PODE EXISTIR CIBERCRISE EXISTENCIAL? Juremir Machado da Silva* Ler o ensaio de André Lemos levou-me mais uma vez a admirar a inteligência, o conhecimento e a ponderação desse pesquisador que considero o maior especialista brasileiro em cibercultura. A sua articulação dos argumentos, em torno das noções de phusis e de tekhné, não poderia ser mais clara e pertinente. Lemos diz com serenidade aquilo que horroriza os infatigáveis tecnossauros: «Interessa é mostrar que a tecnologia não pode ser vista como uma simples mediadora na relação do homem ao mundo. A relação homemtécnica é um contínuo»(1). Os séculos de apologia da separação, o pavor diante da máquina, a busca desesperada de um culpado para o abismo existencial, enfim, têm-nos impedido de aceitar que, como sintetiza André Lemos, «o artificial, longe do que imaginamos no senso comum, é profundamente humano» (2). A cultura nada mais é do que a artificialização da natureza. Eis a base para uma reflexão que, balizada pelas idéias de Lemos, mas sem a sua competência na matéria, enveredará, rapidamente, para um caminho de quase pura abstração. Em «A Impotência do virtual», artigo que faz parte do livro Tela total, recém-lançado pela Editora Sulina, Jean Baudrillard conclui, retomando suas idéias mais conhecidas, que «quando tudo é social, súbito nada mais o é» (3). Então, quando tudo é cultura, superada a barreira do falso artificialismo, haveria ainda razão para sacar o revólver contra o avanço da barbárie? Certamente. As palavras justas de André Lemos continuam, na verdade, a encontrar a resistência do idealismo latente, muitas vezes sustentado pelos que se julgam materialistas contumazes. A disputa entre Kasparov e Deep Blue é a prova cabal de que a dicotomia homem/máquina permanece como um tabu a não ser derrubado. Criador e criatura se enfrentam. A criatura vence, mas não sempre, e poderá perder outras vezes, mas não todas. O homem quer se medir com a máquina, esquecendo que esta é apenas uma parte dele mesmo. Em «Deep Blue ou a melancolia do computador», ainda em Tela total, escrito antes dos combates mais recentes entre Kasparov e Deep Blue, Jean Baudrillard tomava a dianteira: «A eventual vitória do computador não cria problema: sabemos que ela só pode resultar da força do cálculo» (4). Mas o cálculo, que garante a supremacia do computador, é o mesmo que permite ao homem inventar a criatura. Perdeu o indivíduo Kasparov, ganhou a humanidade. Salva pelo prazer e pela dor. Tal afirmação não é nada pacífica. Por trás dela, escondem-se poderosos fantasmas. Nada mais característico desse positivismo travestido de lucidez que a imprecação de Adorno e Horkheimer justamente contra o prazer: « S'amuser signifie être d'accord (...) S'amuser signifie toujours: ne penser à rien, oublier la soufrance même là où elle est montrée. Il s'agit, au fond, d'une forme d'impuissance » (5). É lícito, ao contrário, sustentar que o prazer integra as estratégias de afirmação dos indivíduos e grupos. Mais que de estratégia, campo da razão instrumental, trata-se do vivido. Os homens simples parecem realizar melhor a distinção entre a diversão e a política. Para Adorno e Horkheimer «le plaisir favorise la résignation qu'il est censé aider à oublier» (6). E se a fronteira entre o criador e a criatura estivesse justamente no domínio do imponderável: a capacidade humana de escapar à instrumentalização, de qualquer ordem,
pelo hedonismo. A máquina, de resto, tem servido ao homem, entre outras finalidades, para brincar. Não por acaso, Lemos fala em «sociabilidade» (por que não, preferencialmente, de «socialidade»?). O homem humaniza-se pelo jogo. Johan Huizinga, autor do talvez mais belo e célebre ensaio sobre o jogo, alertou que « nous jouons, et nous sommes conscients de jouer: nous sommes donc plus que des êtres raisonnables, car le jeu est irrationnel »(7). A evasão faz parte do homem tanto quanto a sua aptidão criadora. Huizinga sintetizou: « Le jeu est plus ancien que la culture »(8). O essencial, porém, está no seguinte, conforme Baudrillard: «Em termos de jogo, o homem não é inferior nem superior a Deus: conseguiu manter uma espécie de rivalidade e conservar o jogo aberto»(9). Que significa isso? Simples, muito simples: Deep Blue pode vencer, mas não vibrar. Pode perder, mas não chorar. Pode calcular mais rápido, mas não blefar. Em suma, pode buscar apenas o resultado, nunca o efeito, a estética, o gesto inútil. Quem diria, o humano ter de buscar na melancolia o seu diferencial absoluto. Mas não apenas nela. Também, e antes de tudo, no lúdico. A idéia do diferencial, entretanto, reconstitui a armadilha: a síndrome da fronteira. Ora, o homem difere da máquina; ele a produz e é produzido pelos imaginários gerados por ela. Reserva-se, contudo, a exclusividade, de origem divina, da crise existencial. _________ * Juremir Machado da Silva é jornalista e historiador, formado pela PUCRS; doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne. Leciona na Faculdade dos Meios de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Entre 1993 e 1995, foi correspondente do jornal Zero Hora em Paris. Publicou sete livros: A miséria do cotidiano (Porto Alegre, Artes & Ofícios, 1991), Muito além da liberdade (Porto Alegre, Artes & Ofícios, 1991), ambos sobre o tema dos paradigmas moderno e pós-moderno; A noite dos cabarés (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1991); A prisioneira do castelinho do Alto da Bronze (Porto Alegre, Artes & Ofícios, 1993); O pensamento do fim do século (Porto Alegre, L&PM, 1993); Cai a noite sobre Palomas (Porto Alegre, Sulina, 1995) e Anjos da perdição - futuro e presente na cultura brasileira (Porto Alegre, Sulina, 1996). NOTAS (1) LEMOS, André. BodyNet e Netcyborgs: sociabilidade e novas tecnologias na cultura contemporânea, p. 14. Artigo derivado da pesquisa «A Cibercultura no Brasil. Comunicação e Sociabilidade Contemporânea», em desenvolvimento no programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da UFBA. (2) Idem, p. 2. (3) BAUDRILLARD, Jean. Tela total — mito-ironias da era do virtual e da imagem, Porto Alegre, Sulina, 1997, p. 25. (4) Idem, p. 135. (5) ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. La dialectique de la raison. Paris, Gallimard, 1974, p. 153. (6) idem, p. 151. (7) HUIZINGA, Johan. Homo ludens - essai sur la fonction sociale du jeu. Paris, Gallimard, 1951, p. 20.
(8) Idem, p.15. (9) BAUDRILLARD, Jean. Tela total, op. cit., p. 135.