Um Retr ato das Gentes de Carção
beleza natural… tradições… cultura…
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Editorial
Destaques
O Almocreve ........................................ 5 As Chocalhadas ................................... 12 As cores do Demo . .............................. 13 Patriotísmo dos moradores de Carção . 15 Loas a Santo António ........................... 16 O Entrudo . ........................................... 18 Jóias esquecidas da cultura popular ..... 20 A eterna Carção e sua emigração ......... 22 Carção um lugar central de comércio .. 32 Cultura do Linho em Carção … . ......... 37 Homenagem ao Heróis Militares ......... 46
FICHA TÉCNICA Propriedade e Edição: Associação Cultural dos Almocreves de Carção Contactos para colaboração: Tlm. 966 197 194 / 966 510 938 E-mail:
[email protected] E-mail:
[email protected] Bairro de St.º Estêvão, Rua A, 5230 Carção Impressão e Criação Gráfica Ecola Tipográfica – Bragança Dep. Legal: N.º 183993/02
Prezado leitor! É com grande contentamento que vos apresentamos a 3ª edição da Almocreve. A edição anterior foi um sucesso não só derivado ao conteúdo e grafismo, mas também pelo interesse e adesão das pessoas, comprovando o sucesso gradativo deste projecto. No entanto não chega, queremos fazer melhor, evoluir anualmente este audaz projecto como propaganda da nossa povoação. É um trabalho afoito e ambicioso, com custos económicos muito elevados, mas com a ajuda de todos os carçonenses, colaboradores, J. F. de Carção, C. M. de Vimioso e patrocinadores, temos vindo a conseguir concretizar este sonho iniciado em 2002 por um grupo de jovens com grande força de vontade em não deixar perder toda a nossa cultura. Apelamos a todos os carçonenses que contribuam para o engrandecimento deste projecto. A razão para a sua continuação e evolução é a participação de todos, pois julgamos que em cada alma carçonense há uma rica história, digna de ser partilhada, desde factos passados, contos, lendas, cantigas, poemas, rezas, etc., para que a nossa cultura não desapareça, pois cada vez que um homem morre, uma biblioteca arde! Contribua e deixe-nos a sua crítica para que possamos evoluir. Obrigado pela sua atenção e esperamos que este trabalho seja do seu agrado. Com os melhores cumprimentos: Paulo Lopes
Almocreve
Almocreve
Hino de Carção Ó Carção, ó Carçãozinh o, Lá no al to b ate o ve n to Duas c ai x inh as de amore s, P´ra quem que r g as t ar o tempo.
Ora v i va Carção e a sua bande ira Ora v i va Carção e a mocidade sol te ira .
Éide ro de ar Carção, C om t r in t a me t ros de f i t a, Á port a do me u amor, Eide pôr a mais boni t a .
Ora v i va Carção e a sua bande ira Ora v i va Carção e a mocidade sol te ira .
Em Carção já não há ros as, Já se se c aram as rose i ras, As ros as que agora há, São as mocinh as sol te i ras.
Ora v i va Carção e a sua bande ira Ora v i va Carção e a mocidade sol te ira .
Em Carção já não há cravos, Já se se c aram os crave i ros. Os cravos que agora há, São os mocinh os sol te i ros.
Ora v i va Carção e a sua bande ira Ora v i va Carção e a mocidade sol te ira . Maria Celene A. Fernandes
Mensagem do Presidente da Câmara Municipal de Vimioso
À Revista Almocreve
Muito me honra deixar esta mensagem na Revista Almocreve. Afinal, este projecto, iniciado por um conjunto de jovens, tem-se vindo a afirmar dentro e fora do concelho, sendo, indiscutivelmente, um importante instrumento na defesa e promoção da nossa cultura, em geral, e de Carção, em particular. A esses jovens expresso, em nome do município, o meu agradecimento e o estímulo para que mantenham bem viva esta iniciativa cultural. A Revista Almocreve, verdadeiro bilhete de Identidade e “retracto das gentes de Carção” surgiu num momento em que a freguesia de Carção assistiu a uma nova fase de desenvolvimento nos mais diferente domínios. No plano cultural assistiu-se à fundação de associações que têm vindo a desenvolver um meritório trabalho. A Nível urbanístico Carção tem vindo a beneficiar de intervenções significativas. Recordo o Largo de Padre Amândio Lopes; a Casa do Povo, finalmente, está a ser recuperada e, com a conclusão das obras da AV. 25 de Abril, Carção ganhará uma imagem mais urbana e maias moderna. Continuaremos, como até aqui, a trabalhar de forma determinada para dar aos carçonenses mais e melhor qualidade de vida. Essa é a nossa obrigação, e os carçonenses, gente trabalhadora e com espírito de iniciativa, bem o merecem. Um abraço amigo José Baptista Rodrigues
Almocreve
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Mensagem do Presidente da Junta de Freguesia de Carção
É com grande satisfação que aceito o pedido de fazer uma pequena mensagem da Junta de Freguesia de Carção para a terceira edição da revista Almocreve. Em primeiro, gostaria em nome de toda a Junta de Freguesia, dar os parabéns a esta jovem Associação que brilhantemente têm levado adiante um projecto tão audaz e ambicioso do qual todos nós nos orgulhamos. Em segundo, porque é do interesse de todos, recolher e promover a cultura deste grandioso povo, desde os usos, costumes e tradições para que não se apague das memórias para sempre e do mesmo modo, para que os mais novos e os vindouros percebam e se orgulhem da Terra que os vi-o nascer. Da nossa parte, espero que este projecto continue bastante vivo, com a promessa de que sempre vos apoiaremos na realização deste e outros projectos futuros. Desejo-vos as melhores felicidades e o meu agradecimento pelo trabalho desenvolvido, um verdadeiro exemplo de que todos nós podemos e devemos contribuir para o desenvolvimento da nossa povoação. Enquanto Presidente, continuarei atento às necessidades de Carção, muito receptivo a apoiar e incentivar todas as Associações de índole cultural. A todos, deixo um abraço de amizade. O Presidente da Junta de Freguesia Marcolino Rodrigues Fernandes
O Almocreve Ainda o dia dormitava, Já o meu pai se levantava, Para a carga preparar. Latos reluzentes, cheios do liquido dourado, Sobre o dorso dos muares bem apertado, Mantas bem lavadas a tapar.
Éramos ainda pequeninas, Adorávamos suas cantigas, Ao som duma velha guitarra. Sentava-nos no colo com carinho, Sem descansar um bocadinho, E adormecia-nos com a cantata.
Nas alforges, uma toalha e a merenda Mais as medidas para a venda: Litros, quartilhos e remeias. Sempre alegre e sem canseira, Lá subia e descia a ladeira, A caminho das aldeias.
Por vezes juntavam-se na Praça, Discutindo com algazarra, O ponto da situação. Todos emitiam seu parecer, Como o negócio estava a decorrer, Era um local de convívio e reunião.
Esperavam-no ansiosas as freguesas, Pois trazia o sabor das suas mesas, A provisão estava acabada. De Vale de Frades a Serapicos, Angueira, Avelanoso, São Joanico, Era cansativa a jornada.
Era assim o ganha-pão Dos vendedores ambulantes de Carção, Vida dura, mas alegre. Nada mais sabia fazer, Se não comprar e vender, Era a vida do Almocreve.
Encontrou um belo dia, Um padre que da igreja vinha, E parou para conversar. “Bom – dia meu bom amigo! Como sou parecido consigo, Olhe que pode acreditar!
Panos, azeite, arroz, bacalhau, sardinha Excedentes que noutras regiões havia, Tudo levavam à povoação. Pôr as donas de casa descansadas, Aguardavam em suas casas, A chegada da provisão.
Levanto-me de manhã cedo, Sempre bem disposto e ledo, Para celebrar a missa. Debaixo do frio ou da calma, Aos fregueses condimento a alma, E você condimenta a vida”.
Quando dinheiro não havia, Para saldar a dívida, Registavam no seu livro. E só nas colheitas do Verão, Com o belo e louro grão, Satisfaziam seu compromisso.
Com um angélico sorriso, Despediu-se do amigo, Apertando-lhe a mão. “Venha por aqui muitas vezes, Vá servir os seus fregueses, Meu amigo de Carção”.
É uma profissão antiga, Já mencionada na Bíblia, Desde os tempos de Abraão. Os adeptos do mal dizer, Devem ficar a saber, Que pagavam contribuição.
Meu pai ficou muito honrado, Ser, por tão ilustre pessoa elogiado, E com aquele aperto de mão. Todo o trabalho feito com honestidade, Em prol da sociedade, É digno de admiração.
Merecem bem ser elogiados, De pejorativos sentidos libertados, Com respeito e admiração. Ao meu pai muito obrigada, Por tanta canseira e caminhada, A vós, A.C.A.C., a minha gratidão.
E depois da volta dada, Há dois dias fora de casa, Lá regressava ele sorridente. No Inverno, todo molhado, No Verão sequioso e suado, Porque a temperatura era ardente.
Sofia Jerónimo
Almocreve
Almocreve
Balada de Neve Batem leve, levemente,
Fico olhando esses sinais
como quem chama por mim.
da pobre gente que avança,
Será chuva? Será gente?
e noto, por entre os mais,
Gente não é, certamente
os traços miniaturais
e a chuva não bate assim.
duns pezitos de criança...
É talvez a ventania:
E descalcinhos, doridos...
mas há pouco, há poucochinho,
a neve deixa inda vê-los,
nem uma agulha bulia
primeiro, bem definidos,
na quieta melancolia
depois, em sulcos compridos,
dos pinheiros do caminho...
porque não podia erguê-los!...
Quem bate, assim, levemente,
Que quem já é pecador
com tão estranha leveza,
sofra tormentos, enfim!
que mal se ouve, mal se sente?
Mas as crianças, Senhor,
Não é chuva, nem é gente,
porque lhes dais tanta dor?!...
nem é vento com certeza.
Porque padecem assim?!...
Fui ver. A neve caía
E uma infinita tristeza,
do azul cinzento do céu,
uma funda turbação
branca e leve, branca e fria...
entra em mim, fica em mim presa.
- Há quanto tempo a não via!
Cai neve na Natureza
E que saudades, Deus meu!
- e cai no meu coração.
Olho-a através da vidraça. Pôs tudo da cor do linho. Passa gente e, quando passa, os passos imprime e traça na brancura do caminho...
Augusto Gil Recolha: Ricardo Teixeira Foto: Eiras do Vale
Canção de Natal
Os Reis
Entrai pastores, entrai Por esses portais sagrados, Vinde adorar o menino, Que está em palhas deitado.
Lá partem os três reis Das partes do oriente Visitar do Deus menino, Um Deus omnipotente.
Entrai pastores, entrai Por esses portais a dentro, Vinde adorar o menino, E o sagrado nascimento.
Herodes como malvado, Como travesso e maligno, Às avessas lhe ensinou Aos santos reis o caminho.
São José é velho Já não pode andar, Precisa de um moço, Para o ajudar.
Os reis como eram santos, Seus caminhos vão seguindo, Guiados por uma estrela, Até chegar ao menino.
Senhora lavava, São José estendia, E o Menino chorava, Com o frio que fazia.
Rorró meu Menino Rórró meu amor, Estas pancadinhas Não matam com dor.
A cabana era pequena, Não cabiam lá os três Adoravam o Menino, Cada um de sua vez.
Uns lhe ofereciam ouro, Outros lhe ofereciam mirra, Outros lhe ofereciam incenso Para ascensar o menino.
Os filhos dos homens Em berços dourados E Vós meu menino Em palhas deitado.
Em palhas deitado, Em palhas aquecido, Filho duma rosa, E um cravo nascido.
Rórró meu menino, Rórró meu amor, Rórró lindo cravo, Rórró linda flor.
Os alunos do 1º ciclo do ensino recorrente de Carção de 2006
Almocreve
Almocreve
Paixão de Cristo Bendita e louvada seja, A Paixão do Redentor, Que para nos livrar das culpas, Padeceu por nosso amor. Padeceu grandes tormentos, Duros martírios na cruz, Morreu para nos salvar, Bendito seja Jesus. Quando por nós padecestes, Ó bom Jesus Salvador! Quem há que possa entender, Tantos excessos d´amor? Na Vossa Santa cabeça, Coroa de espinhos cravaram, Donde, entre dores incríveis, Fontes de sangue emanaram. Vossas Santíssimas faces, Sofreram mil bofetadas, Foram por duros algozes, Encarnecidas, pisadas. Vossas Santíssimas costas, Pesada cruz conduziram, Entre agudíssimas dores, Novas chagas se abriram. O Vosso corpo divino, Ferido e todo chagado, Diz-nos bem como é horrendo, Quanto é medonho o pecado.
Encomendação das Almas À porta das Almas Santas, Bate Deus a toda a hora As almas lhe responderam, Ó meu Deus que quereis agora? Quero que deixeis o Mundo E que venhais para a Glória. Ó almas que estais dormindo, Acordai não durmais mais, Lá no outro mundo, Tendes vossas mães e vossos pais. Perdoa-me meu irmão, Por te acordar agora, Reza lá um Pai Nosso, Que eu já me vou embora. O Santo Cristo de Outeiro, Tem um galo no seu sino, Cada vez que o galo canta, Recorda o Verbo Divino. Rezemos também um credo, Ó Santo Cristo de Outeiro, Que na hora da nossa morte, Seja o nosso companheiro. Senhor Deus de Misericórdia, Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, Pedi ao Vosso Amado Filho, Que nos alcance Misericórdia. Perdoai meu Jesus perdoai, Porque eu tenho vivido enganado, Mas ninguém é tão terno nem tão bom, Como Vós sem cessar. Vivo no mundo como em desterro, Por onde eu erro a suspirar, Terna saudade Virgem minha alma, Dá-te à calma o meu penar. Ao longe espaço, o sol caminha, A pátria é minha o eterno bem, A suspirar por minha Mãe, A suspirar por minha Mãe. Os alunos do 1º ciclo do ensino recorrente de Carção de 2006
Bairro de Cima
Os martírios Já lá vai o Senhor preso, Já lá vai pró calvário, Leva uma cruz em seus ombros, E na mão um verde cravo. Vossos sagrados cabelos, Mais finos que o próprio ouro, Dai-me licença Senhor, De entrar em Vosso tesouro. Vossa Sagrada cabeça, Coroada de mil espinhos, Por causa dos meus pecados, Sofrestes grandes Martírios. Vossos sagrados olhos, Inclinados para o chão, Perdoai-me os meus pecados, Por vossa morte e paixão. Vossos sagrados ouvidos, Atingidos por mil gritos, Por causa dos nossos pecados, Bom Jesus Deus dos Aflitos.
A vossa sagrada boca, Cheia de fel amargoso, Perdoai-me os meus pecados, Ó meu Deus todo-poderoso.
