Roseli Ritter Unesp

  • October 2019
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ÉTICA E LITERATURA NO CAMPO EDUCATIVO1 Roseli Rodrigues Ritter* [email protected]

Ao pensarmos numa “nova educação do gênero humano”, nos termos propostos por Nietzsche, é preciso mudarmos algumas características da

sociedade,

especificamente

das

instituições

escolares,

principalmente no que se refere a relação professor-aluno. E ponderando essa necessidade de mudança, pretendo discorrer aqui um pouco sobre as idéias de Nietzsche2 quanto à educação trabalhada por Dias (1991). Para entendermos melhor algumas características peculiares ao ethos brasileiro, abordarei o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e como as concepções trabalhadas por ele se apresentam no romance Doidinho, de José Lins do Rego. Tudo isso a fim de refletirmos qual é a educação que queremos e se ela é possível. Conhecendo Nietzsche

Trabalho realizado para a Disciplina “Ética e Educação”, ministrada pelo pro. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho, no programa de pós-graduação em educação na UNESP-Marília/SP. * Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em educação da UNESP-Marília/SP. Fone (18) 91213924. Endereço: R. João Ramalho, 1074, Vila Tênis Clube. CEP: 19806-182. Assis/SP. 2 “Para a nova educação do gênero humano – Prestei auxílio, vois que sois prestativos e bem intencionados, a esta única obra – afastar do mundo o conceito de castigo, que se alastrou sufocando o mundo inteiro! Não há pior erva daninha! Não somente o colocaram nas conseqüências de nossas maneiras de agir – e como já é apavorante e contrário à razão atender causa e efeito como causa e castigo! -, mas foram mais longe e despojaram a pura contingência do acontecer de sua inocência, com essa infame arte de interpretação do conceito de castigo. Sim, levaram tão longe o desatino, a ponto de mandar sentir a própria existência como castigo – é como se as fantasias de carcereiro e verdugos tivessem guiado, até agora, a educação do gênero humano!” (Nietzsche, 1978, p.161). 1

Quando Nietzsche propõe uma “nova educação do gênero humano” quer dizer com isso o seguimento das suas idéias filosóficas, principalmente a de “se afastar do mundo o conceito de castigo, que se alastrou sufocando o mundo inteiro” (Nietzsche, 1978, p.161). Ele se refere ao castigo que a racionalidade e as crenças metafísicas proporcionam ao corpo e à mente. Esta fica sempre preocupada em agir corretamente ou verdadeiramente, isto é, com base em privações de bens materiais e prazeres sexuais. Por isso Nietzsche critica a ciência e a moral, a primeira por colocar a verdade como bem supremo e necessário descartando a aparência; e a moral por colocar Deus acima de tudo e também por ambas depreciarem a vontade de potência. A ciência tem o caráter negativo, segundo Nietzsche, devido a sua oposição à arte ao rejeitar a aparência – e conivência com a moral – propõe o niilismo; a busca desenfreada por conhecimento, ignorando que este é construído histórica, social e culturalmente e que está situado entre uma pluralidade de valores e, principalmente, pelo culto “a verdade que não é uma adequação do intelecto a realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em suas relações com os outros homens” (Machado, 1985, p.43). Assim, o homem não ama a verdade, mas apenas suas conseqüências favoráveis. Nietzsche critica a moral porque ela considera os valores eternos, sendo que estes são históricos e culturais (daí a importância de abordar um estudo específico do ethos brasileiro, assim como fez Sérgio Buarque de Holanda); porque os valores são invenções, interpretações humanas, isto é, construídas de uma perspectiva e não universalmente (por isso pretendo verificar, através do romance, até que ponto as características apontadas por Holanda podem ser consideradas nacionais). Além disso, os valores cristãos põem o miserável como bom e ao fazer isso funciona como um calmante para 2

aliviar a existência, negando, deste modo, a vida; já a moral aristocrática seguida pelos gregos, a que Nietzsche parece simpatizar mais, porém não a aprova, tem, como diz Machado, a seguinte equação: “bom = nobre = belo = feliz = amado pelos deuses” (1985, p.72), ele a considera afirmativa, pois deixa a possibilidade de criarem

seus

próprios

valores.

