Capa
Mountolive
Lawrence Durrell
Editora Ulisseia
Contracapa
UM CASO ARRUMADO, CUJA CONSIDERADO POR GRAHAM ROMANCE, QUE A EDITORA EMOCIONAL E RELIGIOSO ENCONTRA A SUA EXPRESSÃO
ACÇÃO DECORRE NO CONGO EX-BELGA EM FOGO, É GREEN COMO A SUA OBRA DEFINITIVA. NESTE ULISSEIA PUBLICARÁ SEGUIDAMENTE, O CONFLITO SUBJACENTE A TODA A OBRA DESTE ESCRITOR MAIS ACABADA.
Folha de rosto
LAWRENCE DURRELL
MOUNTOLIVE
TRADUÇÃO DE DANIEL GONÇALVES
EDITORA ULISSEIA
LISBOA
Se fosse possível, uma vez dissipado o sonho, recuperar o senso comum, a coisa não teria grande importância ... é a história dos desvarios mentais. Todos a conhecem e ninguém se molesta. Mas, ai, às vezes a coisa é levada demasiado longe. Que seria — atrevemo-nos a pensar —, que seria a realização da ideia se a sua forma puramente abstracta nos abalou tão profundamente? O delírio maldito está vivificado e a sua existência é um crime.
Justine (D. A. F. de Sade)
a CLAUDE
I
Na sua qualidade de aspirante excepcionalmente prometedor tinham-no mandado por um ano para o Egipto a fim de aperfeiçoar os conhecimentos da língua árabe, adido à Alta Comissão como uma espécie de escriba enquanto esperava a nomeação para um primeiro lugar diplomático; mas conduzia-se já como qualquer jovem secretário perfeitamente integrado e consciente das responsabilidades que o esperavam. Simplesmente, nesse dia era um pouco mais difícil conservar a reserva habitual, tão excitado se encontrava com a pescaria. De facto não se importava nada com o vinco das calças de flanela nem com o facto de a água que se infiltrava no fundo da canoa lhe manchar os sapatos de lona branca. Era como se no Egipto pormenores desta natureza fossem sistematicamente negligenciados. Abençoava a sorte que lhe proporcionara uma carta de apresentação para os Hosnani, para essa velha casa misteriosa erguida no meio de uma rede de lagos e canais não longe de Alexandria. Sim! A canoa de fundo chato que o levava agora, avançando lentamente sobre as águas túrbidas, voltava para leste a fim de tomar posição no vasto semicírculo de embarcações que se fechava progressivamente no espaço delimitado pelas balizas das redes. E ao aproximarem-se, a noite egípcia começou a cair: todos os objectos tomaram subitamente a aparência de baixos-relevos sobre um fundo de ouro e púrpura.
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A terra adensava-se como uma tapeçaria no crepúsculo lilás, estremecendo aqui e além em revérberos que se reflectiam no nevoeiro ascendente, horizontes que se expandiam e contraíam, como se o Mundo se espelhasse sobre uma bola de sabão prestes a desfazer-se. As vozes soavam, umas vezes mais graves, outras mais doces e claras, à flor da água. O eco da sua própria tosse prolongou-se sobre o lago como um bater de asas. Apesar de ser quase noite, a temperatura mantinha-se elevada e a camisa colava-se-lhe às costas. Os raios de sombra que avançavam para eles mal recortavam os perfis das ilhotas franjadas de canaviais, pontuando a superfície das águas como grandes cabeças de alfinetes, como patas, como maciços de vegetação. Lentamente, num passo de procissão, o grande arco das embarcações iase fechando, mas com a terra e a água a liquefazerem-se simultaneamente ele tinha mais a impressão de viajar através do céu do que nas águas aluviais do Mareótis. Ouvia o chapinhar de invisíveis gansos, e às vezes num recanto do horizonte a água e o céu separavam-se quando levantava voo uma esquadrilha de patos, arrastando as patas à superfície do lago, como flutuadores de hidroaviões grasnando estupidamente. Mountolive suspirou e pôs-se a contemplar a água que lhe corria aos pés, o queixo entre as mãos. Estava pouco habituado a sentir-se tão feliz. A juventude é a idade dos desesperos. Atrás dele ouvia o mais novo dos dois irmãos, Narouz, o que tinha o lábio leporino, gemer de cada vez que a vara, impelindo a embarcação para diante, lhe repercutia nos rins o impulso da canoa. A lama do fundo, grossa como melaço, salpicava a esteira com um baque surdo, enquanto a vara se afundava voluptuosamente na vasa. Era belo e mal cheiroso; contudo, com grande surpresa, sentiu-se deliciado com os odores pútridos do estuário. Rajadas de vento, vindas do mar, fustigavam-nos de vez em quando refrescando-lhes a mente.
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Nuvens de mosquitos evoluíam como uma chuva de prata nos reflexos do sol moribundo. A teia de aranha da transição de luz inflamou-lhe o espírito. — Narouz, sinto-me muito feliz — disse ele escutando as pancadas regulares do coração. O adolescente soltou uma risadinha silvante e tímida, baixando a cabeça: — Bem, bem. Mas isto não é nada. Estamos a chegar. Mountolive sorriu. «O Egipto», pensou, como se pensasse no nome de uma mulher, «o Egipto». — Para além — disse Narouz na sua voz rouca e melodiosa -— os patos não são rusés. (O seu inglês era imperfeito e hesitante). São fáceis de apanhar (é (apanhar» que se diz, não é?). Mergulha-se por baixo deles e agarramo-los pelas patas. Mais fácil do que abatê-los a tiro. Se quiser podemos voltar amanhã. Gemeu novamente e apoiou-se à vara com todo o seu peso, soltando um gemido. — E as serpentes? — perguntou Mountolive. Nessa tarde tinha lentamente nas águas.
avistado
algumas,
bem
grandes,
deslizando
Narouz meteu a cabeça entre os ombros possantes e desatou a rir. — Não há serpentes — disse ele; e pôs-se de novo a rir. Mountolive voltou-se para descansar a face no rebordo da amurada. Pelo canto de um olho avistava o seu companheiro, manobrando a vara, e observava-lhe os braços e as mãos cabeludas, as pernas robustas. — Posso substituí-lo agora? — perguntou em árabe. Já tinha notado que os seus hospedeiros ficavam radiantes quando ele se lhes dirigia na língua nativa. As respostas que lhe davam eram afectuosas como um abraço. — Quer? — De maneira nenhuma — disse Narouz soltando o seu feio sorriso que uns olhos magníficos e uma voz de profundas tonalidades redimiam. O suor escorria-lhe das madeixas negras. E a fim de evitar que a recusa fosse considerada indelicada, acrescentou: — A batida começa ao cair da noite.
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Eu sei o que é preciso fazer; a si compete descobrir os peixes. Os dois apêndices de carne rosada que separavam o lábio fendido estavam húmidos de saliva. Piscou o olho afectuosamente ao jovem inglês. As trevas corriam agora para eles e a luz extinguia-se. Bruscamente Narouz gritou: — Chegou o momento. Olhe lá para diante. Bateu palmas violentamente e soltou um grito através das águas, sobressaltando o companheiro, que levantou a cabeça para seguir-lhe a direcção do dedo apontado. — Para onde? A resposta de um tiro disparado no barco mais distante chicoteou o espaço, e a linha do horizonte foi novamente cortada a meio por um novo voo, erguendo-se mais lentamente e dividindo céu e terra numa ferida encarnada que alastrava como o recheio de uma romã a derramarse da casca. Depois, o encarnado cambiou para escarlate, e a abóbada recaiu na superfície do lago numa chuva de neve branca que se fundia ao tocar na água. — Flamingos! — exclamaram ambos e riram, e a escuridão recaiu sobre eles, extinguindo o mundo visível. Ficaram por um momento imóveis, respirando pesadamente, enquanto os seus olhos se acostumavam às trevas. Vozes e gargalhadas de barcos distantes, flutuando na trilha que seguiam. Alguém gritou «Ya Narouz», repetindo «Ya Narouz». O rapaz limitou-se a resmungar. E veio então o som breve e sincopado de um tamborim, música cujos ritmos se instalaram na mente de Mountolive de tal modo que este se surpreendeu a tamborilar com os dedos no costado da embarcação. O lago era agora invisível, a lama amarelada tinha desaparecido — essa lama quebrada e macia das grandes fendas pré-históricas, ou essa lama betuminosa que o Nilo leva adiante na sua marcha para o mar. O seu relento impregnava a atmosfera. «Ya Narouz», ouviu-se uma vez mais, e Mountolive reconheceu a voz de Nessim, o irmão mais velho, trazida numa rajada de vento.
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«Está... na... hora... de... acender». Narouz resmungou uma resposta e soltou um grunhido de prazer procurando os fósforos. - Agora é que vai ver — disse ele, com orgulho. O círculo das canoas tinha-se cerrado em torno das redes e no crepúsculo quente principiaram a flamejar as chamazinhas dos fósforos; logo as lâmpadas de carbureto fixadas à proa das embarcações começaram a emitir a sua luz trémula e amarelada, vacilando antes de se acender, permitindo assim aos que não se encontravam alinhados rectificarem as suas posições. Narouz passou por cima do companheiro, desculpando-se, e dirigiu-se à proa. Mountolive surpreendeu o cheiro a suor do seu corpo atlético quando o outro se debruçou para aspirar o tubo de borracha e agitar o reservatório da lâmpada, cheio de pedaços de carbureto. Depois deu volta a uma chave, acendeu um fósforo e por um momento ficaram ambos sufocados pela densa fumarada que se dissipou rapidamente enquanto debaixo deles florescia, como um imenso cristal colorido, um semicírculo de água, radiante como uma lanterna mágica, revelando as formas estranhamente nítidas dos peixes que se dispersavam e tornavam a agrupar com estremecimentos de surpresa, de curiosidade, e, porventura, até de prazer. Narouz expeliu o ar dos pulmões e regressou à popa. — Olhe para baixo — disse ele num tom imperativo; e acrescentou: — Mas conserve a cabeça bastante baixa. E como Mountolive, que não compreendera esta última recomendação, se voltasse para o interrogar, explicou: — Cubra a cabeça com o casaco. Os maçaricos enlouquecem com a pescaria. Da última vez fiquei com um rasgão na face e Sobhi perdeu um olho. Olhe baixo e para a água. Mountolive obedeceu e ficou ali flutuando no poço de luz inquieta cuja superfície era agora de um cristal incomparável onde passeavam tartarugas, sapos e peixes - um mundo perturbado pela invasão dos seus domínios.
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O batel oscilou novamente antes de deslizar para diante. A água fria lambia-lhe os pés. Com um canto do olho viu o semicírculo luminoso, como uma corrente florida, fechar-se mais rapidamente; e, como para dar às embarcações um ritmo e uma orientação, elevou-se um cântico, acompanhado pelos tamborins, surdo e melancólico, mas imperativo. Outra vez os sacões do batel se foram repercutir nas suas costas. As sensações presentes eram inteiramente novas, não tinham precedente. A água adensara-se, espessa como um caldo de aveia lentamente remexido ao fogo. Mas, atentando melhor, compreendeu que essa densidade não era devida à água mas à proliferação dos peixes, que, excitados sem dúvida pela consciência do seu grande número, deslizavam e saltitavam. O cordão fechara-se como um nó corredio, e agora as embarcações não distavam entre si mais de sete metros. Os homens lançavam gritos roucos e batiam a água, excitados também eles pela presença dos cardumes cada vez mais densos no fundo macio do lago, enquanto os peixes se enervavam num ritmo crescente ao descobrirem-se cercados. Era um delírio de movimentos circulares e fugas bruscas. Vagas silhuetas de homens começaram a desdobrar as redes e a gritaria aumentou. Mountolive sentiu que o sangue lhe corria mais vivo. — Atenção! — gritou Narouz. — Não se mexa. A água estava espessa como cola e corpos prateados começaram a surgir saltando na escuridão para recaírem na amálgama lamacenta. Os círculos de luzes encontraram-se, confundiram-se, e o cerco fechouse; houve então um chapinhar ininterrupto de formas obscuras que remergulhavam na água efervescente, contorcendo-se, escapando-se das redes agora reunidas e já transbordantes, como meias do Natal, com os corpos nervosos dos peixes. O pânico começava a apoderar-se deles e enrugavam a superfície da água com os seus saltos precipitados, salpicando as lanternas balbuciantes e vindo cair finalmente dentro dos batéis, colheita nervosa de escamas geladas e de caudas palpitantes.
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Os seus sobressaltos de agonia eram tão excitantes como o bater de tambores. Partiam risos de todos os lados enquanto as redes se apertavam. Mountolive distinguia os árabes, com o seu grande manto branco apertado na cintura, segurando-se com as mãos às proas negras, atirando lentamente para diante as redes entrelaçadas. A luz iluminava-lhes as coxas morenas. A noite estava prenhe da sua alegria bárbara. E então produziu-se novo e inesperado fenómeno — o céu, tal como as águas, começou a tornar-se espesso. As trevas povoaram-se de vultos estranhos, pois os gritos e os ruídos tinham despertado os habitantes das margens — pelicanos, flamingos, gralhas e maçaricos — que se aproximavam em bandos desordenados, vindos dos canaviais para participar no festim, lançando gritos agudos e descrevendo audaciosas figuras aéreas para apanhar o peixe no voo. A atmosfera e a água fervilhavam de vida enquanto os pescadores começavam a armazenar a sua presa no fundo dos batéis ou voltavam as redes para despejar uma catadupa de corpos prateados no fundo do barco. Os timoneiros depressa ficaram com os pés ocultos por uma multidão de corpos contorcendo-se numa agonia desesperada. Havia de sobra para os homens e para as aves, e, ao passo que os maiores pernaltas do lago abriam e fechavam as asas tímidas como velhas sombrinhas coloridas, os maçaricos mergulhavam com a rapidez do raio, excitados pela fome e pela carnagem, em voos suicidas, indo alguns quebrar o pescoço nas tábuas dos barcos, indo outros enterrar o bico na carne morena de um pescador, rasgando-lhe uma perna ou o rosto, na sua avidez terrificante. Os salpicos da água, os gritos roucos, o bater dos bicos e das asas e o matraquear frenético dos tamborins emprestavam à cena um inesquecível esplendor que evocava no espírito de Mountolive antigos frescos faraónicos de luz e de trevas. Alguns homens lutavam contra as aves, batendo o ar com bastões, de tal modo que no meio do montão de peixes descobriam-se por vezes penas de todas as cores, de magníficas cambiantes, e bicos quebrados de onde pingava o sangue sobre as escamas prateadas.
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Em menos de uma hora os batéis ficaram cheios até à borda. Nesse momento Nessim passou junto deles e gritou-lhes: — Temos de nos ir embora! Estendeu a mão apontando para uma lanterna que formava na margem uma doce gruta de luz, no interior da qual se distinguiam os flancos sedosos de um cavalo e o recorte denteado de palmeiras. — A minha mãe está à nossa espera — acrescentou Nessim, sorrindo. Debruçou-se e o seu belo rosto apareceu aureolado por um jacto de luz que o envolveu. Era dotado daquela beleza bizantina de que se encontram numerosos exemplos nos frescos de Ravena — rosto em forma de amêndoa, olhos negros, feições puras. Mas Mountolive via através do rosto de Nessim a face de Leila, sua mãe, que tanto se parecia com ele. — Narouz! — gritou o rapaz, porque o irmão tinha saltado à água para prender uma rede. — Narouz! (Era difícil fazer-se ouvir naquela confusão). Temos de nos ir embora. E os dois batéis viraram de bordo e apontaram para o embarcadouro onde Leila os esperava pacientemente com os cavalos, ouvindo o zumbido persistente dos mosquitos. Um fino crescente erguera-se no céu. A voz de Leila atravessou afectuosamente as águas para censurá-los e Narouz suspirou deliciado. -— Apanhámos milhões de peixes — gritou Nessim. Ela estava à beira do embarcadouro, silhueta apenas mais sombria que a noite, e as suas mãos encontraram-se por um instinto perfeito e inconsciente. O coração de Mountolive começou a palpitar desordenadamente quando ela o ajudou a saltar. Mas apenas os dois irmãos em terra, Narouz bradou: — Vamos ver quem chega primeiro a casa, Nessim!
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Precipitando-se para os cavalos partiram a galope, às gargalhadas, e Leila soltou um grito de prudência: — Tenham cuidado! Mas já eles iam longe do molhe cujas tábuas elásticas deixaram a vibrar. Narouz ainda respondeu com uma gargalhadinha mefistofélica. - Que hei-de fazer? — disse ela com uma resignação irónica enquanto o intendente se aproximava com dois cavalos. Montaram e tomaram o caminho de casa. Mandando o intendente avançar adiante com a lanterna, Leila aproximou o seu cavalo do cavalo de Mountolive, para que os seus joelhos se tocassem e para que o contacto dos seus corpos apaziguasse em parte a sede dos sentidos. Eram amantes havia apenas dez dias, mas para o jovem Mountolive esses dez dias tinham sido uma eternidade de alegria e desespero. A sua educação inglesa não o tinha preparado para as subtilezas do sentimento. A despeito da sua juventude tinha já assimilado perfeitamente todas as preciosas lições que lhe haviam de permitir viver em boa sociedade sem graves problemas; mas às suas emoções pessoais tudo quanto podia opor era o silêncio taciturno de uma sensibilidade nacional quase completamente anestesiada: uma educação à base de reticências e falsos pudores. Educação e sensibilidade raro se encontram a par, embora a lacuna se possa ocultar sob as regras do bem viver e das conveniências. Da paixão tinha apenas conhecimentos literários; enunciava opiniões quando o tema caía em conversa; mas considerara-a sempre uma realidade estranha ao seu destino; e agora lá estava ela, animando secretamente a sua vida de escolar precocemente amadurecido, vivendo uma vida autónoma por detrás da fachada de boas maneiras e das actividades quotidianas, das conversas e das amizades do dia-a-dia. Nele o humano dera frutos antes de o próprio homem interior ter florescido. Leila voltara-o do avesso como se volta um velho saco espalhando o conteúdo em confusão. Mountolive admitiria sem dificuldade não passar de um franganote que já tinha entretanto esgotado todas as suas reservas.
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Descobria quase com indignação que tinha finalmente encontrado qualquer coisa por que se sentia até capaz de morrer — qualquer coisa cuja própria crueza continha em si uma mensagem alada que feria vivamente o seu espírito. Mesmo nas trevas sentia-se corar. Era absurdo. Amar era absurdo, era como ser derrubado. Que diria sua mãe, pensava ele, se os visse assim cavalgando entre os vultos das palmeiras, perto do lago onde se reflectia o crescente da Lua, de joelhos colados? — Sentes-te feliz? — murmurou ela, e Mountolive sentiu os lábios de Leila acariciarem-lhe o pulso. Os amantes não podem dizer nada que já não tenha sido dito e calado um milhão de vezes. Os beijos foram inventados para traduzir esses mil nadas em ferimentos. — Mountolive — repetiu ela. — Meu querido David. — Sim... — Estás tão tranquilo. Julgava que dormias. Mountolive enrugou a testa, pesquisando a sua natureza íntima. — Estou a reflectir — respondeu. Sentiu novo beijo no pulso. — Querido! — Querida! Continuaram assim, de joelhos colados, e depressa avistaram a casa, solidamente construída no meio de uma rede de diques e canais de água doce que fragmentavam o estuário. O ar pulsava agitado pelas asas dos morcegos. Todas as varandas do primeiro andar se encontravam vivamente iluminadas; o inválido, na cadeira de rodas, o olhar ciumento cravado na noite, esperava-os. Atingido por uma doença obscura que o ia matando aos poucos, o marido de Leila via a doença agravar a grande diferença de idades que os separava; enquanto ela tinha apenas quarenta anos — e ninguém lhos dava — ele ia para além dos sessenta.
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A enfermidade encerrava-o num sudário de cobertores de onde emergiam duas mãos longas e trémulas. As suas feições rudes e taciturnas encontravam-se reproduzidas no filho mais novo, e tinha a cabeça constantemente inclinada sobre a espádua; vista a certa luz lembrava aquelas máscaras carnavalescas que são levadas na ponta de varas.. Resta acrescentar que Leila amava-o. «Leila amava-o». No silêncio da sua mente, Mountolive nunca era capaz de pronunciar esta frase sem guinchar como um papagaio. Como era possível? Interrogara-se mil vezes. Como era possível? Ouvindo o tropear dos cavalos no pátio, o marido fez rolar a cadeira e aproximando-se da balaustrada perguntou timidamente: — És tu, Leila? — A sua voz era a de uma criança muito velha, pronta para ser ferida pelo sorriso quente que ela lhe lançou para o alto pela bela voz de contralto que lhe respondia confundindo a submissão oriental com aquela espécie de consolação que só uma criança é capaz de compreender. — Querido. E subiu a correr a escadaria para beijá-lo. — Aqui estamos, sãos e salvos. Mountolive desmontava lentamente, ouvindo o suspiro de alívio do doente. Demorava-se a apertar uma correia para não ver o beijo que trocavam. Não era ciumento mas a sua incredulidade verrumava-o e feria-o. Nessa ocasião odiava a sua juventude, a sua tacanhez e o sentimento de ter sido violado. Como sucedera tudo aquilo? Sentia-se a um milhão de quilómetros da Inglaterra. Separara-se do seu passado como uma serpente após a muda. A noite estava cheia de aromas fragrantes de jasmim e rosa. Mais tarde, se ela viesse procurá-lo ao quarto, encontrá-lo-ia imóvel, mudo e incapaz de pensar, tomando nos seus braços aquele corpo estranhamente jovem, quase sem desejo nem remorsos; sentia os olhos fecharem-se como um homem imóvel debaixo de uma cascata gelada.
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Subiu lentamente a escada; graças a ela, sabia agora que era belo e aprumado. — Então gostou? — crocitou o inválido num tom onde flutuava (como uma mancha de óleo à superfície da água) o orgulho e a suspeita. Um criado negro, gigantesco, rolou uma mesa onde havia copos e uma garrafa de whisky — estranha anomalia: bebiam o «pôr do sol» como quaisquer coloniais, nesta velha casa inundada de tapetes magníficos, em cujas paredes se ostentavam as zagaias tomadas em Omdurman e em cujas salas se viam estranhos móveis Segundo Império fabricados na Turquia. — Sente-se — disse o velho, e Mountolive, sorrindo-lhe, sentou-se, notando que mesmo aqui, nas salas de visitas, havia livros e periódicos por toda a parte — símbolos da fome insaciável de Leila pelas coisas do saber. Normalmente ela guardava os seus livros e jornais no harém, mas acabavam sempre por inundar a casa. Seu marido não participava desse mundo. Tanto quanto possível ela evitava tornálo consciente desse facto, temendo o seu ciúme que crescia à medida que a doença se agravava. Os rapazes lavavam-se ali perto — Mountolive ouvia sons de águas correntes. Dentro de alguns minutos pediria licença e retirar-se-ia a fim de vestir um fato branco para jantar. Bebia e falava com o inválido na sua voz baixa e melodiosa. Parecia-lhe uma coisa terrível e imprópria ser o amante da sua mulher; o facto de Leila ser capaz de dissimular tão facilmente cortava-lhe a respiração. (A sua voz fria e doce, etc, etc; tentaria não se deixar absorver tão completamente por ela. Estremeceu e sorveu a bebida). Tinha sido difícil encontrar o caminho do solar para onde se dirigia com uma carta de apresentação; a estrada para carros não ia além do rio e era necessário utilizar daí para diante cavalos para alcançar a casa erigida no meio dos canais. Teve de esperar quase uma hora antes de um transeunte amável lhe oferecer um cavalo que o levou ao seu destino. Nesse dia não estava em casa ninguém além do inválido.
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Mountolive notou divertido que ao ler a carta de apresentação, redigida no estilo floreado dos árabes, o inválido murmurava as tradicionais respostas que a delicadeza impõe aos cumprimentos que o autor da missiva lhe endereçava, tal como se aquele se encontrasse presente. Depois, levantando a cabeça, considerou o jovem inglês com simpatia. — Ficará connosco — é a única maneira de melhorar o seu conhecimento da língua árabe. Dois meses, se assim desejar. Os meus filhos falam inglês e terão muito prazer em conversar consigo; minha mulher também. Para eles será uma alegria ver por aqui uma cara nova. E o meu querido Nessim está no seu último ano de Oxford. Orgulho e prazer brilharam fugazmente nos olhos afundados e depois foi novamente o habitual olhar de dor e tristeza. A doença suscita o desprezo. Um doente não ignora esse facto. Mountolive aceitou, e renunciando ao gozo de uma licença na pátria obteve permissão para ficar dois meses em casa deste cavalheiro copta. Era um abandono de tudo o que lhe fora habitual este ingresso numa existência familiar fundada e nutrida na pompa inconsciente de um feudalismo que se ia filiar na Idade Média ou mais longe ainda. O mundo de Burton, Beckford, Lady Hester... Será que então eles existiam? Mas aqui, na posição vantajosa de alguém integrado na tela que a sua própria imaginação pintou, o exótico pareceu-lhe subitamente normal. A sua poesia vinha do facto de essa vida ser vivida naturalmente. Mountolive, que já dominava a língua, sentiu-se contudo pela primeira vez penetrar num país estrangeiro com os seus estranhos costumes. Sentiu o que se sente em casos análogos, nomeadamente o vertiginoso prazer de perder uma personalidade antiga para ganhar outra nova. Tinha por assim dizer a impressão de que os contornos da sua pessoa se dissolviam. Estará nisso o verdadeiro sentido da educação? Tinha começado a transplantar um enorme e intacto mundo da sua imaginação para o solo da sua nova vida.
26 A família Hosnani era variada em espécies. O gracioso Nessim e sua mãe pertenciam ambos ao mesmo mundo intenso da inteligência e da sensibilidade. Ele, o filho mais velho, estava sempre pronto para servir a mãe, fosse para lhe abrir uma porta ou levantar um lenço caído. Falava perfeitamente inglês e francês, era impecável de maneiras, e o seu corpo era elegante e potente. Em frente destes, iluminados pela luz das velas, viam-se os outros dois: o inválido nas suas cobertas e o filho mais novo, grosseiro e abrutalhado como um mastim e com um ar indefinível de estar sempre pronto para lutar. De compleição pesada e feio, era contudo gentil; mas pelo seu olhar de adoração percebia-se perfeitamente que amava o pai acima de tudo. A simplicidade brilhava-lhe nos olhos, era serviçal, e quando o trabalho nas terras o não afastava de casa estava sempre pronto para dispensar os serviços do criado silencioso que esperava por detrás da cadeira de rodas, servindo ele próprio o pai com um orgulho radiante, feliz mesmo quando o carregava nos braços, com uma espécie de avidez ciumenta, para conduzi-lo aos lavabos. Reservava para sua mãe o mesmo olhar de orgulho e maldade infantil que se descobria nos olhos do enfermo. Contudo, embora os irmãos estivessem assim divididos como ramos de oliveira, pertenciam ao mesmo tronco e amavam-se profundamente, pois na verdade um era complemento do outro, sendo um forte onde o outro era fraco. Nessim detestava o derramamento de sangue, o trabalho manual e as maneiras rudes; Narouz sentia prazer em tudo isso. E Leila? Mountolive considerava-a um belo enigma, quando teria podido, se tivesse mais experiência, reconhecer na sua naturalidade uma perfeita simplicidade de espírito e na sua natureza extravagante um temperamento frustrado no seu desenvolvimento normal e que tinha aceitado de boa mente uma solução de compromisso. Este casamento, por exemplo, com um homem muito mais velho do que ela tinha sido um casamento tratado pelos pais — um pormenor bem egípcio.
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A fortuna da sua família tinha entrado em conflito com a fortuna dos Hosnani, porque, como sempre nestes casos, um casamento era uma espécie de associação entre duas grandes companhias. Mas ela jamais se deu ao trabalho de pensar se era feliz ou infeliz. Sentia-se faminta, é o termo, por esse mundo dos livros e das reuniões que existia fora dos muros da velha casa e das terras que alimentavam as suas fortunas. Era obediente e dócil, leal como um animal bem educado. Somente a monotonia da sua vida lhe desorientava o espírito. Em jovem fora estudante no Cairo e sempre nutrira a esperança de prosseguir na Europa os seus estudos prometedores. Quisera ser médica. Mas nesse tempo já era bem bom para uma egípcia conseguir escapar à servidão do véu negro — para não falar de escapar dos limites mesquinhos da mentalidade e da sociedade egípcia. A Europa para os egípcios não passava de um mercado onde os ricos se iam abastecer. Fora a Paris várias vezes com seus pais e apaixonara-se pela cidade como sucede a todos, mas quando se tratou de quebrar as barreiras do hábito nacional e de escapar da rede familiar —• para ingressar numa vida onde a sua inteligência teria florescido — foi quebrar-se contra o rochedo do conservantismo paterno. Devia casar e constituir uma família no Egipto, responderam-lhe friamente, e escolheram entre os homens das suas relações aquele que melhor lhe podia servir, à beira do precipício dos seus sonhos, bela e rica (em Alexandria era conhecida na sociedade pela «andorinha negra», Leila sentiu que tudo se tornava incolor e insípido. Devia conformar-se. Claro que poderia de vez em quando visitar a Europa na companhia do marido, para fazer as suas compras... Mas a sua vida pertencia ao Egipto. Ela cedeu à existência imposta, primeiro com desespero, depois com resignação. Seu marido era bom e criterioso, mas mentalmente acanhado. Aquela vida corroía-lhe a vontade.
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Mas a sua lealdade era tal que Leila mergulhou nos negócios do marido, vivendo, para satisfazê-lo, longe da única cidade que remotamente evocava a Europa - Alexandria. Havia anos portanto que ela se tinha rendido aos torpores do Delta e à monotonia da vida nas terras dos Hosnani. Vivia principalmente através de Nessim, que tinha sido educado no estrangeiro e cujas raras visitas vivificavam a casa. Mas para acalmar a sua curiosidade activa do mundo, Leila assinava livros e periódicos nas quatro línguas que conhecia tão bem como a sua própria, ou ainda melhor, porque ninguém pode pensar ou sentir no idioma árabe, obsoleto e sem dimensões. Assim travava-se há muitos anos uma batalha de resignações, na qual o elemento de desespero só se revelava sob a forma de perturbações nervosas para as quais o marido receitava um tratamento eficaz — dez dias em Alexandria, findos os quais ela regressava com novo alento. Mas mesmo estas visitas foram-se tornando com o tempo mais raras. Ela tinha perdido o contacto com a sociedade e sentia-se cada vez mais estranha no convívio das pessoas que conhecera. A vida na cidade aborrecia-a. Era superficial como as águas do Mareótis; os seus poderes de introspecção aperfeiçoaram-se, e, como os amigos se afastassem, apenas ficaram alguns nomes e algumas feições: Baltasar, o médico, por exemplo, Amaril e poucos mais. Mas em breve Alexandria tornar-seia no universo de Nessim. Quando terminassem os seus estudos ele entraria para a casa bancária com as suas ramificações subsidiárias — navios, óleos, tungsténio — outras tantas raízes sedentas de água... Mas quando esse momento chegasse ela seria virtualmente uma eremita. Esta vida solitária tinha de certo modo contribuído para que não estivesse preparada para receber Mountolive, um estrangeiro, no seu meio. Nesse primeiro dia regressara tarde de uma cavalgada do deserto e foi tomar o seu lugar entre o marido e a visita com um certo estremecimento de prazer. Mountolive mal a olhou, porque a sua voz vibrante despertava no coração do moço estranhos ecos que ele registava mas não desejava interpretar.
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Ela vestia calções brancos e uma camisa amarela com um lenço em torno do pescoço. Nas suas mãos pequenas e tratadas não havia anéis. Nenhum dos rapazes compareceu ao almoço nesse dia, e depois da refeição foi ela quem se propôs mostrar-lhe a casa e os jardins, já agradavelmente surpreendida pela correcção do jovem exprimindo-se em francês ou em árabe. Tratou-o com a solicitude ligeiramente hesitante de uma mulher para com o seu filho único, mas já homem. O genuíno interesse que ele mostrava em aprender surpreendeu-a e comoveu-a. Era absurdo; mas nunca tinha até então havido estrangeiro que se mostrasse tão interessado em aprofundar o idioma, a religião e os costumes árabes. E as maneiras de Mountolive eram tão perfeitas como era fraco o seu domínio sobre si próprio. Caminharam lado a lado no jardim de rosas ouvindo as suas vozes como em sonhos. O ar faltava-lhes como se estivessem prestes a sufocar. Quando nessa noite ele se despediu aceitando o convite de Hosnani para voltar, Leila não se encontrava presente. Um criado informou que ela sentira uma dor de cabeça e se tinha ido deitar. Mas esperou o regresso de Mountolive com uma espécie de obstinada e apreensiva concentração. Naturalmente encontrou os dois irmãos na tarde da primeira visita; Nessim chegou de Alexandria no decorrer da tarde e Mountolive instantaneamente reconheceu nele um ser da sua espécie, uma pessoa cuja vida era um código. Entre eles estabeleceu-se logo um acordo tímido. E Narouz? — Onde pára esse velho Narouz? — perguntou Leila ao marido como se o segundo filho fosse mais dele do que dela, o seu bordão de inválido. — Fechou-se na incubadora há quarenta dias. Regressa amanhã. Leila parecia um pouco embaraçada. Depois, voltando-se para o marido, perguntou: — Posso levar Mountolive para ver Narouz?
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— Certamente. — Você sabe, Mountolive, Narouz está destinado a ser o lavrador da família e Nessim o banqueiro — explicou ela corando ligeiramente. Mountolive ouvi-a encantado pronunciar o seu nome com um sotaque francês que o tornava no mais romântico dos nomes — «Montolif». Era também um pensamento novo. Ela tomou-lhe o braço e atravessaram o jardim das rosas, cruzaram o palmar e dirigiram-se para o comprido edifício de tijolo vermelho, enterrado no solo, onde se encontravam as incubadoras. Bateram uma ou duas vezes numa porta baixa, mas por fim Leila empurrou-a com impaciência e entraram num apertado corredor onde havia dez fornos de barro alinhados uns em frente dos outros. — Fechem a porta — gritou Narouz aparecendo no meio de um ninho de teias de aranha para identificar os intrusos. Mountolive estava um pouco intimidado pelo seu ar taciturno, pelo seu bico de lebre e pelas entoações cavas da sua voz; tinha a impressão, a despeito da juventude do outro, de se encontrar na presença de um anacoreta das cavernas. A pele estava amarelada e os olhos engelhados pela longa vigília. Mas quando os viu, Narouz pediu desculpas e parecia encantado por se terem incomodado a procurá-lo. Estava ansioso e orgulhoso por explicar o funcionamento das incubadoras e Leila deixou-o com a palavra. Mountolive já sabia que a incubação artificial dos ovos era uma arte famosa no Egipto desde a mais remota antiguidade e foi com prazer que ouviu a explicação do processo utilizado. Neste subterrâneo poeirento e cheio de teias de aranha falaram de técnicas com os olhos negros e equívocos da mulher postos neles, estudando os corpos, as maneiras e as vozes desses jovens tão diferentes um do outro. Os belos olhos de Narouz resplandeciam de prazer. O vivo interesse do visitante excitava-o também e ele explicava tudo em pormenor, mesmo essa estranha maneira de reconhecer se o ovo se encontra à temperatura conveniente pelo simples método de apoiá-lo contra a órbita ocular.
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Um pouco mais tarde, Mountolive declarou:
atravessando
o
roseiral
ao
lado
de
Leila,
— O seu filho é muito simpático. Leila corou inesperadamente murmúrio, comovida:
baixando
a
cabeça.
Respondeu
num
- Pesa-nos na consciência não o termos mandado operar a tempo. As crianças da aldeia provocavam-no, chamavam-lhe camelo, e isso feria-o profundamente. Sabe que o lábio dos camelos é rachado no meio? Não? Pois é! Foi muito duro para Narouz. O jovem que ia a seu lado sentiu um aperto no coração pensando no que ela própria devia ter sofrido também. Mas não disse nada. E depois, nessa tarde, ela desaparecera. De princípio Mountolive não conseguiu ver claro nos seus sentimentos, mas era pouco dado à introspecção, pouco familiar por assim dizer com a herança da sua própria personalidade — numa palavra, como era novo, afastou-os sem grande dificuldade. (Ele recordava tudo isto a seguir, evocando gravemente cada pormenor enquanto se barbeava diante do espelho de moldura antiga, ou fazendo o nó da gravata. Retomava incansavelmente toda a história, como para colocar à prova e assim dominar por procuração toda a gama de emoções que Leila tinha desencadeado nele. De vez em quando proferia uma praga («Raios») entre dentes como se estivesse a rememorar qualquer temeroso desastre. Era desagradável ser forçado a crescer. Mas também que excitante! Oscilava entre o temor e uma euforia grotesca.) Muitas vezes iam cavalgar sozinhos para o deserto por sugestão do marido, e certa noite de lua cheia, estendidos numa duna docemente varrida pelo vento, Mountolive encontrou-se subitamente perante uma nova versão de Leila. Tinham jantado e conversavam na claridade espectral da noite.
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— Espera — disse ela subitamente. — Tens uma migalha nos lábios. E debruçando-se para ele retirou a migalha com a ponta da língua. Mountolive sentiu a língua quente e pequenina de uma gata egípcia pousar por um momento nos seus lábios. (Era neste momento que a sua mente proferia sempre a palavra ((Raios».) Sentiu-se a ponto de desmaiar e empalideceu. Mas ela estava tão perto, inocentemente perto, sorrindo e franzindo o nariz, que tudo quanto ele podia fazer era tomá-la nos braços, debruçando-se como um homem que se contempla num espelho. As suas imagens murmurantes juntaram-se como reflexos na superfície de um lago. O seu espírito estilhaçou-se num milhão de fragmentos que se espalharam pelo deserto. O acto de se tornarem amantes foi tão fácil e completou-se com uma tão aparente falta de premeditação que durante um certo tempo ele mal teve noção do que sucedera. Mas quando se recompôs e pôde pensar, denunciou a sua juventude titubeando: — Mas porquê comigo, Leila? Como se ela pudesse escolher no vasto mundo! E surpreendeu-o ouvi-la repetir a pergunta com uma espécie de desprezo musical; a puerilidade daquela frase era com efeito embaraçosa. — Porquê contigo? Ora... porque sim. E então, com grande surpresa de Mountolive, ela pôs-se a recitar em voz baixa uma passagem de um dos seus autores favoritos. «Oferece-se-nos um largo destino — o mais alto jamais apresentado a uma grande nação. A nossa raça mantém-se ainda viril; uma raça onde se caldeia o melhor sangue nórdico. Não temos um temperamento dissoluto, somos firmes no governar e sabemos obedecer. Aprendemos uma religião de misericórdia que temos neste momento que salvaguardar ou trair. E somos ricos de um património de honra legado por mil anos de história heróica, que devemos ansiar por enriquecer diariamente, a fim de que os ingleses, se for pecado ambicionar a honra, se tornem nos maiores pecadores da terra».
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Mountolive ouviu-a recitar com piedade, surpresa e humilhação. Era evidente que Leila via nele um protótipo de uma nação que só na sua imaginação continuava a existir. Ela abraçava e amava uma gravura colorida da Inglaterra. Aquela era, para ele, a mais estranha experiência do mundo. E enquanto ela continuava a citar a sublime peroração, Mountolive, seguindo na sua voz clara a prosa de singular melodia, sentia as lágrimas subirem-lhe aos olhos. «Ou fareis outra vez, jovens da Inglaterra, do vosso país um trono de reis, uma ilha coroada, uma fonte de luz para todo o Mundo, um núcleo de paz; senhora das artes e da sabedoria; guardiã das grandes figuras históricas no meio das visões irreverentes e efémeras; servidora fiel dos princípios consagrados pelo tempo, entre as tentações e os desejos licenciosos; e entre as cruéis e ruidosas invejas das nações uma nação venerada pela sua inegável coragem e pela sua benevolência para com os homens?» As palavras começavam a martelar-lhe o crânio. — Basta! Basta! — gritou ele por fim. — Nós não somos já nada disso, Leila. Era um absurdo sonho literário que aquela copta tinha descoberto e traduzido. E ele teve então o sentimento de que toda aquela maravilhosa ternura era na realidade endereçada a uma imagem falsa — como se os seus absurdos pensamentos estivessem reduzindo tudo, diminuindo a sua escala até qualquer coisa tão sombria e irreal como, por assim dizer, uma transacção com uma mulher das ruas. Pode uma pessoa apaixonar-se pela efígie de pedra de um cruzado morto? — Tu perguntaste porquê — disse ela ainda com desdém. — Porque — um suspiro —, porque és inglês, creio eu. (De todas as vezes que ele revia esta cena em espírito manifestava a sua estupefacção soltando o seu habitual «Raios».)
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E, como todos os amantes inexperientes do universo, não se contentou Mountolive com deixar correr as coisas; precisava de sondá-las e analisá-las em profundidade. As respostas que ela lhe dava perturbavam-no. Se ele fazia qualquer alusão ao marido, ela irritavase e interrompia-o. — Amo-o. Não consinto que se fale dele sem respeito. É uma alma nobre e eu nunca faria nada que o pudesse magoar. — Mas... mas — balbuciava Mountolive. Então, perante o seu ar interdito, ela punha-se a rir e abraçava-o exclamando: — Doido, que doido! Foi ele que me disse que te tomasse por amante. Pensa — não foi um gesto de certo modo inteligente? Ele teme porventura perder-me mais completamente. Nunca sentiste fome de amor? Não sabes até que ponto o amor é perigoso? Não, não sabia. Mas que podia fazer um inglês com esses singulares moldes de pensamento, com essas confusas e contraditórias lealdades? Estava perplexo. — Somente, é preciso que eu não me apaixone por ti. Era então por esse motivo que ela tinha escolhido amar a Inglaterra de Mountolive e não este? Não encontrava nenhuma resposta satisfatória. A falta de experiência emudecia-o. Fechou os olhos e teve a impressão de cair para trás no espaço negro. E Leila, adivinhando isso, começou a adorar a sua inocência: em certo sentido decidiu fazer dele um homem utilizando todo o calor e candura de que era capaz. Ele era para ela uma espécie de amante e simultaneamente um pupilo que ela podia conduzir à maturidade. Simplesmente (ela devia ter feito muito claramente esta reserva na sua mente) precisava acautelar-se a fim de evitar que ele se revoltasse contra a tutela.
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Assim ocultou-lhe a sua própria experiência e tornou-se para ele numa companheira da mesma idade, partilhando uma cumplicidade que de certo modo parecia tão inocente que mesmo o remorso quase desapareceu e Mountolive começou a ganhar, graças à amante, mais confiança e domínio de si próprio. Tinha igualmente decidido que devia respeitar a reserva de Leila e não se apaixonar, mas esta espécie de dissociação é impossível para os jovens. Não conseguia isolar as diversas necessidades da sua sensibilidade, distinguir entre o amorpaixão e a espécie de chama alimentada por uma imaginação narcisista. O desejo comprimia-lhe a garganta mas não encontrava nome para qualificá-lo. E a cada passo tropeçava na sua educação inglesa. Não podia sequer sentir-se feliz sem sentir igualmente remorsos. Mas tudo isto não o concebia ele com muita clareza: adivinhava, ou quase, que tinha encontrado nela mais do que uma amante, mais do que uma cúmplice. Leila não tinha apenas uma experiência maior; apercebeu-se Mountolive com despeito de que ela tinha uma cultura muito mais vasta do que a sua. Mas era uma amante e uma amiga perfeita e nunca lhe fez sentir tal coisa. Uma mulher experiente dispõe de tantos recursos! Leila refugiava-se sempre numa ternura que se exprimia através de estímulos verbais que lhe denunciavam a ignorância e provocavam a curiosidade. E divertia-se a observar os efeitos que a sua paixão provocava nele — aqueles beijos que caíam escaldantes como saliva sobre ferro quente. Através dos olhos dela Mountolive começou a ver o Egipto uma vez mais — mas numa dimensão diferente. Agora percebia que ter conhecimentos idiomáticos nada é, porque Leila lhe fez sentir como era vazio todo o conhecimento despojado de compreensão. Anotador inveterado, o seu pequeno diário estava agora pejado de apontamentos inspirados nas longas cavalgadas que os dois faziam, mas eram sempre observações respeitantes ao país, porque ele não ousava falar dos seus sentimentos nem sequer pela simples menção «o nome de Leila».
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Eram deste tipo: «Domingo. Atravessando uma aldeola infestada de moscas, a minha companheira apontou-me as inscrições nas paredes das casas, semelhantes a caracteres cuneiformes, e perguntou-me se eu era capaz de decifrar. Respondi que não, como um idiota, sugerindo que possivelmente se tratava de amirico. Gargalhada. Explicou-me então que um venerável bufarinheiro, que passa por aqui todos os seis meses, vende uma erva especial importada de Medina e muito apreciada aqui pela sua proveniência da cidade santa. Como nem sempre as pessoas lhe podem pagar imediatamente, ele concede crédito mas anota, com um caco de barro, na parede do devedor, o montante da dívida para que nenhum se esqueça do débito. Segunda-feira. Ali afirma que as estrelas cadentes são pedras lançadas pelos anjos para afastar os demónios que se aproximam do Paraíso a fim de escutar as conversas onde se enunciam os segredos do futuro. Todos os árabes têm medo do deserto, mesmo os beduínos. Que estranho! Quando cai um silêncio no meio de uma conversa, dizemos «Passou um anjo». Aqui, se o silêncio se prolonga, alguém murmura: «Wahed Dhu» (Deus é Único) e os outros respondem fervorosamente «La Illah Illa Allah» (Só existe um Deus) antes de retomarem a conversa interrompida. Considero estes usos encantadores. O meu hospedeiro utiliza uma curiosa expressão quando fala «retirar-se dos negócios». Diz que vai «realizar a sua alma».
de
Também nunca tinha experimentado o café do Yemen com uma gota de âmbar cinzento em cada chávena. É delicioso. Outra coisa: Mohammed Shebab, quando me encontrou, perfumou-me com uma gota de jasmim que derramou do seu frasquinho conta-gotas — como na Europa se oferece um cigarro a um desconhecido. E ainda: aqui adoram as aves. Num cemitério abandonado encontrei túmulos de mármore onde há pequenos bebedouros para os pássaros, que as mulheres da aldeia vêm encher todas as sextas-feiras.
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Finalmente: Ali, o administrador negro, um imenso eunuco, disse-me que acima de tudo temem, como sinais nefastos, os olhos azuis e os cabelos ruivos. Os anjos caídos, no Corão, têm olhos azuis». Assim escrevia e ponderava o jovem Mountolive sobre a gente entre a qual tinha vindo viver, com aplicação, como convém a um estudante de costumes bizarros; mas também com uma espécie de deslumbramento, porque descobria uma certa correspondência entre o Oriente real e aquele que a sua imaginação tinha forjado a partir das leituras. Havia menos disparidade aqui do que nas imagens gémeas que Leila aparentemente embalava — uma imagem poética da Inglaterra e o seu modelo, o jovem tímido e pouco experiente que ela tomara por amante. Mas não era um imbecil; aprendia agora as duas mais importantes lições da vida: a amar honestamente e a reflectir. Contudo, outros episódios e cenas sucederam que o comoveram e excitaram de forma diferente. Certo dia atravessaram todos a plantação para visitar a velha ama, Halima, que vivia agora numa honesta aposentação. Tinha sido ama e companheira dos rapazes durante a infância. — Ela até os amamentou quando perdi o leite — explicou Leila. Narouz pôs-se a rir e explicou na sua voz rouca: — Era a nossa «mastigadora». Conhece o costume? No Egipto, nessa época, havia criados cuja obrigação consistia em mastigar os alimentos antes de passá-los para a boca das crianças. Halima era uma negra liberta, oriunda do Sudão, e estava também a «realizar a sua alma», numa pequena casita de lama seca entre os canaviais, ditosamente rodeada por numerosa descendência de filhos e netos. Era impossível dizer que idade tinha. A visita dos Hosnani encantou-a, e Mountolive sentiu-se impressionado vendo-os desmontar e correr a abraçá-la.
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Nem Leila foi menos afectuosa. E quando a velha negra se recuperou da emoção insistiu em executar uma breve dança para honrar os visitantes, e, coisa singular, os seus movimentos eram graciosos. Ficaram todos em volta dela batendo as palmas a marcar o compasso, e quando a velha acabou correram de novo a abraçá-la afectuosamente. Esta amizade espontânea e sem afectação encantava Mountolive e quando olhou para a amante esta leu nos olhos do jovem não somente o amor que ele lhe tinha como um acréscimo de respeito. Ele sentia-se morrer no desejo de estar só com ela, de beijá-la; mas escutou com paciência a história que a velha Halima contou das qualidades da família que lhe tinha dado os meios de visitar por duas vezes a cidade santa como prémio dos seus serviços. Enquanto falava, a sua mão conservava-se meigamente pousada no braço de Narouz, olhando para ele de vez em quando com a afeição de um animal. Depois, quando ele retirou da poeirenta sacola de caça, que nunca o abandonava, os presentes que trouxera para a ama, no rosto desta os sorrisos e a ansiedade sucederam-se como eclipses lunares. Chorava. Mas Mountolive testemunhou outras cenas, porventura menos saborosas mas não menos significativas dos costumes do Egipto. Certa madrugada testemunhou um breve incidente ocorrido debaixo da sua janela. Um rapazinho de pé, embaraçado, diante de um Narouz diferente, e contudo enfrentando-o com um fulgor de coragem nos seus olhos azuis. Mountolive ouvira as palavras «Senhor, não é mentira» proferidas em voz baixa e nítida, enquanto lia na cama; levantou-se e encaminhou-se para a janela a tempo de ver Narouz, que repetia, numa voz silvante e obstinada, as palavras «Estás a mentir outra vez», realizar um acto cuja brutalidade carnal o arrepiou; chegou a tempo de ver o seu hospedeiro retirar uma faca do cinto e cortar uma porção do lóbulo da orelha do rapazinho, mas lentamente, suavemente, como se pode cortar um bago de uva do cacho utilizando uma faca de fruta.
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Um jorro de sangue caiu sobre o pescoço do servo, que se manteve imóvel. — Agora podes ir — disse Narouz com o mesmo silvo diabólico — e diz a teu pai que por cada mentira te tirarei um pedaço de carne até encontrarmos o pedaço verdadeiro, o pedaço que não mente. O rapazinho partiu subitamente numa corrida desordenada e desapareceu num ápice. Narouz limpou a faca nas calças e entrou em casa assobiando. Mountolive estava siderado! Era a variedade destes incidentes o que mais o confundia. Certa tarde, indo em companhia de Narouz até aos limites do deserto, chegaram junto de uma árvore sagrada onde se via toda uma variedade de ex-votos, feitos de pedaços de pano que os aldeãos prendiam nos ramos quando queriam solicitar qualquer favor transcendente. Perto encontrava-se o santuário de um velho eremita morto há muito e de cujo nome apenas raros aldeãos se recordavam. Mas o túmulo abandonado era ainda um lugar de peregrinação e prece para os coptas e para os muçulmanos; foi aí que, apeando-se, Narouz disse com a maior naturalidade: — Faço sempre aqui as minhas orações; quer rezar comigo? Mountolive sentiu-se um pouco desconcertado, mas desmontou e ficaram os dois lado a lado em frente do túmulo arenoso do santo. Narouz elevou os olhos para o céu com uma expressão de demoníaca doçura. Mountolive imitou-lhe todos os gestos e colocou sobre o peito as mãos postas em forma de taça. Depois baixaram ambos as cabeças e rezaram durante um longo momento, findo o qual Narouz expeliu o ar num silvo, como que aliviado, e persignou-se. Mountolive imitou-o profundamente comovido. — Bem, já rezámos — disse Narouz num tom decisivo. Montaram de novo e retomaram a marcha sob o sol através dos campos esmagados pelo silêncio, salvo nos lugares onde as bombas assobiavam aspirando a água do lago para lançá-la nos canais de irrigação.
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No fim de uma série de plantações sombrias encontraram outro som, mais familiar, o murmúrio da sakkia do Egipto, e Narouz apurou o ouvido deleitado. — Escute — disse ele —, escute as sakkias. Conhece-lhes a história? Pelo menos a que os aldeãos contam? Sabe o que é? Alexandre o Grande tinha orelhas de burro e só uma pessoa conhecia esse segredo: o seu barbeiro, um grego. Mas para um grego é difícil guardar segredos! Assim o barbeiro, para aliviar a alma, foi para o campo contá-lo a uma sakkia. E a partir desse dia as sakkias segredam melancolicamente umas para as outras: «Alexandre tem orelhas de burro». Não é curioso? Nessim disse-me que no museu de Alexandria há uma estátua de Alexandre com os cornos de Amon, e esta fábula é porventura uma sobrevivência. Quem sabe? Cavalgaram um momento em silêncio. — Tenho muita pena de ter que vos deixar na próxima semana — disse Mountolive. — Passei convosco umas férias maravilhosas. Uma curiosa expressão formou-se no rosto de Narouz, uma mescla de dúvida e satisfação embaraçada, e entre ambas uma espécie de ressentimento animal onde Mountolive julgou descobrir ciúme — ciúme da mãe? Examinou o perfil severo do outro, inseguro da interpretação a dar-lhe. Afinal de contas o que Leila fazia não lhe dizia respeito. A menos que a sua ligação tivesse ferido os sentimentos da família Hosnani, tão estreitamente ligada por laços de afeição? Gostaria de se poder abrir francamente com os dois irmãos. Nessim pelo menos havia de compreendê-lo e ter-lhe-ia concedido a sua simpatia, mas quanto a Narouz tinha as suas dúvidas. Era difícil confiar-se-lhe. O prazer que inicialmente lhe parecia dar a companhia do hóspede fora gradualmente diminuindo — embora nenhuma marca exterior de animosidade ou reserva o traísse. A coisa era mais subtil, mais indefinível. Talvez, pensou Mountolive, tudo se reduzisse a um complexo de inferioridade do outro?
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Pôs-se a observar de soslaio o perfil cruel e sombrio do companheiro. O que preocupava Narouz — e que Mountolive ignorava — fora uma pequena cena à qual não assistira e que se desenrolou certa noite, havia algumas semanas. Às vezes o doente insistia em deitar-se mais tarde, ficando na varanda, na cadeira de rodas, lendo qualquer livro técnico de agronomia. O dedicado Narouz sentava-se então na sala vizinha e esperava, pacientemente, como um cão fiel, que o pai lhe fizesse sinal para ser transportado ao leito; mas nunca lia. Gostava porém de ficar ali, na luz amarelada da lâmpada, escabichando os dentes com um fósforo e reflectindo enquanto esperava que a voz rouca e áspera do pai o chamasse pelo seu nome. Nessa noite devia ter adormecido porque quando deu por si reparou que se encontrava no escuro. A claridade da Lua inundava a varanda e iluminava uma parte da sala, mas a mão de um desconhecido apagara a lâmpada. Levantou-se bruscamente. Ninguém na varanda. Por um momento Narouz supôs estar sonhando porque seu pai nunca se ia deitar só. E enquanto ali estava, de pé e perplexo, pareceu-lhe ouvir no quarto do inválido o deslizar das rodas do carrinho. Ali estava uma inesperada quebra de rotina. Narouz atravessou a varanda e encaminhou-se para o corredor na ponta dos pés. A porta ficara entreaberta. Espreitou. O quarto estava banhado pelo luar. Ouviu as rodas do carrinho chocar com a cómoda e os dedos trôpegos do pai procurando alcançar o puxador. Depois ouviu abrir-se uma gaveta e foi tomado de pânico recordando que era ali que seu pai guardava o velho revólver Call. Sentiu-se paralisado quando ouviu abrir a culatra e o inesquecível ruído de papel amassado — um ruído que a sua memória interpretou imediatamente. Depois os estalidos precisos das balas que se introduzem nas câmaras do tambor. Tinha a impressão de estar a sonhar um daqueles sonhos em que se corre a uma velocidade louca sem contudo sermos capazes de erguer os pés do solo.