Almocreve
As vossas sagradas faces, Cheias de escarro nojento, Por causa dos meus pecados, Sofreste grandes tormentos. Vossa sagrada garganta, Vos puseram uma corda, Por ela vos arrastaram, Tende de nós misericórdia. Vossos sagrados ombros, Vos puseram um madeiro, Por causa dos meus pecados, Ó bom Jesus verdadeiro. As Vossas sagradas mãos, Pregaram numa cruz, Por causa dos meus pecados, Valha-me Cristo Jesus. Vosso sagrado lado, Foi aberto com uma lança, P´rá minha alma lá entrar, Senhor dai-lhe confiança. Vossos sagrados joelhos, Arrastados pelo chão, Perdoai-me os meus pecados, Ó meu Jesus que tantos são. Vossos sagrados pés, Mais alvos que a neve pura, Vão correndo rios de sangue, Pela rua da amargura. Estas doze repartições, Ó meu Jesus vo-las ofereço, Que na hora da nossa morte, Nos tenhais o Céu aberto. Os alunos do 1º ciclo do ensino recorrente de Carção
Cruzeiro de St.º Estêvão
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A Lenda da Fonte da Silveirinha A Fonte da Silveirinha, localizava-se no Vale, destruída recentemente, sacrificada para melhores arruamentos, onde durante vários séculos teve como finalidade abastecer grande parte da população, certificada pelos mais antigos, como a água mais fresca e saborosa da povoação. Reza a lenda, que todas as manhãs, uma rapariga ia buscar o seu cântaro de água. Já antes do facto se ter passado, dizia-se que nessa fonte havia uma Moura Encantada à espera de alguém que lhe quebrasse o seu encanto da qual a jovem rapariga nada sabia. Numa manhã, como era costume, foi buscar água e com grande deslumbramento reparou que junto à fonte havia um fio de ouro. Muito apressadamente começou a dobá-lo. Dobava, dobava, dobava e o novelo ia crescendo, crescendo, crescendo e já em proporções enormes, ela continuou a dobar!...parecendo que o fio de ouro nunca mais tinha fim. Algum tempo depois tocou o sino da igreja e ela muito aflita porque tinha que ir à missa, pensando que ia chegar tarde, partiu o fio do novelo e nesse momento ouviu uma voz que vinha do fundo da Fonte: -Ah!... Ah!... Tontica!... Por tua causa vou passar mais uns anos aqui, porque se tu tivesses dobado até ao fim eu poderia estar livre, assim dobraste o meu encanto! O novelo transformou-se em pó e foi levado pelo vento. A rapariga, muito assustada, fugiu e nunca mais voltou à fonte. M. B. S. V.
Paixaros - Os cucos
SILVA PORTO, Guardando o rebanho, 1893, Óleo sobre tela
Para regar íamos às hortas da Ribeirinha regularmente, eu no lombo da burra Ruça, pelo caminho poeirento que serpenteava no vale, entre o ventre redondo das montanhas. Ao longo do caminho, de um e outro lado viam-se hortas coloridas, pastos, pombais, vinhas, oliveiras, pomares, olmos ao longo do ribeiro, mais acima currais, por todos os campos vacas, ovelhas, burros, mulas. Ouviam-se os motores de rega ecoando pelos montes, vozes de pessoas que cantavam enquanto realizavam os seus trabalhos, os chocalhos das vacas e as campainhas dos rebanhos, o ladrar dos cães que os guardavam e as árias estridentes oferecidas gratuitamente pelas aves canoras. Quando se ouvia o cuco, consultavam-se-lhe os poderes premonitórios com a pergunta “cuco da Paradinha, quantos anos vou ficar solteirinha?”. A ave ao longe ouvia a pergunta ansiosa e perscrutando o futuro da inquiridora lá respondia. Contavam-se as grasnadelas após a questão e esse número correspondia ao número de anos até ao casamento. Umas das coisas mais aborrecidas deste método era que conforme os dias e os cucos, o número de anos variava e era uma crise de nervos tentar resolver o mistério ditado pelas aves. Não havia regras estabelecidas, fazer a média das diversas leituras era complicado e portanto o mais simples era tomar como certa aquela que referia o menor número. Rosário Andrade
Coisas do dia a dia
Avidanaaldeiaerafeitadetrabalhoárduo,desacrifícios indizíveis e de privações maiores que a alma. As pessoas viviam subjugadas por dois monstros que não as deixavam ser gente. O corpo de um camponês não lhe pertencia. Era um empréstimo precário da terra. E todos os dias, desde o arrebol da aurora até que os últimos raios de sol se esgotavam de cansaço no firmamento, eles pagavam essa dívida, com o suor árduo dos dias intermináveis, com alegrias breves, com lágrimas de esperança ou de desapontamento, com o sangue, porque muitas vezes, pelos penhascos, em árvores possantes, se colocavam em posições precárias para não deixar nada, arriscavam a vida por muito pouco. O espírito, mirrado pela ignorância, era dominado pelo peso de superstições e de medos fermentados no nevoeiro dos séculos, transmitidos por uma tradição oral fecunda e por um temor oblíquo às penas do Inferno. Que podia uma alma a quem não era permitido questionar senão aceitar servilmente todos os dogmas e repetir as litanias ouvidas anos após anos? O Latim só tinha sido substituído pela língua materna poucos anos antes na prática litúrgica. Todos sabiam de cor os dizeres, podiam recitar numa ecolalia cega todas as partes da missa num latinório empenado, mas evidentemente não chegavam a digerir o significado das palavras. Ouviam as parábolas das Escrituras, as cartas aos Apóstolos, os sermões, por entre o sono que atentava, dizendo “amém” quando era para dizer, sentando-se, ajoelhando-se e levantando-se maquinalmente ou como resposta a cotovelada aguda de um vizinho mais atento. Mesmo com tudo dito em Português, duvido que entendessem a maior parte das palavras e dos ensinamentos que se pretendiam transmitir. A qualidade dos sermões era avaliada pela teatralidade convincente do pregador, pelas pausas cheias de significado, pelo fervor arrebatado da descrição do mal e do bem, pela quantidade de palavras finas e sem significado mas que soavam como mel aos ouvidos empedernidos. Mas também, creio que a compreensão e a interiorização não importava muito, o mais importante era demonstrar aos outros, com a simples presença, que eram tão dignos do céu como outro qualquer. Assim repousava a consciência sob a sombra caridosa da benevolência divina. Rosário Andrade
A colheita, Silva Porto
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As chocalhadas “Quando o casamento é feito entre pessoas muito desiguais em idade, condição e formosura, ou quando um dos nubentes é simplório, ou já cometeu faltas graves, há ainda o costume estúpido e selvagem de fazer a chocalhada. Altas horas da noite, quando quase toda a gente já está deitada, os rapazes, tendo previamente combinado o serviço, juntam-se aos magotes nos cantos e encruzilhadas das ruas e a certa distância. O maioral da chocalhada, dá o sinal de alarme e de sentido; com uma pequena campainha ou guiso, e logo começam a sair de todos os cantos magotes de rapazes carregados de rosários de chocalhos de diversos timbres e tamanhos, misturados com latas e ferragachos ou ferros velhos de diversas espécies; e, munidos de embudes e tubos de lata, correndo, saltam e regougando, percorrem as ruas da povoação, fazendo um barulho infernal, que ora cessa aqui repentinamente, para, passados instantes, se ouvir lá mais ao longe. A´porta dos noivos o barulho é maior, e a galhofa muito mais ruidosa. Às vezes vão buscar ingarélas, grades, escadas, arcas velhas para a porta dos noivos; chegam a arrastar carros de bois e a pô-los de pé, e fingem escalar as paredes da casa, até chegar quase à janela do quarto onde os noivos estão deitados, e da aldraba da porta dependuram rosários de chifres de diversos tamanhos. A certo sinal todos se calam repentinamente; e faz-se um grande silêncio, para verificarem se se ouve algum ruído ou movimento estranho. A turba fracciona-se; e cada magote vai para determinado sítio, onde se escondem. Dado o sinal, um dos grupos começa a businar e a soltar gemidos e meias palavras, que só eles entendem, dizendo de quando em quando: Aperta! Aperta! Carnudo! Lá ao longe, outro grupo, regougando e buzinando, respondem: A´lerta! A´lerta está! Aperta! Aperta! Carnudo! Os outros grupos procedem da mesma maneira até que, por fim, se juntam todos os magotes; e, saltando e correndo em grande tropel, imitando cavalgaduras coxeando a galope, percorrem de novo as ruas da povoação, e desaparecem. Sobre a intima relação que tudo isto tem com os antigos Romanos, leia-se o que o nosso muito querido amigo e ilustríssimo colega Pe. Francisco Manuel Alves, digníssimo Abade de Baçal, diz com muita erudição nas suas Memórias Arqueológicas – Históricas do distrito de Bragança, Tomo IX, pp. 317 à 322”1. Recolha: Gil Azevedo ___________ 1
Pe. Miranda Lopes, Carção – concelho de Vimioso, 1939, p. 14
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As cores do Demo (Crónica)
Certo ano o crepúsculo tingiu o céu de um vermelho vivo, a cor do Demónio. Reuniu-se a aldeia em pranto, uns por terem visto e jurado que era o manto de próprio Demo, outros chamados pela urgência do sino que tocava a rebate com um terror redobrado. A notícia espalhou-se como chama em rastilho seco, dirigiram-se todos à igreja, cada um pensando que era chegado o dia do Juízo Final. Rezou-se o Terço, as Ave-Marias, a Salve-rainha, o Acto de Contrição, a Ladainha... – Nª. Sra. Do Rosário de Fátima” – lançava em tom resignado o Padre Amândio “Rogai por nós” – respondia o povo amedrontado – “Rogai por mim” – clamava uma velhota, sentindo já nos dedos dos pés o calor cáustico das áscuas que torturam os condenados. Alguém mais esclarecido disse então ao Padre Amândio que não valia a pena tê-los ali subjugado ao medo, que se tratava de um fenómeno natural e passageiro. E o Padre, resignado, que bem sabia, mas que os deixasse na ignorância, se lhes tentassem explicar não entenderiam e era da maneira que estavam na igreja a rezar. Rosário Andrade
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Patriotismo dos moradores de Carção
O nosso antigo e falecido paroquiano
- Esta p... caldeireira napolitana, que
Polaco), um velhote dos seus oitenta anos,
O nosso falecido colega Pe. Domingos
José António Rodrigues Praça (o tio
andará por aqui a fazer? ...
muito inteligente e espirituoso, dizia-nos
António Luís Cordeiro, atrás mencionado,
liberal, e que os miguelistas tinham aqui
que a gente de Carção foi sempre muito
poucos amigos; e que, quando era rapaz,
se cantavam em Carção estes estribilhos, aludindo à luta entre D. Pedro e D. Miguel:
Vós chamais-me piolhoso,
E´melhor ser piolhoso
Eu só os tenho d´um lado: Do que ser perro malhado.
Enquanto no Porto
Não há-de o tirano
Um só existir,
Ao trono subir!
contou-nos o seguinte caso:
Um dia entrou em Carção uma escolta
de soldados armados, pertencentes aos
partidários de El-Rei D. Miguel, em perseguição dos liberais, e só encontrou na
Praça uma velhinha, fiando na roca. Um dos
soldados, apontando-lhe a espingarda, com ares ameaçadores, interpelou-a, dizendo:
- Onde estão os liberais de Carção?
A velhinha, tranzida de medo, res-
- Quem vive?
pondeu, a tremer:
- Valha-me Deus, meu Senhor! Eu não
sei o que vai por esse mundo de Cristo, nem
quem há-de viver com tanto desassossego! Olhe, meu senhor:
D. Miguel queria ser rei,
Vá governar ao inferno!
Fora ladrões!
E também nos contou que, quando
dança!1
General dos Farrapões!
Que viva D. Pedro!
Fora caipira!
Que ambos saíram da mesma pele!
E que viva D. Miguel!
E que viva a casa de Bragança!
Que eu não posso entender semelhante
rapaz, ouvira dizer a seus pais, que esteve
em Carção El-Rei D. Carlos de Espanha
Recolha: Leonel Vaqueiro
acompanhado da raínha sua mulher, e de uma patriarca. Um soldado de Carção,
comentando uma visita tão extraordinária,
__________
da rainha:
de Vimioso, 1939, pp. 14 e 15.
e pouco desejada, disse enojado, falando
1 Pe.
Miranda Lopes, Carção – concelho
Almocreve
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Loas a Santo António “Em tempos não muito distantes, cantavam-se loas a Santo António no dia da sua festa, que tinha e continua a ter lugar dia 13 de Junho de cada ano. A loa consistia num cântico em louvor ao Santo que, no fundo, não era mais do que algum pedido ou, até, algum agradecimento a Santo António por qualquer graça concedida. Tinha lugar durante a procissão, em várias paragens e, finamente, à porta principal da igreja. Toda a gente que havia participado na procissão ficava aglomerada no adro da igreja; o Santo, aos ombros de quatro penitentes, voltado para o povo, bondoso e sereno, para ouvir a súplica ou o agradecimento. Qualquer pessoa que tivesse jeito para cantar ou recitar a loa, fazia-o com a maior fé, mas quem mais cantava eram os pastores que, de cordeiro ao colo, para oferecer ao Santo, ali agradeciam o favor das graças concedidas durante todo o ano. Mas as loas também agradeciam a cura de uma doença pessoal ou de um familiar, o facto do jovem se ter livrado da tropa e tantas outras coisas que eram pedidas ao Santo Milagroso, nomeadamente saúde, que o lobo não fosse ao gado e até um pedido de casamento. E se havia loas engraçadas e que faziam, de algum modo, sorrir os circunstantes, também não é menos verdade que outras havia que, pelo seu significado e dor, faziam chorar. Muitas vezes as loas eram em grande quantidade e o padre, já cançado, ia para a sacristia desparamentar-se, deixando o Santo aos fiéis. No tempo do Pe. Manuel Jerónimo, de alcunha o Pe. Bicho, de boas recordações, era vulgar ouvir-lhe dizer: “Olhai... aí vou fica. Cantai-lhe o que quiserdes e depois ponde-o no altar”1. Recolha: Francisco Ribas
1.ª Loa Santo António milagroso, Vós sois o santo do povo. Venho aqui todos os anos, Este ano cá s´tou de novo.
António o tempo mudou Da cabeça até aos pés. A tua festa era a treze, Este ano caiu a dez.
A trazer-vos um cordeiro, Santo António aqui estou. É fruto de uma promessa. Do ano que já passou.
Continuais livrando o gado Do lobo, fera esfaimada, Guardai também o pastor, Que sem ele não faço nada.
Três meses s´eteve doente, O cordeiro que vos trago Do milagre que fizestes, Santo António é o pago.
Santo António até p´ro ano, Cheio de fé voltarei. Se o lobo não for ao gado, Outro cordeiro trarei.
No ano que já passou O lobo não foi ao gado. Muito agradecido estou, Santo António: Obrigado.
2.ª Loa
A´hora que os galos cantam. Hinos d´amor a Jesus, Sai o pastor da cabana, P´ra levar a sua cruz.
Parai Divino António, Santo António de Lisboa. A Vós e ao Vosso Menino, Eu vou cantar a minha Loa.
Reza-se, guardando o gado. Apascentando-o na terra. Nossa Senhora apareceu Aos pastorinhos da serra.
Aqui Vos trago o cordeiro, Que prometi o outro ano. O lobo não foi ao gado, O lobo não causou dano.
Ó meu António bendito, Guardai o pastor e o cão. Guardai cabras e ovelhas, Peço-vos com devoção. Meu Santo António bondoso, Nada tenho p´ra vos dar. Dou-vos o meu coração, E a pobreza do meu lar. Pedi por nós ao Senhor, E a Maria, Sua Mãe. P´ra que um dia nos receba, Na sua glória também. E agora meu Santo amigo Eu vos quero prometer. Que p´ro ano voltarei Outro cordeiro trazer.
Santo António milagroso, Que sempre me abençoaste. Deixo aqui o cordeiro, Que do lobo mo guardaste. Aceitai-o Santo António, Que é dado com muito amor. Guardai o gado do lobo, Guardai também o pastor. O carneiro pai do anho, Que Vos trago com agrado, Esteve muito doente, Mas agora vai curando. Ó meu querido Santo António Ó meu Santo popular. Abençoai o meu gado, Abençoais o meu lar. Vosso Menino é Cordeiro, Mas é Cordeiro de Deus. E o cordeiro que vos trago, É um cordeiro dos meus. Santo António dos milagres, Abençoais o pastor. Que dia e noite trabalha, Com a graça do Senhor.