Como

percebemos,

essa

transvaloração se opõe aos valores superiores, propondo a criação de novos valores, de novas possibilidades de vida e a destruição do niilismo. “A questão do valor é, em última instância, a questão das condições de intensificação ou diminuição da vida” (ibid, p.101). E Nietzsche afirma “o que eu amo é uma virtude terrena, que não se relaciona com a sabedoria e o sentir comum” (2006, p.45). Ou seja, defende os valores individuais criados pelo próprio ser para sua vida na terra, a única possível. Para a vitória sobre si mesmo, Nietzsche aconselha a sempre se superar, a ter vontade de potência, que é o mesmo que vontade de viver, e acreditar que o bem e o mal imortais não existem, pois é necessário que um se sobreponha ao outro incessantemente para a vida seguir seu rumo, diríamos, natural. Cabe ao homem criar o significado da sua existência, que pode ser pensado a partir da estética, especificamente da arte trágica, segundo ele, a única capaz de lutar contra o niilismo, visto que foi criada justamente a fim de tornar a vida possível e desejável, além disso, essa arte dionisíaca era uma forma de saldar aos deuses gregos que divinizavam a vida, o existente, diferente da religião metafísica. Os gregos buscavam a Beleza - algo medido, harmônico, delimitado que é uma aparência, uma representação, que tem por objetivo mascarar a verdade essencial do mundo (cf. Machado, 1985, p.22). O que de horrível acontecia na vida a tragédia transfigurava como um instinto artístico, como um jogo: o espectador vendo sofrimento do outro passa a aceitá-lo como integrante da vida. A arte trágica representa a união entre aparência e essência, assim, esta visão do 3

mundo é o equilíbrio entre ilusão e verdade, sendo o único modo, apontado por Nietzsche, de superar a metafísica dos valores. Além disso, é somente a arte que possibilita a experiência de vida como sendo alegre e o acesso às questões fundamentais da existência. A educação para Nietzsche Cada vez mais nosso sistema educacional fica voltado para a formação técnica dos indivíduos. O Estado quer capacitar os cidadãos a ganhar dinheiro, os comerciantes visam àquilo que proporciona produtividade e, conseqüentemente, lucro. E onde fica a formação humanista, que apesar de estar presente nas leis, raramente é encontrada na prática? Nietzsche, como muitos de nós, desejou ver os estabelecimentos de ensino como um lugar apropriado para a reflexão, atitude crítica e criadora; para a não desvalorização dos sentidos, dos instintos humanos, pois para ele estes não mentem, a razão é que os falsificam (cf. Marton, In: Dias, 1991, p.7-8). Para Nietzsche a fim de atingir essa formação, segundo Dias (1991), necessitamos da filosofia e da arte por si mesmas e não como um meio para atingir algo. Pois é através da estética – do sentir, da aparência que podemos criar um novo sentido para a vida, próprio de nós, de nossa individualidade criadora. Contudo, fugindo da idéia de “arte pela arte”, pretendo abordar aqui a ética, importante para questionarmos os valores que nos cercam. Esta será vista a partir da obra de Holanda (Raízes de Brasil) e do romance Doidinho, de José Lins do Rego. Isto porque os valores estão presentes na vida e é em relação à vida que devem ser apropriados. Deste modo, se pensarmos na escola, o professor deve ser capaz de recriar a vida a partir de suas experiências e fazer com que os jovens façam o mesmo e se desvinculem dos hábitos e da educação que lhes foram inculcados. Ou seja, que eles aceitem da sociedade somente aquilo que ajustar e fazer parte de sua personalidade, pois “a primeira 4