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Quando ouviu a pancada seca da culatra avançando para a posição normal e compreendeu que a arma estava pronta a servir, Narouz dominou-se e preparou-se para intervir mas descobriu então que estava paralisado. Era como se lhe tivessem atravessado a coluna vertebral com um milhão de agulhas. Tinha os cabelos em pé. Dominado por uma dessas temerosas inibições da primeira infância, tudo quanto foi capaz de fazer foi dar um passo em frente e ficar à porta com os maxilares contraídos para evitar que os dentes batessem. A Lua caía em cheio no espelho e ele viu então o pai sentado, muito direito na cadeira, enfrentando a sua imagem com uma expressão que Narouz nunca contemplara antes. A face espectral e impassível tomava na luminosidade pálida que o espelho reflectia uma expressão de onde fora banido todo o sentimento humano, expurgada pelas emoções que a tinham incansavelmente minado. O jovem observava o pai como hipnotizado. (Uma vez, na sua primeira infância, tinha visto qualquer coisa de semelhante — não tão violenta, não tão gélida, mas parecida. Foi quando ouviu seu pai descrevendo a morte de Mahmoud, o administrador infiel, dizer sinistramente: «Então amarraram-no a uma árvore. Castraram-no e meteram-lhe os apêndices na boca». Quando era criança bastava-lhe recordar-se desta frase e da expressão de seu pai para se sentir prestes a desmaiar. Este incidente voltou-lhe à memória com uma sobrecarga de terror quando viu o inválido olhar para a sua imagem no espelho inundado de luar e levantar lentamente o revólver para o apontar, não à cabeça, mas ao espelho, repetindo na sua voz crocitante: «E se ela se apaixonar já sabes o que tens a fazer».) Seguiu-se um silêncio quebrado por um pequeno soluço seco e cansado. Narouz sentiu subirem-lhe aos olhos lágrimas de simpatia, mas continuava paralisado, incapaz de se mover, de falar ou sequer de chorar. A cabeça do pai caiu sobre o peito e a mão que empunhava o revólver tombou inerte; Narouz ouviu o som produzido pela arma batendo no chão.
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Um longo silêncio angustioso pesou no quarto, no corredor, no balcão, nos jardins, por toda a parte... silêncio de alívio que permitiu que o sangue do jovem voltasse a circular. (Algures, suspirando no sono, Leila voltou-se na cama procurando para os seus braços brancos e desejados um lugar fresco entre as almofadas.) Um mosquito solitário começou a zumbir. O encanto quebrou-se. Narouz voltou à varanda e ficou um momento a lutar com as lágrimas antes de chamar «Pai» com uma voz aguda e inquieta de rapazinho. Imediatamente se acendeu a luz no quarto, uma gaveta fechou-se e ouviu-se rolar a cadeira. O rapaz esperou um segundo e depois ouviu o grunhido familiar que significava estar tudo a correr bem: «Narouz». Enxugou o nariz na manga e dirigiu-se para o quarto do velho. Seu pai estava voltado para a porta com um livro sobre os joelhos. — Bruto preguiçoso — disse o velho. — Não consegui acordar-te. — Peço desculpa. Narouz sentiu-se bruscamente inundado de alegria; era tão grande o seu alívio que desejou ser humilhado, injuriado, maltratado. — Sou um bruto preguiçoso, um porco sem cabeça, um punhado de sal — reconheceu ele com deleite, desejando provocar o pai e ouvi-lo proferir contra ele injúrias ainda mais duras; desejava banhar-se voluptuosamente na cólera do enfermo. — Deita-me — ordenou o inválido secamente. E o filho debruçou-se com uma ternura sensual para retirar da cadeira o corpo martirizado, feliz por sentir que, apesar de tudo, ainda respirava... Mas como poderia Mountolive saber tudo isso? Reconhecia simplesmente em Narouz uma reserva que não verificava em Nessim. No que respeita ao pai perturbava-o francamente a sua cabeça frouxa de doente e a autopiedade que se emanava de toda a sua pessoa.
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Infelizmente havia um outro conflito que um dia ou outro acabaria por se declarar, e desta vez foi Mountolive que o desencadeou inconscientemente tendo uma dessas gaffes que os diplomatas temem a ponto de perderem o sono. Foi um deslize bastante absurdo mas que permitiu ao enfermo manifestar os seus ressentimentos de uma forma que Mountolive considerou muito característica. A coisa deu-se à mesa, à hora do jantar, e os convivas começaram simplesmente por rir — no meio da sua alegria não houve nenhuma malevolência e apenas se verificou o sorridente protesto de Leila: — Mas, meu caro David, nós não somos muçulmanos, somos cristãos, como você. Naturalmente ele não ignorava isso. Como pudera então proferir semelhantes palavras? Fora uma dessas observações atrozes que, uma vez lançadas, parecem não somente indesculpáveis, mas irreparáveis também. Nessim parecia contudo mais encantado que ofendido, e com o seu tacto habitual segurou no pulso de Mountolive para lhe fazer sentir que se riam do seu lapso e não dele. Mas, quando o riso se aquietou, ele teve a consciência nítida de ter ofendido o velho que se mantivera austero e de pedra na sua cadeira de rodas. — Não vejo onde está a graça — disse ele crispando os dedos nos braços da cadeira. — Este lapso exprime o ponto de vista dos ingleses, ponto de vista que nós, os coptas, temos de combater incessantemente. Antes da chegada dos ingleses, os coptas e os muçulmanos viviam em boa paz. Foram eles que ensinaram os muçulmanos a odiar os coptas e a estabelecer uma distinção. Sim, Mountolive. Os ingleses. Lembre-se disto que eu lhe digo. — Estou desolado — balbuciou Mountolive tentando remediar a falta. — Pois eu não estou — disse o inválido. — É bom que possamos falar francamente dessas coisas, porque nós, os coptas, sentimo-las do fundo do coração. Os ingleses convenceram os muçulmanos a oprimirnos. Observe a Alta Comissão. Fale dos coptas aos seus amigos e verá o desprezo que nos votam.
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E foi esse desprezo que eles inocularam nos muçulmanos. - Sim, certamente, Sir! — disse Mountolive tentando desesperadamente desculpar-se. - Certamente — confirmou o inválido com solenidade. - Nós conhecemos a verdade. Leila fez um gesto breve, quase um sinal, para impedir o marido de se lançar a fundo numa arenga, mas ele não lhe prestou atenção. Recostou-se na cadeira mastigando um pedaço de pão e prosseguiu: — Mas que sabe você, que sabem os ingleses dos coptas, se é que alguma vez se preocuparam com conhecê-los? Uma obscura heresia religiosa, pensam eles, uma linguagem alterada com uma liturgia irremediavelmente mesclada de elementos árabes e gregos. Sempre foi assim. Quando os primeiros cruzados tomaram Jerusalém, foi expressamente proibido aos coptas penetrar na cidade — a nossa cidade santa. Os cristãos do Ocidente nem sequer sabiam distinguir entre os muçulmanos que os tinham derrotado em Askelon e os coptas — o único ramo da Igreja que foi totalmente integrado no Oriente! E quando o vosso bispo de Salisbury declarou abertamente que considerava esses cristãos orientais mais execráveis que os infiéis, os vossos cruzados massacraram-nos alegremente. Uma expressão de amargura, traduzida num sorriso cruel, iluminou-lhe brevemente a face. Depois, retomando aquele ar taciturno habitual e passando a língua pelos lábios, mergulhou novamente numa discussão que Mountolive compreendeu subitamente viver latente no espírito do velho desde a sua primeira visita. Tinha ruminado desde sempre aquelas palavras e só esperara o momento azado para soltá-las. Narouz contemplava o pai com um olhar de adoração, tentando imitar-lhe a expressão, radiante de orgulho ao ouvir pronunciar as palavras a nossa cidade santa, encolerizando-se ao ouvir citar o bispo de Salisbury. Leila, pálida, olhava para a varanda, como se estivesse ausente; somente Nessim se conservava grave, sem perturbação.
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Tinha os olhos fixos no pai, com simpatia e respeito, mas sem traço de emoção. O rosto conservava-se ainda distendido pelo sorriso que precedera o debate. — Sabe como nos chamam os muçulmanos? — prosseguiu Hosnani, e a cabeça oscilou-lhe de novo sobre o frágil suporte do pescoço. — Vou dizer-lhe. Gins Pharoony. Sim, nós somos genus Pharaonicus — os autênticos descendentes dos antigos, a própria essência do Egipto. Nós próprios nos apelidamos de Gypt — os velhos egípcios. Somos cristãos como você mas de uma linhagem mais antiga e mais pura. E fomos sempre o cérebro do Egipto, mesmo nos tempos do quediva. A despeito das perseguições, éramos merecedores de honras, e o nosso cristianismo foi sempre respeitado. Aqui, no Egipto, e não lá, na Europa. Sim, os muçulmanos, que odiaram os gregos e os judeus, reconheceram nos coptas os verdadeiros representantes do Egipto antigo. Quando Mohammed Ali chegou ao Egipto entregou todos os assuntos financeiros nas mãos dos coptas. Ismail, o seu sucessor, fez o mesmo. Se estudar o assunto descobrirá que o Egipto foi sempre virtualmente governado por nós, os coptas desprezados, porque temos mais inteligência e integridade que os outros. Quando Mohammed Ali cá chegou encontrou um copta dirigindo todos os negócios do Estado e nomeou-o grão-vizir. — Ibrahim El Gohari — disse Narouz com o ar radiante de um aluno que sabe a lição. — Exactamente — disse o pai com ar não menos radiante. — Era o único egípcio que tinha autorização para fumar o seu cachimbo na presença do primeiro dos quedivas. Um copta! Mountolive maldizia a leviandade que lhe estava valendo aquela preleção, mas ao mesmo tempo escutava-a muito atento. Era óbvio que aqueles agravos tinham produzido sulcos profundos nos seus hospedeiros. — E quando Gohari morreu quem foi escolhido por Mohammed Ali? — Ghali Doss — disse Narouz orgulhosamente.
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- Exacto. Como chanceler do Tesouro tinha acesso a todas as rendas e impostos. Era um copta. Outra vez um copta. E seu filho Basílio foi nomeado bey e membro do Conselho Privado. Esses homens governaram o Egipto honradamente; e grande número deles recebeu altos cargos. — Sedarous Takla em Enesh — disse Narouz —, Shehata Hasaballah em Assiout, Girgis Yacoub em Beni-Souef. Os seus olhos brilhavam enquanto recitava aquela litania de honras coptas, e tinha o ar de uma serpente estendendo-se ao sol da aprovação paterna. — Sim! — bradou o inválido batendo com o punho no braço da cadeira. — Sim! E mesmo sob Said e Ismail os coptas tiveram o seu papel. Em cada província o procurador era um copta. Compreende o que significa essa confiança concedida a uma minoria cristã? Os muçulmanos sabiam com quem estavam tratando, sabiam que éramos em primeiro lugar egípcios e só depois é que éramos cristãos. Egípcios cristãos — já alguma vez, vocês, os britânicos, com as vossas ideias românticas a respeito dos muçulmanos, haveis pensado no significado destas palavras? Os únicos cristãos orientais completamente integrados num estado muçulmano? Seria o sonho dos alemães serem capazes de descobrir uma tal chave para o Egipto, não acha? Os cristãos em todos os postos de confiança, nas posições-chaves, como mudirs, governadores, etc. O ministro da guerra de Ismail era um copta. — Ayad Bey Hanna — acrescentou Narouz. — Sim. E sob Arabi o ministro da Justiça foi um copta. E o mestre das cerimónias. Ambos coptas. E outros, muitos outros. — E como se modificou a situação? — perguntou Mountolive calmamente. O enfermo aprumou-se na sua carapaça de cobertores e apontou para o seu convidado um dedo trémulo e acusador: — Foram os ingleses que mudaram tudo com o seu ódio contra os coptas.
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Gorst estabeleceu relações diplomáticas amigáveis com o quediva Abbas e o resultado das suas intrigas foi que em pouco tempo não se encontrava um único copta nem na corte nem na administração das províncias. E quem falasse com a camarilha desse homem bestial, corrompido pelo ouro inglês, ficaria convencido de que era na parte cristã da nação que se encontrava o inimigo. Permita-me que lhe leia uma coisa... — «Quando os ingleses tomaram o Egipto, os coptas ocupavam postos importantíssimos na gerência do Estado. Em menos de um quarto de século quase todos os governadores provinciais coptas tinham desaparecido. Antes dos ingleses, julgavam nos tribunais juízes coptas, mas, pouco a pouco, o seu número foi reduzido a zero; o processo de transferi-los e impedi-los de ocupar novos lugares continuou até reduzi-los a um estado de desânimo, quase de desespero!» Foi um inglês quem escreveu estas palavras, o que só o honra. Fechou o livro e prosseguiu: — Hoje, sob o domínio inglês, o acesso aos postos de governador ou mesmo de Mamur — o magistrado administrativo provincial — está interdito aos coptas. Mesmo os que trabalham para o governo são obrigados a trabalhar ao domingo, porque, por deferência para com os muçulmanos, a sexta-feira é que foi considerada dia de descanso. Nenhuma disposição foi tomada para que os coptas possam praticar o seu culto. Nem sequer se encontram devidamente representados nos conselhos do governo. Pagam impostos pesadíssimos para a educação mas nem um cêntimo se destina a um estabelecimento de educação cristã. A educação é inteiramente islâmica. Mas não desejo aborrecê-lo com a enumeração de todas as nossas queixas. Quero simplesmente que compreenda por que motivo sentimos que os ingleses nos odeiam e perseguem. — Não posso convencer-me de que seja assim — replicou Mountolive frouxamente, oprimido pela virulência da crítica e não sabendo como responder-lhe.
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Todos aqueles problemas eram novos para ele, cujos conhecimentos se limitavam aos colhidos na obra de Lane, considerada como o vero evangelho do Egipto. O doente sacudiu de novo a cabeça, como para fortalecer o seu ponto de vista. Narouz, cujo rosto reflectira os diversos sentimentos daquela conversa, imitou-o. Depois o pai apontou para o filho mais velho. — Veja, olhe para Nessim. Um autêntico copta. Brilhante, reservado. Não acha que o seu verdadeiro lugar seria na diplomacia egípcia? Como futuro diplomata, você pode julgar melhor do que eu. Mas não. Será um homem de negócios porque nós, os coptas, sabemos que é inútil, inútil. Bateu novamente no braço da cadeira e a saliva apareceu-lhe nas comissuras dos lábios. Mas era esta a oportunidade que Nessim esperava. Tomando a manga do pai beijou-a submisso, dizendo ao mesmo tempo com um sorriso: — Mas David aprenderá isso tudo de qualquer maneira. Por agora basta. E voltou-se a sorrir para a mãe, que deu o sinal de paz ordenando aos criados que prosseguissem no serviço. Beberam o café num silêncio embaraçado, na varanda onde o inválido se conservou de parte, o olhar perdido na noite, e todas as tentativas feitas para generalizar a conversa falharam rapidamente. O doente, seja feita justiça, sentia-se agora envergonhado da sua explosão. Tinha jurado nunca levantar a questão na presença do seu convidado e sentia que violara as leis da hospitalidade. Mas não via de que maneira podia contribuir agora para restabelecer as relações cordiais momentaneamente deterioradas. Foi outra vez Nessim quem salvou a situação levando Leila e Mountolive ao roseiral, onde todos três passearam um momento em silêncio na noite embalsamada de perfumes que apaziguaram os seus espíritos.
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Quando se afastaram o bastante da varanda para não correrem o risco de serem ouvidos, Nessim disse num tom casual: — David, espero que as palavras de meu pai não o tenham ofendido. São coisas que o atormentam bastante. — Bem sei. — E sabe — acrescentou Leila vivamente, desejando pôr termo àquilo e restabelecer a atmosfera normal de cordialidade —, o que ele lhe disse é justo, a despeito da maneira que utilizou para se exprimir. A nossa posição está longe de ser invejável e deve-se inteiramente aos ingleses. Agora formamos uma espécie de sociedade secreta, por certo a mais brilhante, mas que foi outrora a comunidade essencial do nosso país. — Não consigo compreender isso — disse Mountolive. — Não é difícil — disse Nessim com desenvoltura. — A igreja militante dá-lhe a chave do enigma. Não lhe parece estranho que, para nós, nunca tenha havido conflito entre a cruz e o crescente? Esse conflito foi uma criação puramente ocidental, tal como a noção da crueldade muçulmana. Os muçulmanos nunca perseguiram os coptas por motivos religiosos. Pelo contrário, o próprio Corão respeita Jesus como um verdadeiro profeta, um precursor de Maomet. Há dias Leila citou-lhe o retrato do menino Jesus num dos suras... lembra-se. Insuflando a vida nas avezinhas que modelava em terra na companhia de outras crianças... Recordo-me, sim — E no túmulo de Maomet — disse Leila — existe uma câmara vazia que espera o corpo de Jesus. Segundo a profecia ele deve ser enterrado em Medina, a fonte do Islão, lembra-se? E aqui, no Egipto, os muçulmanos respeitam e veneram o Deus cristão. Mesmo agora. Pergunte a quem quiser. Pergunte a qualquer muezzin. (Era o mesmo que dizer: (Pergunte a qualquer homem que fale verdade — porque um homem impuro, um ébrio, um louco ou uma mulher não podem ser investidos na dignidade de convocar os muçulmanos para a oração.)
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— Vocês ficaram no tempo das cruzadas — disse docemente Nessim em tom irónico, mas sempre com o sorriso nos lábios. Depois afastou-se num passo ligeiro por entre as rosas deixando-os sós. Logo a mão de Leila procurou a de Mountolive. — Não te aflijas — disse ela em voz diferente. — Algum dia voltaremos ao cume, com ou sem a vossa ajuda. Somos teimosos! Sentaram-se juntos num banco de mármore falando de coisas diferentes, agora que se encontravam sós. — Que escuro! Não vejo senão uma estrela. É sinal de nevoeiro. Sabes que no Islão todo o homem tem uma estrela que lhe pertence desde que nasceu e o acompanha até à morte? Talvez aquela estrela seja a tua, David Mountolive. — Ou a tua? — Brilha demais para ser a minha. As estrelas empalidecem à medida que envelhecemos. A minha deve estar muito pálida. Já percorri mais de metade do meu caminho. E quando tu partires ela empalidecerá ainda mais. Beijaram-se. Depois fizeram projectos de se encontrarem o mais depressa possível; Mountolive declarou-lhe as suas intenções de regressar sempre que tivesse uma licença. — Mas tu não ficarás muito tempo no Egipto — disse ela olhando-o com um sorriso fatalista. — Serás nomeado em breve. Só pergunto para onde te mandarão. Tu hás-de esquecer-nos... mas não, os ingleses são sempre fiéis aos velhos amigos, não é verdade? Beija-me. — Não pensemos nisso agora — disse Mountolive; sentia-se desfalecer à ideia da próxima partida. — Falemos de outra coisa. Olha, fui ontem a Alexandria procurar prendas para oferecer a Ali e aos outros criados. — E que trouxeste? Tinha comprado água de Meca, nas garrafas azuis com o selo da fonte sagrada de Zem-Zem. Pensava oferecê-las à despedida.
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— Pensas que eles as aceitarão inquieto, e eia ficou encantada.
de
um
infiel?
—
perguntou
ele
— Que bela ideia, David! Típica e delicada. Oh, que havemos de fazer quando te fores embora? Ele sentiu-se absurdamente satisfeito consigo próprio. Era possível imaginar que um tempo viria em que eles não mais se poderiam beijar assim ou permanecer sentados de mãos dadas, na noite, sentindo o pulso do outro marcar o tempo que fugia em silêncio — os limites mortos das experiências passadas? Afastou do espírito este pensamento — resistia mal às verdades cruéis. Leila dizia agora: — Não receies nada. Já pensei no plano das nossas relações para os anos que se vão seguir; não rias... será talvez ainda melhor quando deixarmos de ser amantes e começarmos... o quê? Não sei — quando pensarmos um no outro numa posição neutra; como amantes, quero dizer, que foram obrigados a separar-se; que talvez nunca devessem ter sido amantes; escrever-teei com frequência. Será uma nova aventura que começará para nós dois. — Peço-te que te cales — disse ele sentindo o desespero invadi-lo. — Porquê? — disse ela; depois, voltando a sorrir, beijou-o suavemente nas fontes. — Tenho mais experiência que tu. Veremos. Sob a aparente leviandade de Leila ele reconhecia algo de forte, resistente e duradouro — as próprias características de uma experiência que lhe faltava. Leila era uma criatura valorosa e só os bravos sabem conservar-se alegres na adversidade. Mas na noite que precedeu a partida ela não veio visitá-lo ao quarto, quebrando a sua promessa. Era bastante mulher para desejar aguçar as dores da separação a fim de tornar mais prolongado o seu efeito. E a expressão de Mountolive na manhã seguinte, ao pequeno almoço, encheu-a da mais pura alegria; ele sofria evidentemente. Acompanhou-o a cavalo até ao embarcadouro mas a presença de Nessim e Narouz impedia qualquer intimidade, o que também lhe convinha.
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Com efeito nada mais havia a dizer entre os dois. E ela desejava acima de tudo evitar as repetições que acabam por degradar o amor. Desejava que o rapaz conservasse dela uma imagem clara: porque Leila via nesta separação uma amostra, por assim dizer, de uma separação mais definitiva e fina], uma separação que, se estavam destinados a só manter o contacto através das cartas, podia fazer-lhe perder Mountolive. Não se pode escrever mais de uma dúzia de cartas de amor sem sentir a necessidade de novos temas. A mais rica das experiências humanas é também a mais limitada nos seus meios de expressão. As palavras matam o amor como matam tudo o mais. Ela já tinha decidido colocar as suas relações num outro plano, mais rico; mas Mountolive era ainda demasiado jovem para aproveitar o que ela lhe podia oferecer: os tesouros da sua imaginação. Devia deixar que o tempo o amadurecesse. Ela sentia que o amava, embora se resignasse a não tomar a vê-lo. O seu amor tinha já aceitado e dominado o afastamento do seu objecto — a sua própria morte! Este pensamento, que se apresentava no seu espírito com tão grande acuidade, dava-lhe sobre ele uma prodigiosa vantagem, porque, enquanto ele se debatia ainda no mar agitado das emoções e dos desejos, dos amores próprios e de todos os ilogismos e de todas as angústias de um amor mordente, ela já colhia forças e confiança na natureza irremediavelmente desesperada do seu caso. O orgulho da sua inteligência emprestava-lhe novas e insuspeitadas forças. E embora uma parte do seu espírito se sentisse feliz por vê-lo sofrer e se preparasse para a ideia de não voltar a encontrá-lo, ela sabia entretanto que já o tinha possuído e, paradoxalmente, despedir-se dele era fácil. Separaram-se no embarcadouro e todos os quatro se entregaram aos demorados abraços do adeus. Era uma bela manhã, com farrapos de nevoeiro a apagar os contornos do grande lago. Nessim mandara vir um carro que o esperava na outra margem, debaixo de uma palmeira, pequena mancha negra e trémula.
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Subindo para o barco, Mountolive lançou em redor um olhar apaixonado, como se desejasse encher a memória para sempre com os detalhes desta terra e das feições que lhe sorriam desejando-lhe felicidades. «Até à vista», gritou ele, mas na sua voz Leila descobriu toda a ansiedade e dor que o oprimia. Narouz acenou com o braço curvado, sorrindo o seu sorriso torvo; Nessim passou um dos braços em torno dos ombros de Leila enquanto acenava com o braço livre, sabendo perfeitamente o que ela sentia, embora fosse incapaz de encontrar palavras para sentimentos tão equívocos e sinceros. A barca desatracou. Estava tudo acabado.
II
A nomeação verificou-se nos fins desse Outono. Foi uma surpresa verse afectado à Legação de Praga, pois tinham-lhe dado a entender uma colocação no Consulado do Levante, onde a sua experiência do árabe poderia ser útil. Mas, vencida a decepção, aceitou a sua sorte e entregou-se à contradança que o Foreign Office pratica com uma eloquente impersonalidade. A sua única consolação, bem fraca, aliás, foi descobrir que nenhum dos seus colegas conhecia melhor que ele a língua ou os costumes do país. A Legação contava com dois peritos em assuntos japoneses e três especialistas em negócios da América Latina. Todos crispavam o rosto com melancólica unanimidade perante as singularidades da língua checa e contemplavam das janelas dos gabinetes as perspectivas enevoadas de um solene e sinistro presságio eslavo. Tinha finalmente entrado na carreira. Só conseguira ver Leila uma meia dúzia de vezes em Alexandria — e esses encontros tinham sido mais dolorosos que excitantes devido a serem obrigados a guardar cada vez maior discrição. Devia sentir-se feliz como um cãozinho — mas de facto convenceu-se de que era um patife. Só voltou uma vez ao domínio dos Hosnani, onde passou três dias maravilhosos de férias — e ali, pelo menos, a presença dos lugares ainda quentes deu-lhe alento; mas foi muito rápido — como um último e fugitivo lampejo da precedente Primavera.
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Leila pareceu-lhe fenecer, a retirar-se da curvatura de um mundo em movimento incessante, a separar-se das memórias que ele conservava da amante. O proscénio da sua nova existência começava a povoar-se com os brinquedos brilhantes e coloridos da sua vida profissional – banquetes, aniversários, e todo um mundo de atitudes inteiramente novo para ele. O seu espírito começava a dispersar-se. Para Leila as coisas eram diferentes; estava já tão voltada para a recriação da sua personalidade no novo papel que tinha escolhido – que desejava diariamente, na intimidade do seu espírito – e com grande surpresa sua verificou esperar com impaciência que a separação fosse definitiva, que o laços de outrora quebrassem totalmente. Era como um actor incerto do desempenho do seu novo papel mas que anseia pelo momento de entrar no palco. Ela esperava o que mais temia: poder finalmente pronunciar a palavra «adeus». Mas a primeira e lúgubre carta que Mountolive lhe escreveu de Praga despertou nela uma exaltação muito nova, porque finalmente se sentia prestes a possuí-lo como desejava, com toda a avidez do seu espírito. A diferença de idades, que o tempo acentuava cada vez mais, como as fendas separam os campos de gelo, afastava os seus corpos para fora de qualquer alcance. Não havia permanência em nenhuma das recordações que a carne podia evocar na sua linguagem de promessas e de palavras meigas, pois estas estavam já comprometidas por uma beleza cujo viço se ia desvanecendo. Mas ela calculava que os seus recursos interiores eram suficientemente fortes para guardá-lo para si, naquele sentido especial mais querido à maturidade, se simplesmente tivesse a coragem de colocar a mente no lugar do coração. Ela não tinha ilusões e sabia que se pudessem entregar-se aos seus desejos, sem limitações, a ligação não duraria mais de um ano. Mas a distância e a necessidade de colocar as suas relações num novo terreno tiveram por efeito renovar a imagem que guardavam um do outro.
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Para ele, a imagem de Leila nunca se deformava, mas sofria uma nova e perturbadora transmutação à medida que tomava forma no papel. Ela acompanhou a sua evolução em longas e ardentes cartas que traíam apenas uma fome tão devoradora como qualquer outra fome de carne: a fome de amizade, o medo de ser esquecida. De Praga, de Oslo, de Berna, esta correspondência prosseguiu, as cartas aumentando ou diminuindo de tamanho mas sempre constantes ao espírito que as dirigia — o vivo e delicado espírito de Leila. Mountolive, amadurecendo, encontrou nestas cartas escritas em inglês ou em francês um estimulante para o seu desenvolvimento. Ela plantava ideias no solo macio de uma vida profissional que apenas reclamava encanto e reserva — como um jardineiro planta estacas para uma trepadeira. Se o primeiro amor se estiolou, um outro desenvolveu-se a seu lado. Leila tornou-se no seu guia, na sua confidente, na sua única fonte de coragem. Foi por ela que se obrigou a escrever num francês e num inglês impecáveis. Que aprendeu a apreciar coisas que, normalmente, teriam sido alheias à órbita dos seus interesses — pintura e música. Informava-se para informá-la. «Dizes que irás a Zagreb no próximo mês. Por favor descreve-me a cidade...», escrevia ela, ou: «Que sorte ires a Amsterdão; existe aí uma retrospectiva de Klee que recebeu uma crítica favorável da Imprensa francesa. Por favor vai vê-la e dá-me as tuas impressões, francamente, mesmo desfavoráveis. Nunca tive a sorte de ver um original». Era esta a paródia do amor de Leila: um namoro intelectual onde os papéis se tinham invertido; porque ela estava privada das riquezas da Europa e se nutria das suas extensas cartas e dos livros que ele lhe remetia com uma espécie de sofreguidão. O jovem encontrava-se incessantemente sob pressão para satisfazer os pedidos de Leila, e viu abrirem-se bruscamente de par em par todas as portas da pintura, da arquitectura, da música e da literatura.
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Ela forneceu-lhe assim uma educação quase gratuita num mundo onde ele jamais se teria aventurado sozinho. E onde se afundava lentamente a antiga dependência da sua juventude, crescia outra nova. Mountolive, no sentido mais estrito do termo, tinha encontrado uma mulher a seu gosto. O antigo amor metamorfoseou-se lentamente em admiração até que o seu desejo físico dela (tão irritante no princípio) se transformou numa ternura despersonalizada e devoradora, que, em vez de diminuir, mais se nutria com a ausência. No fim de alguns anos ela podia confessar: «Sinto-me hoje mais perto de ti, sobre o papel, do que antes da nossa separação. Porque será?» Ela sabia-o bem demais. Mas acrescentou por um prurido de honestidade. «Este sentimento não é um pouco mórbido? E estas extensas cartas, David — não se assemelham ao agridoce comércio de uma Severina com o seu sobrinho Fabrício? Pergunto a mim própria algumas vezes se eles não foram amantes — são tão íntimas e ardentes as suas relações. Stendhal é omisso. Gostaria de conhecer a Itália. Será que me tornei numa tia com o decorrer da idade? Não respondas a esta pergunta, mesmo que saibas a verdade. Mas é uma felicidade, num sentido, sermos ambos uns solitários, com grandes espaços virgens no coração — como os primeiros mapas africanos — e que precisemos ainda um do outro. Quero dizer, tu, como um filho único a quem só resta a mãe, e eu... bem, eu tenho muitas preocupações mas vivo dentro de uma gaiola apertada. A tua descrição da bailarina e da paixoneta que sentiste divertiram-me e comoveram-me; estou-te muito grata por me teres contado. Toma cuidado, meu querido, não te deixes ferir». A confiança entre os dois era tal que ele se podia permitir confiarlhe, sem omitir um pormenor, as raras aventuras sentimentais que lhe sucediam: a sua ligação com a Grishkin, que esteve para enleá-lo num casamento prematuro; a sua paixão infeliz pela amante de um embaixador que o expôs a um duelo e podia ter-lhe custado a carreira.
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Se ela sentia ciúmes ocultava-os magistralmente e prodigalizava conselhos e consolações com um desinteresse caloroso. A regra entre os dois era a absoluta franqueza, e às vezes as liberdades deliberadas de Leila chocavam-no, fundadas como eram nesses exames de consciência que só se lançam ao papel quando não temos ninguém a quem contar oralmente. Assim, por exemplo, ela escreveu-lhe. «Foi para mim um choque ver repentinamente o corpo nu de Nessim flutuando no espelho, de tal modo as suas costas e a sua cintura delgada me recordaram as tuas. Sentei-me e, com grande surpresa minha, desatei a chorar perguntando a mim mesma se o meu amor por ti não ia buscar as suas raízes a qualquer desejo incestuoso profundamente oculto no meu coração. Sou tão ignorante dos subterrâneos do sexo que os médicos hoje exploram com tão grande minúcia! As suas descobertas assustamme. E depois pensei que talvez houvesse em mim um pouco de vampiro, agarrando-me como me agarro a ti, que hoje deves ser muito mais evoluído do que eu... Que pensas disto? Escreve-me para me tranquilizar, mesmo que estejas a preparar-te para ir ter com a pequena Grishkin. Remeto-te uma fotografia recente para que vejas a que ponto envelheci. Mostra-lha e diz-lhe que muito me penalizaria se ela sentisse ciúmes. Um olhar bastará para lhe devolver a paz do coração. Não quero esquecer-me de te agradecer o telegrama no dia do meu aniversário — acreditei por um momento ver-te sentado na varanda, conversando com Nessim. Ele agora está tão rico e tão independente que é raro vir fazer uma visita ao domínio. Ocupadíssimo com os grandes negócios que o prendem na cidade. Contudo... sente muito a minha falta, como eu gostaria que tu também sentisses; mais fortemente ainda do que se vivêssemos juntos. Trocamos cartas extensas e frequentes; os nossos espíritos completam-se admiravelmente, mas guardamos a liberdade dos nossos corações. Graças a ele espero que um dia os coptas voltem a encontrar o seu antigo esplendor — mas basta por agora...».
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Lúcidas, calmas, radiantes, as palavras corriam-lhe da pena, na sua grande caligrafia espalhada sobre folhas de cores diferentes, cartas que ele abriria com sofreguidão nos jardins de qualquer remota Embaixada, lendo-as e formulando a meia voz a resposta que lhe remeteria na volta do correio. Agora dependia inteiramente daquela amizade que lhe ditava sempre, como uma fórmula, as palavras «Meu amor querido» no topo de cartas que tratavam apenas de, por exemplo, assuntos de arte, ou de amor (o dele), ou da vida (a dele). Mountolive era também de uma escrupulosa honestidade para com ela — como, por exemplo, quando lhe falava na bailarina: «É certo que me passou pela cabeça a ideia de casar com ela. Devia estar muito apaixonado. Mas ela curou-me a tempo. Como sabe, eu não falo a língua da rapariga e isso impediu-me de descobrir a sua vulgaridade. Felizmente ela arriscou por uma ou duas vezes certas familiaridades em público que me gelaram; certo dia em que todo o corpo de baile foi convidado para uma recepção, encontrei-me sentado ao lado dela e pensei que se conduziria discretamente, dado que todos os meus colegas ignoravam a ligação. Imagina o que ela se divertiu e o meu horror quando a rapariga, a meio da ceia, resolveu dar-me uma palmadinha na nuca, uma carícia grosseira e odiosa! O caso estava arrumado para mim. Mas compreendi a tempo, e mesmo a sua desgraçada gravidez pareceu-me uma habilidade demasiado transparente. Eu estava curado». Quando por fim se separaram, a Grishkin, em ar de troça, disse-lhe: «Tu não passas de um diplomata! Não tens nem política nem religião!» Mas foi a Leila que ele pediu para decifrar o sentido desta acusação. E foi Leila quem discutiu o assunto com ele com a brilhante e disciplinada ternura de uma velha amante. Assim, habilidosamente, ela guiou-o ano após ano até que a sua inexperiência juvenil deu lugar a uma maturidade comparável à dela.
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Embora fosse apenas um dialecto de amor que eles falavam, bastava para ela e absorvia-o a ele; e contudo Mountolive era incapaz de classificá-lo ou analisá-lo. E pontualmente, enquanto os anos se sucediam no calendário e ele mudava de lugares, a imagem de Leila era projectada com as cores e as experiências dos países que passavam diante dele: Japão constelado de cerejeiras, Lima dos narizes aquilinos, Portugal melancólico e insípido, Helsínquia afogada em neve. Mas nunca o Egipto, a despeito de todos os seus requerimentos nesse sentido. Chegava a pensar que o Foreign Office nunca mais lhe perdoaria ter aprendido o árabe, e até que o colocavam deliberadamente em países que lhe tornassem difícil, mesmo impossível, ir passar as licenças no Egipto. Mas o laço continuava apertado. Encontrou duas vezes Nessim em Paris e foi tudo. Ficaram encantados um com o outro e com as respectivas mundanidades. Por fim resignou-se. A sua profissão, que valorizava apenas o bomsenso, a frieza e a reserva, ensinou-lhe a mais cruel e paralisante das lições: nunca devia emitir um juízo desfavorável. Ofereceu-lhe também uma espécie de longo treino jesuítico na arte de apresentar ao Mundo uma superfície polida sem aprofundar a sua experiência humana. Se a sua personalidade não se diluiu completamente, foi unicamente graças a Leila; vivia rodeado de colegas ambiciosos e aduladores que só lhe ensinaram a ser excelente nas manhas da lisonja e das complacências que aplanam o caminho da promoção. A sua vida real tornou-se numa corrente subterrânea que raramente emergia nesse mundo artificial onde os diplomatas vivem e onde ele se sentia sufocar. Sentia-se feliz, infeliz? Não sabia. Sentia-se só, era tudo quanto podia dizer. E várias vezes, animado por Leila, pensou em amenizar a sua solidão de espírito (que atingia o egocentrismo) pelo casamento. Mas, a despeito de todos os bons partidos que lhe apresentavam, descobriu que só se sentia atraído por mulheres casadas e muito mais velhas que ele.
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As estrangeiras estavam fora de cogitação porque os casamentos mistos eram um entrave à promoção. Na diplomacia, como nas demais profissões, há bons e maus casamentos. Mas, à medida que os anos decorriam, ele via-se a subir os degraus — mercê de expedientes, compromissos e muito trabalho — que conduzem à antecâmara do poder diplomático: o posto de conselheiro ou de ministro. Depois, o belo sonho que ele tinha acabado por enterrar ressuscitou, emergiu do passado, bem real, radiante como uma inesperada miragem: ergueu-se certo dia, na força da vida, para saber que o título tão invejado de Cavaleiro lhe tinha sido outorgado, bem como outra coisa ainda mais desejável: ofereciam-lhe a Embaixada do Egipto, durante tanto tempo recusada... Mas Leila não seria mulher se não tivesse sido capaz de um momento de fraqueza, que por um pouco ia sendo fatal a todo o edifício daquelas relações. A morte do marido foi o pretexto. Mas um castigo romanesco prevaleceu lançando-a numa solidão ainda mais profunda, que num momento de euforia ela sonhara abandonar. E talvez fosse um bem, pois, de outro modo, tudo se podia ter perdido. Houve um longo silêncio depois do seu telegrama anunciando a morte de Faltaus; depois uma carta, de natureza muito diferente das anteriores, cheia de hesitações e ambiguidades. «A minha indecisão está a transformar-se em autêntica tortura. Estou realmente perplexa. Quero que penses muito maduramente na proposta que te vou fazer. Estuda-a, e se a menor sombra de desagrado se levantar no teu espírito, a mínima reserva, abandonamo-la e não pensamos mais nela. David! Hoje, olhando para o espelho, friamente e objectivamente como é meu hábito, descobri que acarinhava uma ideia que durante muitos anos repelira firmemente: a ideia de tornar a ver-te. Simplesmente, não vejo em absoluto em que plano situar esse encontro, nem as suas condições. Quando tento imaginá-lo, o meu espírito cobre-se imediatamente de nuvens.
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Agora, que Faltaus morreu, toda essa parte da minha existência desapareceu. Tudo o que me resta é o que partilho contigo: uma existência de papel. Concordemos sinceramente que derivámos na corrente dos anos e que envelhecendo nos afastámos um do outro. Talvez eu esperasse inconscientemente a morte de Faltaus, embora a não desejasse nunca. De outra forma como explicar esta esperança, esta ilusão que se ergueu bruscamente dentro de mim? Esta noite pensei que talvez nos restem seis meses ou um ano de felicidade completa antes de as nossas relações se extinguirem para sempre. Tolices, porventura? Sim! Seria para ti um embaraço ver-me desembarcar em Paris, dentro de dois meses, como tenciono fazer? Pelo amor de Deus responde-me sem demora e desengana-me, dissuade-me de cometer tal loucura — pois reconheço que se trata de uma verdadeira loucura. Mas... ter-te só para mim, durante algumas semanas, antes de regressar ao Egipto para sempre... ah, como custa renunciar a tal esperança! Arranca-a sem contemplações; de tal modo que quando eu vier me encontre em paz, olhando para ti simplesmente (como tenho feito em todos estes anos) como um pouco mais que o meu melhor amigo». Ela sabia que era desleal colocá-lo perante tal facto, mas não pôde evitar. O destino não lhe permitiu executar tal projecto (foi talvez um bem) porque a sua carta chegou às mãos de Mountolive ao mesmo tempo que um telegrama de Nessim participando-lhe a doença da mãe. E enquanto ele hesitava ainda na escolha de uma resposta, recebia um bilhete postal, numa caligrafia informe, que o dispensou de tomar qualquer decisão: «Não escrevas enquanto eu não estiver em condições de poder ler; estou ligada dos pés à cabeça. Sucedeu-me qualquer coisa de terrível e definitivo». Durante esse longo e tórrido Estio, a varicela confluente — o remédio mais cruel inventado contra a vaidade humana — prosseguiu na sua obra e massacrou o que restava de uma beleza outrora célebre. Era inútil conservar ilusões.
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Toda a sua vida estava alterada. Mas como? Mountolive esperava numa agonia de incerteza que a correspondência recomeçasse, e escrevia ora a Nessim ora a Narouz. Debaixo dos seus pés abrira-se bruscamente um abismo. E finalmente: «É uma estranha experiência ver o nosso próprio rosto crivado de craterazinhas e ranhuras, como uma paisagem familiar depois de uma explosão. Temo ter de me acomodar à sensação de me haver tornado numa velha feiticeira. Mas por minha própria vontade. Provavelmente tudo isto fortalecerá outros aspectos do meu carácter — como fazem os ácidos. Perdi a metáfora! Ah! Tudo isso são sofismas, porque a verdade é que não há saída. Como me envergonho da minha última carta. O meu rosto não ficou em condições de ser exibido na Europa e nunca eu cometeria a afronta de aparecer com ele em público, a teu lado. Encomendei uma dúzia de véus negros como ainda usam as pobres mulheres da minha religião! Mas isso foi um acto tão doloroso que mandei vir também o meu ourives para que ele tomasse as medidas para novos brincos e novos braceletes. Se soubesses como emagreci! É um presente pela minha coragem, como um bombom que se dá a uma criança que tomou um remédio amargo. Pobre Hakim. Chorou enquanto me mostrava as suas bugigangas. Senti as suas lágrimas caírem-me nos dedos. E, todavia, eu tive a coragem de rir. Também a minha voz mudou. O mais doloroso foi ter de ficar dentro de salas sem luz. Os véus serão uma libertação para mim. Sim, e naturalmente também pensei no suicídio — quem não faria o mesmo em tais circunstâncias? Mas se resolvi viver não foi para me apiedar com o meu destino. Talvez a vaidade feminina não seja tão duradoura como se julga? Quero ser forte e confiante. Peço-te, não tomes um ar solene para me lastimar. Escreve-me com a mesma alegria de sempre, sim? Mas houve um grande silêncio antes de a correspondência entre os dois retomar o ritmo habitual, e as cartas deles tinham agora uma qualidade nova — de amarga resignação.
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Ela tinha-se retirado novamente para o campo onde vivia na companhia de Narouz. «A sua amável selvajaria torna-o no companheiro ideal. Além disso, uma vez por outra, sinto perturbações mentais, e então vou encerrar-me por uns dias para a pequena vivenda de Verão, lembras-te? No extremo do jardim. Aí leio e escrevo na companhia da minha serpente — o génio tutelar que hoje se transformou numa enorme cobra poeirenta, mansa como um gato. Não preciso de outra companhia. De resto, actualmente não tenho nem cuidados nem planos. Deserto em torno de mim, deserto dentro de mim!
O véu é um belo e íntimo lugar, Mas ninguém, penso eu, o quer beijar.
«Se te escrever coisas absurdas nos momentos em que o génio mau se apodera de mim (como dizem os criados) não me respondas. Essas crises não duram mais de um dia ou dois». Assim se abriu uma nova era. E ela passou os anos como uma excêntrica reclusa e velada em Karm Abu Girg, escrevendo aquelas extensas e maravilhosas cartas, acompanhando-o mentalmente naquela Europa perdida que ele continuava a percorrer. Mas o interesse que a movia era agora diferente. Raramente procurava novas experiências, voltando-se de preferência para o passado, como se sentisse a necessidade de ressuscitar a recordação de pequenas coisas. Ouviam-se as cigarras em Tour Magne? Os campos de trigo estavam verdes em Bougival, nas margens do Sena? Em Pallio de Siena usavam-se roupas de seda? As cerejeiras de Navarra... Ela queria verificar o passado, olhar para trás, e Mountolive, pacientemente, tomou a seu cargo, em cada viagem, tranquilizá-la. O macaquinho de Rembrandt — tinha-o visto ou simplesmente imaginado nas suas telas? Não, com efeito, existia, confirmou ele tristemente. Uma vez por outra voltava-se para o presente.
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«Interessei-me por alguns poemas publicados em Values (número sete) e assinados por um Ludwig Pursewarden. Qualquer coisa de novo e de rude. Se for a Londres na próxima semana saiba quem ele é, sim? Será alemão? Será o autor desses dois estranhos romances sobre África? Pelo menos o nome é o mesmo». Foi este pedido que deu origem à primeira entrevista de Mountolive com o poeta que havia de ter mais tarde um tão importante lugar na sua vida. A despeito da devoção quase francesa que tinha pelos artistas (uma atitude copiada de Leila), o nome de Pursewarden pareceu-lhe mal soante, quase ridículo, quando lhe escreveu um postal endereçado ao cuidado dos seus editores. No fim de um mês ainda não tinha recebido nenhuma resposta, mas como estava em Londres por três meses, a seguir um curso de instrução, podia permitir-se ser paciente. Mas, quando a resposta chegou, não foi pequena a surpresa verificando que vinha escrita em papel timbrado do Foreign Office; o poeta de Leila era adido cultural! Telefonou-lhe imediatamente e ficou bem impressionado com a voz calma e educada do outro! Esperava encontrar-se com uma personagem grosseira e agressiva e foi um alívio descobrir a nota civilizada de um sereno humor na voz de Pursewarden. Combinaram encontrar-se nessa tarde no «Compasses», perto de Westminster Bridge, e Mountolive desejava aquela entrevista tanto por Leila como por si próprio, pois propunha-se escrever-lhe um relato circunstanciado descrevendo-lhe pormenorizadamente o seu artista. Nevava com uma fina persistência, derretendo-se a neve mal tocava o solo mas conservando-se nas golas - erguidas dos abafos e nos chapéus. (Um flocozinho sobre as pestanas faz explodir o Mundo e fragmenta-o em cintilações prismáticas.) Mountolive avançou de cabeça baixa e dobrou a esquina da rua a tempo de ver um jovem par penetrando no bar do «Compasses». A jovem, que se voltou para o companheiro para lhe fazer qualquer observação no momento em que a porta se abria, trazia sobre os ombros um xaile escocês, de cores vivas, preso por um grande broche branco.
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A luz quente do revérbero iluminou por um instante a sua face ampla e pálida sombreada por uma farta cabeleira negra e ondeada. Era de uma notável beleza, mas o seu ar estranhamente plácido surpreendeu Mountolive, que precisou de um bom segundo para compreender finalmente que ela era cega. Ergueu o rosto para o companheiro mas um pouco além da medida, à maneira daqueles cujas expressões nunca atingem plenamente o alvo: os olhos dos outros. Ela ficou assim por um momento esperando que o companheiro a ajudasse a entrar no bar tomando-lhe o braço com ternura. Mountolive seguiu-os e quase imediatamente se encontrou a apertar vigorosamente a mão de Pursewarden. A jovem cega era irmã do poeta. Seguiu-se um momento de embaraço enquanto se aproximaram da lareira onde ardia um fogo de carvão no fundo da sala e encomendaram bebidas. Pursewarden, embora não apresentasse nenhum traço notável, era agradavelmente normal. De estatura mediana e de pele clara usava um bem recortado bigode que formava uma sombra apenas perceptível sobre uma boca bem desenhada. Contudo, os seus cabelos eram tão diferentes dos da irmã que Mountolive concluiu que a magnífica cabeleira escura da rapariga devia ser pintada, embora parecesse natural; as sobrancelhas eram igualmente negras. Somente os olhos poderiam ter traído o segredo dessa pigmentação mediterrânica, mas esses, naturalmente, estavam ausentes. Uma magnífica cabeça de Medusa; a sua cegueira era a cegueira das estátuas gregas — cegueira porventura causada pela intensa contemplação, no decurso dos séculos, do sol radiante e das águas azuis. Na sua pessoa não havia altivez, apenas meiguice e encanto. Os seus dedos compridos e de extremidades macias, como os dos pianistas, corriam ligeiramente sobre a mesa de carvalho, como para tocar, confirmar, certificar — hesitando no sentido de dar às tonalidades da voz de Mountolive.
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De vez em quando os lábios da cega moviam-se docemente como se estivesse a repetir para si própria as palavras dos outros, para lhes descobrir o sentido; era como alguém seguindo a música com a sua própria partitura. — Liza, minha querida? — disse o poeta. — Um brandy com soda. Ela respondeu numa voz vaga e serena, clara e melodiosa, uma voz que teria podido pedir no mesmo tom «Mel e néctar». Irmão e irmã estavam sentados lado a lado, o que lhes dava um ar de se encontrarem na defensiva, e ficaram um momento sem falar, embaraçados, enquanto se serviam as bebidas. A jovem introduziu a mão no bolso do irmão. Depois, um pouco hesitante, ela iniciou a conversa, que se prolongou pela noite adiante e que Mountolive transcreveu fielmente, graças à sua prodigiosa memória, na carta que escreveu a Leila. «De princípio ele mostrou-se tímido e refugiou-se numa sorridente modéstia. Fiquei surpreendido quando soube que ele tinha sido nomeado para um lugar no Cairo, para onde irá no princípio do próximo ano; falei-lhe dos meus amigos e prometi-lhe cartas de apresentação, em especial para Nessim. O meu posto talvez o tenha intimidado um pouco ao princípio, mas logo se mostrou à vontade; não aguenta a bebida e ao segundo copo entregou-se com menos restrições; então começa a revelar-se uma pessoa diferente — bizarra e equívoca, como é de esperar de um artista —, mas com ideias bem acentuadas sobre certo número de assuntos, algumas delas em oposição com as minhas próprias. Mas tinham uma ressonância estranhamente pessoal. Sente-se que foram para épater. Por exemplo, tem ideias reaccionárias, o que o torna mal visto pelos colegas que o acusam de simpatias fascistas; repugnam-lhe os esquerdistas — e com efeito detesta toda a espécie de radicalismo. Mas exprime as suas opiniões sem rancor e sem paixão. Não consegui, por exemplo, fazê-lo falar sobre a guerra de Espanha («Toda essa gentalha que se vai fazer matar em nome do Clube do Livro da Esquerda!».
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Mountolive sentiu-se chocado com esta e outras saídas do seu interlocutor, tanto mais que as suas simpatias iam para as ideias igualitárias, embora atenuadas pelo liberalismo que nessa época predominava entre os políticos ingleses. Os desprezos soberanos de Pursewarden tornavam-no uma personagem quase temível. «Reconheço — prosseguia Mountolive — que me sentia incapaz de classificá-lo dentro dos quadros habituais. Mas o que ele exprimia eram antes opiniões que atitudes, e devo dizer que pronunciou certo número de fórmulas impressionantes que eu fixei para si, tais como: «A obra do artista é a única relação satisfatória que ele pode estabelecer com os seus semelhantes, porque os seus verdadeiros amigos deve procurá-los entre os mortos ou entre os que ainda não nasceram. Por isso não deve ocupar-se de política; é domínio que não lhe compete. Deve preocuparse mais com os valores do que com a política. Hoje tudo isso me faz pensar num espectáculo ridículo de sombras chinesas, porque governar é uma arte, não uma ciência, da mesma forma que uma sociedade é um organismo e não um sistema. A sua unidade menor é a família e a monarquia é a estrutura que realmente lhe convém, porque uma família real é verdadeiramente o reflexo do que nela existe de humano, uma legítima idolatria. Falo por nós, os britânicos, com o nosso quixotismo essencial e a nossa preguiça mental. Nada sei dos outros. Quanto aos erros do capitalismo, são todos remediáveis mediante uma justa tributação. Não se deve procurar uma igualdade imaginária entre os homens mas uma equidade decente. Os reis fabricariam então uma vaga filosofia, como faziam na China; uma monarquia absoluta é impossível nos nossos dias porque a filosofia da realeza está muito por baixo. O mesmo se diga das ditaduras. «Quanto ao comunismo, também não me parece capaz de resolver o problema; a análise do homem em termos de comportamento económico cerceia a alegria de viver e é uma loucura querer despojá-lo do elemento pessoal». E assim por diante. Visitou a Rússia durante um mês com uma embaixada cultural e não compreendeu nada.
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Claro, defendeu-se com boutades deste género: «Judeus tristonhos em cujos rostos se adivinhava toda a melancolia de uma aritmética secreta». «Durante todo esse tempo a irmã guardou um eloquente silêncio, acariciando a beira da mesa com os seus dedos longos e macios, curvos como gavinhas, sorrindo dos seus aforismos como de uma fraqueza secreta. Em certo momento, quando ele se ausentou por alguns segundos, ela voltou-se para mim e disse: «— Na verdade, ele não dá grande importância a esses assuntos. A sua única preocupação é aprender a submeter-se ao desespero». «Essa sentença obscura que caiu daqueles lábios com tanta naturalidade, impressionou-me profundamente e eu não soube o que responder. Quando Pursewarden voltou, retomou a conversa como se tivesse recapitulado intimamente todo o debate. Disse: «Não, os reis são uma necessidade biológica. Talvez reflictam a própria constituição da psique? Acomodámo-nos tão admiravelmente à questão da sua divindade que eu não teria o menor prazer em vê-los substituídos por qualquer ditador trabalhista com prisões e pelotões de execução». Protestei diante daquele ponto de vista absurdo mas ele falava com toda a seriedade. «Asseguro-lhe que é isso o que as Esquerdas pretendem; a guerra civil é o seu objectivo, embora não dê bem por isso, graças à forma hábil pela qual os puritanos ressequidos como Shaw e companhia apresentam a causa. O marxismo é uma vingança de judeus e irlandeses!». Tive de rir ouvindo aquilo, e justiça lhe seja feita, Pursewarden riu-se também. — Mas ao menos isto explica por que motivo eu sou mal visto — disse ele — e por que motivo me sinto sempre feliz em sair da Inglaterra para outros países onde não sinto qualquer responsabilidade moral nem o menor desejo de me ocupar de fórmulas tão deprimentes. Afinal de contas, com todos os diabos, eu sou um escritor!»
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«Nesse momento ele já tinha bebido diversos copos e estava lançado: «Deixemos esse terreno estéril! Ah, como desejo voltar a encontrar essas cidades criadas pelas suas mulheres; um Paris ou uma Roma, construídas para saciar os desejos femininos. Sempre que vejo o velho Nelson, coberto de fumaça, em Trafalgar Square, digo para mim próprio: a pobre Ema teve de ir a Nápoles para afirmar o seu direito de ser bonita, vaporosa e resplandecente na cama! Que faço aqui, eu, Pursewarden, no meio de gentes que vivem num frenesi de decoro? O meu lugar é entre aqueles que se conciliaram com a sua obscenidade humana, oculta no manto de invisibilidade do poeta. Quero aprender a nada respeitar sem desprezar nada — tortuoso é o caminho do iniciado!» «— Meu querido, tu estás embriagado» — exclamou Liza encantada. «— Embriagado alegríssimo».
e
triste.
