizerem que as crianças tinham uns cambitinhos, tão bonitinhos. Como nossas canelas eram finas, logicamente, fui concluindo que cambitus tinha a ver com qualquer coisa muito sem volume, do tipo vara de pau. Mais tarde, passei a observar que um certo grupo de negras de minha cidade possuía cambitus, as canelas finas como eu. Não sabia de qual nação africana procedíamos. E até hoje o que sei é que as canelas finas são resistentes e que sustentam, não raramente, uma bela e enorme bunda. Mas voltando à loja Cambitus... A loja. Suas vitrines com cristais e louças, utensílios de couro e adornos femininos, sempre despertavam o meu olhar de passageira de rotina pela frente do estabelecimento. Houve um dia em que adentrei pela loja, quando o olho espiou mais ao fundo e enxergou bonecas negras e uma variada coleção de porta- retratos de todos os tamanhos, expondo rostos negros, masculinos e femininos. Claro que falei comigo mesma: será efeito negreiro da Lei 10.639/2003 ou a dona é negra assumida, de bem com ela própria? Ou é a história dos cambitus que tem a ver com as canelas dos negros? Entrei na loja para bisbilhotar as tralhas. Foi quando me tornei uma freguesa assídua da vizinha Cambitus, politicamente correta na exposição das bonecas negras, nas maravilhosas estampas de negros e negras nos porta-retratos, com oportunidade igual de visibilidade entre as bonecas e pessoas brancas.

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Comprei uma boneca negra para minha netinha. Enquanto comprava, ia lembrando da professora Vera Triumpho que incentivava o brinquedo com bonecas negras, em suas palestras de ativista do Movimento Negro, no Rio Grande do Sul. Ia lembrando do Projeto Bonecas Negras - Referencial de Beleza e Valorização das Origens, das professoras Franquilina Cardoso e Maria Marques, com educativas atividades de auto-estima que, por muitos eventos e escolas do Brasil, vão cumprindo missão de valorizar a beleza das crianças negras, de estimular a identificação delas com as bonecas lindas, feitas com o cuidado de quem sabe o que faz e porque o faz. Ia lembrando... Lembrando... A gente lembra de tudo, embora longe do que se pensa ser tudo. Passei a comprar na Cambitus e com o tempo, além de freguesa e vizinha, fiquei mais próxima de Ivete, a dona da loja. Comecei a manter conversas interessantes com Ivete que é mulher branca, nordestina, plena de uma filosofia de vida muito especial, centrada em ditas e benditas palavras de seus pais. São ditados que lhe movem a mente e os atos no dia-a-dia. Eu já estava acostumada com suas bonecas negras na vitrine, com a luminosidade dos Cambitus no painel, com os rostos de cor, lábios e cabelos que me davam a sensação de pertencer à família deles, nos porta-retratos. Mas teve um dia em que entre os sessenta porta-retratos, havia cinqüenta por cento de caras negras expostas. Ah! Contei um por um. O fato chamou, positivamente, a minha atenção. Elogiei Ivete, meio no galope, correndo, ainda que fosse um sábado de folga no trabalho. Mas driblando a estupidez da corrida, resolvi ficar conversando, indagando, conferindo detalhes dos detalhes que faziam o diferencial da loja, no Plano Piloto branco de Brasília. Ainda lembro de nosso diálogo. – Ivete, sei que você é nordestina, mas de onde mesmo? – Sou lá do fim do mundo do Ceará, de uma cidade chamada Iracema que cresce todo dia, prá baixo, que nem rabo de cavalo. Eu posso dizer isto porque sou de lá e amo minha cidade.

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Mas sei por informações, que não sai do mesmo lugar, não tem progresso. – E este nome da loja, tem a ver com o quê? – Os cambitus são muito utilizados no nordeste. São aproveitados para armação de banquinhos com assento de couro de bode. E ainda, podem ser usados na lateral dos jegues, como suporte para carregar madeiras. Com os cambitus no painel, mostramos de onde somos. Não negamos nossas origens. Fincamos nossa bandeira e quem quiser que venha. Muitos idiotas não gostam de nordestino, mas meu pai me ensinou que gente é gente. – E estes porta-retratos, cheios de caras negras? – Precisei colocar, coisa minha. Se mais tivesse retratos de negros, mais botaria. Entra muita gente aqui, mas algumas pessoas têm atitudes que me marcam e me levam a pensar e a fazer alguma coisa pela valorização delas, para educar. Elas precisam se respeitar. – O que elas têm a ver com os porta-retratos? – Veio aqui uma família de negros com uma menina de oito anos e o pai mostrou para a menina uma boneca negra, elogiando a boneca. Tomei o maior susto, quando a criança falou para o pai: já te disse que negro não entra no meu carro. Olha que problema. Uma criança de oito anos. Não levaram a boneca. – E o pai , falou alguma coisa? – Falou nada. Ela deve ter repetido as palavras do pai. – Mais um caso destes? – Com certeza. Entraram na loja quatro senhoras negras com uma menina negra de seis anos, bonita, muito bonita. Era tão bonita que chamei a criança de princesinha linda. Então a criança, de seis anos, me olhou e disse: Eu, não. Eu não sou bonita porque sou negra. – E a mãe, falou alguma coisa?

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–Falou nada. As quatro mulheres riram muito e eu precisei interferir. Pedi que não rissem , que não era motivo para rir e que tinham que cuidar daquela criança, pois se as pessoas não se aceitam, não poderão ser felizes. A partir daí, tive o cuidado de “caçar” mais fotos de negros e expor na loja. – Tem mais história? – Esta é de cravar. Entrou aqui um senhor negro, meia idade, cabelos grisalhos. Enquanto eu atendia o senhor, passaram uns jovens negros em frente da loja, rindo alto, coisa de garotada. Pois não é que este senhor me disse: isto é uma gentalha, esta raça é uma gentalha. – E o que você falou? – Não falei nada. Tenho feito. Eu faço. Encho a loja cada vez mais de porta-retratos com negros e negras. Faço o mesmo com as bonecas negras. – Então é proposital a grande quantidade de negros nos porta-retratos da Cambitus? – Sou lá do fim do mundo do Ceará mas papai sempre me dizia que gente é gente, não importa a cor, nem de onde vem. Quem, por ventura, se achar melhor que o outro, vai ter dois trabalhos: um é de se achar e outro é de não ser.

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OBITUÁRIO Nossa coluna que tem protagonistas em todos os dias que Deus faz amanhecer, informa e lamenta o falecimento de Antônio Vasconcelos Marques, aos 81 anos. Natural de Rio Grande, não era simplesmente mais um riograndino, mas a representação de muitos ideais de negros e negras da cidade que amava. Torna-se, o velho companheiro, um sopro de energia espiritual e nos deixa muitas lembranças que nos cabem perpetuar. Órfão, ainda menino, conheceu a trajetória da vida, convivendo com alheios que lhe impulsionaram as ações voltadas para o trabalho, a honestidade e a crença nas suas e nas possibilidades dos outros, principalmente da população negra riograndina. Movimentando paralelepípedos, iniciou a trabalhar, calçando várias ruas de Rio Grande por onde a sociedade passava indiferente, enquanto ele se fazia adulto e guerreiro, pensante, progressista. Do calçamento das ruas passou a novos encargos, sempre idealista e acreditando que é possível construir um futuro melhor, investindo nas oportunidades, ainda que raras, de estudo e trabalho. Carregou muito couro nas costas, no Frigorífico Swifft e depois envolveu-se com as atividades no Correio e na Inspeção da Alfândega, no porto marítimo de Rio Grande. Em sua trajetória de negro trabalhador tinha a idéia fixa de realizar ações para o desenvolvimento dos negros de sua cidade e arredores. Pensava muito sobre isso, pois achava que os negros estavam sem referenciais que os valorizassem, sem estima própria, sem orgulho de ser. E a começar por ele mesmo, para que pudesse se tornar um exemplo vivo e presente, lançou-se

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aos estudos e conseguiu ingressar na Faculdade de Direito que funcionava em Pelotas. Durante quatro anos, andou no trem das cinco da manhã, de Rio Grande para Pelotas, até formar-se advogado, aos 56 anos. O dia da missa de suas Bodas de Prata com a Senhora Yvanoska Corrêa Marques, coincidiu com a data de sua formatura, proporcionando-lhe dupla felicidade. Exerceu advocacia na Assistência Judiciária, onde atendia as pessoas desprotegidas, sem condições de pagar por qualquer serviço. Seu primeiro júri foi no município gaúcho de São José do Norte. Depois de muitas causas atendidas e vitoriosas costumava receber “vivos presentes”, algumas galinhas carijós, dos galinheiros da agradecida e pobre clientela. Na época, década de 50, existiam apenas 03 advogados negros, em Rio Grande. Antônio Vasconcelos Marques foi professor voluntário, durante 10 anos, na Escola Marcílio Dias, onde atendia a maioria negra para alfabetizar. Fazia parte dos Bandeirantes da Alfabetização, juntamente com amigos que se dedicavam à causa. Incentivava os estudos dos negros, pois acreditava, acertadamente, que estes possuíam condições intelectuais iguais aos não negros. Nas décadas de 50 e 60, quando chegava ao final de ano, fazia uma pesquisa nas escolas de Rio Grande e cidades do Rio grande do Sul, como Pelotas, Bagé, Jaguarão, Santa Maria e capital Porto Alegre, para saber quantos alunos negros estavam terminando cursos. Conseguia o endereço dos estudantes e organizava uma festa chamada “Baile dos Formandos”, no Clube Cultural Estrela do oriente. Os formandos e formandas, presentes no evento, recebiam homenagens em eloqüentes discursos e um diploma de honra ao mérito. É possível que muitos doutores, mestres, licenciados, bacharéis, técnicos de várias áreas de Escolas Técnicas gaúchas, ao lerem este obituário, irão voltar as lembranças para o Baile dos Formandos, do qual tenham participado. Uma festa de valoriza-

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ção de seus esforços e pela estima própria dos negros, promovida por Antônio Vasconcelos Marques. Antônio foi presidente e fundador do Clube Cultural Estrela do Oriente, situado na rua Vice-Almirante Abreu, onde desenvolvia atividades sócio-culturais para crianças, adolescentes, jovens, senhoras e senhores negros. Participava ativamente da vida social e cultural da negritude, organizando festas, promovendo palestras. Freqüentava também a Sociedade Floresta Aurora Riograndina e outras expressivas entidades sociais de Rio Grande, como “Braço é Braço” e “Recreio Operário”. Entusiasmado com o futebol, fundou e presidiu o Fortaleza Futebol Clube, com sede na rua Francisco Marques, na “Noiva do Mar”, codinome de sua cidade natal. Referia-se com muito respeito ao Cedro, um bairro que, com o advento do Porto Novo de Rio Grande, foi sendo formado por muita gente vinda do interior do Rio Grande do Sul, com grande quantidade de famílias negras que se integraram aos “papa-areia”, apelido que costumava ser dado aos moradores de Rio Grande, quase uma ilha cercada de mar e com muita areia, pela proximidade da praia. Antônio Vasconcelos Marques, viúvo há poucos meses antes da partida, deixa entre nós a filha Franquilina Maria Marques Cardoso, os filhos Antonio Carlos Corrêa Marques e Angelo Albertino Corrêa Marques Representou uma bandeira de luta pela família, pelas oportunidades iguais, pela estima própria da população negra, como costumava dizer. A quem não estava acostumado a ler um obituário assim tão extenso, exponho minhas considerações de que, sendo este um jornal da negritude; e eu, a dona do editorial, uma negra que não esquece das origens e nem do Baile dos Formandos, há de convir que precisam ser destacadas as ações positivas dos cidadãos negros que outros jornais não destacam, nem na vida... muito menos, na morte. Antônio Vasconcelos Marques, descanse em paz, amém! Porto Alegre, 22 de abril de 1988

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BAILARINOS ODARA Diene, Fernanda, Joice,  Priscila e Twanny, realmente estiveram odara, levitando nos pés, com a alma evadida dos poros, embaladas pela sonoridade contagiante dos tambores do Mestre Dilermando e seus príncipes da percussão, Luiz Felipe e Laerte. Muitos aplausos e aqueles olhares de aprovação às demonstrações artísticas do Grupo Odara, marcaram um momento extraordinário de Arte, no auditório do Salão Nacional dos Territórios Rurais, no dia 29 de novembro de 2006, em Brasília. A habilidade artística das meninas cujos gestos cênicos trouxeram leveza e garra ao cenário afro da dança, foram de dar inveja aos beija-flores  do planalto. Oliveira Silveira jamais pensou que sua poesia Quilombos ganhasse roupagem estética no corpo das mulheres odara que, na releitura dos versos, transmitiram a emoção de dançar livres, esculturar cenários de pés, mãos e colorido harmônico para reverenciar os ancestrais, de sorriso no rosto. Com o coral das crianças na canção de Giba-giba, as bailarinas presentearam o público com a docilidade da paz nos passos de silêncio e na expressão das faces, convidando à vida. Na vibração dos tambores,  veio o convite espontâneo à marcação das palmas na platéia que não ficou indiferente e balançou maravilhada com o som e a imagem do bailado das andorinhas negras vindas do sul do Brasil.  Odara, grupo de dança que faz parte do Centro de Ação Social, Cultural e Educacional Odara, da cidade de Pelotas-RS. Iniciou suas atividades pela dança e atualmente dedica-se ao teatro do Oprimido, educação, atividades de implementação da Lei 10.639/2003, nas escolas.

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Rolando, aos pés do chão, subindo aos céus, gingando na metáfora musical prá vencer a adversidade,  no jogo de cintura, as dançarinas de ébano foram um show à parte de sensibilidade artística e muita graça.  Sem medo, desafiante e integrado com outras culturas populares da Catira, do Boi Catirina dos Lençóis, do Mar-abaixo dos quilombolas do  Amapá, das místicas canções indígenas de nua pureza, dos suaves acordes de violeiros apaixonados, o Grupo Odara , de Pelotas, trouxe um recado de disciplina e Arte no portentoso palco onde as diferenças tiveram vez, com muita dignidade. Depois, a bailarina negra chorou... Mas conseguiu falar baixinho:   “tenho a sensação do dever cumprido”. Mestre Dilermando  sorriu e vieram os abraços, os contatos, os convites daqueles que desejavam viver, em qualquer dia desses, outros momentos ODARA.

 

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ATRÁS DESSE MATO MORA UM POVO Chamar um táxi... Sim, o táxi... Era uma cliente da cooperativa de seu Mano. A Cooperativa possuia convênio, há muitas décadas com a Fundação Assistencial Das Andantes, carinhosamente chamada de FADA. A fundação havia sido criada por pessoas vitimadas pelo transporte coletivo. Aceitava, sem discriminação de gênero, sócios e sócias de todos as paradas da aldeia, desde que procurada sob alegação de prejuízos morais, traumas psicológicos e problemas de saúde ocasionados pela utilização de ônibus, lotações, vans, kombis, trens, metrô e assemelhados que circulam pelas vias, recolhendo e empilhando gente. A cliente precisava chegar a um local que ficava a uns vinte e cinco quilômetros de casa. Aconteceria um evento por lá. E nem pensar em perdê-lo. “Eu heim, nem pensar...” Cantarolava, como Kleiton e Kledir. Capaz que não estaria presente. O grande evento “Diferenças Diferentes” prometia inúmeras atrações educativas, sociológicas, inclusivas-dispersivas e mais... Teria discurso de muitos, dando conta do mais ou menos que estava sendo feito para atender às diferenças diferentes dos habitantes da aldeia de Macunaíma. Tudo a ver com o que a cliente da cooperativa gostava: questões divergentes, convergentes, de todas as cores e feitios, com altos e baixos pontos de vista, arestas, furos e crateras. Apreciava uma polêmica, mexendo com estas coisas paradoxais e participativas. Já imaginava a miscelânea de idéias, ao estilo de um evento democrático respeitável. Chamou o táxi. – E aí, seu Mano? Por favor, me busque. Estou em casa. – Oxe!! Tô chegano.

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O taxista, sempre o mesmo, amigo de todas as horas de correria, apareceu em dez minutos. – Bom dia! Prá ondi vamo? –A gente vai prá Academia de Bocha. – Di que? – De Bocha, seu Mano. Um jogo muito antigo, em canchas de chão batido, onde movimentam umas bolas pesadas. Agora, não sei como está o chão. Mas continuam jogando e tem até Academia. – É o mudernismo, dona. O chão se mudifica. Como de hábito, seu Mano vai dirigindo, comentando e encompridando as notícias da aldeia. Depois ousa perguntar: – O que tá acuntecendo na Academia di Bocha? É a sétima currida prá lá. Já levei gaúcha, nordestina, carioca, pessoar do norte e uma indiada, daqui memo, do Goiás. – Está acontecendo um eventão: Diferenças Diferentes, troca de idéias. – Cum quem? Cum gente puderosa? – Poderosa sou eu, seu Mano, que tenho a honra de sua companhia. – Tá animada, dona, brincano di manhã. A gente qui é pobre tem memo qui brincá, sinão morre di tristeza. É um causo tão véio qui nem pensamentu. – Somos ricos, seu Mano. Martinho da Vila canta e nos ensina que sonhar não custa nada. – Mai na verdade memo, num sumu pobre. Tamo cum saúde, tá bão demais. Nem posso mi quexá. Já formei dois minino. Tão fazendo um Póis agora. – Que Pós agora que eles fazem? – Tudo que vinhé dipois: camelô, professor temporário, vendedor de seguro. – Estou sabendo que Pós agora não é fácil. E aí, estamos chegando?

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– Por incuanto tamo chegano pertim do mato. – Como é que tem esse mato perto da zona nobre da Academia de Bocha? – Oxê! E dentro dessi mato mora um povo. – Fiquei curiosa. Que povo é este? – Uma tropa di gente e um muntuera de porco, galinha, jegue, veado, carcará, surucucu, piranha e até lubisomem, tombém. – Seu Mano! Como o senhor sabe disso? Que sistema é este do mato, capaz de tornar invisível uma cambada de povo? – Oxê! O mato acuberta quem tá dentro, pra quem tá de fora num vê. Mai só num sabe, quem num qué sabê. Só nun vê, quem num qué vê. – Então pare o carro, por favor. Quero saber, quero ver. – Pida isso, não. Vai chegá atrasada nu seu rumo. Se acuntente só cum o chero forte du mato. – Quero ver este povo de cheiro forte. –Tá bão, mai vô junto cum a dona. – Venha mesmo. Se tem povo lá dentro, como é que o Mano e eu vamos ficar fora da fita? Entram no mato, como se fossem visitar um grande amigo. A dona extasiada começa a gritar: pelos claros e escuros que estou vendo neste mato, o evento é aqui. Já deve estar na hora do ‘coffe break’. Apavorado com o tal ‘coffe break’ anunciado por dona, seu Mano mais que depressa coça a barriga, deixando aparecer o facão na cintura. Encurta o passo e pergunta: – Qui é isso, dona? – Café com mistura, seu Mano. – E pircisava tê um nome de gringu? Pensei logo numa coffe break, tipo AR 15.

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– Seu Mano quase acerta. É uma arma, mas para matar a fome da manhã. O nome é prá complicar e fazer qualquer pão com mistura ficar mais chique. O importante é que a gente encontre café, aqui no mato. E olhe que povo criativo! Repare ao longe as barraquinhas ornamentadas para o café com mistura. Que povo criativo! O mato está enfeitadinho... Parece até um mapa temático com diferenças diferentes. O evento é aqui, seu Mano, não tenho dúvidas. Devo ter errado o endereço. Seu Mano, pouco ou quase nada entendia de mato enfeitado, de mapa temático, mas entendia muito bem das barraquinhas. Sentiu que a dona estava inventando coisa. O que havia no mato era uma porção de malocas e barracos cobertos com sacos de lixo, com folhas de palmeiras, de capim sapé, barracos de adobe, moradia de Kit invasão, de cooperativa habitacional, barracos de caixotes de verdura, de compensado, as lajes de alvenarias, os puxados. Seriam os enfeites que a dona enxergava? Preocupado, pergunta: – Vai memo inveredá matu adrentu? Vai passá pelus barracu, inté chegá na casa grandi? A dona responde: – Casa grande a gente enxerga da pista. Quero entrar nos claro-escuros invisíveis, do mato. – Tá bão. – Venha seu Mano. Venha se oferecer para o café com mistura. Deve ser um povo solidário. E quando foram conferir o café nos barracos, viram que já conheciam todas as iguarias e que delas ainda guardavam o sabor na boca: café com farinha, mingau de farinha, ovo na farofa, revirado de feijão, milho cozido, água com açúcar, limonada... – Este povo do mato está na gente, seu Mano. – Dona, num diga uma bestage dessa. É muitcha gente. Num cabe tudo ni nóis. – Está bem. Então somos nós que cabemos neste povo, na medida certinha.

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Enquanto conversavam e iam correndo barracos para o café da manhã, eis que a polícia de trânsito encosta na via, desconfiada do táxi parado na boca do mato, já faz tempo. Um dos policiais copia a placa do Fiesta grená, procura o dono, campeia pelo mato, dando tiros para o alto. Muita gente ainda está na metade do café, outros e outras em jejum, mas todos e todas correm. Parecem estar com medo. – Dona, vamu imbora. A polícia intro nu matu. – Agora, não. Deixa a polícia ir embora.Tenho medo de bala perdida. –Dona, vamu imbora. Nu mei dessi povo tombém tem arma escundida. Bala perdida num vem só di caboco da polícia. Quando o povo parou de correr da polícia, o contexto do mato ficou convidativo a um belo passeio. Natureza pródiga, linda. Dava até para esquecer do recente tiroteio. Seu Mano e a dona caminharam por entre os claro-escuros com a maior naturalidade. Contaram pelo menos uns duzentos e vinte agrupamentos de índios, estimaram estar rodeados de milhões de pardos e pretos e um número menos expressivo de caras pálidas. De barraco em barraco, de norte a sul do mato, não faltou a escuta dos sujeitos. A dona perguntadeira provocava o falatório com toda gente. Depois da estimativa estatística e das falas, ficou ainda mais convicta da idéia de que o evento era ali mesmo, no mato, tal a densidade representativa das diferenças diferentes. Decidiu que ainda não seguiria caminho para a Academia de Bocha, pois aceitaria o convite para o almoço com o povo do mato. Se o café da manhã estivera original e farto, o almoço prometia um festival de comeragem. Viva a Fome Zero! Já começava a sentir água na boca, só de imaginar o buffet daquele povo. –Seu mano, resolvi ficar para o buffet. –Qui coisa é essa? É católica ou du Candombré?

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– O buffet não é festa religiosa. Qualquer irmão ou irmã tem direito a ele, se tiver emprego, vale-refeição, dinheiro, crédito na praça ou participar do Fome Zero, da Bolsa família, do caderninho de fiado do vendeiro. É um ritual de comida com quantidade de pratos feitos, atirados em cima de uma mesa. As pessoas vão passando em volta e servindo as suas próprias quentinhas. É o maior luxo. Você faz isso todos os dias no “buteco da Val.” – E pircisava tê um nome de gringu? – Mania de falar gringo prá deixar a fala mais chique. Vivemos no paraíso das aparências, até na línguagem. Os barracos mais ao norte do mato colocaram na mesa um prato quente: “Pombo ao Tucupi”. O pessoal da cozinha explicou que o prato fazia parte da culinária do desenvolvimento sustentável, pois aproveitavam a fauna e flora disponíveis nas proximidades do mato, onde não faltavam pombos para serem abatidos à mão. E as folhas de jambu, colhiam um pouco mais longe, mas valia o sacrifício. Disseram que as folhas eram das boas e que adormeciam a língua todinha, dando o gostinho especial do barato que é o prato. Nas malocas, mais ao centro, expuseram para degustar uma salada de dueto de frutas, com o aproveitamento de jacas e mangas. Fizeram questão de dizer que a salada era gostosa, nutritiva e econômica, com frutas recolhidas do chão, ali mesmo. O chão era um tapete de frutas caídas. Se quisessem, poderiam até variar: salada de trio a quádrupla, juntando jambos, abacates, goiabas e congonhas que enfeitam a rasteira do chão. Nas barraquinhas, mais ao sul do mato, a delícia ficou por conta do prato de entrada, batizado de “Sopão do Nenê. Explicavam que era gentileza dos catadores de lixo que ganhavam verduras e legumes do Nenê da Ceasa. Mas deixavam bem esclarecido que em todos os pontos do mato poderiam fazer a mesma sopa, pois também existiam catadores de lixo, uma Ceasa ou qualquer coisa parecida e muitos nenês. Quando sentiram o cheiro de cuscuz, de feijão, de tapioca, de buxada de bode, de pamonha, de baião de dois, de dobradinha,

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de acarajé, de frango, peixe e churrasquinho, já estavam fartos e enjoados de tanto comer Pombo ao Tucupi, sopão do nenê e salada de dueto. Começaram a recusar a oferta. Viva a Fome Zero! A dona, muito atenta, percebeu a tamanha organização daquele mato. Eram visíveis as presenças do Povo Negro Organizado, da Associação dos Quilombolas, da Confederação Indígena, do Movimento dos Sem Universidade, do Movimento dos Sem Tudo, da Associação de Mulheres, do Movimento Orgulho Gay, do Orgulho Lésbico, da Cooperativa dos Catadores de Lixo, da Agricultura Familiar, da Associação de Mães Adolescentes, da Fundação Assistencial das Andantes, da Assistencial dos Deficientes, do Movimento Pró Cotas Para Negros na Universidade, do Sindicato dos Artesãos e mais um montão de sindicatos, movimentos e associações, principalmente ecológicas, já que precisavam defender o meio ambiente do mato e o desenvolvimento sustentável, muito presente na hora do café com mistura, do ritual da comida. – E aí seu Mano? Esta paradinha no mato nos deu novos saberes. De minha parte, estou muito satisfeita com a pesquisa de campo... Opa, pesquisa de mato. – A gente num vai agradicê o que aprendeu? A dona nem chega a dar resposta, quando foi pega pela cintura pelo povo do mato. Eles e elas lhe colocaram uma cartamanifesto nas mãos para que fosse lida fora do mato e voltasse para o mato em forma de ações. Poderia ser lida até na Academia de Bocha. Já seria um bom começo. A dona pega a carta com as duas mãos, com a esquerda e com a direita para garantir que não a perderia. – E agora, Seu Mano, que responsabilidade! Vão embora para o mega evento das Diferenças Diferentes. A cliente do Seu Mano chega meio encabulada com o atraso. Mas... No palco, índios cantavam uma canção em Tupi-guarani; na rua os negros tocavam tambor e as negras dançavam; na porta

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principal, entre os claros reflexos das luzes do palco, o Bumba Meu Boi espiava, aguardando a hora de entrar e já entrando. A cena deixa a dona menos preocupada com a entrega da carta-manifesto. Afinal, ali estavam alguns representantes do povo do mato. Procuraria um dos responsáveis pelos grupos que desenvolviam históricas atividades culturais e, missão cumprida. Deixaria o documento com os mais falantes, tanto faz homem ou mulher. Eles tocariam o manifesto adiante, fazendo discursos aos poderosos. A dona escuta um padre falar de bom jeito, eloqüente, muito capaz de tudo pela felicidade da juventude do povo do mato. Nem titubeia. Entregaria para ele a carta-manifesto, esquecida das diferenças da Igreja com a população negra, com as tribos indígenas. Ah! Usaria o padre como porta-voz daquela gente. Discretamente, entrega-lhe o documento. O padre lê, relê e fala, nada discreto, ao microfone: vou guardar comigo esta carta-manifesto do povo do mato para entregar a Deus, se por ventura conseguir uma cota de entrada no céu, quando eu morrer. Avisa lá que eu vou entregar ao Poderoso. Avisa lá, avisa lá que eu vou... Avisa lá. O padre falou tão alto e tão cantado, que os participantes do evento começaram a cantar, também: “Avisa lá, avisa lá, avisa lá ô ô, avisa lá que eu vou” ... Rolou o maior axé.

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INTERROGAÇÃO DE UM SILÊNCIO Quando senti as dores do parto do primeiro filho, a senhora mais próxima de mim, lembrou-me que naquele momento, eu estava com um pé na terra e outro na cova, porque um parto apresentava este risco, de parir e de morrer. Foi dizendo-me que algumas mulheres nem chegavam a parir e morriam, na agonia da dor, na hora do grande mistério de botar gente no mundo. Achei de mau gosto o lembrete macabro que poderia chamar de agouro inoportuno. Mas era uma senhora muito realista e ao mesmo tempo cheia de superstição. Acreditava até no pio da coruja, prenunciando azar. Como era gente que fazia parte dos meus afetos, incorporei muito de suas crenças, com o passar dos anos. Ela se despediu deste mundo, há muito tempo atrás, depois de um dia em que todas as corujas resolveram piar. Mas deixou comigo suas lembranças e entre as mais fortes, as observações do pé na cova na hora do parto, da coruja piando e anunciando a morte. A vida prosseguiu. Enfim, existem tantas lembranças de gente com suas coisas, ensinamentos, situações, sentimentos, criando um mundo paralelo com o tempo real, em nossas mentes. Não fosse o tempo que vai se encarregando de colocá-las para dormir em algum compartimento de nosso inconsciente, ficaríamos congestionados de tantas recordações. Acontece que às vezes somos indisciplinados com o tempo e acordamos as lembranças para viver com elas, a alegria, a tristeza, o amor, o sucesso, os fracassos, qualquer coisa de que estiver necessitando nosso estado de espírito.

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Costumam falar que o tempo consegue adormecer totalmente as lembranças em nós. Costumam dizer que é o melhor remédio para matar as lembranças. Deste modo, eis o tempo, Senhor da Eutanásia, remédio absoluto e soberano para fazer perecer muitos fatos e gente de nossas recordações. Mas de outro modo, é um remédio eficaz para curar seqüelas e feridas provocadas pelas recordações que consegue abater. Tempo...Fica sendo o responsável por tantos processos vitais e tão desiguais. Estou delirando com as lembranças. Saindo da linha, logo hoje? É o meu tempo mental que ainda não processou as ausências e toma conta de meu controvertido mundinho de revolta e calma cotidianas, vivendo com aparente naturalidade. Já deveria ter ido ao mercado para buscar as frutas das oferendas aos Orixás. Já deveria ter preparado os saquinhos da sorte com grãos de lentilha, moedas e folhas de louro, para distribuir aos amigos na virada do ano, desejando-lhes fortuna, amor, saúde, estas coisas que alguns acreditam ser a felicidade. Mas logo hoje, as lembranças me surpreendem e me atrapalham, imobilizam meus passos para impedir-me de sair à rua, de estar mais feliz para enfrentar a correria do último dia do ano. Não consigo alcançar a soleira da porta. Estou pesada, carregando um ano que está indo embora. As lembranças da senhora que me anunciava os riscos do parto chegam em mim com uma força descomunal e me arrasam. Conseguem deixar-me atormentada, cobrando o quanto não soube tirar proveito de seus avisos. E tinha razão. Vou ficando cada vez mais lerda, no último dia do ano. Faço um balanço geral na mente. Vejo o filme que passa: em minha sala de trabalho alguém muito especial anunciava, neste ano, que estava quase na hora de chegar seu bebê e eu nem havia lhe prevenido dos perigos que corria, que toda criação corre riscos. Imaginei que via o rosto de meus colegas, todas elas e ele, cada um a seu jeito, transitando silenciosos pelo ambiente. Mas não era verdade que via todos. Ele não estava mais.

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Lembrei então que ele chegava, depois de percorrer a estrada onde as corujas piavam. Beijava cada uma das mulheres, trazia flores, sorrisos e a luz de suas crenças em um mundo melhor para a população negra, pela qual trabalhava com a maior dedicação. E recordei que em certa manhã anunciou que estava quase na hora de nascer o seu bebê. De acordo com a senhora que prenunciava coisas ruins na hora do parto, estava correndo risco de vida em tão delicado momento. Mas deixei que se envolvesse sozinho, com todas as dores, sem alertá-lo dos perigos. E, afinal, como pensar em desgraça para quem de sorriso lindo, de vida inteligente e serena, tinha a juventude de vinte e oito anos a favor? Deixei... E como pude deixar que ficasse transtornado de tanta dor, parindo angústias, andando pelas ruas, mutilado e carente, de olhos vendados? Andou pelas vias onde as corujas piavam. Perambulou absorto e crente em suas possibilidades de parir. Mais crente ainda nas possibilidades dos aplausos dos negros e negras para os quais entregaria o seu bebê. Não decifrei o moço. Ninguém decifrou o moço. Mas colocaram-no ao colo, em muitos colos diferentes. Retiraram a venda de seus olhos. Limparam as manchas de suas vestes e o banharam de muito carinho. Não conseguiram encontrar a dor que sentia e ficaram todas, doendo, fracassadas. Na metamorfose da insanidade e depressão, ele ainda teve forças para sussurrar que o cantor tinha razão de cantar “mais solitário que um paulistano”. Ele, o Dragão, era um moço paulista que trabalhava entre as asas e eixos do Distrito Federal. Sentia-se muito só, embora estivessem com ele, as amizades que o abraçavam. Era noite e estava na hora de descansar. Mas não descansou. Soltou-se das amarras de todos os braços que o abraçavam, ensaiou uns passos de dança que gostava de dançar; anunciou que podia tudo, até tomar café, fora de seus hábitos costumeiros. Beijou meu rosto como um filho amado, um beijo grande para que eu pudesse dividir com a Magda, a Renata, a Angélica, a Paula, a Rosângela, a Luciana, a Andréia, a Daisy, a Marina, a Fernanda,

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a Shaiane, a Neide, a Janete, a Cristina, a Socorro, a Benilda, a Valdecir, a Silene, a Zélia, a Diony, a Amrith ,a Angelita, a Nilda , a Amsha, o Leonardo, o Alexandre, o Renato, o Carlão, o Oscar Henrique e com as outras pessoas que me escapam da memória e com aquelas que só ele sabia existir. Era noite e estava na hora de descansar. Mas se agitou. Preferiu conversar sobre todas as coisas em que ninguém acreditava, somente ele. Ninguém acreditava, mas respeitava seus delírios. Disse que havia descoberto o segredo da rosa. Não contou o segredo. Na madrugada, foi até a janela do sexto andar do prédio de uma das asas por onde costumava transitar ... E mirou as rosas pequeninas do jardim, lá em baixo, muito lá em baixo. Alçou um vôo livre, sem asas, levando junto o bebê que paria. Foi ao encontro das rosas. O segredo da rosa deveria ser tão sublime que ele não achou nosso mundo merecedor de sabê-lo. tral.

Acontecia, entre tantos, mais um suicídio no Planalto Cen-

O bebê que paria, imaginário livro dos seus delírios, com certeza era um dos remédios para acalmar-lhe as dores. O corpo nu ainda estava no chão. Meu corpo tremeu e a alma chorou diante do inexplicável. Escutei piarem todas as corujas da Asa Sul. Piavam... Piavam... barulhando no silêncio dos sorrisos que ninguém sorria. Por que? Por que Sérgio Pinheiro?  Sergio Pinheiro, 28 anos, era paulista, solteiro, geógrafo, intelectual, ativista do Movimento Negro, técnico da equipe dos Projetos Inovadores de Curso, do Programa Diversidade na Universidade, do Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada , Alfabetização e Diversidade. Lutava pelas causas da negritude, para que negros e negras tivessem uma vida digna, com direito à educação e cidadania. Seu anunciado bebê era um livro que idealizara com a transversalidade de conteúdos do Ensino Médio, com as questões étnico-raciais Seus delírios provinham de doença psíquica que foi acelerada por muitas angústias que acompanham o cotidiano da população negra, resultando em um surto psicótico que o levou, inconsciente, a se atirar da janela do sexto andar de um prédio da Asa Sul, em Brasília - no Distrito Federal, onde estava em companhia do casal Daisy Cadaval Basso e Max Basso, uns de seus amigos prediletos.

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O que vamos dizer ao seu pai? As lembranças de Sérgio ainda estão muito presentes e me atropelaram com a tristeza no último dia do ano de 2006. Uma questão de tempo...Remédio, cura, sei lá. Precisava cumprimentar as minhas amizades. Não queria enviar um cartãozinho qualquer com aquelas mensagens impessoais e chatas de final de ano. Exercitaria como se fala de coisas alegres com a mente repleta de lembranças tristes. A negrada amiga e maravilhosa recebeu, no último dia do ano de 2006, qualquer coisa a mais, qualquer coisa a mais que eu, que superasse a tristeza. Enfim, encaminhei pelo correio eletrônico um cartão desconvencional e continuamos conversando. Precisamos conversar sobre todas as coisas, mesmo que seja a descoberta do segredo da rosa.

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ROTA EXISTENCIAL PARTE 2 Vinte anos de literatura e a revelação surpreendente das experiências da escritora, no envolvimento com os outros e outras, nos bastidores da escrita e dos lançamentos de seus livros. É FOGO – editado em 1987 - Descobertas e Polêmicas MEU NOME PESSOA – TRÊ MOMENTOS DE POESIA – editado em 1989 – Cidadania no Morro O SOL DE FEVEREIRO – editado em 1991 - Negritude na Periferia ODARA – FANTASIA E REALIDADE – editado em 1993 - Mística e Irreverência NEGRADA- editado em 1995 - Registros Vivenciais do Universo da População Negra TIPUANA – editado em 1997 - Realidades da Escola Pública de Maioria Negra O ENCONTRO – editado em 2000 - Saudades e Contextos de Diversidade AS FILHAS DAS LAVADEIRAS – editado em 2002 - TRIBUTO ÀS Mulheres Negras e Mobilização Social OS CORPOS E OBÁ CONTEMPORÂNEA – editado em 2005 - Transgredindo “Normas Culturais” e Trabalhando o Imaginário Coletivo Sobre os Corpos Afrodescendentes (parceria com o Professor Nelson Inocêncio)

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É FOGO – ANO 1987 DESCOBERTAS E POLÊMICAS É Fogo, meu primeiro livro publicado, aconteceu depois de um conto irreverente que escrevi e com o qual ganhei o primeiro lugar no concurso literário em comemoração aos 25 anos de um colégio público que ainda existe no pé do Morro da Cruz, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Deveria ter sido o único conto inscrito no concurso. Ninguém estava se interessando muito por escrever história de colégio de morro. Também já havia editado dezenas de “Pacotinho”, jornal de integração e de valorização dos funcionários de uma multinacional que tinha um bocado de preto trabalhando de empacotador, caixa-operadora e na faxina geral. Pois é... senti vontade de escrever sobre as famílias negras que acreditam na educação dos filhos e filhas, para o alcance da liberdade. Desejava fazer uma homenagem pública para a minha mãe, de modo que também pudesse homenagear a mãe das outras e outros. Providenciei a homenagem. Inventei personagens, às vezes confundindo-me com eles. Organizei o recado em contos, crônicas e deboches. Escrevi para fora o que estava há muito tempo escrito para dentro. O livro foi catalogado com a predominância de ensaios. Foi o meu primeiro enquadramento literário, pela bibliotecônoma, Doutora Iara Neves. Nem imaginava que contar a trajetória de famílias negras em todos os contextos, principalmente no educacional, pudesse causar tanta polêmica, pela mexida em assuntos que estavam escondidos na nossa sociedade de pseudo democracia racial. De forma natural, até pela própria vivência no magistério, não faltou a critica à pedagogia das escolas, na maioria pouco

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preocupadas em fazer o aproveitamento das experiências, tradições, valores e hábitos dos alunos negros e dos pobres. Por conta destes momentos me detive nas abordagens de racismo institucional e nas questões de preconceito e discriminação racial nas escolas públicas. Estes fatos estavam muito presentes na minha consciência e como eram e ainda são fatores impeditivos do desenvolvimento da população negra, jamais poderiam ficar ausentes, quando o meu desejo era focalizar o esforço, a coragem e o empenho redobrado das famílias negras que almejavam “dias melhores”, acreditando na escola. Muitos textos minaram o Diário Popular, um dos jornais de Pelotas, falando sobre meu livro, a partir de uma crônica a favor do seu conteúdo, da escritora Zênia de Leon que escreveu “Comentando É Fogo” (20/12/87). Mostrou-se muito corajosa ao compactuar que existiam, sim, preconceitos e discriminação racial nas escolas, incluindo o Instituto de Educação da cidade, colégio público para a formação de professores. A matéria da escritora foi aplaudida por muitos e odiada por tantos outros que não aceitaram a idéia de que o atual Instituto de Educação Assis Brasil tivesse sido uma instituição que primava pelo mau exemplo de atitudes racistas e preconceituosas, em sua trajetória educacional. Zênia precisou escrever mais artigos de defesa das idéias do livro, sendo um deles de título “Comentar Livro Também é Fogo”, em que também defendia a minha integridade física e moral, pois estava sendo acusada de ser a possível mentora de um anunciado lançamento de bomba , no Instituto de Educação, em dezembro de 1987. Senti que havia “cutucado” em coisa muito velada e que a maioria das pessoas não estava preparada para saber ou não queria saber destas coisas acomodadas e escondidas que prejudicavam o desenvolvimento dos negros. Na ocasião, pessoa de minha família, um primo caminhador e comunicativo, Cláudio da Silveira Dutra foi procurado para entregar meu livro a um Delegado de Polícia para que pudesse tirar conclusões se o seu conteúdo poderia ter incitado a atos

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subversivos, como a anunciada bomba no colégio. Felizmente, o Delegado absolveu É Fogo, mas eu estava trazendo problemas para a família, tirando o sossego das pessoas que ficaram bastante angustiadas pelos acontecimentos. Neste livro movimentei a fauna brasileira, com uma história de bichos para ilustrar a perseguição aos professores que “saiam da linha” e começavam a facilitar a crítica e o debate da realidade social, em suas aulas. Chamados de subversivos, eram arrancados de suas escolas como pessoas de ideologia comunista, perturbadoras da ordem. Conheci, pela própria vivência, estas páginas repressivas. Refleti, na história de bichos, sobre as conseqüências que poderiam trazer para uma coletividade que estava sendo proibida de pensar. Ainda bastante ingênua, não imaginava que a escrita que denunciava o preconceito e as discriminações, fosse um exercício tão cruel. Preocupada com a submissão da mulher negra aos companheiros, muito marcante nas famílias, resolvi referendar alguns avanços a favor das mulheres. Focalizei situações problemáticas que acompanhavam a liberdade, ainda pouco assimilada pelo feminino. Não poderia ter deixado de fora os acontecimentos de um tempo que revolucionou muitos costumes sociais, diretamente relacionados com a mulher, tais como a saída expressiva das mulheres para o mercado de trabalho, o advento da pílula anticoncepcional, a mobilização das mulheres para trabalhar fora das cidades de origem, adesão a novos costumes no vestuário, as possibilidades e provocações mais libertárias dos relacionamentos afetivos. Outra questão abordada foi o alcoolismo e a impotência das famílias para superação desta doença, o que levou o livro a ser socializado entre freqüentadores de grupos do AA (Alcoólicos Anônimos). É Fogo serviu de subsídio para vários estudos em cursos de Pedagogia, em Metodologia da Supervisão Educacional, em Didática, em cursos de formação de professores. Tive notícias.

