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Reflexões sobre o cotidiano na sala de aula
Ilustrações: Mário Röhnelt
ANO VI Nº 22 JUL/AGO 2002
Lino de Macedo
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dministrar o cotidiano na sala de aula tornou-se um grande problema para professores e alunos. Indisciplina, dispersão, inconveniência, confusões, dificuldades de todo tipo perturbam a realização das propostas ou das tarefas pedagógicas. O sentimento é de perda de tempo, caos espacial e descuido com objetos escolares, falta de sentido das tarefas e relações entre pessoas marcadas pela indiferença ou pela negatividade. O sentimento é de incompetência, insuficiência e desânimo. Penso que uma das razões para isso é que ainda estamos marcados pela imagem de uma escola ideal, sonho de realização de todos nós, em que alunos, dóceis e gratos aos seus professores, vão lá para aprender e serem felizes. Graças a isso, os professores podem dedicar-se preferencialmente ao ensino das matérias e à avaliação do que foi aprendido pelos alunos. Pensamos que tudo isso foi talvez possível um dia e ainda se realiza hoje em algumas escolas. Porém, para tanto, o preço a ser pago pelos alunos é o de conviver e aprender na escola de um modo condicionado: se não obedecem às regras, se não aprendem o mínimo, se não aceitam a cultura da escola, então são excluídos e reprovados. E se a escola tornar-se incondicional, necessária para todas as crianças? Ou seja, essa imposição é impossível em uma escola compulsória, que se quer para todas as crianças e que não pode mais selecionar e garantir a permanência usando a exclusão e a repetência como estratégias de controle de sua qualidade. No entanto, como garantir o acesso à escola e um percurso nos anos de escolarização básica de modo contínuo e, se possível, significativo? Sabemos que, se o acesso escolar está cada vez mais garantido, o cotidiano em sala de aula mostra o quanto ainda estamos distantes das outras expectativas (percurso até o final, convivência e aprendizagem significativas). Nossa hipótese é de que dar ao cotidiano na sala de aula o mesmo tratamento disciplinar que temos dado ou devemos dar ao ensino e à aprendizagem de línguas, matemática, ciências e artes pode ser um caminho para a boa realização dessa escola, agora para to-
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dos. Para isso, é necessário desenvolvermos competências e habilidades relacionadas às categorias e aos modos de ser do real em sua expressão diária. Por essa razão, pretendemos neste artigo refletir sobre a importância do desenvolvimento de um conjunto de habilidades sobre três pares fundamentais para uma vida cotidiana escolar bem-sucedida: espaço e tempo, objetos e tarefas, bem como nós mesmos e as outras pessoas. No espaço e no tempo, estão os objetos com os quais realizamos as tarefas escolares e o meio onde convivemos e vivemos, quaisquer que sejam as formas e os sentidos dessas realizações. Para lidar bem com o espaço, temos que desenvolver habilidades, ou seja, coordenar nossas ações de modo significativo e funcionalmente bem-sucedido. Tais ações podem ser as seguintes: guardar, encontrar, devolver, dispor, localizar, esquecer. Onde guardar os objetos (coisas, pensamentos, palavras, desenhos, sentimentos)? Como se organizar no espaço dos cadernos, das carteiras, das mochilas, de nosso corpo e pensamento, de nossa sala de aula ou escola? Onde encontrá-los e devolvê-los depois de usados? Como e por que dispor o espaço de distintas maneiras, direções ou sentidos? Como tratá-lo como “caixas” pequenas ou grandes que contêm os objetos e, ao mesmo tempo, como campo aberto, livre, reversível, infinito e disponível para todas as possibilidades? Como “esquecer” o que está fora do espaço durante um certo acontecimento e ocupar-se, de modo concentrado e paciente, com aquilo que interessa no momento? Como tratar o espaço como o que está entre as coisas e, portanto, como um vazio que as separa e as localiza dentro, fora, perto, distante, em cima, embaixo? Para lidar bem com o tempo, temos que desenvolver habilidades, hoje mais do que nunca fundamentais: agendar, estimar, antecipar, selecionar ou dar prioridade, lembrar. As ações graças às quais realizamos tarefas duram um tempo e sucedem-se em uma certa ordem, isto é, compõem narrativas. Porém, para sermos bemsucedidos nesses acontecimentos, temos que reservar, dispor, organizar um tempo para eles. Tempo que necessita ser calculado, querido. Se o espaço é reversível, se nele podemos ir e vir de muitos modos, o tempo é irreversível, expressa um fluxo contínuo, sem volta ou devolução. Como decidir e antecipar coisas que valem a pena? Como não desperdiçar o tempo? Como se organizar e se relacionar com o tempo das máquinas, da cidade, das tarefas com prazo marcado? Se o tempo não volta, como selecionar ou dar prioridade ao que merece ser feito? Como não esquecer, isto é, lembrar, atualizar as coisas que foram feitas ou que devem ser feitas? Como se organizar, respeitando a presença eterna e contínua do tempo, mas dividindo-o como se pudesse ser tratado em termos de hoje, amanhã ou ontem? Como usar o tempo das máquinas (do relógio, por exemplo) ou da natureza para regular nossas ações? Como realizar a vida como projetos, produtos ou bens que, por querermos depois, definem e organizam nosso aqui e agora?