Triste
e
embriagado.
Mas
alegre,
«Devo dizer que este lado novo e divertido do seu carácter me aproximou muito mais do homem. «Para quê as emoções estilizadas? Para quê o temor e o medo? Todos esses sinistros mictórios com os polícias de impermeável a espreitarem para ver se o cidadão mija fora do testo. Veja essa paixão da decência na indumentária, essas proibições de caminhar sobre a relva: não é de admirar que sempre que regresso a Inglaterra tome por engano a entrada reservada aos estrangeiros!» «— Estás embriagado» — exclamou novamente Liza. «— Não; estou feliz!» — Afirmou aquilo a sério. — «E a felicidade não se pode improvisar. É preciso emboscar-se uma pessoa para apanhá-la como se fosse uma codorniz ou uma rapariga de asas fatigadas. Entre a arte e o engenho existe um abismo permanente!» «E assim continuou; e devo aquele jogo sem esforço de de si próprio. É claro que expressão mais grosseira e ela sorria o seu sorriso de
confessar que eu me sentia fascinado por um espírito que já não tinha consciência uma vez ou outra eu tropeçava contra uma lançava um olhar inquieto à rapariga, mas cega sem sombra de censura.
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«Era muito tarde quando saímos juntos para Trafalgar Square, no meio da neve que caía. Havia pouca gente na rua e os flocos que tombavam cobriam as nossas pegadas. Na praça o poeta deteve-se para apostrofar o Nelson Estilista. Esqueci-me das suas palavras mas foram suficientemente espirituosas para me fazer rir. Depois, mudando bruscamente de humor, voltou-se para a irmã: «— Sabes o que me tem preocupado toda a noite, Liza? É hoje o aniversário de Blake. Estás a perceber, o aniversário desse velho Blake! Esperei ver sinais desse facto na expressão dos nativos deste país, mas foi em vão que os procurei. Liza, minha querida, festejemos o aniversário desse velho s....., sim? Eu e tu e David Mountolive aqui presente... como se fôssemos franceses ou italianos, como se isso tivesse qualquer sentido». A neve caía mais densa, as últimas folhas mortas amontoavam-se em torno da praça e os pombos soltavam gritos guturais e lúgubres. «Está bem, Liza?» «Uma manchazinha rosada apareceu nas faces da rapariga. Os lábios entreabriram-se. A neve caía-lhe sobre os cabelos negros e dissolviase como pedras preciosas. «— Como vamos festejar isso?» — perguntou ela. «— Vamos dançar pelo Blake» — disse Pursewarden com uma seriedade cómica, e tomando a irmã nos braços pôs-se a valsar trauteando o Danúbio Azul. Por cima do ombro, através dos flocos de neve que caíam, Pursewarden brindou: «Por Will e Kate Blake». «Sem saber bem porquê fiquei siderado e até um pouco comovido. Eles dançavam num compasso perfeito, rodopiando cada vez mais depressa em torno dos leões de bronze, quase tão leves como a poeirada húmida que se escapava das fontes... Como seixos espalmados lançados sobre a superfície lisa de um lago ou pedras deslizando num tanque gelado... Era um estranho espectáculo. Observava-os fascinado, esquecido do frio que me mordia os dedos e da neve que se derretia no meu colarinho.
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Descreveram assim uma elipse muito aberta em torno da praça, levantando à sua passagem as folhas mortas e os pombos, a respiração dos dois a elevar-se nos ares numa nuvenzinha branca. E depois, docemente, sem esforço, descreveram um novo arco que devia conduzilos até onde eu me encontrava na companhia de um polícia que os observava com um olhar intrigado. «— Que se passa aqui?» — perguntou-me o agente, olhando para eles com admiração e desconfiança. «Eles valsavam com uma tal perfeição que eu cheguei a pensar que o guarda estivesse impressionado. Acertavam maravilhosamente; a cabeleira sombria da rapariga flutuava, e o rosto voltava-se para o velho almirante sobre o seu pedestal negro de humidade. «— Estão a festejar o aniversário de Blake» — expliquei num tom um pouco comprometido e o agente pareceu-me mais satisfeito continuando a segui-los com um olhar de admiração. Tossicou e observou voltandose para mim: «— Para dançar assim, ele não pode estar embriagado. O que as pessoas não são capazes de inventar para festejar o seu aniversário!» «Finalmente acabaram por vir ter comigo, ofegantes e risonhos, trocando beijos. Pursewarden parecia ter recuperado o seu bom humor, e desejou-me boa-noite com a maior cordialidade, enquanto eu os ajudava a entrar num táxi. Aqui tem! Minha cara Leila, não imagino que conclusões tirará de tudo isto. Nada sei da sua vida nem do seu passado, mas posso ir visitá-lo a casa; demais poderá conhecê-lo no próximo ano quando ele for para o Egipto. Envio-lhe um livrinho de versos que ele me ofereceu. Ainda se conserva inédito». No calor doce do seu quarto do clube, Mountolive folheou o livrinho, mais por dever do que por prazer. Não era apenas a poesia moderna que lhe não interessava: aborrecia-o a poesia em geral. Nunca conseguia sintonizar a sua disposição, por assim dizer.
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Era obrigado a reduzir as palavras a paráfrases, no seu espírito, para que parassem de dançar. Esta sua inaptidão (Leila ensinara-lhe a considerá-la como tal) irritava-o. Entretanto, enquanto folheava o livrinho sentiu-se bruscamente interessado por um poema que lhe espevitou a memória comunicando-lhe um arrepio de inquietação. Era dedicado à irmã do poeta e tratava-se indubitavelmente de um poema de amor a «uma jovem cega de cabelos pintados de negro». Mountolive viu imediatamente sair do texto a face branca e serena de Liza Pursewarden.
Estátuas gregas de olhos vazados Cegas como Eros por surpresa Escondem os segredos do coração abandonado, Amante e amado...
Havia uma espécie de imperícia selvagem e deliberada à superfície; mas era o género de poema que podia ter sido escrito por um moderno Catulo. Mountolive sentiu-se perturbado. Releu-o com um aperto na garganta. Tinha a simples beleza do impudor. Ficou a contemplar a parede demoradamente, antes de meter o livro num sobrescrito para enviá-lo a Leila. Não tornaram a encontrar-se durante esse ano, a despeito de Mountolive ter tentado comunicar com Pursewarden pelo telefone. Estava sempre ou de licença ou em serviço no norte da Inglaterra. Mas conseguiu encontrar a irmã e levou-a mesmo diversas vezes a jantar, encontrando nela uma companheira deliciosa, mesmo comovente. Leila escreveu para lhe agradecer as informações, acrescentando de uma maneira muito característica: «Os poemas são esplêndidos. Mas não desejo, é claro, encontrar um artista que eu admiro. Penso que a obra não tem qualquer relação com o autor. Mas agrada-me que ele venha ao Egipto. Talvez Nessim lhe possa ser útil — e, quem sabe, talvez ele possa ser útil a Nessim? Veremos».
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Mountolive não compreendeu o sentido da penúltima frase. No Verão seguinte as suas férias coincidiram com uma viagem de Nessim a Paris, e os dois amigos visitaram juntos os museus e projectaram ir plantar juntos os seus cavaletes na Bretanha. Ambos ensaiavam os primeiros passos na pintura com o ardor dos verdadeiros neófitos. Foi em Paris que encontraram por acaso Pursewarden que estava a gozar um mês de férias antes de ir ocupar o seu posto no Cairo. Era um feliz acaso porque poderia assim viajar com Nessim e Mountolive congratulava-se por poder facilitar-lhe a vida mercê desta apresentação. Pursewarden parecia também transfigurado e na melhor das disposições, e Nessim pareceu gostar imensamente dele. Durante cerca de três semanas foram inseparáveis, e quando se separaram Mountolive tinha a genuína convicção de que uma amizade se estabelecera e cimentara nessas semanas de bons petiscos e boa vida. Foi despedir-se deles e nessa noite escreveu a Leila no papel de carta do seu café predilecto: «Foi uma grande tristeza separar-me deles e pensar que na próxima semana terei que voltar para a Rússia! Agora sinto grande afeição por P. e compreendo-o melhor. Acho presentemente que as suas maneiras rudes não traduzem grosseria mas uma grande timidez e quase um sentimento de culpa. Desta vez a sua conversação foi verdadeiramente apaixonante. Pergunte a Nessim. Creio que este está verdadeiramente seduzido. E depois... que mais? Um espaço vazio, uma grande jornada gelada, e três anos sem interesse diante de mim. Ah! minha cara Leila, como sinto a sua falta. Quando nos tornaremos a ver? Se tiver bastante dinheiro, na minha próxima licença, tomarei o avião e irei visitá-la...». Ele não adivinhava que antes de terminados esses três anos estaria de viagem para o Egipto, o país bem amado ao qual a distância e o exílio conferiam uma obcecante beleza, como uma tapeçaria. Poderia uma memória tão rica enganá-lo? Mountolive nunca fez a si próprio semelhante pergunta..
III
O aquecimento central lançava, no salão de baile da Embaixada, um calor pesado, quase palpável, que tornava o ar denso como se já tivesse sido respirado; mas o calor formava um agradável contraste com a paisagem gelada de pinheiros que se avistava para além das altas janelas. A neve caía infatigavelmente, não só sobre a Rússia, mas, ao que parecia, sobre o mundo inteiro. Havia semanas que nevava sem cessar. A sonolência do Inverno russo entorpecera-os a todos. O som dos passos das sentinelas, entre as duas pequenas guaritas do portão, tinham-se recolhido ao silêncio do grande Inverno. Nos jardins, os ramos das árvores inclinavam-se cada vez mais sob o peso de toda aquela brancura, até ao momento em que se distendiam bruscamente, como molas, espalhando a sua carga de neve em explosões silenciosas de cristais cintilantes; depois, a neve voltava a cair, cobrindo-os lentamente, inexoravelmente, até que o peso se tornava de novo intolerável. Cabia nesse dia a Mountolive a leitura do Serviço. Levantando de vez em quando os olhos da estante, lobrigava as faces indistintas dos colegas e do pessoal na penumbra do salão, seguindo o texto; e, diante daqueles rostos incolores, teve a visão de um rebanho de cadáveres flutuando, o ventre dilatado, num lago gelado, como corpos de rãs encurraladas no interior de um espelho de gelo. Tossiu atrás da mão, e o contágio propagou-se em ondazinhas de tossidelas discretas, que se perderam finalmente no silêncio sensaborão, apenas perturbado pelo crepitar dos cachimbos.
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Toda a gente parecia doente e triste nesse dia. Os seis guardas da Chancelaria tinham um ar absurdamente piedoso nas suas melhores roupas, desajeitadamente vestidas, com os cabelos a cair para os olhos. Eram todos antigos marinheiros e todos eles mostravam os estigmas de um amor imoderado pelo vodka. Mountolive suspirou interiormente ao declamar, na sua voz calma e melodiosa, os esplendores — incompreensíveis para eles — da passagem do Evangelho de S. João que ele encontrara assinalada por uma marca. A água cheirava a cânfora — e ele não sabia porquê. Como de costume, o embaixador ficara na cama; nos últimos anos desleixara-se no cumprimento dos seus deveres e descarregava-os cada vez mais para Mountolive, que se desempenhava deles com boa vontade e inteligência. Sir Louis deixara mesmo de simular interesse pelo bem-estar físico e espiritual do seu pequeno rebanho. E para quê? Dentro de três meses seria definitivamente aposentado. Era difícil substituí-lo nos negócios públicos mas Mountolive considerava isso útil também. Dava-lhe a oportunidade de experimentar as suas próprias capacidades. Era ele quem virtualmente dirigia a Embaixada e, contudo... Notou que Cowdell, o chefe da Legação, procurava captar-lhe à atenção. Terminou a prelecção sem alterar o tom de voz, colocou novamente a marca e voltou para o seu lugar. O capelão pronunciou ainda uma breve frase catarrosa e, depois de um arrastar de páginas, encontraram debaixo dos olhos o texto banal do «Avante, soldados de Cristo», na undécima edição da «Colectânea de Cânticos para os Serviços no Estrangeiro». O harmónio começou a gemer num canto, como um homem gordo que corre para apanhar o autocarro; depois encontrou o tom e, acompanhado de uma chiadeira nasalada, interpretou as duas primeiras estrofes num tom de arrancar as entranhas.
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Mountolive reprimiu um arrepio, esperando que o instrumento caísse no dominante, como sempre fazia — como se estivesse para rebentar em soluços demasiados humanos. O coro discordante elevou-se para afirmar... o quê? Constituíam um enclave cristão numa terra hostil, num país que se tinha tornado num imenso campo de experiências graças a um simples desvio da razão humana. Cowdell deu-lhe uma cotovelada, a que ele correspondeu, para indicar que estava disposto a receber qualquer comunicação urgente desde que não fosse de carácter especificamente religioso. O chefe da Legação cantava:
O dia de hoje é um dia feliz para aquele Que se põe a caminho como se fosse para a guerra
(Fortíssimo — com fervor).
HA coisas mais urgentes a fazer Como, por exemplo, receber mensagens cifradas (Fortíssimo — com fervor).
Mountolive ficou trabalho, embora reduzido. Porque costume? Entoou o
aborrecido. Aos domingos havia, em geral, pouco os serviços de cifra ficassem abertos, com pessoal não lhe tinham telefonado na véspera, conforme era versículo seguinte numa voz lastimosa:
Deviam ter-me dito Como podia adivinhar? Quem está de serviço hoje?
Cowdell abanou a cabeça e franzindo o sobrolho acrescentou este apêndice: «Ela ainda está de servi...i...ço». Retiveram as respirações enquanto a música recomeçava e ribombava na sala.
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Essa pausa constipada:
permitiu
a
Cowdell
— Trata-se de uma missiva completamente decifrada.
voltar-se pessoal
para
explicar
urgente.
Ainda
numa
voz
não
foi
Desenrugaram as faces e as consciências até final do cântico, mergulhando Mountolive num abismo de perplexidade. Quando se ajoelharam nos pouco confortáveis genuflexórios, com as mãos a ocultar o rosto, Cowdell prosseguiu entre os dedos: — Você foi proposto para Cavaleiro e nomearam-no embaixador. Deixe-me ser o primeiro a felicitá-lo, etc. — Cristo! — murmurou Mountolive num movimento de surpresa mais para si próprio do que para o seu criador. Depois acrescentou «Obrigado». Sentia os joelhos a tremer e teve de fazer um esforço para manter o seu ar indiferente. Era ainda demasiado jovem. As divagações do capelão, com o seu perfil de peixe-espada, irritavam-no mais do que habitualmente. Apertou os maxilares. E no fundo do seu ser pensava: «Vou sair deste Inverno permanente!», com uma alegria dolorosa. O coração saltava-lhe no peito. O serviço terminou finalmente. Abandonaram o salão num solene tropel e atravessaram o soalho imaculado das salas da Residência com um ar cansado e compassado, tossicando e murmurando. Mountolive conseguiu adoptar um andamento lento e piedoso, mas o seu espírito corria à desgarrada. Uma vez na Chancelaria, fechou devagarinho a porta acolchoada atrás de si, ouvindo-a aspirar docemente o ar nas válvulas e, retendo a respiração, desceu os três andares que conduziam à poterna que marcava a entrada dos Arquivos. Um empregado de serviço oferecia chá a dois correios, que batiam as pesadas botas e esfregavam as luvas para se desembaraçarem da neve. Grossos sacos de lona, espalhados pelo chão, esperavam que os enchessem com a correspondência e os selassem. Os bons dias catarrosos acompanharamno até à porta da Cifra, onde ele bateu duas pancadinhas secas esperando que Miss Steele o convidasse a entrar.
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Sorriu ao visitante com um ar severo: — Sei o que procura — disse ela. — Está aqui na bandeja a cópia da Chancelaria. Coloquei o original na sua secretária e mandei outra cópia ao secretário de Sua Excelência. E mergulhou novamente nos códigos. Mountolive viu a frágil membrana de papel rosa com a mensagem impressa, tomou uma cadeira, leu-a atentamente, depois releu-a ainda mais lentamente. Acendeu um cigarro. Miss Steele levantou a cabeça: — Dá-me licença que o felicite, sir? — Obrigado — respondeu Mountolive vagamente. Estendeu as mãos por cima do calorífero e voltou a mergulhar nos seus pensamentos. Começava a sentir-se uma personagem completamente diferente e essa sensação tomava-o de improviso. Passado um momento tornou a subir devagar a escada e dirigiu-se para o seu gabinete ainda envolto nesse sonho voluptuoso e recente. Tinham aberto as cortinas — isso significava que a sua secretária já tinha chegado; ficou por um momento a observar o vaivém das sentinelas na neve, diante do portão ornamentado pelos arabescos de gelo. E, enquanto contemplava esse mundo imaginário através dos vidros, a sua secretária entrou. No rosto dela abria-se um largo sorriso. — Afinal — disse ela. Mountolive devolveu-lhe o sorriso. — Sim; pergunto dificuldades?
a
mim
mesmo
se
Sua
Excelência
não
irá
criar
— Certamente, não — disse ela enfaticamente. — Porque havia de criálas? Mountolive sentou-se na escrivaninha acariciando o queixo. — Ele aposenta-se dentro de três meses — disse a rapariga. Começou a olhar para ele com curiosidade, irritada por não ler no rosto do seu chefe nem alegria nem satisfação.
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Nem mesmo a boa fortuna era capaz de trespassar aquela armadura de reserva cuidadosamente elaborada. — Bem — disse ele lentamente, porque ainda se sentia paralisado pela surpresa, pelo sonho voluptuoso de uma sorte imerecida —, veremos. Depois outro pensamento, ainda mais vertiginoso, apoderou-se dele. Escancarou os olhos e fixou-os na janela. Finalmente ia ter liberdade de agir. Ia enfim cessar aquela longa disciplina que o obrigava a apagar-se, aquela perpétua delegação de poderes? Era uma temerosa perspectiva, mas que excitante também! Tinha a impressão de que a sua personalidade ia finalmente encontrar campo onde se desenvolver; e, levado por aquela maravilhosa ilusão, levantou-se, sorriu à rapariga e disse-lhe: — De qualquer maneira tenho de obter a concordância de Sua Excelência antes de responder. Esta manhã ele ainda não veio à ponte. Ficará para amanhã. Decepcionada, ela hesitou um momento antes de tomar a bandeja e de lhe estender as chaves do seu cofre privado. — Como preferir — disse ela. — Não há pressa — disse Mountolive. (Tinha a impressão de que a sua verdadeira vida começava agora; estava a ponto de renascer.) Não penso que o meu exequatur chegue antes de Junho. Mas o seu espírito corria já numa pista paralela, dizendo: «Em Julho toda a Embaixada se muda para Alexandria, para os quartéis de Verão. Se eu pudesse fazer coincidir a minha chegada...». Mas este sentimento de euforia foi empanado por um toque de avareza. Mountolive, como a maior parte das pessoas que não têm outros seres com quem partilhar os seus afectos, tendia para a mesquinhez em assuntos de dinheiro. Embora fosse pouco razoável, sentiu uma onda de depressão quando se lembrou do custo elevado do uniforme que a sua nova categoria impunha.
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Ainda na semana passada tinham recebido um catálogo de Skinners e tivera oportunidade de verificar um considerável aumento de preço nos uniformes diplomáticos. Levantou-se e dirigiu-se ao gabinete vizinho para consultar o secretário particular. Estava vazio. Um radiador eléctrico brilhava na penumbra. Um cigarro aceso consumia-se lentamente no cinzeiro entre as duas campainhas marcadas respectivamente S. Ex.ª e Senhora. No bloco ao lado, o secretário tinha escrito com a sua caligrafia feminina: «Não acordar antes das onze». Isso referia-se evidentemente a S. Ex.ª, porque a Senhora, depois de seis meses em Moscovo, tinha preferido ir aguardar a aposentação do marido no clima mais clemente de Nice. Mountolive apagou a ponta do cigarro. Era inútil acordar o Embaixador antes do meio-dia porque as manhãs russas mergulhavam Sir Louis numa apatia neurasténica que o tornava frequentemente inapto para qualquer actividade mental; e como ele não podia, em plena consciência, apresentar reservas à boa fortuna de Mountolive, era bem capaz de manifestar qualquer azedume por não ter sido informado, como o costume exigia, pelo primeiro secretário particular. Mountolive regressou ao seu gabinete e mergulhou num número recente do Times, esperando, com uma impaciência mal dissimulada, que o relógio da Embaixada anunciasse o meio-dia. Voltou a descer, deslizou para a Residência, passando pela porta acolchoada, e atravessou, com o seu passo ligeiro e levemente claudicante, os soalhos reluzentes, manchados aqui e além pelas alcatifas de tons neutros. Aquilo tudo cheirava a abandono e a cera; nas sanefas pairava ainda o relento dos fumos de charuto. Em cada janela havia um véu de trémulos flocos de neve. Merritt, o criado de quarto, subia rapidamente a escada com uma bandeja onde se via um misturador e um único cálice. Era um homem pálido, entroncado, e que assumia sempre o ar grave de um sacristão quando desempenhava as suas funções na Residência.
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Parou diante de Mountolive e disse: — Acabou de levantar-se e está a vestir-se para um almoço oficial, sir. Mountolive fez com a cabeça um vago sinal e ultrapassou-o subindo os degraus a dois e dois. O criado voltou a descer à copa para colocar um segundo copo na bandeja. Sir Louis assobiava com ar enfadado, vestindo-se diante do espelho. — Ah, meu amigo — disse ele vagamente, vendo aparecer Mountolive. — Estou a vestir-me. Bem sei, bem sei. É o meu dia de pouca sorte. A Chancelaria chamou-me às onze horas. Finalmente, você conseguiu. Parabéns. Mountolive sentou-se na beira da cama, aliviado por ver que a notícia tinha sido bem recebida. O embaixador prosseguiu enquanto lutava para fazer o nó da gravata: — Imagino que você deseja partir imediatamente. Será uma grande perda para todos nós. — Se não vir objecção — confessou Mountolive lentamente. — Que pena. E eu que esperava que você me visse partir. Enfim... — disse ele com um gesto esvoaçante da mão livre — você merece. Do tricórnio ao bicórnio, do punhal à espada... a apoteose final. (Debateu-se um momento com os botões de punho e prosseguiu num ar sonhador.) Evidentemente, você ainda pode cá ficar algum tempo; é preciso esperar o agreement. Depois precisa ir ao Palácio, ao beijamão, e tudo o mais. Que tal? — Ainda me há-de restar algum tempo de licença — disse Mountolive com um muito débil traço de firmeza num tom onde faltava a confiança. Sir Louis entrou no quarto de banho e começou a lavar os dentes. — E a próxima lista das Honras? — gritou ele do pequeno espelho pregado à parede. — Espera por isso? — Suponho. Merrirt entrou com a bandeja e o velho bradou:
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— Ponha-a em qualquer lado. Dois copos? — Sim, sir. O criado retirou-se fechando suavemente a porta e Mountolive levantou-se para servir os cocktails. Sir Louis monologava como se resmungasse: — Uma Missão não é nenhuma sinecura. E aposto que a sua primeira reacção, quando teve a notícia, foi pensar: agora já tenho liberdade de agir, não foi? Soltou uma risadinha soturna e regressou à mesa de toucador com o ar mais satisfeito deste mundo. O seu subordinado interrompeu-se no acto de servir as bebidas, surpreendido por esta intuição inusitada. «Como diabo adivinhou ele?», pensou franzindo a testa. Sir Louis emitiu outro pequeno grunhido de satisfação. — Todos pensamos o mesmo. A última ilusão. Você terá de passar por isso, como os outros. É um mau momento. Você tem a impressão de que está a fazer volume — e, quando mal se precata, está a cometer um pecado contra o Espírito Santo. — Que quer dizer? — Em diplomacia isso significa estar a conduzir uma política sobre o ponto de vista de uma minoria. É a fraqueza de todos. Veja as nossas tentativas de fortalecer uma oposição aqui. Claro que é absurdo. As minorias não servem de nada, a menos que estejam dispostas a lutar. Aí está. Aceitou nos dedos de rosa fanada o cálice, notando, com satisfação, o nevoeiro que cobria levemente os copos gelados. Beberam à saúde um do outro trocando um sorriso afectuoso. Nos dois últimos anos tinham-se tornado bons amigos. — Você vai fazer-me falta. Mas dentro de três meses eu terei saído de tudo isto. (Pronunciava aquelas palavras com um entusiasmo que não era fingido.) Basta de parvoíces sobre a Objectividade. Eles têm bastantes boas cabeças saídas da Escola de Ciências Políticas de Londres para lhes redigirem os relatórios.
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Recentemente, o Foreign Office tinha-se equilíbrio dos relatórios das Missões. Isso simples lembrança dessa afronta bastava para o copo vazio, prosseguiu, dirigindo-se ao seu
queixado da falta de enfurecera Sir Louis. A encolerizá-lo. Pousando reflexo no espelho:
— Equilíbrio! Se o Foreign Office enviasse uma missão para a Polinésia, naturalmente esperava que os seus relatórios começassem assim (tomou um tom choramingas e obsequioso para enunciar aquilo): «Se é verdade que os habitantes se comem uns aos outros, não é, entretanto, menos exacto que o consumo de alimentos por cabeça é notavelmente elevado». (interrompeu-se bruscamente e sentou-se para laçar os sapatos): — Meu caro David, quando você partir, com quem hei-de falar? Você vai pavonear-se, no seu grotesco uniforme, com uma pluma de avestruz no chapéu, que lhe dará o ar de qualquer pássaro bizarro do Amazonas, e eu... eu irei ao Kremlin visitar aqueles tipos sombrios. Os cocktails estavam fortes. Tomaram outro e Mountolive disse: — Tenho estado a pensar que me podia vender o seu uniforme, a menos que já o tenha prometido. Podia mandá-lo transformar. — O uniforme? — disse Sir Louis. — Não tinha pensado nisso. — Hoje, os uniformes custam muito caro. — Bem sei. E aumentaram recentemente. Mas você tem de mandá-lo ao empalhador, para reparação. Nunca ficam como devem ser as malditas golas. E todos aqueles galões. Um ou dois alamares estão soltos. Graças a Deus, isto aqui não é uma Monarquia. A sobrecasaca é muito mais confortável. Bem, não sei que dizer. Ficaram os dois em silêncio, a reflectir no problema. Finalmente, Sir Louis perguntou: — Quanto me oferece? Os seus olhinhos apertaram-se. Mountolive meditou um momento antes de responder.
87 — Trinta libras — disse num tom enérgico e decidido que lhe não era habitual. Sir Louis ergueu os braços em simulada indignação. — Só trinta? Mas custou-me... — Bem sei — disse Mountolive. — Trinta libras — meditou Sua Excelência, escandalizar-se. — Creio, meu caro...
sem
saber
se
devia
— A espada está um pouco torta — disse Mountolive com obstinação. — Nem por isso — disse Sir Louis. — Foi o rei do Sião que a entalou na porta do carro. Uma cicatriz gloriosa. Sorriu e continuou a vestir-se trauteando. Aquele regateio dava-lhe um prazer absurdo. Voltou-se bruscamente. — Digamos cinquenta. Mountolive sacudiu a cabeça com um ar sonhador. — É muito caro, sir. Mountolive levantou-se e começou a percorrer o quarto de um lado para o outro, divertido com o manifesto prazer que o velho sentia naquele jogo. — Dou-lhe quarenta — disse ele por fim, sentando-se com ar decidido. Sir Louis escovou o seu cabelo de prata, furiosamente, com as duas pesadas escovas de cabo de tartaruga. — Você tem alguma reserva de bebidas na sua cave? — Sim, a falar verdade, tenho. — Bem, nesse caso, cedo-lhe acrescentar duas caixas de... champanhe decente?
o uniforme por quarenta se você vejamos, que tem você? Tem algum
— Sim. — Muito bem. Portanto, duas... não, três caixas. Desataram os dois a rir e Mountolive observou: — O senhor é duro nos negócios. O cumprimento encantou Sir Louis. Apertaram a mão para consolidar a transacção e o embaixador preparava-se para tomar outro aperitivo quando o subordinado lhe observou:
— Desculpe-me, sir. Esse é o terceiro.
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— E que tem isso? — disse o velho diplomata num sobressalto de surpresa perfeitamente imitado. Ele sabia muito bem o que o outro queria dizer. Mountolive mordeu o lábio. — Pediu-me expressamente que eu o prevenisse — disse ele com ar de censura. Sir Louis empertigou-se tomando uma atitude teatral. — Um copito mais, antes do almoço, que mal faz? — Fá-lo trautear — disse Mountolive com ar sombrio. — Que diz você? — Digo que sim, sir. Neste último ano, na véspera da sua aposentação, o embaixador começara a beber um pouco imoderadamente — sem jamais atingir os limites da incoerência. Nessa altura manifestou-se nele um novo tique. Estimulado pelos cocktails frequentíssimos que ingeria, tinha adquirido o hábito de trautear, no decorrer das recepções, o que lhe valera uma reputação mais que duvidosa. Mas como não dava conta desse facto, negou-o inicialmente com indignação. Acabou por descobrir, para sua grande confusão, que trauteava sem cessar, em basso profundo, uma passagem da Marcha Fúnebre de Saul. Ela resumia bastante justamente uma vida de intenso tédio passada na companhia de funcionários indiferentes e dignitários imbecis. De certa maneira era a sua resposta a uma situação que ele tinha, desde há muitos anos, considerado subconscientemente como intolerável; e estava grato a Mountolive por ter tido a coragem de denunciar-lhe o hábito, ajudando-o a vencê-lo. Mas não deixava nunca de protestar quando o subordinado lhe recordava o facto. «Trautear?», resmungava ele agora, fazendo uma careta de indignação, «nunca ouvi semelhante tolice». Mas abandonou o copo e dirigiu-se ao espelho para uma observação crítica e final da sua indumentária. «Enfim, de qualquer maneira, está na hora». Tocou a campainha e Merritt apareceu com uma gardénia numa salva. Sir Louis tinha um gosto bastante pedante em matéria de flores, e insistia sempre em exibir a sua flor favorita na lapela quando em ténue de ville.
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A mulher mandava-lhe caixas delas, de Nice, por avião, e Merritt conservava-as no frigorífico para serem religiosamente racionadas. — Bem, David — disse ele dando uma palmadinha afectuosa no braço de Mountolive. — Devo-lhe um favor. Hoje não vou trautear, por mais apropriado que fosse para a circunstância. Desceram lentamente a grande escadaria curva e penetraram no vestíbulo, onde Mountolive ajudou o chefe a vestir o sobretudo e a calçar as luvas antes de chamar pelo telefone o carro oficial. — Quando pretende partir? — A voz trémula do velho traduzia uma genuína tristeza. — No dia um do mês que expediente e despedir-me.
vem,
sir.
Para
ter
tempo
de
arrumar
o
— Não quer ficar até à minha partida. — Se o exigir, sir. — Bem sabe que nunca faria uma coisa dessas — disse Sir Louis sacudindo a cabeça branca, embora no passado tivesse feito pior. — Nunca. Trocaram um aperto de mão caloroso enquanto Merritt se precipitava para abrir o pesado portão, pois o seu ouvido tinha apercebido a chiadeira dos pneus com correntes, na neve da entrada. Foram logo assaltados por uma rajada de vento carregada de neve. Os tapetes voaram sobre o soalho. O embaixador ajeitou o gorro de peles e enfiou as mãos nos bolsos. Depois, curvado contra a borrasca, desapareceu da tarde de Inverno. Mountolive suspirou e ouviu o relógio da Residência pigarrear catarrosamente antes de dar a uma hora. A Rússia ficava agora para trás. Berlim estava também nas garras da neve, mas aqui a melancolia da Rússia dera lugar a uma euforia maligna apenas menos deprimente. Havia no ar uma incerteza sombria agindo como um tónico.
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Sob as lâmpadas esverdeadas da Embaixada ouviu pensativamente o balanço das últimas tropelias causadas pelo moderno Átila e um apreciável sumário das comedidas predições que, no decorrer dos últimos meses, tinham enegrecido as minutas do serviço alemão e as colunas de impressos das previsões políticas. Seria agora evidente que este exército, de um diabolismo político, à escala nacional, acabaria por mergulhar a Europa num banho de sangue? A conclusão parecia esmagadora. Mas restava uma esperança — esse Átila podia voltar-se para Leste deixando o Ocidente pulverizar-se em paz. Se ao menos os dois anjos negros que pairavam no subconsciente europeu se destruíssem mutuamente... Sim, restava ainda essa esperança. «A única esperança, sim, disse tranquilamente o jovem adido, e não sem um certo alívio, porque, no fundo, há sempre num recanto do espírito a esperança de uma destruição total, único remédio para o tédio que consome o homem moderno. «A única esperança», repetiu. Opiniões exageradas, pensou Mountolive franzindo a testa. Tinham-lhe ensinado a evitá-las. Jamais comprometer-se mentalmente tinha-se tornado na sua segunda natureza. Nessa noite foi convidado para jantar de uma forma algo extravagante pelo jovem encarregado de negócios, pois o embaixador encontrava-se ausente e, depois do jantar, levaram-no ao moderno Tanzfest, um cabaret. Na confusão de caves iluminadas por candelabros, com as paredes forradas de damasco azul, cintilavam as pontas de centenas de cigarros, como pirilampos, fora do círculo de luzes brancas, onde um enorme hermafrodita, com cara de narval, marcava o compasso do «Fox Macabre Totentanz». Ensopado no suor dos saxofones negros, o estribilho prosseguia na sua histérica toada:
Berlin, dein Tanzer ist der Tod! Berlin, du wuhlst mit Lust im Kot!
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Halt ein! lass sein! und denk ein bischen nach: Du tanzt dir doch vom Leibe nicht die Schmach. denn du boxt, und du jazzt, und du foxt auf dem Pulverfass!
Ali estava um admirável comentário às deliberações da tarde e, sob a licença frenética e apaixonada da canção, parecia-lhe aperceber alusões mais antigas — quiçá passagens de Tácito? Ou bacanais de guerreiros a caminho da Valhalla? Um odor pesado de matadouro agarrava-se também à canção, a despeito das lantejoulas e das serpentinas. Mountolive sentou-se pensativamente entre as volutas de fumo dos charutos observando os movimentos indecentes e peristálticos de um traseiro. Uma frase do estribilho perseguia-o: «Nunca conseguirás sacudir, dançando, a vergonha do teu ventre», repetia ele observando os dançarinos extenuados, e as luzes mudarem do cinzento para o dourado e depois para o violeta. Subitamente empertigou-se exclamando «Santo Deus!» Tinha descoberto, num recanto da cave, a face familiar de Nessim. Estava sentado num grupo de sujeitos de idade, em traje de cerimónia, fumando um charuto e atento à conversa. Não pareciam dar atenção ao que se passava em volta. Uma garrafa de champanhe guarnecia a mesa. Estava demasiado afastado para tentar sinais e assim Mountolive decidiu remeter-lhe um cartão e ficou à espera, até ver Nessim, que seguiu a indicação do dedo do criado, sorrir e erguer o braço. Levantaram-se ambos, e Nessim aproximou-se imediatamente da mesa com o seu meigo e aberto sorriso; depois foram as habituais exclamações de surpresa e prazer. Estava em Berlim numa viagem de negócios de dois dias. — Tento vender tungsténio — acrescentou laconicamente. Regressava de avião ao Egipto na manhã seguinte. Mountolive apresentou-o ao seu hospedeiro e persuadiu-o a ficar alguns minutos na sua companhia.
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— É um prazer tão raro... e sobretudo agora. Mas Nessim já soubera da sua próxima nomeação. — Sei que a coisa ainda não é oficial — disse ele — ... mas correm rumores... Bem, não vale a pena esconder-lhe que foi Pursewarden quem mo disse. Pode imaginar a nossa alegria depois de tanto tempo. Continuaram a tagarelar, Nessim respondendo com um sorriso às perguntas de Mountolive. Mas nenhum deles ousou falar de Leila em primeiro lugar. Depois, o rosto de Nessim tomou uma expressão curiosa, uma espécie de pudor dissimulado, e disse hesitante: — Vou fazer-lhe uma confidência. Estou para casar. Recostou-se na poltrona tirando uma profunda fumaça do charuto. Mountolive formulou as felicitações habituais onde havia uma nuvem de tristeza — porque o casamento de um amigo é sempre um risco de sermos excluídos da sua amizade. — Pois é uma boa notícia! — repetiu ele calorosamente, esforçando-se por ser cordial, sem reservas; e sentiu que finalmente podia mencionar o nome de Leila. — Leila ficará encantada. Nessim lançou-lhe uma olhadela dissimulada antes de afastar vivamente os olhos.
pelas
longas
pestanas
— Não estou certo disso. Mountolive colocou-se numa atitude de polida interrogação. — Para começar, a mulher em questão — disse Nessim friamente — é judia, e bem sabe o terror absurdo que os coptas sentem pelos judeus. Temos mesmo um provérbio que diz: «Se deixares a raposa judia entrar na tua vinha, ela acabará por te devorar o coração». — Bem sei Hosnani...
—
disse
Mountolive
—
mas
tenho
a
certeza
de
— Depois, ela não pertence à sociedade. Enfim, é divorciada... Nessim enunciou estes três pontos com ar indiferente.
que
os
93
Apagou o charuto e lançou de novo a Mountolive um olhar equívoco. — Desde que você goste dela — disse tranquilamente este último. Mas, com grande surpresa sua, Nessim fez uma careta de desprezo e esfregou o queixo na manga do casaco. — Se gosto dela? — disse ele lentamente, como se sonhasse acordado. — Bem, creio que sim. Mas, levantando-se bruscamente, lançou um olhar inquieto aos seus companheiros sentados na outra extremidade da sala. — Tenho de deixá-lo — desculpou-se. absoluto segredo do que lhe disse.
—
Mas
peço-lhe
que
guarde
Estudaram a possibilidade de se encontrarem em Inglaterra antes de Mountolive partir para o seu novo posto. Nessim não se achava infelizmente em condições de formular projectos, pois não podia prever, com antecedência, para onde o levaria o curso dos seus negócios. Deviam entregar-se à sorte. Nesse momento o hospedeiro de Mountolive regressou do vestiário, o que abreviou qualquer troca de confidências. Despediram-se cordialmente e Nessim voltou lentamente para a sua mesa. — O seu amigo é negociante de armas? — perguntou o encarregado de negócios quando partiam. — Não, é banqueiro. A menos que o tungsténio tenha qualquer utilidade na fabricação de armas... Porquê? — Por nada de especial. Simples curiosidade. Sabe, as pessoas que estão com ele pertencem todas à Krupp, e foi por isso que lhe fiz a pergunta.
IV
Regressava sempre a Londres com a trémula impaciência de um amante longamente separado da amada; voltava, por assim dizer, num ponto de interrogação. Teria a vida mudado? Teria mudado tudo? Talvez, afinal de contas, a nação tivesse acordado e começado a viver? A morrinha negra sobre Trafalgar Square, as comichas incrustadas de fumaça de Whitehall, o incessante vaivém dos pneus sobre o asfalto, as vozes misteriosas de conspiradores que sobem do rio afogado no nevoeiro, tudo aquilo era simultaneamente tranquilizante e ameaçador. Amava aquilo intermitentemente, aquela melancolia, embora soubesse que não poderia mais viver ali para sempre, pois a sua profissão fizera dele um expatriado. Caminhava no meio da chuva miudinha em direcção de Downing Street, abafado no seu pesado sobretudo, comparando-se de vez em quando, não sem uma certa complacência, ao histriónico Grão-Duque, que lhe sorria quando os seus olhos encontravam os anúncios dos cigarros De Reske. Sorriu recordando-se das saídas acerbas de Pursewarden sobre a capital, repetindo-as mentalmente com verdadeiro prazer, quase como se fossem elogios. Pursewarden passou a mão da irmã de um cotovelo para outro a fim de completar um gesto vago endereçado à estátua enegrecida de Nelson, sob um bando de pombos que agitavam as asas para se defenderem do frio brutal. «Ah, Mountolive, olhe para isto.
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Pátria de excêntricos e impotentes. Londres! A tua comida é tão apetitosa como uma papa de bário, o teu desconforto, as ruas causas não só perdidas mas ultrapassadas». Mountolive tinha protestado rindo. «Pouco importa. É nossa, e é maior que a soma de todos os seus defeitos». Mas o seu companheiro achara aqueles sentimentos incompatíveis com a realidade. Sorria agora recordando o áspero ataque do escritor contra a melancolia e o barbarismo sinistro da Inglaterra. Essa melancolia satisfazia Mountolive; era uma espécie do amor que a raposa sente pela sua terra. Ouvia com complacência, sorrindo indulgentemente, enquanto o seu companheiro se fingia encolerizado contra a sua ilha natal. «Ah, Inglaterra! Inglaterra onde os membros da Sociedade Protectora dos Animais comem carne e os nudistas comem frutos congelados. O único país que se envergonha da pobreza». O Big Ben tocou a sua melopeia plangente. As lâmpadas tinham começado a despedir as suas linhas de luz prismática. Mesmo a despeito da chuva havia o habitual magote de turistas e de curiosos diante do número 10 (Nota 1). Mountolive afastou-se e penetrou nas silentes abóbadas do Foreign Office, dirigindo os seus passos para a repartição do correio, agora virtualmente deserta, onde se apresentou e deu instruções para lhe enviarem a correspondência, deixando ordem para que lhe mandassem imprimir novos e mais pomposos cartões de visita. Depois, num ar de certo modo mais solene, e num passo menos despreocupado, trepou a fria escadaria que cheirava a teias de aranha e alcançou o grande vestíbulo patrulhado por archeiros uniformizados. Era tarde e a maior parte dos habitantes daquilo a que Pursewarden chamava o «Pombal Central» tinha partido já. Aqui e além, no grande edifício, havia oásis de luz atrás das janelas gradeadas. O tilintar de chávenas de chá soou algures.
Nota 1 - O número 10 de Downing Street é a residência do PrimeiroMinistro. (N. do T.).
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Um sujeito tropeçou numa pilha de pastas encarnadas acumuladas num corredor. Mountolive soltou um suspiro de prazer. Tinha deliberadamente escolhido esta hora tardia para as suas primeiras visitas porque tinha que se avistar com Kenilworth e... as suas ideias não eram muito claras a esse respeito; mas poderia vencer a antipatia que o homem lhe despertava e convidá-lo para vir tomar uma bebida no seu clube? No decurso da sua carreira tinha concitado a inimizade do outro, sem saber porquê, pois nunca houvera entre os dois qualquer atrito concreto. Mas a coisa ali estava, como um nó na madeira. Tinham sido condiscípulos no colégio e na Universidade, embora nunca fossem amigos. Mas, enquanto Mountolive tinha progredido, sem sobressaltos, na ladeira das promoções, o outro tinha, de certo modo, perdido constantemente o pé; derivara em lugares de menor importância, recolhera os louvores rotineiros, mas nunca encontrara a corrente favorável. A sua habilidade e valor eram incontestáveis. Porque diabo nunca triunfara? Mountolive fazia a si próprio esta pergunta com indignação, com irritação. Pouca sorte? De qualquer modo, ali estava Kenilworth dirigindo a Repartição do Pessoal, um lugar inofensivo, é certo, mas o seu fracasso embaraçava Mountolive. Para um homem com os seus méritos era realmente uma vergonha estar a dirigir um daqueles elos da cadeia administrativa que nenhuma perspectiva abrem para o mundo da política. Um beco sem saída. E já que não podia manifestar-se num sentido positivo, não tardariam a desenvolver-se nele os poderes negativos da obstrução que sempre provêm de um sentimento de fracasso. Enquanto assim pensava, ia subindo lentamente ao terceiro andar para visitar Granier, movendo-se no crepúsculo violeta em direcção das altas portas de madeira creme, atrás das quais o subsecretário se encontrava flutuando na luz fria de uma lâmpada verde, fazendo com um canivete incisões no papel mata-borrão rosa. Os cumprimentos aqui valiam o seu peso, pois eram temperados por certo ciúme profissional.
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Granier era um homem esperto, brilhante e bem humorado, tendo herdado da avó um pouco da agilidade mental dos franceses. Era fácil gostarse dele. Falava depressa e confiadamente, marcando as suas frases com pequenos movimentos do pesa-papéis de marfim. Mountolive sentiu-se vencido pelo encanto da sua oratória — um inglês de boa casta! — Esteve na missão de Berlim, presumo. Bom. De qualquer modo, se tem lido as «previsões políticas», verá o aspecto que os acontecimentos podem vir a tomar e avaliar a extensão das nossas preocupações no que respeita ao seu novo posto. Não é? Não gostava de usar a palavra «guerra». Tinha um som melodramático. — Se suceder o pior não preciso acentuar quanto nos preocupa o Suez — e na verdade todo esse complexo de estados árabes. Mas uma vez que já lá serviu não quero estar a dar-lhe conselhos. Mas aguardamos os seus relatórios com interesse. Tanto mais que sabe o árabe. — O meu árabe está enferrujado; pouco resta. — Shut — disse Granier — não fale muito alto. Deve a sua designação em grande medida a esse facto. Pode recuperar com rapidez os seus conhecimentos? — Se me derem a licença a que tenho direito. — Naturalmente. De resto, agora que a Comissão acabou, temos de obter o agreément, e assim por diante. E, naturalmente, o secretário de Estado deseja vê-lo quando regressar de Washington. E depois a investidura, o beija-mão e tudo o mais? Embora consideremos toda a nomeação deste género como urgente... enfim, conhece tão bem como eu a serenidade chinesa dos movimentos do Foreign Office. (Sorriu o seu sorriso indulgente e malicioso, acendendo um cigarro turco.) Mas talvez não seja má filosofia, pelo menos no plano político. Afinal de contas, enfrentamos constantemente o inevitável, o irremediável; quanto mais pressa, mais confusão! O pânico corrói a confiança.
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Em diplomacia podemos propor, nunca podemos dispor. Isso pertence a Deus, não acha? Granier era um desses católicos mundanos que consideram Deus como um digno membro do seu clube, cujos motivos são indiscutíveis. Suspirou e guardou um breve silêncio antes de acrescentar: — Bem, agora temos de preparar o tabuleiro de xadrez para si. Nem todos consideram o Egipto um figo maduro. Felizmente para você. Mountolive abria mentalmente um mapa do Egipto com a sua grande artéria central flanqueada por desertos, as anomalias poeirentas das gentes e dos credos; depois viu-o alastrar-se em três direcções numa incoerência de desertos e de pradarias; para o Norte o Suez, como uma operação cesariana rasgando, prematuramente, o Oriente; depois outra vez o sinuoso complexo de montanhas e granito morto, pomares e planícies distribuídas no mapa, ao acaso, fronteiras marcadas com pontinhos... A metáfora do tabuleiro era adequada. No meio desta teia de aranha ficava o Cairo. Suspirou e despediu-se preparando uma nova expressão para saudar o infeliz Kenilworth. Quando passou novamente junto dos archeiros do primeiro andar descobriu, com terror, que estava atrasado dez minutos para a sua segunda entrevista e pediu aos deuses que esse facto não fosse interpretado como uma descortesia intencional. — Mr. Kenilworth já telefonou duas vezes, sir. Eu disse-lhe onde o senhor estava. Mountolive respirou e dirigiu-se de novo para a escada, mas desta vez para voltar à direita e percorrer diversos corredores frios mas inodoros que levavam ao gabinete de Kenilworth, que o esperava batendo com as lunetas sem aros no polegar forte e bem torneado. Acolheram-se com uma grotesca efusão que, de facto, mascarava a antipatia recíproca. — Meu caro David. Seria, pensava Mountolive, simplesmente uma antipatia inspirada pelo aspecto físico do outro?
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Kenilworth era de compleição forte e porcina, pesando para cima de noventa quilos de sebo e snobismo. Estava prematuramente encanecido. Os seus dedos gordos, bem tratados, sustentavam a caneta com tanta delicadeza como se estivesse lidando com agulhas de fazer renda. — Meu caro David. Abraçaram-se calorosamente. Quando Kenilworth se levantou, toda gordura ficou pendurada em torno do corpo como um fato mal feito.
a
— Meu caro Kenny — disse Mountolive com apreensão e um certo desprezo por si próprio. — Que boa nova! E prezo-me — Kenilworth compôs uma expressão seráfica — de ter muito modestamente contribuído para ela. O conhecimento do árabe contava aos olhos do secretário de Estado e fui eu quem lhe lembrou que você o falava perfeitamente! Isto é que é memória, hem? A memória dos ratos de arquivo. Soltou uma gargalhadinha e sentou-se apontando uma cadeira a Mountolive. Trocaram banalidades e depois Kenilworth, juntando as mãos num gesto contrariado, exclamou: — Mas voltemos ao nosso caso, meu velho. Reuni toda a papelada pessoal para você lhe deitar uma olhadela. Está tudo em ordem. É uma legação muito afinada, verá. Tenho absoluta confiança no chefe da Chancelaria, Errol. Claro, a sua opinião é decisiva. Verificará se a estrutura do pessoal o satisfaz e depois me dirá, não é verdade? Talvez queira um ajudante de campo? Quanto a uma secretária é melhor escolhê-la na manada de dactilógrafas da legação. E como você é celibatário há-de necessitar de alguém para o aspecto social, não é? Não creio que a sua terceira secretária lhe convenha para esse fim. — Creio que poderei resolver isso tudo quando lá chegar. — Claro, claro! Só pretendo facilitar-lhe as coisas na medida do possível.
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— Obrigado. — Há apenas uma alteração que eu indispensável. Trata-se de Pursewarden, político.
considero pessoalmente o primeiro conselheiro
— Pursewarden? — disse Mountolive com um sobressalto. — Vou transferi-lo. O seu contrato expirou e ele não serve para o lugar. Uma transferência far-lhe-á bem. — Foi ele que manifestou esse desejo? — Não de forma expressa. Mountolive estremeceu. Retirou do bolso a boquilha de que se utilizava unicamente em momentos de perplexidade, e colocando-lhe um cigarro, que escolheu na caixa de prata colocada sobre a secretária, reclinou-se para trás. — Você tem quaisquer outros motivos? — perguntou tranquilamente. — Porque pessoalmente gostava de conservá-lo comigo pelo menos durante algum tempo. Os olhinhos de Kenilworth apertaram-se. O seu pescoço nédio pareceu dilatar-se sob o efeito do rubor de contrariedade que procurava abrir caminho para o rosto. — Para ser franco, tenho. — Então de que se trata? — Você encontrará nos papéis que eu coligi para si um longo relatório de Errol a respeito de Pursewarden. Não me parece que o homem nos convenha. Depois, não se pode confiar nesses contratados da mesma forma que se confia nos oficiais de carreira. Na generalidade, é claro. Não quero dizer que o nosso amigo não seja fiel à firma, longe disso. Mas é abelhudo e teimoso. Bem, seja! É um escritor, não é? Kenilworth conciliou-se com a imagem de Pursewarden com um sorriso breve de inconsciente desdém. — Tem havido fricções constantes com Errol. Bem vê, depois que a Comissão começou a desintegrar-se gradualmente, depois da assinatura do Tratado, criou-se uma enorme brecha, um hiato; todas as agências criadas depois de 1918, e que trabalhavam para a Comissão, quebraram
as amarras Embaixada.
à
medida
que
o
navio-mãe
começou
a
dar
lugar
a
uma
102
Você terá que tomar certas decisões radicais. Anda tudo à deriva. A expectativa tem sido a nota dominante dos últimos meses — e uma hostilidade latente entre uma Embaixada sem chefe e todos esses organismos enjeitados lutando contra a sua própria extinção. Percebe? Pursewarden pode ser muito inteligente mas arranjou uma série de inimigos — não só na Legação; pessoas como Maskelyne, por exemplo, que dirige o Serviço de Informações do Ministério da Guerra há mais de cinco anos. Rosnam um ao outro como cães. — Mas que relações temos nós com o Serviço de Informações? — Nenhumas. Mas a Secção Política do Alto Comissário está na dependência dos relatórios dos Serviços de Maskelyne que constituem o núcleo de informações para todo o Médio-Oriente. — E onde está a querela? — Pursewarden, como político, sente que a Embaixada também herdou de certo modo da Comissão a secção de Maskelyne. Este nem quer ouvir falar em tal. Exige paridade ou mesmo completa autonomia para o seu bando. Afinal de contas não passa de um tropa. — Então militar.
é
colocá-lo
provisoriamente
sob
as
ordens
de
um
adido
— Muito bem, mas Maskelyne recusa-se a ficar ligado à sua Missão visto que é mais antigo que o seu adido designado. — Que tolice é tudo isso. Qual o posto dele? — Brigadeiro. Bem vê, desde o fim da guerra de 18 o Cairo tem sido a sede da rede de informações e toda a informação é filtrada por Maskelyne. E agora Pursewarden tenta chamá-lo a si, metê-lo nas baias. Desordem geral, é claro. O pobre Errol, que tem os seus lados fracos, reconheço-o, anda a balouçar entre os dois como uma vela solta. É por essa razão que eu penso que a sua tarefa seria facilitada se Pursewarden fosse afastado.
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— Ou Maskelyne. — Bom, mas ele é um feudo do Ministério da Guerra. É impossível. Em qualquer caso, está ansioso porque você chegue para arbitrar a questão. Está persuadido de que você restabelecerá a sua completa autonomia. — Não posso tolerar uma agência autónoma do Ministério da Guerra num território onde sou acreditado, não acha? — Concordo. Concordo, caro amigo. — E que diz o Ministério da Guerra? — Sabe como são os militares. Aceitarão qualquer decisão sua. Não têm outro remédio. Mas estão anichados lá há muitos anos. Têm os seus quadros de pessoal e um transmissor em Alexandria. Penso que gostariam de ficar. — Mas sem autonomia. Eu considero isso intolerável. — Exactamente. É o ponto de vista de Pursewarden. Bem, mas alguém tem de partir no interesse da equidade. Não nos podemos dar ao luxo de todas essas alfinetadas. — Que alfinetadas? — Bem: Maskelyne, retendo os relatórios e sendo obrigado depois a despejá-los na Secção Politica; Pursewarden, criticando-lhe os métodos e duvidando do valor das informações. Um verdadeiro fogo de vistas. A coisa é séria. O melhor é afastar a personagem, que de resto tem... companhias estranhas. Errol teme pela sua segurança. Compreenda, não temos nada contra Pursewarden. Apenas ele é um pouco... enfim, um pouco vulgar, por assim dizer. Não sei como qualificar a coisa. Está tudo no relatório de Errol. Mountolive suspirou. — Tudo isso não passa de uma querela entre Eton e Worthing, não acha? Ficaram a olhar um para o outro. Nenhum deles achou graça observação. Kenilworth sacudiu os ombros manifestamente vexado.
à
— Meu velho — disse ele — se você pretende bater-se com o secretário de Estado por causa disso, não posso impedi-lo; você não aceita as minhas sugestões.