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A produção foi independente. Algumas livrarias de Porto Alegre, de Pelotas e de São Paulo ficaram com o meu livro para divulgar e comercializar. No ano de 1987, a Distribuidora Martins Livreiro, em Porto Alegre, organizava a Rua do Livro, evento cultural em prol da leitura e da aproximação do público leitor com os autores. Recebi convite para tomar parte no evento, o que me oportunizou contatos inesquecíveis com muitos leitores e a proximidade com escritores brancos do Rio Grande do Sul. Quando procurei divulgar meu trabalho, tive algumas frustrações. Uma delas aconteceu por conta da atitude de um gerente de livraria da capital gaúcha que, ao ver uma silhueta de negro na capa do livro, nem ao menos procurou saber do seu conteúdo e foi logo dizendo: “não nos interessamos por estas questões, por este “tipo de literatura”. A partir daí batizei o que escrevia de Literatura Marginal, a que ficava à margem de todas as outras existentes, a que dava medo até de olhar a capa do livro, causando mais desconforto do que biografia de bandido, pois havia uma delas, exposta na vitrine da tal livraria. É Fogo teve seu lançamento no inverno de 1987, na noite de 18 de agosto, no Partenon Tênis Clube, com o apoio do seu Departamento Cultural. Providenciei a integração com o programa musical “O Choro é Nosso”, criado e dirigido por Lúcio Quadros, com a participação de Jessé Silva e apresentado por Roque Araújo Viana, da radiofonia porto-alegrense. Na mesma noite aconteceu um painel de discussão sobre o conteúdo do livro, com a participação de Noemi Bueno e Zeni Vasques, duas educadoras gaúchas, da socióloga nordestina Eridã Magalhães, de um representante do Movimento Negro, Gustavo Paiva e de Wanderlei dos Santos, apresentador do livro. Muitas surpresas aconteceram, além das atividades culturais, pois minha irmã, Tereza de Lourdes Cardoso Sampaio, Boanerges Fagundes, Nélo Fagundes e Juarez Fagundes, todos da cidade de Bagé, com excelente experiência em coquetéis e recepções, na capital gaúcha, organizaram uma decoração belíssima do local, onde montaram farta mesa de comes e bebes.

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Fiquei desajeitada, diria até encabulada com aquele cenário de aparente elitismo, pois morava na simplicidade, sem mordomias, sem o luxo das toalhas que cobriam as mesas até os pés, uma das condições que aprendi com eles para deixar qualquer festa, considerada de primeira linha , como diziam. Surpreenderam o povão convidado, com uma festa de elite. Acabei por aceitar o banquete, pensando na homenagem que fazia para mamãe, Maria Yolanda Vargas da Silveira. Ela deveria estar feliz, onde quer que estivesse. Não faltou o conjunto musical de um comerciante e amigo da comunidade que chegou com os gaiteiros, tocadores de violão e de pandeiro. O seu João Pereira me trouxe um carinho muito especial dos moradores do Morro da Cruz. Senti em cada convidado e convidada, uma pessoa ilustre que era responsável por aqueles momentos que eu estava vivendo. Tinha muita gente ao meu redor. Sabia que eu era conhecida no morro onde lecionava e onde, também trabalhava em um supermercado do bairro, mas não imaginava como iriam aceitar-me como projeto de escritora. Era importante que a comunidade me aceitasse. Não tive decepções. Além da comunidade, participaram do evento, outras pessoas muito interessantes do Movimento Negro. Entre elas estavam o Dr. Antônio Carlos Cortes e o Dr. Eloy Dias dos Angelos que colocou-se à disposição para ajudar-me nas futuras publicações, tão logo soube que toda aquela produção de edição dos livros havia sido fruto de meu esforço pessoal. Ficou impressionado, positivamente, ao ver a quantidade expressiva de público e o excelente nível do evento. De posse do conteúdo do livro, tornou-se admirador de minha escrita. O Dr. Eloy Dias dos Angelos, um Senhor negro, jornalista e advogado, passou a acompanhar o meu trabalho, juntamente com sua esposa Maria Clara. Veio a ser meu padrinho, quando fui convidada para tomar posse na Academia Pelotense de Letras, na gestão de Zênia de Leon, a professora e escritora que defendeu o livro É Fogo.

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Faço parte da Academia desde o ano 2000, cadeira 19, tendo por patrono o Conselheiro Antônio Ferreira Vianna, ilustre cidadão de história bonita e filantrópica. Fundou escolas, no Rio de Janeiro, dava assistência a menores abandonados e mendigos. Mas ajudou a redigir o texto “capenga”, socialmente incorreto, sem reparações de perdas para os escravos, enfim, o texto da Lei Áurea que a Princesa assinou para libertar os negros. Que ironia!

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MEU NOME PESSOA – TRÊS MOMENTOS DE POESIA – ANO 1989 CIDADANIA NO MORRO Estava bastante encorajada a escrever, com a certeza de que continuaria com o trabalho independente, mas já com o aceno de estratégias para garantia do pagamento das publicações. Intelectuais negros de Porto Alegre, entre eles Dr. Eloy Dias dos Angelos, Dr. Wanderlei dos Santos, advogado e diretor do Departamento Cultural da Escola de Samba Imperadores do Samba; Dra. Iara Neves, Bibliotecônoma e docente da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; amigos e familiares das cidades de Pelotas, Porto Alegre e Bagé, no Rio Grande do Sul, cotizaram o valor financeiro da tiragem gráfica de meu segundo livro, recebendo em troca o que batizaram de “Pacote de Lançamento” , composto de uma quantidade de exemplares para cobrir o valor da cota financeira que cada um dispensou. Dei uma pausa na prosa e entreguei os originais de 63 poemas, antes engavetados, para o poeta Jorge Alberto Mendes Ribeiro, do qual muito apreciava as mensagens espiritualistas, e para o Padre Ângelo Costa que já conhecia e apreciava meu trabalho, desde a crônica que havia escrito sobre a Rua Santa Maria, uma das vias de íngreme acesso ao Morro da Cruz, em Porto Alegre, no Bairro Partenon. Estimularam a publicação do livro de poesias e assinaram a apresentação. Em suas páginas iniciais, Padre Ângelo me consagra como “primeira professora” e poeta do Morro da Cruz. Transcrevo a seguir, o que escreveu. “O peixe nada, o pássaro voa, o homem reza”. No Morro da Cruz, milhares de pessoas há anos vem encontrando um lugar para morar nas encostas, com muito sacrifício,

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mas ao mesmo tempo com esperanças que se expressam no belo panorama, canções e devoção popular a São José e a Santa Cruz. Maria Helena veio morar aqui e como professora sempre lutou, vivendo os ideais dentro da escola, junto aos seus alunos, como libertadora e transformadora para uma nova sociedade. Aquela poesia que sempre viveu, Maria Helena agora expressa com singeleza e coragem. O Morro da Cruz entre esperanças encontra na voz da “primeira professora” a sua canção e poesia. Tenho a alegria de recomendar o primeiro livro de poesia do Morro da Cruz. “O peixe nada, o pássaro voa”. O homem do morro reza, luta e é poeta, através de Maria Helena. Os poemas deste livro foram muito bem recebidos pelos leitores. Vou contar a história de alguns deles. Contrariada com muitas falas que considerava equivocadas e grosseiras, com acentuada posse das questões da negritude, por uma minoria mais preocupada com bandeiras político-partidárias e pessoais, do que com as ações para o desenvolvimento da população negra como um todo, escrevi o poema “Quero Mais que Falas”, meu primeiro protesto poético. Na escola, convivia com professores minados de preconceitos contra negros , contra pobres, contra as mulheres do morro que eram tidas como vagabundas, fedorentas, gente incapaz, irresponsável. Diante do que ouvia e sentia, veio uma resposta no poema “Prece do Negro ao Professor de Qualquer Cor”. Aos poucos, tornei-me cúmplice de outros escritores e poetas negros de Porto Alegre, entre eles o notável professor Oliveira Silveira e os companheiros João Batista Rodrigues, Ronald Augusto, Paulo Ricardo de Moraes, Jorge Froes, professor Guarani. Próxima deste grupo senti que fortalecia meus ideais de sociedade igualitária, mais justa, menos hipócrita. Foi quando escrevi “Neguinha na Rede”, “Palavras”, “Verdade”, “Plim...Plim” e muitos outros poemas.

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É interessante como vai acontecendo o encontro com os outros parceiros da palavra. Fui inventando estratégias para encontrá-los e dirigi-me, por muitas vezes, ao Naval, um Bar da “Roda do Mercado Público” de Porto Alegre, bastante freqüentado, na época, por respeitáveis intelectuais e poetas do universo da negritude, onde deixei um bilhete na parede dizendo que iria procurá-los em tal dia e hora. Fui aguardada e com eles passei a dialogar mais naturalmente. Furei um bloqueio de gênero, porque a roda era só de homens. Tive coragem! Somamos forças! Passei a acreditar que poderia colaborar com a minha escrita para a auto-estima e valorização dos negros e negras e, por extensão, das pessoas do morro onde eu morava. O Jornalista Eloy Dias dos Angelos elaborou matérias a respeito do livro, as quais foram publicadas nos jornais A Opinião Pública e Diário da Manhã, de Pelotas, e Jornal do Comércio, em Porto Alegre. Uma das emoções fortes que este livro provocou, veio da diretora de Escola Pública. Professora Iacy Luzia Filgueiras Fisher que declamou publicamente a Prece do Negro, como ficou mais conhecida a poesia Prece do Negro ao Professor de Qualquer Cor. Fez análise de cada frase, comprometendo-se, na ocasião, a incluir no currículo da escola uma série de atividades contra a discriminação e o preconceito. Cumpriu até onde conseguiu cumprir sua promessa, em sua passagem breve pela vida. As poetisas Nina Fola e Vera Lopes me deram a maior alegria, trazendo para suas performances, alguns poemas do livro. Não sei declamar poesias e quando escutei a diretora do colégio do morro, as poetisas e crianças transmitindo as palavras de meus poemas, na escola, nas casas de famílias negras, na Biblioteca Ligia Meurer e na Casa de Cultura Mário Quintana, fiquei sensibilizada e com uma carga aumentada de responsabilidades, principalmente por causa das crianças. Elas estavam declamando Neguinha na Rede...Eu não estava mais conseguindo controlar por onde andava o que escrevia. Senti medo, também. Medo de me perder, envolvida com a Literatura Marginal, até admitir que

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aquilo não era tudo, mas também não era só um complemento, fazia parte de mim. Reparo que usei as expressões meu poema, minha poesia, muitas vezes. Isto me deixa constrangida, pois não gosto de posses. No entanto, uma reflexão surge como luz repentina e me deixa mais tranqüila, levando-me a reconhecer que as expressões meu e minha não estão colocadas no sentido do egoísmo, mas de referência. Os poemas são nossos, dos protagonistas dos versos que escrevo: as negras, os negros, as crianças, os militantes negros, a paisagem humana e geográfica, os lugares... Enfim, tudo e todos que mexem com o subjetivismo e o arrebentam no verso. O lançamento do livro foi no dia 27 de abril de 1989, no Partenon Tênis Clube , por meio do Departamento Cultural, com o apoio do 39° Núcleo do Centro de Professores Gaúchos. Aconteceu muita festa com a animação do conjunto musical do violonista Moisés Machado. Os amigos Boanerges, Nélo e Juarez, os bageenses que eram povão e entendiam tudo de festa de primeira linha, novamente estiveram em ação com os coquetéis e saborosos doces e salgados. Estavam me deixando mal acostumada com a mordomia. Não podia detê-los. Acreditavam na minha Literatura Marginal. Os poemas continuaram sua trajetória. Em outubro do ano 2000, uma agradável surpresa: o jornal Aquarius que circula em Porto Alegre, no interior do estado do Rio Grande do Sul, em Florianópolis e Curitiba, trouxe na capa a poesia “Infantil”, de minha autoria, na edição em que homenageava as crianças. Crianças são bens maiores e o fato me alegrou, deveras.

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O SOL DE FEVEREIRO – ANO 1991 NEGRITUDE NA PERIFERIA Escrever o Sol de Fevereiro foi prosseguir com a teimosia de trabalhar com as questões que não interessavam a patrocinadores. Coloquei no papel uma porção de fatos que aconteciam e ainda acontecem nas comunidades de maioria negra e pobre, dando continuidade à Literatura Marginal. Na época, no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, encontrei um artista plástico negro “Djalma do Alegrete”, autografando o livro Aspectos da Negritude no Rio Grande do Sul, organizado pela Professora Vera Triumpho. Ele havia ilustrado todos os artigos do livro, com muita sensibilidade. Encantei-me pelo trabalho de Djalma, principalmente pela tela de Xangô que abria o capítulo sobre religião. Iniciamos uma conversa muito interessante sobre a população negra. Djalma do Alegrete, intelectual e estudioso das questões afro-brasileiras leu todos os originais de contos e crônicas de O Sol de Fevereiro e me ofereceu um presente: ilustrou o livro com a sua habilidade mágica no bico de pena. Também me deu um conselho: “continue escrevendo”. Em troca de seu presente e conselho, fiz muitos bombons de chocolate, que ele degustava com prazer, enquanto desenhava. Um de meus hábitos era alternar o exercício da escrita, com alguma atividade artesanal. Aprendi muito com Djalma do Alegrete. Ele me conduzia para a valorização de meu trabalho e me estimulava, cotidianamente, a escrever cada vez mais. Estimulada por Djalma, intensifiquei os estudos sobre a população negra, analisando livros, jornais, revistas, filmes, assistindo a palestras, participando de seminários e encontros. Não

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desprezava os subsídios históricos para imaginar meus contos, lendas, crônicas e sátiras, com a cabeça posta na observação do meu próprio contexto ambiental e emocional de mulher negra. Neste período, troquei muitas idéias com o Deputado Federal Mendes Ribeiro, do qual, como já citei, admirava e respeitava o trabalho poético. Suas correspondências tinham um cunho espiritualista muito presente e me convidavam a seguir acreditando na tarefa de escrever. Dizia que era admirador de meu trabalho, porque projetava na obra, com muita intensidade, os anseios de justiça para o desenvolvimento dos cidadãos. O Sol de Fevereiro teve seu lançamento na Casa de Cultura Mario Quintana, na Biblioteca Érico Veríssimo, com utilização do espaço Maurício Rosenblat, tendo em vista a necessidade de espaço amplo para as atividades festivas e artísticas que já faziam parte da programação de lançamento de meus livros. Pela perseverança dos amigos Eloy Dias dos Angelos e Wanderlei dos Santos, na divulgação de meu trabalho, três jornais da capital gaúcha já estavam se pronunciando sobre a obra, além da coluna informativa de lançamento de livros. No Jornal Zero Hora (03/01/92) foi veiculada a matéria assinada por Clarissa Berry Veiga, a qual se referia ao livro O Sol de Fevereiro, como “Radiografia Simples da Discriminação Racial”, escrevendo que: “não existem culpas, revanches ou caça às bruxas no conteúdo de seus textos. Ela propõe o crescimento humano pleno, sem mesquinharias ou ódios. E, sobretudo não desperta a pena ou compaixão. Apenas mexe com os sentimentos de humanidade.” O Sol de Fevereiro também foi lançado na Sala Fernando Osório, da Biblioteca Pública Pelotense, em 27/09/91. Após o evento, fui procurada pelo Jornalista Carlos Cogoy, do Diário da manhã – Pelotas, o qual entrevistou-me e publicou a matéria “O Sol de Outubro”, em que fez a análise literária e ideológica de meus três livros já publicados. A Literatura Marginal ganhava um respeitável e poderoso simpatizante. O Diário Popular – Pelotas (27/09/1991), no seu espaço de Educação e Cultura, também noticiou e comentou sobre o livro,

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ocasião em que trouxe as palavras do presidente da Biblioteca Pública Pelotense, Senhor Joaquim Salvador Pinho, destacando a importância de ceder espaço aos escritores locais, enfatizando que “a Biblioteca Pública, como qualquer órgão cultural, não pode ficar parado nunca, precisando crescer e expandir-se.” O amigo Djalma do Alegrete me acompanhou nas jornadas em Pelotas e Porto Alegre. Enquanto eu trabalhava com o livro, ele realizava a exposição “Cabeças Iluminadas”, mostrando suas telas de Orixás e outras de personalidades negras que retratou com variadas técnicas pictóricas. Por conta do misticismo e religiosidade de Djalma, meu livro ganhou as páginas de jornais de cultos afros e fiquei muito feliz, pela simpática fonte midiática que se abria. Enfim, são tantas histórias dentro da história. Contar sobre o Sol de Fevereiro gera outro livro. Dos quatro companheiros bageenses que organizavam a festa gastronômica, restavam três, pois Boanerges Fagundes, havia falecido. Mesmo assim, com a saudosa ausência de Nédio, como ele era mais conhecido, continuaram com as mordomias que mais tarde vieram a servir de ganho para a minha família. Aprendi com eles, todos os passos para montagem de mesas de festas, cortes de frutas, arranjos de cascatas com cerejas e ovos de codorna, as exigências das toalhas que cobriam os pés das mesas, os copos e taças que não podiam ser descartáveis, plissado de toalhas, maneiras de servir as comidas, as bebidas, distribuição de guarnições de pratos e talheres, efeitos de luz sobre as mesas, preparo de coquetéis, enfim...Tudo me foi ensinado e aprendido. Durante bom tempo aumentei a renda familiar, organizando junto com minha irmã do coração, Tereza de Lourdes, muitas festas de 15 anos, de casamento e de jantares para os poderosos. Meu filho Éder, Operador de Áudio, comandava a discoteca Palco Som e nos acompanhava com a música para as festas. Reparem como surgem as estratégias que vão dando aquele detalhe a mais para o enfrentamento das realidades de cada um. Jamais se despreza uma nova aprendizagem.

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Os queridos amigos que entendiam tudo da elite, mesmo sendo povão, haviam aprendido essas coisas portentosas na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, servindo ao luxo dos políticos, com o dinheiro público. Então ficavam felizes de servir ao meu público leitor, na maioria negros e negras trabalhadores e trabalhadoras. Sorriam de felicidade, pedindo autógrafo, para mais tarde. Meu tributo a eles, nestes 20 nos de Literatura Marginal.

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ODARA, FANTASIA E REALIDADE – ANO 1993 MÍSTICA E IREVERÊNCIA Em 1993 continuava intenso diálogo com Djalma do Alegrete, intelectual, dedicado estudioso das religiões afro-brasileiras. Seus livros, dicionários e seus “papos”, saudáveis e enriquecedores tornavam-se envolventes e criavam uma atmosfera mística com os termos iorubanos que pronunciava. Na época, fui observando que os compositores letristas de samba enredo utilizavam muitas expressões iorubanas, geralmente no refrão, onde os termos apareciam isolados, mais como vibrações e nem tanto como continuidade do conteúdo da poesia dos sambas. Pensei então em “como seria interessante” utilizar os termos iorubanos nos contos e crônicas, empregando-os nas comparações e citações ou mesmo, utilizando-os nas narrativas com uma colocação adequada, integrando-os com a Língua Portuguesa. Estaria revitalizando palavras que ainda permaneciam da africanidade, porém só na religião e nos sambas de enredo. Foi quando nasceu o livro Odara- Fantasia e Realidade, com a inclusão dos termos iorubanos. O livro valeu-me publicidade nos jornais de cultos afros, entre eles, Afro Conesul, Jornal dos Orixás e mais um organizado pela Mãe de Santo Dirce da Oxum, que acolheram minhas idéias, com a presença de vocabulário religioso, nos contos que não possuíam, essencialmente, fundamentos de religião, embora a valorização dos Orixás. As histórias dos Orixás são fascinantes e me estimularam a possibilidade mágica de inventar novas histórias ligadas ao nosso próprio cotidiano, onde eles aparecem. Fiz isto em Odara.

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Tive dois contos que autorizei para leitura teatral e encenação, sendo eles “Os Negros de Cá” e “Iniciação”, encenados em Viamão e em Porto Alegre, no Colégio Júlio de Castilhos, no Glória Tênis Clube e na Sociedade Floresta Aurora, no Encontro de Mulheres Negras. O conto que gerou muita reflexão, polêmicas e bons momentos de discussão foi “Rebelião dos Sambistas”, merecendo publicação na página de capa do Suplemento de Cultura do Diário da Manhã , editado pelo jornalista Carlos Cogoy (Pelotas/RS) e no jornal Ensaio Geral, editado pelo radialista Delmar Barbosa (Porto Alegre/RS). O Barro Duro do Laranjal, um dos contos do livro OdaraFantasia e Realidade, serviu para subsidiar estudos acadêmicos na área de Educação e de Gênero. Odara- Fantasia e Realidade foi um ato concretizado de coragem. Sou apaixonada por todos os seus contos. Continuava editando os livros, auxiliada por um grupo de voluntários formado por familiares e amigos que me davam suporte moral e financeiro para que eu continuasse escrevendo. Eram elas e eles: Eloy Dias dos Angelos, João Armando Vargas da Silveira, Rubens Braz Vargas, Wanderlei Fernandes Santos, Antônio Centeno, Adão Centeno Ana Maria da Silveira de Oliveira (minha irmã, falecida no ano 2000), Tereza de Lourdes Cardoso Sampaio, Eunice Carvalho Vargas, Odete Ferreira da Silveira, Maria Helena Vargas Santos, Iara Neves, Maria Vicentina da Silva, Anete da Silva, Sirlei Mauat, Zeni Vasques e Tânia Porto. O grupo que inicialmente, nem tinha nome, caracterizavase pela união de pessoas que acreditavam em meu trabalho. Mas de repente precisou ser batizado às pressas. Vou contar o episódio do batismo. Buscava e ainda busco espaços públicos que têm a ver com a Cultura para marcar a presença da população negra nestes espaços. Acredito que tenha que ser assim. Não me intimida esta busca. Tive bons orientadores: Eloy, Djalma, Wanderlei e os amigos de Bagé.

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Em 1993, a dirigente da Biblioteca Erico Veríssimo, muito entusiasmada com a possibilidade da Casa de Cultura Mario Quintana ter mais um lançamento de meus livros, desta vez “Odara – Fantasia e Realidade”, não poupou esforços para orientar as providências necessárias para o acontecimento, no mezanino da Casa de Cultura. A Biblioteca estava em reparos e não estaria disponível para o evento. Providenciei os trâmites necessários para o evento, na Casa. Mas... Quando faltavam uns 15 dias para o lançamento do livro e me apresentei para as tais pessoas responsáveis pelo Mezanino, elas embargaram até os convites, dizendo que os mesmos não poderiam sair em nome da Casa. Estranhei, uma vez que havia cumprido todos os expedientes solicitados. Inutilizamos os convites em nome da Casa. Teríamos que imprimir novos convites, em nome do grupo de meus apoiadores. Mas qual seria o nome do grupo, ainda pagão? Foi quando Djalma do Alegrete sugeriu : Grupo Cultural Rainha Ginga. Estava feito o democrático batizado. O lançamento do livro, no Mezanino da Casa de Cultura, foi um sucesso. Muito público e atividades artísticas. Distribuímos até mercado para os convidados. Durante e depois do evento, aconteceram os pedidos de desculpas, das pessoas responsáveis pelo espaço e que nos levaram a inutilizar os convites. Vieram com a merda prosaica, com a hipocrisia que os negros já conhecem: “houve um mal entendido.” Mas nós entendemos perfeitamente a mensagem– A Casa de Cultura Mario Quintana, tendo pessoas não negras e elitistas como responsáveis pelo Mezanino, não poderia correr o risco de convidar para o lançamento de um livro de escritora negra e pobre e cuja capa do livro era uma Filha de Santo. Certamente pensaram em contra-cultura. Em relação ao nome do Grupo, o poeta afro-brasileiro, escritor e historiador gaúcho Oliveira Silveira costuma me perguntar qual Rainha Ginga o grupo representa, porque escrevemos Ginga, com a letra G e ele diz que é com a letra J. O nosso querido

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poeta não conhece a história desta rainha com G. Explico que é toda aquela mulher negra que gosta de movimento, que tem gingado irreverente. E fica por aí. Precisamos contar nossas histórias. Pelos fatos, podemos constatar os avanços ou decadências sociais.

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NEGRADA – ANO 1995 REGISTROS VIVENCIAIS DO UNIVERSO DA POPULAÇÃO NEGRA Em 1994, estava escrevendo, como colaboradora, no DM Cultura, suplemento cultural do Diário da Manhã (Pelotas/RS). Os contos e as crônicas giravam sempre em torno do universo dos negros. O jornalista Carlos Cogoy, responsável pela edição do DM Cultura, consolidava-se, na cidade de Pelotas, como notável aliado para a divulgação dos assuntos da cultura negra, incluindo minha Literatura Marginal. Iniciei uma série de matérias sobre a música popular afroriograndense, ocasião em que entrevistei vários compositores e cantores negros do sul, em busca de material para publicação. Entre eles, entrevistei Wilson Ney, Carlos Medina, Paulão da Tinga, Cláudio Barulho e Jorge Moacir da Silva, apelidado de “Bedeu”, famoso suingueiro cujas músicas haviam sido gravadas por Bebeto, Originais do Samba, Wilson Ney, Carlos Medina e outros de excelência vocal. Entrevistar Bedeu foi muito difícil, pois ele gostava de andar pelos becos e vielas, muitos dos quais eu ainda não conhecia, em Porto Alegre. Mas fui adentrando pelos becos para encontrálo, até chegar em um deles, onde faziam samba na rua. Apaixonei-me pelo lugar, cheio de negros e, principalmente, crianças. Depois da entrevista e da matéria publicada, permaneci visitando o Beco para colher depoimentos sobre o lugar. Havia encontrado o Beco da Guaragna e por ali fiquei durante seis anos, realizando trabalho voluntário de educação. Já não era mais a escritora, mas a professora negra comprometida com sua gente. O Beco da Guaragna é hoje reconhecido como Quilombo Urbano e seus moradores tiveram a regularização das moradias.

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Sinto-me feliz de ter colaborado com o meu livro Negrada, para que os fatos acontecessem. Neste livro, descrevo o beco, no conto Paisagem Negróide, com passagens históricas que levaram a Prefeitura de Porto Alegre a pedir que eu confirmasse os dados para juntar aos processos de regularização das residências. Isto aconteceu, por volta do ano de 2001, quando já residia em Brasília. Enquanto trabalhava com as crianças, com as senhoras e com o pessoal da Escola de Samba Integração do Areal da Baronesa, da Avenida Luiz Guaragna mais conhecida como beco, aliava meu discurso à prática. Andei por outras histórias da negritude da capital gaúcha, de Pelotas, de Ijuí, de Santa Maria, de São Leopoldo e São Lourenço do Sul. Quando me afastei das atividades do Beco da Guaragna, não chamavam mais o lugar de Beco do Mijo. Minha primeira incursão voluntária havia sido pela auto-estima das crianças, ao solicitar que um jornalista tradicional da cidade, não mais se referisse ao Beco daquela forma pejorativa, pois as crianças estavam sofrendo com o fato, na escola. Cada história fazia com que me apaixonasse mais intensamente pela população negra. O livro Negrada é paixão. Prosseguia, sem volta, com a Literatura Marginal. Em 1995 me inscrevi no Concurso Literário “Histórias de Trabalho”, organizado pela Usina do Gasômetro, da Prefeitura de Porto Alegre. Em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, havia sido criada uma categoria especial de premiação para contos e era para histórias de trabalho da população negra. Fui contemplada com o primeiro lugar na referida categoria, com a narrativa “Conversa de Negro.” Neste mesmo ano fui Patrona da 16º Feira do Livro de São Lourenço do Sul, a convite da Prefeitura Municipal, Secretaria Municipal de Educação e Cultura, na administração do Senhor Jorge Alberto Duarte Grill. Fiquei feliz pela perspectiva de participar do evento e preparei uma fala para a abertura da feira, destacando o significado social do momento pela integração com os negros, tendo em vista que o município é uma colônia alemã,

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historicamente discriminadora, cheia de espaços de segregação racial, tanto dos negros, como dos pomeranos, alemães mais pobres. Mas nem tudo saiu perfeito, em termos pessoais, pois uma das organizadoras da feira que, talvez nunca tivesse lido meus livros, tratou de pelo menos conhecer um capítulo de É Fogo. Justamente no tal capitulo estava a minha tentativa de análise sociológica a respeito do comportamento das mulheres que se ausentavam de casa por conta do mercado de trabalho e ainda nem estavam preparadas para enfrentar diferentes situações libertárias que transitavam e ainda transitam pelo mundo feminino. A senhora, pela qual tinha e ainda tenho muita admiração pelas qualidades que possui, resolveu ficar tapada de ódio com a minha escrita. Não entendeu que eu retratava uma época e me insultou publicamente, fazendo juízo de que havia classificado as mulheres de São Lourenço, ela inclusa, como prostitutas. O desagradável acontecimento poderia ter sido um “prato cheio” para os jornalistas que ficaram sabendo do ocorrido e muito a fim de colocarem o fato na imprensa. Consideraram que o incidente foi de muita grosseria para com a patrona da feira e que poderia reforçar a idéia de que a cidade não tratava os negros com dignidade. Mas solicitei que não fizessem alarde e fui atendida. Ressaltaram minha postura ética e permaneci até o final da feira. Circulou no jornal A Tribuna, de São Lourenço do Sul, a matéria “O Amor é Aqui”, assinada pelo jornalista Carlos Cogoy, relativa ao livro Negrada. Ao final do evento, no jornal O Lourenciano, publicaram meu “balanço das atividades da XVI Feira do Livro de São Lourenço do Sul”, no qual destaquei a importância do excelente intercâmbio cultural do município, ressaltando as atividades culturais de alemães, pomeranos e negros, no decorrer da feira. “ Você viaja, sonha e conquista o mundo, através da leitura”, de autoria do estudante afrodescendente Luiz Fernando Brochado, foi o lema da feira. Se, em outro momento de minha rota, for convidada para apadrinhar feira de livros, uma das exigências para aceitar o con-

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vite é saber se as organizadoras já leram o que escrevi. Elas precisam entender que com a Literatura ando junto com as senhoras, com os senhores, com as meninas, com os meninos, com as prostitutas, com os gays, com as lésbicas, com os cachorros e cadelas. Todos e todas se conhecem e se respeitam. Minha imaginação não tem limites e a cumplicidade é permitida com todos e todas. Nas páginas do livro Negrada, infelizmente, faço homenagem póstuma ao grande amigo Djalma do Alegrete, um homossexual muito amado que para mim é eterno, com sua arte de traços fortes e cores quentes, com seus conselhos de afirmação e sua religiosidade que me tomava de encantamento pelos Orixás. Faleceu em abril de 1994, deixando histórias, muitos registros de vida, pedindo que organizasse sua biografia. Djalma suscitava ódios ou muito amor, até depois de morto. Lembro-me que no dia de sua missa de sétimo dia, passei pelo mercado público para encontrar alguns escritores e poetas negros que por lá transitavam. Fui convidá-los para homenagear Djalma. Jamais esquecerei do que falou um dos ativistas do Movimento Negro, quando ouviu meu convite aos amigos poetas: “prá que render homenagem a um cara 3 p, preto, pobre e puto...” Dei um tempo para os meus pensamentos. Eles não conseguiam entender tanto ódio de um semelhante pelo outro, pelo fato de opção sexual. Vários espaços, junto da comunidade negra, iam se abrindo para divulgação de meus trabalhos, fora de Porto Alegre, também. Lembro-me quando o Grupo Cultural Herdeiros de Zumbi, da cidade de Ijuí, interior gaúcho, convidou-me para participar de suas atividades, na Casa Afro, durante a Expo-feira da Indústria e das Etnias. São vivências que permanecem junto comigo. Na rodoviária de Ijuí, fui logo achada por quem me aguardava, pois eu era a única negra, descendo do ônibus, naquela região de imigrantes europeus. Apresentou-se para mim uma alemã de porte avantajado, simpática, sorridente, vestindo as cores da bandeira angolana e dizendo-se militante do Movimento Negro. Trocamos axé. Iniciei a caminhada com Hulânia, meu primeiro

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contato, cara a cara, com os Herdeiros de Zumbi. Depois vieram os outros herdeiros: negros, alemãs, alemãos e os filhos miscigenados, formando uma paisagem humana policromática. O entusiasmo daquele pessoal era contagiante pela participação na feira. Comentavam:”a gente não vai desistir...Tem um monte de presunçosos, pensando que mais vale mas sempre tem um pouco de interessados em ajudar... Vamos lutar prá ver nos colégios um programa que valorize a população negra, a educação é muito importante... É caminhando que se chega lá. Não é impossível, só está difícil”. Recordo-me que ainda não tínhamos chegado ao parque do evento onde estava a Casa Afro, porém já sabia de muita coisa. Eles e elas, herdeiros de Zumbi questionavam:”nossa casa é pequena, perdemos um local maior e melhor prá outra etnia, estamos lá no fundo, quase saindo prá fora, mas estamos; precisamos de mais espaço porque a casa fica muito lotada. O pessoal vem atrás do vatapá ,do bobó de camarão, do amalá, da nossa feijoada e da nossa alegria. A nossa música é alegre. Suspendemos a cachaça. A casa fica cheinha de branco e de brasileiro. Mas poucos negros podem vir até a Casa Afro”. Descobri que os brasileiros eram os não negros sem origem européia direta. Também descobri que a maioria negra vivia nas encostas dos barrancos, muito longe do parque. De fato, a Casa Afro era um pequeno espaço, mas muito bonito e acolhedor. Era uma tenda de alvenaria, com restaurante, cozinha, copa e uma área externa com boa cobertura. Nesta casa autografei muitos livros e conversei com os leitores. Encontrei Orientadores Educacionais, Professores, brasileiros recém chegados à cidade, pesquisadores de Universidades, estudantes de primeiro e segundo graus, muitos visitantes de Santo Ângelo, Santa Maria, Erexim, um grupo de alemães idosos que vieram saudar a Casa Afro, cantando ao som de gaita de boca. Por volta das dez horas da manhã seguinte, ao de minha chegada, os Herdeiros de Zumbi foram tomar parte em um programa de TV. Organizaram-se em um palco ao redor de pequenina mesa com as comidas típicas afro-brasileiras, tendo ao lado

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a bandeira de Angola, país africano a quem prestariam homenagem. O cenário para a gravação do programa estava sendo preparado com a presença de alemães, italianos, árabes, holandeses, poloneses, letos, suecos, espanhóis, portugueses, afro-brasileiros, todos juntos, um painel de cultura viva. Mas quando o programa ao vivo foi para o ar e chegou a vez da fala dos negros, o minutinho aquele de mostrá-los, a repórter foi interrompida para outra matéria televisiva. Quando retornou, ignorou o Grupo Cultural Herdeiros de Zumbi. Deixou os negros de fora. A imagem da feira ficou branquíssima. Negro não existia. O grupo retirou-se do palco, como forma de protesto. O programa prosseguiu com um desfile de cachorros que levou bons minutos. Amigos e simpatizantes dos Herdeiros de Zumbi, acompanhavam em casa a programação de tv e ficaram angustiados pela invisibilidade da negrada. Alguns dirigiram-se ao parque para verificar se estávamos vivos. Organizadores da Feira e muitos brasileiros procuraram o grupo para emprestar solidariedade. Por conta das senhoras alemãs, Herdeiras de Zumbi, casadas com os negros de Ijuí, mães de crianças afrodescendentes, teve início um protesto tumultuado contra a produção do Programa e dos seus repórteres. Zelavam pela auto-estima dos parceiros e dos filhos. Valdir, o presidente do grupo denunciou o fato para o Conselho de Participação e Desenvolvimento da comunidade Negra do Rio Grande do Sul. Senti que precisava registrar aquelas ocorrências.Fiz uma crônica que veio a constar do livro Negrada. Não poderia calar a revolta que vivenciamos no dia em que os negros perderam espaço até para cachorro, na televisão. Trago para a rota o lamentável ocorrido, em respeito e admiração aos Herdeiros de Zumbi, em reverência às crianças que presenciaram aquele absurdo, pelo carinho a todos e pela surpresa inusitada das alemãs herdeiras de Zumbi que perderam a compostura e disseram palavrões aos repórteres, considerando-

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os capachos do sistema. Não queriam escândalo, nem desavenças. Queriam apenas ocupar um espaço na televisão como todos os outros grupos étnicos participantes da Feira. Os bastidores da Literatura Marginal representam em minha vida um palco onde diferentes sujeitos desempenham papéis que provocam as mais contundentes emoções, da alegria à profunda tristeza, como o caso dos “3 p” e do programa que trocou a fala dos negros, por latido de cachorros. Em compensação, jornalista e radialistas negros, como Antônio Carlos Cortes, Oscar Henrique Cardoso, Cleber Giró, entre outros prestigiavam a cultura Afro-brasileira, e oportunizava a presença de escritores negros em seus programas radiofônicos para que pudessem divulgar suas idéias. Fiz parte desse processo nas rádios Princesa, Bandeirantes, 1120, Rádio Pelotense e, mais recentemente na Rádio Comunitária – RádioCom, de Pelotas, com Glênio Rissio. Outra fonte de incentivo veio do Griô, Acervo da Memória e do Viver Afro-brasileiro, instituição pelotense que organizava lançamento e divulgação de livros de escritores ligados à temática da população negra, entre outras atividades de pesquisas, palestras, sessões de estudos e atendimento de jovens.