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Dar ao cotidiano na sala de aula o mesmo tratamento disciplinar que temos dado ou devemos dar ao ensino e à aprendizagem de línguas, matemática, ciências e artes pode ser um caminho para a boa realização da escola para todos. Para isso, é necessário desenvolvermos competências e habilidades relacionadas às categorias e aos modos de ser do real em sua expressão diária.
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Se o tempo não volta, como selecionar ou dar prioridade ao que merece ser feito?
As habilidades relacionadas ao espaço e ao tempo, antes mencionadas, complementam-se indissociavelmente com as habilidades que se referem às tarefas ou às ações que realizamos com objetos. Livro, caderno, lápis, quadro-negro, giz, computador, vídeo, calculadora, jogos, pincel, tinta, bola, mochila, banheiro, cadeira, mesa, sala, pátio são objetos escolares. Com eles praticamos a leitura, a escrita, o desenho, as contas, a pintura, a música, o esporte, lavamos as mãos, bebemos, urinamos, brigamos, rimos, vivemos nossa vida, aprendemos na escola, convivemos com nossos colegas e nos relacionamos com nossos professores. Os objetos são as tecnologias desenvolvidas pela ciência e oferecidas pelas empresas ao mercado educacional. Cuidar, preservar, classificar, recuperar, escolher, utilizar, limpar, abrir, fechar, guardar são habilidades fundamentais, pois presidem as relações entre objetos, tarefas e pessoas. Depois de usados, tornados obsoletos ou insuficientes, o que fazemos com esses objetos? Temos sido pouco reflexivos e irresponsáveis com os recursos e os objetos escolares. Não vemos sentido nas tarefas escolares que realizamos por seu intermédio. A atitude do professor para com os objetos escolares é fundamental, pois ele é uma referência para os alunos. Como ser cuidadoso, habilidoso e gentil com os objetos escolares? Não basta poder usar os objetos ou recursos pedagógicos, é necessário querer e saber usá-los bem. Como reivindicar objetos de melhor qualidade e em quantidade suficiente para a realização das tarefas? Os objetos escolares são alguns dos meios ou recursos que utilizamos para realizar as tarefas. O que são as tarefas escolares? Como restituir seu sentido? Como desenvolver habilidades para a boa realização de uma tarefa? Pensamos que algumas dessas habilidades são as seguintes: valorizar, ser responsável, planejar, definir, desenvolver estratégias ou esquemas de procedimento para sua boa realização, envolver-se, comprometer-se, tornar-
se autônomo, compreender sua razão. Hoje, o grande desafio no cotidiano da sala de aula é saber propor tarefas significativas, desafiadoras, realizáveis. Tarefas nas quais a superação dos obstáculos implica aprendizagem diferenciada e avaliação formativa. Tarefas que requerem observação, regulação, e que desenvolvem sentimento de domínio e participação. Tarefas compartilhadas, coletivas e, ao mesmo tempo, singulares e diversificadas. Tarefas que comunicam sentido e expressam interesses comuns, que solicitam tomadas de decisão e argumentação em favor de sua proposição e realização. Tarefas que colocam situações-problema, cuja execução exala sabor e saber. Tarefas que valem a pena. Para concluir, falta-nos algum comentário sobre o último par que dá sentido ao cotidiano escolar. Ele se refere ao relacionamento que, no dia-a-dia, mantemos com nós mesmos e com as outras pessoas. Como são as relações no miúdo de cada gesto entre crianças, professores e alunos ou colegas? O que elas promovem ou dificultam em nossas relações com os aspectos já mencionados? Como respeitar e possibilitar que alunos e professores possam ter voz, dizer e assumir suas hipóteses, seus pensamentos e seus sentimentos? Como recuperar nossa auto-estima, a importância sociocultural de nossa profissão e conquistar melhores condições de trabalho? Todas as crianças agora podem e devem estudar na escola. Mas isso só terá sentido se elas desejarem aprender, se não forem indiferentes ou negativas com as pessoas de sua classe. Indisciplina, dispersão e preguiça perturbam a realização de tarefas escolares. Inconveniência, desrespeito e maledicência perturbam as relações com as pessoas. Como nos tornarmos mais convenientes e cuidadosos? Como cultivarmos virtudes que nos tornam dignos de nós mesmos e das outras pessoas? Respeitar, compartilhar, cooperar, reconhecer, conviver e cuidar são habilidades fundamentais. São elas que qualificam e dão sentido ao nosso cotidiano relacional. Hoje, na escola é onde passamos muitos anos de nossa vida, onde passamos uma parte importante de nosso dia. As pessoas de nossa escola, além das pessoas de nossa família, de nosso bairro ou trabalho, são talvez as mais significativas de nossa vida. É o pequeno e aparentemente insignificante de cada gesto, palavra ou sentimento que tece as bases para uma relação mais amorosa ou odiosa. Como o professor organiza e favorece diferentes relações em sala de aula? Como distribui as crianças em uma atividade de
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Como construir sentido para nossa vida e aceitá-la em sua complexidade e precariedade?