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Mas o meu ponto de vista já foi objecto de um relatório. Desculpe-me se não o altero; é o meu comentário aos relatórios de Errol. Afinal de contas tem sido ele quem tem conduzido todo o assunto. — Bem sei. — Seria injusto para com ele. Agitando-se vagamente no seu subconsciente, Mountolive sentiu uma vez mais apresentar-se aquele poder de que agora dispunha — o poder de tomar decisões em factos destes que até então tinham sido deixados ao destino, ou às decisões ocasionais de vontades subalternas; factos que não mereciam os ressentimentos e as dúvidas cuja resolução sumária se alcançaria com um simples acto de bom-senso. Mas se ele pretendia afirmar a sua liberdade de agir, tinha de começar por qualquer parte. Um embaixador tinha o direito de propor e garantir o pessoal de sua escolha. Porque motivo havia Pursewarden de sofrer e suportar os inconvenientes de uma transferência para qualquer lugar incompatível devido aos mexericos administrativos dos tropas broncos e pedantes? — Receio que o F. O. o perca definitivamente se começa a brincar com ele — disse Mountolive sem convicção; depois, como para reparar uma declaração tão sinuosa, acrescentou num tom áspero: — De qualquer forma, tenciono ficar com ele durante algum tempo. O sorriso no rosto de Kenilworth não tinha neste momento qualquer colaboração dos olhos. Mountolive sentiu o silêncio caindo sobre eles como as portas de uma catacumba. Não havia mais nada a fazer. Levantou-se com um ar exageradamente decidido, esmagou o cigarro no horrível cinzeiro e disse: — É esta a minha opinião, e sempre me poderei desembaraçar dele se concluir que não me convém. Kenilworth engoliu tranquilamente a saliva, como um sapo debaixo de uma pedra, os seus olhos inexpressivos presos no papel da parede.
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O som distante do tráfego de Londres elevou-se entre os dois. — Tenho de ir — disse Mountolive, que agora começava a sentir-se aborrecido. — Fico com todos os processos para os levar comigo para a terra, amanhã à noite. Hoje e amanhã despacho as visitas oficiais e depois... alguns dias de férias, pelo menos espero. Até à vista, Kenny. — Até à vista. Mas Kenilworth não se levantou da secretária. Limitou-se a fazer um aceno em direcção da porta quando Mountolive a fechou; depois regressou, com um suspiro, para o memorando muito bem dactilografado de Errol, numa pasta cinzenta marcada À atenção do Embaixador Designado. Leu algumas linhas, depois levantou os olhos com ar preocupado para a janela sombria, antes de atravessar o quarto para abrir as cortinas e levantar o auscultador do telefone. «Os arquivos, por favor». Por agora, era mais hábil não tentar impor o seu ponto de vista. Esta querela fútil fez contudo Mountolive renunciar ao seu projecto de levar Kenilworth ao seu clube. Num certo sentido era um alívio. Em lugar disso telefonou a Liza Pursewarden e foram jantar juntos. Dewford Mallows ficava apenas a duas horas de Londres, mas, mal saíram da cidade, verificaram que toda a província estava debaixo de um denso lençol de neve. Foram obrigados a diminuir a marcha, o que encantou Mountolive, mas enfureceu o motorista. — Vamos lá chegar pelo Natal, sir — se é que lá chegamos. Aldeias da era glacial, vivendas e granjas de tectos de colmo polvilhados de neve, arrumadas como a montra de um pasteleiro habilidoso; curvas lentas de pradarias imaculadas, onde se viam impressas, em caracteres cuneiformes, as patas de uma ave ou as marcas congeladas do gado.
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As vidraças do carro estavam coladas pela neve. Não dispunham nem de aquecimento nem de correntes. A cinco quilómetros da aldeia encontraram um camião voltado na valeta; dois homens olhavam indiferentes soprando os dedos entorpecidos. Os postes telegráficos tinham sido derrubados aqui e além. Havia um falcão morto na neve rutilante, em Newton Ridge. Nunca conseguiriam chegar a Parson's Ridge e Mountolive apiedou-se do motorista e aconselhou-o a voltar para a estrada principal atravessando a ponte. — Moro ali em cima — disse ele. — Em vinte e cinco minutos de marcha chego lá. O homem ficou satisfeitíssimo por não continuar e aceitou constrangido a gorjeta que Mountolive lhe ofereceu. Depois manobrou o carro lentamente e arrancou outra vez para o Norte enquanto o seu passageiro se afundava naquela brancura, com a respiração a condensar-se diante dele numa espessa coluna de vapor. Seguiu o carreiro familiar através dos campos, cada vez mais íngreme à medida que se aproximava de uma linha do horizonte invisível, que desenhava (a memória agia agora onde a vista era impotente) qualquer coisa tão perfeita na sua simplicidade como o primeiro avião de Cavendish. Uma paisagem ritual que tornava mais irresistivelmente misteriosa a claridade de um sol fantasma, algures, lá em cima, por detrás da cortina opaca de um nevoeiro pesadão que derivava diante dele, afastando-se por um momento para depois de novo se cerrar. Esta caminhada reavivava nele uma multidão de recordações, mas não podendo vê-los era obrigado a imaginar os dois pequenos lugarejos na crista da colina, os bosques de faias e o castelo normando. Os seus sapatos, a cada passo, cortavam uma massa trémula de gotas de chuva nos tufos de relva luxuriante e em pouco tempo as viras das calças ficaram alagadas e os tornozelos começaram a gelar. Um exército de carvalhos surgiu da sombra, e bruscamente houve um crepitar seco, como se as árvores batessem os dentes de frio, e pedaços de neve vieram esmagar-se no leito de folhas mortas a seus pés.
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Na crista, o espaço estava desembaraçado. Os coelhos deslizavam sem ruído por todos os lados. As pontas das ervas altas, geladas pelo frio, cintilavam como estiletes. Aqui e além apareciam lampejos de um sol pálido brilhando através do nevoeiro como uma lâmpada de gás que ilumina mas não aquece. Agora Mountolive ouvia o chapinhar dos seus sapatos no macadame da estrada de segunda classe enquanto se apressava em direcção dos altos portões domésticos. Aqui e ali viamse carvalhos ornamentados de brilhantes; dois pombos gordos fugiram com um bater de asas sonoro, como se mil livros se fechassem ao mesmo tempo. Mountolive sobressaltou-se mas depois sorriu divertido. Avistou uma lebre na tapada, nas vizinhanças da casa. Dedos de gelo caíam ao lado das árvores com um ruído de cálices quebrados. Procurou a velha chave Yale e sorriu outra vez quando a sentiu dar a volta, dando-lhe acesso a um ambiente morno e inesquecível que cheirava a abrunhos e livros antigos, cera de soalhos e flores; tudo recordações que o levavam infalivelmente até Piers Plowman, o pónei, à cana de pesca e ao álbum de selos. Ficou no vestíbulo e chamou por ela docemente. A mãe encontrava-se à lareira, tal como ele a tinha deixado a última vez, com um livro aberto sobre os joelhos, sorrindo. Tinham decidido tacitamente dispensar despedidas e boas-vindas formais: proceder como se ele se ausentasse simplesmente por alguns minutos daquele quarto acolhedor onde ela passava a vida, lendo, pintando ou costurando diante da lareira. Ela sorria agora aquele mesmo sorriso que a ajudava a cimentar o espaço e o tempo e a adoçar o abandono que a empolgava quando o filho se encontrava ausente. Mountolive desembaraçou-se da pesada mala de cabedal e aproximou-se da mãe. — Querida mãe! Vejo pela sua cara que já sabe. É que esperava fazerlhe uma surpresa!
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Ficaram ambos explicou:
desolados
com
o
facto;
e
enquanto
ela
o
beijava,
— Os Garniers vieram tomar chá na semana passada. Oh, David, que pena. Era tão bom se tivesses sido tu a fazer-me a surpresa. Mas finjo tão mal. Mountolive sentiu um absurdo desejo de chorar de despeito; tinha composto antecipadamente toda a cena, imaginando todas as perguntas e respostas. Era como rasgar o original de uma peça dolorosamente trabalhada pelo autor. — Diabo, eles bem podiam ter ficado calados! — exclamou. — Eles quiseram dar-me uma alegria — e deram. Podes calcular, não é verdade? Mas a partir desse ponto ele remergulhou, ligeiramente e sem esforço, na corrente de recordações que a casa evocava e que remontavam quase ao seu undécimo aniversário, e um sentimento de bem-estar e de plenitude invadiu-o com o doce calor do fogo. — Teu pai vai sentir-se muito feliz — acrescentou ela um pouco mais tarde, numa voz onde pairava, áspero, um tom inconsciente de ciúme, restos de uma paixão que havia muito tempo se tinha transformado numa submissão involuntária. — Coloquei toda a tua correspondência sobre a secretária dele. A secretária «dele»! Nunca seu pai a tinha visto, nunca lá trabalhara. A deserção do pai estava sempre presente entre eles, embora raramente aludissem à sua vida, à margem da família, numa outra parte do mundo; e quem podia dizer se ele se sentia feliz ou infeliz? «Para aqueles de entre nós que vivem à margem do mundo, sem terem sido chamados por nenhum deus, não existe outra verdade senão esta: o trabalho é o amor!» Estranha frase que o velhote tinha incluído num prefácio erudito a um texto pali! Mountolive tinha dado voltas sobre voltas ao volume verde, procurando penetrar o sentido destas palavras, confrontando-as com a lembrança de seu pai, delgada silhueta morena com a estrutura óssea de uma gaivota esfomeada e levando na cabeça um incongruente chapéu colonial.
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Agora usava a túnica dos faquires indianos! Era ridículo? Nunca mais vira seu pai desde que saíra da Índia, quando fizera onze anos; tornara-se como uma espécie de criminoso condenado in absentia por um crime... inqualificável. Uma aposentação amigável no mundo da erudição oriental a que se dedicara havia alguns anos. Era desconcertante. Mountolive pai pertencera a essa Índia desaparecida, à companhia dos seus chefes cuja devoção comum à função os tinha transformado numa casta; mas uma casta que se orgulhava mais de ver um dos seus membros entregar-se à erudição budista do que conquistar honras civis. Tais paixões desinteressadas acabam geralmente por uma identificação apaixonada com o seu objecto — esse subcontinente como um formigueiro, com as suas castas e as suas crenças, os seus monumentos, as suas fés e as suas ruínas. Tinha começado por ser um simples juiz, mas, em poucos anos, tornou-se um proeminente mestre de induísmo, editor e tradutor de textos raros e esquecidos. O jovem Mountolive e sua mãe tinham ido instalar-se confortavelmente na Inglaterra partindo do princípio que ele se viria juntar mais tarde à família; com este fim fora aquela bela casa recheada com os troféus, livros e quadros de uma longa carreira de trabalho. Se agora havia nela um certo ar de museu, era devido a ter sido abandonada pelo seu verdadeiro autor, que tinha decidido ficar na índia para completar os seus estudos, que (reconheciam ambos agora) lhe tomariam todo o resto da vida. Este fenómeno não era raro entre os funcionários dessa administração hoje desmembrada e dispersa. Mas a coisa operara-se gradualmente. Ele tinha reflectido no assunto durante muitos anos antes de chegar a uma decisão, e assim a carta em que ele a anunciava tinha o ar de um documento longamente meditado. Foi, com efeito, a última carta que qualquer deles recebeu do ausente. Contudo, de tempos a tempos, algum viajante que tinha oportunidade de visitá-lo no mosteiro budista, perto de Madras, para onde ele se retirara, era portador de uma amável mensagem do antigo juiz.
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E, é claro, os livros chegavam também pontualmente, uns atrás dos outros, resplandecentes nas suas belas encadernações, com o selo imponente das University Presses. Os livros eram de certo modo a sua desculpa e justificação. A mãe de Mountolive respeitara esta decisão e actualmente mal falava dela. Somente, de tempos a tempos, o responsável invisível pelas suas duas vidas nesta ilha enevoada emergia quando se falava da «sua» secretária, ou quando de outras observações análogas que caíam sem comentário e de novo se evaporavam no mistério de uma existência que para eles nada evocava de comum ou concebível. Mountolive nunca pôde trespassar a couraça de orgulho de sua mãe para saber até que ponto essa deserção a tinha afectado. Mas uma timidez comum crescera entre eles a este respeito, porque cada um pensava que o outro sofria. Antes de se vestir nessa noite para jantar, Mountolive entrou na sala cujas paredes se encontravam cobertas de livros e que servia igualmente de armeiro, e tomou solenemente posse da secretária de seu pai, de que aliás se utilizava sempre que se encontrava de visita a casa. Arrumou cuidadosamente as pastas nas diversas gavetas e separou a correspondência. Entre as cartas e os postais localizou imediatamente a escritura inimitável de Pursewarden num volumoso sobrescrito porteado de Chipre. Pensou que talvez se tratasse de um manuscrito, e abriu o sinete com o dedo, algo perplexo. «Meu caro David — principiava a carta. — Deve surpreendê-lo receber de mim uma epístola tão volumosa. Mas acabo de saber que você foi nomeado para o Egipto, e há muitas coisas que lhe convém conhecer sobre a situação aqui reinante e que não lhe posso comunicar oficialmente na sua qualidade de embaixador designado (confidencial: via aérea). Bolas!» Teria tempo mais tarde para estudar aquele enorme memorando, pensou Mountolive suspirando, e abriu uma gaveta para guardar a carta juntamente com os outros papéis.
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Ficou um momento sentado em frente da grande secretária, deixando-se impregnar da calma do gabinete e pelas associações que aquele bricabraque despertava: pintura mandalaica de algum santuário birmane, estandartes Lepcha, gravuras emolduradas da primeira edição do Livro da Selva, a caixa de mariposas, os objectos votivos deixados em algum templo abandonado. Depois os livros raros e as brochuras — primeiros escritos de Kipling, editados por Thacker and Spink, Calcutá, fascículos de Edwards Thompson, Younghusband, Mallows, Derby... Alguns museus seriam felizes se os possuíssem. Depois de classificados regressariam ao anonimato. Pegou no antigo moinho de orações tibetano colocado sobre a secretária e deu-lhe uma ou duas voltas, escutando o débil atrito no interior do tambor, abafado pelos pedacinhos de papel amarelado onde penas piedosas tinham escrito havia muito tempo a invocação Om Mani Padme Aum. Fora um presente de seu pai no momento da despedida. Antes de o navio levantar ferro tinha atormentado o pai para que lhe comprasse um avião de celulóide e tinham procurado um em todo o bazar sem o menor sucesso. De repente, o pai parara diante do tabuleiro de um ambulante e adquirira aquele moinho por um punhado de rupias. Entregara-lho em substituição do desejado brinquedo. Era tarde. Tinham que se apressar. As despedidas foram despidas de calor. E depois? Um estuário lamacento sob um céu de chumbo, o reflexo do calor enevoando os rostos, o fumo que subia das fogueiras crematórias, os cadáveres dos homens, azulados e dilatados, que o rio levava na corrente... Era tudo de quanto se lembrava. Pousou o pesado cilindro e soltou um suspiro. O vento sacudiu a janela e um punhado de neve veio colar-se ao vidro, como para lhe recordar onde se encontrava. Procurou os seus manuais de árabe e o dicionário. Durante alguns meses aqueles livros ocupariam um lugar na sua mesa de cabeceira.
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Nessa noite assaltou-o novamente o mesmo mal que sempre o afligia quando regressava a casa: uma dor atroz nos ouvidos que o reduzia rapidamente à sombra torturada de si mesmo. Era um mistério, porque até então todos os médicos se tinham revelado incapazes de debelar ou sequer diagnosticar esse fenómeno. Aquilo só lhe sucedia quando se encontrava em casa. Como sempre, sua mãe surpreendeu-lhe os gemidos, sabendo, por experiência, o que significavam: veio sentar-se à cabeceira da cama para lhe fornecer o conforto de uma presença amiga e do único remédio que desde criança ela utilizava para lutar contra a dor do filho. Conservava-o sempre ao alcance da mão, num armário que ficava ao lado da cama: azeite que aquecia numa colher de chá ao calor de uma vela. Ele sentiu o calor do azeite penetrar-lhe no cérebro, e ouviu a voz da mãe afugentar as trevas da dor e acalmá-lo com a promessa de um rápido alívio. Ao fim de algum tempo, a maré dolorosa recuou, para o deixar, como lavado, na praia do sono, um sono ainda vagamente animado pelas benfazejas recordações das doenças da infância que sua mãe sempre partilhara com ele — adoeciam juntos, como por simpatia. Seria para poderem ficar ambos na cama, em dois quartos contíguos, a falar, a ler um para o outro, a gozar o luxo de uma convalescença comum? Não sabia. Adormeceu. Foi só uma semana mais tarde que abriu de novo a gaveta onde tinha guardado os documentos oficiais e que leu a carta de Pursewarden.
V
«Meu caro David. «Deve surpreendê-lo receber de mim uma epístola tão volumosa. Mas acabo de saber que foi nomeado para o Egipto, e há muitas coisas que lhe convém conhecer sobre a situação aqui reinante e que não lhe posso comunicar oficialmente na sua qualidade de embaixador designado (confidencial: via -aérea). Bolas.' «Uf! Que maçada! Odeio escrever cartas, como bem sabe. E contudo... provavelmente já terei partido quando você chegar, porque já dei os passos necessários para ser transferido. Depois de uma série de calculadas iniquidades, consegui finalmente persuadir o pobre Errol de que eu não convinha à Missão que honrei com a minha presença nestes últimos dois anos. Dois anos! Uma vida! E o Errol é tão bom, tão honesto, tão virtuoso; um homenzinho curioso que lembra uma cabra tirada a ferros! Foi com a maior relutância que disse mal de mim no seu relatório. Peço-lhe que nada faça para impedir a transferência que daí resultará porque é justamente o que me convém. Rogo-lhe esse favor. «O factor decisivo foi o meu abandono do posto nas últimas cinco semanas; isso causou grandes perturbações e decidiu Errol. Já lhe explico. Não sei se se recorda daquele jovem e obeso diplomata francês da Rue du Bac, um tal Pombal? Nessim levou-nos uma vez a todos a tomar umas bebidas, algures no Mundo.
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Pois bem, refugiei-me em casa dele; colocaram-no cá. É realmente divertido chez lui. No fim do Verão, a embaixada acéfala retirou-se, acompanhando a corte que foi passar o Inverno no Cairo, mas desta vez sem o vosso servidor. Meti-me a monte. Levantamo-nos às onze horas, pomos as pegas na rua e, depois de um belo banho quente, jogamos o gamão até à hora do almoço; depois vem um arak no café Al Akhtar com Baltasar e Amaril (que se recomendam) e jantar no Bar Union. Depois visitamos Clea ou vamos ao cinema. Pombal faz tudo isso na legalidade: está de férias. Eu estou em retirada. De vez em quando Errol telefona, exasperado, do Cairo, tentando surpreender-me e eu respondo-lhe imitando a voz de uma poule do Midi. Isso irrita-o porque suspeita que sou eu, sem, contudo, ter absoluta certeza. (Um antigo aluno de Winchester não pode correr o risco de ser descortês.) Temos deliciosos colóquios. Ontem disse-lhe que eu, Pursewarden, estava a tratar-me de uma doença glandular com o professor Pombal e que me encontrava actualmente livre de perigo. Pobre Errol. Um dia hei-de apresentar-lhe desculpas por tudo isto. Mas mais tarde. Nunca antes de ter obtido a minha transferência para o Sião ou para Santos. «Tudo isso é muito indecente da minha parte, bem sei, mas... o tédio daquela Chancelaria com toda aquela tropa de atrasados mentais! Os Errol são tão britânicos! Por exemplo, são ambos economistas. Porque diabo ambos? Um deles deve sentir-se permanentemente a mais. Fazem amor com uma aproximação de duas decimais. Os seus filhos têm todos o aspecto de meras fracções! «Bem. Os únicos simpáticos são os Donkins; ele é esperto e alegre, ela puxando para o comum, forte, usa demasiado bâton. Mas... ela resgata o facto de o marido ter deixado crescer a barba e adoptado a religião muçulmana! Senta-se com um ar agressivo na secretária dele, balançando as pernas e fumando sem cessar. A boca muito vermelha. Como não é uma lady, expõe-se aos comentários.
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O marido é um jovem esperto mas excessivamente honesto. Não me atrevo a perguntar-lhe se ele pretende tomar o suplemento de esposas a que tem direito. «Mas deixe-me dizer-lhe, à minha maneira, o que se oculta debaixo desta série de tolices. Fui mandado para aqui, como sabe, contratado, e preenchi escrupulosamente a minha missão original — como o atesta o gigantesco rolo de papel intitulado (em caracteres geralmente utilizados para as inscrições tumulares) Instrumentos para uma Convenção Cultural entre os Governos de Sua Majestade Britânica, etc. De facto, uma boa idiotice — porque, que pode haver de comum entre uma cultura cristã e uma cultura muçulmana ou marxista? As nossas premissas são irremediavelmente contraditórias. Tanto pior! Mandaramme fazer aquilo e eu obedeci. E, por mais que aprecie o que aqui fizeram, a verdade é nada compreender de um sistema de educação baseado no ábaco e uma longínqua teologia ultrapassada por Santo Agostinho e Tomás de Aquino. Pessoalmente considero que armámos uma temerosa confusão, não tenho qualquer parti pris no assunto. Etc. Não vejo o que o nosso D. H. Lawrence pode oferecer a um paxá com dezassete esposas, embora julgue saber qual dos dois é mais feliz... Em conclusão, consegui o pacto cultural. «Feito isto, fui rapidamente alçado ao cume como perito político e isso permitiu-me estudar documentos e avaliar todo o complexo do Médio-Oriente como um conjunto coerente, uma aventura política. Bem, deixe-me dizer que depois de um prolongado estudo cheguei à conclusão de que não existe coerência nem existe política — em todo o caso uma política capaz de resistir às pressões que aqui começam a despontar. «Estes estados corrompidos, embora venais e atrasados, não devem menosprezar-se; não podemos conservá-los submissos só com encorajar o que de mais corrupto e mais fraco existe neles, como parece que fazemos. Este esquema pressupõe outros cinquenta anos de paz e a inexistência de elementos radicais no eleitorado metropolitano; dado isto, o statu quo pode manter-se.
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Mas, considerada a realidade prevalente, será possível que a Inglaterra tenha vistas tão curtas? Talvez. Não sei. Como artista, esses problemas não me dizem respeito; como político sinto-me desconfiado. Acrescentar a unidade árabe a todas as outras correntes que trabalham contra nós, parece-me uma doce loucura. Estaremos ainda obcecados pelo lúgubre sonho das Mil e Uma Noites, que nos foi legado por três gerações de victorianos lúbricos, cujo subconsciente reagia à ideia de uma bigamia legal? Ou pela febre romântica e beduína dos Bell e dos Lawrence? Talvez. Mas os victorianos que nos meteram esse sonho na cabeça eram gente que se batia pela supremacia da sua moeda; sabiam que o mundo da política é uma selva. Hoje dir-se-á que o Foreign Office considera que a melhor atitude a adoptar em face da selva é fazer-se nudista e domar as feras pela simples exibição da sua nudez. Estou a ouvi-lo suspirar: «Mas porque diabo Pursewarden não é mais preciso. Sempre estas boutades!» «Muito bem. Falava de pressões. Distingamos as pressões internas e as pressões externas, como faria o bom Errol. A minha opinião pode parecer-lhe heterodoxa mas aqui vai despida e franca. «Bem, em primeiro lugar temos o abismo que separa os ricos dos pobres — cem por cento do tipo indiano. Neste país, hoje, seis por cento da população possui três quartas partes das terras, o que deixa um feddan por cabeça para a restante população. Bom! Depois, a população duplica cada duas (ou cada três?) gerações. Suponho que você encontra isto em qualquer estudo de economia. Entretanto cresce uma classe média cultivada e activa cujos filhos são educados em Oxford entre os nossos confortáveis liberalismos — e que ao regressar ao Egipto não encontram emprego. O babu torna-se cada vez mais poderoso e repete-se a velha história. «Escravos intelectuais de todos os países, univos!» «A estas pressões internas acrescentamos graciosamente outras, instigando directamente o rigor de um nacionalismo baseado numa religião fanática.
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Pessoalmente admiro-a, mas não deve esquecer que é uma religião militante, sem metafísica, uma simples ética pragmática. A União Árabe, etc... Meu caro, para quê magicar estes absurdos edifícios a somar ao nosso descalabro — tanto mais que para mim nenhuma dúvida subsiste de que perdemos o poder de agir, o único que nos permitia manter a nossa preponderância neste sector? Estes feudalismos reaccionários e oscilantes só se podiam manter pelas armas contra os factores de desagregação inerentes à própria natureza das coisas dos nossos dias; mas, para utilizar as armas, «para orar com a espada;), nas palavras de Lawrence, é fundamental ter fé na nossa própria ética, na nossa mística da vida. Em que acredita o Foreign Office? Não sei. No Egipto, por exemplo, além de manter-se a paz, muito pouco se tem feito; a Alta Comissão desaparece depois de uma regência de... — desde 1888? — e não deixa para trás nem os vestígios de um serviço administrativo capaz de estabilizar esta palhaçada grotesca a que aparentemente chamamos um estado soberano. Durante quanto tempo a oratória oficial e a evocação de nobres intenções deterão os frutos do descontentamento maciço que lavra neste povo? O tratado assinado por um rei só tem valor quando o povo confia no rei. Quanto tempo nos resta até se verificar a explosão? Não sei — e para lhe ser franco não me interessa muito. Mas afirmo que uma pressão externa imprevisível —- uma guerra, por exemplo — derrubaria todos estes principados como castelos de cartas. Pelo menos são estas as razões que na generalidade me fazem desejar uma mudança. Creio que devíamos reorientar a política e construir nos bastidores uma Judeia poderosa. E depressa. «E agora o particular. Nos alvores da minha actividade política fui chocar por acaso com um serviço do Ministério da Guerra especializado em informações de todo o género, dirigido por um brigadeiro que não admite a ideia de ver os seus serviços dobrar o joelho aos nossos. Questão de posto, ou de prestígio, enfim bagatelas desse tipo; a comissão dera-lhe mais ou menos carta branca.
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Entre parêntesis temos aí uma sobrevivência do velho Bureau Árabe, que desde 1918 se afunda docemente como um lagarto debaixo de uma pedra! Evidentemente, no reagrupamento geral, o seu bando devia (pelo menos, parece-me) ser integrado numa entidade. No Egipto só existia uma Embaixada embrionária. Como ele tinha trabalhado outrora para a Secção Política da Alta Comissão, pensei que podia trabalhar para mim e, depois de uma série de breves escaramuças, se não quebrei, pelo menos verguei esse Maskelyne — é assim a sua graça. É um sujeito tão típico que tomei uma série de notas a respeito dele para aproveitálas no meu próximo romance. (Escreve-se para recuperar uma inocência perdida!) «Desde que o Exército descobriu que a covardia é essencialmente um produto da inteligência, começou a produzir sistematicamente os Maskelynes, educando-os em todas as virtudes da estupidez: uma espécie de apatia turca. O desprezo pela morte transformou-se em desprezo pela vida, e um tal tipo de homem só aceita a vida segundo as suas normas. Só um cérebro completamente cristalizado permite a um indivíduo curvar-se perante tão triste rotina. Maskelyne é magro, enorme, e a sua pele tomou durante o tempo que permaneceu nas Índias o tom de serpente fumada, ou então de crosta coberta de tintura de iodo. A sua dentadura perfeita assenta nas gengivas como uma pena. Tem uma maneira muito pessoal — gostava de poder descrever esse gesto que me fascina — de retirar lentamente o cachimbo da boca antes de falar, cravando no interlocutor os seus olhinhos negros e quase murmurando: «Está convencido disso?», as vogais desenraizando-se com uma infinita lassidão do silêncio enfadonho que o rodeia. Vive roído pela circunscrita perfeição de uma educação que o faz sentir-se mal em trajes civis, e assim passeia por toda a parte na sua bela farda de oficial de cavalaria, com um ar muito Noli me tangere (a educação especializada acarreta sempre anomalias de comportamento.)
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O seu magnífico perdigueiro russo, Nell (talvez seja o nome da mulher do brigadeiro), segue-o por toda a parte e dorme aos pés do amo tanto em casa como na repartição. A casa é um quarto de hotel onde nada existe de pessoal — nem livros, nem fotografias, nem papéis. Apenas um jogo de escovas de cabo de prata, uma garrafa de whisky e o jornal. (Imagino-o colérico diante do espelho a escovar o cabelo negro e reluzente. Ah, agora está melhor... muito melhor!) «Entra na repartição às oito horas depois de comprar o número do Daily Telegraph da véspera. Nunca o vi ler outra coisa. Instala-se diante da imensa secretária tomado de um sombrio desdém pelos seres humanos que o rodeiam, porventura abrangendo toda a raça humana; examina e classifica as suas diferentes corrupções, as suas doenças, para descrevê-las minuciosamente sobre o papel oficial, rematando sempre com a sua assinatura floreada e ilegível. A torrente do seu desprezo escoa-se lentamente, pesadamente, através das veias, como o Nilo em plena inundação. Está a ver que numero o sujeito é. A sua vida processa-se inteiramente no plano da pura imaginação militar, pois nunca chega a conhecer os objectos da maior parte dos seus relatórios; as informações que recolhe chegam-lhe pelo canal de empregados corrompidos, lacaios descontentes e criados despedidos. Nada disso tem importância. Sente-se imensamente feliz, orgulha-se das interpretações que colhe desse montão de mexericos como um astrólogo debruçado sobre as cartas de um céu desconhecido. Presunçoso como um califa, sagaz e inflexível. Para falar com absoluta franqueza, admiro-o. «Maskelyne fixou duas graduações extremas entre as quais (como num termómetro) a temperatura da sua aprovação ou reprovação pode oscilar; são as duas frases «Digno de um rajá» e «Indigno de um rajá». E, sendo tão ingénuo, é absolutamente incapaz de imaginar qualquer coisa verdadeiramente indigna desse estupor do rajá. Um tipo como ele parece incapaz de abrir os olhos para o mundo que o cerca; mas a profissão e a necessidade do segredo tornaram-no num recluso que nenhuma experiência tem do mundo que deve submeter a juízo...
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Sinto-me tentado a prosseguir neste esboço de retrato do meu caçador de espiões, mas desisto. Leia o meu próximo romance, encontrará também um retrato de Telford, o número dois de Maskelyne — um civil imenso e melífluo cuja dentadura mal ajustada se desloca no meio das suas gargalhadinhas nervosas. É maravilhosa a adoração que nutre pelo tropa gelado como uma serpente. «Sim, meu general!», «Não, meu general!», está ele a grunhir constantemente, levantando-se para servir o dono; quase se pode afirmar que está loucamente apaixonado pelo patrão. Maskelyne, imóvel atrás da secretária, observa friamente aquela perturbação, o queixo escuro, com uma covinha, apontando como um dardo. Ou então recosta-se na cadeira móvel e dá uma palmadinha afectuosa na porta do enorme cofre colocado nas suas costas como um guloso batendo na pança enquanto exclama: «Não me acredita? Tenho tudo aqui dentro, tudo!» E a avaliar pelo seu gesto amplo e superlativo, é de crer que os seus arquivos contenham matéria suficiente para levar o mundo inteiro ao banco dos réus! E talvez Sim! «Bem, eis o que sucedeu: certo dia encontrei na minha mesa um documento, estilo Maskelyne, intitulado Nessim Hosnani e subintitulado; Conspiração copta, que me alarmou. Segundo esse documento, o nosso Nessim era acusado de fomentar uma vasta conjura contra a casa real egípcia. Conhecendo Nessim, considerei que a maior parte daquelas notas estavam sujeitas a caução, mas o relatório colocou-me num grande embaraço, pois recomendava a transmissão das informações ao ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio, via embaixada! Estou a ouvi-lo suster a respiração! Supondo que tudo aquilo era verdade, uma tal medida ia colocar a vida de Nessim em grande perigo. Ainda não lhe disse que uma das características essenciais do nacionalismo egípcio é um ódio crescente pelos «estrangeiros» — ou seja, pelo meio milhão de não-muçulmanos que cá vivem?
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E que desde o momento em que foi proclamada a inteira soberania do Egipto os muçulmanos começaram a maltratá-los e a expropriá-los? O cérebro do Egipto, como sabe, é constituído pelas suas comunidades estrangeiras. Os capitais que irrigaram o país, enquanto ele se encontrou sob a nossa suserania, estão agora à mercê dos rotundos paxás. E os arménios, os gregos, os coptas e os judeus começam a sofrer os efeitos desse ódio; muitos acham mais inteligente partir mas nem todos podem adoptar essa solução. Os enormes investimentos de capitais nos algodões e no resto não podem ser abandonados de um dia para o outro. As comunidades estrangeiras subsistem à força de orações e de gorjetas de suborno. Esforçam-se por salvar as suas indústrias, o trabalho de toda uma vida, da usurpação progressiva dos paxás. Nós entregámo-los literalmente, para pasto dos leões. «Li e reli portanto esse documento com inquietação crescente. Sabia que, se o transmitisse a Errol, ele se precipitaria a entregá-lo a Sua Majestade. Portanto, empenhei-me em descobrir os pontos fracos das acusações — felizmente não é um dos melhores relatórios de Maskelyne — e consegui estabelecer sérias dúvidas sobre um certo número das suas afirmações. Mas o que o enfureceu foi eu ter bloqueado o papel — era obrigado a fazê-lo para impedir que caísse nas mãos da Chancelaria! O meu sentido do dever passou um mau pedaço mas não me era dada nenhuma alternativa; que teriam feito esses imbecis dos meus colegas se o lessem? Se Nessim era realmente réu do género de conjura de que Maskelyne o acusava, bem, sempre se podia tratar do assunto mais tarde com ele. Mas... você conhece Nessim. Precisava de ter a certeza antes de passar semelhante relatório aos meus superiores. «Mas Maskelyne estava naturalmente enfurecido, embora tivesse a elegância de não deixar transparecer os seus sentimentos. A temperatura do nosso diálogo manteve-se muito abaixo de zero durante uma conferência que tivemos no seu gabinete e desceu ainda mais quando ele exibiu a acumulação de provas colhidas pelos seus agentes.
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A maior parte delas não eram tão sólidas quanto eu temia. «Subornei Selim — grunhia Maskelyne — e estou convencido de que o secretário particular desse copta não se pode ter enganado. Há esse grupinho que se reúne regularmente. Selim espera-os no carro e leva-os de volta para casa. Depois, há esse curioso criptograma que parte da clínica de Baltasar e que circula por todo o Médio-Oriente, e as visitas aos fabricantes de armamento da Suécia e da Alemanha...». Eu sentia vertigens, pode crer! Via todos os nossos amigos estendidos nas mesas de mármore da morgue com os «bufos» egípcios a tomar medidas para a mortalha! «Mas devo confessar que acessoriamente as conclusões de Maskelyne pareciam manter-se. Tudo isso se me afigurava bastante sinistro; mas felizmente alguns dos pontos essenciais não resistiram à análise — coisas como as denominadas mensagens cifradas que Baltasar remetia de dois em dois meses a destinatários escolhidos nas principais cidades do Médio-Oriente, por exemplo. Maskelyne tentava ainda seguir essa pista. Mas os resultados estavam longe de ser completos e eu insisti nesse ponto com a maior energia e grande desgosto de Telford; Maskelyne, esse, é uma ave de rapina demasiado fria para se deixar vencer tão depressa. Contudo, consegui fazê-lo admitir a vantagem de suspender a entrega do relatório até se obter um reforço substancial das suas hipóteses. Ficou a odiar-me mortalmente, mas engoliu a pílula, e compreendi que tinha conseguido para o nosso amigo um adiamento de execução. Tratava-se agora de saber o que fazer em seguida — como aproveitar aquela pausa? Naturalmente eu estava convencido de que Nessim se encontrava inocente dessas grotescas acusações. Devo contudo confessar que não podia fornecer explicações tão convincentes como as de Maskelyne. Que andavam eles a maniganciar por trás de tudo aquilo? Se pretendia atirar com Maskelyne de pernas ao ar tinha que descobrir por mim próprio a resposta. Trabalho maçador e profissionalmente pouco próprio — mas que fazer?
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O pequeno Ludwig ia transformar-se num polícia-amador, num Sexton Blake (Nota 1)! Mas por onde começar? «O único fio directo, ligando Maskelyne a Nessim, passava por Selim, o secretário infiel; graças a este, tinha reunido um número impressionante, mesmo alarmante, de informações sobre as actividades dos Hosnani nos diferentes domínios — banco, marinha mercante, algodão, etc. O resto não passava de mexericos, alguns prejudiciais, mas isoladamente nenhum deles era concludente. Contudo, amontoados, davam ao nosso amável Nessim uma personalidade algo sinistra. Decidi que tinha de estudar pormenorizadamente tudo aquilo. Em particular o que respeitava ao seu casamento — ácidos mexericos de invejosos e vadios —, tão típico de Alexandria ou de qualquer outro lugar. Nisto, naturalmente, tomavam grande parte os juízos de valor ético dos anglo-saxões — refiro-me aos juízos de valor de Maskelyne. Quanto a Justine... bem, conheço-a um pouco, e devo reconhecer que admirava de certo modo a sua beleza sombria. Ouvi dizer que Nessim a perseguiu durante muito tempo antes de convencê-la a casar-se com ele; não direi que tenha dúvidas a esse respeito, mas... nem mesmo hoje aquele casamento parece definitivamente cimentado. Formam um casal perfeito, e todavia dir-se-ia que nunca se tocam; um dia tive a impressão de vê-la contrair-se ligeiramente quando ele lhe retirava um cabelo caído sobre a gola do casaco. Provavelmente imaginação. Talvez se esteja a formar uma tempestade por detrás das pestanas de cetim negro dessa mulher? Excesso de nervos, certamente. Muita histeria. Muita melancolia judaica. Reconhece-se nela vagamente a rapariga do homem cuja cabeça foi apresentada numa bandeja... Afinal, estou a perderme. «Bem, Maskelyne diz com o seu ar de seco desdém: «Mal se casa, torna-se amante de outro homem, um estrangeiro ainda por cima».
Nota 1 - Personagem de novelas policiais de fraquíssima qualidade. (N. do T.).
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Falava de Darley, o amável e míope compatriota que às vezes habita nos aposentos de Pombal. Ganha a vida como professor e escreve romances. Tem um crânio gentil e arredondado de bebé, como às vezes se encontra nos intelectuais; ligeiramente curvado, cabelos louros e aquela timidez que acompanha as grandes emoções imperfeitamente dominadas. O perfeito romântico! Se o olhamos de frente começa a balbuciar. Mas é um pobre diabo, doce e resignado... Concordo que o material não parece aliciante para uma mulher tão ardente como a esposa de Nessim. Será piedade ou um pervertido pendor para a inocência? Farejo aí um misteriozinho. Como quer que seja, foram Darley e Pombal que me deram a conhecer esse livre de chevet clássico em Alexandria, uma novela francesa intitulada Moeurs (um estudo em grande estilo da ninfomania e da impotência psíquica), cujo autor foi o primeiro marido de Justine. Depois de ter escrito o livro, o artista teve o bom senso de se divorciar e de sair da cidade, mas agora toda a gente vê nela a heroína do romance e a sociedade dedicalhe uma grave simpatia. Se estiver tentado a pensar que toda a gente aqui é polimorfa e perversa, lembro-lhe que não me parece grande sorte uma criatura ser assinalada como personagem principal de um roman vache. Mas tudo isto pertence ao passado e agora Nessim tornoua numa dama da sociedade onde ela se move com a simplicidade bárbara que convém tanto ao seu tipo de beleza como à digna modéstia de Nessim. E ele, é feliz? Mas, espere, deixe-me perguntar de outra maneira. Foi ele alguma vez feliz? É agora menos feliz do que era dantes? Hum! Penso que podia ter encontrado pior, porque a rapariga não é nem demasiado inocente nem demasiado estúpida. Toca muito bem piano, embora com uma ênfase sombria, e lê bastante. Direi mesmo que os romances deste seu criado são muito admirados — com um entusiasmo desconcertante. (Acertou! Sim, é talvez por isso que eu me sinto inclinado a gostar dela.) «Por outro lado, não compreendo o que ela encontra em Darley. O pobre diabo fica todo trémulo quando ela se aproxima; mas ele e Nessim andam sempre juntos, parecem muito amigos.
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Esses ingleses, com um aspecto insignificante, será que escondem um temperamento de turco? De qualquer maneira, esse Darley deve ter qualquer encanto, porque também conquistou as graças de uma artistazinha de cabaret chamada Melissa. Se o vir não acredita que o rapaz seja do género de ter duas amantes ao mesmo tempo. Será uma vítima dos seus bons sentimentos? Torce as mãos, e os óculos ficam embaciados quando menciona o nome de alguma dessas damas. Pobre Darley! Consigo enfurecê-lo recitando-lhe o poema do seu homónimo:
O blest unfabled Incense Tree That burns in glorious Araby, With red scent chalicing the air, Till earth-life grows Elysian there
«Ele suplica-me, corando, que pare, embora eu não consiga saber por qual das duas ele cora; mas prossigo, declamando em tom magistral:
Half-buried in her flaming breast In this bright tree she tnakes her nest Hundred-sunned Phoenix! When she must Crumble at length to hoary dust!
«A coisa bem podia aplicar-se a Justine». — «Pare!», continua ele a berrar.
Her gorgeous death-bed! Her rich pyre Burn up with aromatic fire! Her urn, sight-high from spoiler men! Her birth-place when self-born again!
« — Por favor. Basta!» « — Que mal tem isso? O poema não é mauzinho».
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«E concluo com Melissa mascarada de pastorinha de porcelana de Dresde do século XVIII:
The mountanainless green wilds among, Here ends she her unechoing song With ambar tears and odorous sighs Mourned by the desert where she dies!
«Mas basta de Darley! Quanto a Justine, não compreendo o que ela procurava nele, a menos que se aceite o epigrama que Pombal costuma enunciar com uma gravidade obesa: «Les femmes sont fidèles au fond, tu sais? Elles ne trompent que les autres femmes!» Mas não vejo nenhuma razão para que Justine desejasse enganar a sua pálida rival, Melissa. Atendendo ao lugar que ocupava na sociedade, seria uma aspiração indigna dela. Percebe o que eu quero dizer? «Então é sobre Darley que o nosso Maskelyne concentra os seus olhos sinistros de furão; segundo Selim, é num cofrezinho dissimulado na parede, em casa, e não no banco, que Nessim guarda todos os documentos comprometedores. Só existe uma chave desse cofre, e Nessim nunca a abandona. O cofre particular, pretende Selim, está cheio de papéis cuja natureza ignora. Cartas de amor? Hum! Em todo o caso, Selim cometeu uma ou duas tentativas infrutíferas para abri-lo. Um dia, o audacioso Maskelyne decidiu ir examinar pessoalmente a coisa para conseguir, se necessário, um molde de cera. Selim introduziu-o no pátio e ele subiu a escada de emergência... e por um pouco ia caindo em cima desse imbecil do Darley e de Justine que se encontravam no quarto de cama! Ouviu-lhes as vozes a tempo. Não me vá dizer, depois disto, que os ingleses são puritanos. Pouco depois disso, li numa revista um conto de Darley, em que uma das personagens exclama: «Nos braços daquele homem senti-me mutilada, mastigada, a pele besuntada de saliva, como se me encontrasse entre as patas de um gato superexcitado»; Senti uma vertigem.
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«Bolas!», exclamei. «Já sei segunda ordem: come-o vivo!»
o
que
Justine
faz
a
esse
traste
de
«Devo dizer que a coisa fez-me rir a bandeiras despregadas. Darley é tão tipicamente inglês: snob e provinciano simultaneamente. E tão bom. Falta-lhe um demónio. (Estou grato aos irlandeses e aos judeus que cuspiram no meu sangue.) Mas por que diabo estou eu com contemplações? Justine deve ser maravilhosa na cama; deve beijar como um arco-íris e despedir chispas... Sim, mas Darley? A coisa não combina. De qualquer maneira, «aquela fêmea pútrida», como lhe chama Maskelyne, é objecto de toda a sua atenção ou, pelo menos, era da última vez que estive com ele. Porquê? «Todas estas ideias me atravessavam o espírito enquanto eu ia no carro, a caminho de Alexandria; tinha direito a um longo fim-desemana, que mesmo o bom Errol considerou justo. Nem sonhava então que menos de um ano decorrido você se encontraria no cerne de todos estes mistérios. Tudo o que eu sabia era que queria, sendo possível, demolir a tese de Maskelyne e impedir a Embaixada de levar o assunto Nessim para diante. Mas depois disso não sabia mais que fazer. Afinal de contas eu não sou nenhum espião; ia agora farejar pelas ruas de Alexandria, com uma cabeleira postiça, dotada de auscultadores, para tentar lavar o nome do nosso amigo? Não podia, por outro lado, apresentar-me diante de Nessim e, depois de pigarrear, dizer-lhe com desenvoltura: «E, a propósito, falemos daquela rede de espionagem que você organizou aqui...». O carro rolava acelerado e eu reflectia. O Egipto, chato como uma mulher sem seios, desfilava diante de mim. O verde cambiava-se em azul, o azul em olhos de pavão, em castanhogazela, em negro-pantera. O deserto era como um beijo seco, um bater de pálpebras contra o espírito. Hum! A noite florindo em estrelas como um ramo de amendoeira. Entrei na cidade, depois de um ou dois copinhos, debaixo de um crescente de Lua que parecia reflectir a luz do mar alto. Tudo cheirava bem outra vez.
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O círculo de ferro que o Cairo aperta em torno da cabeça (a consciência de estar rodeado pelo deserto escaldante?) afrouxou, desvaneceu-se para ceder à esperança de um mar largamente aberto que pelo espírito nos aproxima da Europa... Perdão! Descarrilei outra vez! «Telefonei para a casa grande, mas eles tinham saído; um pouco aliviado dirigi-me ao café Al Akhtar na esperança de encontrar alguns conhecidos. Só lá estava o inefável Darley. Gosto muito dele. Aprecio nomeadamente a sua maneira de sentar-se sobre as mãos, muito excitado, quando se lança desvairadamente numa discussão artística, coisa infalível se me apanha desprevenido — sei lá porquê? Respondolhe o melhor que posso enquanto vou sorvendo o meu arak. Mas esse género de debate arrasa-me. A arte é coisa que não existe para o artista, da mesma forma que não existe para o público; é uma noção que só tem sentido para os críticos. O artista e o público contentamse com registar, como um sismógrafo, uma carga electromagnética que não se pode racionalizar. Tudo o que se sabe é que se produz uma vaga transmissão, verdadeira ou falsa, com ou sem resultado, segundo o caso. Mas pretender analisá-la, não conduz a nada. (E suspeito que este conceito de arte c comum a todos os que se sentem capazes de se lhe abandonar!) Paradoxo. Enfim, adiante. «Darley estava em beleza nessa noite e ouvi-o palestrar com um prazer sardónico. Na verdade, não é mau sujeito e tem muita sensibilidade. Mas foi um alívio saber que Pombal não tardaria a vir juntar-se a nós quando saísse do cinema onde tinha ido com uma conquista. Esperava que ele me convidasse para sua casa, pois os hotéis são caros e poderia, assim, beber todas as minhas ajudas de custo. Enfim, aparece esse valente P., com o rosto tumefacto, devido a ter sido surpreendido pela mãe da pequena quando se entregava a jogos malabares num recanto do cinema. Foi uma noitada magnífica e ele albergou-me em casa conforme eu esperava. «No dia seguinte, levantei-me cedo porque, decidido, aquela história preocupava-me.
embora
nada
tivesse
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Disse para mim próprio que nada me impedia de ir visitar Nessim ao banco, como já tinha feito várias vezes, para palestrar e tomar um café. Mas dentro da enorme gaiola de vidro do ascensor, que lembra um sarcófago bizantino, senti-me perturbado. Não tinha ideia do que lhe havia de dizer. Os empregados e os dactilógrafos acolheram-me afavelmente e conduziram-me imediatamente à grande sala de tecto, em forma de cúpula, onde ele trabalhava... Mas o mais curioso é que ele não só tinha o ar de estar à minha espera como parecia ter adivinhado as razões da minha visita! Parecia encantado, aliviado e tomado de uma espécie de serenidade maliciosa. «Há meses que o espero)), disseme ele com um brilho malicioso no olhar; «perguntava a mim mesmo quando me viria finalmente interrogar. Enfim! Que alívio!» Depois disso toda a reserva se dissolveu e senti que lhe podia falar abertamente. As suas respostas foram as mais espontâneas e inocentes. Convenceram-me imediatamente. «A denominada sociedade secreta», disse-me ele, «era uma célula que se consagrava ao estudo da cabala e de todo esse misticismo de salão que florescia na capital. A própria Clea renovava todas as manhãs o seu horóscopo. Que havia de estranho no facto de Baltasar explicar a sua ciência hermética a um grupo de discípulos? Quanto aos criptogramas, eram simplesmente redigidos na antiga linguagem mística cifrada — o boustrophedon —, que permite aos patriarcas de todas as células cabalísticas, disseminadas no Médio-Oriente, manter os contactos entre si. Não existe nisso nada de mais misterioso do que nos cálculos da Bolsa ou na troca cortês de informações entre matemáticos que trabalham no mesmo problema. Nessim mostrou-me um criptograma e explicou-me por alto a técnica utilizada. Acrescentou que tudo aquilo podia ser confirmado por Darley, que assistia às reuniões com Justine, para libar o mel da ciência hermética. Ele podia contar-me até que ponto essas reuniões eram subversivas! Até aqui tudo bem.
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«- Mas não quero ocultar-lhe a existência de um outro movimento, esse realmente político, no qual me encontro directamente envolvido. É um assunto puramente copta e que tem como único fim unificar os coptas — e não impeli-los para a revolta (aliás impossível); o que queremos é uma consciência unida que nos permita reconquistar um lugar ao sol. Agora que o Egipto se libertou do ódio que os ingleses votavam aos coptas, temos o pulso mais livre para disputar os altos cargos, para eleger alguns dos nossos para o Parlamento, e assim por diante. Nada disto pode inquietar um muçulmano inteligente. Não temos a intenção de sair da legalidade ou de utilizar a violência; queremos simplesmente recuperar o lugar que nos é devido no nosso país como a minoria mais inteligente e mais competente». «E então fez-me a história da comunidade copta e das suas reivindicações — mas não pretendo fatigá-lo com uma soma de pormenores que provavelmente não desconhece. Falou-me com uma paixão delicada, um tímido furor que me surpreendeu pelo contraste que revelava do plácido Nessim que ambos conhecemos. Mais tarde, quando encontrei a mãe, compreendi; ela é a inspiradora deste sonho, pelo menos fiquei com essa impressão. Nessim prosseguiu: «— Nem a França nem a Inglaterra têm nada a temer de nós. Somos amigos de ambas. Devemos-lhe a nossa cultura moderna. Não rogamos nem auxílio nem dinheiro. Consideramo-nos patriotas egípcios, mas sabemos como o nacionalismo é estúpido e retrógrado, como é fanático, e tememos que dentro de pouco tempo a diferença entre nós e os egípcios se traduza em termos de violência. Eles andam já de namoro com Hitler. Em caso de guerra... quem sabe? De dia para dia a França e a Inglaterra vão perdendo cada vez mais o domínio no MédioOriente. Somos nós, as minorias, quem começa a sentir os efeitos. A única esperança para nós seria uma trégua, uma guerra por exemplo, que nos permitiria regressar e retomar o terreno perdido. De outro modo seremos despojados, escravizados. Mas ainda temos esperança nos vossos países.
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Desse ponto de vista, um pequeno grupo muito unido e extremamente rico de banqueiros e negociantes coptas poderia exercer uma influência extraordinária. Amigos cristãos, nós somos a vossa quinta coluna no Egipto. Num ano ou dois, quando o movimento estiver perfeitamente organizado, podemos impor o nosso peso na vida económica e industrial do país — e nada poderá apoiar melhor a vossa política. É por este motivo que eu desejava tanto falar-lhe de nós: o que a Inglaterra deve ver nos coptas é uma testa de ponte para o Oriente, um enclave aliado num sector que se torna cada dia mais hostil». «Deixou-se cair para o fundo da cadeira, esgotado e sorridente: «— Mas compreendo muito bem — disse ele — que isto lhe cause apreensões na qualidade de personagem oficial. Peço-lhe, em nome da nossa amizade, que guarde segredo. Os egípcios ficariam encantados se lhe déssemos um pretexto para confiscar os nossos milhões; talvez até nos matassem. Portanto, nada devem saber de tudo o que lhe contei. É por isso que as nossas reuniões são secretas e que a nossa organização se constituiu lentamente, prudentemente. Não podemos tolerar fugas, compreende? Contudo, meu caro Pursewarden, sei muito bem que não lhe posso pedir que aceite a minha palavra cegamente, sem provas. Por isso estou disposto a fazer uma diligência bastante excepcional. Depois de amanhã é Sitna Damiana, e temos uma reunião no deserto. Gostaria que viesse comigo a fim de poder ajuizar directamente e assistir às deliberações, para que não lhe restem dúvidas quanto às nossas intenções e às nossas pessoas. Mais tarde poderemos tornar-nos muito úteis para os ingleses; vem?» «Se ia! Fui. Foi uma inesquecível experiência, que me ensinou até que ponto eu desconhecia o Egipto, o verdadeiro Egipto que se não vê nas cidades sufocantes e cheias de moscas, nos salões dos financeiros, nas vilas dos banqueiros à beira-mar na Bolsa, no Yacht-Club, na Mesquita...
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Mas espere... «Metemo-nos a caminho ao abrir da manhã, sob um céu frio cor-demalva, e seguimos por um momento a estradazinha de Aboukir antes de obliquar para o interior, onde aos servimos dos caminhos poeirentos, dos molhes desertos ao longo dos canais e dos carreiros arenosos que os paxás de outros tempos tinham mandado rasgar para acesso aos seus pavilhões de caça no lago. Por fim tivemos de abandonar o carro; o outro irmão esperava-nos com cavalos, você sabe, Narouz, esse troglodita de beiçola rachada. Que contraste, esse camponês de pele curtida comparado com Nessim! E que corpo poderoso! Senti-me subjugado pela personagem. Acariciava o chicote de coiro de hipopótamo — o kurbash tradicional. Vi-o abater libélulas pousadas a quinze metros de distância com uma chicotada; um pouco mais tarde, no deserto, cortou literalmente em dois um infeliz cão selvagem com uma saibrada daquele temeroso instrumento! Não trocámos mais de três palavras durante todo o caminho que nos conduziu a casa. Você já lá esteve há bastantes anos, parece-me? Tive uma longa entrevista com a mãe: mulher estranha, autoritária, afogada nos seus véus negros, falando um inglês correctíssimo numa voz ressequida, que se pressente palpitar à beira da histeria. Uma bela voz, apesar de tudo, mas estranhamente tensa — a voz de um pai ou de uma irmã do deserto? Não sei. Os dois irmãos deviam conduzir-me a um mosteiro em pleno deserto. Narouz seria o orador. Era a primeira vez que falava em público. Confesso que não acreditava que aquele selvagem hirsuto fosse capaz. Os maxilares perpetuamente em movimento salientavam os músculos das fontes! Pensei para mim que ele devia ranger os dentes durante o sono. Mas os seus olhos são de um azul cândido, como os olhos das raparigas. E que cavaleiro, santo Deus! «Na manhã seguinte metemo-nos a caminho com um punhado de cavalos árabes e uma fila de camelos que Narouz se propunha oferecer à populaça — para serem despedaçados e devorados.