virtude do homem é ousar ser ele mesmo, sobre a natureza que lhe foi inculcada e o tornou inepto para a vida” (Dias, 1991, p.67). Segundo Dias (1991), Nietzsche se refere à educação moderna – século XIX, mas que continua atual - como domesticação, isto é, visa a formar o indivíduo erudito: comerciante, funcionário público (ou privado), ou seja, uma criatura dócil e obediente aos valores. Já na educação proposta por ele, o adestramento seletivo, o jovem obedece a certas regras, mas também adquire novos hábitos para torna-se senhor de seu destino (cf. ibid, p.83-6). Isto é, o jovem constitui-se um “ser autônomo, forte, capaz de crescer a partir do acúmulo de forças deixadas pelas gerações passadas, capaz de mandar em si mesmo, sem precisar recorrer a qualquer instância autoritária” (Dias, 1991, p.85). A construção dessa individualidade nunca estará acabada, pois o homem está em constante transformação. Contudo, para se chegar ao “eu” devemos nos distanciar da cultura artificial e de massa e participar de uma tarefa educativa. Uma cultura original deve construir-se por si e não embasada em modelos importados. Para Nietzsche, uma forma de identidade cultural que deve ser trabalhada e respeitada é a língua. Respeitada no sentido de ser imitada de forma criadora (mimese) e não subversiva; de observar como ela foi imitada visando à superação do modelo. Por exemplo, quando Nietzsche escolhe Schopenhauer como modelo, isso não significa que o compreenda, mas que suas idéias ajudam a compreender a si mesmo (cf. ibid, p.69-77). E minha relação com Nietzsche é essa: não conheço a maioria de seus livros e idéias filosóficas, tive contato indireto, principalmente, com sua concepção de educação a qual me simpatizou e me fez encontrar palavras para explicar algumas idéias que já tinha. Ou seja, muito do que está escrito aqui é o meu pensamento junto com o de Nietzsche. Como o professor pode buscar uma forma de educação? Nietzsche responde: nas experiências que teve na escola como aluno e como 5

educador, “no que agradou e no que desagradou” (ibid, p.92). O gosto já indica o valor da estética, e pensando nisso, também acredito que as experiências relatadas na literatura, especificamente no romance Doidinho, igualmente ajudam nessa reflexão. Mas por quê? Além da linguagem tipicamente nacional inaugurado por ele (cujas características não me aterei), devido ao ambiente escolar. A educação pela arte faz com que o jovem seja capaz de contestar a pretensão científica; de conduzir o conhecimento para uma melhor forma de vida; de devolver à vida as ilusões que lhe foram retiradas; de restituir à arte o poder de encobrir a vida com o belo (cf. Dias, 1991, p.102). O ethos brasileiro As formas de convívio, instituições e idéias do povo brasileiro são vindas da Europa, principalmente dos colonizadores de Península Ibérica: Portugal e Espanha. Nossos valores foram herdados e construídos com a mestiçagem, contudo, permaneceram, em sua maioria, as características ibéricas. Quais são elas? Quem nos responderá é Sérgio Buarque de Holanda. A primeira característica ibérica apontada por Holanda na obra Raízes do Brasil é o personalismo, isto é, damos grande importância ao indivíduo, à autonomia, aos esforços e virtudes individuais e sempre antepomos o prestígio pessoal ao bem comum. Devido a esse traço, a hierarquia hereditária nunca chegou a importar de modo cabal entre nós, ou seja, o posto social sempre foi mais importante que o nome, exceto quando se tratava de viver de trabalhos manuais, preconceito este só diminuído, mas nunca extinto, com a Revolução Industrial. O personalismo é tido como responsável pela frouxidão das instituições e a falta de coesão social. Contraditoriamente, a disciplina e a ordem quando existem é devido à excessiva centralização do poder e da obediência, observado, 6

sobretudo, na política. Por conseguinte, como veremos adiante, invade todas as instituições, inclusive a escolar. Hoje, podemos dizer que, já não aceitamos essa obediência cega e as ordens ilimitadas; procuramos mudar essa característica de séculos ao estimularmos o questionamento, os direitos constituídos e ao continuarmos a fortalecer a característica maior: o personalismo, pois exaltamos a individualidade (opinião, conduta, escolha...). Outra característica do povo brasileiro herdada dos ibéricos é o espírito

aventureiro.