Lino de Macedo é professor titular de Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da USP. E-mail:
[email protected]
Para Saber Mais PERRENOUD, P.; THURLER, M.; MACEDO, L.; MACHADO, N.; ALESSANDRINI, C. As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002.
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grupo? Como faz suas intervenções? Como olha, vê, sente e fala com cada criança? Como coordena valores e regras que disciplinam a vida em comum? Como lida com problemas de relacionamento? Voltemos às considerações iniciais de nosso texto. São muitas as queixas que professores e alunos fazem de sua vida na escola. Muitos estão insatisfeitos, apesar de reconhecerem sua importância para nossa formação. Nossa hipótese é de que um dos caminhos para a superação disso é desenvolvermos competências e habilidades relacionadas ao cotidiano escolar. Acreditamos que, se tratarmos o dia-adia dessa instituição com a mesma seriedade e com o mesmo rigor com que investimos no aprendizado das matérias escolares; se soubermos coordenar o ensino dos conteúdos das disciplinas com o desenvolvimento de competências e habilidades relacionadas à vida cotidiana, então, quem sabe, nosso trabalho ganhará mais sentido. Imaginemos, para terminar, uma situação tão comum hoje na escola e duas atitudes frente a ela. Um professor prepara uma aula, mas só consegue trabalhar metade da matéria, pois a outra parte do tempo foi gasta tentando obter a atenção dos alunos, resolvendo problemas relacionais, organizando coisas, explicando assuntos nãovinculados ao tema, esperando as crianças voltarem do banheiro ou encontrarem os materiais ou os recursos para realizar as tarefas propostas. Podemos reagir a essa situação, no mínimo, de dois modos. De um lado, com um sentimento de fracasso, de crítica às crianças e às suas famílias, de desinteresse e desgosto pela profissão escolhida, de desânimo pela violência social, de indisciplina e inconveniência das pessoas, de desestímulo pela insuficiência e pela obsolescência dos recursos pedagógicos disponíveis, de crítica negativa às novas políticas educacionais. Em uma palavra, nessa perspectiva, o professor sente que só pôde dar meia aula e que gastou ou desperdiçou metade de seu tempo fazendo coisas desagra-
dáveis, sem sentido, que lhe impedem de trabalhar e que frustram suas expectativas. De outro lado, o professor pode supor que nessa aula trabalhou dois temas fundamentais para a promoção do desenvolvimento de seus alunos. Um desses temas refere-se à orientação de estudos, ao planejamento das atividades, à discussão sobre atitudes, valores e normas de convivência em sala de aula, à melhor utilização do espaço e do tempo, ao cuidado e à habilidade no uso dos recursos e das tecnologias. O outro tema refere-se ao ensino e à aprendizagem dos aspectos estudados. Nesse segundo caso, a aula inteira foi gasta trabalhando-se dois conteúdos fundamentais e indissociáveis. Como ajudar os alunos a lidarem melhor com as categorias e os modos de realização de seu cotidiano? Como sair da queixa, do desânimo, e atribuir aos temas, objeto de reflexão deste texto, o mesmo estatuto das matérias disciplinares? O que estudar e discutir sobre esses temas? Como observar melhor nossas próprias dificuldades, preconceitos e insuficiências em relação a eles? Como aprender e compartilhar com nossos colegas estratégias – melhores ou diferentes – de enfrentamento desses problemas? Como convencer nossos alunos de que há formas melhores e mais saudáveis de vida? Como rever padrões, assumir nossos erros e nossas limitações? Como realizar e compartilhar projetos que valem a pena? Como construir sentido para nossa vida e aceitá-la em sua complexidade e precariedade?
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