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Foi uma longa e incómoda expedição, atormentada pelas miragens de um calor terrível e pela água morna e insípida dos cantis, com o vosso amigo em mísero estado. Todo aquele sol na moleira! O cérebro começava a fritar-se dentro do meu crânio quando avistámos o primeiro bosquezinho de palmeiras — e logo a seguir descobrimos a imagem tremeluzente e zumbidora do mosteiro, onde a pobre Damiana deixou que lhe cortassem a cabeça para maior glória de Nosso Senhor. «Caía a tarde quando chegámos lá; tinha-se a impressão de entrar inopinadamente dentro de uma gravura a cores ilustrando... ilustrando o quê? Vathek! Um acampamento imenso de tendas e barracas tinha surgido ali por motivo das festas. Devia haver, bem contados, seis mil peregrinos acampando nas cabanas de papel, de pano e de tapeçarias. Erguera-se uma autêntica cidade com a sua iluminação e o seu primitivo sistema de esgotos autónomos, onde nem faltavam os bordéis, exíguos mas de primeira escolha. Ouvia-se por toda a parte o rumor dos camelos nas sombras do crepúsculo onde a fumarada das tochas fazia bailai vultos alucinantes. Os nossos servos prepararamnos uma tenda atrás de uma abóbada em ruínas onde conversavam dois derviches graves e barbudos, sob pendões ondulando como asas de aves majestosas, à luz de um grande lampião de papel, coberto de inscrições. A obscuridade tornava-se mais espessa, os seres e as coisas tomavam uma aparência mais insólita naquela atmosfera de festa. Eu sentia-me impaciente por percorrer aquela cidade irreal e, como tinham preparativos a fazer na igreja, Nessim considerou a minha ideia excelente e combinou encontrarmo-nos na tenda familiar, dentro de uma hora e meia. Mergulhei deliciado no dédalo de ruas fantasmagóricas e nas compridas avenidas flanqueadas por lojecas de lona, com os seus cabazes oferecendo ao clarão vacilante das lanternas toda a espécie de guloseimas: melões, ovos, bananas, caramelos. Todos os mercadores e vendedores ambulantes de Alexandria tinham atravessado o deserto para vir comerciar com os peregrinos.
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Nos recantos sombrios, as crianças brincavam e desapareciam como ratinhos enquanto os pais cozinhavam à porta das tendas. Os espectáculos e os jogos de azar estavam no auge. Numa tenda uma prostituta cantava uma melopeia triste embalando-se na sua capa recamada de cequins. A tarifa estava inscrita na porta. Era um preço decente; a carne é fraca e eu comecei a amaldiçoar os meus deveres sociais. Um pouco mais adiante, um rapsodo cantava os feitos de El Zahur. Bebedores de canela e de sorvete ocupavam as cadeiras dos cafés escalonados ao longo das artérias iluminadas e engalanadas. Do interior do mosteiro subiam as cantilenas dos padres, enquanto nas cercanias dois campeões do jogo de pau se entregavam ao desporto mais popular entre os egípcios, rasgando a noite com as pancadas secas e breves dos bastões, assinaladas pelo rugir da multidão que aclamava os golpes mais felizes. Túmulos desaparecendo sob uma inundação de flores, melancias espalhando uma claridade butirácea, salvas carregadas com iguarias odorosas — salsichas, costeletas e tripas crepitando no espeto. Tudo aquilo se fundia dentro do meu cérebro, num amálgama buliçoso de som e luz. A Lua ascendia no céu, lentamente. «Nas tendas onde se dançava o «Ringa» grupos de sudaneses de um malva brilhante ondulavam, o olhar perdido, ao som de uma estranha melopeia saída de uma espécie de harmónio de teclas verticais, munidas de cabaças pintadas, que faziam as vezes de caixas de ressonância; mas quem marcava o compasso era um grande negro que batia num pedaço de rail de caminho de ferro pendurado na estaca da tenda. Encontrei aí um criado dos Cervoni que se mostrou encantado por me ver e me ofereceu um pouco dessa cerveja sudanesa chamada tnerissa. Sentei-me a observar aquela dança que roça pelo histerismo: lentas revoluções em torno de um centro virtual, bruscamente interrompidas por saltinhos laterais sobre os calcanhares, e depois o corpo eleva-se sobre os dedos dos pés que se crispam...
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Fui arrancado da espécie de torpor hipnótico onde começava a afundarme pelo bater de um tambor e vi aproximar-se um daroês carregando um enorme tamborim de pele de camelo esticada sobre uma semiesfera de cobre reluzente. Era um Rifiya, um preto de um negro belíssimo, e como nunca os tinha visto caminhar sobre brasas, comer escorpiões e fazer outras habilidades do mesmo teor, pensei que era essa a minha única oportunidade e resolvi segui-lo. (Era comovedor ouvir os muçulmanos entoar cânticos religiosos em louvor da mui cristã Santa Damiana; ouvi as suas vozes agudas ulular incansavelmente «Ya Sitt Ya Bint El Wali». Não é curioso? «Oh Senhora, Senhora do Vice-Rei».) Acabei por localizar no meio da escuridão um grupo de daroeses; acabava-se uma dança. Um deles estava literalmente transformado em tocha humana, completamente coberto de velas. A cera fundente escorria-lhe pelo corpo; o olhar do homem parecia petrificado. Um velho daroês agarrou num comprido punhal e cravou-o no rosto, atravessando-o de lado a lado; depois pegou em duas velas acesas que fixou em cada uma das extremidades do punhal e, erguendo-se na ponta dos pés, pôs-se a executar movimentos giratórios — dir-se-ia uma árvore de fogo a rodopiar. Terminada a dança, retiraram-lhe simplesmente o punhal do rosto, e o velho, humedecendo a ponta do dedo com saliva, passou-o com indiferença pelas feridas. Um segundo mais tarde sorria de novo, não tendo sentido aparentemente qualquer dor. Mas agora parecia completamente desperto. «E por detrás de tudo isto ficava o deserto branco, que, sob a Lua, tomava o aspecto de um imenso campo de crânios e de pedras. Ouviu-se um chamado de trombetas seguido de um ribombar de tambores, e um grupo desordenado de cavaleiros, com ridículos chapeuzinhos cónicos, apresentou-se brandindo espadas de madeira e soltando latidos de mulher. Ia começar a corrida dos cavalos contra os camelos. Pensei que ainda tinha tempo de assistir aquilo, mas de caminho presenciei um espectáculo que teria evitado se pudesse. Procedia-se ao abate dos camelos de Narouz para a festa.
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Os pobres animais ajoelhavam mansamente, sobre as patas dianteiras recolhidas, como fazem os gatos, enquanto a horda humana os atacava à machadada. O meu sangue gelou-se e contudo não fui capaz de desviar os olhos daquele horrendo espectáculo. Os animais não faziam um movimento sequer para evitar os golpes, não soltavam um grito enquanto os esquartejavam. Os machados mordiam aqueles grandes corpos como se fossem feitos de cortiça e penetravam profundamente a cada golpe. Separavam-se membros inteiros, sem esforço aparente, como árvores que se desbastam. No meio de toda aquela carnagem corriam as crianças, que depois de roubarem um bom pedaço de carne fugiam para a cidade iluminada, apertando contra o peito uma posta sangrenta. Os camelos olhavam fixamente a Lua, sem protestar. Cortavam-se as patas, arrancavam-se as entranhas, e finalmente uma derradeira machadada fazia rolar a cabeça, que ficava a jazer na areia com os olhos muito abertos. Os magarefes riam e gracejavam no meio da sua tarefa. Depressa o solo se encontrou empapado de um espesso tapete viscoso de sangue negro, onde as crianças patinhavam e de onde partiam já numerosas pegadas de pés nus que se iam perder nas inúmeras ruas da cidade efémera. Senti-me bruscamente agoniado e fugi para tomar um copo. Sentei-me num banco de um café ao ar livre e começava a recompor-me quando avistei Nessim; regressámos juntos ao mosteiro, passando diante de uma enfiada de celas chamadas «pentes». (Talvez não saiba que todas as religiões primitivas se baseiam numa estrutura celular, obedecendo assim, sabe Deus, a que lei biológica?...) E finalmente chegámos à igreja. «No santuário guardavam-se magníficas pinturas antigas e sobre as estantes de ouro ardiam grandes círios de onde escorria a cera; as luzes estavam ofuscadas por uma nuvem de incenso cor de pólen; ouviam-se belas vozes graves correndo como um rio lento sobre o leito de seixos da liturgia de S. Basílio.
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Subindo e descendo, suspendendo-se e recomeçando, a melodia começava abaixo de tom, para se elevar, com estremecimentos e batimentos de asa, a alturas vertiginosas, através das gargantas e dos espíritos desses homens de pele negra e brilhante. O coro passou diante de nós como um sumptuoso cortejo de cisnes, com o seu grande barrete escarlate, a túnica branca e o cabeção com a cruz vermelha. E a fantástica claridade que pairava em redor daquelas faces inundadas de suor e dos seus anéis de cabelo, negros e reluzentes! Aqueles olhos enormes, como saídos de frescos irreais, de um branco resplandecente! Tudo aquilo era pré-cristão; todos aqueles homens de barrete escarlate se tinham transformado em Ramsés II. Os círios enormes palpitavam e fumegavam enquanto se elevavam novas nuvens de incenso. Lá fora ouvia-se o grito dos cavaleiros excitando os seus camelos de corrida; cá dentro escutava-se apenas o murmurar do Universo. Havia ovos de avestruz suspensos nos grandes lustres. (Foi uma coisa que sempre me intrigou parecendo-me digna de estudo.) «Pensei que era este o nosso destino, mas contornámos a multidão e tomámos uma escada que nos conduziu a uma cripta. Eis-nos enfim chegados. Uma série de câmaras espaçosas, dispostas como as células de uma colmeia, caiadas de uma cor imaculada. Numa dessas câmaras, iluminada pela luz de múltiplas velas, uma centena de pessoas esperava-nos sentada sobre bancos de madeira branca. Nessim tomou-me o braço e apresentou-me a um grupo de anciãos que me deu lugar entre eles. «— Vou falar-lhes primeiro», segredou-me ele, «e depois será a vez de Narouz». Por mais que olhasse em volta não consegui descobrir a figura do irmão mais novo. Os homens que me rodeavam vestiam todos eles túnicas, mas muitos deles traziam por baixo roupas europeias. Alguns tinham a cabeça envolvida em escapulários. A ajuizar pelas suas mãos e pelas unhas limpas, não se tratava de trabalhadores manuais. Falavam árabe a meia voz. Ninguém fumava. «Nessim ergueu-se e falou-lhes com o desembaraço de um homem habituado à rotina das assembleias gerais.
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Exprimia-se numa voz uniforme e, tanto quanto me foi dado compreender, contentou-se em fornecer à audiência pormenores relativos a alguns factos recentes, a eleição de certas personagens para a direcção de diversos «comités»; depois apresentou-lhes um relatório financeiro circunstanciado. Dir-se-ia que se dirigia a accionistas. A audiência escutava gravemente. Fizeram-lhe calmamente algumas perguntas às quais ele respondeu concisamente. Depois, disse: «— Mas estes pormenores não encerram o assunto. Quereis certamente ouvir a respeito da nossa nação e da nossa fé certas coisas que nem mesmo os nossos padres vos podem dizer. O meu irmão Narouz, que bem conheceis, vai falar-vos». «Que lhes poderia dizer aquele gorila de Narouz?», pensava eu. E eis uma coisa interessante. Da obscuridade de uma cela, vestindo uma túnica branca, surgiu Narouz, pálido como cera. Tinha os cabelos abrilhantinados e colados à testa como um mineiro que se dirige a um baile. Não... tinha antes o ar de um cura aterrorizado, envolvido numa sobrepeliz amarrotada; conservava as mãos fortemente apertadas sobre o peito. Tomou lugar diante de uma espécie de estante de madeira onde ardia uma vela e lançou à assistência um olhar manifestamente aterrado, os ombros ligeiramente curvados pela emoção. Dir-se-ia que estava prestes a cair. Abriu a boca crispada mas nenhum som se produziu. Parecia paralisado. «Houve um movimento na assistência e ouviram-se murmúrios; vi Nessim olhar para o irmão com um ar angustiado, como se o outro se encontrasse em perigo. Mas Narouz retesou-se como um dardo, o olhar cravado na parede branca como se contemplasse aí qualquer espectáculo temeroso. Começámos todos a sentir um certo embaraço. Finalmente, a sua boca produziu um estranho movimento, como se a língua se dilatasse ou como se fizesse um esforço para engolir e um grito rouco escapou-se-lhe da garganta: «Meded! Meded!» Era a invocação à potência divina que lançam as vezes os pais do deserto antes de entrar em transe: os daroeses.
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O rosto crispou-se-lhe. Depois, bruscamente, foi como se uma corrente eléctrica começasse a penetrar no seu corpo, nos seus músculos e nos seus rins. Toda a tensão nervosa caiu e lentamente, ofegando, ele começou a falar, movendo os olhos, como se as palavras brotassem involuntariamente dos seus lábios e ele fizesse um esforço para se manter ao nível do que dizia... Era um espectáculo terrível e durante um momento não consegui compreender nada, tão mal ele articulava as palavras. Depois, de repente, rasgou-se o véu e a sua voz ganhou potência, como um instrumento de música naquela claridade de catacumba. «— O nosso Egipto, a nossa pátria bem amada», dizia ele arrancando as palavras da boca como se fossem pedaços de caramelo. Era claro que estava a improvisar, como um ébrio que se lança numa torrente de retórica porventura genial, como sucede com os trovadores e as carpideiras profissionais que acompanham os cortejos fúnebres com jactos de poesia profética sobre o Além. O poderio do seu verbo espalhava-se pela câmara subterrânea; estávamos todos electrizados, mesmo eu, que tão mal compreendo o árabe! O tom, a amplidão, o furor e a ternura sufocada que as suas palavras arrastavam comoviam-nos e atordoavam-nos como se ouvíssemos música. O sentido pouco importava. Mesmo agora pouco importa em comparação com as suas implicações, e seria impossível traduzi-las. «— O Nilo... o rio verde que corre nos nossos corações, escuta os seus filhos. Eles voltarão. Descendentes dos faraós, filhos de Ra, linhagem de S. Marcos. Encontrarão o berço da luz». E assim por diante. De vez em quando o orador fechava os olhos como para deixar as palavras correr mais livremente. Em certa ocasião inclinou a cabeça como um cão que arreganha as beiçolas, os olhos sempre fechados, até que a chama da vela lhe pôs a cintilar todos os dentes. Que voz! Parecia independente do corpo, engrossando num rugido, adelgaçando-se num murmúrio, tremendo, cantando, gemendo, escandindo bruscamente as palavras como uma metralhadora ou adoçandoas untuosamente de melaço.
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Estávamos todos subjugados. Mas havia qualquer coisa de cómico no ar desconcertado e inquieto de Nessim. Aparentemente, não era aquilo que esperava, pois estava pálido e tremia como uma folha. Mas também se deixava arrastar como os outros pela torrente de retórica e vi-o conter furtivamente uma lágrima com um gesto quase irritado. «Aquilo durou uns bons três quartos de hora, e bruscamente, inexplicavelmente, a corrente secou, a chama do orador apagou-se. Narouz ficou diante de nós, de boca aberta, como um peixe, como se a maré de música interior o tivesse lançado numa praia desconhecida. Foi uma coisa abrupta como um pano de ferro que desce — um silêncio irreparável. As suas mãos voltaram a apertar-se. Emitiu um gemido de surpresa e retirou-se no seu curioso passo claudicante. Um silêncio enorme caiu sobre a assistência — o silêncio germinal onde se pode ouvir crescer, na mente humana, as sementes que se esforçam por abrir caminho para a luz da consciência. Eu sentia-me profundamente perturbado e completamente esgotado. Fecundado! «Finalmente, Nessim ergueu-se e fez um gesto vago. Estava igualmente esgotado e caminhava como um velho; segurou-me na mão e, seguindo-o, subi de novo à igreja, onde uma barulheira ensurdecedora de címbalos e carrilhões acabava de rebentar. Atravessámos as nuvens de incenso que pareciam agora provir do centro da terra, dessas regiões inferiores habitadas pelos anjos e pelos demónios. Cá fora, ele começou a balbuciar: «— Não esperava, nunca imaginaria uma coisa daquelas de Narouz. É um pregador. Tinha-lhe simplesmente pedido para falar da nossa História — mas ele...». Não encontrava palavras adequadas. Ninguém até então, ao que parece, tinha suspeitado da existência de tal orador entre eles... o homem do látego! «— Podia empolgar um grande movimento religioso», disse para mim próprio. Nessim, curvado, perdia-se nas suas reflexões. «— Sim, é um pregador nato», repetia ele arregalado.
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«Agora já sei porque é que ele se encontra com Taor». Contou-me então que Narouz partia frequentemente para o deserto a fim de visitar uma mulher santa muito célebre (dizia-se até que possuía três seios), que vive numa caverna perto de Wadi Natrun; é famosa pelas curas milagrosas que realiza mas nunca se mostra à luz do dia. «Quando ele desaparece», disse Nessim, «é para ir pescar na ilha com a nova carabina ou para visitar Taor. É sempre uma coisa ou outra». «Quando voltámos para a tenda, o novo pregador estava deitado por terra, e soluçava lançando gritos roucos como um camelo ferido. Calou-se quando entrámos mas continuou ainda a tremer durante um momento. Embaraçados, não sabíamos que dizer e instalámo-nos para a noite no meio de um pesado silêncio. Acabávamos de viver momentos inesquecíveis! «Demorei muito tempo a adormecer, com o espírito perturbado. Na manhã seguinte levantámo-nos de madrugada (um raio de um frio para uma manhã de Maio — a tenda hirta devido ao cacimbo que durante a noite congelara) e montámos quando o sol começava a despontar. Narouz já se recuperara. Fazia estalar o chicote e divertia-se a lançar graçolas aos intendentes. Mas Nessim conservava-se meditabundo. A longa cavalgada despertou-nos o espírito, e foi com alívio que vimos reaparecer finalmente as copas sombrias das palmeiras. Repousámos nessa noite em Karm Abu Girg. A mãe não apareceu mas disseram-me que podia receber-nos depois de jantar. Foi então que sucedeu uma cena que me pareceu tão surpreendente para Nessim como para mim próprio. Quando atravessávamos os três o pequeno roseiral que conduz à vivenda de Verão, ela apareceu à porta com uma lanterna e perguntou: «Então, meus filhos, como correram as coisas?» Nesse instante Narouz tombou de joelhos estendendo os braços para a mãe. Nessim e eu sentíamo-nos extremamente embaraçados. Ela aproximou-se e tomou nos braços aquele campónio que fungava e soluçava, fazendo-nos sinal para que nos afastássemos.
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Confesso que me senti satisfeito vendo Nessim obedecer e segui-o com alegria. «— Eis um novo Narouz», repetia ele docemente, realmente desorientado. — «Ignorava que meu irmão possuísse tamanha força de espírito». «Mais tarde Narouz regressou a casa muito bem disposto, e jogámos as cartas, bebendo arak. Mostrou-me com orgulho uma carabina que encomendara expressamente em Munique. Era uma carabina de ar comprimido que lançava um forte harpão debaixo de água. Falou-me demoradamente no seu novo método de pesca submarina. Aquilo pareceume ser um desporto apaixonante e convidou-me para passar um fim-desemana com ele na sua ilha, a fim de vê-lo operar. Não havia agora no irmão mais novo o menor traço do pregador da véspera; a simplicidade do seu espírito viera de novo à tona. «Uf! Tento assinalar aqui todos os pormenores que me parecem notáveis para que você os utilize quando para cá vier. Desolado se me considerar enfadonho. No regresso tive uma demorada conversa com Nessim a fim de esclarecer definitivamente o meu espírito. Pareceu-me que, no plano político, o movimento copta nos podia ser de grande utilidade; e estava certo de que se a coisa fosse correctamente explicada a Maskelyne ele aceitaria esta interpretação dos factos. Sentia-me cheio de esperanças! «Assim regressei ao Cairo numa disposição de espírito excelente, a fim de pôr de novo em ordem as peças do tabuleiro de xadrez. Fui procurar Maskelyne para lhe anunciar a boa nova. Com grande surpresa minha, o sujeito ficou lívido de cólera, o nariz afilou-se-lhe e as orelhas caíram como as de um lebreu. A voz e os olhos conservaram-se inalterados. «— Devo concluir que tentou obter um complemento de informações relativo a um documento secreto consultando pessoalmente o interessado? Não é isso contrário aos mais elementares princípios de toda a polícia e de toda a política? E como pôde acreditar numa encenação tão evidentemente preparada para ludibriá-lo?
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Isso ultrapassa todo o entendimento. O senhor retém deliberadamente um documento do Ministério da Guerra, lança o descrédito sobre os meus serviços, insinua que nada percebemos deste trabalho, etc.». Deixo ao seu cuidado imaginar o resto da tirada. A mostarda começava a subir-me ao nariz. Ele repetia num tom cortante: «Há quinze anos que me dedico a este trabalho. Garanto-lhe que me cheira a pólvora, a subversão. O senhor não quer dar fé às minhas fontes mas eu garantolhe que as suas são ridículas. Por que motivo não havemos de entregar o processo aos egípcios e eles que se desembaracem uns com os outros?» Naturalmente eu não podia consentir numa coisa dessas e ele bem o sabia. Disse-me que tinha solicitado ao Ministério da Guerra que protestasse em Londres e escrevera a Errol pedindo uma «reparação». Não havia nisso nada de surpreendente. Ataquei-o então por outro flanco. «—Escute», disse-lhe, «estudei todas as suas fontes. São árabes e, como tais, pouco dignas de fé. Que diz a um acordo entre cavalheiros? Não há pressa — podemos investigar os Hosnani à vontade. Mas desta vez convinha procurar outras fontes, fontes inglesas. Se as interpretações concordarem, prometo abandonar a partida e retractarme inteiramente. Caso contrário, bater-me-ei até ao fim para esclarecer este assunto. «—-Em que espécie de fontes está a pensar?» «— Pois bem, há um certo número de ingleses na polícia egípcia, que falam árabe e conhecem as pessoas em questão. Porque não utilizar alguns deles?» «Maskelyne considerou-me durante um momento. «— Mas eles estão tão corrompidos como os árabes», respondeu por fim. — «Nimrod vende à Imprensa as suas informações. O Globo paga-lhe vinte libras por mês em troca de informações confidenciais.» «— Devem existir outros também.» «— Ora se há! Só queria que você os visse!»
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«— Há também Darley, que assiste a essas afligem. Porque não lhe pede que o ajude?»
reuniões
que
tanto
o
«— Não quero comprometer o meu serviço introduzindo nele pessoas como esse Darley. Não vale a pena e é muito perigoso.» (— Porque não organizar então um serviço especial para este caso? Telford poderia ajudá-lo? Um serviço complementar sem qualquer ligação com os outros e nenhum contacto com a sua organização principal. Pode fazer isso, bem sabe.» «Olhou-me demoradamente. «— Podia fazer isso, se quisesse», condescendeu. — «E se pensasse que isso ia servir de alguma coisa. Mas a verdade é que não serviria de nada.» «— De qualquer maneira, porque não experimentar? A sua posição aqui é bastante equívoca enquanto não houver um embaixador para arbitrar a questão. Suponha que eu mando seguir este relatório e que todo o grupo é apanhado?» «—Sim; e depois?» «— Suponhamos, como eu creio, que se trata de uma coisa susceptível de ajudar a política britânica neste sector, ninguém nos vai agradecer termos permitido aos egípcios meter o nariz no assunto. Se assim for, acharia...» «— Vou reflectir.» «Ele não tinha a menor intenção de fazê-lo, bem o percebi, mas, pelo menos, mudou de ideias; telefonou-me na manhã seguinte para me dizer que ia fazer o que eu lhe sugerira, embora «sob todas as reservas»; a guerra estava declarada entre nós. Talvez tivesse sabido da sua nomeação e conhecesse os nossos laços de amizade. Sei lá! «Uf! Eis quase tudo o que tinha para lhe dizer; quanto ao resto, a terra continua aqui, no mesmo lugar. — Corri tudo o que é heteróclito, tortuoso, polimorfo, oblíquo, equívoco, opaco, ambíguo, ou simplesmente completamente maluco. Desejo-lhe as maiores felicidades quando eu já tiver partido!
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Estou certo de que a sua primeira Embaixada será um sucesso retumbante. Talvez estes fragmentos de informação lhe sirvam de algum proveito. Seu Earwig van Beetfield (Nota 1)»
Mountolive estudou o documento com profunda atenção: considerou o tom inconveniente e as informações perturbadoras. Mas era o destino de todas as Legações serem teatro de disputas entre facções rivais. As querelas pessoais, as divergências de opinião, estavam sempre à boca de cena. Durante um momento perguntou a si próprio se não seria mais conveniente conceder a Pursewarden a transferência solicitada; mas pensou que se pretendia ter liberdade de agir não devia principiar com hesitações — principalmente perante Kenilworth. Foi fazer um grande passeio a pé no meio da paisagem de Inverno para dar tempo a que os acontecimentos se precisassem. Finalmente redigiu uma carta para Pursewarden depois de ter inutilizado numerosos rascunhos, carta que remeteu pelo correio diplomático.
«Meu caro P. «Agradeço-lhe a sua carta e as informações muito interessantes que nela se contêm. É impossível tomar qualquer decisão antes de aí chegar. Contudo resolvi conservá-lo como adido da missão por mais um ano. Peço-lhe que observe nos seus serviços maior disciplina do que aquela de que tem dado mostras até agora; e demais sei que posso contar com o seu apoio, por mais desagradável que lhe pareça a perspectiva de ficar no Egipto.
Nota 1 - «Earwig van Beetfield», a traduzir-se, ficaria assim: «Insecto do campo de beterrabas», ou coisa semelhante. (N. do T.).
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Há muito que fazer e tenho de tomar numerosas decisões antes de partir. «Sinceramente seu David Mountolive»
Esta carta continha, assim o esperava, uma dose igual de incitamento e de crítica. Mas era evidente que Pursewarden não lhe teria escrito com tal desenvoltura se tivesse previsto a possibilidade de servir sob as suas ordens. Contudo, se queria fazer uma boa carreira, tinha que impor-se desde o princípio. Fazia já em imaginação planos para a transferência de Maskelyne e a nomeação de Pursewarden para primeiro-conselheiro político. Contudo, um certo sentimento de mal-estar subsistia. Mas não pôde impedir-se de sorrir quando recebeu um bilhete postal do incorrigível. «Meu caro Embaixador», leu Mountolive. «A notícia não foi acolhida com um transporte de entusiasmo. Há tantos etonianos barbudos que não teria tido qualquer dificuldade em escolher um deles... Enfim! Conte comigo...».
VI
O avião perdeu altura e iniciou a lenta descida no crepúsculo cor-demalva. Ao deserto moreno e à monotonia das dunas buriladas pelo vento sucedia-se agora uma carta em relevo do delta que lhe avivava as recordações. Os meandros preguiçosos das águas acastanhadas projectavam-se na vertical, e pequeninas embarcações derivavam lentamente. Estuários vazios e barras de areia — regiões desabitadas do interior onde as aves e os peixes se reúnem em segredo. Aqui e ali o rio abria-se como uma haste de bambu em torno de uma ilha onde cresciam figueiras, um minarete e algumas palmeiras moribundas — a doçura penugenta das palmas lançando na paisagem chata, sufocada pelo calor, miragens e silêncios húmidos. Os talhões cultivados davam ao país a aparência de um cobertor de lã laboriosamente remendado; depois eram extensões de pântanos betuminosos limitados pelos contornos lentos das águas morenas. Aqui e além afloravam ainda algumas tiras de calcário rosa. Fazia um tremendo calor na pequena cabina do avião e Mountolive sofria mil tormentos dentro do seu novo uniforme. Os alfaiates tinham feito prodígios — assentava-lhe como uma luva. Mas que peso! Sentiase cozer a fogo lento. O suor corria-lhe pelo peito. A mescla de alegria e inquietação que o assaltava traduzia-se por um enjoo permanente. Iria sucumbir à náusea da viagem pela primeira vez na sua vida?
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Esperava não ter de sofrer semelhante humilhação. Seria horrível vomitar naquele imponente chapéu restaurado. «Aterragem dentro de cinco minutos». Estas palavras escritas à pressa numa folha arrancada de um bloco foram-lhe comunicadas pelo posto de pilotagem nesse mesmo momento. Bem. Bem. Acenou maquinalmente com a cabeça e começou a abanar-se com o lequezinho de papel. Afinal de contas, o uniforme estava-lhe a matar. Ficara altamente surpreendido com a sua elegância quando pela primeira vez se viu fardado diante de um espelho. Desceram lentamente descrevendo largos círculos e o crepúsculo malva subiu ao encontro deles. Era como se todo o Egipto se instalasse docemente num tinteiro. Depois, quando surgiram os turbilhões dourados lançados pelos demónios das areias errantes, Mountolive viu florescer os botões dos minaretes e das torres dos túmulos célebres; as colinas de Moquattam apareceram rosadas e nacaradas como unhas. Um grupo de dignitários, delegados para a recepção, esperava-o no aeroporto. Estavam ladeados pelos membros do seu pessoal, acompanhados das respectivas mulheres — todas elas com chapéus e luvas de garden-party, como se estivessem nos prados de Longchamp. Entretanto, toda a gente transpirava sem constrangimento. Mountolive sentiu a terra firme sob os seus sapatos de verniz e "soltou um suspiro de alívio. Em terra estava quase mais quente que no avião; mas o enjoo desaparecera. Deu um passo em frente e preparava-se para estender a mão quando descobriu que ao vestir aquele uniforme tudo tinha mudado. Apoderou-se bruscamente dele um sentimento de solidão compreendendo que na sua qualidade de embaixador devia renunciar para sempre à amizade dos seres humanos vulgares em troca da sua deference. O uniforme isolava-o do Mundo como uma armadura de aço. «Senhor», pensou ele, «passarei a vida a solicitar uma reacção humana normal das pessoas que devem deferência ao meu posto!
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Vou tornar-me como aquele horrível vigário do Sussex que praguejava sempre em voz baixa para provar a si próprio que era ainda um ser humano a despeito da coleira!» Mas este ligeiro acesso de solidão dissipou-se depressa na alegria de uma nova autoridade. Tudo quanto lhe cabia fazer agora era explorar ao máximo o seu encanto: seria censurável reconhecer ele próprio que era uma criatura elegante e digna do cargo? Deu as suas provas dirigindo-se aos funcionários egípcios num excelente árabe. Em todos os rostos floresceram sorrisos de aprovação e satisfação. Soube também apresentar-se ligeiramente de perfil ao clarão das lâmpadas de magnésio dos repórteres quando pronunciou o seu primeiro discurso — uma teia de vulgaridades pronunciadas em árabe com uma encantadora hesitação, o que lhe valeu os murmúrios lisonjeiros do grupo indisciplinado dos jornalistas. Uma orquestra atacou com convicção e tocante falta de conjunto qualquer coisa de pavorosamente falso, uma espécie de melodia europeia que Mountolive levou certo tempo a reconhecer como o hino nacional inglês. Teve de fazer um esforço tremendo para não esboçar um sorriso. O exército egípcio devia ter ensaiado à última hora o uso do trombone. Mas o conjunto tinha um ar improvisado e descosido que fazia pensar em qualquer forma rara de música antiga (Palestrina?) executada numa bateria de cozinha. O embaixador imobilizou-se e colocou-se na posição de sentido. Um velho bimbashi, com um olho de vidro, conservava-se diante do grupo num sentido um pouco titubeante. Quando aquilo terminou, Nimrod Pasha disse a meia voz: — Estou desolado com a banda. Mas a maior parte dos músicos está doente, e bem vê, sir, tivemos de recrutar uma nova formação à última hora. Mountolive abanou gravemente a cabeça para assinalar a sua compreensão e encaminhou-se para a tarefa seguinte: passar em revista a guarda de honra, o que fez com zelo e grande prazer.
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Os homens cheiravam a óleo de sésamo e a suor e dois deles sorriram afavelmente. Era delicioso e teve mesmo de reprimir o impulso de retribuir os sorrisos. Depois, voltando-se, cumprimentou os senhores do protocolo, todos sorridentes e perfumados, debaixo dos turbantes vermelhos. Ali os sorrisos floresciam sem restrições, juncando o lugar como pedaços de melancia mal madura. Um embaixador que falava o árabe! Mountolive adoptou uma atitude de sorridente modéstia cujo efeito aliciante não ignorava. Tinha aprendido aquilo. Observou com orgulho que o seu sorriso convencional era atraente; até os membros do seu próprio pessoal sucumbiam; mas sobretudo as esposas. Elas apresentaram-lhe as faces descontraídas, que eram outras tantas armadilhas de veludo. Teve uma palavra amável para cada um dos secretários. Enfim, o grande automóvel levou-o sem solavancos à Residência, nas margens do Nilo. Errol fez-lhe as honras da casa e apresentou-lhe os criados. As dimensões e a elegância do edifício eram notáveis e de certo modo alarmantes. Tão grande número de salas à sua disposição era o suficiente para intimidar um celibatário. «Enfim», pensou ele melancolicamente, «para receber penso que tudo isto é indispensável». Visitou os salões de gala, as estufas, os terraços, retardando-se um momento a contemplar os relvados verdejantes que desciam até às águas cor de chocolate do Nilo. Dia e noite os repuxos regavam a erva, conservando-lhe uma cor verde esmeralda e uma deliciosa frescura. Despiu-se ouvindo o doce murmúrio e tomou um duche frio na magnífica casa de banho guarnecida de bugigangas opalinas; Errol tinha recebido permissão para retirar-se, com um convite para se apresentar depois do jantar para discutirem a situação. «Estou cansado», tinha-lhe confessado Mountolive, «e desejo repousar um pouco e jantar sozinho. Este calor... — devia recordar-me, mas a verdade é que já me tinha esquecido». O Nilo ia na cheia, impregnando o ar com a humidade estival das suas inundações anuais, escalando, polegada a polegada, a parede de pedra viscosa ao fundo dos jardins da Embaixada.
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Mountolive estendeu-se na cama ouvindo o ir e vir dos automóveis e os ruídos abafados das vozes e dos passos no vestíbulo. Todos os membros do seu pessoal vinham assinar o belo livro dos visitantes, luxuosamente encadernado em marroquim vermelho. O único que não se manifestou foi Pursewarden. Conservava-se oculto. Mountolive decidiu sacudi-lo um pouco na primeira oportunidade; não podia agora continuar a permitir-lhe tolices que o colocariam numa situação delicada em relação ao restante pessoal. Esperava que o amigo não o forçasse a tomar medidas de autoridade desagradáveis — essa ideia começava já a roê-lo. Contudo... Depois de meia hora de repouso jantou só, num recanto do grande terraço, sumariamente vestido com umas calças, camisa e sandálias. Depois, descalçando-as, atravessou o relvado iluminado pelos projectores e desceu à margem do rio, sentindo a frescura da relva debaixo dos pés nus. Mas a erva era de uma espécie africana, grosseira, de raízes ressequidas a despeito da irrigação constante. Três pavões pavoneavam-se gravemente na sombra. O céu, de um veludo negro, estava polvilhado de estrelas. Enfim, tinha chegado — em toda a extensão da palavra. Recordou-se de uma frase de um livro de Pursewarden: «O escritor, o mais solitário de todos os animais...». Sentia o copo de whisky gelado na mão. Estendeu-se na relva, naquela obscuridade, onde nenhuma brisa soprava, e contemplou o céu, não ousando pensar em nada mas consentindo que um torpor se insinuasse nele, polegada a polegada, como as águas do rio que subiam lentamente ao fundo do jardim. Porque havia de sentir agora essa espécie de vaga tristeza submersa, quando tinha alcançado o topo da carreira e se achava tão rico em ideias? Não sabia dizê-lo. Errol voltou à hora marcada depois de ter engolido o jantar à pressa e ficou encantado encontrando o seu chefe espojado na relva como uma estrela do mar, semi-adormecido.
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Esta ausência de cerimonial era um bom presságio. — Peça que nos tragam bebidas, faça favor — disse Mountolive com benevolência — e venha sentar-se aqui. Perto do rio quase se pode respirar. Errol obedeceu e veio sentar-se na hesitação. Falaram da situação geral.
relva,
depois
de
uma
ligeira
— Sei — disse Mountolive — que todo o pessoal espera ansiosamente a nossa instalação estival em Alexandria. Lembro-me de quando era jovem adido à Comissão. Pois bem, sairemos desta estufa mal eu tenha apresentado as minhas credenciais. O rei estará no conselho dentro de três dias, não é? Sim, Abdel Latif disse-me no aeroporto. Bem. Amanhã convidarei para tomar chá todos os secretários da Embaixada e respectivas mulheres; e à noite reuniremos num cocktail o pessoal mais jovem da Legação. O resto pode esperar até que você tenha reservado o comboio especial e fechado as malas. E como vão as coisas em Alexandria? Errol teve um pálido sorriso. — Está tudo em ordem, sir. Houve a habitual confusão mas os egípcios foram perfeitos. O Protocolo encontrou uma excelente Residência com um imóvel para os serviços de Verão, bem como diversos outros gabinetes que foram postos à nossa disposição. Tudo esplêndido. Elaborei uma lista do pessoal que permitirá a todos três semanas de férias, um grupo de cada vez. Os criados podem partir adiante. Suponho que tenciona dar algumas recepções? A corte porém só parte dentro de quinze dias. Por aí não temos quaisquer problemas. Não temos quaisquer problemas! Ali estavam palavras animadoras. Mountolive suspirou e nada disse. Na obscuridade, do outro lado das águas do rio, ouviu-se um rumor longínquo, como o crepitar de um enxame de abelhas; risos e cânticos misturavam-se com o tinido lancinante dos sistros.
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- Já me tinha esquecido — disse ele com uma ponta de emoção. — As lágrimas de Isis! É a Noite das Lágrimas, não é? — Com efeito, sir — confirmou Errol prudentemente. Em breve no rio fervilhariam os airosos faluchos e as vozes acompanhadas pelo canto das guitarras. Isis-Diana ia brilhar nos céus; mas aqui o parque estava isolado no seu cone de luz eléctrica e o firmamento parecia mais obscuro. Olhou vagamente em volta tentando reconhecer as constelações. — Pois bem, é tudo. Errol levantou-se imediatamente. Depois de pigarrear, disse: — Pursewarden não compareceu porque está com gripe. Mountolive pensou que este género de lealdade era de bom augúrio. — Bem — disse ele sorrindo —, sei que ele lhe tem causado certas preocupações. Velarei pessoalmente para que as coisas se componham. Errol pareceu agradavelmente surpreendido. — Obrigado, sir. Mountolive acompanhou-o lentamente até casa. — Gostaria também de convidar Maskelyne para jantar. Amanhã à noite, se lhe convier. Errol aprovou lentamente. — Ele estava no aeroporto, sir. — Não reparei. Faz-me o favor de pedir ao meu secretário que lhe envie um cartão para amanhã à noite? Mas telefone-lhe primeiro para saber se lhe convém. Às oito horas, gravata preta. — Fica ao meu cuidado, sir. — Como temos de tomar um certo número de disposições novas, desejo particularmente encontrar-me com ele e gostaria de assegurar a sua cooperação. Disseram-me que é um oficial inteligente. Errol pareceu hesitar.
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— Ele teve alguns atritos bastante violentos com Pursewarden. Nestas últimas semanas tem mais ou menos importunado a Embaixada. É inteligente, mas... um pouco casmurro. Errol era circunspecto; não desejava manifestamente arriscar-se. — Bem — disse Mountolive — falarei com ele e verei. Penso que as novas disposições serão de molde a satisfazer as duas partes, mesmo Master Pursewarden. Desejaram-se mutuamente boas-noites. No dia seguinte Mountolive reentrou na rotina que lhe era familiar, mas de certo modo vista de um ângulo diferente, e de uma posição que punha imediatamente toda a gente em movimento. Era muito agradável e ao mesmo tempo excessivamente embaraçoso; mesmo quando tinha o posto de conselheiro esforçara-se sempre por estabelecer relações amigáveis com os jovens adidos. Sabia até colocar. à vontade esses broncos fuzileiros navais da Guarda pelas suas maneiras simples, não fugindo a trocar com eles algumas impressões quando a ocasião se proporcionava. Agora todos compunham diante dele uma atitude de reserva, quase de desconfiança. Ali estavam pois os frutos amargos do poder, pensou ele aceitando com resignação o seu novo papel. Os primeiros contactos foram entretanto muito animadores; e até a recepção ao pessoal correu tão bem que todos pareciam relutantes em partir. Estava atrasado para mudar de roupa antes do jantar com Maskelyne e este esperava-o já há alguns minutos na saleta quando Mountolive apareceu finalmente, depois de ter tomado um banho e vestido roupas lavadas. — Ah, Mountolive! — disse o soldado levantando-se e estendendo-lhe a mão com uma inexpressiva secura. — Estava impaciente por vê-lo chegar. Mountolive sentiu-se algo contrariado pelo acolhimento tão pouco formal desta personagem depois de todas as deferências que lhe tinham prodigalizado durante a tarde.
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«Diabo!», pensou ele, «serei no fundo assim tão provincial!» — Meu caro general. Pronunciou estas palavras com uma frieza apenas perceptível. Teria aquele soldado querido simplesmente evidenciar que dependia do Ministério da Guerra e não do Ministério dos Negócios Estrangeiros? De qualquer maneira o seu procedimento denotava mau gosto. E, contudo, Mountolive não pôde deixar de sentir uma certa atracção por aquele homem magro, de olhos rasgados, voz fria, cuja pessoa, toda ela, parecia trazer a marca de uma profunda solidão. A sua fealdade não era desprovida de certa elegância. O smoking, escovado e engomado sem excessivo apuro, traía-lhe a idade, mas era de boa fazenda e de excelente feitio. Maskelyne, baixando com circunspecção o focinho de lebreu para o copo, bebeu com calma e lentamente. Contemplava Mountolive com a maior frieza. Trocaram durante um momento os cumprimentos da praxe, e Mountolive teve de reconhecer que o homem não lhe era antipático a despeito das suas maneiras um pouco rudes. E bruscamente supôs reconhecer no militar um homem que, como ele próprio, tinha hesitado a adoptar um estilo de vida determinado. A presença dos criados excluiu durante o jantar, que foi servido no parque, qualquer possibilidade de trocarem impressões particulares, e Maskelyne não deu o menor sinal de impaciência. O nome de Pursewarden foi pronunciado uma única vez e mesmo assim em tom casual: — Sim, mal o conheço, fora das relações oficiais, é claro. O que é mais curioso é que seu pai — o nome é tao pouco comum que não pode tratar-se de outra pessoa — fez serviço na minha companhia durante a guerra de 14. Ganhou a Cruz de Guerra. Recordo-me porque fui eu quem escreveu a citação que lhe valeu ser condecorado: e naturalmente foi a mim também que incumbiram das diligências habituais. O filho devia ser uma criança nessa época.
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Bem entendido, posso estar enganado — embora isso não tenha qualquer importância. Mountolive estava intrigado. — De facto, não se engana — disse ele. — Pursewarden falou-me uma vez nisso. O senhor nunca lhe tocou no assunto? — Não, santo Deus! Para quê? — exclamou Maskelyne como se tivesse ficado ligeiramente ofendido. — O filho não é propriamente do meu género — disse tranquilamente mas sem animosidade; estava simplesmente a explicar um facto. — Ele... eu... enfim, li uma vez um dos seus livros. Calou-se terreno.
bruscamente
como
se
fosse
desnecessário
prosseguir
nesse
— Era sem dúvida um valente — disse Mountolive depois de um instante de silêncio. — Sim... ou talvez não — disse lentamente o outro, com ar pensativo. — Nunca se sabe. Não era um verdadeiro soldado. São coisas que acontecem com frequência na frente. Sucede que os actos de bravura sejam cometidos com mais frequência pelos poltrões do que pelos homens corajosos — é isso que é estranho. O seu acto, neste caso especial a que me refiro, foi um acto não militar. Por paradoxal que pareça... — Mas...— protestou Mountolive. — Deixe-me explicar. Há uma diferença entre o acto necessário de bravura e o heroísmo gratuito. Se ele se lembrasse do seu código de instrução militar não teria feito o que fez. Talvez isto lhe pareça uma tolice, mas a verdade é que o homem perdeu completamente a cabeça, agiu sem reflectir. Como homem admiro-o enormemente, mas não como soldado. A nossa vida exige muito mais rigor — é uma ciência, ou pelo menos devia ser. Falava reflectidamente na sua maneira seca e enunciando bem as palavras. Era evidente que aquele tópico tinha-o debatido mentalmente com bastante frequência.
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— Disso não tenho a certeza — disse Mountolive depois de pesar as palavras do outro. - Talvez eu esteja enganado — concedeu o soldado. Os criados tinham-se retirado finalmente, deixando-os a sós diante das bebidas e dos charutos, e Maskelyne sentiu que podia abordar finalmente o objecto real da sua visita. — Penso que já estudou todas as divergências que surgiram entre nós e a sua secção política. A querela foi extremamente viva e nós esperamos todos que a resolva. Mountolive inclinou ligeiramente a cabeça. — No que me respeita, as dificuldades estão já resolvidas — disse ele com um ligeiro tom de contrariedade (detestava que o empurrassem). Conferencie na terça-feira com o seu general e elaborei uma nova combinação que estou certo lhe há-de agradar. Receberá esta semana ainda uma ordem para transferir as suas actividades para Jerusalém, que passará a ser o quartel-general e a sede dos seus serviços. Assim se evitam todos os problemas de posto e de precedência. Poderá deixar aqui uma agência sob a direcção de Telford, que é um civil, mas será naturalmente um serviço subalterno. Para maior comodidade ele trabalhará connosco e assegurará a ligação entre os nossos serviços. Um silêncio caiu. Maskelyne estudou com atenção a cinza do charuto enquanto a sombra de um sorriso lhe nascia ao canto da boca. — Portanto, Pursewarden ganhou — disse ele muito calmamente. — Bem! Bem! Mountolive sentiu-se surpreendido e ultrajado pelo sorriso, embora este parecesse na verdade perfeitamente inocente. — Pursewarden — disse então tranquilamente – foi repreendido por ter retido um relatório destinado ao Ministério da Guerra. Acresce que eu conheço muito bem a pessoa que é objecto desse relatório e considero ser necessário obter um suplemento de informação antes de tomar quaisquer medidas.
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— É o que estamos a fazer; Telford está em vias de estender a rede em torno da personagem em questão, esse Hosnani, mas alguns dos candidatos propostos por Pursewarden parecem inconvenientes... para não dizer outra coisa. Entretanto, Telford tenta ser-lhe agradável aliciando-os. Mas... enfim, um deles vende informações à Imprensa e o outro é presentemente o consolador de M.me Hosnani. Enfim, há outro, um tal Scobie, que passa o seu tempo a passear vestido de mulher pelo porto de Alexandria — seria pura caridade supô-lo nessas ocasiões em busca de informações secretas. Apesar de tudo terei o maior prazer em confiar a rede a Telford e iniciar algo de mais sério. Que mundo! — Dado que não conheço ainda os pormenores — disse Mountolive calmamente — não posso fazer comentários. Mas estudarei a questão. — Vou dar-lhe um exemplo da competência desse tipo — exclamou Maskelyne. — Na semana passada, Telford designou esse Scobie para uma missão de pura rotina. Quando os sírios se querem fazer espertos, não utilizam o correio diplomático; confiam o saco a uma dama, a sobrinha do vice-cônsul, que o leva para o Cairo no comboio. Quisemos examinar o conteúdo de um desses sacos — continha pormenores relativos à entrega de armas, ao que suspeitávamos. Entregámos a Scobie chocolates, um dos quais, devidamente marcado, continha uma forte dose de narcótico. Competia-lhe adormecer a dama durante duas horas e trazer-nos o saco. Sabe o que sucedeu? Encontraram-no adormecido no comboio, à chegada ao Cairo, e foram necessárias vinte e quatro horas para despertá-lo. Fomos obrigados a mandá-lo para o hospital americano. Mal o sujeito se sentara no compartimento da dama, um brusco safanão do comboio misturou os chocolates. Incapaz de se recordar de qual era o que tínhamos tão cuidadosamente marcado, na precipitação comeu-o...
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O olhar austero de Maskelyne parecia fuzilar enquanto ia contando a sua anedota. - Como quer que confiemos em semelhante gente? — concluiu num tom acerbo. - Prometo-lhe examinar a competência de todas as pessoas propostas por Pursewarden; prometo-lhe também que, de futuro, não se reproduzirão essas actuações abusivas. — Obrigado! Parecia sinceramente reconhecido quando se levantou para se despedir. Recusou com um gesto a viatura oficial que o esperava diante da porta, murmurando qualquer coisa a respeito de um «passeio higiénico», vestiu um sobretudo ligeiro para dissimular o smoking e afastou-se. Mountolive ficou no patamar a contemplar por um momento a silhueta esguia do oficial atravessando os charcos de luz que caíam dos lampadários. Suspirou, de cansaço e de alívio. A jornada fora difícil. «Pelo menos este problema está resolvido». Voltou ao relvado para tomar um último copo, calmamente, antes de se deitar. No conjunto, o trabalho realizado durante esse primeiro dia não fora insignificante. Tinha conduzido a bom termo uma dúzia de tarefas, e, entre essas, a de informar Maskelyne do seu destino não tinha sido a mais fácil. Merecia um instante de repouso. Mas antes de subir a escada percorreu a casa silenciosa, reflectindo, ruminando a consciência do seu acesso ao poder com todo o secreto orgulho de uma mulher que descobre a sua gravidez.
VII
Uma vez completados satisfatoriamente os seus deveres oficiais na capital, Mountolive pôde encarar a transferência do seu quartelgeneral — antecipando-se à corte — para a segunda capital: Alexandria. Em suma, tudo correra pelo melhor. O rei tinha elogiado o seu domínio do árabe e a utilização judiciosa do idioma nativo em público tinha-lhe valido a popularidade na Imprensa, distinção assaz rara. Todos os jornais publicaram grandes fotografias onde se salientava o sorriso modesto do embaixador. Enquanto separava aquela pequena montanha de recortes, Mountolive exclamou, de repente: «Meu Deus! Não estou simplesmente a caminho de me considerar eu próprio sedutor?» Eram fotografias excelentes; ficava incontestavelmente muito elegante com as fontes grisalhas e a linha bem desenhada do perfil. «Mas a cultura é um hábito que não chega para nos defender dos nossos próprios encantos. Corro o risco de ser enterrado vivo no meio destas doçuras, destas facilidades estéreis de uma vida mundana onde nem sequer sinto qualquer prazer». Com o queixo apoiado no pulso, reflectia: «Porque será que Leila não me escreve? Talvez na próxima semana, quando for para Alexandria, ela me mande notícias». Mas ao menos podia deixar o Cairo satisfeito. As outras legações estrangeiras roíam-se de inveja com o seu sucesso.
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A mudança realizou-se com uma celeridade exemplar graças ao diligente Errol e ao restante pessoal da Residência. Mountolive pôde permitirse vaguear preguiçosamente até à partida do comboio especial carregado com todas as bagagens diplomáticas que lhe permitiriam assegurar os serviços indispensáveis durante a ausência — malas, maletas e caixas, tudo marcado com monogramas dourados. O calor tornara-se intolerável no Cairo. Mas estavam todos bem dispostos quando o comboio arrancou internando-se no deserto em direcção da costa. Era a melhor época para se instalarem em Alexandria, porque os horríveis khamsins da Primavera tinham cessado de soprar e a cidade revestira-se com o seu adereço estival: toldos raiados dos cafés da Grande Comiche, embarcações multicolores arfando sob as torres sombrias dos vasos de guerra ou pacificamente enfileiradas nas águas tranquilas do porto em frente do Yacht-Club. Tinha também começado a estação das recepções estivais e Nessim teve finalmente ocasião de dar a prometida recepção festejando o regresso do amigo. Foi uma festa sumptuosa e bárbara, e toda a Alexandria veio prestar homenagem a Mountolive, como para festejar o regresso de um filho pródigo, embora ele de facto pouca gente conhecesse além de Nessim e sua família. Mas agradou-lhe reencontrar Baltasar e Amaril, os dois inseparáveis médicos que estavam constantemente a implicar um com o outro; e Clea, que conhecera em tempos na Europa. O sol, descendo para o horizonte sobre a majestosa vertente da tarde, incendiava as grandes vidraças enquadradas nos caixilhos de cobre, fazendo-as por um momento parecer de diamante fundido, antes de esmorecer, afundando-se no crepúsculo água-marinha do Egipto. Correram-se as cortinas e centenas de candelabros fizeram brilhar a brancura sumptuosa das toalhas e cintilar uma floresta de cristais. Era a estação do lazer e da mundanidade, e davam-se os primeiros bailes, no decurso dos quais se combinavam os próximos passeios a cavalo e os cruzeiros pelo mar.
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O vento fresco do mar alto mantinha uma temperatura agradável; o ar estava leve e vivificante. Mountolive abandonou-se ao movimento habitual das coisas com um sentimento de segurança, quase de beatitude. Nessim tinha por assim dizer retomado o seu lugar, tal um retrato num nicho rasgado por ele, e a companhia de Justine — a beleza sombria e de porte real que o acompanhava — facilitava-lhe as relações com as pessoas em vez de perturbá-las. Mountolive sentia grande simpatia por ela; gostava da sua maneira de pousar sobre ele os belos olhos de um negro profundo onde brilhava uma espécie de curiosidade compadecida mesclada de admiração. Formavam um par esplêndido, pensava ele, mesmo com uma ponta de inveja; davam a ideia desses seres habituados a trabalhar em conjunto desde a infância, respondendo instintivamente às necessidades e aos desejos não expressos pelo outro, nunca hesitando em se reconfortarem mutuamente com um sorriso. A despeito da sua beleza e da sua reserva, e embora falasse pouco, Mountolive cria adivinhar uma sinceridade de bom quilate em todas as suas palavras, como se proviessem de uma fonte oculta de secreta ternura. Seria o prazer de encontrar alguém que apreciava o marido tanto quanto ela própria? A franca e fria pressão dos seus dedos autorizava tal suposição, da mesma forma que o frémito da sua voz ao pronunciar estas palavras: «Há tanto tempo que ouço falar de David, que me será difícil tratá-lo por qualquer outro nome». Quanto a Nessim, nada tinha perdido do seu encanto durante o intervalo da separação, e tinha por outro lado adquirido o peso de uma experiência e de um juízo que o podia fazer passar por um perfeito europeu num meio tão provincial. Mountolive apreciava em particular o tacto com que ele evitava abordar assuntos que se relacionassem com a sua posição oficial, e isto a despeito de irem caçar, nadar ou pintar juntos. As informações de natureza política que poderia ter para lhe comunicar eram sempre escrupulosamente transmitidas por intermédio de Pursewarden.