 

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TIPUANA – ANO 1997 ESCOLA PÚBLICA DE MAIORIA NEGRA Em 1997 comecei a presenciar, diretamente, a mudança de comportamento das crianças e dos adolescentes nas escolas públicas de periferia de Porto Alegre. Presenciei fatos muito fortes de desestruturação familiar causada pelo desemprego, com reflexos na escola; violência de alunos e alunas para com os professores e destes para com os alunos, inclusive com tratamentos estereotipados de vagabundos, desordeiros, gente do morro, burros. Em paralelo, muitos professores querendo reverter a situação para buscar a paz na escola, o respeito aos alunos, o entendimento de seus problemas, pensando em mudanças para motivar os estudos, a permanência na escola e chamando a comunidade para participar do processo educacional. Enfim, como a vida lá fora, a escola com suas diferentes faces. Mas, cada vez mais violenta, a Escola tornava-se um lugar perigoso para a integridade física de todos, alunos e professores. Para enfrentar o caos com dignidade, era preciso redobrar o otimismo e até sorrir, de vez em quando, prá depois chorar. Diante de tudo que via e acompanhava nos colégios, fui criando os textos do livro Tipuana. Muito próxima das realidades da Escola Estadual Santa Rita, no Morro Santa Teresa, em Porto Alegre, tive oportunidade de avançar na criação, tal a fartura de situações boas e ruins que se vivenciava dentro e fora dos muros do colégio. O Tipuana que, além de nome do livro, é nome de uma escola pública imaginária à beira do real, resume-se nos antecedentes da sua fundação e no seu funcionamento, passando por várias décadas com características marcantes. Defino-o como um observatório de onde imploro que não o deixem morrer, pois a

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educação, ainda, é a nossa grande esperança e a escola pública não pode perecer. Ela é que atende os mais miseráveis. O Tipuana... Um sofrimento, uma realidade forte, pautando a imaginação. Foi catalogado como a minha primeira novela social. Dediquei o livro à diretora Maria Helena Vargas Santos e às vice-diretoras Naureci La Rocca e Lidia Horta, aos professores, funcionários, pais, alunos e comunidade da Escola Santa Rita de Cássia, em Porto Alegre. Também fiz um destaque especial ao Pernambuco, professor Waldemar de Moura Lima, militante do Movimento Negro e Secretário de Educação em Sapucaia do Sul, em 1996. Durante a criação do Tipuana, inventava e dizia verdades pois a verdade, tanto como a mentira, pareciam tomar conta das escolas. Lembrei então de um tio otimista que dizia e ensinava que é preciso mentir qualquer mentira boa para mexer com a vida quando ela está muito brava e verdadeira. Quando lancei o Tipuana, em 1997, estava completando 10 anos de Literatura Marginal. Teve festa e foi das mais bonitas, na Associação Satélite Prontidão, centenária sociedade de negros de Porto Alegre. As festividades começaram por volta de meio dia, com um almoço, avançando até as primeiras horas da noite com apresentações artísticas, muita dança com o conjunto musical de Moisés Machado e presenças ilustres. Poetas, escritores, professores, chefes religiosos, representações de ONGs da negritude e de brancos aderidos à causa da população negra, diretorias de Associação de Pais e Mestres de Escolas Públicas e, também de Escolas de Samba, estiveram no evento. Jovens e crianças da Associação Clara Nunes, sob a orientação da professora Yvanilda Belegante, apresentaram coreografias interessantes com músicas de Clara Nunes. Outra homenagem significativa veio da Escola de Samba Integração do Areal da Baronesa que compareceu com mestresala e porta-bandeira juvenis, oferecendo um belo show de sam-

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ba de passistas mirins. Uma comissão de mulheres representou a Diretoria da Escola de Samba, entre elas a Duda, atual presidente da Associação do Quilombo Urbano da Guaragna, as senhoras Sônia Xavier, Marta Gonçalves, Lúcia Gonçalves, Teresa Batista, Rosinha e as jovens Simone e Fabiane Xavier. Parece que estou fazendo uma crônica social. E estou mesmo, de propósito, registrando nossos momentos de valorização da população negra. Não é presunção, mas a colaboração espontânea para a memória positiva de nossas ações. Por ocasião do lançamento do livro Tipuana, o Grupo Cultural Rainha Ginga também organizou o lançamento do livro “Saldo”, primeiro trabalho do poeta Alexandre Gabriel , estimulado pelo grupo e com o apoio do projeto de Informática às Escolas Carentes, do SERPRO. O artista plástico Nei Ortiz, solidário com o evento, ofereceu-me um documentário surpresa com a minha trajetória de voluntária em projetos educacionais para a população negra, no Morro Santa Teresa e na Avenida Luiz Guaragna. Uma homenagem brilhante foi a presença do Boreo, um Senhor Batuqueiro, puxador de reza em yorubá, tocador de tambor e contador de casos da negritude. Boreo é uma história viva de religiosidade afro-brasileira e da Colônia Africana, um bairro de maioria negra que se formou depois da abolição, em Porto Alegre. Vivenciei as falas de discursos que deixam a gente encabulada, mas que faziam parte do que prepararam para comemorar os 10 anos de minha Literatura Marginal. Vivenciei. A paisagem humana da festa era de maioria negra: meus queridos leitores e a presença da família que se fez presente nos filhos e netos e naqueles que vieram de Pelotas para o evento: Rubens Braz Vargas, que cantou “Carinhoso”, levando o pessoal a cantar junto e harmonizar os ruídos festivos. A diretoria da Associação Satélite Prontidão destacou-se com as senhoras de seu Departamento Cultural, Iara Neves, Carmem Silva e outras ilustres damas negras da sociedade gaúcha.

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O livro também foi doado aos professores e muitos alunos da Escola Estadual Santa Rita de Cássia que me serviu de inspiração para a maioria dos seus episódios. Recebi em troca, o carinho dos educadores, o trabalho artístico e de produção de textos que algumas professoras fizeram com os alunos, a partir das leituras realizadas. Por iniciativa da mesma escola, o livro foi citado no relatório estadual de atividades do Projeto Guaíba, conjunto de ações ecológicas desenvolvidas na escola, uma vez que tais ações me sensibilizaram para o título do livro, pois Tipuana é uma árvore que descrevo e exalto, como componente solidária da paisagem natural do morro Santa Teresa, comunidade do colégio Santa Rita. Também trouxe humor: minha irmã Ana, ainda não havia feito a sua grande viagem. Muito risonha , ao saber do título do livro Tipuana, logo tratou de me questionar: “Que negócio é este de Tipuana, o que andaste escrevendo desta vez que é tipo eu?” Cada lançamento de livro daria origem a outro livro e com certeza tenho razão, tal a riqueza de experiências proporcionadas. Enquanto produzia meus livros, ainda em Porto Alegre, participei de algumas coletâneas : “Nós, os afro-gaúclos” (1996), livro organizado pelos professores Euzébio Assumpção e Mário Maestri, onde colaborei com o capítulo “De banzo”, compondo os textos “O bacião”, “Jacuba” e “Tia Bernarda do Ogum”. Era muito difícil compilar os textos de vários escritores, poetas e estudiosos da cultura negra para organizar coletâneas. Com relação a isto, guardo a lembrança do professor Euzébio, indo de casa em casa dos autores para buscar os textos datilografados e/ou manuscritos para que depois fossem digitados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fazendo a critica literária da coletânea “Nós, os afro-gaúclos”, o jornalista e ex-professor de Literatura da UFRGS, José Hildebrando Dacanal escreveu a matéria “Cai o último quilombo” (Jornal Zero Hora 01/02/96), onde, elogiando o brilho técni-

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co e intelectual de alguns textos destaca o meu trabalho com as seguintes palavras: “esta autora de uma verdadeira jóia literária do gênero memorialístico (De banzo)”. Outra coletânea da qual participei foi “Visões do Mundo Negro, Ontem e Hoje” (1998), organizada pelo Deputado esta­ dual Ciro Simoni. Colaborei com o texto “O Nó”. Alguns textos e poemas meus foram compilados para jornais e revistas, tais como “Porto e Vírgula – Arte Anos 90”, Revista do Cecune, ONG presidida por Juarez Ribeiro, militante do Movimento Negro Ecumênico; folhetim Roda de Poesia, do poeta Oliveira Silveira; Revista de Cultura Contemporânea; Jornal Sintonia, da Associação dos Radialistas de Porto Alegre, na década de 90. O folhetim Roda de Poesia Negra foi uma simpática iniciativa cultural, do companheiro Oliveira Silveira para dar visibilidade ao trabalho dos poetas negros, radicados em Porto Alegre. Participei com o poema “ A Lágrima”. Já em 2003, o mesmo poema foi impresso em camisetas para comercialização, durante as atividades da Semana da Consciência Negra, organizadas pelo Conselho de Defesa dos Direitos do Negro do Distrito Federal. Mas não foi comércio para a escritora apurar valores. Foi uma forma de colaborar para ajudar nas despesas do Grupo Multiétnico de Empreendedores Sociais que participou do evento com atividades culturais afro-brasileiras. O assunto me remete aos anos de 1987 a 1995, período em que sempre dispus de um percentual do valor arrecadado na comercialização de meus livros, para investimentos assistenciais e educacionais, como auxílio financeiro a duas creches, pró-labore de recreacionista para creche, durante oito meses, confecção de dois tipos de uniformes para grupo de dança afro, compra de máquina de costura para artesãs negras, aquisição de livros, cadernos, equipamentos de copa e cozinha para os projetos em que atuava. Divido o processo de ajuda aos semelhantes, com o Grupo Cultural Rainha Ginga.

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O ENCONTRO – ANO 2000 SAUDADES E CONTEXTOS DE DIVERSIDADE Em 1999 já estava em Brasília, desde janeiro. Antes de viajar, recebi um presente muito original do amigo Wanderlei Fernandes Santos. Ele me presenteou com o conto que havia criado e inscrito no Concurso Literário Histórias de Trabalho, em 1998. O presente teve um significado especial, pelas experiências humanas relatadas, muito reais na vida de famílias negras de trabalhadores. Privilegiada pela oferta criativa de valores, de afetos, de referências, sentia o privilégio na emoção, no meu estado de espírito que atiçava muita saudade do sul. Assustada com a diversidade de Brasília, acostumada que estava com os mesmos sotaques, os mesmos trajetos, as mesmas caras do dia-a-dia, percebi-me saudosa e confusa. E onde estavam os negros e negras? Cadê a negrada do Distrito Federal? Senti uma sensação estranha e ruim, porque julguei que deixava para trás muitos valores, afetos e referenciais. Ficariam ausentes de mim? Vou então, afirmando para mim que sou transitória e que dependeria muito de meus pensamentos e ações, o reencontro com as minhas crenças e valores, tanto faz se em Porto Alegre ou em Brasília. Mas a afirmação vinha carregada de saudades... Saudades das pessoas. Era um fato verdadeiro. Lancei mão de uma estratégia mental. Segurei a saudade que estava me consumindo e brinquei com ela, até onde pude brincar, sem chorar. Criei páginas de vários encontros com diferentes características. Uns equivocados, reflexivos, questionadores e até cruéis. Outros humorados, memoralísticos, longínquos.

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Revisitei o conto que me foi doado pelo amigo e fingindo o avesso do que dizia, não tive receio de sair pelo passeio imaginário. Não esqueci da transitoriedade, abrindo a imaginação para os encontros imaginários ou reais, porém sempre transitórios. Encontros misteriosos ou reveladores de concepções. Todos atentos, o quanto consegui dar-lhes atenção. Enquanto escrevia, fui conhecendo um pouco mais de Brasília e fiquei mais próxima da diversidade humana que por aqui mora, trabalha e luta pela sobrevivência. Quando me dei conta, esta diversidade já fazia parte do Encontro. Neste livro tive duas parceiras, contadoras de histórias com suas referências ambientais: Ivone Poleto, remanescente de italianos e Aracy da Silveira Dutra, remanescente de escravos. Ambas enriqueceram O Encontro, com seus registros de vida, de afetos, de família e os valores, costumes e tradições de suas origens. O tempo foi passando e aprontei um livro que começa na terra e termina em uma terceira esquina do desconhecido. Meus personagens já estavam acostumados com a idéia de transitoriedade, com as diversidades de toda ordem, com os mistérios. Escrevi mais uma novela social. Que coisa é esta? Será que a Bibliotecônoma está querendo me confundir? Colegas e familiares, em Brasília, participaram de uma Comenda Cultural para propiciar a edição de O Encontro. Já conheciam minha Literatura Marginal e o sistema de apoio do Grupo Cultural Rainha Ginga que a mantinha. O lançamento do livro foi no Espaço Cultural da ANATEL, onde recebi o púbico de pés descalços. Minha apresentação aos brasilienses foi feita pela professora Marina Laura da Silveira Dutra. Correu tudo perfeito: show de música popular brasileira com a cantora carioca Ângela Regina, apresentação de danças do grupo de jovens do Centro de Tradições Gaúchas Jaime Caetano Braum, performance da artista Janete Borges Dutra, apresentação do Coral do Centro Espírita Caminho da Luz, do bairro Cruzeiro, toques de berimbau do mestre Leonardo, da Capoeira Terreira

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do Brasil. Muita gente! Meu livro estava sendo recepcionado com tanta dignidade, em uma terra onde ainda há pouco, eu era forasteira. A performance de Janete teve um significado especial e foi preparada com muito carinho. Alguns meses antes do lançamento do livro, Janete concebeu “Caminhadas e Buscas”, cuja poética fazia referência ao trajeto da diáspora africana. A artista plástica moldou em gesso os pés e mãos de 11 quilombolas de diferentes regiões do Brasil que estavam no Distrito Federal. Pés com cicatrizes e marcas de uma ancestralidade que permeia pelo espaço da diversidade brasileira, fizeram parte do ato em que Janete realizou uma caminhada, interagindo com o público, ao som de berimbau.As mãos, simbolizando a busca dos ideais, dos sonhos e da resistência se configuravam no espaço aéreo da cena. Para empréstimo do Espaço Cultural da ANATEL deixei um cheque-caução, para cobrir alguma avaria que ocorresse nas dependências. Dei um cheque em branco para um colega de trabalho que se encarregaria destes trâmites. Nem fiquei sabendo o valor do tal cheque-caução. Ele também não me deu retorno. No dia seguinte ao lançamento do livro, foi feita a revisão no Espaço Cultural ANATEL. Tudo em ordem. Meu colega e amigo Milton Marques do Nascimento teve o cheque devolvido no valor de cinco mil reais, uma importância financeira mais elevada do que tudo que aconteceu na ANATEL, em termos materiais, inclusive somando-se o valor da edição do livro. Havia sido proposital a atitude de meu amigo em não me revelar as cifras do cheque-caução, para que eu não desistisse do evento. Ora, ora, o que fazer? Agradecer aos presentes por não terem deixado avarias no local de Cultura, nenhum copo quebrado, nenhuma parede riscada, nem o chão arranhado, mas somente a alegria no ar, para marcar O Encontro.

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AS FILHAS DAS LAVADEIRAS – ANO 2003 TRIBUTO ÀS MULHERES NEGRAS E MOBILIZAÇÃO SOCIAL Sobre o livro As Filhas das Lavadeiras, transcrevo as palavras do Professor Nelson Inocêncio que vem a ser parceiro com seus textos acadêmicos, no próximo livro que editei. “A publicação de registros alusivos às lutas da população afrodescendente no Brasil para superação das mazelas produzidas pelo racismo apresentou-se escassa até as últimas décadas do século passado. Contudo, a determinação do ativismo negro, no sentido de gerar informação sobre certos processos vivenciados pelas coletividades negras, deu origem a várias reflexões que culminaram em textos significativos. Hoje, algumas dessas referências literárias começam a ser exploradas com maior vigor pelas editoras nacionais. Vale dizer que, a trajetória de muitos autores, identificados com a temática, foi marcada pela produção independente, outrora único meio de divulgação daquelas idéias no âmbito da leitura. As Filhas das Lavadeiras, obra de Maria Helena Vargas da Silveira é conseqüência dessa via alternativa e não fica a dever nada por isso. Tecendo de forma hábil um conjunto de narrativas, a autora busca, na organização das lavadeiras, elementos substanciais para explicar uma entre tantas maneiras de resistência à violenta exclusão racial que permeia a sociedade brasileira. Trata-se de um texto apaixonado e capaz de apaixonar pelo modo como as falas são construídas, pela vivacidade e veracidade dos depoimentos e, sobretudo pela postura obstinada dessas trabalhadoras e mães no intuito de vislumbrar para as suas descendentes um futuro melhor. O texto também evidencia a coerência existente na visão de mundo dessas mulheres, negras em sua ampla maioria. A obser-

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vação sobre o universo delas transcende o velho estereótipo que vincula lavadeiras a falatório e alcovitagem. As matriarcas aqui apresentadas deixaram indubitavelmente importantes lições de vida para seus herdeiros, em particular para suas filhas pelo fato dessas necessitarem enfrentar o mundo compreendendo todas as limitações provenientes do racismo e do sexismo. Algumas das filhas inclusas neste texto são relativamente conhecidas do grande público, a exemplo da atriz Ruth de Souza e da ex-miss Brasil Deise Nunes. Outras mulheres menos conhecidas, mas não menos importantes, apresentam argumentos ricos de conteúdo e que nos auxiliam a caminhar com os olhos desse segmento específico. Ao ter contato com o texto de Maria Helena lembrei-me de uma das músicas de Monsueto que nos remete ao sacrifício dessas personagens da nossa cultura popular. Uma das estrofes diz: A roupa um tantão assim Dinheiro um tiquinho assim Para lavar a roupa da minha sinhá O labor excessivo e a baixa remuneração constituem uma combinação terrível e que, com certeza restringem as possibilidades e perspectivas de futuro. Contudo, as lavadeiras parecem buscar uma força sobrenatural para reverter o processo e garantir qualidade de vida mínima às gerações vindouras. Faz bem à saúde de nossas consciências a leitura desse livro. Ele se consolida como um elemento a mais para entendermos porque, como ressalta Gilberto Gil o povo negro continua lavando as manchas do mundo com água e sabão.” Nelson Inocêncio O livro As Filhas das Lavadeiras teve lançamento em Brasília, primeiramente na Embaixada da Nigéria e uns meses depois, na Casa Thomas Jefferson, por influência de uma das filhas das lavadeiras, Maria José de Souza, que transitava mais de perto pelos dois referidos espaços.

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Recebi a atenção da jornalista Marlene Galeazzi que divulgou o trabalho no Jornal de Brasília, com a matéria “Histórias Para Contar” (26/01/2002), em que pude relatar como foi escrever o livro, o contato com as filhas de lavadeiras, das famosas como a atriz global Ruth de Souza e a miss Brasil Deise Nunes, às anônimas, destacando que o objetivo não foi apenas trabalhar com o depoimento de nomes estrelados mas sim com mulheres que têm bagagem de valores, de experiência de vida, de expressões e de lideranças comunitárias. Todas filhas de lavadeiras. Para o lançamento do livro, o Embaixador da Nigéria, senhor Joseph Sookore Egbuson organizou uma recepção na Embaixada, que naquela noite parecia um paraíso que se estendia por todos os cantos em que havia convidados e convidadas. Apresentou uma homenagem inesquecível, principalmente para as filhas das lavadeiras que se fizeram presentes ao evento, vindas de outros estados do Brasil. Em seu discurso o Embaixador revelou a emoção que estava sentindo por reunir toda aquela gente brasileira e ressaltou o valor do livro que estava sendo lançado, pois já havia feito a leitura de seu conteúdo, um dos procedimentos que antecedia à confirmação ou a negação do espaço da Embaixada, para a realização do evento. No dia seguinte ao lançamento do livro, a esposa do Embaixador organizou um almoço para as convidadas forasteiras e filhas de lavadeiras, depoentes do livro. O almoço contou com a presença de embaixatrizes de países africanos e outros, as quais me fizeram uma espécie de sabatina, perguntando sobre minha Literatura e, mais especialmente sobre o livro As Filhas das Lavadeiras. Posteriormente, em 2005, a Embaixatriz do Senegal, Senhora Marie Claire Coly, fez a tradução do livro para o idioma francês, em seu projeto final do Curso de Tradução, do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Os textos em francês encontram-se na Revista Labrys (2005). Mary Claire coloca que, na qualidade de africana, não poderia ficar indiferente à história da diáspora negra, sobretudo quando se fala da luta de mulheres para sustentar suas famílias,

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para conseguir melhor lugar na sociedade. Sentiu-se muito perto das lavadeiras e filhas das lavadeiras que lhe trouxeram lembranças de sua terra. Disse ter ficado um pouco assustada na hora de traduzir os textos, porque a linguagem do livro reflete uma cultura e um jeito de falar, com uma multiplicidade de referências sócio-culturais que talvez nem encontrasse tradução no Dicionário Bilíngüe. O lançamento do livro pelo Conselho Cultural da Casa Thomaz Jefferson, também em Brasília, teve a coordenação da Embaixatriz Ana Maria Assunção e equipe, que desde a elaboração dos originais da obra, revelou interesse de organizar o evento. Tive o privilégio de participar das atividades culturais da Casa Thomas Jefferson, tradicional instituição acostumada a promover a cultura nacional e internacional da melhor qualidade. Minha Literatura Marginal continuava fazendo história. O Livro teve um outro lançamento interessante na Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis. Neste evento, organizado pela Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros sob a presidência da Professora Valdeonira dos Anjos, aconteceram atividades de teatro, dança e música, protagonizadas por artistas e estudantes negros e negras de Florianópolis. Ainda na ocasião, estiveram presentes as filhas de lavadeiras residentes na capital catarinense e outras, vindas do Rio Grande do Sul com amigos e amigas, além de autoridades políticas, educacionais e mulheres ativistas da Associação Antonieta de Barros. Importante é ressaltar a presença dos estudantes da periferia que vieram prestigiar o evento, juntamente com a atriz Lelete, de Florianópolis. Veicularam importantes matérias nos principais Jornais de Florianópolis: Diário Catarinense e A Notícia, onde destacaram que o conteúdo do livro servia para a auto-estima e valorização da população negra. A obra foi bem aceita no estado de Santa Catarina e a Secretaria Estadual de Educação adquiriu expressiva quantidade de exemplares para a distribuição nas escolas.

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Em minha terra natal, Pelotas, tive a oportunidade de fazer com que o livro circulasse, por intermédio da professora Nair Edi da Silva Pinto e, por ocasião de uma palestra que realizei no Clube Cultural Fica Ahí Prá Ir Dizendo. Em Porto Alegre, foi muita felicidade lançar o livro As Filhas das Lavadeiras, na Associação Satélite Prontidão, onde aconteceram significativas atividades no decorrer do evento. Estiveram presentes filhas de lavadeiras da região, com depoimentos no livro, entre elas a Ex-Miss Brasil Daisy Nunes, Maria Marques, Nair Edi da Silva Pinto e Maria Isabel Barbosa Alves; a Senhora Iracema Marley Moraes da Silveira, mãe da depoente Sandra Beatriz Moraes da Silveira e a Senhora Maria do Carmo da Silva Machado, mãe da depoente Terezinha Juraci Machado da Silva. A presença destas mulheres encantou-me pelo carinho que me dispensaram e pelos momentos de alegria que trouxeram ao público. As atividades culturais do evento foram inesquecíveis, verdadeiros brindes de valores imateriais, entre os quais destaco: A performance do poema “Memórias na Cabeça”, ocasião em que a atriz Eliane Souza coroou a lavadeira Maria do Carmo; a apresentação do Coral Adventus que levou ao público os cânticos da negritude norte-americana; a dramatização espontânea das atividades das lavadeiras em prol da educação dos filhos, seguida de contundente declaração de apreço pelo trabalho apresentado no livro, pela Senhora Doralice Machado, cuja mãe era lavadeira; a dinâmica coreografia musical do Grupo de Mulheres da Associação Clara Nunes; a exaltação do trabalho das lavadeiras, pelo poeta Alexandre Gabriel; a saudação da escola de Samba integração do Areal da Baronesa com muito samba, Porta Bandeira e Mestre Sala mirins;apresentação do Grupo de Moçambiques do município de Osório, com a Rainha Jinga, o Rei Congo, os brincantes e tocadores. Esta sim, a rainha com j, aquela citada pelo escritor Oliveira Silveira. A presença do Grupo de Moçambiques surpreendeu ao público que, na maioria, não conhecia esta tradição afro-brasileira do Rio Grande do Sul. Quando entrou no salão a corte da Rai-

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nha Jinga, carregando a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, observei que muitas pessoas choraram e aplaudiram freneticamente o cortejo. Esta atividade foi proporcionada pelo empenho da filha de lavadeira Maria Marques, junto ao Prefeito do município de Osório, Dr. Alceu Moreira da Silva. Seguindo a tradição dos meus lançamentos de livros, os convidados foram agraciados com quitutes, desta vez preparados pela Auxiliar de Nutrição Delilene Cordeiro que a todos e todas encantou pelos seus dotes culinários presentes nos saborosos doces e salgados. Mas , como diz a canção, “a gente não quer só comida”. Ressalto a culinária para evidenciar o talento e habilidades dos artesãos negros, muito mais centrada na valorização do que fazem, do que pela especificidade do ato do povo comer. Sempre tive o privilegio de receber o carinho das pessoas, tanto faz a faixa etária, a religião, a cor, a condição econômica, independente de mesas postas, pois em geral nem sabiam o que estava por acontecer a mais, nos eventos. Nunca divulgamos nenhuma programação prévia, somente o lançamento do livro. Mesmo residindo fora de Porto Alegre, continuei tendo respaldo para a organização dos lançamentos de meus livros, nas admiráveis pessoas que desde o inicio de minhas publicações acreditaram em meu trabalho. No Rio Grande do Sul, o livro propiciou a publicação de muitas matérias jornalísticas, no Diário da Manhã, no Jornal do Nativismo, na revista Cecune. Foram páginas marcantes que destacaram a valorização do trabalho das mães lavadeiras em prol da educação dos filhos e filhas. A edição de As Filhas das Lavadeiras esgotou-se rapidamente, sendo eximias divulgadoras da obra, as Senhoras Valdeonira Silva dos Anjos e Dona Nadir, em Santa Catarina: Neide Silva Rafael e o livreiro Papa Léguas, em São Paulo e Rio de Janeiro; Maria Jose de Souza, no Distrito Federal; Nair Edi da Silva Pinto e Gilda Machado, em Pelotas; Eloy Dias dos Angelos, Frankilina Marques Cardoso e Tereza de Lourdes Cardoso Sampaio, em Porto Alegre.

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OS CORPOS E OBÁ CONTEMPORÂNEA – ANO 2005 TRANSGREDINDO “NORMAS CULTURAIS” E TRABALHANDO O IMAGINÁRIO POPULAR SOBRE OS CORPOS AFRODESCENDENTES Por volta de 1987, quando iniciei a publicar meus trabalhos, fui induzida a um novo ciclo de leituras, incluindo autoras negras americanas. Chamava minha atenção que os personagens eram fogosos, muito quentes no trato com as palavras para expressar a sexualidade, tanto faz mulheres e homens. O fato me agradava bastante, mas conservava uma razoável timidez cultural para colocar no papel certos assuntos, por vezes inquietantes e passíveis de necessária reflexão. Poderia fazê-la com o público leitor, algum dia? As idéias vão germinando. Vamos cuidando delas, até que amadurecem. Enquanto as idéias tomam conta da gente, vão acontecendo fatos paralelos que se tornam motivos fortes para que elas não permaneçam ignoradas. Há um tempo que se considera o tempo certo, às vezes pode até nem ser, mas temos de estar convictos de que é o tempo certo, propício para revelar o escondido. Muitas mulheres, sofrendo por causa de relacionamentos desfeitos com maridos, amantes, ficantes, namorantes... Mulheres, sofrendo demais, mutiladas, envenenadas de baixa-estima. Muitos homens-causa destes sofrimentos. Seria justo? Não deveria contar casos, tomando as histórias de cada mulher que eu escutava. Seria panfletário, comum. Também me escuto. Estava na hora de inventar corpos e jogá-los no fogo da sensualidade, do sexo, das conquistas, na chama capaz de quei-

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mar minha timidez cultural em relação ao sexo e gozar no prazer da escrita, a felicidade de poder botar para fora o que estava me indignando que era o que eu sentia com o relato dolorido das Obás. Sem culpas, Obá que me perdoe, por não aceitar que tenha cortado a orelha para conquistar Xangô. Mas... As mulheres ainda continuam se mutilando tanto por causa de seus homens, em nome do amor. Foi a partir destas reflexões que germinou e nasceu Os Corpos e Obá Contemporânea. Aconselho que procurem conhecer a Lenda de Obá. Enquanto escrevia o livro, aconteciam os primeiros passos para a criação do Centro de Estudos Brasil-Haiti, no Distrito Federal, por iniciativa da Doutora Renata Rosa. O referido Centro deu apoio institucional para a publicação do livro que se destaca como sua primeira atividade cultural e integradora. O lançamento do livro Os Corpos e Obá Contemporânea ocorreu na Embaixada do Haiti no Brasil, com apoio da Adida Cultural, Senhora Norma Cooper e Conselheiros. Na ocasião, a produção do evento ficou a cargo da Senhora Cristina Magalhães e do Senhor Glaudson Pereira Almeida, da CG Eventos, que proporcionou momentos agradáveis aos convidados com Maximo Mansur e seu conjunto musical de MPB, performance do conteúdo de Corpo Texto , pela artista plástica Janete Borges Dutra. Não fugindo à tradição de lançamentos anteriores, teve comes e bebes. O evento contou com a participação do parceiro do livro, Mestre Nelson Inocêncio que abriu as atividades com interessante discurso em que ressaltou o valor de Obá, como elemento capaz de doações extremadas por uma paixão, exemplo que não precisa ser menosprezado e sim analisado sob o ponto de vista da contemporaneidade. Também fizeram uso da palavra a Doutora Renata Rosa, já como Presidente do Centro de Estudos Brasil-Haiti e a Adida Cultural Norma Cooper.

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Os Corpos e Obá Contemporânea fez outras incursões de lançamento pelo Distrito Federal: no Espaço Cultural Afro Nzinga; no Sarau do Sindicato dos Professores do DF, em Águas Claras; e em Taguatinga, no espaço cultural da Cantoria, a convite da Tribo das Artes. Em Porto Alegre tive o privilégio de autografar o livro no Museu Antropológico do Rio Grande do Sul, a convite da Jornalista Sátira Machado. Na ocasião, entre os presentes, encontravam-se personalidades representativas da negritude gaúcha, entre elas a senhora Serafina, neta do Príncipe Africano Custodio, pioneiro da religiosidade africana no sul do Brasil. Sinto-me gratificada pela recepção que a obra teve pelos leitores, destacando-se acadêmicos que estimularam grupos de estudos a partir do seu conteúdo reflexivo para homens e mulheres. O jornalista Oscar Henrique, fala sobre o livro. HELENA DO SUL IMAGINA CORPOS E SUBVERTE OBÁ Autora de novelas sociais, com personagens reais e formas reais, Maria Helena Vargas da Silveira entra na pele de Helena do Sul e imagina corpos, para convidar a todas as leitoras e leitores a embarcar numa viagem pelo íntimo e pelo mistério. Um corpo, uma forma,uma imagem. Uma imagem que ingressa no introspectivo para descobrir muitas realidades. Um passeio pela alma feminina, pela alma que busca respostas por sua própria existência. A mulher desnuda-se para dar  passagem à liberdade de sentimentos, de conclusões, de expressões. O corpo-fêmea corre, anda, sonha, pensa. Faz uma excursão, onde o ponto de partida começa em si mesmo e termina na mesma estação, sem que por isto deixe de interagir ou fique alheia ao mundo exterior, com suas mais belas  ou mais horrendas paisagens corpóreas.Não é uma excursão de fuga  Quando resolvi embarcar nesta viagem com Azantewaa, nas páginas que seguem. Deixei-me levar pelo balanço forte de um corpo que movimentou meus pensamentos e o próprio corpo, que não ficou indiferente a tantos ritos sociais.

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Maria Helena, ou a Helena do Sul, deu um salto para a introversão. Em seu trabalho anterior, “As Filhas das Lavadeiras”, contou a vida de mulheres reais. Mães que lutaram e lavaram roupas para construir os seus maiores sonhos: educar e formar seus filhos. As mulheres também estão em “Obá Contemporânea”. Uma mulher? Um corpo? Uma forma? Não, são muitas, são várias, são as mais profundas, mais íntimas e mais verdadeiras. São plenas de sentimentos. Definições. São corpos que andam e nos levam a crer que o imaginário fala, vira personagem.  As páginas passam, você não consegue parar de ler. Olhos vêem o mundo através de uma janela. Metamorfoses são descobertas a cada capítulo. Nada é igual na narrativa de Helena do Sul. Azantewaa vai até a Filosofia, dá um contorno nas Artes e toma uma reta rumo à História que pode ser antiga, medieval, contemporânea, mas é uma história. Eles são elas, ou elas são eles? Eles andam junto com elas, e elas, mais uma vez, não são mais as coadjuvantes. Os corpos-fêmeas protagonizam as cenas em que indagam e questionam, até que ponto os processos de envolvimento corpóreo e somente eles, poderão ser responsáveis pelo conforto ou desconforto que desenha o espírito. Azantewaa perambula, mexe, remexe, instiga, ri, chora, briga, inquieta-se, ama. Vive e projeta suas próprias metáforas. O corpo que não cai, o corpo que não morre, renasce, nas situações mais diversas, curiosas, e não remotas.   Helena do Sul quer nos instigar a conhecer mais esta mulher, este corpo- fêmea. Fêmea que comparando a Obá, tem mutilação e tem gozo, o prazer e a dor advindos dos processos das relações com os corpos, em qualquer instância da existência.  A autora, tão popular quanto intelectualizada, construiu uma narrativa baseada na pesquisa, motivada pelo epistemológico das palavras em sintonia com a emoção voltada ao raso da vida em sua vala mais comum e, paradoxalmente, mais profunda.   Os capítulos apresentados a seguir conotam uma nova etapa de produção literária desta escritora gaúcha que seduz com a palavra e o seu jeito de ser livre, autêntica e sempre, surpreendente, movimentando na prosa as coisas do universo de sua afrobrasilidade. 

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Com Os Corpos e Obá Contemporânea, um novo momento se inicia. As cenas do real e irreal,no mesmo plano,garantem ao leitor um embarque sem pressa, nos contornos de um corpo, na mutação de vários corpos. Todos corroboram para um desfecho. E quando convergem para o texto do mestre Nelson Inocêncio, parceiro neste livro, enfrentam o perigo que se consolida com o nome de imaginário social. OSCAR HENRIQUE CARDOSO Jornalista da Fundação Cultural Palmares/MinC Estamos em 2007. Continuo escrevendo. Identifico na escrita, minha atitude espontânea de resistência e criatividade. Escrever é coisa de negros e negras, também. Ainda há poucos meses, a jornalista Cristina Fausta, do Jornal Hoje Em Dia, na coluna Gente da Cidade, Caderno de Brasilia esteve me entrevistando e depois surpreendeu-me com a matéria Negritude Literária. Pois é... Mas para dar continuidade a esta negritude literária e editar meus livros, preciso exercitar outros processos ideológicos, no coletivo. Trabalho muito. Acredito nas possibilidades da Literatura Afro-brasileira, na soma de informações, na oportunidade de reflexões que poderão mexer, positivamente, na estrutura energética dos leitores e leitoras. Materialmente, não me seduz. O trabalho grandioso de artistas negros da palavra, a cujos pés nem chego, não foi capaz de livrá-los dos porões sociais da marginalidade. São bons exemplos para que uma escritora negra continue resistindo, mas sem encantos, na Rota Existencial da Cultura Brasileira.

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ROTA EXISTENCIAL PARTE 3 A revisita de nove livros publicados, anteriormente, resulta na reedição de alguns textos, como estratégia-espelho e retrospectiva do trabalho da escritora. Identidade (do livro É Fogo) A Trova Do Bola (do livro O Sol de Fevereiro) Simiesca (do livro O Sol de Fevereiro) Iniciação (do livro Odara , Fantasia e Realidade) Rezumbindo (do livro Odara , Fantasia e Realidade) Rebelião Dos Sambistas (do livro Odara , Fantasia e Realidade) Conversa De Negro (do livro Negrada) O Super Evento (do livro Negrada)Forasteiros De Muitos Lugares (do livro Tipuana) Apresentação Do Nome Da Lomba (do livro Tipuana) Izolda Maria Mais Ou Menos ( do livro Tipuana) Ata Ordinária (do livro Tipuana) Capítulo XXVI (do livro O Encontro) Casarão Das Lavadeiras De Caxambu (do livro As Filhas das Lavadeiras) Do Bengo À Paixão Pelas Congadas (do livro As Filhas das Lavadeiras) Lavação De Roupas (do livro As Filhas das Lavadeiras)

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Corpo-Inquietação (do livro Os Corpos e Obá Contemporânea) Corpo-Texto (do livro Os Corpos e Obá Contemporânea) Corpo-Ironia (do livro Os Corpos e Obá Contemporânea)

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IDENTIDADE Estamos chegando. Naturalmente queremos te cumprimentar. Sei que já me conheces, mas hoje venho acompanhado, braços dados com Maria. Permanece à vontade. Maria é gente nossa. Maria lança um oh! Que ecoa na varanda. Seu primeiro sinal de comunicação é um monossílabo estridente, saído do fundo da garganta para ir ao encontro do outro. É evidente que Maria está querendo chamar atenção. Não te espantes com o cumprimento de Maria porque ela sabe também, suavemente, dizer-te oi, muito prazer e todos os ditos convencionais. Deve ter gostado muito de ti e, espontaneamente, abriu-se tão depressa no oh! mais bonito que sabe dar, para marcar presença. Continua tua leitura de jornal, enquanto preparo um cafezinho. Depois ficarei ao teu lado, conversaremos de tudo um pouquinho, como sempre. Não, não será como sempre. Hoje trouxe Maria. A mulher virá comigo todas as noites, até que conclua as estórias que te trago. Ela sabe dos fatos e dará seu testemunho, acenando a cabeça, tantas vezes forem necessárias para que eu diga só verdades. Afinal, gostas de minhas estórias e te peço para que Maria permaneça conosco. Sem Maria não existem estórias, nem cafezinhos na varanda e estarei ausente. Não sou seu dependente, mas um aliado. Se aqui tenho um lugar, ocuparei com ela. Quem é Maria, sua identidade? Maria ficará bem próxima de ti e participarás intimamente de suas ilusões, seus conflitos, frustrações do ontem e do agora, da luta, do desejo incontido de falar para alguém, de algo para o qual não se prepara ninguém – a vida. A vida ou a morte que se

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mostra pelas fronteiras das conseqüências do amor e desamor, nas mutações vitais e sociais. Liberta-se de quatro paredes para chegar às ruas, exercitando-se mulher, simplicidade nua, mostrando-se analfabeta, para depois interpretar o simbolismo da vida passada a limpo, apontando a podridão que existe por debaixo das becas, não sentindo vergonha de sua toga esfarrapada e suada, ainda sendo e amando. Maria não vem só de lutas, mas suas alegrias foram extraídas das batalhas que enfrentou. Tenho a certeza de que não te fará segredos, pois costuma dizer do riso e do pranto, do sagrado, da safadeza, do amor ativo e da contemplação do nada que é o início da criação, com a franqueza necessária para dizer tudo, deixando nada para depois. Aproxima-te de Maria, sem medo, porque é real. Não se deve temer a realidade. ........................................ ... Não selecionava pessoas pelo que possuíam, vestiam ou pelo clube em que dançavam. Sua agenda de pessoal era de professores ligados aos alunos, sem bajular o sistema, raparigas putas da rua dos trilhos, jovens questionadores das reuniões da Juventude Estudantil Católica, os bêbados dos botecos que lhe beijavam a mão porque era filha de um outro bêbado, a classe se respeitava. Juntava ao seu rol de amizades interessantes, umas quantas velhas de idade e muito jovens nas ações, cheias de força interior, alegres contadoras de casos. Maria criava um estilo próprio de sentir as coisas ao redor, chutando as pedras, caindo e levantando. Não aceitava disse-disse dos outros, pré-julgamentos, espionagem nos barracos, mesquinharia. Sendo assim, foi descrendo de suas possibilidades de participar de círculos restritos de luxos, de muito egoísmo, cada qual querendo ser mais rico, mais inteligente, a mulher mais virgem, o homem mais macho. Encontraria um jeito de escapar deste “polvo” que gerava enredos e mutilações.

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A TROVA DO BOLA Nas noites de sábados, muita seresta, alegres pagodes no sobrado. A higiene mental se fazia com a música, ao som do violão de sete cordas, pandeiro, agê, surdão e o cavaquinho do Bola. Ficava tudo bem certinho pra rapaziada dizer fados. Quando o Bola cantava, era sempre o mesmo lero-lero, garota de Ipanema... E para implicar com as gurias, o Bola abria a bocarra: “as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Saravá pra beleza. E dava risada. O Bola era um sujeito miudinho, cabecinha de alfinete, magrela e pouquinho como caroço de butiá. Era só boca. Estava sempre tirando recalque da feiúra, mexendo com as mulheres desajeitadas do Beco, exaltando a beleza. Enquanto os outros pagodeiros traziam novidades para cantar, o Bola não mudava o repertório. Safado e debochado, olhava prás meninas e lascava o lero-lero: “As feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental”. Nem se tocava diante das mulheres com os cabelos por fazer, roupas surradas, corpo cansado da semana de trabalho, olhos caidinhos de sono. Só queria machucar, machucar. Mas naquele sábado as mulheres combinaram pregar-lhe um corretivo. Serviram feijoada, carne de panela, lingüiça frita e polenta para os músicos, com exceção do Bola que ficou pigarreando num canto, tirando um sol maior do cavaquinho. Tomou dois copos d’água, assim mesmo servidos pelas crianças. Louco de fome, quando iniciou a cantoria, não deu trégua às meninas: “As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental.” Coitado! Só falava de beleza e as gurias, longe da consciência estética negra, não sentiam-se belas. Queriam enforcar o Bola.