3.ª Loa Fostes pregar aos peixes Pregai-lhe também às bogas Pregai-lhe ao Tina do Campo Qu´é quem as agarra todas (ó). Está tudo tão mudado Até o tempo demuda Inda não há uito tempo Qu´um padre casou cura. ´Stiveste a pregar em Pádua Dizem muitos que és de lá. É mentira, Santo António, Tu és nosso e és de cá. Falam tanto os italianos, Dizem tanta coisa à toa, Querem que sejas de Pádua, Mas tu nasceste em Lisboa. António olha p´ró termo E p´ró pastor descuidado Liberta o gado, do lobo; Liberta as hortas, do gado. _________ 1
Rodrigues, Francisco António Fernandes, Carção suas
gentes, usos e tradições, C.M.V., 1999, pp. 138 – 144.
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O Entrudo
A época mais divertida na escola era o Entrudo. Os preparativos começavam muito antes, nos Trabalhos Manuais fazíamos chapéus de cartolina, de forma cónica, nos quais desenhávamos imagens coloridas e enfeitávamos com fitinhas na extremidade. Fazíamos as máscaras de cartolina também, a partir de moldes usados anos após anos, uma cara de cão ou de gato, mais ou menos pomposa conforme as capacidades artísticas de cada um. Os mais sortudos exibiam com orgulho umas máscaras de plástico, muito garridas, compradas normalmente na feira. Muito antes do Entrudo dava-se a volta à aldeia à procura do peru mais rechonchudo e com as faces mais vermelhas onde se adivinhava a valentia. A procura e as negociações eram demoradas e mantidas no mais absoluto sigilo para que as classes concorrentes não suspeitassem do achado e tentassem por meio de oferta superior ou por causa de parentesco afastado minar o negócio. Os alunos de cada classe contribuíam conforme as suas posses e estica de uma lado estica de outro lá se conseguia atingir a quantia pedida pelo vendedor e finalmente o negócio lá se realizava. Na semana anterior ao Entrudo construíamos, com pompa e circunstância, o andor em que o galináceo iria ser levado em cortejo. Uma caixa de madeira, onde as sardinhas vinham da lota, servia de base. Quatro ripas fortes, pregadas solidamente nos cantos serviriam para levar ao ombro todo o aparato. A partir da base, deixando na frente uma abertura, erguiam-se mais umas ripas que se rematavam com um tecto do mesmo material. Esta estrutura era então cuidadosamente preenchida com hera e final-
RESTAURANTE
mente enfeitada com fitas de papel colorido. No dia marcado, cada classe transportava ruidosamente o seu perú entre vivas ao professor, gritos e cânticos de alegria, lengalengas alusivas ao Entrudo e as festividades e ameaças veladas à ave: Ó peru da crista roma pouca sorte foi a tua A barriga da minha mestra Vai ser a tua sepultura. O objectivo era oferecer ao respectivo professor o melhor perú da aldeia, não só superior em estatura, mas também em valentia. Para demonstrar esta última característica, a procissão dirigia-se a um terreiro onde os pobres animais eram instigados uns contra os outros. Depois da luta, o peru vencedor era considerado um herói e lavado em cortejo pela aldeia para mostrar a todos a valentia da ave e a verdade consequente e absoluta de que o professor da classe era o melhor do mundo. Oferecia-se então o animal glorioso ao mestre e a partir daí a sua sorte era a ele que pertencia. Nunca se ouviu dizer que a carreira nos ringues se tenha prolongado... Rosário Andrade
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A Naveta e o Turíbulo de Carção Punição – Porto Autor – A P C Turíbulo – Alt. 28 cm Naveta – 20,5 X 20,5 cm Século – XVIII (Finais)
Naveta
Turíbulo
Punção do Turíbulo e Naveta
“Estas duas peças são típicas da arte Rococó. O turíbulo utiliza a estrutura vertical. A cobertura obteve-se pela utilização de uma cúpula. A decoração é conseguida através de elementos vegetalistas. A utilização de conchas não lhe é estranha. Estas peças continuam a utilizar as quatro cadeias tendo uma destas a função de erguer a parte superior. A naveta utiliza o mesmo esquema decorativo do turíbulo e revela uma grande atracção pelas curvas e contracurvas, pela verticalidade e pelo volume, elementos muito ao gosto desta época. As navetas, são o símbolo da segurança que permite atravessar as tormentas da vida, a Barca de Pedro é a igreja que conduz os fiéis à salvação. Deste autor pouco posso acrescentar, a não ser que também se lhe adquiriram as mesmas peças para a igreja de Argoselo. Pelo estilo das peças deve ter vivido nos finais do século XVIII ou princípios do seguinte”1. _________ 1
PEREIRA, Fernando, A ourivesaria religiosa no concelho de Vimioso, C.M.V., 1997, p. 32
Recolha: Paulo Lopes
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Jóias esquecidas da cultura popular A contemplar a aldeia e toda a vastidão de montes, erigida no cimo desta elevação, encontra-se uma capela pequena e modesta, dedicada a São Roque. O ventre largo e manso do monte servia de eira. Era para lá que os cereais eram levados depois da ceifa. Os feixes de trigo, de cevada, de centeio, eram colocados em medas, molhes circulares de considerável altura. Eram depois desfeitos a pouco e pouco, espalhando pela eira pequenas quantidades para trilhar. Durante longas horas sob o calor mortificador, os animais que arrastavam utensílios pesados sobre os feixes espalhados. Depois deste trabalho, havia ainda que lançar a mistura resultante ao ar, para com acção da gravidade e de alguma aragem, o grão cair pesado a um lado e a palha ser deslocada o suficiente para os permitir separar. Lembro-me das bestas e os homens a regressarem a casa exaustos e arfantes, cobertos de um camada de finíssimo pó, e de pequenas e inúmeras partículas de palha. Mais tarde apareceram as malhadeiras mecanicas, gigantes amarelos mecanizados que alimentados na eira com os molhes, regurgitavam o cereal para um lado, pronto a ser ensacado, e a palha para outro. E mais tarde ainda, surgiram as segadeiras. Estes sim, monstros completamente automatizados que iam pelos campos devorando as searas e deixando um rasto de fardos de palha devidamente atados, a distancias regulares. No caminho para Argoselo, depois de vencer a inclinação acentuada do monte, mais um planalto amplo oferecia o corpo brando para servir de Eira. No caminho para as Eiras, na área a que se chamava “o Vale” existia uma fonte secular e um enorme tanque onde as mulheres iam lavar a roupa e actualizar os mexericos. A fonte dizia-se, era encantada. Nela aparecia ocasionalmente uma moura que morrera de amores. Muitas pessoas afirmavam terem-lhe visto os fios do cabelo e a linha de oiro de um novelo que ela dobava eternamente...
Foto: Eira do Vale
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Cantigas da Segada Três voltas dei ao castelo Sem achar por onde entrar... -Soldadinho de armas brancas Visteis-lo por ‘qui passar? -Esse soldado senhora, Morto esta no areal Com três f’ridas em seu peito Qual das três a mais mortal. Por uma entrava o sol, Por outra entrava o luar. Por a mais pequena delas Pode o gavião passar, Com suas asas estendidas Sem as ensanguentar.
- Porque se ri a donzela, Porque se ri a menina? -Rio-me do cavaleiro e da sua cobardia, De me encontar no monte e guardar-me com ‘desia. -Volta atrás ó meu cavalo Que a espora vai perdida!... -Volta a frente ó cavaleiro, que se a espora era de prata, Meu pai d’ouro t’a daria.
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À caça ia Dom Pedro, A caçar com’o sol ia Seus perros iam cansados, ele também cansado ia. Deitou-se a ua sombra, Das mais altas que havia La por meio da noite Seus olhos deitou acima. Viu na mesma sombra u’a donzela qu’dormia -O que faz ai a donzela, O que faz ai a menina? -Estou a cumprir u’a promessa Que m’a deu minha madrinha. Hoje acaba o ano, Amanhã começa o dia. -Quer vir a donzela Em minha companhia? -Olhai se eu quero, Olhai se eu quereria. Montou-a em seu cavalo E p’ra casa se dirigia. Por o meio do caminho Deu-lhe tamanha risa.
Foto: Eira do Vale
Cantiga da Segada
-E quem é esse teu pai que tanto ouro tenia? - Meu pai é o rei de Castela, Minha mãe, Dona Maria. -Por sinais que me vais dando, Tu és una irmana mia!... -Abra a porta minha mãe, Abra-a com mu’ta alegria, Entendia trazer mulher, E trago una irmana mia. - Se é minha filha, Suba até a cozinha, Sé é minha nora, Parta pão e vá-se embora!
Rosario Andrade
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A eterna Carção e sua emigração Durante quatro séculos, o Brasil foi povoado pela emigração portuguesa e nos séculos XVI e XVII, tão somente, cidadãos portugueses é que emigraram, os quais aqui cruzavam-se com a população, indígena exigente, daí surgiram dessa fusão, os caboclos, que era uma mistura entre brancos e índios. Como o advento da «escravidão» na qual durante séculos, para cá vieram os negros africanos isto do século XVII até meados do século XIX, e a fusão das três raças, deu o seguinte: além dos caboclos (brancos e índios) haviam os mulatos (brancos e negros) e os cafusos (negros e índios). Na época do império até à proclamação da república brasileira em 1889, a emigração portuguesa havia diminuído, todavia, os militares resolveram abrir a imigração e então começaram a vir pessoas de outras raças, nomeadamente, italianos, espanhóis, gentes do leste europeu, como russos e do oriente próximo, como os libaneses, sírios, judeus, turcos, etc... bem como, a partir de 1905, do extremo oriente, Japão, Coreia, China e Índia, uma verdadeira miscelânea. Começou então a emigração portuguesa em grande escala, em seu mais acentuado plano, isso já em pleno século XX, chegando a aportar em Santos, uma média mensal de 5000 pessoas, as quais vinham em direcção da cidade de São Paulo, isto sem contar o que ocorria na cidade de Rio de Janeiro e outras cidades menores. De todas as partes de Portugal, aqui chegavam os emigrantes e principalmente os transmontanos, como os meus avós, o materno era de Rio Frio (Bragança) e o paterno de Carção e a «glória» que, este que escreve estas palavras, foi ter tido a descendência transmontana (o transmontano verga mas não quebra), sendo um orgulho fantástico, por eu ter ido conhecer Rio Frio e Carção e nelas eu pude ver quão magníficos são os seus povos, pela expressão mental, ética de um povo altaneiro, condizente com o conluio das raças que as formou e na qual eu estou ligado, fisicamente e espiritualmente, directamente em primeira geração. Os «carçonenses» que para cá vieram, evidentemente alguns voltaram, por não se adaptarem a uma nova vida e longe de seus lugares de criação, mas, os que ficaram curtiram a vida como se estivessem em suas próprias aldeias, porque a imensidão de cidadãos portugueses era impressionante e traziam para cá toda a «fleuma» do trabalho, da diversão, da música e do folclore.
De Carção, podemos enumerar algumas famílias que, para cá vieram, tais como:
Francisco Manuel da Costa e filhos
Família Gerónimo
Gualter Nascimento Prada
José Maria Calares
Manuel Inácio Prada e filhos
Américo Pires e família
António Miranda e família
Eusébio Fernandes e família
Prodência Afonso e irmãs
Manuel Barqueiros
Celestino Calares
Isabel Maria Prada Alves e irmãos
Adelaide Prada e família
Maria Guiomar Afonso
Domingos Poças e família
Germanos e família
João Alves Batista
Vilarreal e família
José Augusto Rodrigues Calado
António Machado
Manuel Augusto Luiz
Foto: Anos 30, Almocreves de Carção no Brasil (venda de panos) Eles embarcaram em Lisboa e no Porto e os navios, faziam paradas na ilha da Madeira ou na ilha das Palmas, sendo que, ficaria quase impossível mencionar todas as famílias que, vieram para São Paulo via Santos e hoje em dia, após 1974 não houve mais emigração e só podemos vir para o Brasil com cartas chamadas, pelo acordo Brasil – Portugal. Os carçonenses, sempre brilhantes, traziam com eles a música folclórica que enfeitavam os bairros paulistanos com festas nas paróquias, no natal também, e todo o fim de semana havia festejos proporcionados por essa gente maravilhosa que, acabaram incutindo no brasileiro a forma das festas nos clubes de bairro e mormente, nas cidades interioranas, sendo que a música caipira é uma corruptela da música portuguesa. Os portugueses instalavam-se em todos os bairros da grande cidade São Paulo e os «carçonenses» geralmente escolhiam os bairros do Brás, Vila Maria e Vila Mariana e no bairro Brás, na rua Miler, havia até uma entidade de nome «São João Batista» que oferecia festas e bailes semanais com músicas folclóricas e cantores de fado, havia como ainda existe o Centro Trasmontano de São Paulo, a Casa de Portugal de São Paulo, o Clube Português de São Paulo e outras inúmeras entidades como o Arouca Clube de São Paulo, Vilas de Portugal, Clube Lusitano, Vasco da Gama, Portuguesa de Desportos, Pedro Homem de Melo e enfim, um número grande em outras cidades como Campinas com sua Casa de Portugal, Praia Grande também, e Santos e que, esses emigrantes criaram, para que hoje nós possamos nos divertir e recordar o querido e eterno Portugal. Como de Carção havia a tradição de «Almocreves», muitos e muitos carçonenses para cá trouxeram essa profissão, como meu pai, Adriano Augusto da Costa, seus irmãos Diamantino da
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24 Costa e António Joaquim da Costa e espalhando-se pela capital e cidades do interior paulista, bem como outros estados, como Minas Gerais, vendiam todo o tipo de mercadorias, como: calças, blusas, camisas, vidraçaria, couros, etc... Hoje São Paulo é a maior cidade das Américas, com18 milhões de habitantes, 6 milhões de automóveis, mais dois milhões de outros veículos, com metro (metrô) levando quase 5 milhões de pessoas diariamente e se juntarmos com as cidades coladas em São Paulo, formando a «Grande São Paulo» teremos o maior conglomerado populacional do mundo com 30 milhões de habitantes, e devemos a quem? Parte disso tudo ou talvez 80% aos portugueses e dos brilhantes carçonenses que, para cá vieram e deram vida a tudo em São Paulo, nos seus costumes, na vida diária, nas festas e outras actividades. Graças a Deus eu sou descendente desse povo altaneiro, ligado eternamente às minhas raízes lusitanas, escrevo no jornal «Mundo Lusíada» há já 5 anos, em uma coluna com o título de «Opinião Luso-Descendente», sou sócio da «Beneficência portuguesa de São Paulo» frequento o «Centro Trasmontano de São Paulo», a Associação Portuguesa de Desportos, a Casa de Portugal de São Paulo, e o grupo folclórico «Pedro Homem de Melo» e acompanhei o meu pai «carçonense» Adriano Augusto da Costa que, faleceu em 31 – 12 – 2004 com 102 anos de idade e quem amou e transmitiu a mim a paixão fulminante por essa terra bendita, a eterna e de sonhos: Carção. Amo a revista «Almocreve» e os seus integrantes que me deram a oportunidade em duas revistas de colocar a minha opinião, na de 2004 «A importância de ser descendente de Carção» e na de 2005 «Carção, o diamante reluzente». Glória eterna à Carção, de meus sonhos! Porque para mim é o maior orgulho de minha vida e quando eu coloquei os meus pés nessa terra sagrada, o meu coração palpitou emocionalmente, obrigado povo de Carção, obrigado heróis da revista «Almocreve», muito obrigado mesmo!!!