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Nunca comprometia a amizade misturando o trabalho com o prazer, ou obrigando Mountolive a debater-se entre o dever e a afeição. Mas o mais estimulante ainda era o ardor com que Pursewarden tinha assumido as novas responsabilidades das suas altas funções. Duas minutas peremptórias, redigidas na terrível tinta encarnada — cujo uso é uma prerrogativa absoluta dos embaixadores — tinham-no apaziguado, arrancando-lhe a promessa de «entrar no bom caminho», que ele cumprira imediatamente. A sua resposta fora cordial e atenciosa e Mountolive sentiu-se simultaneamente reconhecido e aliviado por ver que podia finalmente confiar num juízo que estava bem decidido a não se deixar invadir nem a sucumbir na facilidade das influências e das dúvidas. E que mais? Sim, a nova residência estival era deliciosa e estava situada no meio de um fresco jardim de pinheiros sobranceiro a Roushdi. Dispunha de dois excelentes campos de ténis que estavam constantemente em serviço. O pessoal da Embaixada estava satisfeito com ele. Portanto... o silêncio de Leila continuava sendo um enigma. E depois, certa tarde, Nessim estendeu-lhe um sobrescrito onde reconheceu a letra de Leila. Mountolive guardou-o no bolso para lê-lo quando se encontrasse só. «O teu regresso ao Egipto — e isto talvez não seja surpresa para ti — perturbou-me e de certo modo perturbou os meus planos. Estou estupefacta, reconheço-o. Vivi tanto tempo contigo através da imaginação — e totalmente só aqui — que quase sou obrigada a reinventar-te para te insuflar vida. Quem sabe se durante todos estes anos eu não tenho estado a ser injusta contigo, criando um retrato de ti que é verdadeiro unicamente para a minha pessoa? Talvez que tu agora não passes de uma ficção, talvez não sejas esse dignitário de carne e osso que vive no meio das pessoas, das luzes e da política. Não tenho coragem de confrontar a verdade com a realidade; tenho medo. Sê paciente com uma mulher estúpida e teimosa que nunca sabe o que deseja. Bem sei que nos poderíamos já ter encontrado há muito tempo, mas a verdade é que me retraio como um caracol quando penso nisso.
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Tem paciência. Espero que dentro de mim a maré mude. Fiquei tão irritada quando soube da tua chegada que até chorei de raiva. Ou de terror? Creio que no fim destes anos todos eu tinha acabado por esquecer o meu rosto. E tornei a senti-lo de novo, como uma máscara de ferro. Mas a coragem voltará breve, podes estar certo disso. Mais tarde ou mais cedo havemos de encontrar-nos e de sofrer o golpe que daí resultará. Quando? Não sei. Não sei». Mountolive leu estas linhas no terraço, na doçura do crepúsculo, e pensou tristemente: «Não tenho as ideias suficientemente claras para lhe responder qualquer coisa sensata. Que posso fazer ou dizer? Nada». Mas esta palavra produzia um som oco. «Paciência», disse docemente para si próprio, revolvendo a palavra no espírito para estudá-la melhor. Um pouco mais tarde, no baile dos Cervoni, por entre o palpitar das luzes azuladas e das ondulações das serpentinas, a paciência pareceu-lhe mais fácil. Evoluía de novo num mundo alegre onde se não sentia já isolado dos seus semelhantes — um mundo povoado de amigos com quem podia evocar a memória feliz das longas cavalgadas com Nessim, apreciar a palavra de Amaril ou o prazer perturbador de dançar com a loira Clea. Sim, aqui, ele podia ter paciência. O momento, o lugar e as circunstâncias eram outros tantos elementos favoráveis. Não pressentia qualquer desastre num futuro sem nuvens e as premonições de uma guerra que se aproximava lentamente eram lugares comuns que ele partilhava publicamente com os outros. «É verdade que esses bombardeiros podem arrasar capitais inteiras?», perguntava Clea tranquilamente. «Sempre julguei que as invenções do homem reflectem os seus secretos desejos e, no fundo, todos desejamos o fim desta civilização, não é verdade? Sim, mas será doloroso perder Londres e Paris. Que pensa?» Que pensava ele? Mountolive enrugou a sua bela testa e sacudiu a cabeça.
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Pensava em Leila, velada de negro como uma freira, sentada na sua vivenda de Verão, no poeirento Karm Abu Girg, entre as rosas esplêndidas, na companhia da sua serpente... O Verão arrastava-se assim, sem pressa, sem atritos. Agosto, Setembro... e Mountolive não sofreu nenhum dissabor profissional numa cidade tão propícia à amizade, tão vulnerável à menor delicadeza, tão experiente no prazer. Dia após dia as velas coloridas palpitavam e deslizavam sobre as águas espelhentas do porto, entre as fortalezas de aço, e as vagas, de uma brancura sobrenatural, vinham bater num ritmo eterno o litoral deserto calcinado pelo sol africano. A noite, sentado sobranceiro a um jardim resplandecente de pirilampos, ouvia o rugido grave e sufocado pela distância dos paquetes que saíam a barra fazendo rumo para cidades longínquas do outro extremo do Mundo. No deserto exploraram oásis de verdura tornados trémulos e insubstanciais como sonhos devidos à miragem das águas, ou seguiram a cavalo as extensas tiras de argila que atravessam as areias em todo o perímetro da cidade, tendo o cuidado de levar alimentos e bebidas para os cavaleiros tagarelas. Visitou Petra e o estranho delta de coral, na costa do Mar Vermelho, efervescente de peixes tropicais dotados de todas as cores do arcoíris. As longas e frescas galerias da Residência de Verão ressoavam todas as noites com o-chocalhar dos cubos de gelo nos copos, com o eco dos lugares comuns e das vulgaridades que lhe comunicavam um frémito de felicidade devido à sua situação no espaço e no tempo, e ainda porque tais conversas se harmonizavam tão bem com uma cidade que sabia que o prazer era a única razão das actividades do homem; nessas galerias que dominavam o litoral azul repleto de História, na quente claridade dos candelabros, essas amizades fragmentárias desabrochavam em novos laços de afeição, cuja sinceridade lhe ajudava a esquecer o isolamento onde ele temera cair devido à situação em que se encontrava investido. Já adquirira uma grande popularidade e em breve seria amado por todos.
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Até a mórbida preguiça espiritual e o sibaritismo da cidade lhe pareciam encantadores, a ele que, tendo uma renda assegurada, se podia permitir o luxo de viver à margem dela. Alexandria parecia-lhe uma estância de Verão muito desejável, acessível a todas as afeições e a todas as xenofilias, no sentido grego da palavra. Porque não havia ele de se sentir à vontade? Os alexandrinos são também estrangeiros e exilados num Egipto que existia por debaixo da superfície cintilante dos seus sonhos, cercado pelos desertos escaldantes e sacudido por uma fé que renunciava aos prazeres do Mundo: o Egipto dos farrapos e das pragas, da beleza e do desespero. Alexandria era ainda a Europa, a capital da Europa asiática, se um tal conceito é concebível. Nunca se assemelharia ao Cairo, que descende de uma linhagem puramente egípcia e onde a língua essencial é o árabe; aqui eram o francês, o italiano e o grego que dominavam. A atmosfera, os costumes sociais, tudo era diferente, moldado à europeia, onde os camelos, as palmeiras e os nativos de túnica não passavam do pano de fundo de uma vida de origens variadas. Depois chegou o Outono e os seus deveres chamaram-no para a capital de Inverno; embora intrigado e até um pouco entristecido pelo silêncio de Leila, voltou sem desprazer para as tarefas absorventes da sua profissão. Havia os documentos a formular, os relatórios tratando de assuntos económicos, sociais e militares a redigir. O seu pessoal habituara-se já aos seus métodos e trabalhava com zelo; até Pursewarden fazia o melhor que podia. A hostilidade de Errol, que nunca fora muito viva, estava agora neutralizada, tendo dado lugar a uma trégua a longo prazo. Mountolive tinha todas as razões para se sentir feliz. Depois, no carnaval, recebeu uma mensagem de Leila para lhe significar a sua intenção de encontrá-lo — mas com a condição expressa de vestirem ambos o tradicional dominó negro, a máscara de orgia dos alexandrinos. Ele compreendeu.
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Mas a perspectiva dessa entrevista encheu-o de satisfação e foi calorosamente que aceitou o convite transmitido telefonicamente por Nessim, decidindo transferir toda, a Chancelaria para Alexandria durante o carnaval a fim de que os seus adidos pudessem aproveitar as festas. Foram encontrar a cidade banhada por um sol de Inverno de um azul muito vivo, apenas tocada durante a noite pelas geadas do deserto. Mas ali esperava-o uma nova decepção: quando Justine, no auge do tumulto, em casa dos Cervoni, lhe pegou na manga para o conduzir ao lugar da entrevista, entre as altas sebes do jardim, tudo quanto encontraram sobre o banco de mármore vazio foi um pequeno retículo de seda contendo um bilhete onde Leila garatujara: «Os nervos traíram-me outra vez. Desculpa-me». Mountolive fez por ocultar o seu desgosto e desapontamento na presença de Justine, que mal acreditava na evidência: «Mas ela veio especialmente de Karm Abu Girg para encontrá-lo! Não compreendo nada. Passou todo o dia com Nessim». Ele sentiu a mão de Justine apertar-lhe o braço com simpatia enquanto regressavam tristemente aos salões ruidosos e iluminados, passando com impaciência diante das silhuetas mascaradas no jardim povoado de risadas. Perto do tanque descobriu Amaril, sem máscara, sentado junto de uma delgada silhueta mascarada, falando a meia voz, suplicando, debruçando-se para estreitá-la. E Mountolive surpreendeu-se descobrindo que o invejava, embora já nada houvesse de carnal no seu desejo de se reencontrar com Leila. Era que, de uma maneira bastante paradoxal, o Egipto não ressuscitaria verdadeira e plenamente para ele enquanto a não visse, porquanto ela representava uma espécie de segunda imagem, quase mística, da realidade que ele vivia, que ele expropriava dia após dia. Estava como o operador que tenta sobrepor no telémetro as duas imagens gémeas que lhe permitirão regular a objectiva. Enquanto não tivesse vivido essa experiência, sentir-se-ia vagamente desamparado, incapaz de verificar as recordações que tinha conservado dessa paisagem maravilhosa, e também de apreciar as novas impressões que ela lhe comunicava.
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Entretanto, aceitou filosoficamente os factos. Afinal de contas, não havia qualquer razão para se alarmar. Paciência... de resto havia muito espaço agora para a paciência, enquanto esperava que ela tomasse coragem. Em contrapartida outras amizades tinham vindo preencher o vazio: Baltasar (que vinha com frequência jantar e jogar o xadrez), Amaril, Pierre Balbz, a família Cervoni. E também Clea, que principiara a fazer-lhe o retrato. Sua mãe pedira-lhe que lhe enviasse um retrato a óleo e agora ele tinha a oportunidade de posar no resplandecente uniforme que Sir Louis lhe tinha tão amavelmente vendido. Seria o presente de Natal, pensava ele, e sentia um certo prazer vendo Clea esmerar-se e retocar as partes que menos lhe agradavam. Através dela (Clea nunca cessava de falar enquanto trabalhava para manter os seus modelos interessados) aprendeu enormemente, durante esse Estio, da vida e das preocupações dos alexandrinos, a poesia extravagante e os dramas grotescos em que se comprazem esses exilados; as histórias desses habitantes de uma moderna cidade lacustre e dos arranha-céus de pedra que, por sobre as ruínas do Faros, se voltam para a Europa. Um desses contos inflamou a sua imaginação: a história de amor de Amaril, o elegante médico amado por toda a gente e a quem ele próprio dedicava grande amizade. E Clea, ao falar dele, ao pronunciar o seu nome, revelava também a sua afeição por esse homem tímido e gracioso, que tantas vezes afirmara o seu desgosto por não ser amado por uma mulher. — Pobre Amaril! — dizia ela com um suspiro acompanhado de um sorriso, retomando os pincéis. — Quer que lhe conte a história? É extraordinariamente típica. Todos os amigos ficaram contentes porque tínhamos chegado a pensar que ele ia passar neste mundo à margem do amor — como quem perde um autocarro. — Mas Amaril está de partida para Inglaterra — exclamou Mountolive.
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— Pediu-nos um visto. Devo concluir que ele se encontra desesperado? E quem é Semira? Por favor, conte-me. Clea sorriu novamente o seu sorriso meigo e interrompendo o trabalho entregou-lhe um cartão de esboços. Mountolive abriu-o voltando as páginas. — Tantos narizes! — exclamou surpreendido. — Sim, tantos narizes. Passei perto de três meses a viajar e a desenhar narizes para que ela escolhesse um; narizes de vivos e narizes de mortos. Narizes do Yacht-Club, de l'Étoile, dos frescos do Museu, de medalhas... Foi um trabalho ingrato reuni-los para fazer um estudo comparativo. Acabaram por escolher o nariz de um soldado num fresco de Tebas. Mountolive estava estupefacto. — Conte-me a história, Clea. — Promete não se mexer? — Prometo. — Muito bem. Conhece Amaril, não é verdade? Pois bem, esse homem encantador, tão romântico — esse amigo tão fiel e médico tão competente — desesperou-nos durante muitos anos. Dir-se-ia que era incapaz de se apaixonar. Era uma coisa que nos entristecia a todos, enormemente. Não ignora que, a despeito da nossa aparente dureza, nós, os alexandrinos, somos os seres mais sentimentais da terra e desejamos sinceramente que os nossos amigos gozem a vida. Não que ele fosse desgraçado, ele tinha quantas amantes desejasse, mas jamais uma amie no sentido particular que damos a este conceito. Ele lamentavase muitas vezes, não para provocar a nossa piedade ou para nos divertir, mas para se tranquilizar, para provar a si próprio que era normal, e que as mulheres o achavam simpático e sedutor. E depois, no ano passado, durante o carnaval, produziu-se o milagre: Amaril encontrou um dominó esguio. Apaixonaram-se loucamente, ele foi mesmo um pouco mais longe do que é costume com um amante tão prudente.
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Essa experiência transformou-o por completo, mas... a jovem criatura desapareceu, sempre mascarada, sem lhe querer confiar o seu nome. Duas bonitas mãos brancas e um anel de pedra amarela era tudo quanto Amaril tinha para se orientar — porque, a despeito da súbita paixão que os empolgara, ela recusara-se a retirar n máscara, e assim ele não conseguiu um único beijo, embora tivesse conseguido... outros favores. Meu Deus, lá começo a mexericar! Enfim, tanto pior. «A partir desse dia, Amaril tornou-se insuportável. O furor romântico, estou de acordo, ia-lhe muito bem — pois ele é um romântico até à ponta dos cabelos. Durante um ano inteiro percorreu a cidade procurando aquelas mãos do seu sonho; procurava-as por toda a parte, suplicava aos amigos que o ajudassem, esquecia-se do trabalho; por um pouco se tornou no escárnio de toda a cidade. A sua desgraça comovia-nos e divertia-nos ao mesmo tempo, mas que podíamos fazer? Como encontrar a beldade? Esperou então o carnaval deste ano com uma impaciência crescente porque ela tinha prometido voltar ao lugar onde se tinham encontrado pela primeira vez. E é agora que a coisa se torna ridícula. Eia apareceu e uma vez mais trocaram os mais ardentes juramentos; mas, desta vez, Amaril estava bem decidido a não perdê-la de vista — porque a rapariga insistia em não lhe dizer nem o nome nem onde morava. Desesperado e pronto para tudo, insistiu em acompanhála, o que muito alarmou a criatura. (Foi ele que me contou tudo isto: apareceu-me no dia seguinte, cambaleando como um homem embriagado, os cabelos desgrenhados, exaltado e apavorado ao mesmo tempo.) «A rapariga tentou várias vezes escapar-lhe mas ele não se deixou enganar e insistiu em acompanhá-la a casa numm desses velhos fiacres que ainda continuam a rolar, ela estava de cabeça perdida e quando atingiram o subúrbio leste da cidade, miserável e pouco frequentado, com vastas propriedades abandonadas e jardins incultos, ela foi pernas para que te quero. Amaril, a quem a paixão romântica tomara furioso, perseguiu a ninfa e alcançou-a no momento em que ela ia desaparecer num patiozinho obscuro.
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Incapaz de se conter, arrancou o capucho no momento em que a rapariga, finalmente desmascarada, se desfez em lágrimas, caída na soleira da porta. A descrição desta cena por Amaril tinha qualquer coisa de terrificante. Ela ali estava, encolhida, sacudida pelos soluços e emitindo uma espécie de relincho silvante, cobrindo a face com as mãos. A rapariga não tinha nariz. Durante um momento ele sentiu-se tomado de um terror incontido, porque não há ninguém mais supersticioso que Amaril, aliás conhecedor de todas as lendas a respeito dos vampiros que aparecem nas noites de carnaval. Mas fez o sinal da cruz e tocou na cabeça de alho que guardava no bolso — e ela não desapareceu. Então, o médico retomou os seus direitos e, arrastando-a para o pátio (ela desfalecia de medo e vergonha), examinou-a cuidadosamente. Disse-me que quase sentia o cérebro latejar enquanto tentava formular um diagnóstico o mais exacto possível, ao passo que o seu coração como que cessara de bater, sufocando-o... Num segundo, passou em revista todas as causas possíveis de tal enfermidade, repetindo com terror as palavras sífilis, lepra, lúpus, conservando entre os dedos aquele rostozinho alterado. Gritou-lhe então num assomo de cólera: «Como te chamas?», e ela balbuciou: «Semira... a virtuosa Semira.» Os nervos de Amaril estavam tão tensos que soltou uma descomunal gargalhada. «Mas eis o que sucede de mais estranho. Semira é filha de um velho completamente surdo. A família, de origem turca, tinha conhecido uma era de esplendor no tempo dos quedivas. Mas a falta de sorte encarniçou-se sobre ela; os filhos enlouqueceram e viviam agora na miséria e no esquecimento. O pai, meio louco também com a velhice, conservava a filha sequestrada naquela mansarda, sem nunca tirar o véu. Falava-se vagamente nos salões, uma vez por outra, de uma rapariga que tinha tomado o véu e que passava a vida em orações, que nunca tinha transposto o limiar da casa, que era uma mística; outros diziam-na surda-muda, e paralítica ainda por cima.
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Factos imprecisos e deformados de boca em boca. Mas se vagos rumores sobre a dita virtuosa Semira, ela era-nos desconhecida e a sua família tinha esquecido em absoluto. havia despertado nela a curiosidade do Mundo e, vestindo introduzira-se fraudulentamente nos bailes mais animados!
circulavam totalmente 0 carnaval um dominó,
«Mas esqueço-me de Amaril. O ruído tinha atraído um velho criado que apareceu no pátio com uma palmatória onde ardia uma vela. Amaril pediu para ser recebido pelo dono da casa. Já tinha tomado uma decisão. O velho dormia num vetusto leito de colunas, numa câmara cheia de excrementos de morcegos, no sótão. Semira parecia agora completamente inconsciente. Tomando a palmatória da mão do criado e segurando o braço de Semira, Amaril subiu até ao quarto do velho e abriu a porta com um pontapé. A cena deve ter tido por um instante um aspecto bem irreal aos olhos do pobre homem sonolento, e Amaril descreveu-a com a tocante chama do romantismo, comovendo-se de tal modo com a sua própria descrição que as lágrimas lhe inundaram os olhos. Deixava-se vencer pela magnificência da sua própria imaginação, creio bem; devo confessar que também eu, que tanto gosto dele, senti as lágrimas subirem-me aos olhos quando ele me contou como, depois de colocar a vela perto da cama, se ajoelhou com Semira, declarando: «Desejo casar com sua filha e restituí-la ao Mundo». Foi necessário um certo tempo antes que o terror e a irrealidade desta inopinada visita se dissipassem. Então o velho começou a tremer diante daquela elegante aparição ajoelhada junto do seu leito, segurando por um braço a sua filha sem nariz e propondo-lhe o impossível com tanto orgulho e paixão. «— Mas nariz». Amaril, espécie
ninguém a quer — protestou o velho —, veja, ela não tem Saiu da cama, na sua camisa de dormir suja, e aproximou-se de sempre ajoelhado, para estudá-lo como teria feito com uma entomológica.
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(Estou a citar as próprias palavras de Amaril.) Depois tocou-lhe com o pé nu para verificar se era de carne e osso, e repetiu: «Quem é o senhor, que deseja casar com uma mulher sem nariz?» Amaril respondeu: «— Sou um médico da Europa e posso dar-lhe um novo nariz», porque esta ideia, esta ideia fantástica, tinha-se insinuado lentamente no seu espírito. A estas palavras, Semira pôs-se a soluçar, voltando para ele o seu belo e horrível rosto; Amaril proferiu então, martelando bem as palavras: «Semira, quer ser minha mulher?» Ela apenas conseguiu articular uma resposta, tão estupefacta como o próprio pai. Amaril falou-lhes longamente e acreditou tê-los finalmente convencido. «Quando voltou porém no dia seguinte, o criado transmitiu-lhe uma mensagem onde o informavam de que Semira não estava visível e que aquilo que ele propunha era impossível. Mas Amaril não era homem para se deixar repelir tão facilmente e foi novamente forçar a porta do velho para o descompor. «Aqui está a fantasia em que ele se lançou. Porque Semira, por muito enamorada que esteja, não pode sair de casa enquanto ele não tiver cumprido a sua promessa. Amaril queria casar-se imediatamente mas o velho é desconfiado e quer primeiro assegurar-se da recuperação do nariz. Mas que nariz? Baltasar foi chamado para uma conferência, e os dois juntos examinaram Semira e persuadiram-se de que a enfermidade não era devida nem à lepra nem à sífilis, mas a uma forma rara de lúpus, uma tuberculose de pele muito pouco comum mas de que se tinham assinalado alguns casos na região de Damieta. Não tinha sido tratada e no fim de poucos anos o nariz fora completamente roído. Devo dizer que é horrível: uma simples fenda, como os ouvidos dos peixes. Porque eu também participei das deliberações dos dois doutores e fui regularmente a casa de Semira para convencê-la e educá-la naquela mansão sombria onde a rapariga passou quase toda a sua vida. Ela tem uns magníficos olhos negros de odalisca, uma bonita boca e um queixo bem modelado; e a estragar tudo aqueles dois buracos!
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É demasiado injusto. Foi preciso muito tempo para convencê-la de que a cirurgia podia reparar a sua desgraça. E também aí Amaril deu provas de extraordinário bom senso, conseguindo interessá-la na restauração do rosto, levando-a a vencer o desgosto que a sua própria imagem lhe produzia e deixando-a escolher o nariz que lhe convinha, discutindo com ela todo o projecto. Deixou-a escolher um nariz como quem deixa à amante a escolha de uma jóia rara no Pierantoni. E era isso precisamente o mais hábil comportamento, porque ela presentemente começa a esquecer a sua vergonha e quase sente orgulho por ter a liberdade de escolher esse presente inestimável — esse elemento, o mais precioso do rosto de uma mulher, que desperta todos os olhares e altera todas as significações, e sem o qual os mais belos olhos, os mais perfeitos dentes e os mais sedosos cabelos não passam de tesouros inúteis. «Mas surgiram depois outras dificuldades, pois a restauração de um nariz requer uma técnica cirúrgica apurada e, embora seja cirurgião, Amaril não se quer expor a cometer o menor erro que possa comprometer o resultado da operação. É que, compreende, ele vai de certo modo criar uma mulher, a partir da sua imaginação, uma face que corresponda a todos os desejos de um marido; uma possibilidade que até hoje só foi concedida a Pigmalião! Amaril trabalha neste projecto como se toda a sua vida dependesse dele — e creio que se fracassasse morreria. «A operação deve ser feita em diversos escalões e levará muito tempo antes de estar completamente concluída. Ouvi-os discutila tantas vezes e com tantos pormenores que quase me sinto capaz de realizá-la. Para começar corta-se um pedaço da cartilagem costal, aqui, onde a costela se articula com o externo, e enxerta-se. Depois, corta-se um triângulo de pele na face e cobre-se com ela o nariz (e aquilo a que Baltasar chama a técnica italiana); mas debatem ainda a questão de saber se devem levantar antecipadamente um fragmento de pele e carne da face interna da coxa...
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Pode imaginar como tudo isso pode ser apaixonante para um pintor e para um escultor. Mas Amaril quer fazer um estágio prévio em Inglaterra a fim de aperfeiçoar a sua técnica operatória junto dos melhores especialistas. Foi para isso que lhe pediu um visto. Não sabemos quanto tempo ele vai estar ausente, mas embarca no mesmo estado de espírito de um cavaleiro que parte à conquista do Graal. Porque tem a intenção de efectuar ele próprio a operação. Semira espera-o aqui e eu prometi ir visitá-la para distraí-la, o que não é difícil porque tudo o que se passa fora dos quatro muros da sua casa lhe parece provir de um mundo estranho, cruel e fantástico. À parte o pouco que conseguiu entrever nas épocas de carnaval, praticamente nada conhece da nossa maneira de viver. Para ela, Alexandria é um país de lenda, e as histórias mais banais maravilham-na como se fossem contos de fadas. Levará muito tempo antes de ela conhecer bem a cidade, com os seus contornos duros e insensíveis e os seus habitantes constantemente na busca do prazer. Mas, afinal, está a mexer-se!» Mountolive desculpou-se e disse: — Foi a palavra «insensíveis» que me surpreendeu, porque eu estava justamente a pensar até que ponto Alexandria parece cheia de sensibilidade aos olhos de um estrangeiro. — Amaril é uma excepção. Há poucas pessoas tão generosas e desinteressadas como ele, acredite-me. Quanto a Semira... não sei ainda o que o futuro lhe reserva. Clea suspirou e acendeu um cigarro. — Esperemos — concluiu ela tranquilamente.
VII
— Já lhe pedi mais de cem vezes que se não utilize da minha navalha de barba — exclamou Pombal numa voz lastimosa — e lá recomeça você. E contudo não ignora que eu tenho medo da sífilis. Nunca se sabe quando uma espinha pode começar a supurar quando recebe um corte. — Meu caro colega — respondeu Pursewarden entre os dentes (estava a rapar o lábio), e com uma careta que pretendia simular a dignidade ofendida — que quer dizer com isso? Eu sou inglês. Hein? Interrompeu a operação e, marcando o ritmo com a navalha de Pombal, declamou em tom solene: — Os ingleses, que aperfeiçoaram a viatura automóvel, estão actualmente a afinar o casamento sem sexo. Dentro de pouco tempo ninguém poderá ir para a cama sem o prévio acordo do seu sindicato. — Você talvez tenha o sangue infectado — insistiu o amigo, praguejando contra a liga que tinha acabado de quebrar-se quando pretendia fixá-la à peúga; com um pé apoiado no bidé expunha a barriga da perna muito gorda. — Afinal de contas nunca se sabe. — Eu sou um escritor — disse Pursewarden com um ar de dignidade cada vez mais ofendida. — Por consequência sei. Não existe sangue nas minhas veias. Só plasma — disse ele com ar sombrio, secando a ponta da orelha. — Aí tem o que me corre nas veias.
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De outra maneira como podia eu fazer tudo o que faço? Pense bem. No Spectator sou Ubique, no New Statesman sou Mens Sana. No Daily Worker assino Corpore Sano. Sou ainda Paralysis Agitans no Times e Ejaculatio Praecox no New Verse. Sou também...— Mas a imaginação faltou-lhe. — Mas eu nunca o vi trabalhar — observou Pombal. — Trabalho pouco e ganho ainda menos. Se o meu trabalho me produzisse mais de cem libras por ano, não me veria obrigado a procurar refúgio na incompreensão — disse ele soltando um pequeno soluço. — Entendido. Você esteve a beber. Vi a garrafa na mesa do corredor quando entrei. Não acha um pouco cedo? — Eu queria ser completamente honesto. Afinal de contas o vinho é seu. Não queria esconder-lhe nada. Sim, bebi um ou dois copinhos. — Está a celebrar qualquer coisa? — Sim. Esta noite, meu caro Georges, vou fazer uma coisa bastante indigna de mim. Derrotei um perigoso inimigo e avancei as minhas posições através de uma larga brecha. No nosso serviço considera-se geralmente que isso merece um pequeno cântico de vitória. Vou oferecer a mim mesmo um jantar de homenagem. — Quem paga a conta? — Sou eu quem escolhe os petiscos, sou eu quem os come e serei eu quem paga a conta. — Bem, não é original. Pursewarden dirigiu um sorriso exagerado ao espelho. — Pelo contrário — disse. — Uma noite tranquila, eis o que me está a calhar. Comporei um novo fragmento da minha autobiografia diante das boas ostras do Diamantakis. — Que título vai dar a esse capítulo? — Não sei ainda. Quer ouvir o começo? «Quando encontrei Henry James num bordel argelino, ele afagava duas huris nuas que se tinham encavalitado sobre os seus joelhos».
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— Henry James era invertido, foi o que sempre pensei. Pursewarden escancarou a boca e bradou: — Por amor de Deus, nada de crítica à francesa. Pombal passou um pente pelos cabelos negros com uma paciência laboriosa e consultou o relógio. — Merde! — exclamou. — Lá volto a chegar «retardado» outra vez. Pursewarden soltou um gritinho de alegria. Cada um deles se aventurava livremente na língua materna do outro e divertiam-se como garotos de escola com os erros que cometiam. Cada deslize era saudado por vivas que se transformavam em gritos de guerra. Pursewarden esboçou um passo de dança debaixo da torrente fumegante do chuveiro e alvitrou: — E se ficássemos a gozar uma pequena émission nocturne em «vagas» curtas? (Fora assim que na véspera Pombal se referira a um programa de rádio e Pursewarden não o esquecera.) — Não foi isso que eu disse — protestou Pombal. — Ai não! — Eu não disse «vagas» curtas mas «ondulações» curtas. — Ainda pior. Esse pessoal do Quai d'Orsay, francamente! Não digo que o meu francês seja dos mais perfeitos, mas nunca cometi um... — Isso, isso, falemos das asneiras que você diz... ah! ah! Pursewarden começou a dançar a dança do ventre debaixo do chuveiro e a bradar: — Emissão nocturna em ondulações curtas. Pombal lançou-lhe uma toalha enrolada e retirou-se antes de o amigo ter tempo de exercer represálias eficazes. Recomeçaram as hostilidades quando o francês acabava de compor a sua toilette diante do espelho. — Tenciona passar na Étoile? — Certamente — respondeu Pursewarden. — Tenciono macabro com a amiguinha de Darley ou com Sveva.
dançar
um
fox
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Vários foxes macabros, até. E depois, um pouco mais tarde, como um explorador a quem se esgotaram as provisões, levarei uma delas ao Monte dos Abutres. Questão de afiar as minhas garras sobre as caminhas tenras — soltando grasnidos roucos... Pombal estremeceu. — Monstro! — gritou. — Vou-me embora... Adeus! — Adeus! Toujours la maladresse! — Toujours! Era o seu grito de guerra. Uma vez só, Pursewarden começou a assobiar enquanto se secava numa toalha esfarrapada e concluía a sua toilette. Os caprichos da instalação sanitária do hotel Monte dos Abutres obrigavam-no muitas vezes a atravessar o largo para ir tomar um bom banho em casa de Pombal. Muitas vezes também, quando Pombal partia de licença, arrendava-lhe o apartamento que partilhava, não de muito boa mente, com Darley: este último alojava-se, quase às escondidas, no pequeno reduto ao fundo do corredor. Fazia-lhe bem escapar-se de tempos, a tempos à solidão do seu quarto de hotel e ao maço de papéis que proliferava em torno do seu próximo romance. Escapar — sempre escapar... O desejo de um escritor de estar a sós consigo próprio — «o escritor, o mais solitário de todos os animais humanos». «Cito o grande Pursewarden», disse ele à sua imagem enquanto ajustava a gravata diante do espelho. Nessa noite jantaria tranquilamente, egoisticamente só. Tinha recusado delicadamente um tímido convite de Errol para jantar, na certeza de que se seguiria um desses lúgubres e insípidos serões em que se joga o bridge. «Senhor!», exclamara certo dia Pombal, «essa maneira que os seus compatriotas têm de matar o tempo! Esses salões que eles infectam com os seus sentimentos de culpa! Arrisque-se uma simples ideia e toda a gente pára, de garfo no ar, calada, confundida como se acabasse de escutar uma obscenidade... Faço o melhor que posso mas acabo sempre por meter a mão no prato. Então, automaticamente, no dia seguinte, acabo sempre por mandar flores à dona da casa...
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Que gente, os ingleses! Vocês são um enigma para nós, os franceses, porque a vossa maneira de viver é tão repelente!» Pobre David Mountolive! Pursewarden pensava nele com compaixão e afecto. Que preço devia pagar o diplomata de carreira para colher os frutos do poder! «Os seus sonhos devem estar para sempre envenenados com a recordação de todas as imbecilidades suportadas — deliberadamente suportadas em nome do que de mais sagrado existe na profissão: o desejo de agradar, a vontade de encantar, que engendra a influência. Enfim. É preciso um pouco de tudo para desfazer um mundo!» Quando se penteava descobriu que estava a pensar em Maskelyne, que nesse momento devia encontrar-se no expresso de Jerusalém, hirto, atravessando as dunas de areia e os laranjais e fumando com indiferença o seu cachimbo; numa carruagem-forno, o coiro assaltado pelas moscas e o coração empedernido por esse orgulho corporativo de uma tradição moribunda... E moribunda porquê? Maskelyne ruminava a desfeita, a ignomínia de um novo posto que lhe proporcionava simultaneamente a promoção. O golpe de misericórdia cruel. (Pensando nisto sentiu um remorso de consciência porque não subestimava o carácter desinteressado do militar.) Estreito, dissecado, azedo; mas se como homem o condenava, prezava-o bastante como escritor. (Tinha tomado bastantes notas a seu respeito, facto que teria surpreendido Maskelyne se este soubesse.) A sua forma de pegar no cachimbo, de erguer o nariz, as suas reticências... Pensava poder utilizar isso qualquer dia. «Os seres humanos reais tornam-se em simples prolongamentos de humores capazes de servir, e isso isola-nos um pouco deles? Sim. Porque a observação divorcia o sujeito observador do objecto observado? Sim. É por isso que é mais difícil dar uma resposta absoluta, encontrar as causas profundas dos laços, das afeições, do amor, e assim por diante. Mas este problema não interessa unicamente ao escritor: é um problema universal.
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Todo o crescimento implica separação no interesse de uma nova união, melhor, mais lúcida... Bah!» Podia consolar-se da sua furtiva simpatia por Maskelyne recordando-se de algumas atitudes absurdas do homem. A sua arrogância, por exemplo! «Meu caro, quando você tiver estado tanto tempo como eu nos serviços secretos começará a saber o que é a intuição. Farejam-se as coisas a um quilómetro de distância». A ideia de que uma pessoa como Maskelyne pudesse possuir uma tal intuição era particularmente divertida. Pursevvarden soltou uma gargalhadinha. Saiu bem disposto para a rua que o crepúsculo já começava a invadir, contando o dinheiro e sorrindo. Era a melhor hora do dia em Alexandria: as ruas tomavam lentamente a coloração azul metálico do papel químico, mas continuavam a libertar o calor louro do sol. Na cidade ainda não se tinham acendido todas as luzes, e grandes fragmentos do crepúsculo malva flutuavam aqui e além, esbatendo os contornos de todas as coisas, esfumando os navios e os seres humanos em linhas confusas. Os cafés sonolentos despertavam lentamente nos acordes piegas dos bandolins e no rangido dos pneus sobreaquecidos pelo asfalto das ruas, onde começavam a pulular os vestidos brancos e os cofiós vermelhos. Um odor penetrante de húmus e de urina escapavase dos vasos de flores dependurados nas janelas. Os grandes automóveis partiam da Bolsa num concerto de buzinas tal como um bando de aves de uma espécie particular levantando voo. Sentir-se semicego pelos revérberos do crepúsculo, caminhar despreocupadamente, misturar-se com a multidão, o espírito em paz, naquele ar seco e vivificante... eram os raros momentos de felicidade que o acaso lhe concedia. Os passeios conservavam ainda todo o seu calor, como as melancias abertas antes da noite; um calor húmido que se insinua lentamente através das solas dos sapatos. As brisas vindas do mar iam refrescar a cidade alta em rajadas que se sentiam apenas espasmodicamente.
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Uma pessoa movia-se aqui no ar seco, carregado de electricidade estática (o poente crepitava nos cabelos), como se nadasse num tépido mar estival percorrido por pequenas correntes frias. Pursewarden dirigiu-se calmamente para Baudrot, atravessando ilhas flutuantes de aromas — uma mulher que passa numa nuvem de perfume, relentos de jasmim escapando-se do orifício negro de um respiradouro — sabendo que dentro de pouco tempo o ar húmido do mar os absorveria a todos. Era a hora ideal para tomar um aperitivo. Os extensos balcões de madeira onde se alinhavam os vasos de plantas que exalavam o odor crepuscular de terra regada recentemente estavam agora todos ocupados por criaturas humanas, semifundidas pela miragem em fugitivas caricaturas de gestos imediatamente desfeitos. Os toldos, raiados, multicolores, palpitavam debilmente sobre os véus azuis que se agitavam, inquietos, nas ruelas progressivamente invadidas pela sombra, estremecendo como os sentidos dos amantes que por ali rondavam, esperando a amada, os seus gestos cintilando como borboletas cheias de todas as promessas nocturnas de Alexandria. Em breve a. bruma se dissiparia e as luzes abrasariam as pratas e as toalhas brancas, os brincos e as jóias rutilantes, as cabeleiras lisas e luzentes e os sorrisos tomados mais radiantes pela sua natureza obscura — peles morenas marcadas pelo brilho imaculado de um sorriso. Depois os automóveis regressavam lentamente da cidade alta com a sua elegante e frágil carga de foliões... Era o melhor momento do dia. Encostado a uma grade de madeira, anónimo, contemplava com um olhar distraído o espectáculo da rua. Mesmo as silhuetas da mesa vizinha não tinham rosto: simples contornos de seres humanos. As vozes chegavam-lhe através da bruma malva da tarde, vozes veladas de alexandrinos recitando as cotações da Bolsa ou poemas de amor em árabe... quem sabe? Como era bom um cálice de Dubonnet com um fiapo de limão, carregado de recordações concretas de uma Europa há muito abandonada, mas que continuava contudo a viver, inesquecida, sob a superfície dessa vida insubstancial na reles capital de Alexandre!
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E enquanto sorvia o seu aperitivo pensava com inveja em Pombal e na sua fazenda da Normandia, para onde o amigo esperava retirar-se um dia. Como devia ser reconfortante uma pessoa sentir-se ligada ao seu país, viver aqui com a certeza do regresso! Alas o seu coração começou a palpitar diante de semelhante pensamento; e sentiu simultaneamente tristeza por ter de ser assim. (Ela dizia: «Se eu leio os livros muito devagar não é porque não seja capaz de utilizar o Braille com desembaraço, mas simplesmente porque desejo abandonarme ao poder de cada palavra, mesmo quando exprimem grosseria ou fraqueza, para tentar atingir o núcleo da ideia».) O núcleo! Ali estava uma palavra que assobiava aos ouvidos como uma bala que por um pouco não nos acertou. Pursewarden via-a — rosto de uma brancura de mármore de deusa marinha, cabelos flutuando sobre as espáduas, os olhos voltados para o parque onde os ramos e as folhas mortas de Outono fumegavam ardendo — tal uma Medusa no meio das neves, escondida no seu xaile escocês. Os cegos passavam o dia inteiro nessa obscura biblioteca subterrânea com os seus charcos de luz e sombra, os dedos percorrendo como formigas as superfícies perfuradas dos livros que uma máquina tinha gravado para eles. «Desejava tanto compreender mas não conseguia.») Bem, é aí que se sente um suor frio; é aí que se dá um giro de trezentos e sessenta graus, uma Terra humana, para afundar, gemendo, o rosto no travesseiro! (Agora acendiam-se as luzes e os véus de bruma derivavam lentamente para as alturas da noite onde se evaporavam. As faces humanas...) Pursewarden analisava-as intensamente, quase lubricamente, como para surpreender as suas intenções mais secretas, os fins fundamentais que as impeliam a vir errar por ali, como pirilampos, a atravessar os raios de luz amarela; um dedo cintilante de anéis; o brilho de uma orelha; um dente de ouro cravado no meio de um sorriso apaixonado. «Rapaz, kam wahed, outro, se faz favor!»
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E os pensamentos semiformulados começaram de novo a flutuar-lhe no espírito (inocência expurgada pela obscuridade e pelo álcool): pensamentos que se podiam vestir mais tarde, mascarados de versos... Visitantes vindos de outras vidas... Sim, estaria mais um ano — um ano ainda, por amizade a Mountolive. E faria o possível para que fosse um bom ano. Depois pediria a transferência — mas afastou tal pensamento porque podia ser afinal uma mudança catastrófica. Ceilão? Santos? Havia qualquer coisa naquele Egipto de imensidões sufocantes, de vazios ardentes, com os seus monumentos de granito aos faraós mortos, necrópoles tornadas cidades, que o sufocava. Não era um lugar para recordações — e a realidade seca e estridente do mundo diurno ultrapassava aquilo que um ser humano podia suportar. Feridas abertas, sexo, perfumes e dinheiro. Apregoavam-se os jornais da tarde num calão confuso, à base do grego, do árabe e do francês. Os ardinas percorriam as ruas, chiando, como mensageiros do outro mundo, anunciando... á queda do Império Bizantino? As suas túnicas brancas eram apertadas nos joelhos. Gritavam numa voz lastimosa como se agonizassem de fome. Comprou um jornal para ler durante a refeição. Aí estava uma pequena satisfação que não dispensava. Depois deambulou tranquilamente dos cafés, passou diante de uma céu), de uma biblioteca, de um repousou outrora o corpo de arrastar pelo declive das ruas correntes frias eram um suplício
ao longo das arcadas, entrou na rua mesquita malva (como se flutuasse no templo (com janelas gradeadas: «Aqui Alexandre o Grande»), e deixou-se sinuosas que iam dar ao porto. As para as faces.
Subitamente foi de encontro a uma silhueta abafada num impermeável e reconheceu, demasiado tarde, Darley. Trocaram algumas graçolas confusas, paralisados por uma timidez comum. A delicadeza colava-os um ao outro, por assim dizer, prendia-os à ruela como se esta se tivesse transformado numa fita de papel mata-moscas.
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Por fim, Darley conseguiu libertar-se do encanto e dizer voltando-se para a rua obscura: «Bem, não quero tirar-lhe mais tempo. Estou atrasado. Tenho de ir compor um pouco a minha indumentária». Pursewarden ficou a vê-lo afastar-se, surpreendido pela sua própria confusão, e pensando de repente no estado em que deixara a casa de banho: as toalhas ensopadas e a gordura acinzentada do sabão da barba no lavatório... Pobre Darley! Mas por que diabo sucedia que ele, embora gostasse do outro e o respeitasse, se sentia sempre tão pouco à vontade na sua presença? Tomava com ele um tom cordial inusitado, por pura timidez, que devia ter a aparência de um desprezo cruel. O tom desabrido e cordial de um médico de província que quer reconfortar um doente... Merda! Era preciso convidá-lo para vir um dia tomar um copo a sós, no seu quarto de hotel, a fim de tentar conhecê-lo melhor. E contudo tentara aprofundá-lo durante certos passeios que tinham feito nesse Inverno. Afastou o mau humor pensando: «Mas afinal o pobre diabo ainda se interessa pela literatura». Recuperou o bom humor quando chegou à pequena taberna grega que servia ostras, à beira-mar; as paredes estavam ornamentadas de canastras e barris de todos os formatos e das cozinhas escapavamse pesadas lufadas de fumaça e de odores de fritadas de peixe miúdo e de polvo. Sentou-se numa mesinha, entre os marujos descompostos, para saborear as ostras e ler o jornal, enquanto a noite se instalava tranquilamente à sua volta, sem que nenhum pensamento, nenhuma necessidade de participar numa conversa e nas suas inevitáveis banalidades o viesse perturbar. Mais tarde poderia voltar outra vez a mente para o livro que estava a escrever, tão lentamente, com tanto sofrimento, nos momentos secretos de uma liberdade por tão alto preço disputada ao vazio da sua vida profissional, disputada mesmo aos acontecimentos que a sua preguiça, o seu gregarismo, teciam em torno dele. («Vamos tomar um copo?» — «Porque não!» Quantas noites úteis tinha desperdiçado deste modo?)
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E os jornais? Interessava-se especialmente pelos Faits Divers — essas pequenas singularidades do comportamento humano que reflectiam a natureza verdadeira do homem, cuja vida se processava bem abaixo das mais verbosas abstracções, procurando a todo o preço o cómico e o miraculoso nas existências insípidas, insensíveis, submetidas à tirania de uma razão chata e seca. Passando rapidamente por um grande cabeçalho que lhe competia interpretar no dia seguinte para Mountolive (A União Árabe lança um novo apelo), preferiu deleitar-se com as eternas fraquezas humanas nos artigos intitulados: Um grande chefe religioso fechado num ascensor ou Um louco faz saltar a banca em Monte Cario, que reflectiam o desatino do destino e dos acontecimentos. Mais tarde, sob a influência dos petiscos do Coin de France deixou que a noite passasse por ele, pacífica, deliciosa, como quem se abandona às doçuras de um cachimbo de ópio. O mundo interior desenrolava os seus carretéis, distendia-se, corria num rio de pensamentos que piscavam por intermitências, como sinais Morse, na sua consciência. Era como se ele se tivesse tornado num verdadeiro aparelho receptor, naqueles raros momentos em que não sofria interferências. Às dez horas anotou nas costas de um cheque algumas frases gnómicas destinadas ao seu próximo livro. Assim: «Dez horas. Nenhum Ataque de hipogrifo esta semana. Algumas réplicas para o Velho Parr?» E por baixo frases inacabadas, que condensando-se no espírito como o orvalho podiam mais tarde ser polidas e refundidas na trama dos factos e dos gestos das suas personagens. a) A cada passo dado do desconhecido para o conhecido mais se adensa o mistério. b) Aqui estou eu, caminhando sobre duas pernas, dotado de um nome — toda a história intelectual da Europa de Rabelais a Sade.
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c) O homem será feliz quando os seus deuses forem perfeitos. d) Até o santo morre com todas as suas imperfeições na cabeça. é) Uma criatura capaz de se colocar acima de qualquer censura divina e abaixo de qualquer desprezo humano. f) Possuir um coração humano: doença incurável. g) Todos os grandes livros são incursões na piedade. h) O sonho do milho amarelo é o caminho de todo o homem. Mais tarde, estes obscuros pensamentos integrar-se-iam todos na personagem do Velho Parr, o Tiresias sensualista do seu romance, embora, aparecidos assim ao acaso, nada indicasse a ordem pela qual seriam finalmente colocados. Bocejou. Sentia uma agradável embriaguez depois do segundo copo de Armagnac. Para além dos toldos cinzentos, a cidade tinha tomado uma vez mais a sua verdadeira pigmentação nocturna. As faces negras fundiam-se no escuro; as roupas que iam e vinham pareciam vazias, como no filme do Homem Invisível. Cofiós vermelhos assentes em rostos ausentes, sombras da sombra. Assobiando, pagou a conta e desceu bem disposto em direcção à Comiche, e parou no local onde, no ângulo de uma ruela, se balançava a lâmpada verde do Étoile. Mergulhou no gargalo da escadaria exígua e emergiu na cave sufocante, semiencegueirado pela luz brutal das lâmpadas de néon. Abandonou o impermeável aos cuidados de Zoltan. Excepcionalmente não sofria aquele sentimentozinho de terror que lhe dava sempre a lembrança das contas por pagar — tinha conseguido um adiantamento substancial sobre o seu novo salário. «Há duas raparigas novas, chegadinhas de fresco da Hungria», segredou-lhe um criado baixando-se junto dele. Passou a língua pelos lábios e sorriu mostrando os dentes. Dir-se-ia que tinha sido frito em azeite a fogo brando até a pele tomar uma bela coloração acastanhada. A sala estava cheia e as variedades aproximavam-se do fim.
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Pursewarden sentiu-se satisfeito por não avistar nenhum conhecido. As luzes baixaram, cambiaram para azul, apagaram-se... e no meio do ribombar de um tambor acompanhado de frémitos de tamborins apareceu a última dançarina, no cone radiante e prateado de um projector. As lantejoulas capturaram a luz e inflamaram-se como um navio viking e depois ela desapareceu, num estremecimento fulgurante, a caminho do corredor carregado de odores onde se encontravam os camarins. Pursewarden tivera poucas oportunidades de falar com Melissa depois do seu primeiro encontro, havia um mês, e as visitas da bailarina ao apartamento de Pombal raramente coincidiam com as suas. Darley, por sua parte, parecia pretender ocultar as suas relações com a rapariga; seria ciúme ou seria por sentir vergonha dela? Quem o podia afirmar? Sorriam e cumprimentavam-se quando se cruzavam na rua e nada mais. Pôs-se a observá-la meditativamente enquanto sorvia o seu whisky, e lentamente sentiu brilhar e arder a luz dentro dele, e os seus pés responderem ao ritmo melancólico e indolente do jazz negro. Gostava de dançar, gostava do movimento confortável dos pés ao ritmo de uma medida a quatro tempos, o ritmo que embebia o soalho debaixo dos dedos. Iria convidá-la? Mas era demasiado bom dançarino para se permitir audácias e, com Melissa nos braços, contentava-se em deixar-se ir docemente, ligeiramente, em redor da pista, trauteando para si próprio o Jamais de la vie. Ela sorria-lhe e parecia feliz por encontrar um rosto familiar do mundo exterior. Pursewarden sentia-lhe a mãozinha estreita e o pulso fino apoiados sobre a espádua, os dedos um pouco crispados sobre o tecido do casaco, como a pata de um passarinho. «Você está em forma?», perguntou ela. «Sim, estou em forma», respondeu ele. Trocaram depois gracejos insignificantes, adequados ao lugar e ao momento. Ele sentia-se atraído e interessado pelo francês execrável da rapada. Um pouco mais tarde ela veio sentar-se à sua mesa e Pursewarden ofereceu-lhe champanhe — a tarifa imposta pela casa para as conversas particulares.
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Nessa noite Melissa estava de serviço e cada dança tinha de ser paga; acolhia pois aquele intervalo com gratidão porque sentia dores nos pés. Falava gravemente com o queixo apoiado na mão e, contemplando-a, Pursewarden descobria nela uma espécie de beleza estiolada. Tinha bonitos olhos que olhavam lealmente e onde brilhavam pequenos lampejos de timidez revelando porventura as feridas que a vida inflige a uma honestidade demasiado grande. Mas tinha o ar doente e estava manifestamente mal. Pursewarden pensou na frase «As doces flores da tísica». O whisky tinha exaltado ainda mais o seu bom humor um pouco irónico, e alguns gracejos seus foram compensados por uma gargalhada franca que ele considerou deliciosa. Começava a entrever vagamente o que devia atrair Darley: o encanto agarotado, a finura e a simplicidade; a resposta que o árabe comum está sempre apto a oferecer a um mundo cruel. Dançando novamente com ela, perguntou-lhe, mas com uma ironia velada pela embriaguez: «Melissa, comment vous defendez vous contre la solitude?» A resposta foi-lhe direita ao coração, sem ele compreender porquê. Melissa voltou para ele os olhos carregados de toda a sinceridade da experiência e respondeu docemente: «Monsieur, je suis devenue la solitude même. A melancolia do seu rosto sorridente não continha a menor parcela de amargura. Ela fez um gestozinho, como para mostrar um universo inteiro e disse: «Repare», designando os clientes, palhaços de carnes roídas por desejos desprezíveis, rondando em tomo deles naquela cave sem arejamento. Ele compreendeu e sentiu remorsos por nunca a ter tomado a sério. Sentia-se furioso com o seu egoísmo. Sem premeditação apoiou a face no rosto da rapariga, afectuosamente, como teria feito um irmão mais velho. Ela reagiu com a maior naturalidade! Fundiu-se uma barreira entre eles e puderam conversar livremente, como velhos amigos. À medida que a noite avançava apercebeu-se que dançava quase sempre com ela. Melissa parecia acolher os seus galanteios com prazer, embora ele agora dançasse calado, feliz e descontraído.
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Não tentou nenhum gesto de intimidade e contudo sentia que ela o tinha aceitado. Depois, cerca da meia noite chegou um gordo e manifestamente rico banqueiro sírio que começou a disputar-lhe seriamente a companhia de Melissa. Pursewarden sentiu com grande surpresa crescer nele uma inquietação vizinha do ciúme do proprietário ameaçado. A descoberta dos seus sentimentos levou-o a praguejar entre dentes! Instalou-se então numa mesa junto da pista para poder ser o primeiro a alcançá-la quando a orquestra começasse a tocar. Melissa parecia indiferente a esta competição onde ela servia de parada. Estava cansada. Por fim, Pursewarden perguntou-lhe: — Que tenciona fazer quando sair daqui? Vai ter com Darley? Ela sorriu ouvindo pronunciar aquele nome, mas sacudiu a cabeça com um ar cansado. — Tenho necessidade de dinheiro para... não, nada — disse ela docemente; depois, bruscamente, como se receasse que ele não a acreditasse, acrescentou: — ...para o meu casaco de Inverno. Temos tão pouco dinheiro. E nesta profissão é preciso vestir bem. Compreende? Pursewarden disse: — Mas não vai com esse horrível sírio? O dinheiro! Pensou naquilo com um aperto no coração. Melissa olhava-o com um ar de divertida resignação e disse a meia voz, simplesmente e sem qualquer traço de vergonha: — Ele ofereceu-me quinhentas piastras para acompanhá-lo. Por neguei, mas, mais tarde... creio que não terei outro remédio.
ora
Encolheu os ombros. Pursewarden lançou tranquilamente uma praga e disse: — Não! Venha dinheiro.
comigo.
Dou-lhe
mil
piastras,
se
é
uma
questão
Os olhos da rapariga arregalaram-se ouvindo falar em tal soma.
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de
Pursewarden via-a contar mentalmente todo aquele dinheiro, moeda a moeda, fazendo-as tilintar entre os dedos, repartindo-as pela comida, pelo arrendamento do quarto, pelas roupas... — Estou a falar a sério — insistiu ele secamente. Depois acrescentou, quase sem interrupção: — E Darley, está ao corrente? — Oh, sim — disse ela com simplicidade. — Sabe, ele é muito gentil. A nossa vida não é cor-de-rosa, mas ele conhece-me. Tem confiança em mim. Nunca me faz perguntas, nunca procura conhecer os pormenores da minha vida. Ele sabe que um dia, quando tivermos dinheiro suficiente para sair de cá, eu abandonarei toda esta vida. Para nós não tem importância. Aquilo soava estranhamente, quase como uma abominável blasfémia na boca de uma criança. Pursewarden começou a rir. — Vamo-nos embora — disse ele bruscamente; sentia agora um desejo louco de possuí-la, de abraçá-la e aniquilá-la sob os beijos repugnantes de uma falsa piedade. — Vamo-nos embora, Melissa querida. Mas viu-a estremecer e empalidecer ouvindo esta palavra e compreendeu que tinha cometido um erro, pois o seu amor por Darley devia sobrelevar toda e qualquer transacção sexual. Ele próprio se sentia contrafeito mas era incapaz de agir de outra maneira. — Escute — disse ele —, dentro de poucas semanas darei a Darley o dinheiro suficiente para que ele possa levá-la daqui para fora. Ela parecia não o ouvir. — Vou buscar o meu casaco — disse Melissa numa vozinha maquinal — e encontro-me consigo no corredor. Ela levantou-se para ir discutir a saída com o gerente e Pursewarden ficou à espera, nas garras da impaciência. Tinha encontrado o meio perfeito de curar os remorsos de uma consciência puritana que se ocultavam sob a superfície leviana de uma vida amoral.