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No pagode seguinte, quando retornou ao sobrado, o Birolho foi logo lhe abrindo o jogo: hoje não tem papo de beleza do Vinicius. O negócio é mulher, Bola. Mulher é fundamental. O amor é fundamental. Não mexe mais com as gurias. São feias e são bonitas. O Birolho era menos explícito. O Bola ficou compenetrado, depois cheio de explicações: – Pô Birolho, tô sabendo. Hoje não vou passar fome. Pedi pro Bola Júnior botar uma trova no papel pra eu dizer. Passa o olho no lero-lero do neguinho. Quando apanhou o cavaquinho, o Bola tomou fôlego e botou a boca no mundo com o discurso consciente de seu filho Bola Júnior: “Olha aqui pessoal: O Bola quer platéia só de beleza, as mulheres aqui do Beco. Quando vocês aparecem revelam aquela beleza de dentro, fundamental. O Bola canta pra vocês, cheias de graça, cheias de balanço. E não esquece de cantar que estão cada vez mais cheias de tudo , saturadas de não achar graça, de não ver muita beleza, de balançar todos os dias na condução apertada com cheiro encardido, O Bola vê tudo isto. Ei-las que passam e passam muito mal. Não é a caminho do mar, é a caminho do pão. Ei-las que passam de cara lavada, naturais. O corpo cansado, alma inquieta, desejando a liberdade dos apertos cotidianos. Correm, quase sem tempo de expandir o espírito, as emoções. Chegam e saem da roda viva de ter para ser numa sociedade materializada, consumista. Passam meninas, jovens, senhoras, velhas, tropeçando em barreiras, corajosas. Maltratadas e lindas mulheres do Beco, Vinicius esqueceu de cantá-las. A beleza é a estampa do amor. Perdoem o poeta. Meninas que não estão a caminho do mar, mas a caminho da vida, extensa lavoura cheia de insetos, só vocês transformam esta paisagem árida com a suavidade do carinho. Sempre estão cheias de graça para os olhos que penetram além da casca, das aparências de um corpo físico que apodrece. Todas as mulheres são belas, né Vinicius? Passam sobrecarregadas de responsabilidades sem perderem a ginga. Aqui no Beco, fundamental é mulher. Mulher é beleza. Belezas são vocês, gurias. Tenho dito”.

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Depois do discurso do Bola Júnior, o pagodeiro comeu feijoada à vontade, muitos nacos de carne de panela e afogou-se no licor de bergamota das vovós. Dava risadas, contente. ção.

Desajeitado, miudinho e boca grande, pulava de satisfa-

Mudou o repertório: “Agora chegou a vez vou cantar, mulher brasileira em primeiro lugar...” “A beleza é você menina, menina”..E para terminar a cantoria, de forma triunfal cantava um verdadeiro hino às mulheres negras, criado pelo compadre Bedeu: “Você é meu paraíso, e é tudo que eu preciso, musa negra vou te amar. Me entrego no feitiço do seu corpo, no brilho do seu olhar. O seu bote certeiro me pega por inteiro. Eu tenho que me entregar. Perco a força na magia de seus braços., morro de tanto amar. Doce cativeiro é navegar no navio negreiro do seu coração. Deusa da minha senzala, herdeira de Zumbi. Meu porto seguro de chegar, de ancorar, de partir. Você é prá mim um axé, ritmo bom do afoxé, luz do meu viver. Africana do Daomé, palmeiras, Palmares minha crença, minha fé, minha deusa mulher.” O sábado, 8 de março, era Dia Internacional da Mulher. O pagode correu solto. Deu de cara com o sol.

 Bedeu - Jorge Moacir da Silva, compositor gaúcho de Música popular brasileira, de clás­ sicos sambas suingados, tais como Carolina, em parceria com Leleco Teles. Ambos falecidos.

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SIMIESCA A casa de pedra dos Farias ganhava sempre um colorido especial pela presença de Naná. Adolescente, uma roseira em flor, graça natural, Naná era um ruído gostoso, luz e som. Transava o brim desbotado, melenas ao gel, o tênis emaranhado de cadarços, a mochila pra carregar os livros do colégio. Na cabeceira da cama, um colar artesanal de poucos brilhos, uma estampa do Garfield, gato estrangeiro da moda, preguiçoso e gozador, as preferências da menina. E na parede, bem à vista dos olhos, um painelzinho de papel camurça com as medalhas expostas, todas conquistadas nos jogos estudantis. Naná era do tipo esportista. Todos os anos participava da Semana de Jogos do Colégio. Colocava força no arremesso de bola. Caprichava mais ainda, esticava pernas e braços no vôlei. Corria pela cancha, rápida como o tempo. Em casa, preparava carinhosamente as faixas e cartazes para ajudar sua torcida. Apostava na união da galera. Confeccionava tudo com arte, embolada nas cartolinas, panos e papéis. Para gincanas paralelas aos jogos, vestia-se à moda D’arc, preto com preto. Acreditava no esforço. Jogava e vencia. Hoje, lembrei-me tanto de Naná, qualquer coisa misturada com Simiesca e medalhas. Foi por volta de 1988 que Naná arrebatou medalhas com muita garra, na corrida de velocidade, no vôlei, no salto em distância. Deveria acontecer uma alegria grande, do tamanho do co-

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légio, deveria acontecer. Que nada! Naná correu do colégio até a casa de pedra, medalhas na mão, faixas e cartazes despencando pelos ombros, o vestido D’arc ponta abaixo, ponta acima. Correu até em casa, chorando, espavorida aos gritos de “Simiesca, Macaca, Macaca”, vindos de uma galera diferente de sua torcida. No rosto, a angústia, o pavor pela corrida para a qual não estava preparada. Dizia nunca mais, nunca mais ao colégio. Nunca mais, me tirem de lá, por favor. Aquele nunca mais, pronunciado gritante e decidido, o choro compulsivo movimentou o pessoal do Beco. A mãe apanhou a menina no colo, acariciando-lhe a cabeça para desvendar-lhe o pranto. Enquanto recebia afagos, soluçava, cansada:- nunca mais, nunca mais. A idéia fixa, não retornar ao colégio. Estava com as pernas machucadas, coração batendo forte, lágrimas gotejando no rosto suado, medalhas atiradas no sofá, cartazes e faixas depenados, destroços. Naná contou que lhe correram, lhe cercaram, e que ficou presa no meio deles, enquanto gritavam:”simiesca, simiesca, macaca, macaca”. Naná rolou no chão e cheia de medo correu para casa com as medalhas ganhas. A mãe quis saber quem eram eles, da galera diferente. No dia seguinte, foi ao colégio. Nem direção, nem professores assistiram ao fato. Fez um relato da ocorrência como se estivesse na Delegacia de Polícia. Os diferentes foram chamados à ordem. Receberam lições de direitos humanos, igualdade cristã, leis constitucionais. Os diferentes precisavam aprender que os negros também recebem medalhas, que podem vencer. Nanás... Existem por aí, vencedoras. Devem estar atentas, alertas para não desertarem aos gritos de simiesca! Macaca! As formas de expressão variam, quando desejam derrubar alguém.

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São preconceitos dos diferentes de uma sociedade cínica, onde a cor, a raça e a moeda ainda excluem as pessoas de muitas corridas. Denunciar é preciso, embora não seja tudo. Calar é consentir o absurdo de ser considerada inferior. É preciso segurar as medalhas. O esforço de cada um aciona as potencialidades para vencer. Em vez de chorar, é hora de gritar, escandalosamente alto: – Eu sou gente. É hora de agir, de chegar em casa com as medalhas a que tem direito, com dignidade. As simiescas não devem abandonar a raia. Quando o silêncio é a conivência com o absurdo, silenciar é covardia.

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INICIAÇÃO O negro velho sábio, um ganga, convidou-a para entrar em sua tenda de palmeiras. Deu-lhe uma esteira de sentar e de dormir. Sentaram os dois na esteira, um de frente para o outro, pernas cruzadas rentes no chão. Como o silêncio era grande, escutavam o canto dos pássaros e o sassarico das águas, rolando na cachoeira. Os dois pertenciam à mesma família, símbolos fraternos da ancestralidade que os acompanhava. O velho sábio, deixando a esteira, dirigiu-se à porta e, abrindo os braços, saudou a natureza, pedindo axé. Apanhou as energias dos raios solares que batiam de cheio no vão do dia que começava. Retornando à esteira, trazia nas mãos um pano branco de algodão rústico, algumas conchas do mar e folhas verdinhas, arranjadas como mimosa coroa natural. Solenemente, curvouse para a mulher, descruzando-lhe as pernas, colocando o pano branco e as conchas em seu colo. O velho continuou segurando as folhas verdes. Iniciava-se um cerimonial. Pediu permissão a Oxalá e solicitou à mulher que tomasse duas conchas nas mãos e que através delas, seriam feitas importantes revelações. A mulher escolheu duas conchas entre as demais e segurou-as, meio assustada. O Ganga perguntou-lhe se queria saber sobre o poder do ouro ou o poder do seu Orixá.  ganga – equilíbrio entre forças positivas e negativas de todo ser  Oxalá – Orixá que é a divindade mais importante do Panteão africano, criador dos seres humanos, o Rei do Pano Branco  Orixá – divindade do Candomblé associada à corrente energética de uma força da natureza, a um arquétipo de comportamento humano e com freqüência a uma atividade básica da sociedade

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Respondeu-lhe que desejava saber do seu poder de MULHER. Então, mediante as conchas selecionadas, o velho iniciou um diálogo de sabedorias. – Queres saber dos poderes do teu odu, do teu destino? – Sim. Quais são os meus poderes nesta seita-vida? Onde aconteceu meu ingresso como membro deste terreiro? – Tua iniciação, Mulher, começou numa noite em que brilhavam todas as estrelas do firmamento. Tua cabeça recebeu o banho de sangue da entranha que te envolvia.Vieste ao reencontro de teu Deus, na hereditariedade do atavismo que tomará consciência de uma grande família.Tua cabeça está feita para desenvolver infinitas potencialidades, tendências ocultas e faculdades secretas. Irás te revelando pela caminhada universal. – Então, sou um segredo ou um amontoado de coisas adormecidas? – Calma! És movimento, quando falo nas caminhadas. Tuas potencialidades não ficarão em vigília.Tua iniciação será contínua, nas experiências, nos exemplos dos teus ancestrais, nos princípios de educação, na censura e nas aprovações do meio social. Passarás por metamorfoses circunstanciais que revelarão a personalidade escondida do teu ancestral divinizado, a tua personalidade aparente e uma outra. – Poderei dirigir estes movimentos? – Passarás pelos espaços do teu destino nos momentos certos. Ifá controlará teus movimentos, legando-te elevado poder de inspiração e intuições mágicas para que dirijas teus passos. Ifá será teu guia. – Mas onde está o guia que não vejo? – Procura-o sempre, dentro de ti mesma. Nesta procura do guia, estabelecerás uma confusão natural. Mas irás encontrá-lo,  Odu - destino  Ifá – Orixá masculino , deus da adivinhação, do conhecimento e da informação do futuro

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quando entenderes tua natureza. Ficarás possuída de ti mesma e perderás os sentidos, incorporando a força de Mulher. – Que medo! Imagino-me tonta, rolando pelo chão. Quem me segura? – Não é preciso temer. Teus sonhos, teus ideais, teus objetivos e teu guia interior te segurarão. Bem junto ao peito, põe um colar de contas coloridas e oferece-o para os Orixás, para todas as energias positivas da natureza. sejos?

– E basta este colar no peito, para realização de meus de-

– Vou te ensinar a firmar os desejos. Faz um bori10 de pensamentos para reforço de cabeça. – Saberei arrumá-lo? – Terás que aprender, porque dependerá dele, a afirmação dos teus desejos. Não é tão fácil, mas é muito próprio de tua essência forte. Amarra o pensamento e faz com ele um torso com a trilogia do querer, poder e fazer. Ajeita-o na cabeça, em todos os momentos de tua existência. – E se eu não souber o que desejo, nem tiver ideal, nem sonhos? – Toma empenho em descobrir-te através dos teus semelhantes. Entra na dança. Torna-te abiã11 do ritual divino que é Viver. – Como estarei nos outros? – Observa-os e sentirás coisas comuns: as lutas, as alegrias, as lágrimas, as vitórias, as discriminações. Se te integrares a eles, irás ao teu próprio aprendizado. – Serão meus cúmplices? – Sempre terás cúmplices nas buscas. Não tentes ser solidão. Precisarás de muitos companheiros do mesmo barco. 10 Bori – cerimônia importante da iniciação ao Batuque, religião afro-brasileira no RS 11 Abiã – freqüentador assíduo do Batuque

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– E quando não estiverem presentes? – Mesmo assim sentirás uma energia que te impulsionará. Será o momento de teu Orixá que jamais te abandona e que te guiará em nome de Oxalá. Será teu direcionador de luz. É preciso que possuas uma crença para que superes qualquer cansaço, fazendo-te guerreira. – Quem é meu Orixá? – Os Orixás são mistérios de força, junto de ti. Aguarda a revelação. rios...

– Mas eu preciso de gente. Não viverei só destes misté-

– Sei que precisas de gente que é a concretização de um consentimento da divindade. O mundo está pleno de consentimentos desta ordem e virão ou irás ao encontro deles. Com eles poderás encontrar a paz ou o desassossego, as possibilidades, os desenganos, o sorriso ou a lágrima, o pão ou a fome, a vida ou a morte. Terás encontros e desencontros, mesmo que Ifá coordene teus passos. Ele te deixará experimentar o que quiseres e serás responsável pelos teus atos. – E quando tiver dúvidas? Será a hora de parar no meio de qualquer caminho? – Recolhe-te à camarinha e conversa com a tua consciência. Estabelece confrontos entre a razão e a emoção. lada?

– Se não encontrar respostas e ficar perdida, descontro­

– Toma urgente uma água límpida para acalmar-te. Sem ansiedades, mesmo com passos vacilantes, terás em vista a obtenção de tuas respostas, com as energias renovadas. – Por que meus passos vacilarão? – Ainda não conheces todos os caminhos. Terás que ir descobrindo como enfrentar os obstáculos e a renunciar muitas belezas para poder vencer as pedras, o pó, as correntes do universo que te rodeia, sem te machucar. Irás firmando o passo, enquanto

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persegues o horizonte. – Se pisarem nos meus pés? – Cuida para não pisares nos pés dos outros. – Mas se doer muito? – Então não guarda o choro. Liberta o pranto, enquanto ages. Faz alarde. Busca teus espaços e confia em teus atávicos rizomas. Tua vontade ajudará a definir as ações do teu odú. A dor apressará o passo para buscar lenitivo ou irá esmorecer tua caminhada. Escolhe. – Meu odú é de fazer alarde, de apressar o passo ou de esmorecer? – Teu destino é de viver. Terás muitos compromissos no terreiro. Teu lugar não é aqui, sentada na esteira. – É hora de ir? – Toda hora será hora de ir. Vai em busca do respeito pelo teu nome de MULHER. Grita-o com voz alta e muito clara para que todo mundo te ouça, na cidade, no campo, nos quilombos e nos mercados – MULHER. Quero te ver possuída de fêmea na gira de todos os toques sociais. – Mas poderei ficar cansada, ofegante? – É possível. Proclama então o teu erê12. Brinca. Foge da percepção de ti mesma e das convenções nas quais foste ini­ ciada. – Brincarei ou ficarei desencontrada? – Estarás apenas vivendo a outra, a outra personalidade que disse possuíres. Podem até te desconhecerem mas não deixarás de ser. Tuas convenções ficarão relaxando, enquanto recuperas as energias. – Que confusão! O Orixá Mulher é bem complicado! – Mulher não é um Orixá, mas é relíquia dos deuses, povoando o mundo. 12 erê – estado intermediário entre a consciência total e o transe do Orixá

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– E mulher negra? – Achas que a cor irá interferir em teu destino? E já carregas este fardo de preocupação? – Poderei agüentar pesada carga? – Mulher negra é poderosa. Acredita nesta revelação e segue teu caminho. Não é mais hora de ficar aqui. Nem há mais tempo de desvendar os mistérios da outra concha. Deixo-a contigo, para que tua intuição feminina a descubra nos momentos certos. – Mas o que houve, meu velho? Estás tremendo? Ficaste tão frágil de repente. – Foram tuas mãos que pousaram sobre meus ombros e me fizeram balançar. Se souberes aproveitar tua energia, farás tremer este mundo. E então, tua mão permanecerá sobre todos que se renderão aos teus poderes. Estás iniciada nos encantos e nos mistérios de Oxum13. Teu odu é viver. Teu odu é amar. Teu odu possui todos os privilégios da criação. E, ajeitando na cabeça da mulher a coroa de folhas, proclamou-a Rainha, mesmo naquela humilde tenda. Conduzia um cerimonial de iniciação. Era um velho sábio, um ganga, o Amor.

13 Oxum – Orixá feminino associado à maternidade, à beleza e ao poder; Divindade da água doce, como o Amor

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REZUMBINDO Nem sempre é visível o brilho do luar, mas ele existe na luminosidade que o sol lhe empresta. Torna-se encantado porque suas características são reveladas positivamente. É objeto de amor e poesia, ainda que ás custas do sol que lhe transfere os reflexos. Tudo é questão de ensinamentos e energia. O que acontece com o cidadão afro-brasileiro é bem diferente das circunstâncias do luar. Não é comum apresentarem suas características positivas. Ofuscam-lhe o brilho, mesmo que possua brilho próprio, pela sua História de lutas.Desta forma é mais difícil que aprendam a estimá-lo e que ele mesmo se conscientize de sua força natural. É necessário que entendam de luar, mas é preciso que saibam de gente, de todas as raças, para realçar a poesia da humanidade, no ayé14. Através da História do negro no Brasil, repassam dados cujas conclusões apontam o afro-brasileiro carente de valores que o engrandeçam. Através dos piores atributos impostos, mostram-no marginal. Mas ele é nobre pela própria História que viveu. Marginalizado, sim. Marginalizado socialmente porque na negação de seu valor é criado o anti-negro, o desamor do negro pelo seu próprio eu, capaz de derrotá-lo, pela evidência da cor da pele. Existem negros que repetem “negro é lindo”,simplesmente porque é letra de canção, sem terem a convicção de sua beleza. Torna-se difícil de entender seu psicologismo e podem apresentar casos patológicos estranhos que médicos experientes não estão __________________________ 14 Ayé – mundo material

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conseguindo resolver. Faltou para estes negros e para a sociedade em que convivem, aprenderem coisas de negro, desde a beleza de suas peculiaridades físicas, de seus valores intelectuais, criativos e, em especial, de grande capacidade de doação, de amor. Mesmo que o negro possua tanta energia positiva, falta divulgá-la, exemplificá-la para suas pautas de vida, de conduta e firmeza de conjunto racial, desde a infância. Precisamos de educadores, historiadores, jornalistas, poetas, escritores, sociólogos, políticos, religiosos bem intencionados com Deus, muita gente que divulgue o afro-brasileiro, dando-lhe a merecida atenção. Forças positivas sepultarão o negro sujo, trapaceiro, brigão, preguiçoso, feio, burro e promíscuo sexual que a informação subversiva ainda traz, em vésperas do terceiro milênio. O próprio negro precisa ingressar na arte de rezumbir, oriunda do conhecimento e da afirmação que o afro-brasileiro passa a ter de si próprio, de suas capacidades, dos seus talentos, da resistência de seus antepassados. Rezumbir é amar-se negro e acreditar que não é inferior a nenhuma outra raça. É reagir às adversidades impostas aos negros. Rezumbir é ladainha antiga, conjugação atual, um grande movimento que envolve cabeça, energia física e, sobretudo a emoção. Em sua rotina telúrica, o negro só cresce digno e aparece respeitado, rezumbindo. Rezumbindo na busca de sua real liberdade, lutando pela participação como cidadão no âmbito sóciocultural e econômico. Rezumbindo, na sua forma de valorizar-se, sempre mais, elevando o moral, a auto-estima para gerar orgulho entre as suas crianças, os adolescentes, os jovens, os adultos, os velhos. Rezumbindo, no trabalho, na força física e intelectual. Rezumbindo, na expressão de talentos, exigindo que sejam reconhecidos. Rezumbindo, nos movimentos que lutam pelo progresso

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do negro em todas as áreas. Rezumbindo, para assumir as lutas dignas e necessárias para o avanço social. Rezumbindo, nas escolas, em todos espaços culturais. Rezumbindo, ao mostrar a cara, nas reivindicações que favoreçam a consecução dos objetivos maiores do homem: respeito humano, igualdade de oportunidades, direitos iguais. Rezumbindo, ao exigir que passem a limpo a sua História, com a maior brevidade. Rezumbindo, nas famílias através da coragem, da perseverança para conduzir-se íntegro. Rezumbindo, na derrubada dos estereótipos criados para desculpar a escravidão. Rezumbir é viver a negritude com dignidade. Tudo é questão de ensinamentos e energia. É ladainha que precisa soar forte como zumbido; Zum, Zumbi, Zumbido, Zumbindo. Rezumbindo. Rezumbir é ter presente a força de Zumbi dos Palmares.

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REBELIÃO DOS SAMBISTAS O desfile dos sambistas está atrasado, o que pode levá-los à desclassificação no torneio de samba, luxo e criatividade, no terreiro do palco da Ópera Popular. É Carnaval, na Avenida de asfalto. O cenário de luzes e formas cintilantes dá brilho especial e mágico à noite. Tudo está pronto; até o céu, pano de fundo iluminado do grande teatro. No magnífico terreiro do palco, a televisão mostra camarotes dourados onde nascem entrevistas de pouco conteúdo e a evidência de muitas cifras, enquanto estranhos elementos importados e lucrativos aguardam o espetáculo. Rodeando o palco, cambistas decoram textos para arrecadar valores. Falam repetidas palavras, transformando-as em bango15, em seguida. As rádios, num afã de saudosismo, transmitem o Zé Pereira, enquanto não despontam as baterias. Representantes de todas as mídias encontram-se no terreiro, ensaiando a garganta para os comentários, ajeitando microfones, câmeras, gravadores, filmadoras e outros aparatos sonoros e visuais. Os jurados do desfile estão posicionados em frente a um simbólico gongá16 do terreiro do samba , onde irão consagrar as cabeças dos melhores do Carnaval. Nas arquibancadas, calvário de concreto, a platéia empilhada aceita o sacrifício para assistir ao “Monumental Espetáculo do Povo”. A platéia parece acostumada com as dificuldades para a realização de seus desejos. 15 bango - dinheiro 16 gongá - altar

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Autoridades, preocupadas com o início do evento, reúnemse com alguns presidentes das Escolas de Samba, exibindo-os na vitrine de inédito carro, em suntuosa “Fanfarra”. Estão trajados a rigor e representam Ogãs17, no terreiro. Da passarela do samba, ainda está ausente o tiquitum...Tiquitum...Tiquitum... que faz aquele fervo ambiental, aquela energia dos sambistas, na exaltação apoteótica da cadência de uma raça. Sem os sambistas, súditos da Corte Carnavalesca, a rainha do Carnaval recusa-se a entrar em cena. É então convidada pelo Rei Momo para mostrar-se ao público. Relutante em obedecer às ordens do Rei, gentilmente é conduzida por atlético Capitão do Mato, fantasiado de Segurança, até seu posto real. Mesmo assim vai insegura, sentindo a falta dos sambistas, entre os quais exerce a liderança da Ópera. Fazem-na exibir sua beleza exuberante e o gingado sensual. Coitada da Rainha! Indefesa, longe dos seus sambistas, “Rainha de Ninguém”. Contrariada e triste, segue sua representação, honrando as tradições. No palco deslumbrante, senta-se em belíssimo trono. Mas a contrariedade da Rainha, tão grande e tão pesada, afunda o trono da falsa nobreza negra carnavalesca. Iluanda, a Rainha do Carnaval, sofre queda violenta. Adormece. Tem um súbito desmaio, pleno de fantasias. De imediato é socorrida por estranhas criaturas sobrenaturais. Perde a consciência, mesmo sem toques do tambor. Fica possuída por Nzinga, Rainha africana, audaciosa e soberana em sua africanidade imortal. Iluanda, a Rainha do Carnaval, ao ser socorrida, passa a viver momentos de um “transe-sonho”. Nzinga, mulher enigmática e consumada nas lutas pela sobrevivência do seu Reino e do seu povo africano, incorporada em Iluanda, toma iniciativas de funcionalidade societal. Transportaa até os sambistas, em lépidas nuvens, auxiliada por suas duzentas 17 Ogã- guardião da casa de Candomblé, sem obrigação de culto, escolhido pelas suas posses ou prestígio cultural ou político

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mucamas do Irunmalé18. Os caminhos para chegar aos sambistas não são difíceis, mas só os familiarizados com eles têm acesso ao esconderijo, o longínquo e escuro Bosque da Concentração. Ali está o apogeu das atividades dos barracões, de muitos paraísos de ilusão do solo brasileiro. A rainha Nzinga inspira Iluanda a prestar muita atenção em todo o cenário, pois sabe, através de suas mucamas, o que está se passando no bosque. Iluanda, a Rainha do Carnaval, ao encontrar-se com seus sambistas, sente-se Rainha de Verdade e começa a rodopiar de contente, perdendo a pose real. Em seguida, cessa o rodopio ao ver que seus súditos aproximam-se em silêncio, enchendo a atmosfera de um ar tristonho, bem diferente dos ares carnavalescos. Os súditos fazem-lhe reverências de cabeça, respeitosamente. Os tambores estão mudos. Não há canto. Não há toques. O samba não ecoa. Nzinga sopra-lhe intuições para que aceite tudo que vê no Bosque e interprete aquele carnaval de silêncio, como forma de fortes protestos sociais. A Rainha do Carnaval, ocupada por Nzinga, obedece as ordens, sob pena de ser destituída do cargo, se agir ao contrário. As mucamas do Irunmalé iniciam intensa movimentação. Cambonas19 prestativas, militantes de esquerda do além, correm pelo bosque para saber se todas as Escolas de Samba estão ali presentes. Anotam, nas planilhas do invisível, a presença das cores verde e rosa, amarelo, vermelho e branco, azul, prata, ouro, todas as cores de várias tonalidades e combinações. Informam à Rainha do Carnaval, a presença dos estandartes com suas cores tradicionais. Iluanda, ao saber da notícia, adquire uma postura de maior realeza e fica apta a acompanhar aquele estranho Carnaval em seus mínimos detalhes, conforme sua possessora lhe havia ordenado. 18 irunmalé – grupo de Orixás de esquerda que administram determinadas áreas da criação, não criam 19 cambonas – auxiliares do Chefe de Umbanda; assessoras

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As Comissões de Frente das Escolas de Samba reverenciam a Rainha, todas ao mesmo tempo, sem individualidades. Trajam batas de saco desbotado e estão iguais, representando a ideologia unificadora da massa carnavalesca. Abrem caminho para os atores de enigmático cenário que irá aos poucos desvendar-se. As Porta-estandartes, juntas, carregam pesada cruz que Iluanda identifica como a aglomeração de todos os estandartes que estão na concentração. Nzinga sopra-lhe ao ouvido que a cruz representa a união das bases organizacionais. A seguir, acontece o desfile de carros e muito povo. Parece uma carreata. A Rainha do Carnaval fica muito irritada e precisa ser adoçada pelas mucamas do Irunmalé que lhe explicam que a carreata não é política, mas o resultado da criatividade de carnavalescos e figurinistas talentosos, protegidos de Obalufã, a serviço do povo. Surge o Carro Abre Alas, um caminhão coberto de folhas de bananeiras, representando imensa Catedral. Conduz centenas de negros seminus com milhares de dentes maravilhosos. Empunham tochas para iluminar a Ala das Crianças que estão fantasiadas de povo, com esfarrapadas camisetas de campanhas políticas. As crianças rolam, lutam e brincam e caem no terreiro de cafofos20 do portentoso templo que em focos letreiros se anuncia como a “Catedral dos Massacrados”. Nzinga, incorporada na Rainha do Carnaval, está fascinada. Agitadora e cheia de intentos reivindicatórios congratula-se com os sambistas, pela forma original de contestação. O Mestre-sala e a Porta-bandeira refugiam-se em mil plumas, salientando apenas o sorriso. Reverenciam a Rainha Iluanda e comportam-se como recepcionistas de porta de templo, perfeitos aliciadores para fazê-la entrar em seus rituais. Fazem chamadas com as plumas para que a Rainha se posicione em bom lugar para vislumbrar a Catedral dos Massacrados em seu todo. Aparece um carro elevadíssimo com “Destaques” cada qual mais destacado e principal que o outro. Numa cúpula de castelo 20 cafofos - túmulos

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gigantesco de areia, está a Divina Luta, vestindo um abadá energético, com vigorosos adereços, as ferramentas de Ogum. É um destaque tão grande e tão presente que seus pés rompem a cúpula do castelo e sustentam-se no chão, amparados por fortes mãos calejadas de operários, fantasiados de Paladinos da Esperança. A Rainha, extasiada diante daquela criação, grita: “Saravá! Gratia Plena! Dominus Tecum!” Está possuída pelo sincretismo de Nzinga que em seu reinado africano, lá pelo século XVI, em Angola, já sabia do poder da Religião para obter penetração no mundo ocidental e deixara se batizar pelos padres, assimilando o vocabulário do terreiro e da Igreja, ao mesmo tempo. Os Coordenadores de Alas, conduzidos pelas mucamas, apresentam-se para Iluanda com estranhas reverências de vai lá e vem cá. Parecem inquietos e preocupados com o desenvolvimento da carreata, com a coreografia das Alas que começam a desfilar. A Ala Show é a primeira que surge com seus milhares de homens e mulheres desempregados, travestidos de alvas carteiras de trabalho. Usam luvas de classificados de jornais e chapéus com labaredas de papel crepom vermelho, queimando-lhes o cérebro. Mostram-se dignos de muitos aplausos pela movimentação da dança, pois curvam-se até o solo, fazendo incríveis evoluções com o ventre. Como exímios bailarinos da Catedral dos Massacrados, estão deslumbrantes. A Rainha Nzinga, quando vê aquela gente com cabeças prendendo fogo, pede à líder dos sambistas que tome providências urgentes para aliviá-los. Iluanda solicita às mucamas que dêem um bom banho de descarrego na Ala Show dos Desempregados. Aproxima-se o carro alegórico “Onde Moras”, com uma extensão sem fim de terras de ninguém, bem ao lado de malocas e maloquinhas, subindo um morro a dentro, comendo um morro. Junto ao carro vem a Ala dos Invasores. Todos os componentes usam minúsculas fantasias só para cobrir-lhes o sexo. Seus chapéus são de palha com enormes carcarás enfurecidos, como

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detalhes. Os pés descalços estão pintados de barro e sapateiam, sem parar, uma chiba desenfreada, sem tamancos. Nzinga, indignada com aquele cenário, pede no transe-sonho para que Iluanda liberte seus súditos sambistas daquele ritual de pés no chão. Necessita tirá-los daquela catedral pagã e primitiva, de quarto mundo: a Calunga21. A Rainha do Carnaval chora, quando começa a passar o Carro alegórico” Acidente de Percurso”, com a Ala dos Aposentados, comendo pedras de dama numa miniatura de panela, rodeados de pivetes que carregam gigongos22, furtados de um Palácio Encantado. Iluanda pede socorro: Por Nanã23, por Oxalufã24, dêem um paxorô25 e um amalá26 para estes velhos, pobres velhos! Nas mãos, os aposentados levam transparentes alegorias, sacolas vazias da cesta básica. Estão fantasiados com uma capa de receitas médicas não aviadas e pesados adês27 imobilizam-lhes o pescoço. O desfile envolvente e sátiro agrada a Nzinga pelo teor da reivindicação, pela forma de protesto. Nzinga gostaria de saltar para fora da Rainha do Carnaval e abraçar aquelas alas que representam os quadros vivos da carreata cotidiana dos sambistas. As vibrações de Nzinga passam para Iluanda, em impulsos emotivos. Um carro alegórico destaca-se dos demais: o faladíssimo e prometidíssimo “ Na Catedral, as 7 Promessas Capitais”. No carro, um gigante adormecido está deitado sob enorme gameleira 21 Calunga - cemitério 22 gigongos – instrumentos de ferro fundido em forma de ferradura ,era tocado durante as lautas refeições da rainha africana N’Zinga, século XVI 23 Nana – Orixá feminino, a mais velha das divindades das águas (paradas e lamacentas) sincretizada como Sant’Ana 24 Oxalufá – Oxalá velho 25 Paxorô – o cajado de Oxalá 26 amalá – comida ritual de santo em especial de Xangô, no Rio Grande do Sul; pirão de farinha de mandioca acompanhado de mostarda e carne de peito de gado 27 adês – adornos de metal ou seda com bordados e franjas de vidrilhospresos à nuca por um laço

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esplêndida. Tem, ao lado, sete destaques: as Promessas Capitais: Habitação, Saúde, Educação, Trabalho, Alimentação, Transporte e Segurança. Os destaques, junto da gameleira, estão arriados. Dormem profundo sono, roncando e gerando muito barulho. Atrás deste carro, a Ala do Eleitorado, com milhões de componentes fantasiados de beijinhos xôxos. Carregam balaios furados de onde caem muitas esperanças. Desenvolvem uma dança-correria que dá muito trabalho ao Coordenador para colocá-los em ordem. Parecem correr atrás do que não existe. Nzinga, guerrilheira e batalhadora pelas suas aspirações, pelos seus ideais de tranqüilidade para o povo afro, reconhece o elevado potencial criativo dos protestos carnavalescos. Está orgulhosa com a irreverência dos sambistas, a maioria negra. Que estupendas criações! Que sincretismo! Terreiro e Catedral Calunga e Carnaval. Iluanda concorda: - Aleluia! A carreata fica cada vez mais significativa, com o desfile da Ala dos Analfabetos. Na frente da Ala, o carro “ Projeto Minerva”, uma sala de aula mofada, já utilizada em outros calendários do Carnaval. Apresenta curiosa atração: a sala de aula numa casa de Batuque onde até a Mãe de Santo de Xangô faz obrigação com um pacote confuso de letras. Os componentes desta ala apresentam suas digitais em pisca-piscas eletrônicos pendurados nos dedos. Uma venda nos olhos deixa-os cegos para seguirem o desfile com naturalidade. Nzinga, outrora mulher de muita cultura, faz verter as lágrimas de Iluanda diante daquelas frágeis criaturas que denunciam o estado de ansiedade pelo obscurantismo dos seus horizontes. Logo depois, fica um silêncio grande, surgindo tétrico carro alegórico: “Fantasma da Ópera”, onde o destaque é terrível, dançando em volumosa maca que voa para fora de um hospital, em tapete mágico. O horrendo fantasma vem acompanhado de silhuetas indefinidas. Os componentes desta ala são milhares de homens, mulheres e crianças que desfilam descompassados, debilitados, massificados.

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Alguma coisa muito grave acontece na ala do fantasma, parece prenúncio de morte . A Rainha do Carnaval, intuída por Nzinga, ordena a presença dos Coordenadores de Alas para que cuidem do renascimento daquela gente. Exige-lhes que providenciem um savô28, com muita urgência. Seus súditos não podem ficar entregues às forças do mal. Enquanto os coordenadores, ajudados pelas mucamas do Irunmalé, preparam as estratégias para reabilitar a ala dos doentes, surge mais um carro de protesto: “A Arca de Noé”, na frente da Ala dos Passageiros. O Transcendental carro alegórico, bem no centro da Catedral, carrega sambistas amarrotados uns por cima dos outros, não se movem. Seu destaque, uma catraca- monstro, com grande buraco nas costas, engole dinheiro. Os componentes da Ala dos Passageiros estão fantasiados de moedas. Não conseguem desfilar com desenvoltura. Cada vez que passam perto do entupido carro, são engolidos pelo seu destaque, a catraca feroz e desvairada do coletivo carro. Iluanda, aterrorizada com os acontecimentos, chama os membros de todos os Conselhos das Escolas de Samba e muito positiva, conduzida pela Rainha Nzinga, ordena-lhes que destruam o sistema subversivo, discriminador e terrorista de transporte dos sambistas como se fossem passageiros para o inferno. Acontece uma explosão, rompendo pelo menos, o silêncio da Catedral. A carreata começa a pegar fogo, quando aparece a Ala Indígena, fantasiada de jeans e uma pena na cabeça, uma grande pena, representando a extinção da raça, o apoderamento de suas terras, a destruição ecológica. Os índios tomam parte, lentamente, nos rituais da Catedral dos Massacrados. A Ala Indígena traz melancólico carro alegórico “Índio Também Come” onde o destaque é um pajé mostrando enorme peixe de papelão, escorrendo viscoso liquido que envenena os insetos do terreiro da Catedral. 28 Savô- trabalho especial para afastar epidemias, catástrofes naturais ou para qualquer emergência de repercussão social

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Nzinga, possuidora de muita sabedoria e conhecedora de todas as culturas, dá um grito de guerra através de Iluanda: – Tupã! Tenha dó de índio. Retira esta pena da cabeça dele. É uma pena miserável. As mucamas, muito prestativas, dão um banho de marafo no peixe envenenado. A Rainha do Carnaval parece meio tonta com o cheiro do marafo. Começa a rodopiar. Mas são os rodopios da Ala das baianas que a fazem girar num magnetismo cósmico. Exclama: – Lindo! Lindo! É o céu de Olorum29. Na frente da Ala das Baianas, o carro “Lavagem de Terreiro”, onde mulheres lavam portais de malocas, pequeninos templos das favelas. Conjugam arte e protesto. As baianas, de saias brancas e cheias de babados, representam todos os cultos das nações. Também usam torsos de jornais onde aprecem pesadas manchetes, deturpando os cultos afros. Nas mãos, leques gigantescos são aproveitados para refrescar a cabeça dos Mestres de Baterias que estão imobilizados em troncos, devido ao adiantado da hora. Observam estranha Lei do Silêncio para que uns monges, logo ali, em faraônica mansão, possam dormir de barriga cheia. Os batuqueiros, almas palpitantes da Ópera Popular, estão recolhidos num casulo bem distante do fervo da carreata. Baixam os olhos e ajoelham-se em cima dos instrumentos, saudando a rainha com acenos de colheres de pau de uma cozinha encantada. A maioria das madrinhas das baterias, deusas padroeiras dos tocadores, olha para o alto. Sentem-se glorificadas e ignoram a tristeza dos afilhados e a própria Rainha do Carnaval. Passistas fazem malabarismos com marmitas vazias. Gingam até o chão e depois, como mágicos, ficam de pé novamente. Nzinga admira-se com aquele equilíbrio dos artistas do samba. No bosque, as mucamas do Irunmalé fazem defumação de enxofre para afastar as forças negativas. Sobe uma fumaceira quando o carro do som reproduz toques de sinetas. 29 Olorum- O criador do Universo

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Os Puxadores de samba, todos juntos, invocam: “Olha a Catedral dos Massacrados, aí gente! Vamos puxar a reza-enredo, o Pai Nosso Nacional!! Pibá, Pibá! O Pão Nosso de cada dia nos daí hoje Se subiu, ninguém sabe, ninguém viu Me dá um dinheiro aí Mande água prá Ioiô Eu não tenho onde morar É por isto que eu moro na areia O meu boi morreu Que será de mim Vou me embora prenda minha Abre alas que eu quero passar E gritava a-e-i-o-u-y A cor desta cidade sou eu A vergonha é a herança maior que meu pai me deixou Alalupagema30! Amém. Sabadabadá! Axé! A rainha Iluanda, tomada de sensibilidade, ajoelha-se aos pés dos Compositores e dos Puxadores de Samba, inebriada pelo alto teor de inspiração daquele Pai Nosso e pela força das mensagens cantadas por muitas gerações de sambistas. Entusiasmada por Nzinga, com a magnitude da Carreata Carnavalesca, sente vontade de mostrar na Avenida da ópera Popular, aquela fantasia-realidade que os sambistas vivenciam. Conspira liderar centenas de exércitos de forças afro-brasileiras, conclamando-os à luta, fora daquele bosque, para a derrubada da Catedral dos Massacrados. 30 Alalupagema- parte de uma reza de Batuque

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Absorve-se nestes pensamentos, quando chegam os Diretores de Carnaval para explicar-lhe as estratégias da Rebelião dos Sambistas. Pedem-lhe perdão, mas dizem que não podem desistir de repensar o Carnaval, longe da avenida. Em coro, iniciam o discurso: “Vossa Alteza tem conhecimento de que seus súditos, milhões de negros, têm força e talento para desenvolver atividades relevantes além do Carnaval. Desejamos um trono de verdade para Vossa Alteza onde possa ser cortejada todos os dias e que os seus valores sejam reconhecidos não somente nas passarelas do samba. Decidimos, em conjunto, aderir à ideologia unificadora de nossas bases organizacionais, somando forças para exigir o cumprimento de cláusulas sociais que garantam nosso desempenho de cidadãos. Somente voltaremos a batucar para o sistema, quando tivermos um nível decente de moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, transporte e segurança. Vossa Alteza não merece um trono somente de três dias. Precisamos organizar a nossa Corte para dar segurança ao seu Reinado”. A rainha comovida, aliando-se aos súditos, exalta-se com o discurso. Grita-lhes: – “Povo meu! Explode coração!” É uma causa muito justa que abraçam e a nobreza da ação justifica a ausência do samba na avenida. A velha-guarda, saúda a Rainha, acenando chapéus iluminados. Iluanda, tomada por forte irradiação de luz, fala alto e com muita propriedade: – É brilho demais para um só olhar! Quero que todos sintam a claridade de nossos ancestrais, dos nossos antepassados, das gerações de sambistas que durante anos e anos passam pela avenida, sem que observem o seu clarão interior. Nzinga, a intrépida rainha do Ndongo, amante de tudo que favorecesse o seu poder e do seu povo africano, possui Iluanda integralmente naquele transe-sonho. Não quer mais desocupar o “cavalo”, de tão realizada pelas reivindicações dos sambistas. Deseja a continuidade da rebelião, mas as mucamas do Irunmalé borrifam água no rosto da Rainha do Carnaval e, soprando-lhe

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os ouvidos, fazem-na desocupar-se. Nzinga é transportada no colo para o Céu de Olorum, consciente do socorro que prestara a Iluanda, fazendo-na acompanhar a realidade existente por trás das fantasias dos sambistas, enquanto serviu-lhe de “Cavalo-Encantado”. No Terreiro do palco da Ópera Popular, estouram foguetes. A repórter global anuncia: - Já está aqui na “largada” a Escola de Samba... Os sambistas contam sonhos no samba, tiquitum, tiquitum, tiquitum...”Esta maravilha é de tirar o chapéu. Festa igual ao meu carnaval, só uma festa no céu...” (Nilo Feijó). “Gbalá é resgatar, salvar. A criança é a esperança de Oxalá!...” (Martinho da Vila). Esta narração-fantasia é uma resposta a muitos cidadãos, que se perguntam, ingênuos: por que a maioria negra não se une para conseguir coisas tão belas e fortes como o Carnaval, além do Carnaval, em beneficio de sua etnia? Por que não canaliza todo potencial criativo para reverter sua representatividade no quadro sócio-econômico-cultural brasileiro, derrubando com as Catedrais dos Massacrados? Por que deixar que tudo acabe na quarta-feira? E acaba? Existem históricas estratégias para esconder a carreata positiva do negro, no dia a dia. Uma delas é fazer acreditar que ele só entende de Carnaval.