Para

explicá-lo,

Holanda

desenvolve

dois

conceitos: trabalho e aventura, digamos, duas éticas opostas. Os aventureiros valorizam atividades que dão recompensas imediatas; são audazes, imprevidentes, irresponsáveis, instáveis e preferem, na maior parte do tempo, a ociosidade. Pois almejam a prosperidade sem custo, além disso, anseiam por títulos que lhes dêem destaque; são como os caçadores: enxergam somente o fim da ação e não o percurso necessário para fazê-la, isto é, escolhem o lugar onde há maior quantidade de caça para não precisar esforçar-se. Os trabalhadores valorizam as atividades que sentem ânimo em praticar, a paz, a estabilidade e a segurança pessoal; são como os lavradores: vêem primeiro o processo para depois pensar no fim (preparo do solo, plantio, tratos com a planta e, finalmente, a colheita).

O

esforço

é

grande,

o

processo

é

lento

e

pouco

em

graus

compensador. Entretanto,

apresentamos

as

duas

características,

diferentes. Os portugueses colonizadores tinham muito do espírito aventureiro e o que reforçou sua vinda e permanência na terra hostil. A utilização de escravos para o serviço manual fez com que continuassem

a

menosprezar

os

valores

proporcionados

pelo

trabalho. Como diz Holanda, o que os “portugueses vinham buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa ousadia e não a que custa trabalho” (1995, p.49), a escravidão extingue no homem livre a necessidade de cooperar e organizar-se. 7

O Brasil é um país com heranças rurais, pois até a abolição tudo girava ao redor das fazendas, sendo as cidades somente um apêndice destas. Com o fim do tráfico negreiro, os capitais ociosos foram destinados ao melhoramento das cidades, contudo, havia uma “radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas das nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e o personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares” (ibid, p. 79). Esse malogro ocorreu porque após a derrota dos

engenhos,

que

empregavam

grande

quantidade

de

trabalhadores, para as usinas, parte considerável da população rural muda-se para as cidades levando consigo os valores rurais. Os descendentes de senhores de escravos continuavam a abolir o trabalho manual, e por isso almejavam ao trabalho mental “que não suja as mãos e não fadiga o corpo” (ibid, p.83). O Estado passa a ser confundido com a família patriarcal, originária das fazendas, cobrando, assim, uma relação amistosa e paternal fundada em vantagens pessoais; o patriarcalismo também influenciou uma lei moral inflexível, superior à vontade dos homens por regular a boa harmonia do corpo social. Por isso temos um modelo estatal intimista, baixa politização, exaltação às relações pessoais. Deste modo, para uma renovação social do país, como afirma Dias, “seria preciso mudar as relações entre política e sociedade, que insistem em manter traços arcaicos herdados da colonização portuguesa e do Império” (In: Candido, 1998, p. 24). A cordialidade e o bacharelismo são características que nos são próprias, pois foram lapidadas com todas as influências mestiças do Brasil, como a negra e a indígena. Cordialidade quer dizer aqui: algo que vem do coração e “pode-se aplicar tanto à simpatia como a antipatia, tanto ao amor quanto ao ódio” (Rouanet, 2006, p. D2); lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, enfim, a famosa simpatia do brasileiro conhecida internacionalmente. Esse traço valoriza as relações pessoais, afetivas, como diz Candido: “o ‘homem 8

cordial’