Adriano Augusto da Costa Filho
- Brasileiro luso – descendente, sangue e alma de carçonense (Membro da Casa do Poeta de São Paulo) (Membro do Movimento Poético Nacional - Brasil)
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Fotos de: Marcel Saudreau
Um Retr ato das Gentes de Carção
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A matança do porco A matança do porco constituía um cerimonial que se repetia todos os anos no mes de Dezembro. Criavam-se os porcos desde pequenos com o que a terra dava, castanhas, batatas, couves, abóboras, beterrabas, a fruta que o bicho carcomia por dentro e atirava precocemente ao chão. Convidavam-se os vizinhos, vinha a família, todas a ajuda era bem vinda. Era necessária a força de alguns homens para transportar o bicho e colocá-lo em cima de um banco, sob o flanco. Com o animal assim imobilizado, um dos homens, normalmente alguém com experiência na matéria, enterrava-lhe a navalha no tórax, dirigida ao coração. O sangue recolhia-se, misturavase com cebola picada e sal e mexia-se durante algum tempo para evitar a sua coagulação. De seguida chamuscavam-se os pelos e lavava-se a pele do bicho. Tradicionalmente o porco era colocado no chão em cima de palha seca que posteriormente se queimava. Depois de chamuscar o animal os cascos das unhas eram retiradas e uma das actividades a que as crianças achavam muita piada era recolhê-los e enfiá-los nos bolsos dos adultos sem estes darem conta. Posteriormente, o porco era colocado de costas no banco, fazia-se uma incisão no abdómen e no tórax para retirar as vísceras. Estas eram entregues às mulheres que as levavam para perto de uma fonte de água. Aí lavavam-nas exaustivamente, extraíam com paciência o conteúdo entérico, as serosidades e davam-lhes destino conforme o tipo e qualidade, intestino delgado para chouriços e alheiras; intestino grosso para salpicões; estômago, bexiga e murca para os butelos. O coração, o fígado, os rins, alguns pedaços da barriga eram aproveitados para o almoço da matança. Depois de limpo, o porco era suspenso de cabeça para baixo, por meio de uma roldana ou apenas por estacas de madeira. O frio áspero retesava as carnes durante a noite. No dia seguinte, com a carne enxuta e hirta, procedia-se ao desmanche do animal. Também aqui era dado destino às diferentes partes, presuntos para a salga, costelas para serem fumadas, cabeça para as alheiras, lombos para os salpicões, ossos da coluna e rabo para os butelos, retalhos para os chouriços, sobras para os chabianos.
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30 Havia muito pouco que se não se aproveitasse. Nós não tínhamos o hábito de comer o toucinho mas era normal na maioria das outras casas nem isso escapar. De qualquer modo, guardavam-se os pedaços mais incomestíveis, ou a provisão do ano passado, que entretanto se tornara rançosa, para fazer sabão. Cortava-se o toucinho em pedacinhos, juntava-se soda cáustica e outros ingredientes, e o processo de saponificacao carcomia a gordura e transformava-a num sabao muito branco e com um odor caracteristico. A gordura do abdómen que protege as vísceras, à qual se dava o nome de “unto”, depois de retesada pela acção do frio de uns dois dias, era cortada em pedaços e fervida. Assim se obtinha a banha que depois se usava para cozinhar durante o resto do ano. As diferentes partes de carne eram cortadas convenientemente tendo em conta a sua finalidade. Eram então mantidas em água salgada e aromatizada com tomilho, orégãos, louro e muitos alhos, durante dois ou três dias até tomarem o sal. Durante esse tempo, os almoços e jantares consistiam invariavelmente de carne de porco assada. Era uma carne perfumada, suculenta e muito tenra que pingava abundantemente para as brasas e se desfazia na boca com pouco esforço.
Fumeiro: As alheiras Depois da matança do porco começava a azáfama de fazer o fumeiro. O pior eram as alheiras. Os preparativos começavam no dia anterior, partia-se o pão em fatias muito finas para uma caldeira enorme de cobre, descascavam-se inúmeras cabeças de alho. As tripas, depois de lavadas, eram cortadas em pedaços de vinte e cinco a trinta centímetros e atadas numa das extremidades. No dia marcado, muito cedo, era necessário cozer as diferentes carnes, porco, vitela, galinha, pato. Era tudo feito ao lume, usava-se um pote de ferro tradicional, enorme e que só era usado para este efeito. Apesar do tamanho descomunal, a quantidade de carnes era tão grande que eram necessárias várias rodadas para a cozer toda. O caldo resultante, perfumado com ervas e alhos, era forte, oloroso e de um sabor intenso e aveludado. De seguida desfiavam-se convenientemente as carnes. Esta operação demorava longas horas. Com o caldo fervente amolecia-se o pão, adicionavam-se os alhos moídos, a carne, o azeite quente (algumas pessoas usavam também banha derretida, mas lá em casa gostavamos da opção relativamente mais saudável) e o colorau. Assim se obtinha uma massa untuosa, alaranjada e fumegante. Procedia-se então ao processo moroso de transferir a massa para o interior das tripas. Para esse efeito usava-se uma fulineira, um utensílio metálico em forma de funil. Introduzia-se a extremidade mais estreita na abertura da tripa, e pela outra empurrava-se a massa até que a alheira surgia corada e arrebitada. Atava-se a abertura com o fio que sobrava da outra extremidade e pronto, ja estava... Depois restava lavar as alheiras e içá-las ao tecto da cozinha, onde ficariam por alguns dias a secarem por acção do calor e do fumo da lareira. Os chouriços eram mais fáceis de fazer. Com a carne cortada em pedaços adequados, escorrida da água da salga e envolvida em colorau, fazia-se passar pela fulineira, furando com uma agulha qualquer bolsa de ar e obrigando os bocados a aderirem firmemente uns aos outros. Para fazer os salpicões usava-se uma técnica semelhante, mas sem a fulineira. Eram usadas tripas largas, do intestino grosso ou tripão comprado no mercado, os pedaços de carne de tamanho considerável, eram introduzidos directamente, acondicionados cuidadosamente, entalados uns contra os outros, evitando qualquer bolsa de ar entre eles.
O sangue do porco e as aparas menos vistosas eram usados para fazer os chabianos (chouricos de sangue). O processo de elaboração era semelhante ao das alheiras. O pão fatiado era amolecido com o caldo rico e espesso resultante da cozedura das carnes. Com a adição do sangue obtinha-se uma massa muito escura que servia de base aos dois tipos de chabiano. O primeiro, era um enchido normal comido cozido durante a refeição. O segundo assava-se normalmente no fim da refeição e obtinha-se pela adição de acúcar, mel e amêndoas à massa base. Os pulmões e a traqueia, cortados em pedaços e misturados com outros bocados de carne eram usados para fazer as Bochas, um enchido muito original, com uma consistência estranhamente esponjosa, que se comia cozido. Sempre ajudei na elaboração destes enchidos mas os butelos (no centro da fotografia) eram um assunto muito mais sério. Era necessária a experiência de longos anos para adquirir a habilidade que permitia conjugar os ossos -vértebras, costela, rabo - nas tripas, de modo a obter um enchido homogéneo e equilibrado na sua composição. As tripas, estômago, bexiga e murca tinham de ser preparados segundo um processo moroso que requeria grande paciência e dedicação. À medida que o enchido nascia das mãos hábeis da minha mãe, era-lhe dado o destino, “este grandico para comer no dia de Páscoa, este para o dia tal, este para fulano, este para sicrano...”. A medida que eram feitos, os enchidos eram pendurados na tecto da cozinha, por cima da lareira para serem curados. Colocados em varas de um lado a outro, constituíam uma visão multicolorida e reconfortante. Enquanto que os demais tinham uma validade bastante reduzida e eram consumidos nos meses seguintes, os chouriços e os salpicões eram conservados em azeite para o resto do ano. Os presuntos untados em pimentão picante e mantidos em salmoura durante uns meses conservam-se durante muito tempo e alimentavam as famílias durante o resto do ano. Rosário Andrade
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Carção, um lugar central de na segunda metade do século “Carção apresenta uma dimensão populacional invulgar nas aldeias do Nordeste. Está relativamente perto de Bragança: a estrada mais curta que liga esta cidade à vila de Vimioso atravessa a aldeia, ou antes, a «Praça de Carção». Esta aldeia e aquela vila encontram-se à mesma distância absoluta de Bragança e, contudo, Carção está efectivamente mais perto da cidade do que a vila de Vimioso. Surpreende-nos de entrada o aspecto da Praça de Carção: casas sem qualquer função rural, com primeiro e segundo andar, varandas e janelas de vidrinhos. Sugere-nos a presença de um grupo abastado que não nasceu nos nossos dias. O povo chama à «Praça» o bairro dos judeus. Quer isto dizer que ele reconhece na estrutura da aldeia dois grupos distintos: os lavradores e os «judeus», ou seja, os que vivem da lavoura e os que vivem do comércio. Este último grupo tem uma posição bem definida dentro da aldeia: uma actividade, um modo de vida e uma posição social. É através desta população comerciante que a aldeia tem uma função na região. Se o tema do nosso trabalho foi a posição da aldeia nos seus aspectos inter-relacionados, justifica-se assim que empreguemos a designação de «judeus» no mesmo sentido com que o povo hoje a utiliza1. A importância regional da Praça de Carção: Um grupo numeroso de judeus é constituído por comerciantes ambulantes que, montados na mula, percorrem as aldeias do concelho de Vimioso e o planalto de Miranda a vender azeite, bacalhau, arroz, farinha e, com menos frequência, ovos, peixe e queijo. O local de abastecimento deste comércio ambulante é a própria aldeia de Carção. O seu equipamento comercial é relativamente importante: quatro ou cinco casas de comércio «de tudo», localizadas na Praça. A afluência frequente de camionetas de mercearias e de peixe à Praça de Carção revela também
o volume da actividade comercial da aldeia. Os comerciantes ambulantes também se encontram particularmente ligados ao comércio do azeite. Os seus fornecedores habituais eram as aldeias do Sabor, especialmente Santulhão, Matela e Izeda. Nos últimos decénios, esta rede de abastecimento concentrou-se e os fornecedores do comércio ambulante do azeite são agora grandes comerciantes. São o grupo de armazenistas de Macedo de Cavaleiros, donos de um comércio variado, especialmente azeite; abastecem-nos as aldeias das margens do Sabor. Outro grupo é o dos grandes comerciantes de Carção, que não são, no entanto, grandes produtores de azeite. Compram-no aos pequenos agricultores e, por outro lado, como são donos da prensa da aldeia, as máquinas permitem-lhes engrossar a colheita. Estes grandes comerciantes de Carção são, portanto, fornecedores dos azeiteiros, por um lado, e dos grandes armazenistas de Macedo de Cavaleiros, por outro. A espaçosa Praça é um dos traços mais caracteristicamente definidores de Carção. O bulício da chegada das camionetas ou dos carros dos caixeiros-viajantes que se deslocam a Bragança, passando por Carção e Argozelo, o passo lento das pessoas rondando as tabernas e o «café» retratam uma praça comercial. É o local de trânsito para os fornecedores das lojas de comércio da aldeia. Mas a Praça não serve apenas a sua numerosa população local. A ela ocorrem as pessoas das aldeias vizinhas que vêm fazer compras; dela irradiam os azeiteiros que vão vender os produtos por uma vasta área de clientes consumidores: desde as aldeias em redor até às aldeias do planalto onde a camioneta não chega. A actividade comercial de Carção é antiga. Quando o Nordeste Transmontano não tinha sequer as poucas estradas de hoje, e mesmo anteriormente ao caminho-de-ferro, os comerciantes de Carção iam até ao Pinhão, onde deixavam as mulas. Daí iam ao Porto fazer compras e regressavam à aldeia com os car-
ros carregados de mercadoria. A memória dos actuais azeiteiros está povoada de histórias, ouvidas aos pais e avós, que relatam morosas viagens e carregamentos que periodicamente chegavam à aldeia. Os comerciantes passavam todo o ano nestas viagens e só vinham três a quatro vezes por ano a casa. A mercadoria trazida para a aldeia era vendida a retalho aos pequenos azeiteiros que, montados na mula, a iam revender a outras aldeias do distrito de Bragança. Com a penetração do caminho-deferro em Trás-os-Montes, o local de abastecimento dos comerciantes por grosso de Carção passou a estar mais perto: Bragança ou Macedo de Cavaleiros. Depois veio a estrada. Hoje as camionetas trazem a Carção a mercadoria e os grossistas da aldeia decaíram. Uns saíram para o Brasil ou para as cidades como Lisboa, Porto, Bragança; dos que se mantiveram comerciantes A Praça: Centro Comercial para uma área vasta e símbolo na aldeia da importância do grupo dos Judeus.