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CONVERSA DE NEGRO Quem nos conta esta história é o senhor Adão Centeno. Como era muito observador, desde criança, prestava atenção na conversa do pai com os meus tios, nos finais de semana, quando se juntavam para jogar cartas. Assim consegui alguns referenciais de meus antepassados. Mais tarde, depois de adulto, completei os dados através de uma tia velha chamada Violande. A tia gostava de contar os casos de nossa família. Minha bisavó, mãe da avó paterna, chamava-se Joana Feijó. Nasceu em 1833 e foi escrava numa fazenda, em Viamão. Trabalhava na lida doméstica, fazia partos e indicava chás caseiros. Era concubina de um ex-escravo cujo nome me é ignorado. Sempre falavam no marido de Joana, sem citar o nome. Soube que era batuqueiro e que possuía várias mulheres, o que levava a desentender-se com Joana, freqüentemente. Tiveram três filhos: Julião, Leonor e Paulina, entre os anos de 1872 a 1877. Contavam que o ex-escravo iniciava seus filhos no Batuque e que a Paulina não estava indicada para a iniciação. Nunca souberam se foi por motivos religiosos ou por causa dos desentendimentos com Joana, que o ex-escravo roubou da mãe, a menina Paulina. Ele deu-a para uma família branca e rica de Porto Alegre que freqüentava a Paróquia de Viamão. Joana criou os outros dois filhos os quais depois de adultos e casados, repararam pelo pai, que morava com eles, alternadamente. Ela gostava de fazer visitas e de passear com os netos, em Porto Alegre. Quando passava pelo Mercado Público ensinava as crianças a pedirem a bênção para as pretas velhas que ali vendiam rapaduras e cocadas. Em troca, as negras velhas ofereciam um doce para os pequeninos, por volta de 1929.

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Joana veio a falecer com mais de 90 anos. A minha bisavó, mãe do avô paterno, chamava-se Violande. Não se sabe precisamente o ano em que nasceu, perto de 1823. Também foi escrava, porém numa fazenda de Camaquã. Nunca ouvi falar no nome de seu companheiro. Teve quatro filhos, entre os quais o Florêncio Centeno que veio a ser o meu avô. No caso das bisavós, veja que as mulheres ficaram na linha de frente, tomando conta dos filhos. É mais ou menos o que acontece hoje com as mães solteiras. Geralmente começaram assim as famílias de negros, com a marcante presença da mulher e com sobrenomes que não se sabe de onde saíram. Seria a Joana dos “Feijó de Viamão”? Ou Violande dos “Centenos de Camaquã”, a julgar pelo sobrenome de meu avô? Era comum os escravos serem chamados pelo sobrenome dos seus donos e mais tarde, o perpetuarem. O Instituto Estadual de Genealogia, em Porto Alegre, talvez possa esclarecer algumas descendências. Mas ainda não fui procurá-lo. Recebi, com relação ao sobrenome Centeno, uma carta do Dr. José Francisco Centeno Roxo, em 1979. Este Dr. descobriu o meu sobrenome Centeno através da lista telefônica. Nos documentos que dirigiu-me, coloca que só existe um ramo dos Centenos. Resume-se no seguinte: 1ª geração – Capitão Vitoriano José Centeno, da freguesia de São Julião, na cidade de Lisboa e casou-se em Triunfo, em 11/7/1767, com Faustina Maria Pureza de Jesus. Era colega de farda e na Câmara de Vereadores do Capitão Joaquim Gonçalves da Silva, este pai do General Bento Gonçalves da Silva. Ambos casados com netas de Jerônimo de Ornelas Menezes e Vasconcelos que faleceu em Camaquâ, 1909; 2ª Geração – Sargento Mor Ventura José Centeno, filho mais velho dos 4 Vitorianos, nasceu em Camaquâ a 20/7/1769, casou-se com Antonia Joaquina da Silva, irmã do General Bento Gonçalves, na Fazenda Charqueadas; 3ª geração – Antonio José Centeno com Maria Angélica da Silva que recebe a Sesmaria de Santo Antonio da Boa Vista do Paraíso. No conteúdo existe certa relação com os locais onde nasceram a minha bisavó e meu avô. Também vários fatos da história

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deles vão levantar algumas ligações com certos nomes citados na carta. Ao enviar a correspondência, o doutor não sabia se eu era negro ou branco. Continuo pensando que a Violande era escrava dos Centenos, de Camaguã. As uniões conjugais não eram oficializadas e havia o sistema de concubinato ente os próprios escravos ou entre escravas e senhores brancos. Em geral os homens possuíam mais de uma mulher, como era o caso do companheiro de Joana. Minha avó paterna chamava-se Paulina, a filha que foi roubada pelo pai aos 6 anos. Ela foi doada para o casal José Vicente da Silva Teles e a professora Joaquina Cota da Silva Teles. Eles não tinham filhos e criavam várias meninas pretas, mulatas e brancas. Moravam na rua da Igreja, hoje rua Duque de Caxias. Possuíam muitos empregados e cocheiros. A Senhora Joaquina Cota alfabetizava as meninas e as iniciava nas atividades artesanais de corte, costura, bordado e formação católica. Quando casavam, recebiam dote, conforme o costume das famílias brancas e ricas. Na juventude de Paulina, pouco antes de seu casamento, o ex-escravo contou para Joana onde estava a filha. Joana passou a visitá-la, depois de casada. Viajava de vapor, de Porto Alegre para Guaíba, onde Paulina foi residir. A filha recebia a mãe com respeito e mais tarde ensinou os filhos a respeitá-la como vovó. Não houve aproximação com Leonor e Julião, pois embora não os renegasse como irmãos, não os aceitava como batuqueiros. O dote de Paulina constou de uma casa com 14 hectares de terreno, dividido em 5 pequenos lotes, na antiga Estrada da Rapadura, atual avenida Breno Guimarães, em Guaíba. O casamento de Paulina foi com Florêncio Centeno, filho de Violande. Ele nasceu em Camaquã. Ainda menino foi para a fazenda de Aquim ou Quim como era também chamado. O Quim havia sido criado numa fazenda de familIares de Bento Gonçalves. Trabalhava de tropeiro, inicialmente, e era de gênio muito ruim, enérgico e rude. Meu avô serviu a este senhor e foi protegido pela filha dele de nome Caetana que chamava Florêncio de irmão. Talvez fosse mesmo. Aquim era mulato.

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Ainda muito jovem, meu avô foi capataz da fazenda do Dr. Benito Couto Silva. Contava os bois que levava para o matadouro, usando conjunto de pauzinhos, através dos quais estabelecia a comparação de quantidade entre os bois da tropa, na hora da contagem. Se algum gado morresse pelo caminho, tirava o couro para apresentá-lo ao senhor, como prova de que não havia sido perdido, nem roubado. Ao casar-se com Paulina foi morar na Estrada da Rapadura e continuou a trabalhar de capataz, porém na fazenda do Franklin de Souza, em Guaíba. Em casa, cultivava as terras, o que também ensinou para os filhos, inclusive a feitura de enxertos. Havia uma parte do terreno que chamavam de Potreiro Velho, onde plantavam milho, mandioca, batata doce e árvores frutíferas. Em outra parte, na frente da casa, era o Potreiro novo, com pastagens para o gado. Sempre manteve a amizade com a Caetana que passou também a ser amiga dos seus filhos e netos, chamando-os de sobrinhos. Florêncio e Paulina tiveram 11 filhos: Algemiro,(1898), Waldemar, Violande, Maria, Arcênio, Otília, Luiz, Paulina, Sebastiana, Sophia e Júlio. Todos os filhos foram alfabetizados e receberam formação católica por causa da vó Paulina. Um dos seus filhos, Algemiro Centeno, casou-se com Simeana Marques, procedente de Taquari e filha de Clara de Jesus e Geraldo Firmino. Algemiro, ainda criança, ajudava o pai nos serviços de capatazia em Guaíba, trazendo o gado das invernadas para o matadouro. Com 14 anos foi trabalhar na Fazenda do seu Marcinho. Com 18 anos mudou-se para Porto Alegre, em busca de trabalho. Foi morar junto com tia Leonor e seu marido Fábio Santos, ambos batuqueiros não aceitos pela vó Paulina. Eles moravam nas obras da Alfândega onde o tio Fábio trabalhava. Nessa época, depois da guerra de 14, havia uma epidemia de gripe que chamavam de Espanhola. Argemiro “pegou a Espanhola” e precisou retornar a Guaíba para tratar da saúde.

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Restabelecido, voltou para Porto Alegre porque soube que estavam precisando de trabalhadores para o término das obras do Porto. Era na administração do Dr. Borges de Medeiros, quando ele iniciou a trabalhar na construção do Porto, começando do portão geral até o novo Frigorífico que hoje seria perto da Rodoviária da capital gaúcha. Contava que no governo do Dr. Borges cessou a administração das obras pelos franceses, cujas máquinas eram sucateamento já utilizado em outros lugares. Falava que o Dr. Borges, muito dinâmico e inteligente, não quis mais aquele material. Vieram máquinas novas. Algemiro era então servidor público e orgulhava-se disto. Lidava com serviços pesados. Para trabalhar usava tamancos, culotes, casacão de brigadiano. Mas para ir até o serviço, usava traje completo com gravata. Dizia que quem trabalhava para o governo tinha a obrigação de andar bem apresentável. Mesmo nas épocas mais difíceis, ele andou assim. Exigia dos filhos uma boa apresentação e capricho. Procurou aprender todo o serviço e especializou-se na construção de plataformas. Em 1945, durante a II Guerra foi cedido por dois anos para Florianópolis, Santa Catarina, para construir rampas para hidroaviões, na Base Aérea do Ministério da Aeronáutica, pois falavam que os alemães atacariam o Brasil. Foi indicado pelo Governo para a obra e levava uma carta de apresentação da Companhia de Indústrias Gerais Obras e Terras, antiga Dahne Conceição. O conteúdo principal da carta: “É com a maior satisfação que desejamos ressaltar a Vossa Senhoria os ótimos, dedicados e eficientes serviços que nos foram prestados pelo senhor Algemiro Centeno que recomendo como um profissional competente e capaz para esta espécie de trabalho”. Assinava Ildo Meneghethi, presidente da empresa. Enquanto esteve afastado, pediu para que um dos irmãos que já estavam todos trabalhando no Porto, fosse buscar o salário dele com o pagador. O dinheiro vinha num envelope. O pagador

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ia fazendo a chamada dos operários e entregando os valores. O irmão encarregado foi o Luiz que deixou de beber e conversar com os amigos como era de costume, no dia de seu pagamento, porque precisava levar o dinheiro do irmão para a cunhada. Esta passagem me emociona, pois a família não acreditava muito no tio Luiz devido a sua vida de farrista gastador. Mas ele fazia a coisa certa para o irmão. O ser humano surpreende. Quando a obra da Alfândega ficou pronta, os operários tiveram que abandonar a moradia no local e então a Leonor e o Fábio foram para a rua Dona Teresa, atual Jacinto Gomes. Algemiro, já casado com Simeana, foi morar no Mont’serrat. Deste bairro eles guardaram momentos bons e recordações bonitas. Diziam que encontraram a raça no salão do Licurgo. Possuíam apenas tristeza por não terem filhos. Quando saíram do Mont’serrat, vieram para a rua São Manoel nº 2086, era por volta de 1932. Mesmo depois de aposentado, Algemiro ainda trabalhou no Edifício Professor Alberto de Souza, na rua Marechal Floriano, 167. Ele se envolveu na construção e na conferência de material. Depois ficou como administrador do Edifício, responsabilizando-se por colocar empregados na limpeza, nos elevadores, tirar notas de pagamento. Era um edifício só de escritórios. Em 15 de outubro de 1955, faleceu no serviço. Este exemplo de vida dedicada à família e ao trabalho me comove muito, principalmente, quando vejo o negro ser taxado de vagabundo e da forma como esquecem da sua colaboração, no Rio Grande do Sul. Assim como a escrava Joana, o capataz Florêncio e o funcionário público dos serviços pesados Algemiro Centeno, existiram e existem muitos negros que merecem o maior respeito na sociedade. Algemiro e Simeana foram os meus pais. Eles tiveram cinco filhos: Adroaldo, Antônio, as gêmeas Maria Teresa e Teresa Maria e eu, nascido em 1925. Mozart é meu nome, Adão Mozart Centeno. Ele tem origem a partir de um futurólogo que andava em Por-

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to Alegre por esta época, pregando que todos os nascidos naquele período deveriam ter o nome Mozart para serem bem sucedidos, felizes. Minha mãe já havia perdido três filhos, todos antes de um ano de vida. Na ansiedade de poder criar um filho, seguiu as instruções do futurólogo. Quando nasci, me batizaram Mozart. Esta história pode ser confirmada por dois amigos que também são Mozart e inclusive os pais pleitearam judicialmente para que adotassem o Mozart como sobrenome: Baiar Mozart Guedes e Paulo Mozart Guedes, funcionários públicos do DAER. Por um bom tempo escondi o nome Mozart, pois meu padrinho contava que o padre que me batizou disse que haviam me botado este nome por causa de um cafajeste, o futurólogo. De fato fui e sou muito feliz porque convivi com uma família especial. Meu pai não batia nos filhos, dava poucos conselhos, porém conversava muito. Jamais vi meu pai bêbado, apesar de gostar de vinho e repartir com todos à mesa, não admitindo que se colocasse água ou açúcar, preservando o sabor natural da bebida. Sempre recebi tarefas para serem feitas em casa. Aos domingos acompanhava o pai na plantação. O terreno, com 8mx60m já era propriedade da família, na Rua São Manoel. Sabia que a compra daquele terreno fora muito sacrifício de meus pais. Algemiro, no cais do porto e Simeana, lavando roupa para fora. A mãe aguardava pela chegada do pai para fazer a janta, pois ele trazia a carne. Enquanto esperávamos o jantar, ele nos contava histórias do seu tempo de menino ou de serviço. Também costumava contar para minha mãe os acontecimentos do seu trabalho. Nunca ouvi o papai falar em voz alta ou ríspida com a minha mãe. De vez em quando, a gente até sabia que eles estavam brigando, mas no quarto, nunca na nossa frente. Em 1938, quando já tínhamos rádio, o pai tirava a mãe para dançar quando tocavam as músicas. Chamávamos o pai de senhor e a mãe de senhora e eles tratavam-se pelo nome. Os meninos possuíam apelidos, como Dei que era eu, Tila, o Anto-

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nio, Iado, o Adroaldo. Quase sempre os apelidos nasciam de uma briga, por troça, e depois ficavam carinhosos. Tratávamo-nos de “maninhos”. Aos 6 anos meu pai fez com que eu aprendesse a ler pelo método João de Deus, posterior ao soletrado. Em 1935 fui para a Escola Paroquial da Rua Larga, atual Domingos Crescêncio. Estudei 4 anos lá e em 1939 parei de estudar. Depois dos filhos alfabetizados, meu pai não se importava que parassem de estudar, desde que fossem trabalhar. Meu pai era homem de trabalho. Minha mãe, disciplinadora, possuía medo da fome e não esbanjava o que possuía. Meus irmãos e eu tínhamos muito respeito pelos mais velhos e, principalmente pelos batuqueiros da Rua São Manoel porque nos assustavam muito com o Batuque, no Colégio. Lembro da Dona Zacarias, uma negra alta, simpática e que ao mesmo tempo dava medo porque se identificava como batuqueira. Havia também o Alfredo Barbosa e dona Justina. Ela usava um pano trançado na cabeça e todas as tardes, quando chegava do trabalho que era na casa dos Mazeron, ia para um quarto, acendia diversas velas na frente de um altar. As crianças espiavam, de longe. A dona Justina vinha a ser parente da dona Andreza, batuqueira da rua Silva Só, muito amiga dos estivadores. Na Rua São Manoel, perto de nossa casa, ficava o campo de futebol da Estiva e a dona Andreza estava sempre por lá com o marido chamado Justo. Os estivadores mais velhos iam torcer pelo time e os meninos ficavam dançando, divertindo-se. Havia um espaço que possibilitava que dançassem uns 40 pares, fora da área de jogo. Nesta época eu estava com 12 anos e recordo que falavam na Mãe Ritinha de Xangô que também morava na rua São Manoel, onde tinha bastante negro e batuqueiros. Antigamente os Pais de Santo eram negros, quase todos. A presença do Batuque naquela zona não criava problema para a nossa família. Os batuqueiros eram muito bons para as crianças e eram respeitados. Se estávamos brincando no meio da rua, jogando futebol ou rouxinol, cuidávamos para não bater a

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bola na dona Zacarias ou na dona Justina e até parávamos o jogo, se elas vinham por perto. Também aparecia na Rua São Manoel, a dona Jacinta, que era de Nação, na Rua Taquari, pelas redondezas. Apesar de freqüentarmos a Igreja, meu pai ia em festa de batuque junto com os cunhados e irmãos e inclusive tinha um primo chamado Antoninho que era batuqueiro, no Mont’serrat. O Antoninho era muito conceituado nas festas brasileiras, as quais não são festas religiosas. O pai contava que os filhos de santo arrumavam uma mesa especial para Antoninho, nos cabarés ou nos clubes. Outro fato que recordo é o da presença de imigrantes italianos na Rua São Manoel, próximos da nossa casa. As crianças brancas dos italianos riam do nosso colégio que era de madeira, o São Francisco, na rua Larga. Pegavam o bonde pra freqüentar o colégio Dante Alighieri e achavam graça porque íamos a pé para estudar. Consideravam a escola deles melhor que a nossa. Naquele tempo Mussolini havia invadido a Abissínia e então ocorria certa gozação entre as crianças. Mas na hora de torcer no futebol, o pessoal da zona se juntava. Dava muita negrada no time da Estiva, muito polaco e português. Quando estava mais adulto percebi que havia time de futebol só de brancos, mesmo nos times varzeanos. O Partenon e o 20 de Setembro não botavam jogadores negros. Em compensação, não havia esta discriminação no Geral das Industrias, no Estivador e no São Paulo, da vila Santa Luzia. Os divertimentos eram torcer no futebol e dançar nos salõezinhos do bairro, e depois no São Jorge, na Rua Dona Tereza; no Fica Aí Na Capital, perto da rua Laurindo; nos Prediletos, na avenida Protásio Alves. Mais tarde nos tornamos freqüentadores da Sociedade Floresta Aurora. Nos salõezinhos do bairro deixavam entrar a gurizada branca, menos mulheres brancas. Lembro que ia na rua Barão do Amazonas, no Salão da Mãe Geralda. A Mãe Geralda era Mãe de Santo, uma pessoa pela

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qual tive muito respeito e dificilmente a esquecerei. Essa mulher abrigava em sua casa muitas moças que “davam mau passo” e ficavam grávidas ou eram corridas de casa pelos pais. As meninas ficavam trabalhando, saiam dali casadas. A Mãe Geralda organizava uns bailes beneficentes para ajudar no sustento das moças. Os bailes eram familiares. O fiscal de salão proibia certas danças de cabaré. Os homens de mais idade ficavam na copa, dançavam pouco. As orquestras eram muito boas, pois o mestre Leopoldo, Filho de Santo da casa escolhia excelentes músicos da Banda da brigada que geralmente também eram filhos de santo, para tocarem de graça, instrumentos de sopro. Uma das características do salão da Mãe Geralda era a fitinha azul que colocavam no casaco dos jovens para identificá-los como freqüentadores do baile. No dia do aniversário da Mãe Geralda, ela fazia festa para as crianças e para os adultos, separadamente. Convidava as filhas daquelas mulheres que iam em sua casa e que dançavam na Sociedade Floresta Aurora. Os rapazes deveriam ir das 3 às 6 horas da tarde para comer uns docinhos e eram avisados que encontrariam moças da Floresta Aurora. Eram doutrinados para não faltar com o respeito com aquelas meninas de tão nobre sociedade. A mãe Geralda deixava bem claro que aquelas moças não eram do mesmo nível social das que freqüentavam seus bailes. Sabíamos que ela possuía um quarto de Santo num determinado lugar. Ali não se passava, nem se olhava. Era o medo. O salão era separado do lugar da religião e tinha um coreto pequeno onde ficava a banda. Também havia a copa mas nem sempre ia até lá. Era uma casa de alvenaria, antes da Maria Degolada, atual Vila Maria da Conceição. Mãe Geralda faleceu no final dos anos quarenta. Eu estava em Taquari, na ocasião. Mas me contaram que o enterro foi muito bonito, sempre a pé. Em cada encruzilhada colocavam o caixão em cima de umas cadeiras e faziam um ritual em volta. Conforme o que me recordo, nosso lazer era também reunir-se com os familiares para as festas de aniversario, batizado,

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casamento, primeira comunhão. Ao Carnaval íamos com o pai e a mãe para ver o Corso, quando crianças. Da época dos Corsos não tenho boas lembranças porque vimos pegar fogo num carro. Isto ocorreu perto da Avenida Venâncio Aires com a Avenida João Pessoa. O pai, muito afoito, queria acudir as pessoas e ficamos agitados. Nunca mais houve Corso das grandes sociedades. Não me recordo o ano. Em minha juventude já éramos 12 pessoas em casa, pois além dos 5 filhos, meus pais ficaram cuidando de 6 sobrinhos órfãos. Passei a refletir sobre aquela situação. Não concebia que todos nós pudéssemos viver, desfrutando do mesmo espaço físico, no mesmo pátio. Pensei em casar-me e fui tentando buscar equilíbrio. Lembro-me que comecei a ler muito e alguns livros me deram ótimas diretrizes como “Aventuras de uma Negrinha que Procurava Deus”, de G. Bernard Shaw, “ O Caminho da Sobrevivência”, de William Vogt, “ A Importância de Viver”, de Lin Iutang, antes de converter-se ao Catolicismo. Também li sobre a vida de Karver, um ex-escravo americano e muitos exemplos de vida relatados nas Seleções Redears Digest e na revista Atalaia. Estas leituras me faziam questionar a nossa situação, de forma que desejei fazer a minha independência, iniciando pelo espaço físico. Gostava de todos os meus irmãos, dos parentes, mas pensava que a casa precisaria ter um terreno, separado deles. Para isto trabalhei muito numa mecânica elétrica e fui estudar. Completei o Ginásio no colégio Inácio Montanha depois de 1955, com o pai já falecido. Entrei para a Escola Parobé onde mais tarde fui professor de Eletrotécnica. Conheci a hipocrisia social no mercado de trabalho, embora numa entidade pública, como o colégio. Mas consegui realizar meu sonho de família independente. Agradeço aos exemplos de trabalho do pai que nos jogou esta semente e ao medo da fome que a mãe nos incutiu. Contavam e vivenciaram casos de trabalho, de solidariedade, de coragem e respeito para com o ser humano. A convivência com a família foi muito importante. Cresci vendo meu pai trabalhar para os filhos poderem comer, vestir e

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morar, sem deixar de conversar com a gente, embora não desse sermão. Aprendi a relacionar-me com amigos e parentes ou vizinhos, através da mãe que era capaz de receber a todos e dar guarida na doença, nas desavenças e colocar um basta na hora exata em que não mais precisavam de ajuda. Assim, vi minhas irmãs e a mãe cuidando de uma prima tuberculosa; escutei a mãe contando que acolheu um irmão do pai, mais moço, que havia casado sem consentimento de meus avós; acompanhei o apoio que davam para a tia Violande cuidar do marido leproso que ficou muito tempo no isolamento da Colônia de Itapuã até ficar curado. Sei que hoje as famílias sofreram transformações. Nem sempre há um núcleo completo de pai e mãe biológicos e muito menos aquela macro família, envolvendo avós e tios. Mas sempre haverá alguém na liderança destes núcleos modernos e é preciso que passem exemplos positivos de honestidade, de trabalho, de educação e principalmente de auto-estima para os filhos. Meus irmãos Adroaldo, Antonio e as gêmeas Maria Teresa e Teresa Maria fazem parte da minha história de vida porque nunca nos separamos na alegria e nas tristezas. E conquistaram seus espaços através do trabalho. Minha esposa Erli dividiu comigo o esforço para educar os filhos, trabalhando também fora do lar. Não estamos contemplativos, pois a vida continua nas crianças. Nossa família não é de prole numerosa como a de vó Paulina, mas temos 3 filhos: Zaida Regina, Doutora em Assistência Social, Paulo Roberto, Eletrotécnico, Luiz Fernando, Inspetor de Policia. Esta conversa foi muito importante porque os negros não têm oportunidades de revelar e registrar suas trajetórias e insistem em apontá-los como gente sem condições. E mesmo porque conseguimos resgatar coisas adormecidas e que podem ser questionadas, podem servir para análise do passado e comparação com o presente. Apenas foi a história de uma família que, com certeza, tem pontos comuns com tantas outras famílias negras trabalhadoras.

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O SUPER EVENTO Desde manhã, os testes na aparelhagem de som deixaram a atmosfera, eletronicamente musical. A potência sonora indicava que o evento, ao ar livre, seria daqueles de arrebentar o cortiço. Os fãs do “Raça Negra” estavam de parabéns, principalmente os do Partenon, bairro onde aconteceria o grande show de sambanejo em que o conjunto se apresentaria. Era dia de festa popular num super estacionamento de carros. A costumeira paisagem metálica, os roncos dos motores e a poluição dos combustíveis seriam substituídos por cheiro de povo, pela explosão de gente, buscando espaço. Já no inicio da tarde podia observar, da janela, o formigueiro humano, transitando pela Avenida Bento Gonçalves. Vinham pessoas aos montes, em grupos, isoladas, coloridas, bem vestidas, mal vestidas. Vinham fazendo barulho, cantando, brincando. Os mais silenciosos trocavam beijos, namorando. Acontecia um desfile civil e espontâneo.Cidadãos de todas as categorias, voluntários do prazer, engrossavam as fileiras em direção aos seus ídolos. Os ônibus no corredor passavam lotados como nos horários de pico semanal. Nas calçadas, o movimento das pessoas enchia de vitalidade a presença estática e fria dos muros divisórios dos quartéis, dos hospitais, dos colégios e da universidade, aos domingos. Era transito de povo, vindo de todas as direções de Porto alegre. Desci ao jardim para sentir-me mais próxima daquela energia, Identifiquei-me com os transeuntes. Mas tive certeza que não iria ver o conjunto musical Raça Negra. Era muito povo. Ensaiei uma porção de vezes para sair de casa e acabei optando por aguardar as novidades do evento.

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Areta já estava de saída. Depois perdeu-se naquela multidão de bonés multicores, de jaquetas emboladas na cintura, de cabeças cacheadas, de pés de chinelo, de tênis, de sapato comportado, de pés descalços, pisando no chão ilusoriamente igual, visto à distância. Areta perdeu-se naquela multidão e tornou-se um pontinho minúsculo que escapou-me de vista. Retornei à sala para conversar com o amigo recém-chegado. Ele também não iria ao show. Já fazia um bom tempo que sua homossexualidade visível não lhe aconselhava o enfrentamento com a massa popular. Um velho gay, nem sempre respeitado pelos desconhecidos, preferia evitar constrangimentos de ser hostilizado por quem tanto amava, o povão, como dizia. Ficamos em casa, formando dupla no papo de sempre, falando de negritude, tomando café, comentando as ultimas leituras. Discutimos algumas idéias sobre a linguagem reprimida dos negros e suas diferentes formas de manifestação, assunto abordado por Clóvis Moura no livro A Dialética Radical do Brasil Negro. Comentar livros era um prazer a mais. Analisamos alguns aspectos da imprensa negra paulista, tema acentuado nas memórias de José Correia Leite, escritas pelo Cuti. Fomos unânimes em observar que o jornal A Alvorada, fundado em 1907, no Rio Grande do Sul, era anterior ao Clarim da Alvorada e mais tarde Alvorada, de São Paulo. Não conseguimos aprofundar o assunto, porque o som sambado da rua distraia nossa atenção. Cumprimos o ritual do cafezinho e fizemos uma apologia ao café, chamando-o de preto gostoso e admitindo que era o auge da pobreza, quando faltava pó de café na latinha. Nos proclamamos escravos da cafeína. Depois, foram tantos disparates sobre a vida! Enunciamos frases soltas com dramas existenciais. Lembro-me do amigo fazendo comparações entre vida e teatro, aplausos e conquista, vaias e decadências. E nos atribuímos diversos papéis como se estivéssemos num palquinho mambembe, nossa casa de pobre. Intitulei-me guardiã das estrelas e ele achou o máximo, pois captou os meus filhos nestas estrelas. Ao contrário de mim,

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ele trouxe as reflexões sobre a vida-teatro, dizendo-me que na maioria das vezes não selecionamos os papéis, que nem sempre chegam as oportunidades do desempenho daquilo que desejamos e precisamos figurar até conseguir nossos empenhos. E, ainda continuou, sussurrando... Marginal glorificado, marginal feliz. Perguntei-lhe qual era o seu papel definitivo. Respondeume que nem a morte é definitiva. Acrescentou que há sempre que buscar novos papéis, enfrentando as impostorias, mesmo com difíceis estratégias. A conversa parecia ingênua, mas não era hipócrita, pois estávamos botando para fora muitas coisas às vezes tão caladas. Naturalmente, sutilmente dirigimos o assunto para a negritude e observamos que apesar de tantos papéis sujos impostos ao negro, assim mesmo ele figura, atua esperançado. E embora a sua representação quase definitiva de marginal esteja custando muito a sair de cartaz, ele vem resistindo para assumir melhores encenações. Para compensar, sonhamos uma cena apoteótica com novos Zumbis, abrindo as portas do terceiro milênio onde negros vivenciavam igualmente com os brancos, os frutos da liberdade, com dignidade humana. Nem bem concluíamos aquela confraria mental, quando Areta retornou do show. Parecia nervosa e chorava. Respeitamos suas lágrimas, oferecendo-lhe um chá. Alguns vizinhos também retornavam do show. Contaram que o muro do quartel ficou pequeno para tanto negro encostado para a polícia fazer revista e bater neles. Apavorados, despejavam as noticias: o Julio frentista apanhou, o Neco da padaria apanhou, o Jorge da madeireira também, o Rubinho da imobiliária, a Djavan, aquele veado que nem fala, o Tadeu da gráfica, o “Cabeça Feita” do Colégio Parobé, o Bira da Prefeitura, o Canarinho do Correio, um monte de negro bom de jeito apanhou. Não é justo, não é. Todos trabalhadores, gente boa. Areta, derramando chá pelo assoalho, tal o nervosismo, gritava: eles não, eles não podiam ter apanhado, eles são bons, não foram os desordeiros. Eles não.

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Meu amigo sussurrava: massificados, os negros... são generalizados, negativamente, pela cor. Até provar ao contrário, se é que dá tempo de provar que o negro é do bem, já está encostado no muro e apanhando... e morrendo. Areta chorava. Respeitamos suas lágrimas.

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FORASTEIROS DE MUITOS LUGARES As famílias vinham recomendadas para procurar uma tal de Sociedade Operária que precisava de muitos sócios, das mais variadas cidades e lugarejos do Rio Grande do Sul, de acordo com um estatuto elaborado pelo Inocêncio Gondo de Mendonça, o Nenê. Protetor dos operários, homem de bandeira política e social, contava com a ajuda dos trabalhadores que desejassem engrossar as fileiras de sua ideologia. Sem poupar esforços no discurso, chamava todos para a capital, onde prometia-lhes melhores condições de emprego e moradia. Quanto à comida, teriam menos problemas, pois o governo estava se dedicando à tarefa de atenuar a vertiginosa ascensão do custo das utilidades essenciais à alimentação do povo, criando a CAMPAL, órgão regulador do comércio e preços, conforme anunciavam os jornais. Era por volta de 1952, quando sessenta famílias negras, atendendo aos apelos do Nenê, deram com os costados em Porto Alegre. Até da serra gaúcha, onde muitos pensam que negro não existe, também vieram algumas famílias. Viajaram conforme a conveniência de custo ou de acomodação. Chegaram de navio, pequenos Itas daquela época, de carona nos caminhões cargueiros de arroz e trigo. De ônibus, veio pouca gente, pois a maioria preferiu viajar de trem. Os primeiro passos na capital foram em direção à Sociedade Operária, guiados pelo Dêga, vendedor ambulante de pinhão, balas de mel e rapaduras, exímio conhecedor da cidade. Um negro caminhador e corajoso, qualidades que herdara do bisavô Juca Centeno, remanescente dos melanodermas do Quilombo do Manoel Padeiro.

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As famílias chegaram, ao mesmo tempo, na frente da casa do Nenê, do Inocêncio Gondo de Mendonça, onde funcionava a sede provisória da Sociedade Operária. No prédio, de fachada verde-bandeira, estavam colados os retratos do Governador, Dr.Otaviano de Ribeiro e Fraga, ex-Fraguinha da Gaita, muito popular pelas suas fandangadas, com todo seu secretariado, do partido político preferido do Nenê. Entreveraram-se na porta da Sociedade Operária, satisfeitos com o achado. Mas as horas foram passando e o Inocêncio não aparecia. O sol fraquinho começava a se esconder, quando receberam a triste notícia de que o protetor dos operários estava no manicômio, que levaram o Nenê de camisa de força, dado como louco varrido e visionário. Tão lamentável fato causou um alarido na ruazinha calma, barulho que deu medo até no guarda-noturno que já iniciava a ronda, quando o sol ia se pondo. O tumulto provocado pelas famílias chamou a atenção do padre da Paróquia Nossa Senhora do Perdão, na mesma rua. O padre celebraria uma novena naquele horário e encontrava-se com a igreja quase vazia. Desconfiando que a ausência dos fiéis tivesse como causa o receio de esbarrarem com a caravana desconhecida, resolveu verificar, de perto, o que se passava com aquela gente. E nunca se soube se foi por caridade ou para se ver livre de toda comandita que o padre César, depois da novena, conduziu as famílias, em procissão luminosa, até um certo lugar, longe dali. Muito longe da rua de prédios neoclássicos e coloniais, onde a meia-água da Sociedade Operária destoava do conjunto arquitetônico. As famílias seguiram com o padre por uma longa estrada, pisoteando forte nos paralelepípedos e depois, levantando uma densa polvadeira, subindo, subindo, sempre subindo até o pico de uma forte lomba. Homens, mulheres e crianças, cansados por demais e rijos de frio, só pararam de caminhar quando ouviram o padre dizer que o lugar perfeito para o término da peregrinação estava ali,

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na lomba. Pediu-lhes que reparassem, tão logo amanhecesse, a beleza do rio lá embaixo e que agradecessem a Deus por encaminhá-los para um lugar de exuberante natureza que se mostrava no matagal virgem, no arvoredo, nas flores, nos passarinhos. Convenceu-os de que recebiam o paraíso. E sumiu. Sem recusarem a oferta, ainda que desencantados pela falta do Nenê, quase vencidos pelo sono, mesmo assim, tiveram forças para improvisarem barracas de cobertores, os quais ataram nos troncos de Tipuanas. Dormiram a primeira noite na capital. Quando despertaram, até as crianças estavam tristes, picadas e embolotadas pela ação da grande quantidade de vespas noturnas. A tristeza tinha causa dolorosa. Um trabalhador jamais poderia enlouquecer, comentavam os forasteiros. Logo ele, o Nenê, um dos cabeças das lutas trabalhistas, guerreiro pela justiça social. Infelizmente precisavam enfrentar a realidade que não era das melhores. Reunidos em torno do mesmo falatório, foram se organizando para sobreviver à inesperada situação. Aproveitaram os recursos disponíveis: malas, baús, paus de lenha, cobertores e outras tralhas com o que ergueram as primeiras malocas para abrigar, principalmente as crianças, enquanto aguardavam que Inocêncio Gondo de Mendonça deixasse o hospício, para ajudá-los no que havia prometido: melhor moradia, melhor emprego. Promessa é promessa. Tinham esperança que o companheiro Nenê não fosse demenciar, pela vida inteira.

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APRESENTAÇÃO DO NOME DA LOMBA Seu Inocêncio Gondo de Mendonça, embora sem o juízo perfeito, sempre encontrava quem nele acreditasse e acabava lhe providenciando as cartas para chamar as famílias que estavam quietas, lá longe. Atendendo ao seu amável convite, as pessoas não paravam de chegar na lomba. O padre as conduzia. Sempre terminava com a mesma conversa: a beleza do rio, correndo lá embaixo, a exuberância da natureza... A lomba forte ficou cheinha de malocas umas por cima das outras, com as corajosas famílias da diáspora africana gaúcha, por conta da loucura de um visionário. Quando o padre César retornou ao pico da ladeira ainda conduzindo muito mais famílias, o lugar já possuía nome. Apresentara-lhe o Morro do Nenê. Assim a vovó Moça que veio lá das bandas da panela do Candal, de Bagé, protegendo duas pretinhas, uma no colo e outra pela mão, conta a origem e as histórias do morro do Nenê.

