OS PRAZERES DE RESENDE
É normal endeusar os grandes homens. Quanto mais se distinguem nas letras, nas artes, nas ciências, na política, ou em qualquer outro campo do saber, da acção educativa, da ética, da lisura moral e da consciência cívica, de modo que a História os recorda e assinala com maiúscula, mais difícil se torna reconhecer-lhes um comportamento normal de acordo com o comum dos mortais. E, embora racionalmente saibamos que eles, como todos os homens, têm defeitos, virtudes, emoções, depressões, alegrias, amizades, fracassos, incertezas, e sei lá que mais, e apenas souberam salientar-se mercê do seu esforço, de circunstâncias várias e convergentes , e, sobretudo, da entrega persistente a um objectivo, não deixamos por isso, mesmo inconscientemente, de os colocar numa esfera ideal de comportamento. Esta atitude, levada ao extremo, vem provocar as biografias encomiásticas, os panegíricos exaltados, onde o grau de anormalidade dos biografados cada vez mais os afastam dum reconhecimento objectivo, transformando a exemplaridade possível num ideal inatingínvel, e o possível leitor em admirador embasbacado e distante. Pelo contrário, dar humanidade a todos eles, conhecer-lhes objectiva e serenamente a normalidade, é criar proximidade, aprender-lhes o convívio, partilhar a herança e usufruir rentavelmente o mistério do passado. Vem tudo isto a propósito de André de Resende, o eborense ilustre de Quinhentos, humanista notável, pedagogo insigne, latinista afamado, prolífero escritor. Aos dez anos professa no Convento de São Domingos, poucos anos depois já está a prosseguir estudos em Alcalá de Henares e Salamanca, e continua um longo percurso pelas grandes universidades europeias. Em Lovaina se torna seguidor de Erasmo e, em Paris, é aluno de Nicolau Clenardo, de quem se faz amigo e que, mais tarde, trará de Salamanca, por solicitação de D. João III, para preceptor do infante D. Henrique, futuro cardeal-rei e primeiro arcebispo de Évora. A experiência da vida diplomática tem-na com o representante português junto da corte de Carlos V, o embaixador D. Pedro de Mascarenhas, a quem acompanha entre 1531 e 1533, ano em que regressa à sua Évora natal, e a partir da qual passará a exercer uma intensa actividade literária e pedagógica. São, todavia, outros os aspectos da vida de Resende que estão na mira destas linhas. Um dia destes dei comigo a reler um belo artigo "Bosquejos campestres em novos poemas de André de Resende", do professor e latinista australiano John Martyn (A Cidade de Évora, 69-70, 1986-1987, pp 21-30). Ao comentar os poemas cita um significativo excerto de uma carta de Nicolau Clenardo a João Vaseu, outro célebre humanista trazido por Resende, que ensinou em Braga e Évora. Nela, Clenardo, com uma ponta de humor, imagina o que faria aos amigos se fosse Papa: "proibir Vaseu de beber vinho durante três meses, a não ser que Resende lhe mandasse algum grátis, e proibir Resende de escrever poesia, de jardinar e de examinar mármores antigos durante um ano inteiro. Este duro castigo leva Martyn a concluir que "Clenardo acertou em cheio nos três maiores prazeres de Resende, sobretudo nos seus últimos anos". Na verdade, a poesia atravessa dedicadamente toda a vida de Resende como um normal respirar e comunicar. Basta ler o referido artigo para perceber o seu amor por ela. Sente-se, todavia, que faltam edições acessíveis da sua obra poética, com boas traduções e comentários, uma vez que o latim foi a sua língua de eleição. Creio que seria uma surpresa para muita gente poder, por exemplo, ouvi-lo cantar: "Tudo é exuberância, agora é a nova estação do tempo, / as ledas ervas embranquecem com tantas flores". Ou então: "Oh se eu pudesse, quão mais belo fora, / fugindo enfim aos Reis, / comer liricamente as minhas couves, / ter da vida o que os deuses / dessem, descer as Musas da colina, / reter cantando o tempo, / p'ra não morrer de todo e a melhor parte / sobreviver-me um dia..." Não é difícil também perceber que jardinar fosse um dos "hobbies" de Resende. Possuía uma quinta, perto de Évora, ali na estrada de Arraiolos, junto à Manisola. Ainda lá está, no meio do campo, a bela fonte, quase em ruinas, lugar de meditação, de fresco, de convívio. Há alguns anos, na imprensa local, chamei a atenção para a importância da fonte e para a necessidade de ser conservada. Até agora nada foi feito e a degradação do monumento aumentou consideravelmente. Na sua poesia, carinhosas são as referências à quinta, aos jardins, à vida e trabalhos do campo. Escreve, por exemplo, " (...) a 2000 passos da minha cidade (...) posso escrever poemas / ou renovar a vinha, ou enxertar de nova maneira, / forçar o infeliz medronho a dar um fruto que não é seu".
Resta, por fim, a dedicação de Resende pelas antiguidades. O primeiro a dedicar-se, que saibamos, a buscas arqueológicas e a coleccionar, na sua casa da cidade, numerosas lápides romanas, algumas das quais hoje no museu. O exame aturado de muitas outras e os seus estudos históricos levaramno a escrever os "Libri quatuor de Antiquitatibus Lusitaniae", editados em 1593 já depois da sua morte, e a "História da Antiguidade da Cidade de Évora" (Évora 1553), onde o seu amor por Évora e a vontade de a glorificar assentando com segurança os seus fundamentos na civilização romana, o fizeram engendrar numerosas lápides, pretensamente romanas, que apresenta com as transcrições e respectivas traduções. Os testemunhos deixados demonstram bem esta dedicação acrisolada pela epigrafia latina e pela arqueologia. Esta breve digressão pelo três prazeres de Resende - a vivência da poesia, o amor pela natureza e o gosto da arqueologia - levam-me a interrogar-me e a interpelar os leitores com a questão: não serão frequentes, ouso até dizer, não serão tais prazeres naturais em quem vive e sente o Alentejo?
Artur Goulart (Publicado em «Évora e o mais», nº 2, Junho 1994)