(grossistas) a maioria deslocou-se para Macedo de Cavaleiros, particularmente os grossistas de cereais, azeite e lã. Os grossistas de solas e cabedais dispersaram-se mais. Hoje são dois armazéns de solas e cabedais do Porto, mas gente de Carção, que fornecem os sapateiros da aldeia. Macedo de Cavaleiros era um posto central de colecta e de redistribuição de produtos. Com o caminho-de-ferro as condições para lugar central de actividades grossista acentuaram-se. Actualmente, a concentração de grossistas de Carção em Macedo é considerável, localizando-se a maior parte deles na Rua da Estação. São reconhecidos ainda hoje como um grupo distinto da população de Macedo e, contudo, muitos são os que já lá nasceram. «Para cá do Marão mandam os que cá estão. Menos em Macedo onde mandam dos de Carção». Permaneceram na aldeia meia dúzia de
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comércio XX (1950/1960)
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34 grossistas que souberam adaptar-se. Os seus herdeiros são hoje os donos das lojas de comércio da Praça. A decadência dos azeiteiros foi menos brusca, visto que a sua função ainda tem razões para persistir. É preciso considerar as condições de acessibilidade, a estrutura das aldeias e as relações cidade-campo no Nordeste Transmontano para situar o papel do comércio ambulante num mundo rural à margem da vida de relação. Contudo, é uma actividade adaptada que se apresenta cada vez menos lucrativa. Mantém-se porque os azeiteiros não podem trocar este modo de vida pelo outro – a lavoura. Com a evolução dos meios de transporte, a vida comercial de Carção reduziu-se. Como era de esperar, os grossistas foram os mais sensíveis a esta evolução. É por isso que o povo diz que «já não há judeus». Referem-se aos grandes comerciantes que deixaram a aldeia, aos donos das prestigiosas casas da Praça, construídas no princípio do século. Elas atestam a importância de um grupo e a função comercial da aldeia. Entretanto, a posição de Carção alterouse, mas permanece, contudo, como lugar central de funções comerciais para uma vasta área. A estrutura da aldeia: Vimos que a Praça tem uma função comercial na região. Ela não podia deixar de ser «bairro» distinto dentro da aldeia. Com efeito, há um absoluto contraste entre a Praça e o Bairro de Cima, ou seja, entre o bairro dos judeus e o dos lavradores. No Bairro de Cima, apinhado sobre a rocha, a variedade de casas é grande. Desde as habitações mais simples – a casa com a porta da loja do porco debaixo da escada – até à casa de varanda com alpendre e grandes portadas que escondem várias lojas de gado. Se a variedade de tipos de casa rural atesta diferenças de fortuna entre os lavradores, o contraste entre a Praça e o resto da aldeia denuncia dois tipos distintos de viver: o comerciante e o agricultor. Também na aldeia se sente o contraste entre os vagares do azeiteiro regressado a casa – pequenos grupos discutindo negócios deixam-se ficar pela Praça – e o dia-a-dia programado e silencioso do lavrador. Quer isto dizer que vão fabricando apenas uma jeirinha para obter pa-
lha para a mula e estrume para a cortinha donde colhem horta e um pouco de pão para os gastos da casa. Muitas vezes colhem o pão na leira do vizinho que recebe, em troca, a terra estrumada para a sua sementeira. Outras vezes, pedem emprestada a mula a outro azeiteiro, para que a parelha possa arar um exíguo pedaço de terra. Como diz o povo, o judeu não pega na enxada, quer dizer, não faz da terra o seu modo de viver. Procura apenas obter dela um mínimo para comer durante o ano e vive do comércio. Persistem hoje os vendedores ambulantes. Para se fazer hoje uma ideia da importância relativa do grupo dentro da aldeia, procedemos em Agosto de 1968 a um inquérito directo. A aldeia tinha 358 fogos (1310 habitantes), segundo os sensos de 1960. O inquérito abrangeu apenas 264 fogos. Cerca de 27% eram tidos como «judeus». Destes, 50% eram vendedores ambulantes, tanto azeiteiros como comerciantes de peixe, ovos, fruta, etc., sendo os restantes artífices (sapateiros, ferreiros, carpinteiros, albardeiros, ferradores, alfaiate, barbeiro). Com efeito, o grupo de artífices é relativamente numeroso. Satisfazem a população local e a das aldeias vizinhas que frequentemente vêm fazer compras a Carção. Os seus produtos são também vendidos nas feiras regionais. Os agricultores correspondiam a 45% da população da aldeia, dos quais pouco menos de um terço eram lavradores de vacas; os restantes lavram com mulas, jumentos ou machos. Os senhores da aldeia são meia dúzia de grandes negociantes. Herdeiros do comércio dos pais – as casas da Praça –, foram-se tornando progressivamente donos de vastas propriedades rurais. É nestas que se observa o único sinal de mecanização e, por outro lado, são trabalhadas por jeirantes ou gente sem terra que habita na aldeia. O comércio da aldeia – quatro grandes casas – e as únicas indústrias agrícolas – duas prensas hidráulicas e uma moagem – pertencem a indivíduos deste sector da população. Já atrás fizemos referência ao facto de a propriedade destas indústrias agrícolas favorecer a concentração da actividade comercial grossista de Carção. O grupo de jeirantes na aldeia é, de facto, numeroso. Corresponde a cerca de 20% da população total da aldeia. A grande maioria dos jeirantes utiliza terras a meias ou «pelo estru-
Bairro de Cima: bairro de agricultores me». Mas vivem essencialmente da jeira: os grandes senhores de Carção e os proprietários da vila – Vimioso – dão-lhes trabalho todo o ano. No Verão formam grupos de segadores. Descem a Mirandela para fazer a segada na última semana de Maio. Em Junho, voltam à aldeia para colher o pão e vão segar para as aldeias vizinhas. Em Julho, deslocam-se a terras de Miranda. Dantes, deslocavam-se também a Alcañices e Zamora (Espanha). Há uns anos para cá, o número dos grupos e o percurso tem-se reduzido, visto que os jeirantes constituem a maioria dos imigrados em França. A segregação entre agricultores e azeiteiros era completa há apenas quarenta anos: bairros distintos, casamentos exclusivos dentro do grupo, forte animosidade entre uns e outros. Só de há vinte anos para cá é que se vão tolerando os casamentos entre elementos dos dois grupos. Não deixam de dar azo a galhofa, manifestações jocosas e cortejos barulhentos, com chocalhos, por parte da rapaziada judia, dirigidos ao noivo que casou com a filha de lavrador.
O lavrador significa para o judeu uma actividade rotineira, penosa e inferior. Não falando já do grossista, o nível económico do azeiteiro era tão superior ao do lavrador. Acrescentavase ainda o prestígio de uma «actividade mental» que permitia ter lucros, ver outras terras e ter largas férias. O lavrador sentia a sua posição como inferiorizante em relação àqueles que viviam do negócio, da «cabeça». Os nomes das ruas transversais à Praça lembram o prestígio dos grandes judeus que saíram da aldeia. Hoje, a distância económica entre o azeiteiro e o lavrador não existe. Contudo, a sua separação é forte, se não progressiva. O preconceito de oposição de uma vida rotineira e dura à da «actividade mental», que é o comércio ou ofício, mantém-se. Mas, mais do que isso, os judeus ambicionaram outro estrato social e os filhos estudaram. Há cerca de 50 estudantes na aldeia, filhos de judeus. Frequentam a Universidade de Coimbra uns, outros o Magistério, e os cursos técnicos em menor número. Regressados a casa em Agosto, os estudantes
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36 constituem um grupo. Mesmo quando os judeus e lavradores não estão distanciados pelo rendimento económico, mas pelo significado social de um modo de vida, a segregação dos filhos – uns estudados, outros continuadores da vida da lavoura dos pais – reforça a segregação. São grupos distintos que nas suas relações se ignoram mutuamente. A Senhora das Graças, no mês de Agosto, é uma festa de judeus: devese à iniciativa e organização dos estudantes; conta com avultadas contribuições dos judeus, principalmente daqueles que hoje se encontram no Brasil ou em qualquer cidade do país. Perspectivas de alteração da estrutura da aldeia: Estimou-se em 200 o número de emigrados que estavam fora de fronteiras, especialmente França2. São principalmente jeirantes, lavradores que deixaram a sua casa entregue à mulher e filhos e, em número reduzido, os azeiteiros de pequeno comércio, cada vez mais incerto. Os emigrantes vêm a casa no mês de Agosto e pelo Natal. Com o dinheiro que trazem compram casas. O fenómeno é vulgar em aldeias portuguesas: vão surgindo grupos de casas novas, bairros de «franceses», na periferia da aldeia. Mas, a área construída em Carção não cresce por este processo tentacular. Os «fran-
ceses» querem comprar as boas casas do centro da aldeia e é assim que «os lavradores já se vão chegando à Praça». Quando os «franceses» partem, depois das férias de Verão, esperase um ano para outra oportunidade de venda. Toda a gente sabe que há uma única época do ano em que é possível obter um bom preço pela sua propriedade. O dinheiro permitiu aos lavradores comprar casas que ocupam dentro da aldeia uma antiga e importante posição central: a Praça. É o atestado mais imediato de uma ascensão. Uma pergunta fica suspensa. Em que medida é que o desejo de equiparação vai mais longe? Psicologicamente, o exemplo que têm na própria aldeia – os estudantes que reforçam a distância entre dois grupos – seria um incentivo. Contudo, os exemplos são ainda insignificantes para tentar qualquer conclusão”3. Recolha: Paulo Lopes ––––––––––
Dão-nos informações sobre a antiguidade de uma população judaica ocupada em ofícios: Francisco Manuel Alves, reitor de Baçal, Memórias Arqueológicas do Distrito de Bragança, vol. V, Coimbra, 1925; F. M. Alves e A. Martins Amado Vimioso, Notas Monográficas, Coimbra, 1968; J. L. Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. V, Lisboa, 1967. o nosso ponto de vista, no entanto, foi o do significado socio-económico de um grupo. 2 Estimativa feita em 1968 3 Paula Bordalo Lema, Revista Portuguesa de Geografia, Universidade de Lisboa – Instituto de Alta Cultura, Vol. VII, nº 3, Lisboa, 1972. 1
João Américo Gonçalves Andrade Informação
Foi atribuída ao Notário, Dr. João Américo Gonçalves Andrade, licença para instalação de Cartório Notarial, exercendo a actividade na Avenida Sá carneiro, 11 (antiga sede da Caixa de Crédito Agrícola), em Bragança, ficando a seu cargo o acervo do extinto cartório Notarial.
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Cultura do Linho em Carção, na década de 50 Desconhece-se quando e onde o homem terá praticado pela primeira vez a cultura do linho. De acordo com os dados mais recentes da investigação arqueológica, pode-se afirmar que o cultivo desta planta herbácea já era praticado pelo homem pré-histórico. Aludimos, apenas, a achados em território actualmente português. Nalgumas jazidas da província de Almira que remontam a 2.500 anos a.C., encontraram-se cápsulas de linhaça. Outro vestígio provém de uma sepultura, situada numa propriedade junto das Caldas de Monchique no Algarve, onde se recolheu um pequeno pano de linho, também de 2.500 a.C. Esta sepultura data da primeira Idade do Bronze Mediterrâneo Peninsular. Estes factos, provam a existência do cultivo do linho, mas também indicam, pelo perfil do seu fabrico, um longo desenvolvimento anterior. Ao compulsarmos a Bíblia Sagrada, verificamos várias referências ao vocábulo latino texere, que significa traçar, tecer, tramar, bem como às várias utilizações dos têxteis desde o sagrado ao profano. No Livro do Êxodo, encontramos referência ao facto de, há cerca de 2.500 anos a.C., o linho ser cultivado no Egipto e da importância deste no quotidiano e na subsistência da população – “O granizo destruiu por todo o Egipto, quanto havia nos campos e quebrou as árvores (...). O linho e a cevada tinham sido destruídos porque a cevada estava já com espiga, e o linho em flor.”1 A perda desta cultura é descrita como uma desgraça, tal a sua importância na vida da população. Ainda no Antigo Testamento, encontramos referência à utilização do linho no espaço Sagrado, como forma de glorificar o Altíssimo. O seguinte exemplo é bem elucidativo: “Construirás a seguir o Átrio do Tabernáculo. Do lado meridional, o Átrio terá cortinas de linho retorcido num comprimento de cem côvados formando um lado.”2 São ainda feitas referências às vestes sacerdotais, “estas utilizarão o oiro, a púrpura violácea, a púrpura escarlate, a púrpura carmesim e o linho fino. O Efod será feito de oiro, de púrpura violácea, de púrpura escarlate, de púrpura carmesim e de linho retorcido traba-
lhado por um artista.”3 Não menos importantes são as referências às vestes de Aarão – “Farás a túnica de linho, a tiara também de linho e o cíngulo será bordado. Para os filhos de Aarão farás igualmente, túnicas, cíngulos e farás tiaras como sinal de dignidade e como ornamento. Revestirás com elas o teu irmão Aarão e os seus filhos; ungi-los-ás, investi-los-ás e consagrá-los-ás para que sejam sacerdotes ao Meu serviço. Farás, também, calções de linho vulgar, a fim de lhes cobrir a nudez, desde os rins até às coxas.”4 Convém sublinhar ainda que, as próprias vestes de Cristo eram de linho sem costuras. Face ao exposto, é importante compreender que as sociedades anteriormente descritas, regeram-se sobre o respeito dos valores transcendentais e comunitários e daqueles que não se medem em dinheiro mas em beleza. O linho é-nos revelado como símbolo de dignidade, desinteresse, grandeza perante a adversidade, alegria, coragem física, sustento do corpo e integridade moral. Desde a Antiguidade que o linho permanece um dos mais importantes têxteis. A religião perdeu influência sobre os homens e desde há décadas os mitos e as religiões parecem superadas pelo ateísmo. No entanto, o linho continua a ser símbolo e um importante rito milenário da elevação e transcendência bem como um importante meio de subsistência de muitas populações. Neste contexto e não esquecendo o objectivo que nos move – a firme vontade de dar testemunho sobre o nosso percurso, as nossas memórias – tentaremos explicar, duma forma tão sucinta quanto possível, como se processava a cultura do linho em Carção, na década de 50, desde a respectiva sementeira até às bonitas toalhas brancas, como a alma sem pecado, dos altares da nossa igreja e das mesas dos lavradores. Na casa de meus pais, tal como em quase todas as casas dos lavradores de Carção, o linho era tratado através de processos tradicionais, desde a sementeira até à tecelagem, constituindo uma preciosa tradição legada de pais para filhos. Assim, ao longo do seu “martírio”, o linho
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38 passava por várias fases designadas por “tormentos”.
A Sementeira
Esta tinha lugar na primavera, fazendo-a meus pais na horta do Freixo, na encosta nascente de Cabeça Gorda. Quando os caules atingiam mais ou menos quinze centímetros, a leira do linho era regada pelo pé. Consistia esta rega, em abrir o orifício do poço de água, o qual ficava a montante da referida plantação e, correndo o precioso líquido pelo sulco aberto até chegar à referida leira, onde era derramado livremente por todo o terreno da plantação, ficando este completamente alagado, como se de um campo de arroz se tratasse. Havia também o cuidado de o mondar, ou seja, arrancar todas as ervas daninhas e estranhas à referida plantação. Normalmente, em fins de Julho, altura em que os caules atingiam cerca de 90/100 centímetros de altura, e se encontravam quase maduros, procedia-se ao respectivo arranque. Meus pais, costumavam transportá-lo em pequenos feixes para casa e estendiam-no sobre “mantas de farrapos”5, no horto que possuíam contíguo às traseiras da sua casa. Aqui era colocado em forma de gavelas, para acabar de secar. Era sempre recolhido ao fim da tarde, para não apanhar a humidade da noite, repetindo-se a operação dia após dia até ficar totalmente seco e as cápsulas se abrirem naturalmente e libertarem as sementes ajudas com leves sacudidelas pelas mãos habilidosas de minha Mãe. O Curtimento Depois de bem seco e totalmente desbagado, era transportado novamente em pequenos feixes os molhos, no dorso de animais possantes, nomeadamente asininos ou muares, para o Rio Maçãs, através dos sinuosos e serpenteados carreiros da íngreme ladeira de Pena Taínha. Chegados ao referido rio, colocávamos os respectivos molhos no açude do moinho de Pena Taínha, também naquele tempo conhecido pelo moinho do Ramos, sobre os quais colocávamos pedras, de modo a evitar que a corrente arrastasse os mesmos. O linho ficava nesta situação mais ou menos uma semana, durante a qual se desenvolvia uma espécie de fermentação e por
meio desta, naturalmente, se dava a separação dos elementos fibrosos dos lenhosos. Passado este período, o linho era retirado da água. Abria-se a base dos feixes e colocavam-se em pé, uns ao lado dos outros, em forma de pirâmide, para arejarem melhor até à secagem total, a fim de serem transportados novamente para casa. A Maçagem Seguia-se agora o “tormento” da maçagem. Este processo, era a primeira fase da preparação das fibras, ou seja, a separação das fibras lenhosas das fibras têxteis. Consistia em maçar o linho com um maço, ou maça (Fig.1)6, como nós lhe chamávamos, a qual era feita de madeira de carvalho, por ser naturalmente rija e pesada. Era feita em forma cilíndrica, com um cabo talhado na própria peça, numa das extremidades.
Fig. 1 - Maça
Começava-se esta operação, através de pancadas constantes com a referida maça, por eliminar as raízes dos respectivos caules. Continuava-se a maçagem, desde a base dos caules até à outra extremidade e a cada pancada que se efectuava, com a outra mão virava-se o molho de linho, para evitar maçar no mesmo sítio e assim não cortar as respectivas fibras têxteis. Esta operação repetia-se várias vezes, ao mesmo tempo que se ia sacudindo, até ficar completamente limpo das arestas e das fibras mais frágeis ou curtas. A este “tormento” seguia-se outro. A Espadelagem A espadelagem do linho, era a segunda fase da preparação das fibras. Era normalmente levada a efeito com o auxílio de dois utensílios.