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IZOLDA MARIA MAIS OU MENOS

O piso de concreto que servira de base para o primeiro pavilhão do coleginho ainda não fora destruído. Como a ribalta solitária de um velho palco, continuava assistindo a dramas e comédias. Passarinhos voavam, procurando os galhos das Paineiras, dos Ibiscus, dos Guapuruvus e das Tipuanas. A campainha disparava um som- sirene de alerta. Começavam as aulas. Assumia a direção, a professora Izolda Maria da Silva Corrêa, neta da primeira faxineira do colégio, Geraldina Silva da Silva, famosa pelas suas habilidades. Izolda Maria, respeitada professora de matemática já conhecia o Morro do Nenê através dos casos da vovó e, depois, por sua própria vivência, quando iniciou a lecionar, subindo pelo barro das ladeiras. Já sabia muita coisa do passado e do presente do Nenê. Preocupava-se com o futuro, entrando pelos portões do Colégio Tipuana. Os professores que já haviam perdido até os sapatos, correndo atrás da Gessi Coreto, substituta ideológica do Inocêncio, estavam cansados, insatisfeitos. Os alunos mostravam-se revoltados, com sentimento de rejeição e acompanhavam, todos os dias, as características do Morro do Nenê serem exploradas nos meios de comunicação, como estigma e destino dos deserdados. A rejeição social e os problemas das famílias entravam no Tipuana, o único lugar que os acolhia, por lei. Nos momento de fraqueza, Izolda Maria chegava a ter dúvidas quanto à sobrevivência do coleginho, atendendo tantas demandas. Mas logo reagia aos maus presságios e envolvia o Ti-

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puana com um grande abraço, de mãos dadas com os professores e os alunos. Por conta do afeto seguia caminhos não tão exatos como a Matemática que lecionava, mas escolhendo com os companheiros, os caminhos mais ou menos corretos. As confusões ambientais e sociais, aceleradas desde o tempo do Inocêncio Gondo de Mendonça, deixavam incertezas e um elevado grau de relatividade para a exatidão, em todo o mundo. As dúvidas eram muitas e tudo andava mais ou menos: as pessoas, os fatos e até a tabuada. Izolda Maria assumia o Tipuana com todas as possibilidades de erros e acertos, num tempo do mais ou menos. No Tipuana do Morro do Nenê e, em qualquer lugar, alguém poderia ser mais ou menos homem ou mais ou menos mulher e até mais ou menos gente ou qualquer coisa. Para lidar com estas situações mais ou menos complexas, era necessário ser gigante, de preferência acordado. O Tipuana era apenas, mais ou menos um pedacinho da sociedade. Izolda Maria tratou de fazer mais ou menos uma parceria com os professores que passaram a trabalhar mais ou menos com uma terceira visão da realidade dos alunos, chamando suas famílias para o colégio; mais ou menos com o sexto sentido, para pressentir quando as brigas no pátio seriam de canivete ou de “trinta e oito”; mais ou menos com um oitavo fôlego para reforçarem as lições e, sobretudo, mais ou menos com vontade de colaborar para a realização do sonho de Inocêncio Gondo de Mendonça, patrono do Morro do Nenê. Assustados com a terceira visão, com o sexto sentido, o oitavo fôlego e, ainda, descrentes do sonho do Inocêncio, alguns professores perderam as forças e ficaram menos ágeis, interferindo, negativamente, nas parcelas energéticas do colégio. Assim, enquanto uns trabalhavam menos e outros mais, mesmo assim, o Tipuana encontrava o equilíbrio, pois de acordo com a filosofia de Izolda, tudo acontecia mais ou menos. Era a ultima década do Século XX, cheia de incertezas.

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ATA ORDINÁRIA Aos trinta e um dias do mês de outubro de mil novecentos e noventa e sete, quando as Tipuanas começavam a florescer, realizou-se a eleição para diretora do colégio. Foi eleita, novamente, a professora Izolda Maria da Silva Corrêa que alguns conhecem por Izolda, Maria, Izolda Mais ou Menos ou “Negona”. Em sua plataforma constava apenas uma observação; não iremos deixar o Tipuana desaparecer do Morro do Nenê Dirigia-se à comunidade no plural: direção, vice-direção, professores, pais, alunos, comunidade do Morro, amigos e simpatizantes do Tipuana. E parava por ai, pois o resto era mais ou menos suspeito. Sem mais a declarar, observava, ainda em tempo, que Izolda Maria, colocando um galho de arruda atrás da orelha, ajoelhando-se, pedia clemência: meu Jesus, misericórdia. Agora sim, terminava a ata que depois de lida e entendida, poderia ser assinada por todos aqueles que concordavam com os fatos registrados e com os outros que ficaram omissos, em virtude do adiantado do tempo, mais ou menos 24 horas, exato momento em que Izolda declarava sua filosofia existencial, mais ou menos parecida com as dos moradores do Morro do Nenê: quanto mais refaço o percurso em busca dos meus castelos, sinto aumentar a coragem porque vou ficando intima das pedras do caminho. No morro do Nenê, as novidades corriam lépidas como os passarinhos que desfrutavam da exuberância da natureza, de galho em galho do arvoredo, pertinho do céu. Assim, tão logo aconteciam os fatos, espalhavam-se pela vizinhança. Contam que, no mesmo instante em que terminavam os registros na ata ordinária, o Inocência Gondo de Mendonça conseguia permissão para que o conduzissem até o colégio. De chegada, apresentou-se para Izolda Maria e recomendou-lhe que, apesar de sua intimidade com as pedras, seria bom caminhar com

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os amigos, gritando bem alto pelas ruas para acordar os indiferentes ao que se passava na Escola, a fim de juntarem-se ao grupo para tornar a caminhada mais alegre e segura, naquela meia-noite envolta pelas trevas. Foi improvisado um alarido descomunal, por conta da aparição do Nenê, incorporado na secretária do Tipuana, uma solidária senhora, sempre disposta a acolher irmãozinhos, até mesmo do além. O Inocêncio há muito tempo, era um sopro espiritual. Restava apelar para uma reza forte. E Izolda rezou, de forma mais ou menos divina, mais ou menos profana. Livrai-nos, nem que seja mais ou menos, de poderoso ou poderosa indiferente às nossas causas. Poderão ser deuses mascarados, concebidos na terra, criadores e adeptos do mandamento capitalista, burguês e discriminador de nossa gente, do morro do Nenê. Livrai-nos, por favor, desta gente que amordaça as bocas quando quer silêncio, carnavaliza as massas, quando quer gozar, rouba a paz das cabeças, levando-as à convulsão. E estão deitados à mão direita, no centro, à esquerda, tanto faz a posição, de costas para nós, numa cama real, com o controle remoto do sistema social, do salário mínimo, da miséria máxima, do barracão que continua pendurado na lomba. Cremos sim no espírito santo do Operário, na remissão da fome, no churrasco, no feijão, na esperança eterna, da salvação das Crianças, na força do amor. Amém!



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CAPÍTULO XXVI No dormitório há um grande movimento das pessoas que retornam às origens. Carregam muitas bagagens diferentes: sacos, malas, bolsas, sacolas, mochilas, tralhas de passageiros. Parece que organizaram uma excursão de regresso. Irão juntos enfrentar os caminhos e tudo que oferecem ou negam aos viajantes. Não fosse por Deusuita, as crianças, os cachorros, os pássaros e as borboletas, eu estaria sozinha numa casa de imensos cômodos, espaçosa demais e até assustadora para a solidão. Ainda não devo regressar. Prometi esperar por Amina e Giovana. Persisto em minhas intenções. Embora ás vezes me canse e me transforme em desesperança, sei que ainda permanecem coisas maravilhosas ao meu alcance: a natureza de Cândida, as crianças. Mas hoje estou um tanto diferente. O perfume das flores e o azul marinho do céu não entram com facilidade pelos meus sentidos. Absorvo uma cinza idéia de torpes intuições. É um momento difícil para o meu interior. Sinto vontade de jogar-me no chão para descansar na areia, rolando de um lado para o outro como um pêndulo na horizontal. Meus cabelos estão despenteados, minha bata anda surrada demais e os chinelos largados num canto. Vivo um tempo em que todas minha vaidades sucumbiram. O ímpeto de atirar-me no chão continua como uma força primitiva que quer juntar-me à terra num ato de submissão à poeira que sou. Meu silêncio é um dialogo triste com minhas lembranças. Estou com saudades. Se os olhos de Nona Rina sorriam, os meus choram. Transcendo às coisas, os fatos, às pessoas de Cândida e percorro o caminho para dentro de mim. Meu rosto recebe um vento intermitente e leve. Giro a cabeça, acompanhando o ar, talvez para

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dissipar na brisa, as interrogações, as dúvidas, as recordações, a espera e o estado de saudade. Chamo por Amina e Giovana. Ami-na! Gi-gi! A-mi-na! Gi-o-va-na! Por que me deixaram divagando no dormitório? Se ao menos tivessem me avisado que não viriam, teria partido junto com os outros passageiros para amenizar a caminhada, trocando idéias. Deusuita percebe minha metamoforse e como quem deseja fazer um carinho, aproxima-se, bem próxima de mim e ajeita minhas tranças destrançadas. Carinhosamente me refaz o penteado e insinua-me, devagarinho, bem de mansinho, saber o lugar onde estão minhas amigas. Fazendo pausas como um cansado griô, inicia a falar sobre as esquinas de Cândida. Conta-me que as pessoas podem vir de vários lugares. O espaço é muito grande, mas que todas desembarcam na terceira esquina, o turbilhão da vida. Revelame que as outras esquinas são misteriosas e não pertencem aos vivos. Numa delas enxerga as minhas amigas, Amina e Giovana, aguardando-me. Estremeço com a revelação de Deusuita. Fico contrariada e revido-lhe: meus amigos não morrem, permanecem em mim com suas referências. Mas ela continua falando sem surpreender-se com o meu revide e comenta que, em outra esquina dos mistérios de Cândida, estão os mensageiros espirituais, responsáveis pelos encontros por meio do pensamento, ente os vivos e os mortos, movimentando as nossas lembranças. Assim, jamais são esquecidos os seus legados do bem, os ensinamentos e alegrias de viver que nos deixaram postulados. E suavemente, como quem canta uma canção de ninar, prossegue dizendo que a terceira esquina é uma passagem em direção aos nossos encontros para os quais haverá sempre um tempo determinado em lugar qualquer. Afirma que seus hóspedes são passageiros com muitas histórias, as deles e dos seus antepassados. Desde que cheguei, diz enxergar junto de mim um ancestral africano.

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Deusuita não deve estar falando sério. Fica inventando visões para me enganar. Conta-me que vê, perto de mim, um negro muito alto e magro, com uma túnica bem clara, radiante de luz, apresentando-se como Akidudu de Antares. O príncipe negro carrega um cristal onde transparece a união de mãos femininas brancas e negras, estando ente elas, as de minhas amigas. Alex, a Deusuita também delira. Akidudu de Antares jamais existiu. Deve estar equivocada, pois em Antares, uma cidade ficção do famoso incidente em que mortos ressurgiram, não havia lugar para nobreza negra, nem viva e nem morta. Não aceito sua vidência. Ainda espero por Amina e Giovana. Prestarei mais atenção nos sinais, principalmente, em mim. Passo algumas horas com muitas dúvidas e acabo admitindo que não registrei corretamente os dados para o encontro marcado. Amina e Giovana é que esperariam por mim, depois da terceira esquina em direção a uma bucólica paz. E afinal, um detalhe muito importante me faz aceitar a visão de Deusuita: Amina falava que seus antepassados eram nobres. Akidudu de Antares, um príncipe negro, deve ter vindo buscá-la com dignidade. E Giovana foi junto. Não perderia a oportunidade de entrar no céu em boa companhia. Em meus pensamentos brindo à vida, o único brinde que se faz também à morte. Concretizo o brinde na gargalhada estúpida e terrivelmente lúcida. Depois, tudo é silêncio. Arrumo o meu saco verde de viagem. Peço a Deusuita o antigo candeeiro, como lembrança. Ela alcança-me o traste e vai atender a quem chega. Entra no dormitório uma mulher com nenê no colo, um recém-chegado. Novamente brindo à vida. Deusuita reforça sua ciranda espiritual, sussurrando ao meu ouvido que não perdi a viagem, pois Amina e Giovana vieram ao meu encontro, nas pessoas que encontrei e que fizeram recordá-las, até mesmo o recém-nascido que acaba de chegargente com todas as possibilidades.

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Na sala, junto ao painel das chaves, ainda está o pergaminho com o poema de Davila. Quando cheguei ao dormitório, precisava relaxar a mente e minha fantasia transcendental fez com que eu lesse os seus versos às avessas. Menti. Mas estou de regresso. REALmente Rua era para carro Calçada era pra gente “Van”, lembrança da arte. Economia global, Primado neo-liberal. No reino Do Faz de Conta Ninguém pergunta pela rua Que estava aqui, Pela calçada de acolá, Pelo homem de mais ali. Sucumbiram todos Sufocados. Pelos radinhos, cigarros Pilhas, badulaques E até bichinhos. Rua, calçadas, agora, Prateleiras da ilusão Meio de ganha-pão. E os homens? Ora, oram... Numa luta em vão “Van...” Davila (assim mesmo, da vila)

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CASARÃO DAS LAVADEIRAS EM CAXAMBU Meu nome é Maria Aparecida Gonçalves da Silva. Nasci no dia 19 de fevereiro de 1923, em Caxambu. A cidade de Caxambu fica no sul do estado de Minas Gerais. Até o final do século XVII, as imediações do Morro do Caxambum, conhecido assim na época, eram habitadas pelos índios Cataguases. Aos índios nativos, segundo o historiador Antônio Maurício Ferreira, deve-se a origem do nome Caxambu, que na língua Tupi, falada por eles, significa “bolhas a ferver” ou “água que borbulha” (Cata-mbu). Meu pai chamava-se Antonio Bartolomeu Gonçalves e minha mãe, Alice Maria Bruno Gonçalves, a lavadeira responsável pela formação que recebi, por meio de suas lições de vida, de trabalho e amizade com as pessoas. Minha mãe teve quatro filhos, sendo três homens já falecidos e eu, a única mulher. Estou com setenta e oito anos e quando volto aos anos atrás, nem acredito que consegui realizar alguns dos sonhos, pelo sacrifício que passamos. Lembro muito de minha mãe, Alice Maria, assim como lembro de minha avó materna, Liduína da Silva Bruno. Elas eram lavadeiras muito conhecidas e estimadas na cidade. Minha avó também era parteira e ajudou muitas mulheres ricas e pobres, para que dessem a luz aos seus filhos, com sucesso. Mariana, minha avó paterna, também lavava roupa. Ela lavava sobre as pedras, às margens do Bengo, o rio que corta a praça, no centro da cidade. E por falar no rio Bengo, quero destacar que Caxambu possui grande diversidade de recursos naturais e a sua área hidrográfica é considerada uma das mais importantes do mundo,

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altamente apreciada desde o tempo do Império no Brasil, pela qualidade de suas águas medicinais. Contam que a Princesa Isabel, com uma suposta infertilidade, teve o seu herdeiro, em virtude do tratamento feito nas águas ferruginosas das fontes de Caxambu. E eu, como boa caxambuense, fazendo uso dessas águas, tive nada mais do que treze filhos. Por volta do ano de 1933, os hotéis da cidade, eram em número reduzido mas deixavam a cargo das lavadeiras, toda roupa da casa para ser lavada, o que garantia a essas mulheres, serviço e dinheiro. Mais tarde, a cidade passou a ter grande movimentação, com a proliferação de cassinos de jogos e construção de mais hotéis. A quantidade de pessoas que chegava para os cassinos trouxe um certo romantismo à cidade que ficava cheia de gente muito chique e famosa. Aumentou o número de pessoas que vinham usufruir das águas e jogar nos cassinos, aumentando também o trabalho das lavadeiras. Aos 10 anos comecei a conviver com a movimentação no casarão de minha avó, com minha mãe e cinco lavadeiras. Ali funcionava uma lavanderia com dois tanques grandes de cimento e várias bacias de latão, muito usadas naquele tempo. Minha avó e minha mãe não tinham noção de que o trabalho delas era desempenhado como se fosse em uma cooperativa ao redor daqueles tanques. Eram as administradoras da cooperativa, cuja oferta de serviço era a lavagem de roupa e onde a entrada de dinheiro, toda renda que conseguiam com esse trabalho, era dividida entre elas. Assim, sustentavam a casa, ajudando seus maridos e filhos. Convivi, desde menina, com todas as dificuldades impostas pela profissão de lavadeira, a qual passou por todas as gerações de minha família. Continuei na mesma trajetória de minha mãe, até por volta de meus dezoito anos, no casarão das Lavadeiras de Caxambu. Ajudava a carregar tabuleiros de roupas, na cabeça. Também entregava muitas roupas nos cabides. Eram as roupas lavadas e passadas, de fregueses dos hotéis, na época dos cassinos abertos. As roupas de cama, as toalhas de mesa e as camisas eram engomadas e sempre lavadas, artesanalmente, sem química, a não

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ser o sabão em barra, o anil e muito sol para quarar. Depois eram passadas com o ferro de brasa. Ajudei a lavar muitos ternos de linho branco, chiques naquele tempo. A calça tinha que ter o friso bem marcado com o ferro de passar. Minha mãe lavou para pessoas ilustres, como o Dr. Benedito Valadares, Governador de Minas Gerais, como o Presidente Getúlio Vargas e sua esposa, que costumavam vir a Caxambu para veranear. Aos quinze anos eu já namorava e o namorado me ajudava a entregar as roupas. Ao mesmo tempo, era cortejada pelo segurança do presidente Getulio Vargas, chamado Gregório e apelidado de Anjo Negro. Mais tarde, com o fechamento dos cassinos, Caxambu e todas as outras estâncias hidrominerais sofreram uma baixa na economia que era movimentada pelas pessoas que vinham veranear e jogar nessas cidades. A queda financeira da cidade atingiu os ganhos das lavadeiras que atendiam os fregueses dos hotéis. Minha mãe não teve mais condições de manter o trabalho com as cinco lavadeiras que eram encarregadas das roupas de cama, mesa e banho. Com a diminuição da oferta de trabalho, o dinheiro diminuiu muito e não dava mais para ser dividido. Mas também não foi só de sacrifícios que a gente viveu. Tivemos momentos bem alegres dos quais me lembro da minha família toda, tanto do lado materno, como paterno, escutando música e cantando. Meu pai, Antonio Bartolomeu Gonçalves era maestro da primeira Banda de Música da cidade e participava de um conjunto musical, juntamente com meus irmãos e uma tia paterna que cantava em coral de igreja. No dia dos ensaios da Banda ou do conjunto musical, a casa era uma festa com música de todo gênero. Dançavam em um clube onde havia concurso de dança. O clube carrega até hoje o mesmo nome que é bastante discutido: “Grêmio Recreativo Prazer das Morenas”. Minha mãe levava todos os filhos para o clube, pois era uma agremiação familiar. Quando a criançada sentia sono, dormia lá mesmo, en-

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quanto os pais dançavam ao som das marchas, ranchos, samba de roda e jazz, influenciados pelos americanos. De vez em quando minha mãe ia até o pequeno quarto improvisado, para amamentar um dos pequenos. Casei aos dezenove anos, tive treze filhos, como já falei. Deus me deu a graça de criar oito filhos, sendo quatro homens e quatro mulheres. Herdei dezoito netos, dos quais três são falecidos. Tenho quinze bisnetos, com mais dois a caminho para o ano de 2002. A minha vida foi idêntica a da minha mãe. Depois de acompanhá-la no Casarão, ainda lavei muita roupa.para ajudar meu marido a construir nossa casa, a educar os oito filhos, na medida do possível, pois mesmo estando na quarta geração, minhas filhas Ana Maria e Alice Maria, também lavaram roupa para me ajudar a manter os estudos delas, até se formarem no segundo grau. Não tive oportunidade de estudar além dos primeiros anos, porém foram anos de estudos muito bem feitos. Gosto muito de ler, de assistir aos noticiários para estar informada do que vai pelo mundo e poder conversar com os meus netos, bisnetos e filha Ana Maria, dando-lhe incentivo para os seus ideais e projetos no Movimento Negro de Caxambu, junto de todos os seus amigos e amigas que tentam mudar o rumo desta história de discriminação racial. Meu marido era mestre de cozinha de um famoso hotel de Caxambu. Ele se vestia com toda a indumentária dos mestres franceses porque o hotel assim exigia, naquele tempo. Mantinhase empregado no hotel por causa do talento que tinha para cozinhar. Aos quarenta anos, fiquei viúva. Quando me vi obrigada a deixar a cidade de Caxambu, pela falta de emprego, fui trabalhar no Rio de Janeiro. Fiz contato com uma família para a qual lavava, quando vinha em Caxambu e houve interesse de me levar para o Rio de Janeiro. Lá, esta família me encaminhou para a profissão de doméstica que eu exerceria pela primeira vez, deixando para trás minha família, meus ami-

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gos, minha terra, para entrar em outro sistema de vida até então desconhecido para mim. Depois de vinte anos, voltei para Caxambu, aposentada. Hoje em dia, não lavo mais roupas, profissionalmente. Mas foi lavando roupas que minha mãe me educou e eu, mais tarde, eduquei os filhos, não deixando faltar o que comer, o que vestir, o que calçar e, sobretudo, ajudando para que pudessem estudar. Na época em que minha mãe me criou, ainda estava muito difícil um estudo mais avançado para os filhos pobres e negros, pois existia em primeiro lugar uma luta muito grande para sobreviver, para suprir as necessidades básicas. Mas havia bastante preocupação das famílias negras para passarem valores de bem para as futuras gerações. Lavei roupas, como minha mãe, porém já pude contribuir para o estudo dos meus filhos. Bom seria que houvesse sempre este crescimento em nossa sociedade, através das gerações. Tenho orgulho de ser honesta, amiga, solidária e informada. Aprendi a viver assim, junto com minha mãe, Alice Maria Bruno Gonçalves, uma especial lavadeira, com a qual compartilhei de muitos momentos, no Casarão das Lavadeiras de Caxambu.

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DO BENGO À PAIXÃO PELAS CONGADAS As filhas de lavadeiras, Maria Aparecida e Ana Maria, fizeram muitas referências ao Senhor Benedito Henriques e suas filhas, Vera Regina e Amália Helena. Procurei as filhas deste Senhor para ouvir o que tinham a acrescentar, a partir das histórias das caxambuenses. A Senhora Amália Helena Portella prontificou-se a complementar o relato das duas senhoras e foi uma agradável surpresa com sua fala vagarosa e bem explicada, quando prestou seu depoimento gentil e inteligente, muito atenta aos fatos narrados por Maria Aparecida e Ana Maria. Esclareceu algumas questões, detalhou outras e revelou mais fatos, principalmente aqueles que dizem respeito à participação do Senhor Benedito Henriques, na Corporação Musical e no Movimento Negro de Caxambu. Como se estivesse dando uma aula, falou com propriedade e entusiasmo, de assuntos que vão de História, Geografia e Sociologia, até composição de águas, logicamente, de águas termas de Caxambu, cidade pela qual revela extraordinário carinho. Transcrevo de uma gravação, as palavras que ouvi da Senhora Amália, interferindo, positivamente, nas narrativas de Maria Aparecida e Ana Maria. “Conforme Maria Aparecida se referiu, sua avó Mariana lavava às margens do Bengo e o que se ouvia dizer é que o rio Bengo muito serviu às lavadeiras de Caxambu. Ele passa, hoje canalizado, pelo centro da cidade e tem uma adutora que solta as suas águas no rio Baependi, que também é o nome de outra cidade mais antiga, da qual Caxambu fazia parte. Caxambu foi chamada, inicialmente, de Águas Virtuosas de Baependi e depois passou a chamar-se Cidade Nossa Senhora dos Remédios de Caxambu, por causa do valor medicinal das suas águas que são alca-

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linas, gasosas, alcalinas-ferrogasosas, sulfurosas e magnesianas, de acordo com as propriedades do terreno por onde elas correm. A referência quanto à princesa Isabel e às águas de Caxambu é porque a princesa Isabel não tinha herdeiro e veio a Caxambu fazer um tratamento em suas águas porque ela estava com anemia ferropriva e as águas ferruginosas de Caxambu foram excelente remédio. Depois desse tratamento, a princesa ganhou filho. Naturalmente, criou-se uma lenda, com certeza em favor das propriedades medicinais e miraculosas das águas de Caxambu, envolvendo personagem real, como a princesa Isabel, a qual mais tarde mandou construir uma Igreja Católica na cidade, em ação de graças ou promessa, como costuma o povo contar. Na entrada do Balneário Parque das Águas a que se referem Maria Aparecida e Ana Maria, tem uma placa com os dizeres de Rui Barbosa: “Caxambu é a medicina entre as flores”. O romantismo da cidade, também citado, vem desde os tempos do Império no Brasil, porque a cidade sempre foi muito procurada por pessoas da Corte, autoridades famosas que davam ao ambiente um destaque especial, não só pela presença, senão pela maneira de vestir, de andar. A cidade tem passeios românticos de charretes, realmente, ainda tem um certo romantismo em suas ruas com muitas flores. As pessoas que freqüentavam os cassinos eram de muito dinheiro, de belos trajes, o que dava à cidade um estilo de luxo, com a freqüência dessas pessoas nos cassinos de jogos, com música ao vivo, a cargo de excelentes músicos e cantores. As atividades dos cassinos terminaram, quando o Dr. Eurico Gaspar Dutra determinou o fechamento do jogo no Brasil, na década de 40. Ana Maria cantava na boate de um cassino e a sua família era de cantores. Sua tia Mariinha, na Semana Santa, cantava e regia o coral da Igreja. Mariinha era contralto de voz belíssima e potente, que deixava admirados os veranistas do Rio de Janeiro, pela firmeza e beleza da voz. Regia um coral na rua e ali cantava, sem microfones, ao natural.

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Quando os cassinos fecharam, a Ana Maria deixou de cantar na boate, logo casou-se e foi ser dona de casa, deixando de lado a carreira artística. Em relação aos tabuleiros de carregar roupas, posso acrescentar que eram de madeira, com 80cm de comprimento, com 50cm de largo e 10cm de altura. As lavadeiras forravam os tabuleiros com alvas toalhas e ali colocavam as peças de roupas limpas e passadas. Para as roupas não apanharem poeira, elas cobriam o tabuleiro com outra toalha. Caxambu sempre foi visitada por gente famosa e algumas pessoas deixaram as suas visitas bem marcadas, como o Dr. Getúlio Vargas que, além de veranear, veio inaugurar a rodovia Areias-Caxambu. Ele veio com toda a sua comitiva política, toda sua equipe de trabalho e inaugurou essa estrada, essa rodovia, a primeira da cidade. Caxambu possuía somente estrada de ferro. Os veranistas chegavam de São Paulo ou do Rio de Janeiro, de trem, pela ferrovia. A inauguração da rodovia foi um marco de progresso e de sucesso. O Dr. Getúlio Vargas comparecia ao veraneio acompanhado pelo seu segurança Gregório, apelidado de Anjo Negro o qual cortejava as moças da cidade, entre elas, a Maria Aparecida, que era uma negra muito bonita e, ainda estava solteira. O pai de Maria Aparecida era maestro da Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus, que foi fundada em 04 de setembro de 1908 e tem, ainda, uma sede própria na rua Marechal Deodoro. Era, na época, uma Corporação Musical composta quase que totalmente de negros. Essa Corporação tem hoje uma sede que foi reconstruída por papai, o Senhor Benedito Henriques de que fala Ana Maria. Ele buscou muito auxílio entre políticos da capital do Brasil, para que a Corporação tivesse um lugar digno para fazer seus ensaios e reuniões. Quanto ao Grêmio Recreativo Prazer das Morenas que eu não concordo com o nome, porque são negros e não morenos os seus fundadores e freqüentadores, surgiu de um grupo que se organizou para se divertir, porque não podia freqüentar os bailes da cidade que aconteciam em seus hotéis de luxo. Os negros fi-

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cavam somente olhando as pessoas se divertirem nos salões, até que decidiram fundar o Prazer das Morenas, um lugar para se distraírem com as famílias, um clube. O nome do clube não é dos melhores, porém comprova como as pessoas tinham medo de assumir a negritude. Quanto à ajuda que as duas amigas falam que receberam de meu pai, Benedito Henriques, prende-se ao fato de que o papai foi um homem de visão extraordinária e orientava muito elas. Ele saiu de Caxambu com 18 anos de idade, depois de ter trabalhado nas obras do Balneário Parque das Águas. Um construtor italiano que foi a Caxambu viu o trabalho dele e o levou para trabalhar no Rio de Janeiro, onde ele trabalhou na construção do Palácio Tiradentes, em que passou a funcionar a Câmara dos Deputados, até o ano de 1960, ano em que foi transferida para Brasília. No Rio de Janeiro, meu pai trabalhou como pedreiro e depois passou a ser o administrador da Câmara, com o nome de Zelador do Palácio Tiradentes. Transferido para Brasília, foi indicado pela mesa da Câmara para trabalhar com os engenheiros que iam construir a cidade de Brasília. Foi o homem responsável pela orientação do funcionamento da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde trabalhou até o ano de 1966, ao aposentar-se. Então voltou para Caxambu. Como era um homem muito estudioso, entusiasmado com as questões sociais, e, ainda, porque gostava muito da Maria Aparecida e da Ana Maria, integrou-se com elas para realizar algumas ações, como a criação do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, em 1988. Ana Maria teve todo o apoio de papai para conduzir o Movimento Negro, em Caxambu. Ela sempre se colocou muito envolvida com esse movimento e conseguiu fazer com que ele sobrevivesse e aparecesse. Uma das propostas do Movimento Negro de Caxambu é resgatar a cultura negra através das Congadas, uma dança do tempo dos negros escravos, muito característica em cidades mineiras. Caxambu tem um grupo de Congada em que o mestre é o Senhor Ismael. Então o Centro Caxambuense Afro-brasileiro

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juntou-se ao seu Ismael e com a ajuda de papai, passaram a realizar atividades, no mês de novembro, na Semana da Consciência Negra, onde se faz uma apresentação das Congadas de Caxambu e dos municípios circunvizinhos, do Sul de Minas Gerais. Além dos congadeiros de Caxambu, apresentam-se os de Guapé, Soledade de Minas, de São Gonçalo do Sapucaí, Conceição do Rio Verde, Jesuânia, Lorena, Lambari e Cambuquira que estão tentando conservar a tradição.Isto está sendo possível porque o seu Ismael entrou em contato com todas as cidades onde existem, ainda, as Congadas e que ficam mais próximas de Caxambu. Nas Congadas, a evolução da dança é com passos marcados, acompanhados de cânticos, invocando a devoção religiosa. Fazem parte da Congada, homens, mulheres e crianças. Levam um estandarte com o nome da cidade e outro com o nome do grupo de Congada, no caso de Caxambu, com o nome de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Meu pai trabalhou muito com a Ana Maria, procurando estudar com ela os fatos e causas que originaram a baixa autoestima e pobreza da população negra, bem como o valor das tradições dos negros e, principalmente, o movimento das Congadas, uma tradição popular que resistiu à escravidão e oportunizou a reunião dos negros, não somente para dançar e cantar, mas para tratar de assuntos de liberdade. Aproveitando a citação de Ana Maria de “querer juntar os jovens e despertar o interesse deles para o movimento negro, através da dança”, eu gostaria de lembrar o seguinte: uma das formas dos jovens valorizarem a sua terra natal é quando guardam alguma lembrança boa e sabemos que para gravar os momentos alegres da vida, nada melhor do que a música e a própria dança. Minha irmã Vera Regina e eu, as quais Maria Aparecida e sua filha Ana Maria fazem referência, estamos sempre junto delas, tentando fazer progredir esse trabalho com as Congadas. Nossos congadeiros são pessoas que se ocupam muito das lidas nas lavouras e não têm tempo e nem condições de estudar

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e nem sabem a força que têm, que através dessa dança que eles apresentam, que já estava em extinção, poderão melhorar a própria vida. Então começamos a distribuir umas fichas para que cada um respondesse, oralmente, ou por escrito, de acordo com a escolaridade, as perguntas relacionadas com questões que eles vivem no mundo do trabalho e em geral. Os resultados nos apontaram rumos a tomar para trabalhar a justiça social que tanto se apregoa. Temos um documento denominado A Carta dos Congadeiros, em que fazem reivindicações para o desenvolvimento deles, das suas famílias. Pretendemos começar a ajudar o pessoal das Congadas com a implantação de um curso de alfabetização para os participantes de Caxambu e suas famílias. Também já estamos com uma proposta elaborada, da criação de uma Escola de Congada onde todos devem aprender a dançar e estudar. Teremos períodos de apoio escolar para os alunos das comunidades carentes de maioria negra, artesanato, teatro e até um pré-vestibular. A Escola de Congada Nossa Senhora do Rosário e São Benedito estará funcionando na Escola Wenceslau Braz, cedida pela Prefeitura de Caxambu.Para que isto aconteça temos poucas pessoas que ajudam. Apesar de sabermos que existem recursos destinados ao desenvolvimento da população negra, a gente fica muito longe destes recursos. Então, o nosso compromisso é com o resgate, o aprofundamento, a valorização e difusão da história e cultura negras, considerando como legítima a comunidade afro-descendente para atuar em sua defesa e seus direitos. O Movimento Negro de Caxambu trabalha a parte cultural e social e resolvemos, junto com os dirigentes do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, trabalhar em conjunto com a Pastoral do Negro, na parte religiosa, porque temos o trabalho do seu Ismael, mestre da Congada.O seu Ismael sai com os congadeiros, fazendo novena nas casas, rezando o terço, dando explicações religiosas durante os meses de maio e no mês de outubro. Justamente essa

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era uma forma de devoção religiosa do negro, no tempo da escravidão, aqui no sul de Minas Gerais. Quando a mãe de Ana Maria relata que foi obrigada a deixar Caxambu para ir trabalhar no Rio de Janeiro, não foi um acontecimento casual. Na época, pelo seu grau de politização, pela sua irreverência e esclarecimento, foram negadas todas as oportunidades de trabalho para ela e sua família, por perseguição política, nos pequenos municípios brasileiros, quando não escaparam as lavadeiras. Infelizmente, fatos como este, de perseguição política, ainda continuam acontecendo, no Brasil. Talvez, porque precisassem do talento do marido dela, conservaram somente ele no emprego de mestre de cozinha, mas assim que ele faleceu, os figurões da época que poderiam empregar as pessoas, negaram todas as possibilidades de sobrevivência para dona Maria Aparecida. Não lhe deram a oportunidade nem de exercer a profissão de lavar roupas. Essa foi a causa de uma mulher trabalhadora ser forçada a sair de sua terra natal, deixando para trás os seus filhos, sua família, suas amizades, suas histórias, conforme relata. A luta de Maria Aparecida, atualmente com setenta e oito anos, tem sido incentivar e ajudar a filha nas atividades em prol das Congadas e pelo desenvolvimento da população negra. Neste sentido, ambas vêm recebendo o apoio de minha irmã e o meu apoio, bem como de outras pessoas interessadas pela causa social e da discriminação. Recebem apoio de algumas entidades da sociedade civil, religiosa, da Universidade, mais recentemente, e de alguns políticos da região. Com certeza, pela amizade que temos com essas duas pessoas maravilhosas e pelo envolvimento de meu pai Benedito Henriques, com os seus ideais, é que aparecemos em seus depoimentos de filhas de lavadeiras.”

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LAVAÇÃO DE ROUPAS Lavação de Roupas, ato 2 deste livro, é uma forma simbólica de expressar os comentários em relação aos referenciais históricos das filhas das lavadeiras e de suas mães, sem as quais seria impossível mergulhar nas diferentes abordagens que suscitaram suas histórias e depoimentos. Os fatos reunidos, vão sendo retirados da trouxa, como peças de roupas que ao serem visualizadas, darão margem aos comentários para serem trabalhados, mesmo com um sabãozinho pouco de possibilidades. Irão, naturalmente, provocando uma conversa, em frente dos lençóis, das cortinas, das toalhas, das camisas, das roupas das crianças, entre outras surpresas cabíveis em uma encomenda de lavados. Talvez escapem algumas peças importantes, porque existem limites que impõem o silêncio ou a fala, em se tratando de assuntos de tanta significância. As inúmeras releituras de várias cabeças é que poderão culminar em novas percepções que também definirão a direção dos comentários, dentro da relatividade das verdades. Pretende-se que muitos pensadores venham, durante a lavação, dar uma consistência mais forte, a colaboração amadurecida, com o especial cuidado, em relação à história dos outros, protagonizadas com tanto heroísmo e emoção. Com certeza, nas entrelinhas surgirão teorias, conceitos, opiniões e muitas controvérsias. Espera-se tudo isto, porque a percepção tem diferentes momentos. Por enquanto, a trouxa vem a caminho. A caminho também estão os meus botões. Iremos conversar, os botões e eu. Seremos parceiros de prosa e para desatar o nó da trouxa. Teremos resistência, com certeza, aquela força de botões de osso, unida à força das lavadeiras, das suas performances físicas e mentais, capazes de se superar.

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Iremos conversando, sem muito alarde, para que interferências negativas não nos atrapalhem. Desfazer o nó da trouxa, missão inicial, de resistência. As histórias das filhas das lavadeiras têm muito a ver com as questões de resistência da população negra, têm íntima relação com as histórias de um passado, em termos de almejar a liberdade. Atualmente, estão divulgando as heróicas estratégias dos Quilombos, no Brasil, justamente para afirmar a organização e resistência dos negros para se defenderem do submundo a eles imposto. E muitas organizações, muitos conflitos seguiram-se pela mesma causa, nem sempre contados. Mas nossa conversa é franca, bem natural e nos dá o direito de recontar histórias. Aconteceram inúmeras intervenções forjadas por negros inteligentes, contra os poderosos que exploravam as suas forças físicas e emocionais, levando-os ao esgotamento e à morte, pelos maus tratos e torturas.Trata-se de uma história muito complicada e que trouxe conseqüências desastrosas para a mobilização social dos negros, até os dias atuais, no Brasil. A impotência moral frente ao desespero gerado pela falta de ganhos, pela ausência de qualquer tipo de motivação econômica causou danos ferozes que levaram muitos negros ao alcoolismo, à insanidade mental e até ao suicídio. Mas ao mesmo tempo, fatos antagônicos aconteciam, uns de desânimo e outros, de alento e esperanças, marcando os episódios da transição, da diáspora negra, no território brasileiro. A força das mulheres foi a grande salvação e expressão maior da sobrevivência das famílias negras. Das mulheres é o grande mérito. Meus botões, lavar o lençol deve ser a tarefa seguinte. Olha o tamanho do lençol, é enorme. Mas é a maior peça, a mais evidente e é por aí que a conversa continuará, pelas evidências. Evidente que as famílias negras estavam passando por momentos de muita angústia, culminando com fortes acontecimentos de desagregação familiar, pela negação de trabalho para a sobrevivência, com a falsa liberdade. Restava-lhes nada.

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E o assunto dirige-se para os fatos que ficaram bastante visíveis, com certeza sob a ótica feminina e, porque não, masculina também. Os que mais chamaram a atenção, no âmbito das vivências sociais e de humanidades foram as relações do mundo do trabalho das mulheres e suas aspirações de sobrevivência , com a garantia do acesso à escola, para filhos e filhas. As mulheres negras começaram a trabalhar de cozinheiras, quituteiras, lavadeiras, amas de leite, tornando-se o alicerce da mobilidade social, econômica e educacional das famílias negras deste país. Investiram todas as forças no trabalho, esquecidas de seu próprio corpo. Investiram todas as esperanças no sonho de sobreviver e de educar os filhos. Subtraíram-se. Tornaram-se soma, divisão e multiplicação de trabalho, de valores de vida. As filhas das lavadeiras deixaram nítido que as famílias negras envolveram-se em um processo estratégico e calado nos lares, onde as façanhas de altruísmo centraram-se em movimentarse e tirar proveito das lidas que lhes restaram como opção para trabalhar, aqueles afazeres que rendiam poucos ganhos e davam continuidade à exploração da força bruta, do desempenho braçal, considerado de menor valia em relação aos papéis desempenhados pela burguesia letrada. Acreditando na educação das filhas e dos filhos, as mulheres iniciam um processo dentro das casas, no exercício de respeito humano uns para com os outros, especialmente para com os mais velhos, no cultivo de tradições religiosas, nos ensinamentos de moral e conduta, ora através de provérbios, ora por meio de lições sábias que foram repassadas pela oralidade, de geração para geração e, ainda, pelo exemplo. O que mais desejavam era que os filhos e filhas complementassem essas lições recebidas em casa, com os ensinamentos livrescos, da escola: aprender a ler, aprender a escrever, fazer parte da sociedade, apropriando-se de valores que lhes foram negados. Costumavam dizer que a escola faria de seus filhos e filhas, alguém na vida, isto é, capazes de enfrentar as situações de uma forma que elas não tiveram as possibilidades. O ensino empírico, a iniciação introduzida nos lares, pela maioria analfabeta de negras cozinheiras, quituteiras, lavadeiras,

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engomadeiras, foi sendo acrescido do ensino formal e sistemático para os filhos e filhas. A manutenção dos estudos da prole foi o grande motivo, além da sobrevivência, para que se dedicassem ao trabalho, com tanto afinco. Geralmente, convivendo com companheiros de baixos salários de biscates, ou sozinhas, as mulheres foram à luta, em prol dos seus objetivos. Optaram pela escola, como uma oportunidade dos filhos vencerem na vida, de obterem sucesso. A maioria talvez ignorasse que teria de se defrontar com forças impeditivas do sucesso imediato de seus filhos e filhas. O fato de não terem as condições financeiras necessárias para o material escolar e, ainda, o preconceito, a discriminação pela cor das crianças, acabaram criando dificuldades, mais do que as esperadas. Esses alunos e alunas negras carregavam dois fatores impeditivos para o desenvolvimento: ser pobre e ser negro, mesmo nas escolas públicas, muito burguesas e preconceituosas na trajetória das décadas de trinta, quarenta, cincoenta, e vai por aí, até que consigam que ela valorize o ser humano, antes de tudo, muito mais do que a raiz quadrada, ou as datas dos triunviratos dos babacas. Meus botões, essas coisas são muito antigas, do tempo em que o Braz foi tesoureiro. Será que continuam assim? Até pode ser que continuem porque até agora ninguém conseguiu achar a tal raiz quadrada, sempre surge uma cenoura, derrubando o conceito. Os pré-julgamentos negativos atribuídos aos negros e negras, estendiam-se também às mini-sociedades escolares, onde as filhas das lavadeiras ficavam à mercê da boa ou má aceitação pelos professores. Mas a crença nessa possibilidade de acertar para um bom futuro, foi o que perdurou, tornando-se mais forte do que as adversidades e os preconceitos. Não é casual que em todos os depoimentos e histórias, tenha surgido o componente estudo, entrada na escola, em relação às filhas das lavadeiras, como foco principal e direcionador do esforço de suas mães. Desta crença não ficam excluídas as cozinheiras, as quituteiras, as costureiras e outras mulheres negras resistentes e trabalhadoras. Também alimentavam os mesmos so-

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nhos de sobrevivência e de dar estudo para os filhos e filhas, ao que se lhe atribui o reconhecimento pelas lutas que enfrentaram. O lençol é imenso, sem dúvida, sustenta uma longa conversa. Confesso aos meus botões que quem nele se enrola deve ser o dono da rua e ter a cama do tamanho de uma quadra. Este lençol enorme me lembra o máximo, o super, o hiper, a materialidade dos panos, das terras, de prédios gigantescos, templos de ouro, as mesas cobertas de tantas coisas que nem comem, e os sem lençóis. Que frio nas mãos, só de pensar nas pessoas que têm apenas trapos. E aquelas meninas, tão preocupadas com as pessoas, com o desconforto, com a justiça social. Foram criadas nas casas de poucos cômodos, casaquinhos costurados à mão, pão com pão, poucos panos, tudo abaixo do máximo e bem próximo do mínimo necessário para manterem a vida. Mas foram muito felizes com suas mães, mais felizes do que muitas mulheres sem coragem de trabalhar, de pensar nos filhos, de fazer força para que as crianças encontrem, pelo menos, o caminho de uma escola. As lavadeiras foram as donas de lençóis imensos de inteligência, porque, mesmo enfrentando uma atividade braçal e desconsiderada, coisa de pouca valia, insistiriam em trabalhar para melhoria das opções de futuro aos seus filhos e filhas. Meus botões, eu te segredei que o lençol era imenso, que ao mesmo tempo lembrava do ser e do ter, coisas complicadas. Também as lavadeiras pensaram muito no ser mas buscaram o desenvolvimento direcionado para o mundo letrado, para as atividades de ensino nas escolas, as atividades intelectuais, cognitivas, às quais eram atribuídos os poderes de pensar, de “puxar pela cabeça”. Enfim, era o que costumavam dizer do conhecimento que apelava para o intelecto, tomando por base os moldes de vida da época. A Educação que as filhas recebiam na escola era tida como investimento perene e nobre, que jamais poderia ser furtado, porque estaria presente no elemento cabeça, cérebro, o mais longe, quanto mais longe fosse possível, da força bruta. Ser alguém na vida também implicava em ter, pelo menos, mais lençóis no enxoval.