não

pressupõe

bondade,

mas

o

predomínio

dos

comportamentos de aparência afetivos, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõe ao ritualismo da polidez” (In: Holanda, 1995, p.17). Esse cordialismo é marcado pela aversão ao ritualismo social que pode ser visto em várias esferas: na lingüística, por exemplo, o emprego do sufixo “-inho” indica intimidade no tratamento, assim como a omissão do nome de família; nos negócios a ética emotiva busca fazer um amigo para adquirir um cliente; no catolicismo os santos são tratados com intimidade, como se fossem conhecidos pessoalmente. Em suma, temos

horror

às

distâncias,

ao

rigor

no

tratamento

pessoal,

empresarial e místico. O bacharelismo, por sua vez, é considerado, pelo autor, um vício, pois gosta de formas fixas e leis genéricas, onde se exalta a inteligência e desacredita a imaginação. O estudo e o amor ao livro dão a ilusão de sabedoria mental assim como o anel de “doutor”. Este traço sempre foi exaltado porque o trabalho mental tem mais prestígio social e econômico. Segundo Rouanet, ele é responsável pela “falta de fixidez e de estabilidade nas escolhas e preferências políticas e intelectuais, o que explica o rodízio de posições, a rápida obsolência dos modismos intelectuais” (2006, p. D2). A literatura como conhecimento Nietzsche defendia a “arte pela arte”, fato que não concordo, pois acredito que arte é mais que Beleza, é conhecimento, é meio de formação. Como diz Candido, a literatura, de modo geral, “não corrompe nem edifica, mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (1972, p.805). A tragédia é enfatizada por Nietzsche para a formação estética, principalmente, porque seus autores não tinham o desejo de criticar, refletir sobre a sociedade, 9

diferentemente do romance. Conheçamos um pouco sobre os dois gêneros. A tragédia imita uma ação curta, acontecimentos seqüenciais ou uma ação completa, tornando o passado presente; tem por objetivo mostrar os seres humanos em estado de sofrimento a fim de despertar a afeto da compaixão. Para Rosenfeld ela está longe de moralizar e dar lições de virtude, proporciona ao espectador a possibilidade de experimentar livremente, lucidamente, o cerne de sua existência moral em todos os seus conflitos, em todas as suas virtualidades negativas e positivas. A tragédia apresenta a vontade humana no desafio às forças do universo e da história, mostra o homem sofrendo, mas resistindo ao sofrimento graças a sua dignidade sublime e indestrutível (in: Schiller, 1964, p.10).

O gênero literário romance teve como principal mudança em relação à tragédia e a épica, o tempo e a linguagem: já não é o passado absoluto, distante, acabado que está em cena, mas o presente, a atualidade, com vistas a um futuro, por isso inacabado. Aqui não é mais o universal que tem importância, mas o particular. O espaço passou a ser o concreto, o íntimo. Quanto à linguagem, é o único que tem consciência do seu processo de criação (metalinguagem) e dialogiza com outros textos (intertextualidade) (cf. Mann. In: Rosenfeld, 1988, p.14-20). Ao

lermos

um

romance

percebemos

que

a

realidade

está

transfigurada, mas perceptível. Por exemplo, ao considerarmos o clássico historiográfico, Raízes do Brasil, como um estudo da nossa sociedade, damos a ele grande credibilidade por se tratar, diríamos, de realidade. Será que uma obra literária que aborda a ficção também não fala de realidade? Veremos. No

romance

Doidinho,

de

José

Lins

do

Rego,

temos

várias

características apontadas por Holanda (1995). O internato em Itabaiana é famoso pelo rigor (castigo) com os alunos, pois como diz