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Algumas semanas antes tinha recebido, por intermédio de Nessim, uma carta de Leila redigida nestes termos: «Caro Senhor Pursewarden: «Escrevo-lhe para lhe pedir um serviço que talvez lhe pareça um pouco insólito. Um tio, a quem eu muito amava, morreu recentemente. Amava apaixonadamente a Inglaterra e a língua inglesa, que conhecia porventura melhor que a sua própria; deixou no seu testamento instruções para que no seu túmulo fosse inscrito um epitáfio em inglês, em prosa ou em verso e, se possível, original. Desejo honrar a sua memória e respeitar as suas derradeiras vontades e por esse motivo lhe escrevo para lhe perguntar se está disposto a encarregarse de redigir o epitáfio. Era isto comum com os poetas da antiga China, embora actualmente tal prática tenha caído em desuso. Teria muito prazer em pagar-lhe a soma de quinhentas libras por esse serviço». O epitáfio tinha sido redigido e o dinheiro depositado no banco, mas ele não se sentira com coragem para tocar naquela soma. Impedia-o uma espécie de temor supersticioso. Nunca tinha escrito poesia de encomenda e muito menos qualquer epitáfio. Qualquer coisa de maléfico parecia ligar-se a uma soma tão importante e tinha-a deixado no banco, intacta. E agora, bruscamente, sentia a convicção de que devia oferecê-la a Darley! Isso remiria de certo modo a sua falta de calor para com ele, a sua pouca estima. Ela acompanhou-o ao hotel, apertada contra ele como uma espada dentro da bainha — com aquele andar tão típico das profissionais da rua. Trocaram poucas palavras. A cidade estava deserta. O velho ascensor sebáceo, com os seus bancos bordados de galões usados e os seus espelhos com enquadramentos de renda amarelada e apodrecida, levou-os lentamente, aos safanões, numa obscuridade atapetada pelas teias de aranha.
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Pouco faltava, pensava ele, para cair no alçapão, os pés para baixo, os braços entrelaçados noutros braços, os lábios colados noutros lábios, até ao momento em que havia de sentir o nó corredio apertarlhe o pescoço e uma explosão de estrelas por detrás das suas pálpebras cerradas. Adiamento, esquecimento, que outra coisa se podia esperar do corpo de uma mulher desconhecida? Diante da porta do quarto beijou-a lenta e deliberadamente, apoiando a boca no interior dos lábios cheios e macios da rapariga até que os dentes se chocaram. Ela não correspondeu ao beijo mas não procurou evitá-lo e apresentou-lhe o seu rostozinho sem expressão (sem olhar na penumbra) como uma vidraça gelada. Pursewarden não sentia nela nenhuma vibração, nada além de um cansaço profundo e devorador. As mãos dela estavam frias. Pursewarden tomou-as entre as dele e uma melancolia profunda invadiu-o. Iria uma vez mais encontrar-se só diante de si próprio? Refugiou-se instintivamente numa embriaguez cómica que ele bem sabia imitar, armando um palanque de palavras diante da realidade, para perturbá-la e desorientá-la. «Viens! Viens!, exclamou ele vivamente tomando quase o tom de falsa jovialidade que usava com Darley e começando a sentir-se agora verdadeiramente embriagado. «Le maître vous invite». Sem um sorriso, dócil como um cordeiro, ela entrou no quarto e olhou em volta. Pursewarden procurou às apalpadelas a lâmpada da cabeceira. Não funcionava. Acendeu então uma vela e voltou-se para a rapariga; dançavam-lhe sombras negras nas narinas e nas órbitas. Olharam-se e ele lançou-se numa furiosa improvisação de calão para dissimular o seu constrangimento. Finalmente calou-se porque ela estava demasiado esgotada para poder sorrir. E então, sem uma palavra e sem um sorriso, ela começou a despir-se deixando cair os vestidos sobre o tapete coçado. Durante um momento ele contentou-se com explorar, deitado ao lado dela, o seu corpo frágil, os seus flancos oblíquos (uma estrutura de avenca), os seios pequeninos, ainda imaturos mas tersos.
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Perturbada pelo silêncio de Pursewarden, ela soltou um suspiro e disse qualquer coisa que ele não compreendeu. «Laissez, laissez parler les doigts... comme ça», murmurou ele para conservá-la calada. Gostaria de se sentir capaz de proferir algumas palavras simples e concretas. No silêncio sentiu que ela começava a debater-se contra a obscuridade voluptuosa e a força crescente do seu desejo, a lutar para compartimentar as suas sensações, para conservá-las separadas da sua vida entre as torpes transacções da existência. «Um compartimento separado», pensou ele, e depois: «— Estará rotulado Morte?» Estava decidido a explorar a sua fraqueza, a ternura que sentia fluir e refluir nas veias daquele corpo meigo, mas a sua própria força moral decresceu e esgotou-se. Empalideceu e ficou estendido, os olhos brilhantes e febris voltados para o tecto coberto de manchas, tornando a percorrer o tempo perdido. Um relógio tocou num quarto próximo e esse ruído despertou Melissa, libertando-a do cansaço para dar lugar a uma impaciência, um desejo de acabar, para finalmente poder abandonar-se ao sono contra o qual lutava. Colaboraram, fingindo uma paixão que ridicularizava as suas origens e que não podia nem inflamar-se nem extinguir-se. (Uma pessoa pode ficar estendida na cama, lábios entreabertos, pernas escancaradas, durante uma eternidade, a pensar que lhe esqueceu qualquer coisa que tem até na ponta da língua, no limiar da consciência. Mas nem por um decreto se consegue recordar do nome, da cidade, do dia, da hora... a memória biológica não funciona.) Ela fungou, como se chorasse, segurando-o entre os dedos pálidos e sensíveis, meigamente, como se segurasse num passarinho caído do ninho. Sombras de dúvida e ansiedade afloravam-lhe o rosto — como se ela se sentisse responsável pela baixa da corrente, pela comunicação cortada. Depois soltou um gemido — e Pursewarden compreendeu que ela pensava no dinheiro. Uma soma tão grande! Nunca mais encontraria um homem assim generoso!
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Então a sua solicitude, a sua crueza, começaram a exasperá-lo. — Chéri! Os seus abraços eram semelhantes aos das figuras de gesso sobre um túmulo clássico. Ela acariciou-lhe os flancos, os rins, o pescoço, as faces, com as suas mãos experientes, apoiando aqui e ali os dedos na sombra, dedos de cega procurando um painel secreto numa parede, o botão que faria jorrar a luz iluminando um outro mundo, fora do tempo. Mas aparentemente sem sucesso. Ela lançava em redor olhares receosos. Jaziam debaixo de uma janela de pesadelo, glauca, diante da qual ondulava docemente uma cortina, como uma vela, e que lhe recordava vagamente o leito de Darley. O quarto cheirava a incenso arrefecido, a manuscrito decomposto, e pairava o odor das batatas que ele comia enquanto escrevia. Os lençóis estavam sujos. Como de costume, muito acima do desgosto ou da humilhação, ele escrevia em espírito, depressa e sem esforço. Cobria páginas sobre páginas. Havia anos que ele começara a escrever a sua vida mentalmente — o viver e o escrever eram simultâneos. Transferia inteiramente para o papel o instante tal como o vivia, ainda quente, nu e sem retoques... — E agora — disse ela irritada, bem decidida a não perder as piastras que já tinha gasto em imaginação, que já tinha ganho —, vou fazer-te La Veuve — e Pursewarden conteve a respiração num estremecimento de exultação literária para repetir mentalmente esta maravilhosa expressão de calão inspirada na antiga alcunha da guilhotina, com aquela terrível evocação dos dentes que se reflectia na metáfora onde se ocultava o obscuro complexo da castração. La Veuve! Mares infestados pelos tubarões do amor que se fechavam sobre a cabeça do marinheiro condenado, numa paralisia muda do sonho, sonho das grandes profundidades que lentamente nos suga, nos afunda, nos despedaça... até ao momento em que, com um ruído seco, cai o cutelo, e baqueia a cabeça recheada de um formigueiro de pensamentos, lugubremente, no cesto, esguichando e remexendo-se como um peixe...
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- Mon coeur — suspirou ele numa voz rouca —, mon ange... Simplesmente, para saborear as metáforas mais banais, para procurar nelas uma ternura perdida, dilacerada, abandonada nas neves. «Mon ange». Uma viúva marinha no fundo de qualquer coisa de rico e bizarro! Subitamente, ela exclamou numa voz exasperada: - Que se passa contigo? Tu não queres? A voz desfaleceu num gemido. Melissa tomou-lhe então a mão, a sua mão doce e feminina, pousou-a sobre um joelho, aberta como um livro, aproximando o rosto intrigado. Ergueu a vela para estudar melhor as linhas da palma, levantando ao mesmo tempo as pernas delgadas. Os cabelos caíram-lhe sobre o rosto. Pursewarden acariciou-lhe o reflexo rosado que lhe tombara sobre os ombros e perguntou irónico: — Também lês a sina? Ela respondeu secamente, sem o olhar: — Toda a gente de cá lê a sina. Ficaram assim um longo momento, imóveis, como um quadro vivo. «A caput mortuum de uma cena de amor», pensou ele. Depois, Melissa soltou um suspiro, como de alívio e levantou a cabeça. — Agora percebo. Completamente.
Estás
encarcerado.
O
teu
coração
está
fechado.
E dizendo aquilo ela fechou as mãos num gesto de quem estrangula um coelho. Os olhos brilharam-lhe num clarão de simpatia. — A tua vida está morta, fechada. Não é como a de Darley. A dele está... escancarada — disse ela abrindo os braços antes de tornar a cerrá-los em redor dos joelhos; depois acrescentou com uma convicção terrivelmente inconsciente: — ele, sim, ainda pode amar.
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Pursewarden teve a impressão de ter sido esbofeteado. A chama da vela vacilou. — Não pares — insistiu ele num tom brusco. — Que mais vês? Mas ela não compreendeu a irritação e o sofrimento que aquela voz traduzia e voltou a debruçar-se sobre a enigmática mão branca do escritor. — Queres que eu te diga tudo? — murmurou Melissa, e por um momento ele deixou de respirar. — Sim — disse ele num tom cortante. Melissa sorriu, um sorriso pálido e distante. — Eu não sou muito entendida — disse ela docemente. — Não quero dizer o que vejo. — Mas levantou para ele os olhos cândidos e acrescentou: — Vejo a morte muito perto. — Bom — disse Pursewarden com um sorriso lúgubre. — Sim, muito perto. Dentro de pouco tempo receberás a notícia. É questão de horas. Ah, tudo isto são tolices! — acrescentou ela vivamente com um risinho; depois, com grande surpresa dele, Melissa começou a descrever-lhe a irmã: — a cega... não, a tua mulher. Fechou então os olhos e estendeu o braço para afastar a mão de Pursewarden, como uma sonâmbula. — Sim, é ela — confirmou ele. — É minha irmã. — A tua irmã? — Melissa estava surpreendida. Era a primeira vez que naquela brincadeira ela fazia uma predição tão precisa. Pursewarden explicou-lhe gravemente. — Eu e ela fomos amantes. Nunca mais poderemos voltar a amar outra pessoa. E então, uma vez começada a confidência, ele apercebeu-se de que nada lhe custava contar-lhe o resto. Sentia-se completamente senhor de si e ela considerava-o com piedade e ternura. Seria porque se exprimiam em francês? Em francês, a verdade da paixão resistia fria e cruelmente ao exame da experiência humana. Pursewarden costumava dizer que era uma língua que não tolerava os pequenos subentendidos cínicos.
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A menos que fosse a fugaz simpatia de Melissa a facilitar o relato daqueles factos? Ela não emitia nenhum juízo; já era tudo conhecido, já tinha sido tudo vivido. Abanava gravemente a cabeça enquanto ele lhe falava do seu amor e da sua voluntária renúncia, depois do seu casamento e do fracasso que este constituiu. Tomados entre a piedade e a admiração abraçavam-se, mas agora apaixonadamente, unidos pelo laço das confidências, pela sensação de terem vivido juntos qualquer coisa. — Vi tudo isso na tua mão — confessou ela. Sentia-se um pouco atemorizada por aquela inusitada clarividência. E ele? Sempre desejara encontrar alguém a quem pudesse falar livremente — mas era necessário que fosse alguém que verdadeiramente não fosse capaz de compreender tudo! A chama vacilou. No espelho ele tinha escrito em intenção de Justine estes versos trocistas:
Como é temível- o freio! Intensa a agonia. Quando os ouvidos começam a ouvir E os olhos a ver!
Repetiu a quadra docemente, no segredo do seu espírito, evocando os traços sombrios do rosto que observara naquele mesmo quarto, à claridade daquela mesma vela, o corpo sentado precisamente na posição em que se achava Melissa nesse momento, o queixo entre os joelhos, estendendo-lhe a mão com simpatia. E enquanto continuava a falar tranquilamente de sua irmã, da sua perpétua procura de satisfações mais ricas do que aquelas de que se recordava, e às quais deliberadamente renunciara, outros versos flutuavam no seu espírito: os comentários caóticos para onde o remetiam as suas leituras e as suas experiências. Mesmo considerando de novo aquele rosto de uma brancura de mármore, com as suas madeixas de cabelos negros esparsos numa nuca delicada e frágil, os lóbulos das orelhas, o queixo com a sua covinha — um rosto que o punha sempre diante das imensas órbitas vazias — ouvia uma voz repetir-lhe no fundo do cérebro:
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Amors par force vos demeine! Combien durra vostre folie? Trop avez mené ceste vie.
Ele ouvia coisas que lhe vinham de longe. Com um riso amargo, por exemplo: «Os ingleses inventaram a palavra «fornicação» porque não eram capazes de crer na diversidade do amor». E Melissa, sacudindo gravemente a cabeça por simpatia, começava a sentir-se mais importante diante desse homem que lhe confiava coisas que ela não compreendia, tesouros desse misterioso universo masculino que oscilava sempre entre o sentimentalismo estúpido e a brutalidade furiosa! «No meu país quase todas as coisas deliciosas que se podem fazer a uma mulher são consideradas ofensas criminosas, causas de divórcio». Ela sentia-se terrificada com o seu riso trepidante, cortante. Tomou-lhe a mão e apertou-a docemente contra a face, como quem palpa a dor de uma ferida; e interiormente prosseguia o comentário inaudível:
Que fins procura o céu Impondo todas essas leis, Eros, Ágape... que dilaceram o espírito. Que esquartejam a alma?
Encerrados no seu castelo encantado, prisioneiros dos beijos loucos e das intimidades que não se repetiriam, tinham estudado La Lioba! Que loucura! Ousariam eles jamais colocar-se ao nível dos outros apaixonados? Jurata fornicatio... esses versos escorriam do espírito; e o seu corpo, segundo Rudel, gras, delgat et gen. Suspirou varrendo as recordações como teias de aranha dizendo para si mesmo: «Mais tarde, em busca de uma askesis, ele seguiu os pais do deserto a Alexandria, um lugar entre dois desertos, entre os dois seios de Melissa.
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O morosa delectatio. E afundou a cabeça entre as dunas, coberta pelos seus cabelos trémulos». Depois caiu dentro dele o silêncio e olhou-a fixamente nos olhos claros, os seus lábios trémulos fechando-se pela primeira vez sobre palavras carinhosas, que tão depressa eram inflamadas como sinceramente apaixonadas. Ela estremeceu bruscamente, sabendo que já lhe não podia escapar, que se lhe devia submeter totalmente. — Melissa — disse ele num tom de voz triunfante. Entregaram-se ao prazer, sábia e ternamente, como dois amigos que há muito se procuravam e finalmente se encontravam no meio da multidão banal e vulgar que formigava no tumulto da cidade. Ele tinha por fim entre os braços a desejada Melissa; os olhos cerrados, boca entreaberta sobre um sopro cálido, tirada do sono de um beijo à luz loura da vela. — São horas de nos irmos embora. Mas ela apertava-se mais fortemente contra o seu corpo, gemendo de cansaço. Ele contemplou-a com ternura, aninhada entre os seus braços. — E o resto da tua profecia? — perguntou ele alegremente. — São tolices — respondeu ela numa voz cheia de sono. — Às vezes consigo ler o carácter de uma pessoa na palma da mão... mas o futuro! Não sou assim tão hábil. A aurora arranhava as persianas da janela. Bruscamente ele levantouse, alcançou em três pernadas a casa de banho e abriu a torneira de água quente: uma torrente escaldante começou a correr soltando nuvens de vapor que assobiavam! Era uma coisa típica do hotel Monte dos Abutres: a água ou era a ferver ou nenhuma. Excitado como um rapazinho, ele chamou-a. — Vem, Melissa, vem lavar todo o cansaço do teu corpo ou nunca mais te consigo levar a casa.
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E pensava ao mesmo tempo no meio de fazer chegar as quinhentas libras a Darley sem o deixar suspeitar da sua origem. Nunca devia saber que aquele dinheiro era o salário de um epitáfio para um copta escrito por um rival! — Melissa! — tornou a chamar; mas a rapariga dormia. Tomou-a delicadamente nos braços e trouxe-a para a casa de banho. Na banheira, Melissa acordou, espreguiçando-se como essas flores japonesas de papel que se abrem dentro de água. Estendeu-se voluptuosamente, brincando com a água, fazendo ondazinhas que lhe cobriam e descobriam os seios enquanto as coxas iam tomando uma cor rosada. Pursewarden sentou-se no bidé e, uma das mãos mergulhada no banho, foi-lhe falando para impedir que ela tornasse a adormecer. — Não te demores muito senão o Darley fica furioso. — Darley! Bah! Ele tornou a sair com Justine na noite passada. Ela sentou-se na banheira e começou a ensaboar as espáduas, os braços, o peito, saboreando todo o prazer daquele sabonete e daquele banho como se fosse um cálice de vinho raro. Ela pronunciava o nome da rival com uma espécie de repugnância servil que parecia um pouco deslocada. Pursewarden sentiu-se surpreendido. — São todos os mesmos... esses Hosnani — disse ela com desprezo. — E o pobre Darley deixa-se levar. Ela serve-se dele, e é tudo. Darley é demasiado bom, demasiado simples. — Ela serve-se dele? Melissa abriu o duche e, debatendo-se debaixo da nuvem de vapor, lançou-lhe uma piscadela de olho. — Sei tudo a respeito deles. — Que queres dizer? Que sabes tu? Pursewarden sentiu bruscamente um mal-estar agudo que não sabia qualificar. Sentia que ela ia voltar todo o seu universo como quem derruba por distracção um tinteiro ou um vaso onde nada um peixinho vermelho. Ela ali estava, numa nuvem de vapor, sorrindo como um anjo descido do céu, numa gravura do século XVII.
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- Que é que tu sabes? — repetiu ele. Melissa examinou o corpo ainda húmido e luzente com um espelho de cabo. — Pois bem, vou dizer-te. Eu fui amante de um homem muito importante, um tal Cohen; muito importante e muito rico. (Havia algo de patético naquele assomo de orgulho.) Trabalhava para Nessim Hosnani e contoume certas coisas. Também falava quando dormia. Já morreu. Creio que o envenenaram por saber demais. Ele fazia contrabando de armas no Médio-Oriente, para a Palestina, por conta de Nessim Hosnani. Quantidades enormes. Dizia que era para atirar os ingleses pelos ares. — Ela proferiu aquelas palavras com uma espécie de rancor, depois, repentinamente, ao cabo de um instante de reflexão, acrescentou: — Ele costumava fazer este gesto (juntou as pontas dos dedos para lhes dar um beijo grotesco, depois abriu bruscamente a mão) dizendo «Tout à toi, John Bull!) (E apertou os olhos numa careta maliciosa que pretendia simbolizar a morte.) — Agora veste-te — disse ele numa voz neutra. Voltou para o quarto e ficou a contemplar a parede por cima das prateleiras dos livros, com o olhar perdido. Era como se toda a cidade acabasse de lhe explodir dentro dos ouvidos. — É por isso que eu não gosto dos Hosnani — gritou Melissa da casa de banho, com uma voz diferente, uma voz estridente de pregoeira. — Eles odeiam os ingleses em segredo. — Veste-te — ordenou ele secamente, como se falasse a um cavalo. — E despacha-te. Bruscamente dizendo:
arrefecida,
ela
secou-se
e
saiu
da
casa
de
banho,
— Não me demoro mais de um minuto. Pursewarden continuava a olhar para a parede, fixamente, siderado. Era o mesmo que ter caído de outro planeta.
como
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Imóvel, paralisado, como uma estátua de bronze. Melissa, enquanto se vestia, lançava-lhe olhares furtivos. — Que se passa? — perguntou-lhe por fim. Ele não respondeu. Pensava furiosamente. Quando ela acabou de se vestir, ele deu-lhe o braço e desceram a escada em silêncio. Começava a despontar a aurora; os lampiões ainda estavam acesos e lançavam pálidas sombras. De tempos a tempos ela olhava para ele mas o rosto do companheiro continuava mudo, inexpressivo. Quando se aproximavam de um candeeiro as suas sombras alongavam-se, adelgaçavam-se e deformavam-se regularmente para serem tragadas por um círculo de luz amarela antes de retomarem a sua forma normal. Pursewarden caminhava lentamente, num passo preocupado. Conservava sempre o braço de Melissa. E em cada uma dessas sombras, estiradas e saltitantes, ele via nitidamente o perfil de Maskelyne, o vencido. Num canto da praça parou e, com a mesma expressão perdida, exclamou: — Espera. Ia-me esquecendo. Aqui tens as mil piastras que te prometi. Beijou-a na face e regressou ao hotel sem dizer mais nada.
IX
Mountolive estava de visita oficial às fábricas de debulha do algodão do Delta quando Telford lhe telefonou a novidade. Perturbadíssimo, não quis acreditar no que ouvia. Telford falava, numa voz cheia de importância, com aquele silvar peculiar que devia a uma dentadura mal ajustada; naquela profissão era sempre preciso contar com a morte. Mas a morte de um inimigo! Que esforço não lhe custaria guardar um tom de voz grave, sombrio, ocultando a satisfação pessoal. Falava como um notário. — Tomei a responsabilidade de interromper a sua visita porque pensei que gostaria de ser posto ao corrente. Nimrod Pasha telefonou-me a meio da noite e eu compareci. A polícia já tinha selado tudo; encontrei lá o doutor Baltasar. Lancei uma vista de olhos enquanto ele passava o certificado de óbito. Fui autorizado a trazer certos papéis pessoais pertencentes ao... defunto. Nada de importante. O manuscrito de um romance. Foi uma grande surpresa para todos. Receio que ele estivesse, como de costume... embriagado. Sim. — Mas — titubeou Mountolive, partilhado pela cólera e pela incredulidade. — Enfim, por que motivo... — As pernas traíram-no. Teve que se sentar antes de exclamar com impaciência: — Sim, sim, Telford, continue! Diga-me tudo o que sabe.
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Telford pigarreou consciente do interesse que despertara a notícia e esforçou-se por colocar as ideias em ordem. — Pois bem, sir, conseguimos reconstituir os seus últimos passos. Ele esteve cá, tinha um ar esgazeado, estava por barbear (foi Errol que me contou) e perguntou por si. Mas V. Ex.a acabava de partir. A secretária de V. Ex.a disse-me que ele se sentou à escrivaninha e começou a escrever qualquer coisa — isso levou-lhe um certo tempo — que lhe era destinada pessoalmente. Depois lacrou a carta e escreveu a palavra «SECRETO» em maiúsculas... está agora guardada no cofre de V. Ex.a Depois, parece que foi... bem, para a pândega. Gastou todo o dia numa taberna perto de Montaza, onde costumava ir com frequência. Não passa de uma cabana à beira-mar — algumas traves a suportar um tecto de folhas de palmeira — propriedade de um grego. Passou todo o dia a escrever e a beber. Segundo o proprietário, ingeriu uma grande quantidade de zibib. Tinha pedido para lhe colocarem uma mesa junto do mar, sobre a areia. Havia vento e o proprietário disse-lhe que talvez estivesse melhor abrigado na cabana, mas não, preferiu instalar-se à beira da água. No fim da tarde comeu uma sanduíche e tomou o eléctrico para voltar à cidade. Foi então que me telefonou. — Bem, continue! Telford hesitou; a sua voz baixou de tom. — Veio à repartição. Devo dizer que embora continuasse por barbear parecia de excelente humor. Até disse alguns gracejos. Mas pediu-me uma pastilha de cianeto — sabe do que se trata. Não posso ser mais explícito. A linha não é muito segura. Espero que compreenda, sir? — Sim, sim, continue! — gritou Mountolive. Tranquilizado, Telford prosseguiu num jacto: — Ele disse-me que queria envenenar um cão doente. Como a coisa me pareceu verosímil, dei-lhe uma. Foi provavelmente o que ele ingeriu, segundo o doutor Baltasar.
207
Espero, sir, que responsabilidade...
não
vá
pensar
que
eu
tenho
qualquer
Mountolive não pensava nada e tudo quanto sentia era uma indignação crescente à ideia de que um membro da sua Legação tinha tido a falta de tacto suficiente para cometer em público um acto tão embaraçoso! Não, aquilo era estúpido. «É estúpido», murmurou para si próprio. Mas não conseguia afastar a ideia de que Pursewarden era culpado de qualquer coisa. Uma tal falta de consideração... verdadeiramente, ultrapassava os limites do indecoroso... e era ainda por cima tão misteriosa. O rosto de Kenilworth flutuou por um momento diante dele. Sacudiu o auscultador para melhorar a recepção e gritou: — Mas que significa tudo isso? — Não sei nada — disse Telford numa vozinha fraca.— É um mistério. Um Mountolive pálido voltou-se para o grupo de paxás que o esperava um pouco afastado, no lúgubre hangar onde estava instalado o telefone, e murmurou algumas desculpas. Imediatamente todos afastaram as mãos agitando-as como um bando de pombas para exprimir que não tinham nada a objectar. Era muito natural que um embaixador se visse assediado por graves acontecimentos. Podiam esperar. — Telford — chamou Mountolive com impaciência. — Sim, sir. — Diga-me tudo o mais que sabe. Telford pigarreou e prosseguiu com a sua voz pastosa: — Bem, na minha opinião não há nada de excepcionalmente importante. A última pessoa que o viu com vida foi esse Darley, o professor. Provavelmente não o conhece, sir. Encontrou-o quando ele voltava para o hotel. Ele convidou Darley a tomar um copo no quarto e ficaram muito tempo a conversar e a beber gin. O defunto nada lhe disse que apresente um interesse especial — e certamente nada que fizesse prever a sua intenção de se suicidar. Pelo contrário, disse-lhe que ia tomar nessa noite o comboio para Gaza.
208
Para gozar umas férias. Mostrou a Darley as provas do seu último romance, corrigidas e prontas para serem expedidas, e um impermeável cheio de coisas de que podia ter necessidade durante a viagem: pijama, pasta de dentes, etc. Que foi que o fez mudar de ideias? Não sei, sir, mas a resposta talvez se encontre no vosso cofre. Foi por isso que lhe telefonei. — Bem vejo — disse Mountolive. Era estranho mas começava já a habituar-se à ideia de que Pursewarden tinha deixado de existir. O golpe era demasiado terrível; só restava o mistério. Telford pigarreava ainda na linha. — Sim — disse ele readquirindo o sangue frio —, sim. Pouco depois, Mountolive, já recomposto, retomava a sua pose oficial e fingia um interesse superficial pela fábrica e pelo seu mecanismo ensurdecedor. Esforçava-se por não parecer muito absorvido e por se mostrar convenientemente impressionado com aquilo que lhe mostravam. Tentava analisar o absurdo sentimento de cólera que tinha experimentado contra Pursewarden: o acto que o outro acabava de cometer parecia-lhe um imperdoável solecismo! Que coisa absurda. E contudo era um acto típico justamente por ser inconsiderado; talvez até devesse tê-lo previsto? Um profundo sentimento de desânimo veio ocupar o lugar do anterior acesso de impaciência. Tomou novamente lugar no carro nessa tarde, contrafeito e impaciente por saber mais. Era um pouco como se esperasse encontrar Pursewarden na Embaixada, a trabalhar, e se preparasse para lhe pedir explicações depois do que lhe aplicaria uma boa reprimenda. Chegou no esplendor do crepúsculo no momento em que a Embaixada fechava as portas, embora o diligente Errol trabalhasse ainda na redacção de papéis oficiais, no seu gabinete. Toda a gente, mesmo o pessoal da cifra, parecia tomada daquele ar de aflição que as mortes súbitas sempre conterem aos vivos, deixando-os um pouco embaraçados. Mountolive obrigou-se a caminhar lentamente, a falar lentamente, a não manifestar nenhuma pressa.
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A pressa, tal como a emoção, é sempre deplorável: trai o império das paixões onde só a razão deve prevalecer. A sua secretária já tinha saído mas obteve nos arquivos a chave do cofre e subiu pausadamente os dois lanços da escada que levava ao seu gabinete. Felizmente o bater do nosso coração não é perceptível aos que nos rodeiam. Os bens do morto encontravam-se sobre a sua secretária, com um ar estranhamente privado de vida: um maço de papéis e de manuscritos, um embrulho endereçado a um editor, um impermeável e diversas outras bugigangas descritas pelo escrupuloso Telford numa preocupação de objectividade. Mountolive sobressaltou-se violentamente ao dar com o rosto exangue de Pursewarden: uma máscara mortuária de gesso com um bilhete de Baltasar: «Tomei a liberdade de mandar executar uma máscara mortuária antes de levarem o corpo. Pensei que era uma medida sensata». A face de Pursewarden! Visto de certo ângulo, o morto tinha um ar rabujento. Mountolive tocou a efígie com a ponta do dedo, com repugnância, com um temor supersticioso. E de repente compreendeu que tinha medo da morte. A seguir dirigiu-se para o cofre, de onde retirou um sobrescrito cujo lacre grosseiramente selado quebrou com um indicador trémulo antes de se deixar cair numa cadeira. Ia, enfim, obter a explicação racional daquela enorme falta de gosto! Respirou profundamente. «Meu caro David. «Rasguei uma boa meia dúzia de cartas para tentar explicar-lhe tudo isto. Mas caía sempre na literatura. E já basta de tolices. Decidi morrer. Paradoxo! Estou infinitamente desolado, meu caro amigo. «Por acaso e de uma forma totalmente inesperada descobri o acerto das teorias de Maskelyne sobre Nessim e o erro das minhas. Não lhe confiarei a minha fonte mas sei agora que Nessim introduz armas na Palestina, e isso há já certo tempo.
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Ele é manifestamente a fonte desconhecida implicada nas operações que são objecto do Documento Sete — lembra-se! (Pasta Secreta n.° 341. Inteligence Service.) «Não me sinto apto a enfrentar as consequências morais que esta descoberta implica. Sei o que devo fazer. Mas o homem é meu amigo. Portanto ...quietus. (O que resolve também outros problemas mais íntimos.) Ach! Que triste mundo criamos em redor de nós. Os salpicos da intriga e da contra-intriga. Acabo de descobrir que não pertenço a este mundo. (Estou a ouvir as pragas que você vai proferindo enquanto me lê.) «Sinto-me um pouco pulha por fugir assim com o rabo à seringa, por me escapar às minhas responsabilidades, mas, no fundo, sei bem que elas não me pertencem verdadeiramente, que nunca foram minhas. São suas! E cedo se dará conta de que elas são maiores e mais amargas do que suspeita. Mas... você pertence à carreira... e deve agir em meu lugar! «Bem sei que é faltar ao meu dever, mas dei a entender indirectamente a Nessim que era objecto de suspeita. Naturalmente uma tal imprecisão autoriza-o a si a fazer desaparecer tudo, a esquecer pura e simplesmente. Não invejo as suas tentações. Pelo que diz respeito às minhas, não vale a pena lastimar-me. Estou cansado, meu caro amigo, mortalmente cansado, como dizem os vivos. «Então... «Peço-lhe que transmita a minha irmã que vão para ela os meus últimos pensamentos. Obrigado. «Seu amigo muito afeiçoado, L. P.»
Mountolive estava interdito. Sentia-se empalidecer à medida que ia lendo. Depois ficou demoradamente a contemplar o rosto do morto, aquele ar de impertinência solitária que era característica do perfil de Pursewarden em repouso, e que se gravara no gesso da sua máscara para a eternidade;
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mas tinha ainda de lutar obstinadamente contra aquele absurdo sentimento de um ultraje diplomático que flutuava em torno do seu espírito, que o abrasava por intermitências como os surdos clarões de uma tempestade atmosférica. — É uma loucura — gritou ele soltando uma palmada sobre o tampo da secretária. — Pura e simples loucura! Ninguém se mata por motivos oficiais! — E imediatamente teve desejo de corar por se ter deixado conduzir a um tão estúpido pensamento. Pela primeira vez na sua vida o seu espírito era presa de completa confusão. Para se acalmar obrigou-se a ler lenta e metodicamente o relatório dactilografado de Telford, soletrando cada palavra como se se tratasse de um exercício. Era o relato dos actos de Pursewarden durante as vinte e quatro horas que precederam a sua morte, segundo o testemunho das pessoas que tinham estado com ele. Alguns dos depoimentos eram muito interessantes, em particular o de Baltasar, que o tinha encontrado de manhã no café Al Akhtar quando Pursewarden bebia arak e comia um croissant. Acabava de receber uma carta da irmã e preparava-se para lê-la com ar preocupado. Quando Baltasar chegou guardou-a precipitadamente no bolso. Parecia aflito e não se barbeara. A conversação que se seguiu teve pouco interesse com excepção de uma observação que interessou Baltasar. Pursewarden dançara na véspera com Melissa e disse que era o género de mulher com quem se poderia desejar casar. («Era sem dúvida uma brincadeira», acrescentava Baltasar.) Dissera também que tinha começado um novo livro «inteiramente consagrado ao amor». Mountolive suspirou deixando os olhos correrem lentamente sobre a página dactilografada. O amor! Depois descobriu outro aspecto curioso. Pursewarden tinha comprado uma fórmula testamentária e preenchera-a tornando a irmã herdeira do seu espólio literário e legando uma soma de quinhentas libras a Darley, o professor, e à sua amante. Antedatara o testamento de há dois meses.
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Por que motivo? Teria simplesmente esquecido a data? Tomara como testemunhas dois empregados da cifra. A carta da irmã também lá estava, mas Telford tinha-a colocado, com tacto, num sobrescrito distinto e selado. Mountolive leu-a, abanando a cabeça, atordoado, depois meteu-a no bolso, com a consciência um pouco perturbada. Passou a língua pelos lábios e olhou para a parede franzindo o sobrolho. Liza! Errol meteu a cabeça timidamente pela greta da porta e sentiu um choque descobrindo que as lágrimas corriam na face do seu superior. Retirou-se delicadamente e voltou a toda a pressa para o seu gabinete, muito afectado por um sentimento de inconveniência diplomática, muito semelhante ao que Mountolive experimentara quando Telford lhe telefonou. Errol sentou-se diante da secretária, presa de uma certa agitação e murmurou: «Um bom diplomata nunca deve exteriorizar os seus sentimentos». Depois acendeu um cigarro e pôs-se a meditar com um ar lúgubre. Pela primeira vez descobria que o seu embaixador tinha pés de barro. O que fortalecia nele o sentimento da sua própria dignidade. Mountolive, afinal de contas, não passava de um homem... Aquela descoberta tinha-o desmantelado. No andar de baixo, Mountolive acendera também um cigarro para acalmar os nervos. O seu mal-estar transferia-se lentamente do próprio acto cometido por Pursewarden (aquele inoportuno mergulho no anonimato) para a significação central desse acto — para as notícias que o acompanhavam. Nessim! Qualquer coisa se contraiu então no seu peito e um sentimento de cólera mais profundo, menos formulado, invadiu-o. Tinha confiado em Nessim! «(Porquê? — segredava-lhe uma voz interior. — Isso não era necessário».) E agora, com aquela maldosa pirueta, Pursewarden legava-lhe todo o peso do seu problema moral. Caíra num vespeiro: o velho conflito entre o dever, a razão e a amizade, que são a cruz e a principal fraqueza de todo o homem público!
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«Que malandro!», disse para si próprio (com uma espécie de admiração por aquela audácia de pensamento). Pursewarden tinha-lhe atirado tudo aquilo para os braços com uma facilidade desconcertante: tinha-se pura e simplesmente retirado. Acrescentou com desânimo: «Eu tinha confiança em Nessim por causa de Leila!» Humilhação sobre humilhação. Enquanto fumava contemplava a face do morto, em gesso branco (que as mãos delicadas de Clea tinham moldado a partir do inexperiente negativo de Baltasar) e sobre esse rosto via aparecer, como numa sobreimpressão a face bela e viva do filho de Leila: os traços sombrios colhidos num fresco de Ravena! A face do seu amigo. E depois, os seus pensamentos exprimiram-se num murmúrio: «Talvez Leila se encontre por detrás de tudo isto». («Os diplomatas não têm verdadeiros amigos — dissera-lhe um dia Grishkin, para irritá-lo, para feri-lo. — Servem-se de toda a gente!» Dava-lhe a entender que ele se tinha servido do seu corpo, da sua beleza; e agora que ela estava grávida...) Aspirava lentamente o fumo saturado de nicotina a fim de dar tempo aos nervos para se acalmarem, ao cérebro para se recompor. E, ao dissipar-se o nevoeiro, começava a descobrir uma nova paisagem revelando-se diante dele, pois daí por diante todo o programa da sua permanência no Egipto se ia modificar: as amizades, os encontros ocasionais, o ténis, a equitação, os banhos de mar... A simples ideia de participar no mundo ordinário dos hábitos e dos prazeres sociais, de aliviar o taedium vitae do seu isolamento, encontrava-se envenenada pelo que acabava de saber. De resto, que fazer das informações que Pursewarden acabava de lhe lançar para os braços com tanta desenvoltura? Era preciso, bem entendido, relatá-los. Mas aqui fez uma pausa para reflectir. Devia relatá-los? Os factos mencionados na carta não eram apoiados por nenhuma prova... além da prova esmagadora da sua morte que... Acendeu outro cigarro e murmurou: «O seu equilíbrio mental inspirava inquietação há uns tempos para cá».
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Isto pelo menos merecia um sorriso ligeiramente cínico! Afinal de contas o suicídio de um alto funcionário não era um acontecimento assim tão raro: houve o caso do jovem Greaves que se apaixonou na Rússia por uma bailarina... Mas o facto de a sua amizade ter sido traída pelo escritor entristecia-o profundamente. Bom. E se queimasse simplesmente a carta, suprimindo simultaneamente o peso da responsabilidade moral que ela lhe legava? Nada de mais fácil: bastava um fósforo. Podia continuar a conduzir-se como se nada lhe tivesse sido revelado... salvo o facto de Nessim saber que ele estava ao corrente! Não, tinha caído na ratoeira! Então, o seu sentimento do dever, como um par de sapatos muito apertados, começou a feri-lo a cada passo. Viu mentalmente Nessim e Justine dançando em silêncio, os olhos semicerrados, evitando olhar um para o outro. A seus olhos tomavam já uma nova dimensão — como a projecção prosaica de personagens de um fresco primitivo. Também eles, verosimilmente, deviam lutar contra um sentimento do dever e das responsabilidades — contra quem? «Contra eles próprios, talvez», murmurou tristemente, movendo a cabeça. Nunca mais poderia olhar Nessim de frente. E a verdade surgiu-lhe bruscamente no espírito. Até então as suas relações pessoais tinham sido preservadas de todos os elementos que pudessem prejudicá-las graças ao tacto de Nessim — e pela experiência de Pursewarden. O escritor, servindo de elemento de ligação oficial, tinha deixado o campo livre à sua vida particular. Os dois homens nunca tinham tido necessidade de discutir assuntos que tivessem a menor relação com os problemas oficiais. E agora nunca mais poderiam voltar a encontrar-se nessas agradáveis disposições. Também nesse contexto Pursewarden tinha traído a sua liberdade. Quanto a Leila era talvez aí que se encontrava a chave do seu enigmático silêncio, da sua incapacidade para enfrentá-lo.
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Suspirou e chamou Errol. — Deite uma olhadela a isto. O seu chefe de Legação sentou-se e pôs-se a ler avidamente o documento. De tempos a tempos sacudia lentamente a cabeça. Mountolive pigarreou: — Tudo isso me parece um pouco incoerente — disse ele sentindo vergonha por tentar lançar uma dúvida sobre um depoimento tão claro, influenciar Errol num juízo que, no segredo do seu espírito, ele já tinha formulado. Errol releu a carta segunda vez, lentamente, depois passou-a a Mountolive por cima da secretária. — Parece com efeito um pouco extraordinário — disse o subordinado sem querer comprometer-se e num tom respeitoso. Não lhe competia propor uma interpretação da mensagem. Era uma tarefa que cabia de direito a Sua Excelência. — Parece um pouco... desproporcionado encorajando-se, procurando uma saída.
—
acrescentou
Errol,
— Sim, com efeito! Bem do género de Pursewarden.— disse Mountolive com um ar aborrecido. — Lastimo agora não ter acatado as suas recomendações. Você tinha razão e eu estava enganado no que respeita às aptidões de Pursewarden. O olhar de Errol lançou um relâmpago de modesto triunfo. Entretanto nada disse, contentando-se em fixar Mountolive. — Bem entendido, como você sabe, houve uma altura em que Hosnani foi objecto de certas suspeitas. — Bem sei, sir. — Mas não existe nenhuma prova que venha apoiar estas afirmações. Bateu duas vezes na carta com um dedo irritado. Errol aprumou-se na cadeira e ergueu ligeiramente a cabeça. — Não sei — disse vagamente. — O que aí está parece-me bastante concludente. - Não creio — disse Mountolive — que isto mereça circunstanciado. Claro, temos de informar Londres.
um
relatório
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Mas não creio que estes factos sejam de qualquer modo úteis às investigações a que o Tribunal irá empreender. Qual é a sua opinião? Errol balançou os joelhos. Um sorriso matreiro elevou-lhe lentamente os cantos da boca. — Talvez tenha interesse para os egípcios — proferiu ele mansamente. — Evitaria pressões diplomáticas se... a coisa viesse a tomar aspectos mais concretos. Não ignoro que Hosnani é seu amigo, sir. Mountolive sentiu um ligeiro vermelhão colorir-lhe o rosto. — Quando o seu dever se encontra em causa, um diplomata não tem amigos — disse ele secamente e pensou que Pôncio Pilatos se devia ter exprimido com a mesma soberba indiferença. — É verdade, sir — confirmou Errol com um olhar de admiração. — Uma vez estabelecida a culpabilidade de Hosnani, devemos agir. Mas enquanto não tivermos provas formais, a nossa posição é das mais fracas. Com Memlik Paxá — bem sabe que ele não é muito anglófilo... Pergunto a mim mesmo... — Sim, sir? Mountolive esperou, captando o vento como um animal selvagem, sentindo que Errol começava a aprová-lo. Ficaram um momento em silêncio, na penumbra crepuscular do gabinete, reflectindo. Depois, com um gesto teatral, S. Ex.a premiu o botão do candeeiro e proferiu num tom que não admitia réplica: — Se você não vê inconveniente, não remeteremos isto aos egípcios enquanto não estivermos melhor informados. É Londres que tem a prioridade. Depois de completado o processo, naturalmente. Mas nada de pormenores, nem mesmo à família. A propósito, quer fazer o favor de se encarregar de comunicar com a família? Deixo ao seu cuidado amenizar o choque.
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O seu coração confrangeu-se vendo erguer-se diante dos olhos o rosto de Liza Pursewarden. - Sim. Tenho aqui o processo dele. Só há a mulher e uma irmã no Instituto Imperial dos Cegos, segundo creio. Errol abriu cheio de importância uma pasta verde, mas Mountolive disse: — Sim, sim. Conheço-a. Errol levantou a cabeça. Mountolive acrescentou: — E creio que em boa justiça devíamos avisar Maskelyne em Jerusalém, não acha? — Certamente, sir. — E guardar segredo de momento? — Claro, sir. Mountolive sentiu-se de repente muito velho e muito fraco. Duvidou mesmo que as suas pernas tivessem forças para o transportar à Residência. — E por agora é tudo. Errol despediu-se e fechou a porta atrás de si com a gravidade de um mudo. Mountolive telefonou pedindo que lhe mandassem uma taça de caldo e biscoitos. Comeu e bebeu avidamente, sem poder afastar os olhos da máscara funerária e do manuscrito do romance. Sentia simultaneamente um desgosto profundo e a sensação de um imenso luto, e não seria capaz de dizer qual dos dois sentimentos era o mais forte. Pensou que Pursewarden, sem querer, o tinha separado para sempre de Leila. Sim, também isso, e talvez irremediavelmente. Contudo, nessa noite, proferiu um discurso espirituosíssimo (redigido por Errol) no decurso do banquete anual da Câmara do Comércio de Alexandria, maravilhando a assistência de banqueiros pela facilidade com que se exprimia em francês. Os aplausos crepitaram, dilataram-se e espalharam-se pela sala augusta de banquetes do Club Mohammed Ali. Nessim, sentado na outra extremidade da mesa, respondeu calma e gravemente.
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Por uma ou duas vezes, durante o jantar, Mountolive sentiu os olhos do amigo procurarem os seus, carregados de pesadas incógnitas, mas soube sempre evitá-los. Havia agora entre eles um abismo escancarado que nenhum deles sabia como preencher. Depois do jantar, no momento da partida, encontrou por um breve momento Nessim no vestíbulo e teve então o desejo quase irresistível de invocar a morte de Pursewarden. O acontecimento levantava-se entre eles como uma montanha a prumo. Aquilo envergonhava-o como uma deformidade física; era como se o seu sorriso amável fosse desfigurado pela falta de um incisivo. Mas não falou, e Nessim conservou-se igualmente silencioso. Nada do que lhes ia no íntimo transpareceu na atitude daqueles dois homens elegantes que esperavam fumando na soleira da porta a aproximação dos respectivos carros. Mas uma surda e inexorável desconfiança erguerase entre eles. Era estranho pensar que algumas palavras escritas numa folha de papel tinham sido suficientes para torná-los inimigos. Depois, afundando-se no assento fofo do seu automóvel onde flutuava um pendão da Union Jack, aspirando lentamente o fumo do seu excelente charuto, Mountolive teve a impressão que o seu ser mais profundo se tornava tão poeirento e tão sufocante como um túmulo egípcio. Era também estranho que à margem das suas graves e profundas preocupações os pequenos pensamentos superficiais ainda tivessem o poder de enternecer o seu espírito: o sucesso que acabava de colher junto dos banqueiros enchia-o de satisfação. Tinha sido incontestavelmente brilhante! Sabia que o seu discurso seria literalmente reproduzido nos jornais do dia seguinte com novas fotografias suas. Os coptas ficariam invejosos, como de costume. Como tinha sido possível que até então ninguém se tivesse lembrado de fazer uma declaração pública sobre o Padrão-Ouro dessa maneira subtil? Tentava conservar o espírito em ebulição, ancorando-o solidamente nas águas calmas do contentamento pessoal, mas em vão.
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Em breve a Embaixada regressaria aos seus quartéis de Inverno. E ainda não tinha visto Leila. Chegaria a vê-la alguma vez? Algures dentro dele um dique quebrara, ruíra uma barreira. Tinha entrado em conflito consigo mesmo, o que dava aos seus traços uma dureza nova e um ritmo mais decidido aos seus gestos. Nessa noite foi tomado da atroz dor de ouvidos que sempre assinalava o seu regresso a casa. Mas era a primeira vez que o ataque o surpreendia longe da doce segurança do lar maternal e isso inquietava-o. Tentou o velho remédio caseiro mas, como aquecesse excessivamente o azeite, queimou-se gravemente durante o tratamento. Depois deste acidente ficou três dias de cama lendo romances policiais e meditando, o olhar fixamente preso na parede caiada de branco. Isso pelo menos evitava-lhe assistir à cremação de Pursewarden onde teria seguramente encontrado Nessim. Entre as numerosas mensagens e presentes que começaram a afluir, quando se espalhou a notícia da sua indisposição, encontrava-se um grande ramo de flores da parte de Nessim e de Justine, com votos de pronto restabelecimento. Como alexandrinos e amigos de ocasião era o menos que podiam fazer! Pensou muito neles durante os extensos dias e as longas noites sem sono e, pela primeira vez, à luz daquilo que soubera, eles surgiramlhe como dois enigmas. Tornavam-se agora num verdadeiro problema e mesmo a união dos dois surgia como uma coisa que ele nunca tinha verdadeiramente compreendido. A amizade que lhes tinha impedira-o de ver neles criaturas capazes de, como ele próprio, viverem em diversos planos ao mesmo tempo. Conspiradores, amantes... onde estava a chave do enigma? Não conseguia descobrir. Talvez fosse preciso procurar no passado para encontrá-la — mais longe do que ele ou Pursewarden tinham possibilidade de ir com os dados de que dispunham nesse tempo.
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Ignoravam muitos factos sobre Justine e Nessim que eram essenciais para a compreensão do seu caso. Mas para isso temos que regressar temporariamente à época que precedeu o seu casamento.
X
O crepúsculo azulado de Alexandria ainda não caíra completamente. — Mas é que... como hei-de dizer?... Estás verdadeiramente apaixonado por ela, Nessim? Bem sei que a tens perseguido e Justine não ignora o que te vai na cabeça. A cabeleira doirada de Clea estava apoiada na janela e os seus olhos fixavam-se no pastel onde trabalhava. Estava quase terminado; ainda alguns toques ligeiros, precisos, e poderia libertar o modelo. Nessim tinha vestido para esse efeito uma camisola raiada. Encontrava-se estendido sobre o pequeno e confortável divã e tinha entre os braços uma guitarra que não sabia tocar. — Como se escreve a palavra amor em Alexandria? - perguntou ele por fim, lentamente. — É aí que reside o problema. Insónia, solidão, bonheur, chagrin... Não desejo nem feri-la nem importuná-la, Clea. Mas sinto que ela precisa de mim como eu preciso dela. Diz qualquer coisa, Clea. Ele sabia que estava a mentir. Mas Clea ignorava-o. Moveu a cabeça com um ar de dúvida, sem cessar de examinar o seu trabalho, depois encolheu os ombros. Sou amiga de ambos; que melhor vos poderia desejar? E falei-lhe, como me pediste; tentei interessá-la, sondá-la. A coisa parece-me desesperada. «Seria essa a verdade estrita?», perguntava ela a si própria.
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Sentia-se sempre inclinada para acreditar em tudo o que lhe diziam. — Falso pudor? — perguntou ele num tom cortante. — Ela riu com um ar desiludido... assim! — de grande cansaço, para imitar Justine. publicação dos Moeurs ela tem a impressão Pensa que nunca mais poderá dar a paz de menos é o que ela diz.
disse Clea, com um gesto — Creio que depois da de andar nua pelas ruas. espírito a ninguém. Pelo
— E quem lhe pede semelhante coisa? — Ela pensa que é o que procuras. E depois, naturalmente, há a tua posição social. E ainda o facto de ela ser judia. Coloca-te no seu lugar. Clea calou-se por um momento. Depois acrescentou com o mesmo tom desinteressado: — Se ela precisa de ti é para utilizar a tua fortuna na procura da filha perdida. E é demasiado orgulhosa para uma tal transacção. Mas... tu leste os Moeurs. Bem sabes tudo o que eu te estou a dizer. — Nunca li os Moeurs — declarou ele fogosamente — e ela sabe que eu nunca lerei esse livro. Disse-lho. Oh, minha querida Clea! Suspirou. Outra mentira. Clea suspendeu o trabalho sorrindo, para contemplar o rosto sombrio do modelo. Depois prosseguiu, esfregando um canto do desenho com o polegar: — Chevalier sans peur, etc. Isso diz-te respeito. Mas será prudente idealizar-nos assim, a nós, as mulheres? És ainda um pouco criança, para um alexandrino. — Eu não a idealizo; sei perfeitamente que ela é triste, que ela é louca, que ela é má. Mas não o somos todos um pouco? O seu passado e o seu presente... toda a gente o conhece. Creio simplesmente que estão perfeitamente de acordo com a minha... — Com a tua?... — Com a minha esterilidade — proferiu ele com grande pasmo de Clea, sorrindo e coçando o sobrolho simultaneamente.
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Sim, às vezes, penso que nunca poderei apaixonar-me antes da morte de minha mãe — e ela ainda é relativamente jovem... Diz qualquer coisa, Clea! Clea sacudiu a cabeça, tirou uma fumaça do cigarro que se consumia no cinzeiro, e debruçou-se novamente sobre o retrato. — Bem — disse Nessim —, vou avistar-me com ela esta noite e tentarei fazê-la compreender. — Tentarás «conquistá-la», queres tu dizer? — Como o poderia eu? — Se ela não pode amar, seria desonesto fingir. — E eu, posso amar? Sei lá...; não vês que somos ambos uma espécie de âmes veuves? — Oh, oh... — fez Clea num tom indeciso mas sem perder o sorriso. — Durante um certo tempo o amor pode acompanhar-nos incógnito — disse ele retomando a pose, o ar grave, os olhos fitos na parede. — Mas estará presente. Esforçar-me-ei porque ela saiba. Sou assim tão enigmático aos teus olhos? — perguntou ele mordendo o lábio. — Desiludi-te? — Bem, vê se te conservas quieto — observou ela com um tom de censura; depois, voltou tranquilamente ao assunto: — Sim. É muito enigmático. A tua paixão tem um ar tão voluntário. Um besoin d'aimer sem um besoin d'être aimé? Mau! Ele tinha-se mexido outra vez. Clea suspendeu repreendê-lo novamente quando reparou nas horas.
o
trabalho
e
ia
É melhor que vás andando. Não deves fazê-la esperar. - Muito bem — disse ele com secura, e levantando-se despiu a camisola raiada, vestiu um casaco de bom corte procurando nos bolsos as chaves do carro preparou-se para partir. Depois, voltando atrás, aproximouse do espelho e penteou os cabelos negros com impaciência, tentando ao mesmo tempo imaginar como seria visto por Justine.
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— Gostaria de poder exprimir exactamente o que penso. Não acreditas na possibilidade de assinar um contrato de amor entre duas pessoas cujas almas ainda não se encontram suficientemente amadurecidas para amar? Uma tendresse contra um amour-passion, Clea? Se ela tivesse pais, eu tê-la-ia comprado sem hesitar. Se ela tivesse treze anos, nada teria para dizer, nada em que pensar, não é verdade? — Treze anos! — exclamou Clea indignada, estremecendo e ajustando-lhe o casaco nas costas. — Talvez — prosseguiu ele ironicamente — o infortúnio seja para mim uma espécie de diktat... Que pensas? — Mas nesse caso tu terias de acreditar na passion. E não crês. — Creio... mas. Teve um sorriso encantador e fez um gesto vago, meio de resignação, meio de cólera. — Ah! tu não me ajudas em nada — disse ele. — Esperamos sempre que os outros nos ensinem qualquer coisa. — Vai-te embora! — disse Clea. — Por hoje já basta do assunto. Mas dá-me um beijo antes. Os dois amigos beijaram-se e ela murmurou: «Felicidades», enquanto Nessim dizia entre dentes: — Tenho de perder o hábito de te fazer perguntas pueris. É absurdo. Sou eu próprio quem tem que tomar uma decisão a este respeito. — Bateu duas vezes na palma da mão com o punho fechado, e uma tal impetuosidade num ser tão pouco expansivo deixou-a perplexa. — Muito bem — disse ela arregalando os olhos azuis sob o impacto da surpresa —, isso é uma novidade! E soltaram ambos uma grande gargalhada. Ele, depois de lhe apertar o cotovelo, desceu a escada alegremente. O grande automóvel arrancou num salto lançando buzinadelas imperiosas, desceu Saad Zaghoul, atravessou a linha do eléctrico e deslizou em ponto morto pelas encostas que conduziam ao mar. Ia falando consigo mesmo em árabe.