Fig. 2 - Espadela
O cortiço e a espadela. A espadeladeira, mulher que espadelava o linho, colocava o cortiço em pé, à sua frente. Empunhava a espadela (Fig. 2)7, em forma de cutelo, a qual, ao contrário da maça, era feita de madeira leve, normalmente de cerejeira ou amieiro. Com a mão esquerda, a espadeladeira, segurava a estriga pelo meio, de modo a que metade da mesma ficasse pendente do bordo superior e para fora do cortiço (Fig. 3)8, e a outra metade para dentro do mesmo. Começava então, em movimentos ritmados e constantes, de cima para baixo a espadelagem das estrigas, para libertar as fibras têxteis das palhas fragmentadas pelas operações anteriores. A cada uma ou duas espadeladelas, a espadeladeira com a mão esquerda virava a estriga, para espadelar a mesma de todos os lados uniformemente. Quando a parte que inicialmente ficara pendente do lado de fora do cortiço estava devidamente espadelada, a espadeladeira invertia agora a posição da estriga, a fim de espadelar a parte que inicialmente ficara pendente para o interior do cortiço. No Bairro de Cima, onde nasci, estas duas operações eram levadas a efeito em grupo. Juntávamo-nos defronte da casa de meus pais à porta da “Tia” Antónia “Chencha”, onde havia uma calçada basáltica sobre a qual maçávamos o linho. A alma do grupo era a “Tia” Isabel “Revoreda”. Que jeito ela tinha para espadelar! Ao movimentar agilmente a espadela, movia o corpo em constantes movimentos franzinos, ao mesmo tempo que, cantarolando alegremen-
Fig. 3 - Cortiço
te, entusiasmava o grupo e assim se tornava mais suave aquela enfadonha tarefa. Quando se “zangava”, nomeadamente com alguma estriga emaranhada, lá saía o palavrão castiço da terra. No entanto era cuidadosa, pronunciava-o no plural, no feminino e acrescentando-lhe um “v” no meio, amenizando deste modo, o efeito: “Carvalhas te recosam c’ambaranhada stas”. Jamais poderei esquecer tão típicos quadros da nossa Aldeia.
A Assedagem
Concluída a espadelagem, surgia desde logo outro “tormento” – a assedagem – ou seja, a última fase deste processo artesanal, através do qual se separavam as fibras mais longas, o linho propriamente dito, das fibras mais curtas, a estopa. A assedagem, era levada a efeito pela assedadeira com o auxílio, naturalmente do sedeiro. Este era constituído por uma peça de madeira (tábua) rectangular com cerca de 80 cm de comprimento, em cujo centro se fixava um cepo revestido de chapa, onde se encontravam implantados dentes de aço pontiagudos, cuja secção era redonda ou paralelepípeda. Nos sedeiros de secção redonda (Fig.4)9, a metade esquerda desta era constituída por dentes pontiagudos mais grossos e afastados uns dos outros a qual era utilizada para a primeira fase da assedagem das estrigas e a metade direita, de dentes mais finos e juntos, destinava-se à última fase da assedagem. Por sua vez, nos de duas secções de dentes pontiagudos (Fig.5)10, uma era constituída também por dentes mais grossos e afastados e a outra possuía os dentes mais finos e juntos, cujas funções eram as acima descritas, efectivamente. O sedeiro que meus pais possuíam era de sec secção redonda e a respectiva madeira parecia preta, tão enegrecida se encontrava devido aos longos anos da sua existência, o qual havia sido legado entre várias gerações. Gostaria e, tudo fiz para incluir neste modesto trabalho a sua fotografia, mas os meus intentos não tiveram êxito. Reproduz-se no entanto a fotografia de outro semelhante (Fig.4) o qual pertenceu à aldeia de Malhadas do Concelho de Miranda do Douro e hoje se encontra no Museu de Etnologia. A abertura, em forma de meia lua, que
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40 se vê numa das extremidades, servia para a assedadeira, quando assedava as estrigas em pé, com o sedeiro ao alto e paralelo às pernas, ali introduzir um dos pés e assim firmar o referido sedeiro. Esta operação era, mais uma vez, levada a efeito pelas incansáveis mulheres. Na maior parte das vezes e na posição de sentada, a assedadeira, instalava o sedeiro imediatamente à sua frente, aproximando a parte superior do mesmo ao peito, de modo a que as mãos ficassem paralelas à secção de dentes pontiagudos.
Fig. 4 - Sedeiro de Secção redonda
Fig. 5 - Sedeiro de duas Secções redondas paralelepípedas
Pegava na estriga, desatava as suas extremidades e de imediato enrolava uma no dedo indicador da mão direita e sacudia-a energicamente para a endireitar. Em seguida, passava-a cuidadosamente várias vezes, primeiro pela metade direita da secção de dentes mais ralos e afastados e depois pela metade esquerda da referida secção, de dentes mais finos e mais juntos em movimentos leves. Com a mão esquerda acompanhava e amparava a estriga e assim tal como a uma cabeleira fulva ao vento, a “penteava” (assedava), primeiro desde o meio da estriga para uma das extremidades e em seguida a outra metade. É com imensurável saudade, que recordo e retenho na minha memória, a imagem de minha Mãe, debruçada sobre o sedeiro, qual paciência de Santa e mãos de fada experiente, que tão perfeito trabalho realizavam! E os “tormentos” do linho continuavam... A Fiagem O “tormento” da fiagem, tarefa que mais uma vez cabia às laboriosas mulheres, era desempenhada no intervalo de outras tarefas não menos cansativas. Muitas vezes as mulheres fiavam à noite, ao longo do serão e à luz da
candeia de azeite, depois de um longo e árduo dia de trabalho no campo e em casa. Não raras vezes, era vê-las pastorear o rebanho, guardando manadas de vacas (boiadas) e a caminho da horta, fiando as suas estrigas e manelos. Para executar esta tarefa, era apenas, necessária uma roca e respectivo fuso (Fig 6)11. Paciência e arte não lhes faltavam, predicados que aprendiam em tenra idade e transmitiam às novas gerações com toda a mestria e saber. Lembro-me perfeitamente, de na década de 50, ser eu próprio a fazer as rocas para minha Mãe e minhas irmãs fiarem o linho e a lã. Na Primavera, quando a seiva já brotava nas plantas, cortava rancas (varas direitas) de castanheiro. Na parte superior da ranca, a uns 15 cm abaixo do respectivo topo, abria uma incisão circular, onde apertava um fio, repetindo esta operação a 15 ou 20 cm mais a baixo. Molhava esta parte da vara e em seguida levava-a a lume brando, a fim de a amolecer.Com uma navalha de ponta cortada, própria para enxertia, abria uma fenda longitudinalmente entre os dois ceptos, repetindo esta operação no lado oposto, formando assim, quatro tiras (fugas) iguais. Com muito jeito, colocava uma rodela de cortiça ou de madeira, também longitudinalmente numa das referidas fendas. Com o auxílio dos dedos e muita habilidade, ia movendo a rodela de modo a arquear as fugas, até que a mesma ficasse transversalmente no centro daquelas. Estava concluído o roquil ou bojo da roca.
Fig. 6 - Roca e Fuso
A parte superior ao bojo (a torre), era enfeitada com vários desenhos simétricos, feitos com a citada navalha, tais como losangos, triângulos, recortes circulares, etc. Na haste da roca, ou parte inferior da vara, abria na respectiva casca, duas fendas paralelas em forma aspiral. Retirava essa faixa da casca da vara. Em seguida levava-a a lume brando, a fim de torrar a faixa da vara descascada. Finalmente retirava a outra faixa de casca e assim ficava a roca ornamentada com uma faixa branca e outra paralela, acastanhada pela acção do fogo. Estes desenhos eram a gosto e conforme a imaginação de cada um. Havia rocas cujo bojo era constituído por seis ou mais fugas, mas a execução destas era mais difícil. O fuso era constituído por uma haste de madeira em forma de cone alongado. Tinha na base um pequeno disco fixo e na parte superior uma ranhura em forma heleocal onde a fiandeira enrolava o fio, para proceder à torção de nova braçada do mesmo. A fiandeira segurava o manelo de linho ao bojo da roca. Enfiava a parte inferior da mesma na cintura, do lado esquerdo, amparando-a com o respectivo antebraço. Com os dedos polegar e indicador esquerdos, puxava as fibras do linho e enrolava-as com os referidos dedos. Com o auxílio da saliva humedecia o fio, esticando-o para que ficasse uniforme. O fio assim confeccionado, ia sendo enrolado no fuso com os dedos polegar e indicador da mão direita formando assim a respectiva maçaroca. Passagem do fio das maçarocas para as meadas As maçarocas do fio fiado na roca e respectivo fuso eram colocadas em meadas através do sarilho. Em Carção, na década de 50, utilizava-se o sarilho igual ao representado na (Fig.7)12. Como podemos observar era constituído em madeira, por quatro braços em cruz com uma pequena peça transversal na ponta dos respectivos braços. Tinha um eixo horizontal, com uma manivela numa das extremidades e elevado sobre duas colunas paralelas. A base era constituída por uma grade em forma de “T” duplo. O fuso, com a maçaroca era colocado transversalmente na ranhura de dois bornos e o fio ia prender
Fig. 7 - Sarilho
numa das peças transversais da referida cruz do sarilho. Com o auxílio da manivela procediase a movimentos circulares da cruz do sarilho fazendo passar o fio da maçaroca, do fuso (que também se movia no mesmo sentido), para as respectivas meadas.13 Branqueamento do fio O linho passa agora por dois processos de branqueamento. O primeiro, branqueamento das meadas, consistia em batê-las fortemente sobre uma pedra do lavadouro, ou numa pedra junto do poço na horta. Eram batidas, naturalmente num movimento de cima para baixo apenas com água, sem usar qualquer tipo de sabão. A esta operação chamava-se a deceiva. Em seguida procedia-se à barrela, ou seja, coziam-se as meadas em caldeiras de cobre sobrepostas nas trempes, que eram constituídas por um arco de ferro sustentado por três pés sobre o qual se colocavam as referidas caldeiras de cobre. Também se costumava pendurar as caldeiras das Lás. As meadas eram então, empapadas em água e cinza, a mais branca possível, normalmente utilizava-se a cinza14 de vides. As referidas meadas, eram emborralhadas na calda resultante das cinzas e da água, tendo-se o cuidado em verificar se todos os fios ficavam bem empapados. Quando a quantidade de meadas era menor, ferviam-se em grandes potes de ferro. Depois de bem empapadas, as meadas eram mergulhadas em água a ferver, calcandoas com uma colher de cabo longo. No final do processo juntava-se-lhe cinza seca e bocados de sabão juntamente com algumas ervas. Mantinha-se a água em constante fervura, acrescen-
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42 tando-a quando necessário para compensar a que se evaporava. Esta operação demorava cerca de 24 horas. As meadas eram retiradas findo este tempo e depois da água estar fria. Eram então, novamente lavadas com água e sabão, esfregando-as na pedra, metendo-lhe os braços por dentro e esticando-as, batendo-as e sacudindo-as. No final deste processo, procedia-se a uma segunda barrelada. As meadas eram colocadas num cortiço ou num cesto de verga de tecido bem apertado, às fiadas e cobertas com um pedaço de lençol sobre o qual se deitava uma camada de cinza peneirada, deitando por cima desta, água a ferver, ao mesmo tempo que se mexia a cinza. Esta operação só terminava quando a água, depois de atravessar as meadas, saía por baixo do barreleiro15 à mesma temperatura que se deitava no mesmo. Em seguida abafava-se o barreleiro, para manter o calor no mesmo durante algum tempo. Quando arrefecia, repetia-se a operação sucessivamente, durante três dias. Terminada a barrela, as meadas eram retiradas dos respectivos recipientes, lavadas, endireitadas e postas a corar ao sol durante o dia, sendo sempre recolhidas à noite. Este coramento demorava cerca de quatro dias de cada lado das meadas. Terminada mais esta etapa são finalmente lavadas e postas a secar. Durante a secagem, penduradas, em canas ou varas, as meadas tinham tendência a se contrair, pelo que às vezes era necessário esticá-las com os braços e no dia seguinte pendurá-las pela outra extremidade. Depois de devidamente secas, metiam-se as mãos por dentro esticando-as bem. Através de uma força desencontrada dos braços, enrolavam-se sobre si, a meio, fazendo passar um dos extremos da meada por dentro do outro e nesta posição se guardavam em cestos até serem dobadas. A Dobagem16 Para passar o fio das meadas para novelos utilizava-se a dobadoira (Fig.8)17 Este utensílio especial era constituído pela base, uma caixa aberta em forma quadrangular ou rectangular, a qual servia para colocar os novelos, para além de suportar toda a armadura. Do centro dessa base, partia um eixo vertical fixo, que atravessava os quatro braços em cruz, duplos e parale-
Fig. 8 - Dobadoura
los, dispostos na horizontal, distanciados de 40 a 50 cm. Os quatro braços da dobadoira, são ligados por quatro prumos nas respectivas extremidades, à volta dos quais se enrola a meada. Como se pode observar na referida figura, os braços superiores são ligeiramente mais pequenos do que os inferiores e isto para facilitar a colocação das meadas à volta dos prumos. Imediatamente sob os braços superiores e à volta do eixo central, há como que um apoio, para evitar que a armadura constituída pelos quatro braços e quatro prumos descaia. As extremidades dos braços inferiores, exteriores aos prumos, servem para apoio das meadas e evitar que as mesmas caiam da armadura. Para proceder à dobagem coloca-se a meada nas mãos, “ desfaz-se a volta, estica-se entre os braços, acertam-se e endireitam-se os fios, e coloca-se na dobadoira; parte-se e desenrolase o fio do costal grande, procura-se o costal pequeno, desata-se a ponta da meada, e começa-se a enrolar o fio em torno de um pequeno elemento sólido – bugalho, ponta de carolo de milho, etc., que se segura na mão esquerda (e que constitui o núcleo central do novelo), passando através de um puidouro – bocado de pano - seguro entre os dedos polegar e indicador da mão direita, não só para protecção desses dedos contra o atrito, mas também para ajudar a eliminar pequenos fiapos do fio”18 Convém referir que em Carção, naquele tempo, nem todas as casas tinham todos os utensílios que vimos descrevendo pelo que, se procedia ao empréstimo dos mesmos, de acordo com o espírito comunitário da aldeia.19
A Tecelagem