10

o diretor Maciel: “aqui eles endireitam, saem feito gente” (Rego, 1969, p.3), isso porque dentro da instituição aprendem o que a família não ensina, embora a sociedade exija. O diretor diz ser amigo do menino bom e estudioso; mas o que é bom e estudioso para ele? No decorrer da narrativa descobrimos que é aquele de obediência irrestrita, que em certos momentos se mescla com o bacharelismo. O bacharelismo durante a narrativa é muito perceptível, pois é dada grande importância ao diploma. Por exemplo, quando o velho Mané Gomes envia seu filho Elias ao colégio ocorre um contraste entre o garoto de dezoito anos quase analfabeto e os outros cujos pais “gastavam fortuna com os filhos em colégios e em faculdades. Enchiam-se desse orgulho de fazer doutores” (Rego, 1969, p.79). Elias, opondo-se ao academicismo, é o exemplo de trabalhador: tinha as mãos calejadas, não era “manso” (obediente às regras impostas), mostra não saber utilizar os talheres na mesa ao colocar a faca na boca (o não cumprimento da etiqueta é um escândalo); tinha modos de “bicho”: nunca vira um trem. Mas principalmente, por não saber ler nem escrever, para o colégio, não devia estar naquela turma “já tem idade de academia. Faz vergonha este atraso” (ibid, p.80). Porém, Elias não se envergonhava. Por que teria que estar na academia se gostava do seu serviço no engenho e se depois de formado provavelmente voltaria para lá? Sentia que não tinha que adaptar-se

a

essa

sociedade,

entretanto,

Carlos

-

narrador-

personagem, filho do coronel Zé Paulino - dizia sobre ele: “Elias era um bruto. A sua resistência ao castigo parecia uma injustificável insubordinação. Ali todos se submetiam à palmatória. E aquela rebeldia violenta, em vez de me arrastar à admiração, me jogou aos pés do homem que nos tiranizava” (ibid, p.81). Carlos, por estar adaptado ao regime de obediência irrestrita, apóia o poder e não a tentativa de liberdade, de resistência a humilhação. Por isso vê a reação do primo como rebeldia e não como ação libertadora de situação e da sociedade a qual não desejava pertencer. Contudo, “o 11

colégio quase todo ficou com ele [Elias]” (ibid, p.82), porque tinha ânsia de liberdade, embora não tivesse coragem de lutar contra a tirania permitida. Outro exemplo de bacharelismo é o Tio Juca: rapaz estudado, Zé Paulino gastou dinheiro com ele e por fim voltou a trabalhar no engenho em serviços manuais (não tão degradantes quanto dos outros trabalhadores). Carlos queria se interessar pelos estudos, mas não consegue e foge do colégio, apesar de seu avô já ter advertido: eu gasto um dinheirão com os meus e não dão para nada [...] Forma-se para voltar para a enxada, como o Dr. Quincas do Engenho Novo e o Dr. João de Itaipu, seus primos legítimos, não valia a pena [...] O velho Zé Paulino, tão sem vaidade para as outras coisas, amava o luxo da bacharelice (ibid, p.90).

Outra característica muito perceptível no romance é o personalismo, marcado principalmente pela ausência do tratamento formal. Quando Carlos ingressa no colégio o diretor o chama “Carlos de Melo”, tratamento que estranha, pois não estava acostumado com a utilização do nome de família, visto que no engenho todos o chamavam de “Seu Carlos” ou “Carlinhos”. O pronome “seu”, apesar de demonstrar respeito, indica certa intimidade; já o diminutivo “-inho” é de extrema familiaridade. A devoção e intimidade aos santos são mostradas quando nomeiam objetos, coisas palpáveis e importantes com os seus nomes, como diz Carlos “o colégio tinha o nome de Nossa Senhora não sei por quê. Era como os engenhos: Santa Rosa, Santana, Santo Antônio” (Rego, 1969, p.35). Outro traço: Carlos espera ou pelo menos acredita em vantagens com o Coruja depois que este é nomeado vigilante dos meninos: “não daria parte das minhas faltas, amigo era para isto” (ibid, p125). Essa ânsia de tirar vantagens, querer favores pessoais de um amigo que alcançou o poder é típica das relações amistosas e da confusão que há entre instituições tão diferentes: a familiar e o Estado.