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Vamos conversar, um pouco mais baixinho, cá pra nós, meus botões... Essas mulheres lavadeiras bem que poderiam reencarnar para fazer parte de uma legião de guerreiras, de guardiãs das crianças com fome, sem escola, sem rumo. Elas ditariam as normas do progresso e não somente criariam, como também executariam as ações solidárias para a mobilização e desenvolvimento das comunidades, da sociedade. Mas que descansem em paz, porque este desejo, se concretizado, seria para elas um presente de inimigo. Não gosto de pensar no pior, mas com certeza ao saberem da presença dessas negras lavadeiras, novamente, aqui na Terra, seriam todas elas perseguidas por carrascos, não mais por seus maridos infiéis, mas por capitães do mato poderosos e secretos que as decapitariam, cortando pela cabeça todos os seus planos de Educação e de Ensino e de Escola, para um futuro melhor para as crianças, todas negras. Acabariam com a revivência das criativas lavadeiras. Somente escapariam da morte imediata, as mascaradas, porque estariam pintadas de branco, negando as suas origens e armando algum golpe somente para tirar vantagens do quilombo solidário das negras lavadeiras, intrometendo-se na reencarnação delas. Mas depois morreriam, lentamente, ao deixar cair a máscara da face. Meus botões, vamos passar um sabãozinho de leve nestes comentários por respeito às lavadeiras e suas filhas, porque se continuarmos resmungando, estaremos correndo o risco de sermos chamados pela Polícia Federal para prestar esclarecimentos sobre o caso da decapitação das lavadeiras reencarnadas. Elas não merecem este vexame. Acreditavam tanto no futuro, confiavam em Nosso Senhor com fé, esperança e amor. Em vez de ficar ranzinzando, temos é que pensar num jeito da escola tornar-se maravilhosa para todos, negros e não negros, filhos de lavadeiras, de papeleiras, de margaridas, porque já andam falando que muitas crianças vão lá no colégio só para comer e que comem, às vezes, todos os farelos de biscoitos recheados.

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E os professores ficam olhando a cena, nem providenciam um teatro, uma animação, o forró do biscoito, Conformistas ou atacados pela Síndrome dos Desanimados? Uns falam que andam carentes, sem café da manhã, com todas as síndromes: de pânico, de fome, de enfrentar o transporte coletivo, de faltas, até em crise vocacional. As filhas das lavadeiras, a maioria acabou tornandose professora, mas na época em que eram dispostas, criativas, sabiam das necessidades sofridas no próprio couro. Trabalharam até se aposentar e ainda deram continuidade nas atividades educacionais, nas comunidades em que moram, em ONGS, com um entusiasmo, uma garra. As filhas das lavadeiras sabiam e sabem do poder da Escola e, cá para nós, meus botões, eram mais valorizadas, nem sempre em questões financeiras, mas em relação ao respeito, apesar de muitos casos de rejeição por serem negras. Mas o trabalho que desempenhavam, acabava em terem de render-lhes homenagens. Uma normalista tinha tratamento de doutora e, em certos casos, até de salvadora da Pátria, né mesmo? Havia um percentual muito grande de professoras negras, porque o Magistério remetia ao ganho mais imediato e elas começavam a ajudar em casa. Hoje nem todas pensam assim, querem logo é ingressar na Faculdade, ainda sem condições de manterem as próprias calcinhas. Ah! Pensar, como se pensa... Ora veja, não somente por ser negra mas sobretudo pelo privilégio de conviver com familiares que também acreditaram muito nos caminhos da educação, isto possibilitou-me que, além do necessário básico de aprender a ler, escrever e fazer contas no curso primário, eu fosse vivenciando uma série de situações que despertaram valiosos questionamentos, principalmente sobre discriminação racial e de classe, oportunizando um novo olhar sobre a tal escola que parecia estar no lugar e que nunca estivera, em relação à população negra. O fato tem relação com as histórias e depoimentos das filhas das lavadeiras, pois a maioria tornou-se muito atenta para a questão da presença dos negros na escola, nesta escola em que as mães lavadeiras desejavam com tanta ansiedade e esperança colocar a sua prole.

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Os próprios equívocos da realidade vivida na escola, a rejeição e adversidades, é que vão oportunizando, não dentro da escola, mas fora dela, o surgimento de outros assuntos, novas idéias e atitudes que irão cooperar, mais tarde, para reivindicar algo mais do colégio, em termos de melhor tratamento dos alunos negros. A escola provocou este despertar, a constatação de que nem todos eram tratados da mesma forma, com os mesmos direitos e oportunidades. As negras são inteligentes e não ficaram alheias aos fatos. Nos referenciais históricos aparece essa marca do dar-se conta dos preconceitos, do pouco caso que faziam das meninas negras, tendo alguém se referido que foi se firmando mais na escola porque possuía um talento, o qual a escola explorava, porque se assim não o fosse, nem saberia dizer como seria a sua trajetória escolar. Então, mesmo com seus equívocos, a escola vem servir para o despertar da consciência de igualdade, para o exercício da cidadania, futuramente. Não que estivesse se importando com isso, mas provocou questionamentos, inicialmente acanhados, isolados, mas que não deixaram de ser formas de dizer um basta a certas práticas, principalmente discriminatórias de etnia e classe.Então a própria escola acaba provocando uma posição dos negros, pelas oportunidades iguais, pela superação da discriminação, mesmo que ela não tenha iniciado a provocação de forma intencional. Em decorrência começam algumas discussões sobre a prática docente, algumas incursões de atividades para a valorização dos trabalhadores, o que de certa forma vai cooperando para a auto-estima das famílias e dos alunos negros, das filhas das lavadeiras. Os objetivos elitistas da escola, seu currículo distante da realidade das casas das mulheres negras, o modo de tratar as pessoas mais humildes, foram enfrentamentos e causas de muitos fracassos para as alunas negras, filhas das lavadeiras, ainda que não desistissem de ir à escola. A exigência de materiais, como livros caros, compassos de última geração, resmas de papel ofício,

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dezenas de cartolina, papel fantasia, folhas de desenho, tudo isto era uma barra pesada para as lavadeiras atenderem, no mesmo nível em que solicitavam as mesmas coisas para a classe média. Às custas do sofrimento que tiveram essas alunas das décadas de quarenta e cincoenta, é que de alguma forma, a escola vai redirecionando o seu destino com mais humanidade e respeito, por exigências humanas desta clientela, do banco dos fundos. Mas foram essas mulheres que as lavadeiras colocaram na escola, foram elas que tiveram o alcance necessário para começar a questionar os seus direitos, ainda dentro das escolas e muito mais quando deixaram os bancos escolares, para a felicidade de suas mães que apostaram no desenvolvimento, por meio dos estudos. Nada foi magia, foram as vivências, as leituras, o senso crítico, as trocas de experiências que fazem a revolução. E até histórias de movimento negro. Aconteceram questionamentos sim, graças a essas pioneiras, verdadeiras cobaias das escolas que não estavam acostumadas a terem os negros e negras sentados em suas classes, tanto no ensino Primário da época, como no Ginásio, Normal e Universidade. Mesmo que nenhum pintor tivesse, ainda, a sensibilidade e inspiração para pintar um anjo negro e se todos eram concebidos branquinhos pelos homens de Deus, teve quem quisesse saber o porquê. Elas foram filósofas de muitas causas e chegaram a derrubar premissas prontinhas, encomendadas para exercício no tempo de servidão. Mas a grande esperança de todas as épocas sempre foi a escola, o sonho de nossos antepassados, de maioria analfabeta, sem instrução livresca, somente com a experiência empírica e sábia. Há que deixar sempre firmado o grande ideal das mães lavadeiras para as suas filhas. As lavadeiras lutaram para que seus filhos e filhas fossem educados na escola, ainda que a educação começasse nas próprias casas, onde a escala de valores era ditada pelas mulheres, olho no olho das crianças chamando a atenção para o respeito, para a

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disciplina, para o trabalho, a honestidade, a solidariedade. Foram fatos apontados em todos os depoimentos, mesmo que vissem a escola como um lugar sagrado para a escalada ao poder, principalmente com possibilidades de abertura para o poder econômico que gera respeito, lá fora das casas, dentro das casas, em qualquer lugar, era o que consideravam, a partir da história dos antepassados miseráveis. Terminei de ensaboar o lençol mas enquanto ele fica quarando nas pedras , vamos lavar a toalha de mesa lilás que parece uma mortalha bordada e respingada de sangue. Não vai dar muito trabalho, nem precisará de anil, somente um pouco de sal e suco de limão. Que bom! ... Como é bonitinho o anil, dá vontade de comer aquela pedrinha ignorada, parece uma cocadinha azul, embrulhadinha no capricho. Mas, meus botões, nunca soube direitinho o que é o anil, porque na caixinha revela apenas que são pigmentos e coadjuvantes. Que coadjuvantes são estes? Eram inseparáveis das lavadeiras e ainda permanecem nos supermercados. Custam mais caro do que lavar uma trouxa naquela época dos anos cincoenta. Sabe o preço? Dois reais e trinta centavos, uma caixinha com quatro trouxinhas. Não digo o nome do supermercado porque não quero ser garota propaganda e, ainda mais assim, de graça, em cima do sucesso das gurias, das filhas das lavadeiras. As meninas não contam muitos fatos acontecidos dentro das escolas, procurando dar mais destaque ao trabalho vivenciado com as mães. As poucas referências à escola ficaram por conta de tratamentos carinhosos recebidos por parte de professores, os quais julgam ter contribuído para a auto-estima delas. Com certeza, ser visto e tratado como gente, faz muito bem à auto-estima, seja de quem for. Referem-se mais ao ir e vir, às distâncias, ao sapato furado, forrado com papelão, à saia desbotada, às dificuldades de comprar cadernos, de passar papel a ferro para escrever nele, essas coisas de pobre. As referências fortes que devem ser consideradas como determinantes da história que fizeram, como sujeitos que viveram as situações do processo de mobilização social, encontram-se na

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vontade das lavadeiras de que as filhas não fossem analfabetas; que não fossem lavadeiras. Este desejo foi o foco predominante das histórias. Além das atividades de lavar, passar, engomar, para manutenção da sobrevivência e dos estudos das filhas, as lavadeiras criaram muitas estratégias para superar dificuldades provocadas e aumentadas pela convivência com situações desagradáveis, tais como: a solidão a dois, com a ausência dos maridos que não acompanhavam as questões da casa, dos filhos e das filhas ; a presença de maridos com problemas de alcoolismo; de companheiros viciados em jogo de azar, que subtraiam os ganhos da mulher; enfrentamento da infidelidade conjugal que em nada favorecia a auto-estima dessas mulheres; complicações e conseqüências de ideologias políticas dos seus homens. A viuvez, com a morte muito prematura do homem negro, também foi apontada como causa geradora de desequilíbrios para a melhor garantia do sustento das casas. As situações de acolhimento de agregados nas casas e moradias de parentes no mesmo pátio, uns próximos dos outros para melhor se ajudarem, foram fatos evidenciados pela necessidade que possuíam desta proximidade, para a ajuda financeira, cuidado das crianças, para conjugar esforços pela sobrevivência. Essas situações demonstram o exercício da solidariedade, bastante desenvolvido entre os negros pobres daquela época. A toalha não está fácil de lavar, como eu havia pensado. A mancha espalhou-se e ela parece sangrar. Talvez pelo momento em que estou lembrando das referências das perdas familiares, dos agregados e parentes que as lavadeiras juntavam em suas casas para direcionar-lhes a vida. Geralmente sobrinhos, órfãos, tios, tias, gente desprotegida para as quais abriam as portas. E as lavadeiras, tiveram uma quantidade de filhos e morreram muitos filhos, ainda jovens. Que dor. Esta toalha bem que havia lembrado uma mortalha. Quanto aos poderosos patrões, destacam-se alguns depoimentos em que as mães desejavam estar mais próximas deles, no sentido de agilizar estratégias de ganho para os filhos, pois o sa-

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lário pouco poderia ser complementado com certas necessidades, como roupas, calçados, sobras de comida; outras citaram que havia uma grande distância entre as patroas e as crianças e que mantinham a melhor postura de higiene e visual, se houvesse algum tipo de encontro das crianças com a patroa, no momento da entrega das roupas; teve, ainda , quem estabelecesse um outro padrão de comportamento com os patrões, aproximando-se deles até o grau de compadres, de padrinhos e madrinhas de seus filhos ou netos. Ainda, em alguma história surge a patroa se beneficiando de uma das filhas das lavadeiras, pela sua capacidade intelectiva, o que de certa forma lhe garantiu a segurança e maior tranqüilidade material para o prosseguimento dos estudos Contam as filhas das lavadeiras que o grau estabelecido de fidelidade entre lavadeira e patroa, quer em termos de salário, montante de serviço e o que ficava determinado para ser feito, era sem carteira assinada, tudo somente pela palavra, às vezes selada com um atestado de idoneidade moral. Mas o rol de roupas que listava as peças da trouxa para serem conferidas, configurava-se como um momento da desconfiança de que as lavadeiras pudessem ter furtado alguma cueca ou lençol. Então, como se elas fossem tropeiras que levassem a tropa de gado para o pasto, teriam que devolver, na mesma quantidade, toda a tropa, ao entrar na porteira, de volta para o curral. Tanto assim, que há citação do caso de uma lavadeira cujo lençol da patroa perdeu-se na correnteza do rio e ela teve que devolver um outro para a patroa, a qual sabia que a trabalhadora nem tinha as necessárias posses para envolver-se em dívida daquele montante , de compra de um lençol muito caro. O sabãozinho está ficando pouco, sumindo... Isto me leva ao material de trabalho das mães lavadeiras, pois as suas filhas citam o sabão em barra, de soda, meia barra, o ferro a carvão, geralmente mais de um, a mesa de passar, o anil, o polvilho, a maizena, a araruta, usados para engomar; a pedra onde esfregavam as roupas; algumas lembram das tinas, dos tanques, dos tonéis, dos tabuleiros, das bacias, dos baldes, cestas; outras falam da interação com o meio ambiente, da lava-

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ção nos córregos, nos rios, nas fontes, nas cachoeiras, utilizando gravetos para o fogo onde ferviam as roupas, aproveitando o pasto para botar as roupas a quarar borrifadas com sal e suco de limão. Enfrentaram o calor, o sol muito forte, ou as geadas do inverno que endureciam a água e as mãos. Fazem alusão às longas caminhadas, por trabalharem longe de casa, às subidas de morros e higiene do local das fontes, em solidariedade às companheiras que viriam lavar no mesmo local, no dia seguinte. Faziam a Hora do Gari, com a maior alegria. E essas interações com o meio ambiente que as filhas das lavadeiras faziam com suas mães, têm um sentido relevante. Assim como as interações que os elementos da flora e da fauna provocam na natureza, quando cada ser vivo busca harmonicamente a sobrevivência, contribuindo involuntariamente para o estabelecimento do equilíbrio, as lavadeiras, talvez nem sequer imaginavam, mas foram fundamentais para que as comunidades em que viviam funcionassem, assim como as flores, as árvores, os animais e os diversos recursos ambientais que formam as florestas, compõem os biomas e são além de tudo, o mundo em que vivemos. Os depoimentos das filhas das lavadeiras também apontam alguns aspectos históricos e detalhes geográficos de suas regiões de origem, comprovando o grande carinho que as pessoas têm, geralmente, pela sua terra natal. São riquezas de detalhes que fazem de cada história uma verdadeira jóia , um memorial que surpreende pela quantidade de informações de várias naturezas, de usos e costumes de época, descrição de paisagens, de transporte, entre outros hábitos, principalmente religiosos. Mas o maior entusiasmo frente a esses memoriais, é a alegria, a satisfação de sentir que aquelas lavadeiras foram capazes, que foi possível para aquelas lavadeiras, impulsionarem a mobilidade social do país. As filhas das lavadeiras demonstraram que têm diferentes componentes étnicos em suas origens e não somente o africano, constituindo a demanda das afrobrasileiras, uma mistura de negro com índio, com português, com italiano, com alemão, com

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paraguaio, frutos da orgia forçada a que foram submetidas as suas avós e bisavós africanas com os senhores brancos com os quais se deitavam. Este fato impede que elas organizem a sua árvore genealógica, porque os antepassados escondiam esses detalhes, uns por vergonha e outros por medo, pois na maioria das vezes ficavam criando os seus filhos nas senzalas das fazendas dos brancos que as deixavam prenhas. No momento de falar sobre as origens de cada uma, foi complicado.Será que começou com o Silveira? Será que foi com o Ferreira? Será? Fizeram questionamentos aliados à procedência das fazendas onde moravam os ditos donos das suas matriarcas. E pararam por aí. Admitem que são uma misturinha e que a mistura prossegue, de forma consentida, o que, de certo modo já deverá facilitar a elaboração da árvore genealógica de seus netos. Que bom, né meus botões de osso? Está na hora de ensaboar uma cortina vermelha de veludo. O romantismo que me inspira esta cortina dentro de uma tina merece até uma poesia. O sonho, as aventuras do pensamento. Livre é o ar que entra pelas janelas com qualquer cortina, de chita, de veludo, de canudinho de jornal e descobre os ambientes, as pessoas, as camas, as mesas, o que tem dentro das casas, o que se passa. O ar, entrando pelas janelas, perpassando as cortinas é um grande maroto. Mas com meus botões quase não tenho estas conversas líricas. É melhor desconversar porque de cortina de veludo vermelha, nem todo mundo entende, pensa logo que é da Zona. Mas o que as filhas das lavadeiras me lembram em relação à Zona? Lembram do respeito às prostitutas, dos maridos fujões, da infidelidade conjugal. Mas será somente isto? Faltou sexo. Mas as meninas falaram de sexo também, mais nas frustrações das mães do que no namoro dos pares. Mesmo assim, com tantas queixas e desencantos, as lavadeiras tiveram muitos filhos. Esta análise bem se prestaria a um outro ato, um ato sexual. A relação com os pais não aparece muito amistosa, mas todas reconhecem alguns atributos especiais que possuíam e até se identificaram com eles, na idade adulta, principalmente com os que lutaram por justiça social, os que tinham medo da fome e tratavam a mulher e os filhos como as apoteoses da comida e até mesmo para os alcoólatras foram citadas as qualidades da fran-

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queza e de um caso de coragem de abdicar do álcool., a pedido da mulher grávida; muitos pais foram reconhecidos pelos componentes alegria, gosto pela música, pela dança, pelas festas. Muito exaltados foram os trabalhos de alguns pais que, como pedreiros e artistas da construção tiveram inteligência que as deixou orgulhosas de suas obras. Apesar dos relacionamentos pouco amistosos, a sensibilidade de algum pai foi lembrada, ao induzir, com um presente de Arte e Cultura, a carreira da filha, futuramente, a qual naquela época nem pensava que o valioso presente oferecido pelo pai fosse ser tão útil para o seu Curso de Artes Plásticas. Os pais calados não foram poupados, aparecem criticados quanto à alienação do homem na resolução dos problemas domésticos; resolviam o que tinham que resolver na rua e ficavam calados, no lar. A mulher que se virasse, era dela o reduto, sozinha, forte, um comando seguro que lhe acarretaria, mais tarde, muitas doenças, principalmente ocasionadas pela tensão do dia a dia, além daquelas adquiridas pelo desempenho da profissão. Houve relatos de doenças localizadas em pés, mãos, joelhos, pernas, câncer, hipertensão. Mas a maioria das filhas das lavadeiras deixa transparecer que o pai era secundário, frente ao que a mãe fazia, que era dela o comando da casa, que a mãe desempenhava o papel de propulsora do desenvolvimento da família. Em geral, os pais não representaram o elemento que trouxe muito prazer às suas vidas, porque muitos foram causadores de algum tipo de violência contra aquelas mulheres as quais eram consideradas as santas, as provedoras de tudo. Foram feitas alusões à infidelidade conjugal e à submissão da mulher aos caprichos dos companheiros negros que se comportavam como carrascos de suas mulheres. Os comentários quanto à questão ficaram por conta do pode ser. Pode ser de origem histórica, pode fazer parte de um processo ainda mal resolvido, ou pode ser uma questão de afirmação pessoal e pode ser desrespeito mesmo, desrespeito humano. Houve alguma alusão ao fato como sendo um ranço da senzala. O adultério já é um

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fato muito complicado e em relação ao homem negro, teve certa presença acentuada, nas histórias reveladas. Pela apreciação dos depoimentos, o homem arrumava sempre uma forma de negar a sua presença, havia sempre um ato que camuflava a vontade de não estar por perto; ou ia para a gafieira, ou derrubava a trouxa de roupa limpa no chão, porque na trouxa tinha uma cortina vermelha que desconfiava ser de cabaré. Como desconfiava? Então saia para a rua, deixando a mulher trabalhando, entre outros casos; ou agredia com palavras grotescas os gostos mais refinados da mulher.Elas silenciavam. Choravam para dentro, baixando a auto-estima e acarretando doenças de cunho emocional. Pelas colocações, todo o acompanhamento da escola era feito pelas mães. Interessante é o fato como se referem à escola particular, mais elogiada pela tradição e pelos lindos uniformes do que pela qualidade do ensino. Não desponta este aspecto de competência entre a escola pública e a particular. A evidência é que uma era dos ricos e a outra era dos pobres. A maioria das filhas das lavadeiras estudou em escola pública, ainda que, em algum momento, poucas tivessem relatado uma passagem pela escola particular. Ainda tem a capa de violino para lavar, com este sabão pouquinho...Vou lavar com o pensamento, em homenagem às lavadeiras e suas filhas que gostavam e gostam das Artes. Um fato importante que derruba com muitos preconceitos negativos e estereótipos em relação ao negro e às pessoas analfabetas ou semi-alfabetizadas, tem relação com as artes nobres, pois as suas mães gostavam de Literatura, música clássica, óperas, operetas, teatro, cinema, ballet e canto lírico. Freqüentavam esses espetáculos, sempre que podiam ou ganhavam ingressos. Faziam teatrinhos em casa para as crianças, contavam histórias, eram artistas do lar. Passaram o gosto por esses encantos para as filhas, inclusive influenciando em suas carreiras, uma das quais tornouse atriz, outra, professora de Artes Plásticas e Mestranda em Artes Visuais, teve a que estudou Canto Lírico, e a que formou-se em

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Literatura, de tanto escutar histórias e todas, com certeza, artistas do cotidiano. Essas peças pequenas, essas roupas de crianças, entranhadas de areia. Em cada dobrinha tem uma sujeira e os bolsos recheados de papel. Com meus botões, esta trouxa veio carregada demais. Vai sobrar conversa e vai faltar sabão.Mas conforme conversamos, inicialmente, vamos lavando até onde der. As situações de Cultura e de Lazer que as filhas das lavadeiras compartilhavam foram bastante diversificadas, dependendo da região em que moravam e da influência materna, Os componentes mais comuns foram escutar música na adolescência, ir no baile das sociedades de negros, umas desde crianças em baile infantil ou junto com os adultos, à noite, no Prazer das Morenas, brincar de pegar peixinhos no córrego, brincar de esconde-esconde, andar de patinete, pentear caroço de manga, jogar Cinco Marias, subir nas árvores para apanhar frutinhas, fazer bolhas de sabão, fazer panelinha com chapinhas de garrafas, usufruir das diversões das praças: do balanço, da gangorra e do escorregador. Não fizeram referência a brincar de bonecas. Inclusive existem alguns estudos acadêmicos que tratam deste assunto, da relação das meninas negras com as bonecas, alguns deles são de Rachel de Oliveira, de Vera Triunfo, Ivone Poleto e de Franquilina Marques Cardoso, entre outros.. Também em relação ao Lazer foi citada uma praça, a Praça Xavier de Brito, no Rio de janeiro. A praça, no depoimento, configurava-se como espaço de reunir as lavadeiras para construção da cidadania. No vai e vem das pessoas, no lá e cá das palavras, as mulheres interagiam com sua cidadania, unindo o lazer à democracia. O espaço ficava liberado às idéias reveladas. Então, adultos, crianças e idosos compartilhavam o tempo, o lugar, os olhares e os sentimentos. Naquela época, a praça era das lavadeiras, das mães com seus filhos, dos namorados, dos apreciadores das belezas das flores, do cantar dos passarinhos. A praça era nossa, do povo trabalhador. Veio até um axó de Xangô para a lavação. Justiça meu Pai, Justiça. Com os meus botões, Caô! Caô! Firma o meu cavalo e

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respeita a maioria das lavadeiras. Elas só cantavam hinos de Igreja. Meus botões, canto é canto. Cada qual com seu cada canto. A religiosidade apareceu forte nos cantos das lavadeiras do Sul e Sudeste. São cantos, meio rezas, representativos do hinário da Igreja Católica, dos quais aparecem algumas letras nos depoimentos. O questionamento mais forte ficou por conta do medo, na Semana Santa, quando incutiam nas crianças que com a morte de Jesus, ficava o demônio comandando o mundo, o que assustava muito as meninas que se acostumaram a ver os quadros horrendos do demônio, fazendo maldades, espetando as pessoas com enorme garfo, colocando gente na fogueira. Houve queixas sobre o catecismo católico muito severo, com um Deus que era respeitado somente pelo medo. Realmente era coisa muito complicada para as crianças, ainda mais quando diziam para as negras que todos os anjos eram branquinhos. Elas esperariam o quê? Ir para o inferno. Em todos os casos, no aspecto religioso, surgiu o momento de questionar sobre os anjos. Por que somente anjos brancos? Atualmente, já aparecem anjinhos negrinhos e com certeza as perguntas foram sendo respondidas pela análise dos homens com maior discernimento para o assunto. Pelos relatos, a maioria deixou de freqüentar a Igreja Católica onde realizava todas as práticas e até algumas pertenciam às Irmandades de Filhas de Maria , as mais novas e, as mais velhas, às Irmandades do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, ou de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Algumas continuam indo à missa todos os domingos e dias santos e outras não revelaram a religião. Mas cantam os hinos da Igreja católica e até vão à Igreja, por ocasião de casamento, batizado, em missas de aniversário, sétimo dia, no Natal e na Semana Santa, quando a liturgia já modificou bastante e possuem o necessário entendimento sobre essas coisas simbólicas. O fato mais contundente de citação religiosa ficou por conta da filha de lavadeira cuja família era Evangélica, o que obrigoua a optar entre seguir as atividades da Igreja ou envolver-se no

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mundo, como cidadã política, inclusive militante do Movimento Negro Unificado, coisas não permitidas pela Igreja Evangélica, além dos seus dogmas. Mas admite, com muita alegria, que dentro dos preceitos desta religião, os seus familiares se mobilizam de forma muito saudável, vivenciando com os filhos as mais bonitas e dignas lições de amor ao próximo, solidariedade, fé e harmonia, valores cristãos que adquiriu com sua mãe Evangélica. Cantava no coral da Igreja e muito apreciava seus hinos, alguns dos quais ainda lembra. Existe referência à religião afro e Mãe de Santo, porém não há, por parte das filhas, a evidência explícita desta prática religiosa. Geralmente as pessoas optam por não comentar aspectos religiosos de suas vidas, como bater cabeça para o santo, tomar passe, participar de sessão de Preto Velho. Só se estiverem na Bahia, então não escondem porque é um caso cultural, como dizem, não é mesmo? Como as mulheres depoentes são negras, procuraram fazer alguns registros sobre o Movimento Negro, ocasião em que houve muitas controvérsias. Para umas, o Movimento Negro é o que se pode fazer nas bases, nas famílias; para outras ele tem relação com o poder que precisa urgente ficar mais direcionado nas mãos dos negros. Também aparecem desencantos e decepções por conta de mudanças que ocorreram no modo de atuação do Movimento Negro, dos anos oitenta até agora. Existem referências ao individualismo, vaidades, egoísmo e falta de organização por parte de falsas lideranças que assumem a causa e até certos cargos políticos, por interesses pessoais e excluem os companheiros. Mas exaltaram o trabalho das mulheres que iniciaram as lutas no movimento negro e acreditam que essas mulheres abriram caminhos para que as pessoas se assumam com suas responsabilidades, fazendo sua parte, porque não é mais o movimento negro que irá resolver os problemas da população negra. As frentes foram abertas. Pelos depoimentos, as filhas de lavadeiras de Caxambu estão caminhando com o Movimento Negro junto com a Pastoral do Negro e o movimento das Congadas e estão cheias de ideais,

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parecem ainda viver os momentos mais solidários e conscientes do Movimento Negro, mesmo com todas as dificuldades das pessoas se assumirem negras naquele município. É um dado para ser registrado e comentado, pois enquanto uns desanimam, outros tocam para a frente as ações. São as fases dos caminhos, dos movimentos. Mas meus botões, essas desconfianças, as dúvidas. Nem precisa de tanto dilema. Tudo pode ser resolvido sob a proteção de Santa Bakita. Ela vem ajudar. Tenho certeza de que negro, ainda pode ajudar a outro negro., ainda mais se ele estiver em movimento, fica mais fácil para dar um empurrãozinho. Mas Bah! Barbaridade! (esqueci de contar que meus botões são gaúchos e que de vez em quando me exigem certas expressões gaudérias), tem que ter cuidado, gurias e guris, com o tal de empurrão. Vamos conversando, devagarinho, pedindo uma força para Santa Bakita, uma Santa negra assumida. Ela ajuda nessas pendengas. Recebida a graça, a Poderosa Santa cobra apenas um pequeno ato perpétuo, em ação de graças: repete-se, na hora grande, enquanto tivermos vida, em frente ao espelho, para valorizar a nossa autoimagem, a seguinte reza: Santa Bakita, agradeço a ajuda que recebi do meu negro irmão. Peço perdão, se algum dia deixei De acreditar em nossa histórica união. Em frente ao espelho, dada a oportunidade, você já aproveita para exercícios de valorização da auto-imagem, pois surgem as lembranças das histórias infantis, de miss negra, de musas negras populares e a reza é completada com a maior animação, quando a gente pergunta e a gente mesmo já responde, pelo espelho mágico: espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu? Não, não, não...Negra é linda. Meus botões são galhofeiros natos. Eles me ajudam a viver, sorrindo. Para entender melhor o Movimento Negro citado nos depoimentos, há necessidade do conteúdo ser estudado por espe-

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cialistas no assunto, por militantes que reflitam politicamente sobre o que as filhas das lavadeiras estão querendo dizer, porque o tema é bem complicado, exige a necessária competência para uma análise apurada. Apesar de termos uma literatura muito boa sobre o assunto, em nenhum momento encontra-se qualquer coisa semelhante, com esta espontaneidade com que as mulheres estão falando sobre o Movimento Negro, movimento de negro, uma revelia pessoal. É uma conversa que merece atenção maior, porque deu para sentir muitas controvérsias, ressentimentos e diferentes opiniões. Sempre insistindo, as mães lavadeiras acreditaram que podiam fazer das filhas, mulheres que não precisassem lavar roupas, assim como elas, para ganhar o pão. E conseguiram. O centro principal dos referenciais foi a escola, o estudo, o trabalho, a correria para usufruir do pão e do ensino. A escola foi o sonho. A honestidade e o trabalho longe dos tanques, completavam o recado das lavadeiras para as suas filhas. Todas conseguiram, dentro de suas possibilidades, atingir seus objetivos, e este fato serve para a auto-estima da nossa sociedade. Muitas das filhas das lavadeiras não são pessoas ricas de coisas materiais, porém o que possuem é inalienável, são bens interiores. Sem a pretensão de biografar as filhas das lavadeiras, deseja-se colocar em evidência que elas estão contribuindo para o desenvolvimento do país, da forma como cada uma se posicionou em sua profissão e, mesmo algumas, depois de aposentadas, ainda continuam suas carreiras em pleno convívio social. Não são a personificação das vagabundas, malcriadas, briguentas e escandalosas, estereótipos mais comuns com que certas pessoas desqualificadas, ainda costumam chamar as filhas de lavadeiras. Muitas coisas preocupam no mundo atual. Preocupa a violência contra as mulheres, a violência do mundo, contra tudo e todos. Mas nada é mais preocupante do que saber que as crianças estão nascendo nos guetos marginalizados ou em outros lugares onde as mães não se animam, não têm um objetivo de fazer dessas crianças umas pessoas, gente, como as lavadeiras trabalharam pelas suas filhas. Se elas não acreditam mais na escola, se a escola,

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o estudo, não é mais a esperança da sociedade, o que será então? Qual a motivação para que essas mulheres lutem novamente por um objetivo de desenvolvimento, pelo menos por um, pela valorização da vida? As mulheres lavadeiras, decantadas por suas filhas, foram as heroínas. Mas o que está acontecendo com as mulheres, agora, que não conseguem tocar para frente, dar continuidade aos valores de seus antepassados? Faltam cuidados para com a família, as estratégias de desenvolvimento estão entregues a quem? Sem culpas ou com culpas? Como vimos as mulheres negras, hoje? Em vários lugares onde as lavadeiras e suas filhas viviam tranqüilamente, estão acontecendo violência e dor. Os jornais estão plenos de notícias terríveis, tanto de lugares do Rio de Janeiro, como de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, de São Paulo, do Espírito Santo e tantos outros estados do Brasil. Locais decantados pelas filhas das lavadeiras aparecem nas páginas policiais. O que as filhas das lavadeiras ainda podem fazer? Algumas falam em ingressar a fundo na política, para ter o poder de tocar para frente projetos socioculturais, fazer revolução no ensino, na Educação. Outras elaboram planos de ação em favor do desenvolvimento, pela paz, pela igualdade de oportunidades, pelo aproveitamento de talentos para estimular o processo educacional. Existem as que acreditam no poder da revitalização cultural, na religiosidade, nos valores éticos e cristãos, todas as esperanças ainda continuam com as filhas das lavadeiras, para superação da discriminação, das desigualdades. Mas seus planos, seus ideais, seus projetos andam empoeirados nas gavetas. Existem políticas para o desenvolvimento socioeconômico, e educacional direcionado para aqueles lugares de onde procederam as filhas das lavadeiras, mas infelizmente, essas políticas não caminham, ficam só no papel. E como dizia minha avó lavadeira, o papel aceita tudo, transforma-se até em máscara, chapéu de bruxa, aviãozinho. A humanidade precisa de um novo tempo, feliz. Você também acha assim? Se estamos perdendo valores, perdendo coisas

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vitais, básicas, tenho a certeza de que você acha assim, pois só acha quem perde. Estamos perdendo muitas alegrias, muitas perspectivas que poderiam ser melhores. Em todos os depoimentos das filhas das lavadeiras, apesar das adversidades, nenhuma delas colocou que não era feliz. As pessoas viviam do modo como podiam viver. Hoje, como lembrou Ruth de Souza: “se a vizinha compra uma blusa nova, a outra já quer comprar também. Uma sociedade harmônica e desenvolvida não se faz com o consumismo e a inveja.” O exemplo das filhas das lavadeiras, de suas mães trabalhadoras tem que servir para movimentar de forma brilhante a auto-estima das mulheres, especialmente das mulheres negras, dos nossos adolescentes, dos jovens, da sociedade em geral. Se as lavadeiras puderam educar seus filhos e filhas, lavando na beira das tinas, nos rios, nos córregos, nas cachoeiras, subindo e descendo estrada, com trouxas na cabeça, carregando os filhos e filhas, com certeza, outras mulheres também podem se mobilizar para que os filhos e filhas se orientem de forma positiva, para que não fiquem na marginalidade, excluídos, negados. As pessoas, mulheres e homens não têm este direito de colocar filhos no mundo para ficarem na vida como peças expostas aos temporais, nos arames da vida,sem que sejam recolhidas, cuidadas, acariciadas e deixadas limpas, bonitas, brilhantes, como as lavadeiras cuidavam de suas peças. E eram coisas, coisas sujas. Falar sobre as filhas das lavadeiras trouxe muita paixão, mas ao mesmo tempo, uma tamanha indignação, no confronto com fatos tão mesquinhos, como jogarem no rio uma criança no colchão por ter feito xixi na casa da patroa; homens e mulheres sem trabalho pela perseguição política; uma professora, a primeira professora negra da cidade, não conseguir dar aulas porque era preta, como diziam, junto com seu nome próprio Eva Preta. E por aí vão... Absurdos! Mas foram vitoriosas essas pessoas, essas famílias.

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As filhas das lavadeiras trouxeram mensagens de otimismo, de felicidade, de recordações de lugares, de coisas vividas cada uma em seu tempo de criança, de jovem, de adulta, trouxeram referenciais de vida. A saudade que expressaram, mesmo daqueles tempos mais adversos, é bem compreensível, pois a maioria, ainda tinha a presença da mãe. Parece que perdi os meus botões, meus pensamentos, minha herança. Que interferências poderão ter afastado os meus pensares? A herança deixada pelas mães lavadeiras resume-se em valores que incluem o estudo, a alegria de viver, o trabalho, a coragem, a honestidade, a organização, a disciplina, a solidariedade, a amizade, a fé, o carinho, o amor, o bom trato para com os semelhantes, a resolução dos problemas, sem brigas, a proteção da figura do pai, mesmo que tenha problemas, a criação, de estratégias para conseguir o desejado. Ainda influenciaram no gosto pelas Artes, pela vaidade, pela feminilidade, pela dignidade, pelas atitudes de silêncio nas horas de precisão e pelo argumento e poder da fala para orientar, questionar seus direitos, entender e fazer-se entender em seus pontos de vista, para harmonizar e criar situações de relacionamento civilizado com os filhos, com os parentes, com os amigos, no lar, no trabalho. Nota-se que as crianças tinham uma participação nos trabalhos das lavadeiras, entregando as roupas, ajudando a torcer as peças, assoprando os ferros de brasa, dobrando e contando as roupas, carregando água. Perguntadas sobre a forma como era visto este tipo de trabalho, foram unânimes em dizer que foi muito bom que trabalhassem porque o trabalho desperta o senso de responsabilidade e que não sentem, naquilo que fizeram, nenhum tipo de exploração do trabalho infantil, mas sim uma estratégia de solidariedade e de envolvimento com as coisas da casa. As mães estavam trabalhando, eram as protagonistas principais do trabalho e as crianças ajudavam nas tarefas menos penosas. Acharam muito natural e acreditam que deve haver uma parcela de trabalho e responsabilidades das crianças em casa, pois além de afastar das ruas, estão aprendendo a fazer alguma coisa que talvez mais tarde seja útil para a sua sobrevivência.