Na década de 50, existiam em Carção vários teares. As mulheres que não se dedicavam às tarefas do campo20, aprendiam a tecer, costurar e a confeccionar todo o tipo de vestuário como camisolas, meias, “meotes” ou “meiotes”, estes destinados aos homens. Aprendiam, ainda, a arte do crochet, da renda e do tricot. Entre as múltiplas e diversificadas peças, destaca-se a beleza e abundância de motivos das colchas de algodão.21 Actualmente, em Carção, existem cerca de uma dúzia de tecedeiras que, continuam a utilizar as técnicas milenares de trabalhar o linho. No entanto, vêem-se obrigadas a recorrer à utilização de produtos industriais para colmatar a falta de matérias-primas naturais como o linho da “terra”, que se deixou de cultivar devido, naturalmente, à diversificação da aldeia. Recuemos ao tempo em que a tecedeira preparava o tecido com as suas próprias mãos. Eram colocadas, no tear manual, duas séries de fios: “uns paralelos entre si que vão do princípio ao fim da peça (teia ou barbim) e outros que ficam perpendiculares à teia e que constituem a trama. No tear manual ordinário ou tear de pisos22 os fios da teia são esticados horizontalmente entre dois cilindros ou órgãos, um colocado na retaguarda, onde estão enrolados os fios da teia e outro na parte da frente, onde esse enrola o tecido já feito. Os fios da teia passam nos liços das perchadas ou malhas e, quando a teia está montada no tear, esses fios ficam paralelos e à mesma distância uns dos outros. A tecelagem é feita pelo levantar e baixar das perchadas que suportam os fios da teia; assim, para receber a trama, umas perchadas levantam-se enquanto outras baixam, seguindo os fios da teia esses movimentos. Deles resulta um afastamento ou separação dos fios das duas sérias da teia, que se chama a “cala”, e então nesse intervalo faz-se passar a lançadeira, na qual está o fio que vai formar a trama e que se desloca perpendicularmente aos fios da teia. Os fios da teia passam depois entre os dentes de um pente fixado num batente móvel, com um movimento oscilatório em torno de um eixo, que é accionado pela mão da tecedeira. O pente faz depois da passagem da lançadeira o aperto da trama contra o tecido já feito; e, então, de novo pela acção
dos pedais que comandam as perchadas, estas mudam de posição, mudando como se disse, a posição dos fios da teia fazendo-se a passagem da lançadeira em sentido contrário ao da passagem anterior. O pente faz de novo o aperto e as operações repetem-se sucessivamente. O tecido passa depois pela mesa ou peito defronte da qual está a tecedeira e vai-se enrolando no cilindro da frente do tear por um avanço comandado manualmente pela tecedeira.”23 Quando analisamos as obras produzidas pelas tecedeiras, através do modus operandis, anteriormente descrito, verificámos que as colchas, os tapetes e outras peças de tecelagem de carácter popular ou de sabor requintado, pequenas e “rústicas” ou marcadas por complexa composição, impressionante no seu grande campo ou na opulência do seu signo nunca esquecem no seu desenho a capacidade criadora e recriadora do nosso Povo. No colorido dos tapetes, pode dizer-se que se empregaram todas as cores do espectro solar e, ainda, de cada uma, vários tons. Em contraste com este requinte teciam-se também mantas de farrapos, as quais serviam para passadeiras ou secar os legumes no verão, tais como o feijão, grão de bico, feijão frade (chícharos), ornamentar as albardas e molidas de animais e até para revestir colchões, designados por enxergas. As produções podem apresentar a cor natural dos materiais usados, serem tingidas com colorantes naturais ou, independentemente disto, serem decoradas através do bordado de desenhos geométricos e naturalistas. O linho de melhor qualidade tem aplicações diversas ligadas ao uso doméstico e ao culto religioso, nomeadamente na confecção de lindas e alvas toalhas decoradas com rendas e franjas. A tecelagem à semelhança de todo o artesanato tradicional ainda não perdeu o cariz utilitário que desde sempre lhe esteve subjacente, materializando-se em objectos úteis e funcionais, mas também em peças, mais ligadas aos actos festivos e à decoração, reforçavam a sua expressão estética. Podemos, mesmo afirmar que as peças de tecelagem marcavam o ritmo da vida humana. Por exemplo, as toalhas de linho, de diferentes tamanhos, destinavam-se aos altares da Igreja matriz e das várias capelas; ou-
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Fig. 9 - Esquema de um Tear28
E – órgão onde se enrola a teia K – Pesos (ou Pilão duplo) bb’- Varetas (a partir das quais se cruzam os fios da teia) RR’-Roldanas (no interior dos carretos) LL’ – HH’ - Perchadas CC’-Cordel que liga as roldanas às perchadas MM’- Pedais (ou premedeiras) F – Teia ou barbim D – Lançadeira B - Pente. I - Batente do pente G- Tempereiros (para esticar o tecido) T- Órgão onde se enrola o tecido pronto
tras, de menores dimensões, eram utilizadas no sacramento do baptismo, primorosamente confeccionadas pelas madrinhas que as ofereciam aos seus afilhados. Outro uso habitual é nas mesas das salas de jantar bem como para resguardar o pão (fogaças), guardado em caixas de madeira. Toalhas de linho cru com monograma eram utilizadas como toalhas de rosto.24 Recordemo-nos, ainda, que o “homem vestia calças de burel ou de estopa e camisa de linho ou, igualmente de estopa. Os meotes, as meias e camisolas agasalhavam, homens e mulheres, durante os dias frios de Inverno. Os xailes de lã eram peça importante na indumentária de trabalho da mulher, enquanto que os de linho eram mais apropriados ao trajar de Domingo e de festa. Porém, estes figurinos foramse convertendo em relíquias usadas, de quando em vez, em festas e romarias ou noutras manifestações mais ou menos folclóricas.”25 A tecelagem foi uma actividade de primordial importância económica para Carção. Ela completava os fracos rendimentos de um povo que praticava a agricultura de subsistência, a pastorícia e que se dedicava a uma ténue indústria de calçado, também manual. Podemos então concluir que, a lã, o linho, bem como os produtos derivados destas matérias-primas (colchas, tapetes, toalhas…) constituíam um elemento importante no equilíbrio económico das famílias carçonenses da década de 50. Uma última nota impõe-se. A arte da tecelagem foi de tal modo importante em Carção que, uma das peças do tear – a lançadeira – foi incluída como peça heráldica no Brasão de armas da nossa milenar freguesia. A este propósito, é de toda a acuidade recordar o publicado em Diário da República: “Chefe – Lançadeira de Ouro com enfiadura de azul”26, sobreposto, naturalmente, na parte superior do “escudo”,
que na simbologia das respectivas peças heráldicas, simboliza o “artesanato local.”27 Os teares de pedais, de madeira robusta, apresentam-se em forma de quadrângulo, “tem quatro prumos ou pernas – as pernas da frente e as pernas de trás – feitas de grossos barrotes, geralmente de madeira de castanho, de secção quadrangular, de menor secção na metade superior, onde entram as mesas – peças fortes, ou em jeito de longarinas a descair de trás para a frente, duas de cada lado, uma em baixo e outra em cima; no alinhamento das mesas situam-se duas travessas – os capitéis – enfiados nos topos superiores da pernas, e que servem de base aos dispositivos mecânicos do pente e dos liços. Na extremidade das mesas, atrás, apoiam os pombos do órgão da urdidura, onde se fixa a roda, e em que está enrolada a urdidura, que se vai desenrolando à medida que a tecelagem adianta; na outra extremidade, e um ponto mais recuado, já do lado interior das pernas, fixamse os malhetes do órgão do peito ou da barriga, ou quando este não existe, do órgão do pano, onde correspondentemente, o tecido se vai enrolando à medida que a tecelagem avança”29
Fig. 10 - Tear de Pedais
Branqueamento do tecido
Após serem retirados do tear, os tecidos de linho e de estopa eram submetidos a um processo de branqueamento, que consistia em diversas lavagens, determinado tempo de exposição ao sol para corar e várias barrelas de cinza e sabão. O tecido era, numa primeira fase, escaldado com água a ferver e cinza em grandes caldeiras de cobre ou outro vasilhame, onde permanecia durante uma noite. Era depois lavado, esticado, alisado e dobrado sucessivamente em voltas de 25/30 cm, sendo em seguida estendido sobre relva, um dia de um lado e outro dia do outro, após o que voltava a ser lavado com sabão e estendido para enxugar ligeiramente e ser depois submetido a nova barrela de cinza. O interior do barreleiro era forrado com um lençol velho, sobre o qual se colocava o tecido a branquear, cobrindo-o com um pano branco sobre o qual se peneirava a cinza e se colocavam plantas, como flor de sabugueiro, que para além de ajudar a branquear, perfumavam o pano, deitando por cima água a ferver em grande quantidade. Cobria-se depois com as pontas do lençol que haviam ficado pendentes do lado de fora do barreleiro e deixava-se ficar até completo arrefecimento. Era novamente ensaboado e colocado de novo a corar, agora dois dias de um lado e dois do outro. O pano era submetido a tantas quantas barrelas fossem necessárias até ficar completamente branco. Como é natural, o número de barrelas dependia do branqueamento das meadas. Se estas fossem devidamente branqueadas, a cora dos tecidos era mais fácil e necessitava de menos barrelas. Concluído este processo, o tecido era lavado e posto a secar completamente aberto, dobrando-se depois ao meio, no sentido longitudinal, a fim de secar mais lentamente e ficar mais macio. Depois de completamente seco, era enrolado e guardado na arca até ao destino final. Eis-nos chegados ao fim duma ligeira síntese descritiva dos “tormentos” do linho, que tivemos oportunidade de presenciar e de algum modo participar activamente em alguns deles, na década de 50, na nossa milenar aldeia – Carção.
Resta-nos referir com esta simples e singela exposição que desejámos apenas recordar o sábio aproveitamento dos recursos naturais do povo de Carção, muito concretamente no que se refere ao cultivo do linho e alguns dos seus “tormentos”30. Norberto Tomé Valente ______________ 1 Livro do Êxodo, in Bíblia Sagrada, trad. De Frei Alcindo Costa, Stampley Publicações Lda, São Paulo, 1974, p.73. 2 Idem, p. 89. 3 Idem, p. 89. 4 Idem, p. 90. 5 Mantas de farrapos: eram urdidas com o próprio linho, cuja tapadura era feita de finas tiras de farrapos velhos que se cortavam para o efeito. 6 Ernesto Veiga de Oliveira, et al, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, p.43. 7 Fotografada na Casa da Cultura da Câmara Municipal de Vimioso 8 Ernesto Veiga de Oliveira, et al, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, p.61. 9 Idem, p.72 10 Carlos Pereira, et al, Os Tormentos do Linho, prospecto existente no Museu Etnográfico da Madeira, s/d e s/p 11 Ernesto Veiga de Oliveira, et al, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, pp. 77 e 87. 12 Idem, p. 110 13 Para uma análise mais detalhada deste processo convém esclarecer o significado de meada. Esta “ é geralmente formada por 10 ou 12 maçarocas, que se emendam umas nas outras à medida que vão sendo ensarilhadas. No final, a ponta do fio prende a um pequeno feixe de fios da própria meada – o Costal pequeno ou cabrita -, e só será desatada quando a meada vier a ser dobada. A meada, antes de se retirar do sarilho, é atada com várias voltas largas de fio – o costal grande ou castedo -, para não se desfazer.” Cf. Ernesto Veiga de Oliveira, et tal, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, p.112 14 A cinza, antes de fazer a calda, era peneirada, para a libertar de eventuais carvões ou outras impurezas e dissolvia-se na água fria em alguidares grandes até formar uma calda espessa. 15 Objecto em que se encontravam as meadas. 16 Passagem do fio das meadas para novelos. 17 Ernesto Veiga de Oliveira, et al, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, p. 116. 18 Idem, p. 118 19 Perante a falta da dobadoira, não raras vezes, minha Mãe colocava as meadas nos meus antebraços abertos e perpendiculares ao corpo fazendo movimentos laterais, enquanto ela se encarregava de dobar o novelo e assim os mesmos antebraços substituíam aquele objecto. 20 As mulheres que se dedicavam essencialmente às actividades telúricas aprendiam, também, a confeccionar. Tarefa que desempenhavam nos intervalos da actividade agrícola e pecuária. 21 As colchas são confeccionadas parcialmente, aos quadrados, triângulos ou losangos, um de cada vez e quando se reúne o número suficiente de peças, estas são ligadas umas às outras, às quais se acrescentam franjas a toda à volta, excepto do lado da cabeceira, formando, deste modo, as típicas e bonitas colchas carçonenses. 22 Que eram os que predominavam em Carção naquele tempo. 23 In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, LisboaRio de Janeiro, 1978, vol. 30, p. 885. 24 Recordemos que a maior parte das casas de Carção não possuíam casa de banho no seu interior, pelo que dispunham, não raras vezes, nos quartos de dormir, de um lavatório com armação de ferro lacado de branco, de cujo bordo superior pendia uma toalha de linho. 25 João Azevedo Editor, 1998, Património Natural Transmontano “P. N. de Montesinho”, pp. 77-83. 26 Diário da república, III série, n.º 16 de 20 de Janeiro de 2004, p. 1402. 27 Oficio n.º 365/CH de 1 de Outubro de 2004, da Comissão de heráldica da Associação dos Arqueólogos portugueses. 28 In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia, Limitada, Lisboa – Rio de Janeiro, 1978, vol. 30, p. 885. 29 Ernesto Veiga de Oliveira, et al, O Linho – Tecnologia Tradicional Portuguesa, 2.ª Edição – Instituto Nacional de Investigação Científica -Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1991, p.p. 128,130. 30 Informamos o ilustre leitor de que não participámos activamente nos “tormentos” da espadelagem e da tecelagem, por serem tarefas essencialmente femininas, pelo que pedimos desculpa às mestres espadeladeiras e tecedeiras de Carção, se falhámos num ou noutro ponto.
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Homenagem aos Heróis Militares de Carção No último número, “ALMOCREVE” homenageou os três militares de CARÇÃO, que estoicamente combateram na I Grande Guerra Mundial. Foram assim dissipadas determinadas dúvidas sobre as vicissitudes que os mesmos sofreram durante aquele tremendo flagelo. Neste número desejaríamos homenagear outros três heróis militares CARÇONENSES, os quais, com o preço do seu sangue, derramando-o em defesa da Pátria que os viu nascer, na qual acreditaram e pela qual abnegadamente lutaram até ao sacrifício da própria vida (tal como um dia o haviam jurado), elevaram e enobreceram Portugal, Vimioso e sobretudo CARÇÃO, sua terra natal. Porém, pelos feitos valorosos que cometeram, da lei da morte se libertaram, como diria o grande poeta.
bate entre forças desproporcionais da Lancha “VEGA” com a aviação indiana, foi atingido mortalmente por uma rajada de metralhadora de um avião. O seu corpo e o do Comandante da referida lancha, 2º. Tenente Jorge Manuel Catalão de Oliveira e Carmo, nunca foram resgatados. As forças eram de tal modo desproporcionais que, enquanto as tropas indianas eram constituídas por cinquenta mil efectivos, as Portuguesas eram constituídas por apenas 5.4OO militares e dotadas de parcos meios. O nosso conterrâneo, Aníbal dos Santos Fernandes Jardino, bateu-se de tal maneira heróica, que o Governo Português, o distingui a título póstumo, com louvor, a mais alta condecoração para o seu posto e promoção ao posto imediato.
ANIBAL DOS SANTOS FERNANDES JARDINO (1935-1961)
“Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro da Marinha, conceder a título póstumo a Medalha de Cobre de Valor com Palma ao Marinheiro Artilheiro da Reserva da Armada nº.5770/1519-Anibal dos Santos Fernandes Jardino, morto durante o glorioso combate que, em 18-12-1961, a lancha de fiscalização “Vega” em águas territoriais de Diu, travou com unidades inimigas. Manifestou aquele Marinheiro perante este combate, extraordinária coragem e invulgar abnegação”1
Nasceu em Carção, a 25 de Novembro de 1935.Era filho de António Martins e de Dª. Aduzinda de Paiva Fernandes. Ainda jovem, acompanhou seus pais, indo para a cidade de Bragança onde passaram a viver no Bairro Além Rio. Exercia a nobre profissão de sapateiro.