12

Um traço herdado dos ibéricos que culmina no bacharelismo e no personalismo,

também

presente

em

Doidinho,

é

o

espírito

aventureiro, explicitado por Carlos que desgostava de ficar só nos castigos: “era o pior castigo do colégio: ficar isolado num quarto, sentado num tamborete, sem fazer nada. Passar horas sem uma palavra” (ibid, p.41). No engenho o silêncio de que gostava era quando ia caçar e aguardava com ânsia a presa. Ficar só e calado, sem poder narrar suas aventuras exageradas, lhe doía a alma. Outra característica, já apontada na obra é o contraste entre os valores familiares e do Estado, representados aqui pela escola. No engenho, Carlos tinha liberdade licenciosa: podia passear, namorar (fato estimulado), comer à vontade; já no colégio os horários eram regrados, a comida escassa, os banhos duas vezes por semana, afinal aqui o dinheiro economizado vale mais que o bem-estar, a vigilância e a punição eram severas: até conversar a noite no dormitório era proibido (realmente havia regras para tudo). No engenho, durante a punição havia possibilidade de fuga e todos ficavam a seu favor e contra o algoz; já no colégio nem sabia direito porque apanhava, era muito rápido e sem justificativa plausível, além disso, a indiferença era geral. Outra atitude muito diferente do meio escolar e do familiar é a solidariedade. Quando Carlos apanhou ninguém quis ligações com um oprimido, assim, ficou sozinho até o Coruja se aproximar. Esse contato não foi visto, num primeiro momento, como amizade e sim como solidariedade. Carlos fica feliz porque nunca tivera um amigo fora do laço familiar e “via com inveja a solidariedade que unia os irmãos entre si: quando se tocava num lá corriam todos, os da mesma carne e os do mesmo sangue, enfrentando juntos o perigo” (ibid, p.32). A solidariedade que Carlos conhecia só existe entre familiares, deste modo, a ação de Coruja o torna um irmão. A escola como representante do mundo amplia a visão de Carlos sobre as coisas existentes. O conhecimento da fome e dos castigos 13

severos faz com que dê valor ao que antes não dava no seio familiar: à comida farta, ao amor, ao carinho e cuidados do avô e de todos que lhe admiravam. No mundo ele era somente mais um e se quisesse ali permanecer teria que adaptar-se. Além disso, quando adentra ao colégio, Carlos sente orgulho do avô, acha-o grande, importante, um santo, superior aos outros. O velho Zé Paulino é um típico patriarca que se interessa somente no que é seu e nas pessoas que lhe são dependentes. Não vê utilidade na religião nem na política, até porque o Estado representa oposição ao poder familiar. Porém, conforme Carlos estuda e toma conhecimento da existência de governadores e presidentes, por exemplo, e percebe “que Zé Paulino não era tão grande como (eu) pensava” (ibid, p.58). Ao conhecer os dogmas católicos nas aulas de catecismo, Carlos rebaixa ainda mais o avô: um pecador pronto a ser recebido nas portas do inferno, tudo porque não ia à missa, por não se confessar. Entretanto, via que o avô era bom, no entanto, a Igreja dizia que até coisas que não parecia pecado o era, como o simples pensar em romper a castidade. Destarte, os valores de Carlos ao conhecer o mundo são colocados em xeque. O que fazer? Em quais acreditar e seguir, da família ou da sociedade? São questionamentos que consomem seus pensamentos. Acredito

que

se

quisesse

pertencer

totalmente

a

um

desses

ambientes escolheria o que estivesse em vigor, mas como é difícil perder nossas “raízes”, esses valores continuarão a lhe provocar reflexões e dúvidas. Considerações finais O romance Doidinho, de José Lins do Rego, mostra ser possível pensar a realidade através da estética ao apresentar nossas características

descritas

por

Holanda

(1995)