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Tem muita roupa para ser lavada, a trouxa está pela metade. Terminou o sabão, um sabãozinho de nada... Perdi os meus botões...Que vontade de gritar bem alto. Gritar, quando se pode é cantar? Vamos cantar e é já. Ogum, olha a sua bandeira, ela é branca, verde e encarnada. Ogum, no campo de batalha, Ele venceu a guerra. E não perdeu soldado. – Mamãe! Que negócio é este de sabãozinho de nada? Que coisa estranha de conversa inacabada? E essa cantoria? – Homenagens, homenagens para as guerreiras. – Mas a Senhora conversava com quem? – Estava falando com os meus botões. – Botões não falam. – Mas me escutam. De repente entrou alguma interferência e eles se perderam. – Mamãe, existem tantos botões para se ligar nesta casa... E ainda quero saber da conversa inacabada. – Era com elas, a conversa. Com elas e com os meus botões. Mas por momentos roubaram a minha atenção, revirei a cabeça, perdi os meus botões. – A Senhora está brincando comigo. Onde estão elas que não as vejo? E por acaso foram elas que falaram do seu máxi-lencol, que transformaram uma cortina em poesia, que saudaram Xangô, com Caô! Caô! E agora, ainda há pouco cantaram para Ogum? São coisas suas, mamãe, bem suas. .A senhora era elas. Elas eram a senhora. – Não sei de nada. Até meus botões desapareceram. – Compre outros, mamãe. Peça pelo tele-botão, por fax, pela internet. Não chore os botões perdidos. Temos botões em casa para apertar e plic, plic, tudo cai em suas mãos.

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– Nem tudo, nem tudo. – Compreendo, mas sem culpas. Também tenho os meus botões, a senhora me ensinou a conversar com eles e jamais estão à venda. Mas por que a conversa ficou inacabada? – Foram elas que se retiraram. – Mamãe, suas ligações com o astral ainda vão dar em confusão. Não vejo mais ninguém, além de nós. Ou fui eu que dispersei os seus botões? Também estava falando com os meus. Falei alto demais e você deve ter se ligado. – Será? Era uma conversa feminina. Ela sabe quem eu sou. Falava de roupa lavada, geada nas mãos, chá de matinho, sabãozinho pouco, cortina no chão, pão com pão, camisa de patrão, casa e comida, família, parentes, agregados, livro, caneta, sapato, furado, caderno, uniforme, alguém na vida, ler e ser, ter e haver, ter e não ser, lavação, passação , exploração, ferro de brasa, água da bica, da tina, do rio, das cachoeiras, do morro, da ponte dos negros. e o resto todo de desassossego. – Agora acredito que eram elas: você e eu. Não deixaremos a conversa inacabada. Acontece que enquanto a senhora falava com os seus botões, na frente da máquina de lavar roupa, eu estava com os meus botões ligados na nossa história. Nossas ligações se cruzaram. Mamãe, eu venho falando há tempos, que isso dá confusão, a senhora ficar interagindo com os botões dos outros. A senhora fica quietinha, silenciosa, escutando tudo o que se diz. Você vai longe, com essa invenção de conversar com os seus botões. – Então, minha filha, você me conhece de verdade. Fico calada, mas alguém sempre interfere. – Eu lhe conheço muito bem. A Senhora é a minha mãe, uma mulher negra trabalhadora com a maior dignidade, A LAVADEIRA. E estou organizando os meus botões para contar a sua história. – Você? Você vai escandalizar? – Seus botões voltaram depressa e muito avançados. Será que ainda me conhecem de verdade?

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– Para começar, como eu queria, você é alguém na vida, uma mulher negra com dignidade, trabalhadora, que freqüentou o colégio, sabe ler, sabe escrever e que de tanto ler e escrever, desaprendeu de lavar roupa e comprou uma máquina de lavar. Você é A FILHA DA LAVADEIRA. E vamos acabar com esta conversa. – Ainda não acabamos de conversar. Quero arrumar um jeito contundente que todo mundo saiba, não apenas eu, que você é uma Vida. – Escandalize. Leve-me na faixa de pedestre e deixe que eu passe sem nenhum sinal, quando vier uma lotação voando. Saia de perto e veja no que vai dar: mais uma vida que passa para a eternidade, uma negra, aparentando setenta anos, pelas mãos calosas e a curvatura da coluna deveria ser lavadeira das redondezas, ainda com cheiro de sabão de soda e presença de pigmentos azuis e coadjuvantes ignorados, parecendo pó de anil, na periferia do corpo, sem carteira de identificação profissional, aguarda reconhecimento no Instituto Médico legal para os devidos processos de pesquisa e sepultamento. A morte divulga a vida, no obituário. Tem quem leia, todos os dias, minha filha. – A Senhora faria uma aventura dessas somente para atender ao meu desejo? E ainda precisamos de tragédias, para ter visibilidade? Isto não combina com a sua dignidade, nem com o trabalho que passou para me criar. Nós somos visíveis, gente. – Mas afinal o que é dignidade? Se é por causa da tal dignidade, meus botões estão dizendo que troque de estratégia. Quem sabe escreva um livro, um livro que irá passando de mão em mão. Quem sabe? Um livro com dignidade, contando a história das lavadeiras pelos botões de suas filhas. – Mamãe, a senhora me surpreende. De vez em quando anda envolvida com os seus botões. Mas, sabe-se lá o que lhe dizem e onde a levam. Depois de tudo que passou na vida, tem plenos direitos de envolver-se com o que quiser.

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CORPO-INQUIETAÇÃO Chegaria até aquele corpo, nem que fosse preciso apropriar-se da terceira mão, obra de arte de Estelark, para desenvolver com ela o exercício de revitalização da kuatakuata, uma espécie de agarra-agarra, de pega-pega, uma batalha muito antiga do sul da África, da qual tomara conhecimento pelas conversas com um corpo angolano, contador de histórias. Azantewaa não queria um corpo perdedor de batalha, para escravizar, como no tempo da Kuatakuata. Mas a idéia de agarramento de corpos excitava seu corpo de mulher que passou a investir em mais uma estratégia de conquista: o próprio corpo. Expondo o corpo para o corpo-mistério, poderia ser que a visse. Teria mais chances de visibilidade. Um corpo fala mais do que qualquer palavra. Seria um texto vivo para que lhe descobrisse a forma e poesia. Lembrou que Luara usou o corpo para que a platéia autografasse nele, quando encerrou a performance do seu discurso de bailarina. Azantewaa queria ser autografada, também. Luara estava nua no palco e aquela gente assinava o nome na bunda dela, nos pés, nos seios, nos cotovelos. Ela tornou-se um corpo escrito, assinado e depois fechado, quando a performance terminou. Tornou-se um texto para ser lido, futuramente, quando passado a limpo, retomasse as assinaturas de época. Na madrugada, falando sozinha, como sempre, sem respostas, sem eco, Azantewaa começou um ritual: preparar a mente para expor o corpo. Não seria, ainda, naquela noite. Antes, precisava queimar algumas convenções, abolir referenciais que não lhe permitiriam avançar em seus planos. Conversou com Luara que já entendia dessas coisas de corpo. Teve que escutar lições de corporeidade com indicação bi-

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bliográfica e citações notáveis, como se fosse um corpo candidato a calouro, adestrando-se para teste de ingresso na universidade. Azantewaa esculturou seu corpo-cabeça na oficina do corpo. Mas faltava algum detalhe, aquele que a intuição feminina pede. Ah! Era isso: lembrou de falar com Vovó Candinha, esta sim, poderia completar os detalhes. E completou com receitas de banhos para o corpo, aconselhando que se estivesse carecendo que outro corpo a descobrisse, deveria tomar um banho com sete cravos da índia e pétalas de rosas vermelhas, o que seria fatal.Mas se carecesse de relaxar o corpo, então seria um banho diferente, de pétalas de rosas brancas e um tantinho de alecrim verdim e cheirozim, cheirozim. E não deixou de recomendar um banho de sal grosso para limpar o corpo de mau olhado e recuperar as energias. Vovó Candinha era mineira, do quilombo de Itabira, terra do poeta Drumond que falava de trem, de cotidiano, temas também abordados com muita propriedade por Solano Trindade, um poeta negro notável, de inesquecíveis poesias do povo : tem gente com fome, tem gente com fome.... Vovó Candinha falava ligeirim, ligeirim, pois não podia perder tempo com muitas palavras ditas até o fim.. Comentava que não se pode perder tempo com nada, nem com a vida. Será que Vovó Candinha era adepta da filosofia de corpos suicidas? Que nada! Vovó queria dizer que não se pode viver, perdendo tempo, sem projetos de vida, sem coisa nenhuma em que acreditar para o devir, assim como se encontram muitos corpos jovens e outros adultos, em Itabira ou em qualquer canto deste lado do mundo. Ela recomendou Azantewaa para escolher o banho, conforme a situação carenciada. Disse-lhe para não esquecer das receitas dos banhos e a finalidade de cada um, porque depois do banho tomado, não haveria reversão, durante as vinte e quatro horas do dia. Azantewaa resolveu tomar um banho para relaxar, estava decidida. Os complementos necessários para a conquista já havia reafirmado com Luara e não tinha precisão de incrementar mais nada, a não ser a vontade de ficar nua e calma.

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CORPO-TEXTO A chegada do por do sol começou a movimentar as expectativas de Azantewaa para ver brilhar as suas luzes da madrugada e realizar seus plano: mostrar-se nuinha para ser atingida e tocada pelos raios misteriosos de fulguração daquele ente. Não corria riscos de enfrentar visitas, e se viessem, estaria a salvo, de banho tomado certinho, somente para relaxar. E a festa, acontecendo na rua, criava o clima perfeito para muitas estratégias, principalmente, de descobertas. Com seu corpo nu, ainda escondido atrás da cortina, continuava com a linguagem cênica do invisível, ensaiando a visibilidade.Afastou a cortina de sua frente, mais e mais e mais. Apareceu na janela, quando quis aparecer. Estava livre e disposta a fazer um gerenciamento ostensivo de seu corpo nu. Os fogos de artifício estouravam no céu e coreografavam estrelas de prata. Aquele corpo, lá em baixo, voltou a cabeça para o céu e as luzes que irradiavam, tornaram-se cada vez mais intensas, chegando à direção de Azantewaa. Os fogos explodiam com o máximo de decibéis e o corpo mistério, erguendo os raios luminosos que lhe saiam de todos os ângulos, olhou para o alto. E com o giro de cabeça para acompanhar o espoucar dos fogos, no delírio da festa, descobriu a mulher nua na janela. Não ficou indiferente. O cenário era muito especial para os seus sentidos. Ele era um corpo macho. O corpo de Azantewaa deixava o subjetivismo de seus devaneios e não havia mais separação entre o cultural, o orgânico, a mulher e o homem. Passava a ser um amontoado de informações para o deciframento do imaginário dele. Suas luzes sem tempo e território definidos, invadiram a seara do seu afecto, mobilizada

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pelas convicções anteriores do seu percepto que sincronizaram com a matéria viva do corpo oposto. . Azantewaa sofreu o impacto da novidade tão presente. As luzes cegavam seus olhos. Era luz demais. Refletores intensos de uma radiação descomunal de cintilâncias: era ele – um corpo negro, aparentemente macho. Sorriram. Os dois corpos, monitorados por uma gênesis complexa e diferenciada, fizeram apenas sorrir. Ele, frente à naturalidade da nudez e ela, impactada pela naturalidade dele. Estava feita a descoberta que atormentava as madrugadas de Azantewaa: um corpo-ânima, fruto da leitura poética de seus devaneios. Era , ainda, uma aparência, nada mais. Como se fizesse um grande afeto para a sua alma, aquela revelação a deixou tonta e irracional. Seus pensamentos deixaram de existir e concentraram-se no sorriso dele, que sorria e sorria. Não sabia a verdadeira causa daquele sorriso e se perguntava, em momentos de lucidez, se ela não seria um corpo-palhaço que lhe despertava tanto riso, naquela exitosa interlocução corpórea. Ao descobrir-se para aquele corpo-desejo, entrou em transe entre o terreno e o celeste, debateu-se entre sonhos e realidades. E já não eram devaneios. A concretude do corpo ao seu lado, os toques, os cheiros, eram presença, outras forças em sua vida. Caminharam sentimentos paralelos, cada um a seu modo, sem convergências, a não ser dos beijos na boca, das coxas roçando, do sexo. Tudo aconteceu ligeirim, ligeirim, como falava Vovó Candinha, para não perder tempo na vida. E em cada tempo, novas descobertas, nunca definitivas. Os corpos descobriram situações provocadas por estranhos movimentos que desconheciam um do outro. E foram se conhecendo, cada vez mais, até o tempo em que se esvaziaram na rotina e não se reinventaram.Tornaram-se corpos-textos lidos e mal interpretados entre eles. A ausência de luz, de brilhos, dos olhos nos olhos, a rejeição pela comida, a indiferença pela nudez e as palavras de afeto

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não ditas, tornaram-se gritos de guerra que deram início a um processo de separação dos corpos, de distanciamento brutal que arremessou um corpo para fora da janela, e deixou o outro grudado ao seu parapeito, como tronco de salvação.

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CORPO-IRONIA ( O ENSAIO )

(fala do apresentador) A Força Negra TV, o canal onde queremos ver você, está inaugurando uma série de cem documentários que irão tratar de assuntos étnico-raciais, dando o devido destaque para a valorização da população negra de nosso país, conhecida também como afrobrasileira, afrodescendente e negrada urbana ou rural, quilombola. O primeiro documentário intitula-se Carussandê. È uma produção do Coletivo de Mulheres. deste lado do mundo. Traz assuntos relevantes assinados por doutoras da universidade da vida de mulheres negras. Acreditamos que os cinco minutos semanais de documentário sejam bem recebidos pelos telespectadores. e que o programa não enfraqueça sob o controle remoto de mãos que teimam em colocar os negros no ar, mas nos devidos lugares concebidos e julgados sem pecado. Ao término do documentário, se você desejar a continuidade de vídeos como este, entrando em seu terreiro, vá ao orelhão, ou pegue o celular ou seu fone residencial e ligue já para 1695, número que lembra o ano da morte de um guerreiro negro de Palmares e diga: valeu Zumbi! Mas se você se sentir incomodado e desejar que o programa saia de seu barraco, ligue já para 1888, número que lembra o ano em que a princesa aboliu o tronco e deixou os galhos para os negros quebrarem. Diga consciente: eu mereço. Ligue, ligue já. Você decidirá o destino do Carussandê.

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O Carussandê traz uma releitura apimentada do caruru com samba, dendê e equivocadas orientações que se transformam em lições de vida e auto-estima, com a mestra zum zum zum, da colônia africana, também deste lado do planeta. A mestra é autodidata e vem se revelando cada dia mais experiente em consultoria para assuntos da comunidade negra, inclusive em samba de enredo. Ela nos concedeu uma acolhedora e psicolúdica entrevista. Você ficará surpreendido pelas intimidades da mestra com o universo feminino afro-brasileiro. Sua fala tem oculto sentido traumático que a arremessa aos saberes mais profundos. E assimilem suas palavras porque a mestra é otimista. Extrapola Bachelard, quando põe asas em seus sonhos. Ela consegue colocar asas até na ponta da língua afiada. (fala do ensaiador) Tá todo mundo aí? Cada uma “préstenção” em seus referenciais. Vamos começar o Ensaio. nhê.)

(Aparece a mestra e encontra uma repórter da revista Ogu-

(repórter) – Mestra zumzumzum !!!!! Bom dia!!! Simpática! Meu povo, o figurino da mestra é beleza americana, ou melhor dizendo, afro-americana. Quanta dignidade neste terninho executivo importado. O mundo global tá de olho na senhora. O que a mestra tem a dizer para essa gente que lhe espia da varanda e nem tem onde sentar? (mestra) Sobretudo e especialmente sou um tanto tímida, mas me solto na frente do meu povo. Bom dia povo meu! Agora a gente se vê, na TV, além da arquibancada do Carnaval. (repórter) Hoje o programa é dedicado às mulheres, mais especialmente e, sobretudo, como diz a mestra. Nada mais inteligente do que trazer o seu depoimento sobre o que anda escutando nos cafés com pausa das reuniões de relações de gênero. A mestra confirma que entre as mulheres negras está rolando um discurso estatístico de desvio padrão de companheiro,

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assistência desassistida, violência, salário baixo, correria? Qual a inferência que a mestra tira destes boatos, qual o sentido analítico desta práxis cotidiana? (mestra) zum zum zum zum zum zum, capoeira mata um... esquindundum, esquindundum.... (repórter) – Que resposta interessante. A mestra é divina, consegue ter uma fala direta com alto teor cognitivo. Não está aqui prá confundir. Ela explica tudo e quer dizer que as mulheres negras se preocupam muito se alguém vai lhes passar a perna , se vão receber uma capoeirada no meio da estrada da vida e que estão com muito medo de morrerem sozinhas na praia, tocando berimbau, esquindundum, esquindundum. O alcance sociológico e de gênero da mestra é do contexto e impactante. (mestra) – Muito obrigada. Agradeço a tudo, a todos e a todas prá não deixar ninguém de fora da minha alegoria de gênero. (repórter) - E a mestra considera que o assunto das mulheres é uma questão que pode mexer nas políticas públicas? (mestra) Zum zum, Zumbi, fofoca: correio nagô. (repórter) – Espetacular a sapiência da mestra. Falou pouco mas rompeu com o silêncio. Seu poder de síntese nos remete à mensagem que estas questões são antigas, desde o tempo de Zumbi dos Palmares e Dandara. O problema é de gente, muita gente no quilombo, homens, mulheres, uns por cima dos outros, difícil de se acomodar e ficar parado num canto só, então ocorrem desvios, um para cada lado. Ela confirma que é um caso prá mexer com as políticas públicas, mas que só vem mexendo com um público que gosta de fofoca. A resposta da mestra tem fundamentação no correio nagô: de boca em boca, a palavra vira texto. Sua conversa está deliciosa e tem um repertório étnicoambiental de dar inveja a qualquer gênero da natureza. Mas sabemos que tá na hora de chegar a sua orientanda. A mestra vai atender sem ter chegado ao fim da entrevista ou irá descartar a orientanda? Estamos diante de um problema de agenda.

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(mestra) – Da minha agenda de atendimento de reparação, jamais descarto alguém, principalmente a Dita. Ela anda confusa, cheia de hipóteses... Terminaremos a entrevista no próximo ensaio. Chega a orientanda, cantando. (orientanda ) - Meu nome é Gal (mestra) - Seu nome é Gal? Tem certeza? Você é a Dita. (orientanda) Eu disse Gal? Estou com essa música na cabeça, coisas da mídia. O poder midiático é forte e. nos empurra coisas que parecem verdades. Um dia desses foi com uma amiga. Ela contou que a mídia agiu tão forte na cabeça dela, que esqueceu de todas as rezas e cantou o dia inteirinho, até na hora da curimba: ”prá aprender a ler, prá isso não tem hora, pode ser de dia, pode ser de noite, pode ser agora, pode ser jovem, pode ser adulto ou aposentado, prá aprender a ler, só não pode ficar parado”. Mestra, fico feliz que reconheça o meu nome, porque meu perfil evadiu-se. Quando nos encontramos na caminhada das lanceiras, eu era negra. A diferença é que agora eu sou branca. (mestra) – Branca? Com estes cabelos, etnicamente incorretos para uma cabeça de corpo branco? (orientanda) – A mestra tão moderna, ainda não superou estes conceitos capilares? (mestra) – Só porque não entrou pelas cotas, na universidade, você vem com esta conversa que é branca? (orientanda) Mestra, é uma questão de auto-ação afirmativa. Tenho minhas razões. “Préstenção”: eu ganho mais de dez salários mínimos mensais, freqüentei escola, entrei na universidade pública sem cotas, sai da universidade com diploma do meu acesso e permanência, não moro na rua, não tive filhos aos 14 anos, nunca fui aviãozinho, nem prostituta, só dei quando quis dar, não tirei pena nem de galinha, trabalho com carteira assinada, vou ao cinema, ao teatro, danço no lugar aquele nota dez, como e bebo, sem depender do Fome Zero, tenho plano de saúde, ganhei medalha de honra ao mérito, fui notícia de jornal no caderno de cul-

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tura e na coluna social, marco presença em casa de mestra, sem ser diarista, vê se me entende, eu sou é branca. Está complicado na minha cabeça esta opção de pele. E tem mais, se eu disser que sou negra vou bagunçar com a pesquisa de uns e outros.. (mestra) – Já, já eu descomplico sua complicação de pele. Vou jogar as bolas e irão desfazer o equívoco. Se a bola preta bater em você, em qualquer parte do corpo, confirmará sua negritude. Olha a bola, olha à bola preta. Mesmo se esquivando para outro lado, ela caiu em cima de você. Depois caiu fora, mas caiu em cima de você. Comprovadamente, você é uma negra. Estas bolas abençoadas não falham jamais. (orientanda) Mestra, deu certo, deu certo!!!!!!Eu ando me inventando branca para ver se atraio um corpo negro. Funcionou com as bolas... (mestra) – Bobagens.Tudo é uma questão de conquista e de contexto. Seja aquilo que você é. (orientanda) – Sua sabedoria ainda vai dar o que falar. (mestra) Afinal qual é o objeto de sua pesquisa? (orientanda) Não é objeto, trata-se de gente: Os afrodescendentes e o enfrentamento do coletivo imaginário no cotidiano da práxis do carussandê. Como fazer para sair desta trilogia do caruru, samba e dendê? (ensaiador) - Chega, chega de ensaio. Já decoraram as falas? Então vamos trabalhar, senão a gente fica por aqui no Carussandê: caruru, samba e dendê, e o resto, ninguém mostra e ninguém vê.

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Rota Existencial Parte 4 A poesia, paradoxalmente delírio e consciência, questiona, ama e resiste, pontuando o final da Rota Existencial, em solenidade álmica. Do livro Meu Nome Pessoa - Três Momentos De Poe­sia - 1989 Morro, clave de sol Quero mais que falas Prece do negro ao professor de qualquer cor Neguinha na rede Palavras Verdade Plim!Plim! Infantil Do Folheto Roda de Poesia Negra – 1993 A lágrima

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INÉDITAS Retalhos de esperança Parada cardiáca Sobrevivência Alvorada dos negros Criança cidadã Rota existencial Herança dos deserdados Oficina do Rap Histórias Outro êxtase Insana Mórbida Sonho bom Descoberta afinal

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MORRO, CLAVE DE SOL Na pauta da estrada, seio gigante, jorrando seiva para o imigrante, pobre forasteiro que chegou primeiro. Na mala, a esperança, carregando os outros no colo, nos braços, descobrindo o morro. Miragem! Miragem! Pousar no morro... Socorro! Socorro! Morar no morro. Morrer no morro. Morro sem dinheiro. morro da cidade. Morro de saudade. Uma curva imensa, estranho caracol, espiando louco, mais perto do céu brilhar as estrelas, deitar a lua, nascer o sol. E a casa é nua.

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Vida se inquieta no dorso da rua, na trajetória tua gente reluz Morro da Cruz! Da tua cara alegre entendem tantos... tantos quantos, vivendo a podridão da sociedade, sorriem e cantam no disfarce da felicidade. Da tua cara triste entendem tantos... tantos quantos, como eu já te morei, tantos quantos, como eu te amarei. Do teu painel miséria entende só Jesus. Teu cartão de visita é uma enorme cruz. Cruz! Morro da Cruz... Morro da Cruz? Morro de Cruz! Morro da Cruz da minha poesia de outros poemas Que sei que compõe.

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Morro da Cruz de outras realidade, das nossas verdades de cidadão, cães consumidos, homens esquecidos, nas dores da vida entre a treva e a luz, no limite da cruz.

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QUERO MAIS QUE FALAS Um monte de pretos fechados na sala, Pior que a Senzala, no ano 2000. Um monte de pretos fechados na sala, Revivendo a Senzala, nas falas, na fala Que só eles diziam, Que só eles ouviam. Um monte de pretos fechados na sala Em nome das Artes, fazendo arte, Sem nenhum aparte. Senhores absolutos, Donos radicais de latifúndios de ideais. Pretos fechados na sala. Senzala e falas . Falas e falas. Ninguém fala? E ninguém fala? Quero mais que falas!

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PRECE DO NEGRO AO PROFESSOR DE QUALQUER COR Tenho os sentidos perfeitos, sou vida em ebulição. Sou humano, tenho defeitos, como qualquer cidadão. Sinto angústias, tenho medos, sou afeto e emoção. Deito tarde, acordo cedo, quero ter direito ao pão. Sou pessoa, estou na luta, no campo e na cidade. Importante na disputa é não perder a identidade. Sou mutilado de outrora, sem heranças materiais. Que posso fazer agora? Seguir igual aos demais? Seguir? Como é que se anda de forma tão desigual? Ao perguntar me respondo, pois a coragem me manda Que na trilha vá me pondo. É um caminho sufocante, rodeado de rejeição. Devo estar sempre atuante, apostando na união. E na nossa Educação. Só os negros de mãos dadas conseguem atravessar Os caminhos desta vida com pedras a machucar. As mãos dadas são efeitos da não alienação, De gritar pelos direitos, não vivendo a humilhação. A travessia é jornada, é o nosso cotidiano De gente discriminada, de momentos sub-humanos. Os caminhos desta vida são os fatos, são os anos, As horas mal vividas que a História cobriu com panos. As pedras que nos machucam saltam de todos os lados De visíveis e de ocultas direções Dos bumerangues arcaicos da cegueira nacional Dos bumerangues “ ingênuos” da Educação E então? Por favor, EDUCADOR! Conscientiza-te!

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Conscientiza teus alunos Que as pedras machucam. Que são pedras ferinas da discriminação. E não ignora a pedrada, Porque ela existe, Porque ainda persiste. E precisa... E necessita Ser trabalhada.

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NEGUINHA NA REDE Neguinha do cabelo arrepiado Deitada na rede, Dormindo na rede, No apartamento do bairro pobre De edifício nobre, De gente esnobe, Que nem tem rede pra dormir. Que nem tem nada, Quase nada, Mas tem palavras Pra te agredir. Neguinha do cabelo arrepiado Enrolada no lençol floreado, Pezinho de fora a se balançar. O meu poema tem sabor de ti, Cria que pari, Minha preta , Louca adolescente Sorri e chora, Anda e sossega, Sonha e navega Na rede do norte, Num apê do sul.

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PALAVRAS Palavras, Duplo sentido: Problema... Percepção... Palavras, Sexto sentido: Firmeza... Intuição... Palavras, Meias palavras Ironia... Falsidade... Palavras Soltas,perdidas Esconderijo, Inverdade. Palavras, Sentido perfeito: Diálogo, Compreensão, Ecos sublimes, Aproximação.

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VERDADE Verdade, Um sólido, Muitas faces Com a cara do dono. Verdade, Dependência, Ângulo, Aresta, Ponto de vista. Verdade, Foco cintilante, Risca pisca. Relativa luminosidade Manipulada pela sociedade.

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PLIM! PLIM! Plim! Plim! Quem se veste bem, O mundo trata melhor Us Top.Stop!Stop! Ele não quer o pior, Fresh! Fresh! Que vergonha! Não tem Batavo na sua geladeira? Plim!Plim! Aldeia Brasileira. Falta café na sua prateleira? Plim!Plim! Fome nacional... Tudo pelo social. Ah! Meu brasileiro, Que loucura! Censura!Censura! Us Stop! Stop!

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INFANTIL Uma criança, Mundo fantasia, Contagio de graça, Pedido de amor. Uma criança, Pluminha leve, Cantiga de roda, Roda de viver. Uma criança, Rosa, Sempre-viva, Sempre! Sempre! Viva! Viva a criança! Esperança da gente, Prá cirandar A roda diferente.

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A LÁGRIMA A lágrima Mexeu com o olho, O olho do negro. Olho não chorou. A lágrima Tremeu o olho. Olho segurou A lágrima. Ficou acanhada, Entrou pra dentro, Derramou por dentro, Veias e veias, Coração, Ser inteiro do cidadão. A lágrima Parou na garganta. Foi cuspida com a palavra Num poema de dor, Dejeto da agonia, Irreverência, Expurgo da criação.

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RETALHOS DE ESPERANÇA Os fios de linha Bordavam o tapete multicor, Deixando no assoalho A recordação Das pelúcias, Das sarjas E das sedas Dos casacos das meninas, Dos coletes dos maiorais, Do uniforme da enfermeira, Das saias das colegiais, Dos vestidos das senhoras Que procuravam a costureira, Dona de casa, operária De um tempo que ficou lá atrás, Com os retalhos de esperança Que por anos e anos Encheram os pratos das crianças. E em cada dia Garantiram O pão nosso. Amém!

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PARADA CARDIÁCA De terno frisado, Gravata e colarinho, Quepe amarelinho, Ia rodando... Levando fardos e gente. Ia levando... Das festas ao cemitério, Do mercado ao cabaré, Da escola ao futebol, Do hospital ao carnaval. Ia rodando... Ia levando... Carregando... Seu doutor, Dona e madame, Senhorita, prostituta, Mascarado, marginal, Político, colegial. Ia levando Professora, vagabundo, Toda espécie deste mundo. Ia rodando... Ia levando De auto, rodando De ônibus, De caminhão.

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Ia levando Nas ruas, Na beira mar, Na chuva, Cruzando pontes, Na serra, subindo montes. Ia levando... Na estrada, Enfrentando a balsa, Caindo no rio, Mas voltando à tona Para respirar E espiar a vida, Com todos os pesos de seu destino De fardos, de gente que carregou. Parou... Uma parada cardíaca.

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SOBREVIVÊNCIA

  Folhas de papel, Páginas Molhadas. Palavras, Palavras Impressas, Dispersas, Ávidas pela bolinação Que o negro fazia Em cada escrito novo, Com um lápis roxo de revisão Que escorria a cor, Tingindo a identidade Do negro revisor Das folhas de papel, Molhadas, Com as palavras Impressas, Na página branca Do jornal branco Da cidade.

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ALVORADA DOS NEGROS Quando fugia Do barulho das crianças, Das falas das senhoras, Dos latidos, Dos miaus, Dos gemidos, Dos pedidos: Quero leite, quero pão, A qualquer hora. Quando fugia... Aportava outro porto Na cômoda velha de jacarandá, Confessionário das ideologias, Com entalhes de poemas, Para  receber as crônicas O despejo das palavras pela igualdade Que nas horas caladas Ensaiavam gritos Para o jornal Alvorada.

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CRIANÇA-CIDADÃ Carrinho de mão Com laranjas prá vender. Capina e areia Para o jazigo enfeitar. Hora de trabalhar... Carrinho de lomba Com as rodas a girar. Esconde-esconde Com neguinho pra encontrar. Hora de brincar... Escola da vila Com o leite prá tomar. Livro aberto, Uma nova lição: La.. le, li, lo, lu. Hora de estudar... sa, se, si, so, sonho, Sonho prá sonhar.

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ROTA EXISTENCIAL  Quero saber de fruto maduro, de árvores, de pássaros, de luzes, cravos e rosas. Quero saber de atalho prá chegar ao mar. Quero saber de barco na partida, com vento a favor, navegando a felicidade, capoeirando as ondas, indo e voltando ao mesmo lugar, em tempo certo, sem cansar, sem deixar vago qualquer momento de conspirar tristeza que me faça deixar de acreditar, de querer mais além das descobertas de coisas incertas. Preciso e quero saber do atalho do mar da solidão Prá navegar EU, comigo... Em tempo certo, sem cansar, sem deixar vago qualquer momento de conspirar tristeza que me faça deixar de acreditar, de querer outra vez mais além das descobertas de coisas incertas da rota existencial.  

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HERANÇA DOS DESERDADOS O barco partiu Do porto sombrio. E foram muitos Que partiram Com nome de navio, Com deserdados negros Dos pensamentos, donos. Só dos pensamentos, No mar de negritude. Cada um a seu tempo Chegou de viagem. E como canta o poeta: Prá trabalhar olê E morrer, E renascer Em milhões de atitudes, Até no verso negreiro De minha negritude.

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OFICINA DO RAP Na oficina do Rap As cidades do Brasil De quem não faz “répiaurs” De quem não tem “répideis” Só rapidez, rapidez Na boca do funil Na correria Das cidades do Brasil Que na rota do mapa Só mudam a posição Da mesma história nacional Dos negros, da pobreza a negação Da mais antiga a de menor idade Tudo igual, tudo igual Tem cidade do regae, Cidade do acarajé Cidade dos doces da princesa Como é? Como são? Cidade do quarteirão De Jorge Amado de Gabriela Cidade das favelas Com sombras e aquarelas Cidades de lona, Com os redutos de invasão Cidades de morro Cidades de bala sem direção Cidade do museu da Balaiada Tem um preto na exposição só um Cosme sem Damião E os outros, onde estão? Cidade do mercado modelo

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Da maioria negra na contramão Das ruas e vielas do pelourinho Onde tudo vira Vira tudo apelação Vira, virou em memória, Cena de atração Muitas histórias para a exploração Cidade do beija-flor, Cidade do quero-quero Cidade dos lero-leros De todas as cidades Que são sempre iguais Na oficina do Rap As Cidades do Brasil De quem não faz “répiaurs” De quem não tem “répideis” Só rapidez, só rapidez Na boca do funil Na correria Cidades do Brasil Só mudam de nome Na rota do mapa Com a natureza que é uma beleza E a negrada, na maior pobreza Tanto faz se na pedreira, depois dos Confins, Ou na terra de Drumond já sentado, calado Aposentado de sua crônica imortal Que faria, hoje, com certeza. Não me leve a mal, um Rap marginal Na oficina do Rap As Cidades do Brasil não existem sem favela não existem sem novela não existem sem vielas não existem sem os negros sempre na faixa amarela em estado de tensão

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Cidade, maldade Cidade, ansiedade Cidade,  verdade Na diversidade, Diversas cidades Violentadas, massacradas Estou de olho Só eu, não Estamos de olho Está valendo, vou dizendo Minha indignação Eu te vi e ainda te vejo Na oficina do Rap De quem não faz “répiaurs” De quem não tem “répideis” Só rapidez, rapidez Na boca do funil Na correria Cidades do Brasil Que amo demais além das belezas naturais Até à vista Estou na pista Volto em breve Na oficina do Rap Dá-lhe Rap, “répiaurs”, Dá-lhe Rap, “répideis” Antes que os casarões de São Luís Tombem as paredes podres E matem os negros e os pobres do centro histórico E todos tenham morte natural-acidental, Naturalmente Será que a gente mente?..

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  Era uma vez... Eram duas... Eram três.   E eram Como histórias Que se erram, Que se contam, E recontam, Contadas mal, Até perderem o final.   Era uma vez... Eram duas ... Eram três. Na linha do tempo, Sem atenção, Na intersecção Da mão única Do silêncio.   Era uma vez... Eram duas... Eram três, Premeditadas vezes Dissimuladas, Prá esconder os rastros, Os passos, os cansaços. E revelar o adeus.  

HISTÓRIAS

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OUTRO ÊXTASE

  Desejo descansar a cabeça nos seus ombros E ficar quieta  Prá que possa perceber minha quietude.  Desejo descansar a cabeça nos seus ombros E ficar cismando, Prá que possa perceber meu pensamento, Bailando como folha recém voada,  Antes de cair ao chão. Desejo descansar a cabeça nos seus ombros E ficar silêncio... Desejo tanto essa magia silenciosa nos seus ombros, Que calo todas as palavras Sem ser mulher nem homem Prá entender-me    Capaz  de silenciar Prá viver a paz.

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INSANA

  Insanos dias de insanas lutas levam a guria rebelde e fria a se agitar dentro de mim... Subversiva marionete que não obedece a voz do dono que dono nem mais tem, nem se expõe às histórias que os outros lhe inventam, pouco importa... Não quer mais falar, arremedar,  imitar passiva o que já sabe de cor, perdida nas vias malditas onde qualquer um pode dizer coisas comuns, coisas iguais que ela não quer mais saber.   Nos insanos dias de insanas lutas que transformam  em frieza, indiferença ausência de crença a mulher, silenciosa, quieta que segura o coração nas mãos, equilibrando o sim

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prá suportar o não, aceitando a loucura sem enlouquecer, enfrentando as raivas sem enraivecer, encobrindo as dores prá não padecer, limpando as feridas para renascer, pacificando a vida prá poder viver.   Nos insanos dias de insanas lutas, tanto faz a guria... tanto faz a mulher... Vida boa? Vida má? A passagem é curta, o caminho é longo, os atalhos secretos e as curvas tantas, onde tanto faz a rebeldia da guria no escrete, ou o silêncio  da mulher anti-marionete, a pressa ou a calma? Coisas da alma.

 

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MÓRBIDA Quem dera prá ela E para outras, também, Que quartinho abafado Virasse um casarão de bem amados. Que águas correntes Lavassem seu sexo E ela pudesse receber Só a quentura do chão, Sem servir ao patrão, Nas noites de verão Em que todos os grilos Aumentam o cantar. E ela vaga- lume, moribunda, Sem brilhos no olhar, mórbida, Nem dona, nem dama da noite Aguarda uma penetração.

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SONHO BOM Sonho bom É o que se faz , Que se repassa de cor, De olhos abertos, De olhos fechados, Sonho bom... Sonho bom É aquele que vem Com todas as flores que se imagina germinar. Com todos os abraços que se gosta de abraçar. Vem com as palavras Que se gosta de dizer. É o que faz viver Enquanto sonho. É o que faz sonhar Enquanto vida.

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DESCOBERTA AFINAL

 

A pior mentira Não é o alheio quem diz. É aquela que você  Conta e sustenta verdade Para poder ser feliz.

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ROTA EXISTENCIAL

Vinte anos de Literatura e Resistência: Tempo de Agradecer a Oxalá, aos meus Ancestrais, aos Familiares, aos Amigos e Amigas, aos Leitores e Leitoras; Aos corajosos apresentadores dos meus livros: Ângelo Costa (em memória) Antonio Carlos Cortes Carlos Alberto Jardim Cogoy Diony Maria Soares Djalma do Alegrete (em memória) Eloy Dias dos Angelos Iara Neves Jorge Alberto Mendes Ribeiro (em memória) Milton Marques do Nascimento Nelson Inocêncio Oscar Henrique Cardoso Terezinha Juraci Machado da Silva Wanderley Fernandes dos Santos Aos capistas: Adão Centeno (foto de família) Desenhista anônimo dos Serviços Gráficos Ferreira, em 1987 RS Djalma do Alegrete (em memória) Getulio Santos Vargas Janete Borges Dutra Nailê Cordeiro de Oliveira Nanci Miranda Andrade Às Bibliotecárias: Iara Neves

252

HELENA DO SUL

Tatiana Barroso Ao coletivo: Academia Pelotense de Letras RS Assembléia Legislativa de Santa Catarina-SC Associação Clara Nunes-RS Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros-SC Associação Satélite Prontidão-RS Biblioteca Erico Verissimo-RS Biblioteca Ligia Meurer-RS Biblioteca Pública de Pelotas-RS Biblioteca Pública de Guaíba-RS Casa Thomaz Jefferson-DF Centro de Estudos Brasil-Haiti-DF Centro de Professores do Estado do RS- 39° Núcleo Congresso Nacional Afro-Brasileiro – CNAB – SP Comenda Cultural de Brasília Conselho de Defesa dos Direitos do Negro do DF Clube Cultural Fica Ahi Prá Ir Dizendo-RS Departamento Cultural do Partenon Tênis Clube-RS Embaixada da Nigéria-DF Embaixada do Haiti-DF Espaço Cultural Afro Nzinga-DF Evangraf - RS Fundação Cultural Palmares - MinC Griô, Acervo da Memória e do Viver Afro-brasileiro - RS Grupo Cultural Rainha Ginga-RS Grupo Multiétnico de Empreendedores Sociais - DF e RS Museu Antropológico do RS Quilombo Urbano da Guaragna-RS Sindicato dos Professores do DF Tribo das Artes-DF

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ROTA EXISTENCIAL

Aos Músicos: João Pereira-RS Máximo Mansur-DF Moisés Machado-RS Aos organizadores do evento: Boanerges Fagundes (em memória) Cristina Maria Leite Magalhães Glaudson Almeida João Pereira Juarez Fagundes Maria da Graça Santos Maria José de Souza Nelo Fagundes Valdeonira dos Anjos

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HELENA DO SUL

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