“Por despacho Ministerial de 27/05/1963, concedida a Medalha Militar por promoção a título póstumo” 2
Em 7 de Novembro de 1955,com vinte anos de idade, foi incorporado na Marinha Portuguesa com o posto de 2º.Grumete Recruta. Em 4 de Dezembro de 1961, iniciou a sua comissão nas províncias Ultramarinas, no Estado da Índia, a bordo do N.R.P. “VEGA”. Infelizmente, no dia 18 de Dezembro de 1961, durante o com-
Em 18 de Dezembro de 2004, passados 43 anos após a União Indiana ter tomado pela força os territórios então portugueses de Goa, Damão e Diu, em cujo acto bélico perdeu heroicamente a vida o nosso conterrâneo Aníbal Jardino, a Câmara Municipal de Bragança, num acto louvável do seu Presidente, Sr. Eng.º António Jorge Nunes, com a colaboração e presença da Marinha, homenageou-o com um monumento no Parque Eixo Atlântico, naquela cidade. Do programa das cerimónias da homenagem, constou:
“- Missa de sufrágio pelos militares falecidos na Índia; - Inauguração de uma Exposição da Marinha; - Palestra alusiva á efeméride; - Inauguração do Monumento no Parque Eixo Atlântico da autoria do mestre António Nobre com a presença de uma força da Marinha e do CALM Leiria Pinto em representação do CEMA” 3
Evocação dos Heróis da “Vega”. À direita os dois sobreviventes
O Almirante CEMA fez-se representar pelo Presidente da Comissão Cultural da Marinha, CALM Leiria Pinto, tendo um terno de clarins do Corpo de Fuzileiros prestado as honras protocolares. Após o acto religioso, numa das salas do Centro Cultural Municipal, foi inaugurada uma exposição itinerante do Museu de Marinha, na qual figurava, em primeiro plano, um painel salientando o combate da “Vega” e a actuação do Cabo Jardino, sendo também apresentadas as respectivas condecorações, oferecidas pela família à Marinha e um modelo da lancha. Completavam esta exposição modelos dos principais tipos de embarcações utilizadas durante o período da Expansão Portuguesa e expositores com cartas e instrumentos náuticos. Em seguida, teve lugar, no auditório do Centro uma Sessão Solene, iniciada por breves palavras do Presidente da Autarquia que se congratulou com a homenagem a um heróico Marinheiro seu conterrâneo e agradeceu a presença da Marinha nas cerimónias. O CALM Leiria Pinto, muito sucintamente, referiu-se aos acontecimentos que se comemoravam e reportando-se ao homenageado disse:
“As cerimónias, que contaram com a presença de várias entidades civis e militares entre as quais o Presidente da Câmara Municipal de Bragança Jorge Nunes acompanhado de alguns dos seus vereadores, o CMG Chicote da Silva que apoiou decisivamente a iniciativa do evento, a irmã do homenageado, Maria de Lurdes Jardino, dois sobreviventes da “Vega”: SAJ Francisco Mendes de Freitas e Cabo Armando Cardoso da Silva, na época respectivamente Marinheiro Electricista e Marinheiro Fogueiro Motorista e o Presidente da Direcção da Associação de Ex-Militares de Trás-osMontes e Alto Douro, Sr. José Fernandes, iniciaram-se com uma missa, na Igreja da Misericórdia, por intenção daqueles que tombaram na Índia quando dos acontecimentos Estátua de homenagem a Aníbal Jardino, junto ao Parque Eixo Atlântico, em Bragança. de Dezembro de 1961.
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48 Quando jurou Bandeira Jardino declarou cumprir o seu dever mesmo com o sacrifício da própria vida. Assim aconteceu, por isso veneramos a sua memória. Muitos filhos de Bragança se glorificaram defendendo a Pátria, o Cabo Jardino é incontestavelmente um deles. Por fim o 2º.TEN Carlos Valentim fez uma comunicação sobre a vida do homenageado, começando por referir os primeiros passos na Marinha e associando a sua carreira aos desenvolvimentos nacionais e internacionais de então que haviam de culminar no combate aero - val travado em Diu durante o qual o Cabo Jardino veio a perder heroicamente a vida. Da descrição detalhada do combate que envolveu a lancha “VEGA”de sublinhar que embora Jardino pertencesse à guarnição da lancha “Folque”, pequena embarcação usada em apoio aos trabalhos da Brigada Hidrográfica do Estado da Índia, se voluntariou para embarcar na “Vega”. Foi depois inaugurado, no Parque Eixo-Atlântico, perante numerosa assistência e com uma guarda de honra formada por uma secção do Corpo de Fuzileiros acompanhada de um terno de clarins, um monumento ao Cabo Jardino, obra da autoria do escultor transmontano António Nobre. O evento terminou com um almoço convívio oferecido pelo Presidente da Câmara local à Marinha, durante o qual se trocaram lembranças e se manifestou a satisfação por se ter concretizado esta merecida homenagem a um dos últimos heróis na Índia”.4 ACÇÃO DA LANCHA DE FISCALIZAÇÃO “VEGA” DURANTE A INVASÃO DE DIU “Tendo saído de Diu em 17 de Dezembro, a lancha de fiscalização “VEGA” fundeou frente a Nagoá às 22h00 do mesmo dia. Na madrugada do dia 18, por volta das 01h40, foram ouvidos tiros em terra pela praça de serviço. Alertado por esta, mandou o Comandante, 2º.Tenente Jorge Manuel Catalão de Oliveira e Carmo, ocupar postos de combate e suspender. Dirigiu-se, então, a lancha para junto de um contacto radar não identificado que navegava a cerca de 12 milhas da costa.
Por volta das 04h00,o navio, visualmente identificado como um cruzador, lançou granadas iluminantes e abriu fogo de metralhadora pesada sobre a “Vega”, que retirou para Diu e fundeou. Às 06h15 suspendeu e aproximou-se novamente do cruzador, onde foi vista, içada no mastro a bandeira da União Indiana. A lancha regressou ao fundeadouro e Oliveira e Carmo fardou-se de branco para “morrer com honra”. Às 07h00 foram avistados aviões a jacto efectuando bombardeamento sobre terra. O Comandante reuniu a guarnição e leu-lhes as ordens do Estado-Maior da Armada, segundo as quais a lancha deveria combater até ao último cartucho. Cerca das 07h30 aproximaram-se dois aviões para bombardear a Fortaleza e o Comandante mandou abrir fogo sobre eles com a peça de 20 mm (um dos aparelhos acabaria por ser atingido e obrigado a aterrar). Estes ripostaram, matando, no ataque, o marinheiro artilheiro António Ferreira, e cortando pelas coxas as pernas de Oliveira e Carmo que, ainda com vida, retirou do bolso e beijou as fotografias da mulher e do filho pequeno. Deflagrara, entretanto, um violento incêndio, que rapidamente se propagou à casa da máquina e ponte. A peça foi abandonada em virtude do seu reduto se ter tornado intransitável devido aos buracos causados pelos projécteis inimigos e pelo incêndio, que atingia, já, o convés. A guarnição tentou, então, arriar o bote para evacuar o Comandante, mas um novo ataque aéreo feriu mortalmente Oliveira e Carmo, tendo também sido atingidos três marinheiros um deles, marinheiro artilheiro Aníbal Jardino com a perna esquerda cortada pela canela, viria a falecer no trânsito para terra). Com o bote inutilizado e a lancha completamente tomada pelas chamas, viram-se os sobreviventes obrigados a nadar em direcção a terra, agarrando-se os feridos a uma balsa. Após sete longas e dramáticas horas, conseguiram, por fim chegar à praia (dois homens ficaram separados do grupo e atingiram terra em locais diferentes dos restantes), tendo posteriormente sido feitos prisioneiros. Sacudida pelas explosões das suas próprias munições, a “Vega” acabaria entretanto, por se
afundar, arrastando consigo os corpos do heróico Comandante e do seu artilheiro.”5. ANTONIO DOS SANTOS JERONIMO FERNANDES (1950-1973) Nasceu em CARÇÃO a 2 de Janeiro de 1950. Era filho de Domingos António Jerónimo Fernandes e de Dª. Maria da Glória Fernandes Jerónimo. Foi recenseado pelo concelho de Vimioso freguesia de Carção sob o nº.7 em 1970. Alistado no Exército Português em 11 de Junho do mesmo ano sendo considerado apto para todo o serviço militar. Foi incorporado no R.I.5 em 13 de Julho de 1971,como recrutado e com o nº. de ordem 2913,onde iniciou a frequência do 1º.Ciclo do C.S.M. Concluiu a recruta em 26 de Setembro de 1971,sendo colocado no CISMI a fim de frequentar a o 2º. Ciclo do Curso de Sargentos Milicianos na especialidade de Armas Pesadas, que concluiu em 11 de Dezembro de 1971,com a classificação de 12,86 valores. Promovido ao Posto de 1º. Cabo Miliciano em 03.JAN.72, sendo colocado no R.I.13 na mesma data.
como Habilitações Literárias o Curso Geral dos Liceus (5º.Ano) e como Profissionais Militares o Curso de Sargentos Milicianos, como atrás referido. O Furriel Miliciano António dos Santos Jerónimo Fernandes, era considerado um militar dotado de elevado espírito de missão e sentido profissional, cujas qualidades foram reconhecidas no seguinte LOUVOR: “Louvado a título Póstumo em 25AGO73 pelo Exmo Comandante do COP-3, porque apesar do pouco tempo que prestou serviço na sua Companhia tomando parte efectiva em diversas operações, mostrando-se um extraordinário Comandante de Secção; Durante inúmeras flagelações que a sua Companhia sofreu, durante o período mais crítico de Guidage procurou sempre, e por vezes com risco da própria vida, manter o comando da sua Secção, acabando por ser vítima de uma granada de Morteiro IN. Militar muito disciplinado, possuindo nítida noção das responsabilidades e elevado espírito de missão, foi denunciado pela preocupação de manter a sua Secção em elevado espírito, grau de eficiência e prontidão para o combate.(0. S.nº.18 de 05.SET.73 da CCaç.19)” Este Louvor foi considerado, como sendo dado pelo Exmº. Brigadeiro Comandante Militar, por despacho de 29.AGO.73. (0.S. nº.21 de 02. OUT.73 da CCaç.19). JOSÉ MANUEL RODRIGUES AFONSO (1950-1973)
Nomeado para prestar serviço no Ultramar, nos termos da alínea e) do Artº.20º. do Decreto nº. 49107 de 7/7/69, nos termos da Nota nº.21459 Pº.33312 e 33212 da 3º.Secção da RSP/DS/ME, de 28/04/72.Desembarcou em Bissau em 23.JUN.72, data em que foi promovido ao Posto de Furriel Miliciano e colocado na CCaç.3. Passou para a CCaç.17 e posteriormente para a CCaç.19. Faleceu em 26.MAI.73 vítima de ferimentos em combate. Possuía
Nasceu em CARÇÃO a 29 de Julho de 1950. Era filho de Acácio Augusto Afonso e de D.ª Delfina Rosa Rodrigues. Foi recenseado pelo concelho de Vimioso freguesia de Carção sob o nº.18 em 1970. Foi alistado e incorporado em 05 de Agosto de 1971 no B.C.-3,com o NM 08954671Em 18 de Outubro de 1971, foi colocado no R.I.-13 e em 3 de Janeiro de 1972 no R.I.-16. Concluiu a Escola de Recrutas em 27 de Fevereiro de 1972. Foi nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea e) do Artº.20º. do Decreto 49107 de 7-7-69,com destino à CCaç.3537/R.I.-16 (Nota nº.8121 Pº.5-
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50 9-4B/4D/4F-4G de 18-2-72 do RSP/DSP/ME. Embarcou em Lisboa por via aérea em 24 de Junho com destino à R.M.A., desembarcando em Luanda dia 25/6. Faleceu em 7 de Abril de 1973.
olhar atónito deste. Evidenciou o Soldado JOSE MANUEL RODRIGUES AFONSO, grande domínio de movimentos e presença de espírito que, aliados aos seus grandes conhecimentos de técnica de combate, fazem-no ser apontado elemento destemido e valoroso na Companhia que serve, `a qual dá o melhor do seu esforço.” (História da Unidade – BCaç. 3880). Saibamos venerar a memória destes seis Heróis Militares Carçonenses. É nosso entendimento, ser de elementar justiça que o bom Povo de Carção, edifique o mais urgente possível, uma placa no centro da Povoação de modo a perpetuar a memória destes HEROIS, que de forma SUPREMA, souberam honrar e enobrecer CARÇÃO.
O soldado José Manuel Rodrigues Afonso, foi considerado um militar destemido e valoroso, conforme consta do seguinte LOUVOR: “Louvado por Sua Exª. O Comandante do CMD/An-1, por proposta do Sr. Comandante do BCaç. 3880, porque no dia 17NOV72, durante a Operação “QUINTAL”/3ª. Fase, a quando de um golpe de mão efectuado a um posto de sentinela IN, ao ter-lhe sido mandado pelo chefe de equipa fazer o envolvimento juntamente com um outro seu camarada desempenhou fiel e eficientemente a missão, rastejando com o máximo silêncio e cuidado levantou-se de surpresa e decididamente a uns escassos metros do IN, arrebatou-lhe a arma perante o
Av. Sá Carneiro – Forum Theatrum • 1.º piso – Loja 15 Tel. 273 333 880 – Tlm. 938 220 916 • Bragança
AGRADECIMENTOS: “ALMOCREVE” agradece ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Bragança, ao Senhor Chefe de Gabinete de Sua Exª. o Chefe do Estado Maior da Armada (CEMA) e ao Senhor Chefe do Arquivo Geral do Exército, a prestimosa colaboração, no fornecimento de dados para a elaboração deste texto. Norberto Tomé Valente _______ 1
Ordem do Corpo de Marinheiros de 23/08/1962
Ordem da 2.ª Repartição de 05/06/1963 Ofício n.º 3538 de 2005/04/27 da Câmara Municipal de Bragança 4 Revista da Armada, publicação oficial da Marinha n.º 383, ano XXXIV, Fevereiro 2005, p. 25. 5 Revista da Armada, publicação oficial da Marinha n.º 348, ano XXXIV, Dezembro 2001 (http://www.marinha./extra/revista/ra-dez2001/ pag20.html) 2 3
Adeus ó casas estreitinhas da velha aldeia de Carção Adeus Cruzeiros de Cristo Amor forte e nunca visto Em fervor e devoção Ó Largo das Fontes, cheio de tradição Onde meus avós, onde minha mãe passaram serões A fonte velhinha toda esmuralhada Vete já só pranto, vendo que já não serve para nada. Adeus ó Santa Marinha escondida Na ermida onde escutas os meus ais Nos degraus das tuas escadas Contos de reis e de fadas, contavam os nossos pais. Adeus Carção doutras eras, pelames e Primaveras Curtindo coiros ao sol Levando a toda a parte, a sola da tua arte Do mais fino e puro rol. Adeus ó Bairro da Igreja, onde o velho templo alveja Onde os velhos vão rezar Onde há também umas murilhas Que também sabem vibrar. Adeus teias do tear que só vós sabeis bordar Lindas jovens de Carção Saúdo-vos nestes cantos, horas tristes Sem quebrantes a tecer no rés-do-chão Os nossos lavradores no São Roque É tudo festa onde há trilhas ao luar E a Senhora das Graças anda por ruas e praças Suas graças espalhar...
Os alunos do 1º ciclo do ensino recorrente de Carção, 2006
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Passatempo
Senhora das Graças C A R Ç Ã O • 17 a 27 de Agosto de 2006 17 a 26 de Agosto Novena Religiosa na Igreja de St.ª Cruz. 26 de Agosto – Sábado 14.00 horas – Missa com Sermão em Honra de St.ª Teresinha. Procissão. 21.00 horas – Momento alto de Veneração da Sr. das Graças. Procissão de Velas. Missa Campal na Capela de St.ª Marinha. Sermão.
27 de Agosto – Domingo 14.30 horas – Missa Solene dos Devotos à Padroeira. Sermão. Procissão. Adeus à Virgem. Fim das Cerimónias – Momentos de Reflexão.