e

por

abordar

questionamentos existenciais, não só do ser de papel (personagem), mas do ser de carne e osso, principalmente dos adolescentes que 14

começam a conhecer o mundo fora do seio familiar e a confrontar ensinamentos e valores. Raízes do Brasil é contra o apego irrestrito aos valores da personalidade

e

põe

em

discussão

o

que

entendemos

por

democracia: obediência irrestrita do povo aos mandos intimistas da aristocracia ou um governo em conjunto, respeitando a distância que há entre Estado e família? Holanda (1995) diagnostica a tradição e anseia por mudanças, por uma identidade nacional criada pelo povo, respeitada e próxima aos intelectuais (tão presos aos modelos importados), afinal a formação social de um país escravagista se diferencia enormemente de um país industrializado. Deste modo, o que adianta importar as idéias de Nietzsche sem fazer os devidos “ajustes” se, como ele mesmo menciona, cada país deve ter sua nacionalidade e o povo criar sua individualidade? No momento atual é difícil se pensar numa transvaloração dos valores apontado pelo pensador alemão. Nós, como educadores, temos obrigação de conhecer o nosso passado, pois este é uma referência para compreender a cultura brasileira e o ethos dos nossos alunos e, assim, ver o que, se e como é possível mudar os valores. No mundo globalizado há constantes trocas, influências de valores, uns são passageiros (modistas) e outros mais duradouros, em comum todos se transformam. O que podemos fazer com o papel histórico e cultural que nos foi “concedido” é indicar uma direção para esses valores, por isso precisamos ter consciência do que fazemos a todo momento, mesmo porque uma ação irrefletida pode ser sentida como “certa” e “melhor” pelos alunos, e, por conseguinte, a seguirem como modelo. Deste modo, será que queremos privilegiar a racionalidade, a inserção num curso superior acima de tudo? Ou auxiliar uma melhor compreensão da vida? Será que, como representantes do Estado, queremos uma relação íntima e ser chamadas de “tias” ou um respeito profissional merecido por tantos anos de estudo e dedicação? 15

São questões que podemos pensar, no qual suscitarão outras e nos ajudarão a perceber o que realmente almejamos quanto à formação dos valores, da subjetividade dos nossos alunos; decisão esta difícil de ser tomada por outrem. No entanto, uma resposta é certa: a estética é uma maneira de formarmos nossos alunos para a vida, especialmente porque o romance transfigura a vida e ao fazer isso a torna mais coerente, possibilitando o entendimento de fatos que a “realidade” omite. É como diz Nietzsche: “só como fenômeno estético a existência e o mundo podem ser justificados” (Apud, Hermann, 2005, p.73). Referências CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e Cultura. v.24, n° 9, p.803-9, 1972. _________________. O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 9-21, 1995. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Política e sociedade na obra de Sérgio Buarque de Holanda. In: CANDIDO, A (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, p. 11-28, 1998. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Scipione, 1991. (Pensamento e ação no magistério). HERMANN, Nadja. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. (Coleção Filosofia, 193). HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. MANN, Thomas. A arte do romance. In: ROSELFELD, Anatol (org). Ensaios (Trad. Natan Robert Zins). São Paulo: Perspectiva, p.13-22, 1988. MARTON, Scarlett. Introdução. In: DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Scipione, 1991. (Pensamento e ação no magistério). NIETSCHE, Friedrich. Aurora. In: Os pensadores: Obras incompletas. (Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho). São Paulo: Abril Cultural, 1978. __________________. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2006. (A obra prima de cada autor).

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REGO, José Lins. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. (Sagarana). ROUANET, Sergio Paulo. Desterrados na própria terra. In: O Estado de São Paulo. Ano XXVI, n° 1356, 22/out/2006. ROSENFELD, Anatol. Introdução. In: SCHILLER, Friedrich. Teoria da tragédia. (Trad. Flávio Meurer). São Paulo: Herder, p.7-11, 1964. (Pensamento Estético).

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