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Talvez ela já o esperasse no lúgubre salão do Cecil Hotel, as mãos enluvadas cruzadas sobre a carteira, vendo o mar subir, espojar-se, crescer e fugir por detrás da pequena praça municipal para além da cortina de palmeiras que batiam e rangiam como velas bambas. Numa esquina foi retido por uma procissão esfarrapada que se dirigia para a cidade alta, com pendões desfraldados; tinha começado a cair uma chuvinha, arrastada pela brisa marinha carregada de nuvens; tudo flutuava agitando-se numa grande confusão. Os cânticos e o tilintar dos ferrinhos subiam timidamente para o ar. Aborrecido pelo contratempo, Nessim arrumou a viatura, fechou-a e percorreu a correr os cem metros que ainda o separavam da grande porta giratória que o projectou no silêncio e no odor húmido do grande salão. Entrou afogueado mas plenamente consciente da gravidade do momento. Havia meses que tinha empreendido o cerco de Justine. Como terminaria tudo aquilo: pela vitória ou por uma derrota? Recordou-se das palavras de Clea: «Creio que essas criaturas não são seres humanos. Só se encontram vivas na medida em que têm uma forma humana. Mas seja quem for que se encontre dominado por uma paixão única, oferece o mesmo espectáculo. Para a maior parte de nós, a vida não é senão um passatempo. Mas ela, ela parece ser uma representação pictórica tensa e exaustiva da natureza no seu estado mais superficial, o mais poderoso. Ela esta possessa — e os possessos não podem nem aprender nem ensinar. O que não deixa de a tornar adorável aos olhos de todos aqueles que são impelidos pela morte; mas, meu caro Nessim — sob que ângulo pretendes aceitá-la?» Não sabia ainda; encontravam-se ainda na fase das escaramuças e não falavam a mesma linguagem. E isso podia durar para sempre, pensava ele desolado. Tinham-se encontrado muitas vezes, mas oficialmente por assim dizer, e quase como associados em negócios, para discutir aquele casamento com a objectividade de corretores de Alexandria ultimando as modalidades da fusão de duas empresas.
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Mas são esses os costumes da cidade. Num gesto muito característico ele tinha-lhe oferecido uma grande soma de dinheiro. — Para que a sua decisão não seja influenciada por uma desigualdade de fortunas, peço-lhe que me permita fazer-lhe um presente de aniversário que lhe permitirá considerar-se como uma pessoa inteiramente independente — como uma simples mulher, Justine. Este dinheiro detestável, que envenena os pensamentos de todos os habitantes da cidade, que infecta todas as coisas! Livremo-nos do seu poder antes de decidir qualquer coisa. Mas aquilo não surtira efeito; ou melhor, provocara uma pergunta insultante, incompreensível: — Você faz isso para se deitar comigo? Mas não precisa casar. Oh! Eu farei tudo o que você quiser, Nessim. Aquilo desgostou-o e irritou-o. Tinha-se extraviado. Aparentemente era inútil prosseguir naquela via. Depois, de repente, após um longo momento de meditação, entreviu a verdade num relâmpago. Murmurou para si mesmo, muito surpreendido: «Aqui está porque me não compreendem: é porque eu não sou verdadeiramente honesto». Reconheceu que, embora de princípio se encontrasse subjugado pela sua paixão, não via outro meio de interessá-la sem ser, inicialmente, por uma doação pecuniária (sob o pretexto de «libertá-la», mas de facto unicamente para tentar vinculá-la) — e finalmente, à medida que o seu desespero aumentava, compreendeu que o único recurso era colocar-se inteiramente à mercê dela. Num certo sentido era uma loucura — mas não via nenhum outro meio de despertar nela um sentimento de obrigação sobre o qual todos os outros laços se poderiam inserir. É assim que uma criança se expõe ao perigo para atrair a atenção da mãe e forçar um amor de que se crê privada. — Escute. — disse ele numa voz alterada, carregada de novas vibrações, muito pálido. — Quero ser franco consigo. A vida real não me interessa. (O tremor da voz comunicara-se aos lábios.)
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Penso num laço muito mais apertado, em certo sentido, do que tudo o que a paixão possa inventar — um compromisso baseado na confiança mútua. Por um momento ela pensou na possibilidade de Nessim pertencer a qualquer estranha nova religião. Esperou com curiosidade, divertida, mas de certo modo perturbada por perceber até que ponto ele se encontrava comovido. — Vou agora fazer-lhe uma confidência que, se você a não guardar fielmente, me poderá causar grande dano, e à minha família também; mas sobretudo à causa que eu sirvo. Quero colocar-me inteiramente nas suas mãos. Suponhamos que nós ambos estamos mortos para todo o sentimento de amor... quero pedir-lhe para tomar parte numa perigosa... O mais estranho é que quando ele começou a falar assim, quando se encontrou a ponto de lhe revelar os seus mais secretos pensamentos, ela começou pela primeira vez a considerá-lo como um homem. Pela primeira vez, ele tocou-lhe numa corda sensível que se pôs a vibrar em uníssono, graças a uma confissão que, paradoxalmente, era o oposto de uma declaração de amor. Justine compreendeu, surpreendida e despeitada, mas também com um estremecimento de prazer, que ele não lhe pedia somente para partilhar o seu leito, mas toda a sua vida, a ideia fixa sobre a qual ela assentava. Ordinariamente só um artista é capaz de propor um contrato tão estranho e desinteressado — mas é um contrato que nenhuma mulher digna desse nome pode recusar. O que ele lhe pedia não era simplesmente que casasse com ele (e foi neste ponto que as suas mentiras originaram um mal-entendido) mas que partilhasse o daimon a que ele se achava acorrentado. Era, no sentido mais estrito, o único meio que ele via de frustrar a palavra «amor». Com voz calma e repousada, ele principiou, agora com completo domínio, depois de ter decidido dizer-lhe tudo. — Você sabe, toda a gente sabe, que os nossos dias estão contados desde que os franceses e os ingleses perderam o domínio do MédioOriente.
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Nós, as comunidades estrangeiras, com tudo o que aqui edificámos, somos, pouco a pouco, absorvidos pela poeirada árabe, pela onda muçulmana. Alguns de entre nós esforçam-se por deter a vaga: arménios, coptas, judeus e gregos, aqui no Egipto, enquanto outros se organizam em regiões diferentes. Eu trabalho nessa tarefa, aqui... Para defender-nos, simplesmente, para salvar a nossa vida e assegurar o nosso direito de pertencer a esta terra, e mais nada. Você sabe isso muito bem. Todos o sabem. Mas para aqueles que vêem um pouco mais longe na nossa História... Aqui ele compôs um sorriso de lado — um sorriso feio, com uma sombra de jactância. — Aqueles que vêem mais longe, sabem que só nos podemos manter neste mundo com o forte e bastante civilizada para dominar França e a Inglaterra — por mais que partida. Quem poderá substituí-las?
isto não passa de um biombo; apoio de uma nação bastante todo o sector. Actualmente a as apreciemos — perderam a
Calou-se, respirou fundo, e depois cruzou as mãos apertando-as entre os joelhos, como se quisesse espremer de uma esponja, lentamente, voluptuosamente, os seus mais secretos pensamentos. Prosseguiu num murmúrio: — Só existe uma nação capaz de decidir o futuro do Médio-Oriente. Capaz de mudar tudo; e mesmo, paradoxalmente, a existência dos miseráveis muçulmanos depende do seu poderio e dos seus recursos. Compreendeu-me, Justine? Devo pronunciar o nome dessa nação? Ou talvez, afinal de contas, estas coisas não tenham para si nenhum interesse? Lançou-lhe um sorriso radiante. Os seus olhares encontraram-se e ficaram por um momento presos, como se estivessem perdidamente apaixonados um pelo outro. Nessim nunca a vira tão pálida, tão atenta, toda a sua inteligência refluindo nos olhos.
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- Será preciso pronunciar o nome? — repetiu ele com uma voz mais seca. Então, soltando um longo suspiro, ela sacudiu a cabeça e disse, em voz baixa mas muito distintamente: — A Palestina. Seguiu-se um longo triunfante alegria.
silêncio
durante
o
qual
ele
a
contemplou
com
- Não me tinha enganado — disse ele por fim e Justine compreendeu imediatamente o sentido das suas palavras. — Sim, tem razão, a Palestina. Quando os judeus conquistarem a sua liberdade, todos nós poderemos respirar. É a única esperança que nos resta. Nessim pronunciou as últimas palavras com amargura. Acenderam os cigarros com dedos trémulos e sopraram o fumo que se erguera entre eles, envolvidos por uma nova atmosfera de paz e compreensão. — Toda a nossa fortuna encontra-se comprometida na luta que está prestes a iniciar-se aqui — disse ele a meia voz. — Tudo depende disso. Aqui, naturalmente, fazemos outras coisas que lhe explicarei. Os franceses e os ingleses ajudam-nos, pois nada vêem de mal no nosso movimento. Lastimo-os. Encontram-se numa posição desesperada porque não têm desejo de lutar, nem sequer de pensar. (O seu desprezo tinha um tom de ferocidade onde se misturava igualmente uma piedade sincera.) Os judeus, pelo contrário, representam um elemento novo; são a ponta de lança da Europa nestes pântanos formigantes de uma raça moribunda. Calou-se, e bruscamente, numa voz aguda e trémula, pronunciou o nome de Justine. Lentamente, olhos postos nos olhos, as mãos dos dois encontraram-se. Os seus dedos gelados entrelaçaram-se numa pressão nervosa. As suas expressões traduziam o deslumbramento que lhes comunicava uma vontade comum de acção, deslumbramento que era uma espécie de terror!
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A imagem de Nessim tinha-se bruscamente metamorfoseado. Iluminava-a uma nova grandeza. Justine contemplava-o, fumando, e via nele um ser muito diferente do que conhecera até então: um aventureiro, um corsário, jogando com a vida e com a morte; o seu poderio também, o poderio da sua fortuna, formava um espécie de pano de fundo trágico para a aventura. E ela compreendeu que não era a si que ele via — a Justine cuja imagem era devolvida pelos espelhos de moldura dourada, ou a Justine coberta de pinturas e vestidos caros — mas algo de mais íntimo ainda que uma amante despida na tepidez do leito. Era um pacto diabólico que ele lhe propunha. Mas havia ainda uma coisa extraordinária, surpreendente: pela primeira vez ela sentia o desejo despertar, nos flancos desse corpo desprezível, desse corpo de antemão possuído e que para ela não passava de um objecto ávido de prazer, um simulacro da realidade. Sentiu o desejo inesperado de ir com ele para a cama... não apenas com o seu corpo, mas com os seus projectos, os seus sonhos, as suas obsessões, o seu dinheiro, a sua morte! Era como se acabasse de compreender a natureza do amor que ele lhe oferecia: era toda a sua fortuna, a sua única fortuna, aquele piedoso sonho político que ele nutria no coração, havia tanto tempo e à custa de tantos tormentos que todo o resto da sua sensibilidade tinha sido esmagada. E Justine teve de repente a impressão de ter-se deixado enredar por uma teia de aranha gigantesca, aprisionar por leis que permaneciam abaixo do nível da sua consciência, da sua vontade, dos seus desejos, o fluxo e o refluxo autodestruidor da sua personalidade humana. De dedos sempre unidos, era através desse contacto que passava e se confundia toda a energia dos seus corpos. Bastava ouvi-lo dizer: «Agora tem a minha vida nas suas mãos» para lhe incendiar o cérebro e fazer-lhe o coração palpitar pesadamente no peito. — Agora tenho de me ir embora — disse ela. Sentia-se fraca e incerta, seduzida como estava pelas solicitações de um poder mais forte que qualquer atracção física. — Verdade, tenho de me ir embora.
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- Louvado seja Deus — murmurou ele a meia voz. — Louvado seja Deus. Finalmente estava tudo resolvido. Mas à satisfação que ele sentia misturava-se o terror de ter revelado a verdade, colocando-se de pés e mãos amarrados à mercê de Justine. O seu último recurso fora uma imprudência de consequências incalculáveis. Mas fora obrigado a isso. Por outro lado sabia, subconscientemente, que a mulher oriental não é uma sensualista no sentido europeu do termo; a pieguice não faz parte da sua constituição. Embora não o queira aparentar, está obcecada pelo poder, peia política e pelos bens materiais. O sexo está sempre presente no seu espírito, mas os seus gestos são requentados pela brutalidade cinética do dinheiro. Aceitando participar numa acção comum, Justine estava sendo consigo própria mais sincera do que nunca: era a resposta espontânea de uma flor que se volta naturalmente para a luz. E foi ali, enquanto se contemplavam calmamente, friamente, as cabeças inclinadas uma para a outra, como flores, que ela pôde dizer afinal, magnificamente: — Ah, Nessim! Nunca julguei possível aceitá-lo. Como descobriu afinal que eu só existo para aqueles que crêem em mim? Nessim observou-a um pouco assustado, reconhecendo nela a perfeita submissão do espírito oriental, a submissão feminina absoluta que é uma das maiores forças do Mundo. Saíram e caminharam juntos até ao automóvel, e Justine sentiu-se muito fraca, como se a tivessem abandonado em pleno mar. — Não sei mais que dizer. — Não diga nada. Comece a viver. Os paradoxos do verdadeiro amor são infinitos. Ela teve a impressão de receber uma bofetada. Entrou no primeiro café e pediu uma chávena de chocolate quente que bebeu com as mãos a tremer. Depois foi pentear-se e retocar a pintura.
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Sabia que a sua beleza não passava de um chamariz e cultivava-a com desdém. Algumas horas depois, Nessim, sentado no seu gabinete, marcava no telefone o número de Capodistria. — Da Capo — disse ele calmamente —, lembra-se do projecto que eu tinha formado de me casar com Justine? Vai tudo bem. Temos uma nova aliada. Desejo que seja você o primeiro a dar a notícia ao «comité». Penso que a partir deste momento eles não terão mais objecções a fazer ao facto de eu não ser judeu — visto que me caso com uma judia. Que pensa você? Escutou com impaciência as felicitações irónicas do amigo. — É uma impertinência — disse ele por fim, num tom gelado — imaginar que os meus sentimentos não entram em linha de conta. Você é um velho amigo, e a esse título peço-lhe que não volte a tomar esse tom comigo. A minha vida privada, os meus sentimentos, só a mim pertencem. Se estão de acordo com outros interesses, tanto melhor. Mas preste-me ao menos essa justiça: fui sempre um homem de honra. Amo Justine. E pronunciando aquelas palavras sentiu bruscamente sentiu nojo de si próprio. E perfeitamente exacta: o amor!
vontade de vomitar; contudo a palavra era
Descansou docemente o auscultador, como se este pesasse uma tonelada, e ficou um momento a contemplar a sua imagem reflectida sobre o tampo polido da secretária. Pensava: «O que se passa é que simplesmente eu não sou um homem que ela pense poder amar. Se não tivesse a possibilidade de lhe oferecer um projecto ousado, tê-la-ia cortejado em vão durante um século. Qual é, portanto, o sentido dessa palavrinha que agitamos em frente do nosso espírito como se fosse um copo de dados: o amor?» E sentia um desprezo tão profundo por si próprio que quase sufocava. Ela veio nessa noite, inesperadamente, procurá-lo a casa, quando o relógio dava as onze.
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Nessim ainda não se deitara e separava alguns documentos perto da chaminé. - Que deliciosa surpresa! — exclamou ele com genuína alegria. Ela ficou à porta, em silêncio, sombria, esperando que se afastasse o criado que a levara ali. Então deu um passo adiante, deixando escorregar dos ombros a capa de peles. Abraçaram-se apaixonadamente. Depois, voltando para ele os olhos que tomavam simultaneamente um ar terrificado e radiante de alegria à luz das chamas da lareira, Justine exclamou: — Finalmente conheço-te, Nessim Hosnani! Amor e conspiração. O poder da riqueza e a intriga, esses embaixadores da paixão, excitavam-se agora intimamente. No seu rosto via-se aquela expressão de radiosa inocência que se encontra nos que acabam de converter-se à vida monástica! — Venho para receber as tuas instruções — disse ela. Nessim estava transfigurado. Correu ao seu quarto no primeiro andar para retirar do cofre as pastas de correspondência — como para lhe provar a sua honestidade. Revelou-lhe o que nem a mãe nem o irmão sabiam: o papel importante que ele desempenhava na conjura da Palestina. Sentaram-se diante do fogo e estiveram embebidos no assunto quase até o romper da madrugada. — Já vês quais são as minhas preocupações mais imediatas. Tu podes ajudar-me. Em primeiro lugar, as dúvidas e as hesitações do «comité» judeu. Quero que lhes fales. Surpreendem-se com a colaboração de um copta quando os judeus de cá se abstêm, porque receiam perder a confiança dos egípcios. Temos de convencê-los. Necessitamos ainda de mais de um ano para reunir a quantidade de armas necessárias. E há ainda os nossos amigos ingleses e franceses que devem ignorar tudo isto. Sei que eles fazem o possível por descobrir a natureza das minhas actividades clandestinas. Creio que ainda não suspeitam de nada. Mas há entre eles duas pessoas que nos inquietam particularmente.
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Um desses pontos nevrálgicos é a ligação de Darley com a pequena Melissa; como já te disse, ela era a amante do velho Cohen que morreu este ano. Era ele o encarregado do embarque das armas para a Palestina e conhecia toda a organização. Ter-lhe-á dito alguma coisa? Ignoro. Uma outra personagem ainda mais equívoca é Pursewarden; pertence declaradamente aos Serviços de Informação da Embaixada. Somos os melhores amigos, mas... não sei se ele suspeita alguma coisa, nem de quê. Temos de tranquilizá-lo; se for necessário revelamos-lhe o movimento clandestino da comunidade copta! Que sabe ele? De que suspeita? É aí que me podes ajudar. Oh, Justine, eu bem sabia que havias de compreender. Os seus traços sombrios e tensos, tão compostos à luz da lareira, estavam marcados por uma nova radiância, por uma nova força. Aprovou com a cabeça. Na sua voz profunda e rouca, disse: - Agradeço-te, Nessim Hosnani. Agora já sei o que me cumpre fazer. Depois, fecharam as grandes portas à chave, arrumaram os papéis, e na cinza do dia que nascia, diante do fogo, despiram-se para fazer amor com a indiferença apaixonada de dois fantasmas. Por mais selvagens e triunfantes que fossem os seus beijos, não passavam da ilustração lúcida do seu drama humano. Tinham mutuamente descoberto as suas fraquezas mais íntimas, esse lugar geométrico do amor. E então não houve por fim mais nenhuma inibição ou restrição no espírito de Justine, e o que poderia parecer libertinagem era na realidade o factor poderoso de um abandono total ao próprio amor - uma forma de identidade verdadeira que ela nunca tinha experimentado com nenhum outro homem! O segredo que partilhavam dava-lhe liberdade de agir. E Nessim, afundando-se nos seus braços com uma feminilidade estranham ente doce, quase virginal, sentia-se sacudido e esmagado como uma: boneca de pano. A mordidela dos seus lábios tivera em criança~ memórias rajadas de pombos matizados.
lembrava-lhe a jumentinha árabe que confusas ascendiam e evoluíam como
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Sentia-se esgotado, a ponto de chorar, mas irradiado também por uma gratidão imensa, por uma infinita ternura. Toda a sua solidão se fundira no esplendor destes beijos. Encontrara um ser com quem partilhar o seu segredo, uma mulher à medida do seu coração. Paradoxo sobre paradoxo! Para ela era como se tivesse pilhado o tesouro espiritual de Nessim, do qual os seus bens terrestres constituíam o estranho símbolo: os canos frios das espingardas, os seios provocantes das bombas e das granadas nascidas do tungsténio, da goma arábica, da juta, dos navios mercantes, das opalas, das plantas medicinais, da seda e das árvores. Era ela quem conduzia a acção, e no ondular poderoso dos rins de Justine sentiu que o desejo vinha engrandecê-lo, fecundar as suas acções; e, para frutificar esses instrumentos fatais da sua potência, daria vida às lutas dilacerantes de uma mulher verdadeiramente estéril. O rosto de Justine era tão destituído de expressão como uma máscara de Siva. Não era nem belo nem feio, mas nu como a própria potência. Este amor parecia contemporâneo do amor dos santos que se tornaram mestres na arte glacial de reter o esperma a fim de melhor se reconhecerem — porque as suas chamas azuis não comunicavam ao corpo nenhum calor, mas sim um frio intenso. O espírito e a vontade queimavam como se tivessem sido mergulhados num banho de cal viva. Era uma verdadeira sensualidade isenta de todos os venenos civilizados que a transformam numa sensação anódina, agradável ao paladar de uma sociedade humana fundada sobre uma ideia romântica da verdade, içava diminuído por esse motivo o amor? Paracelso descreve relações semelhantes em uso entre os cabalistas. Em udo isso encontra-se o rosto austero, primitivo e indiferente de Afrodite. E entretanto ele repetia para si; «Quando tudo isto tiver terminado e eu tiver encontrado a criança perdida — então estaremos tão ligados um ao outro que ela nem sequer poderá pensar em deixar-me».
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A paixão dos seus amplexos vinha de uma cumplicidade, de algo mais profundo e mais perverso que as caprichosas tentações da carne e do espírito. Ele tinha-a conquistado oferecendo-lhe uma vida conjugal aparente, mas envolvendo-a ao mesmo tempo num projecto que podia arrastar ambos para a morte! Eis tudo o que o sexo podia presentemente significar para eles. Essa perspectiva da morte tinha qualquer coisa de fascinante, de sexualmente fascinante! Nessim levou-a a casa, na claridade trémula da manhã; esperou ascensor subisse lentamente, dificilmente, os três andares, depois descesse e parasse diante dele com um pequeno ressalto; apagou-se com um estalinho. A pessoa já lá não se encontrava, perfume subsistia. Um perfume chamado Jamais de la vie.
que o e que a luz mas o
XI
Durante todo o Verão e Outono os conspiradores organizaram uma série de festas de um esplendor raro na cidade. Agora, na casa de Nessim, não havia repouso, sempre animada pelas frescas e desusadas melodias de um quarteto de cordas, ou sacudida pelos sobressaltos viscerais dos saxofones, grasnando como patos no meio da noite. As cozinhas, vastas cavernas outrora desertas, fervilhavam agora com um exército de cozinheiros que mal acabavam de arrumar os destroços de uma festa sumptuosa começavam a preparar as iguarias para o próximo banquete. Dizia-se que Nessim tinha empreendido lançar Justine na sociedade _ como se os esplendores provinciais de Alexandria pudessem ter ainda quaisquer encantos para ele, que se tinha tornado um europeu pelo coração. Não, esses assaltos deliberadamente lançados contra a sociedade da segunda capital tinham um duplo fim de exploração e de diversão. Essas festas forneciam aos conspiradores um pano de fundo, diante do qual eles se podiam mover com a liberdade indispensável. Trabalhavam infatigavelmente e só quando se sentiam extenuados é que se permitiam umas breves férias no pavilhão a que Nessim chamava o «Palácio de Verão de Justine»; ali, podiam ler, escrever, tomar banhos de mar e receber alguns íntimos: Clea, Amaril, Baltasar.
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Mas sempre, depois desses intermináveis serões passados no tumulto das conversas e na selva dos talheres e das garrafas, fechavam as portas, trancavam os ferrolhos e subiam a escada soltando um suspiro de alívio, deixando ao cuidado dos criados sonolentos o campo de batalha cheio de destroços; porque no dia seguinte a festa recomeçava; iam lentamente, de braço dado, parando no primeiro patamar para descalçarem os sapatos e trocar um sorriso no grande espelho. Depois, para acalmar um pouco o espírito, davam uma ou duas voltas à galeria de pintura que continha uma valiosa colecção de impressionistas, trocando palavras sem interesse, enquanto os olhos de Nessim exploravam lentamente as grandes telas, testemunhas mudas da validade do seu universo privado e dos seus desejos secretos. Chegavam por fim aos seus quartos comunicantes, mobilados com gosto e situados na ala norte, o lado menos quente da casa. Era sempre o mesmo cerimonial: Nessim estendia-se vestido na cama enquanto Justine acendia a lâmpada de álcool para lhe preparar a infusão de valeriana que ele tomava contra a insónia. Depois, ela aproximava da cama a mesinha de jogo e faziam uma ou duas partidas trocando impressões sobre o que mais lhes preocupava os espíritos. Aqueles rostos sombrios, apaixonados, irradiavam então na luminosidade doce uma espécie de auréola que provinha' do segredo, dos apetites de uma vontade comum, dos desejos gémeos. Nessa noite, acabava ela de dar cartas quando o telefone começou a tilintar na mesinha de cabeceira. Nessim levantou o auscultador, ouviu por um momento sem falar, e passou-o a Justine. Sorrindo, ela levantou as sobrancelhas numa interrogação e o marido aprovou com um sinal de cabeça. «Alô!», fez ela na sua voz rouca, simulando grande cansaço, como se acabasse de sair da cama. «Sim, meu querido... Naturalmente. - Não, não estava a dormir. Sim, estou só». Nessim pegou nas suas cartas, enaipou-as e começou a estudá-las com um ar totalmente inexpressivo.
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A conversa durou alguns minutos e pousando o auscultador com um suspiro.
finalmente
Justine
desligou,
- Era esse pobre diabo do Darley — disse ela pegando nas cartas. Nessim levantou os olhos por um momento e pediu uma carta. Começando a jogar, ela principiou a falar em voz baixa, como se falasse consigo própria: - Ele está absolutamente fascinado pelos cadernos do meu diário íntimo. Recordas-te? Fui eu quem copiou todas as notas de Arnauti para os Moeurs quando ele partiu o pulso. Dei unidade às que ele não aproveitou para o romance e entreguei-as a Darley, dizendo-lhe que eram o meu diário íntimo. (A sua face cavou-se num sorriso triste.) Ele acreditou e agora diz-me que eu tenho uma maneira de ver as coisas muito masculina! E diz também que o meu francês não é dos melhores — o que devia encantar positivamente Arnauti, não achas? — Tenho pena de Darley — disse Nessim docemente. — É um bom rapaz. Um dia terei de lhe explicar tudo. — Mas não compreendo por que motivo te preocupas com essa Melissa — disse Justine, mais como se falasse consigo própria. — Tentei sondálo de todas as maneiras possíveis. Ele nada suspeita. E tenho a certeza de que ela também não. Simplesmente por ter sido a amante de Cohen... Nessim pousou as cartas e disse: — Não consigo desfazer-me da impressão de que ela sabe qualquer coisa. Cohen era um imbecil e um gabarola e, infelizmente, sabia tudo. — Mas por que motivo lhe havia ele de ter falado? — Simplesmente porque depois da morte de Cohen, de todas as vezes que essa fraldiqueira me encontra, olha-me como se soubesse qualquer coisa a meu respeito... é uma impressão difícil de precisar, más concreta, percebes? Jogaram em silêncio até que a chaleira começou a fumegar. Justine pousou as cartas e foi preparar a infusão, enquanto ele bebia a tisana, ela dirigiu-se ao seu quarto para tirar as jóias.
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Bebendo lentamente, Nessim ouviu-a colocar os brincos numa taça; depois percebeu o ruído dos comprimidos sedativos caindo no fundo do copo. Pouco depois ela veio sentar-se novamente em frente da mesa de jogo. — Já que tens receio dela, porque não tomas medidas para eliminá-la? Nessim lançou-lhe um olhar estupefacto e ela emendou: — Não, compreende-me, o que quero dizer é que podes tratar de afastála de cá. Nessim sorriu: — Pensei nisso, mas quando Darley se apaixonou por ela, eu... bem, eu simpatizo com ele. — A simpatia não é para aqui chamada — disse ela secamente, e ele aprovou com a cabeça, quase com humildade. — Bem sei. Justine deu cartas e os dois voltaram a estudar os respectivos jogos em silêncio. — Presentemente tento obrigá-la a partir... por intermédio de Darley. Amaril afirma que ela está gravemente doente e recomendou-lhe o internamento num sanatório de Jerusalém. Ofereci dinheiro a Darley. Mas o desgraçado tem escrúpulos. Muito inglês. É um bom diabo, Nessim, mas tem muito medo de ti e tem um monte de ideias a teu respeito que o consomem. Está tão desamparado que me faz dó. — Bem sei. — Mas é preciso que Melissa se vá embora. — Muito bem. Depois, num tom completamente diferente, Nessim levantou os olhos para a mulher e perguntou: — E Pursewarden? A pergunta ficou por um momento em suspenso no ar entre eles, hesitante como a agulha de uma bússola. Depois ele tornou a baixar os olhos sobre o jogo.
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O rosto de Justine tomou uma expressão nova, irritada e ansiosa ao mesmo tempo. Acendeu lentamente um cigarro e disse: - Já te disse que é um homem fora do vulgar — c'est un personnage. Seria impossível arrancar-lhe um segredo. É difícil defini-lo. Ela contemplou o marido demoradamente, com um ar ausente: - São tão diferentes um do outro! Darley é tão sentimental e tão fiel que da sua parte não há o menor risco. Mesmo que soubesse qualquer coisa que nos pudesse prejudicar não se serviria dela. Pursewarden, não! É inteligente, frio, e senhor de si. Completamente amoral... como um egípcio! Se nós morrêssemos, ele estava-se nas tintas. Não consigo compreendê-lo. Mas é um inimigo em potência que não devemos desprezar. Nessim levantou os olhos para Justine e ficaram assim a olhar-se durante um momento, os espíritos enlaçados. As suas pálpebras estavam agora cheias de uma doçura ardente, como as de uma ave de rapina, nobre e bizarra. Humedeceu os lábios mas não proferiu palavra. Estivera a ponto de deixar escapar estupidamente esta frase: «Tenho um medo terrível de que te apaixones por ele». Mas reteve-o um estranho pudor. — Nessim. — Diz. Justine esmagou o cigarro, distraída, levantou-se e começou a percorrer o quarto de um lado para o outro com as mãos escondidas debaixo das axilas. Como sempre que se encontrava perdida em reflexões profundas, tomava aquele modo de andar estranho, quase impudico, que lembrava de certo modo uma fera enjaulada. O olhar de Nessim era agora vago e melancólico. Tomou maquinalmente as cartas e baralhou-as, uma vez, duas vezes. – Depois arrumou-as na mesa de jogo e levou as mãos a face escaldante. Ela aproximou-se imediatamente colocando a palma tépida na testa do marido.
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— Estás outra vez com febre. — Creio que não — disse ele vivamente. — Põe o termómetro. — Não. Ela sentou-se em frente do marido, debruçada para ele, procurando-lhe o olhar. — Nessim, que se passa? A tua saúde... estas febres... e ainda por cima não dormes? Ele sorriu com um ar cansado e apoiou a costa da mão contra a face ardente. — Não é nada — disse ele. — Um pouco de cansaço depois deste serão, e é tudo. E depois foi preciso contar a verdade a Leila. Ela ficou alarmada quando compreendeu toda a extensão dos nossos projectos. Isso torna as suas relações com Mountolive ainda mais difíceis. Creio que foi por essa razão que ela evitou encontrar-se com ele durante o carnaval, lembras-te? Eu tinha-lhe falado nessa manhã. Pouco importa. Dentro de seis meses estará tudo a postos. O resto depende deles. Mas naturalmente a ideia de partir entristece Leila. Já sabia que ela ia recusar. E demais, tenho outras preocupações graves. — Que preocupações? Mas ele sacudiu a cabeça, levantou-se, despiu-se e deitou-se. Acabou então de ingerir a sua infusão e ficou estendido, imóvel, de mãos e pés cruzados, como um cavaleiro morto na Terra Santa. Justine apagou a luz e ficou à porta, sem dizer palavra. Mas afinal falou: — Nessim, não compreendo o que se passa contigo. Estás doente? Confia em mim, peço-te! Houve um grande silêncio. Depois, ela disse: — Em que irá dar tudo isto? Ele soergueu-se ligeiramente na almofada e olhou para a mulher. — No Outono, quando tudo estiver pronto, teremos de tomar novas disposições. Será necessário separar-nos, talvez por um ano inteiro, Justine. Quero que vás à Palestina e que lá te conserves durante o desenrolar dos acontecimentos.
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Leila irá para a quinta no Quénia. Haverá por aqui reacções muito vivas e tenho de ficar para lhes fazer frente. - Tu falas durante o sono. - Estou esgotado — gritou ele numa impaciência irritada. O perfil de Justine, que se destacava no enquadramento da porta, permaneceu imóvel. — E os outros? — perguntou ela docemente. Ele soergueu-se de novo para lhe responder numa voz fatigada. — O único que me preocupa de momento é Da Capo. Temos de arranjar maneira de simular a sua morte. De qualquer maneira ele tem de desaparecer porque está excessivamente comprometido. Ainda não estudei todos os pormenores. Ele deseja que eu receba o seu seguro de vida porque está cheio de dívidas, completamente arruinado, de maneira que a sua desaparição não surpreenderá ninguém. Tornaremos a falar disto mais tarde. Deve ser relativamente simples resolver esse problema. Ela retirou-se e dirigiu-se para o seu quarto, onde começou a despirse. Ouvia, ao lado, Nessim suspirar e agitar-se. No grande espelho, Justine contemplou o rosto cansado, doloroso, retirou a pintura e começou a pentear voluptuosamente os cabelos negros. Depois deitouse, apagou a luz e caiu sem esforço num sono ligeiro. Era quase dia quando Nessim entrou no quarto, descalço. Ela acordou ao contacto dos braços do marido em redor das espáduas; Nessim estava ajoelhado junto da cama, acometido por uma crise que ela de princípio tomou por uma crise de lágrimas. Mas ele tremia como se tivesse febre e os dentes batiam convulsivamente. - Que tens? — perguntou ela alarmada. Ele cobriu-lhe os lábios com um dedo, para que se calasse. Tenho de te dizer por que motivo me porto de uma forma tão estranha. Não posso mais, Justine, há ainda outra dificuldade.
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Trata-se de Narouz; é horrível mas tenho de encarar a possibilidade de ser forçado a eliminá-lo. Por esse motivo é que quase fiquei louco. Ele anda a cometer imprudências e não sei o que hei-de fazer, Não sei! Esta conversa deu-se muito pouco antes do inesperado suicídio de Pursewarden no Monte dos Abutres.
XII
Mas não foi somente para Mountolive que todas as peças do tabuleiro ficaram baralhadas pelo acto solitário e pusilânime de Pursewarden — e pela inesperada descoberta da causa primeira da sua morte. Nessim, que também se tinha deixado embalar por sonhos de uma acção precisa e sem falhas, encontrava-se agora, tal como o amigo, nas garras das forças de atracção inerentes ao motor dos nossos actos, forças que os fazem dilatar-se, ramificar-se, deformar-se, espalhar-se como uma mancha sobre um tecto branco. Os senhores começavam a aperceber-se de que em verdade não passavam de servos das forças que tinham desencadeado e que a natureza é fundamentalmente ingovernável. Em brave estariam lançados em caminhos que não tinham escolhido, aprisionados num campo magnético dominado pelas mesmas forças que provocam as marés ou acções que obrigam os salmões cintilantes a subir uma ribeira – acções que se encurvam e expandem para um futuro que os mortais são incapazes de canalizar ou afastar, Mountolive percebia isso, vagamente inquieto, estendido na cama e vendo subir para o tecto o fumo enovelado do seu charuto. Para Nessim e Justine, estendidos lado a lado na Câmara sumptuosa e sombria, falando em voz baixa, a certeza era ainda maior. Sabiam que aquilo ultrapassava as suas vontades e sentiam os maus presságios e sentiam os maus presságios acastelarem-se em torno deles - paradigmas das forças desencadeadas que tendiam a realizar-se, mas como e de que maneira?
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Tudo isso estava longe de ser absolutamente claro. Pursewarden, antes de se deitar pela última vez no sen leito enxovalhado, entre as imagens murmurantes e cada vez mais distantes de Melissa e de Justine — e todas as restantes memórias íntimas —, tinha telefonado a Nessim numa voz alterada, marcada por uma amarga resignação, carregada pelos esplendores de uma morte iminente. — É uma questão de vida ou de morte, como se diz nos livros. Sim, peço-lhe que venha imediatamente. Há uma mensagem para si no lugar apropriado: no espelho. E desligou com uma gargalhadinha que gelou Nessim na outra extremidade do fio: tinha pressentido imediatamente o desastre. No espelho daquele quarto miserável, entre as obscuras citações do romancista, encontrou, escritas em maiúsculas, com sabão de barba humedecido, as seguintes palavras:
NESSIM. COHEN, PALESTINA, ETC. TUDO DESCOBERTO E COMUNICADO.
Fora essa mensagem que ele apagara em parte quando ouvira passos na escada e pancadas na porta, antes de Justine e Baltasar penetrarem no quarto na ponta dos pés. Mas as palavras e a recordação daquela gargalhadinha de despedida (que lembrava a voz de qualquer deus Pan ressuscitado) fixaram-se para sempre no seu espírito' Quando mais tarde relatou esses factos a Justine, o seu rosto estava vazio de qualquer expressão, como um homem atormentado por uma nevralgia facial, e isso porque a natureza pública daquele acto o tinha gelado de terror. Para começar, compreendeu que lhe seria impossível dormir; era uma mensagem que merecia longa meditação. Estavam os dois esposos estendidos lado a lado, imóveis como estátuas num túmulo egípcio, naquele quarto obscurecido, os olhos arregalados, contemplando-se como objectos; cegos, inumanos, espelhos de quartzo, estrelas mortas...
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De mãos dadas, suspiravam e segredavam... - Bem te tinha dito que era Melissa... Aquela sua maneira de olhar para mim... Eu desconfiava... Os outros aspectos angustiantes do caso confundiam-se entrecruzavam-se no seu espírito, nomeadamente o caso de Narouz.
e
Sentia o que devia sentir um cavaleiro, no silêncio de uma fortaleza investida, ouvindo bruscamente as pancadas das pás e das picaretas, o choque lancinante das alavancas dos sapadores, adivinhando que os assaltantes progridem inexoravelmente debaixo das muralhas. Supondo que Mountolive estivesse ao corrente, que seria ele obrigado a fazer? (Estranho como esta simples expressão os traía a ambos, lançando-os fora do livre jogo da vontade humana.) Eram ambos agora obrigados a agir, encadeados como escravos, ao desenrolar de uma acção que não ilustrava as disposições naturais de nenhum deles. Tinham-se lançado no livre exercício da vontade, para se encontrarem, afinal de contas, prisioneiros das malhas do devir histórico. Um simples impulso comunicado ao caleidoscópio fora suficiente para provocar aquilo. Pursewarden! O escritor que se comprazia a escrever: «As pessoas acabarão por compreender um dia que só o artista é dotado do poder de fazer acontecer coisas; é por esse motivo que toda a sociedade devia assentar nele». Um deus ex-machina! Matando-se, servira-se deles como... como de uma latrina pública, simplesmente para demonstrar a verdade dos seus próprios aforismos! Teria podido utilizar muitas outras demonstrações para fazer isso, sem os separar pelo acto da sua morte, sem os incompatibilizar, tornando-os conhecedores de factos que nenhum deles Podia aproveitar! Agora estava tudo suspenso por um fio. Mountolive agiria, sim, mas somente se fosse obrigado a isso; uma só palavra a Memlik Paxá desencadearia novas forças, faria despontar novos perigos...
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A cidade com os seus obcecantes ritmos de morte vibrava em torno deles nas trevas — gemidos de pneus nas praças desertas, o uivo dilacerante de um rebocador na doca, o apito de um navio que levanta ferro. Nunca até então tinha sentido com tal peso a evidência, o irresistível afundamento da cidade sufocada na poeira da morte e nas dunas estéreis do Mareótis. Voltava o seu espírito de um lado para o outro, como uma ampulheta; mas era sempre a mesma areia que corria, as mesmas perguntas insolúveis que desfilavam no mesmo andamento trôpego. Diante deles erguia-se a possibilidade de um desastre, na previsão do qual — a despeito de terem pesado objectivamente todos os riscos — não tinham feito qualquer reserva de forças. Era estranho. Mas Justine, reflectindo furiosamente, a fronte baixa, o punho apoiado nos dentes, parecia sempre impassível, e Nessim sentia piedade por ela, porque a dignidade do seu silêncio (o olho impassível da Sibila) lhe conferia coragem para fixar o pensamento sobre o dilema. Deviam continuar como se nada tivesse mudado, quando, de facto, tudo tinha mudado. Saber que deviam, imperturbavelmente, como cavaleiros atarraxados nas suas armaduras, prosseguir no caminho traçado, dava-lhes simultaneamente a impressão de que uni abismo se tinha escancarado e que um novo laço, mais forte, os unia, uma camaradagem mais apaixonada, semelhante à que liga os soldados nos campos de batalha, conscientes de terem renunciado a todos os sentimentos humanos — amor, família, amigos, lar — e de nada mais serem que servidores de uma vontade de ferro que se revela nos sinais couraçados do dever. — Devemos preparar-nos para todas as eventualidades — lábios ressequidos pelo abuso do cigarro — e aguentar esteja preparado — digamos, para o Natal. Temos talvez mais tempo do que suspeitamos; pode mesmo ser que nada sabemos se Mountolive está informado.
disse ele, os até que tudo diante de nós aconteça. Nem
Depois acrescentou numa voz mais surda, como se não lhe restasse qualquer ilusão:
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- Mas se estiver, nós o saberemos. A sua atitude não me enganará. A partir de agora podia temer encontrar-se inesperadamente perante o cano de uma pistola — em qualquer esquina de qualquer recanto sombrio da cidade; um criado subornado poderia deitar-lhe veneno na comida... Pelo menos poderia reagir contra estas eventualidades mercê de uma aturada vigilância. Justine continuava estendida na cama com os olhos muito abertos, muda. — E depois — acrescentou ele — irei falar amanhã a Narouz. É preciso que ele olhe as coisas de frente. Algumas semanas antes, quando ia a entrar no seu gabinete, tinha encontrado o grave Serapamoun sentado na poltrona reservada aos visitantes, fumando tranquilamente um cigarro. Era, de longe, o copta mais importante e mais influente de todos os reis do algodão, e tinha desempenhado um papel decisivo apoiando o movimento clandestino instigado por Nessim. Eram amigos velhos, embora o mais idoso pertencesse a outra geração. O seu rosto doce e sereno e a sua voz tinham a marca de autoridade que lhe conferia uma educação europeia. O seu falar era o de um homem de espírito vivo e ponderado. — Nessim — disse ele com doçura —, venho procurá-lo como representante da nossa comunidade. Tenho um penoso dever a cumprir. Posso falar-lhe francamente, sem paixão nem rancor? Estamos muito inquietos. Nessim foi fechar a porta à chave, desligou o telefone e apertou afàvelmente o ombro de Serapamoun quando passou por detrás da poltrona do visitante ao dirigir-se Para a sua cadeira. — É isso que eu mais desejo — respondeu. — Fale— Trata-se de Narouz. — Pois bem, que se passa? — Nessim, quando você fundou o movimento da comunidade copta, o fim não era provocar uma jehad — uma guerra santa — nem tentar fosse o que fosse contra o governo egípcio. Era o que todos nós pensávamos e se aderimos foi devido a partilharmos da sua convicção de que os coptas se deviam unir para participarem mais directamente nos negócios públicos.
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Fumou um momento em silêncio, mergulhado em profunda reflexão. Depois prosseguiu: — O nosso patriotismo comunitário não diminuía em nada o nosso patriotismo para com o Egipto, não é verdade? Foi-nos grato ouvir Narouz pregar as verdades da nossa religião e da nossa raça. Sim, isso deu-nos muito prazer, porque eram coisas que precisavam ser ditas, que precisavam ser sentidas. Mas... há mais de três meses que você não assiste a nenhuma reunião. Sabe que mudança se I operou entretanto? Narouz deixou-se arrastar pelos seus poderes de orador e proclama actualmente certas coisas que nos podem comprometer gravemente. Estamos muito inquietos. Ele crê-se encarregado de uma espécie de missão. Na sua cabeça ferve uma confusão de noções estranhas, e quando prega é uma torrente que lhe sai da boca, e nem quero pensar no que sucederia se tais palavras chegassem aos ouvidos de Memlik Paxá. Calou-se novamente. Nessim sentiu-se empalidecer. Serapamoun recomeçou, na sua voz igual e bem timbrada. — Dizer que os coptas retomarão o seu lugar ao sol é uma coisa; mas dizer que eles varrerão o regime corrupto dos paxás que possuem noventa por cento das terras... falar de apoderar-se do poder no Egipto e de reformar a ordem... — Ele diz semelhantes coisas? — balbuciou Nessim, e o velho confirmou gravemente com um gesto de cabeça. — Sim. Graças a Deus, as nossas reuniões são secretas. No decurso da última assembleia ele pôs-se a uivar como um melboos (possesso) e a gritar que, se fosse necessário para os nossos fins, armaria os beduínos. Poderá você fazer qualquer coisa para detê-lo? — Não creio que possa. — Estamos muito inquietos pelas consequências que de tais palavras possam advir para a organização.
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Contamos consigo para tomar as medidas convenientes. Meu caro Nessim, é preciso detê-lo; ou, pelo menos, fazer-lhe compreender um pouco melhor o nosso papel. Ele frequenta demais a velha Taor — agora está constantemente no deserto com ela. Não creio que ela tenha ideias políticas, mas Narouz regressa sempre da sua caverna com um fervor religioso exacerbado. Falou-me dela e contou-me que ficam de joelhos na areia, durante horas seguidas, à torreira do sol, orando em conjunto. «Agora eu vejo as suas visões e ela vê as minhas». Foi o que ele me disse certo dia. E demais abusa da bebida. Penso que é urgente fazer qualquer coisa. — Irei procurá-lo sem demora — dissera Nessim. E agora, voltando-se para mergulhar os olhos nos olhos negros e impassíveis de uma Justine que ele reconhecia mais valorosa, repetia para si lentamente aquela frase, tacteando-a com o espírito como quem experimenta o fio de uma navalha deslizando suavemente o polegar. Tinha adiado aquela entrevista com um pretexto ou outro, embora soubesse que, mais cedo ou mais tarde, teria que enfrentar Narouz e domá-lo... mas um Narouz bem diferente daquele que sempre tinha conhecido. Eis senão quando Pursewarden se mata acrescentando a sua morte e a sua traição ao fardo de todas aquelas preocupações de que Narouz não tinha a menor ideia. O seu espírito febril corria agora em caminhos paralelos que se perdiam no infinito. Tinha a sensação de que as coisas se cerravam em torno dele, que começava a sufocar sob o Peso dos cuidados que ele próprio fora colher. E tudo tinha sucedido bruscamente, no espaço de poucas semanas, começava a sentir o desespero insinuar-se nele, porque agora todas as decisões que pudesse tomar não mais pareciam ser o efeito da sua vontade, mas meras respostas a pressões exteriores; as exigências de um processo histórico para onde ele se sentia arrastado, aspirado como por areias movediças. Mas se não podia dominar os acontecimentos, era indispensável que se dominasse a si e aos seus nervos.
pelo
menos
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Havia semanas que se socorria dos sedativos, mas estes nada mais faziam do que exorcizar temporariamente as convulsões do seu subconsciente; treinava-se atirando à pistola, mas isso não passava de uma ridícula e pueril precaução contra um eventual assassino, sem grande eficácia no debelar da sua tensão nervosa. Sentia-se possesso, assaltado por sonhos onde revia toda a sua infância; sonhos que brotavam sem razão e que o tomavam quase de surpresa quando ele se encontrava acordado. Consultou Baltasar mas não podia, é bem evidente, confiar-lhe as verdadeiras preocupações que o atormentavam, de forma que o velho amigo o aconselhou a que anotasse todos os seus sonhos, o que Nessim fez. Mas ninguém se pode desembaraçar das suas tensões psíquicas, a menos que aceite enfrentá-las decisivamente para vencê-las, lutando contra os fantasmas da razão vacilante... Tinha decidido esperar uma oportunidade em que se achasse mais bem disposto para ter a entrevista com o irmão. Felizmente, as reuniões do grupo eram pouco frequentes. Mas cada dia que passava a sua decisão era cada vez mais débil e foi Justine quem encontrou a boa palavra e o forçou a partir para Karm Abu Girg. - Eu própria iria matá-lo se não tivesse a certeza de que isso nos separaria para sempre. Mas se achas que é a única solução, terei a coragem suficiente para dar a ordem em teu lugar. Naturalmente, ela não falava a sério. Era um artifício para arrancálo da apatia em que se encontrava, e instantaneamente o seu espírito readquiriu toda a lucidez; todas as brumas da indecisão se dissiparam. Estas palavras, tão terríveis, e contudo pronunciadas serenamente, tiveram o poder de reacender o seu amor apaixonado por ela, e as lágrimas subiram-lhe aos olhos. Contemplou-a como um crente contempla a Virgem - e com efeito o rosto de Justine, lúgubre e imóvel, onde ardiam duas pupilas fulgurantes, evocava uma antiga pintura de igreja bizantina.
253 - Justine — disse ele, com as mãos a tremer. - Nessim — disse ela na sua voz rouca, passando a língua pelos lábios ressequidos, mas com uma determinação selvagem no olhar. Foi quase num tom de triunfo (porque todas as barreiras tinham caído) que ele disse: — Irei hoje, não receies nada. Tudo ficará resolvido de uma maneira ou de outra. Sentiu-se bruscamente cheio de força e decidido a obrigar Narouz a partilhar dos seus pontos de vista, a fim de afastar o perigo de se comprometer uma segunda vez aos olhos dos seus irmãos, os coptas. Quando se meteu a caminho nessa tarde, as suas novas disposições de espírito não o tinham abandonado, e a grande viatura, conduzida com firmeza, levou-o rapidamente, ao longo dos diques poeirentos dos canais, em direcção ao embarcadouro onde os cavalos, que ele tinha pedido pelo telefone, deviam esperá-lo. Agora sentia-se impaciente por encontrar o irmão, por forçá-lo a baixar os olhos e render-se à razão, reabilitando-o aos seus próprios olhos. Ali acolheu-o no lugar combinado com os habituais cumprimentos que lhe pareceram de bom agouro e lhe fortaleceram a resolução. Afinal de contas, era o mais velho! O homem tinha trazido o próprio cavalo árabe, um branco, de Narouz, e galoparam vivamente ao longo dos canais, perseguidos pelos trémulos reflexos que as águas devolviam dos seus vultos. Limitara-se a perguntar se o irmão estava em casa e Ali respondera sombriamente que sim. Não tornaram a falar durante todo o trajecto. A luz violeta do crepúsculo pairava já em suspensão no ar e os vapores do anoitecer exalavam-se pesadamente do lago para o céu. Os mosquitos elevavam-se no esplendor do sol moribundo como torrentes de prata capturando nas asas os últimos vestígios de calor. A passarada reunia-se em famílias. Como tudo aquilo parecia calmo! Os morcegos tinham principiado a sua dança lenta nas zonas mais sombrias do espaço. Os morcegos!
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A mansão dos Hosnani avistava-se já numa fresca penumbra violeta, acaçapada como estava no sopé de um outeiro, à sombra da aldeia, cujo minarete branco ainda ardia nos últimos raios do poente. Ao desmontar, Nessim ouviu a vergastada seca do chicote e teve um vislumbre do homem encavalitado no balcão mais elevado da casa, olhando intensamente para o charco azulado do pátio. O homem era Narouz; e contudo, de certo modo, não era Narouz. Pode um simples gesto de alguém que conhecemos revelar uma mutação interior? O homem do chicote, ali parado, olhando com tanta intensidade para o pátio sombrio, denunciava na sua própria pose uma nova e perturbadora arrogância, uma autoridade que não pertencia, por assim dizer, ao reportório dos gestos habituais de Narouz. — Está a treinar-se — explicou o intendente em voz baixa, segurando as rédeas do cavalo. —. Agora, todas as noites treina-se com o chicote, abatendo morcegos. Nessim sentiu subitamente uma impressão de incoerência: — Morcegos? — murmurou entre dentes. O homem do balcão — o Narouz dessa impressão fugidia — soltou uma gargalhadinha inesperada e contou numa voz gutural: — Treze. Nessim escancarou as portas e ficou imóvel, enquadrado na luz. Falou para cima, para o céu que escurecia, num tom tranquilo, quase de conversa, projectando a voz como um ventríloquo para a figura que se recortava no topo da escada, com o comprido chicote enrolado num flanco, em repouso. — Ya, Narouz — disse Nessim, repetindo tradicional das suas saudações infantis.
com
afecto
a
fórmula
— Ya, Nessim — respondeu o outro após uma pausa, e depois um pesado silêncio cresceu entre os dois. Nessim, cujos olhos se tinham acostumado à escuridão, descobriu que o pátio estava cheio de cadáveres de morcegos, como fragmentos de sombrinhas partidas, alguns palpitando e arrastando-se nos charcos do próprio sangue, outros jazendo inertes e despedaçados.
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Era então isso que Narouz fazia ao anoitecer — «treinava-se abatendo morcegos!» O intendente fechou abruptamente os grandes batentes nas costas de Nessim, e, mergulhado nas trevas, Nessim ergueu de novo os olhos para o topo da escada onde esse irmão desconhecido o esperava numa atitude de grande tensão vigilante. Um morcego atravessou a luz e ele viu o braço de Narouz esboçar um movimento involuntário e tornar a cair de novo ao longo do corpo; do seu posto dominante, no topo da escadaria, podia fustigar os seus alvos de cima para baixo. Nenhum deles falou durante um momento; depois, uma porta abriu-se, rangendo, lançando um raio de luz para o pátio, e o intendente saiu da casa com uma vassoura e começou a varrer os cadáveres das vítimas de Narouz. Este debruçou-se para observar aquela operação e, quando o outro estava prestes a lançar a pilha de corpos destroçados através da porta que abriu para a rua, a sua voz grasnou: — Treze, não é? — Treze. A voz do irmão provocou em Nessim um estremecimento sombrio, porque lhe pareceu a voz autoritária de um homem que se embriagou com haxixe ou ópio; a voz de alguém que se exprimia a partir de uma nova órbita, num universo desconhecido. Tomou uma profunda inspiração e quando os seus pulmões se encheram completamente elevou novamente a cabeça para o irmão, alcandorado no alto da escada. - Ya Narouz! Vim falar-te de coisas muito importantes. É urgente. — Sobe! — uivou Narouz. — Espero-te aqui, Nessim. A voz esclareceu Nessim porque era a primeira vez que voz do irmão o recebia sem um tom de afecto, mesmo alegria. Normalmente teria descido as escadas a correr a lhe dar as boas-vindas, saltando os degraus e exclamando: «Nessim, que bom teres vindo!»
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Nessim atravessou o patamar e apoiou a mão ao corrimão poeirento. — É um assunto grave — disse secamente, como para afirmar a importância do seu papel naquele cenário: o patamar mergulhado na sombra, e aquela personagem enigmática no cimo do balcão, recortandose no céu mais claro e observando-o com o chicote assassino pendendo sem esforço da mão poderosa. Narouz repetiu «Sobe», num tom mais brando, e subitamente sentou-se, colocando o chicote a seu lado sobre o último degrau. Era a primeira vez, pensou Nessim, que a sua vinda a Karm Abu Girg não era bem-vinda. Começou a subir os degraus lentamente, de cabeça erguida. Estava muito menos escuro no primeiro patamar e no segundo havia luz suficiente para ver a face do irmão. Narouz estava sentado, imóvel, coberto por uma capa e calçando botas. O punho do chicote enrolado na balaustrada descansava-lhe sobre os joelhos. Ao seu lado, no soalho poeirento, via-se uma garrafa de gin semiconsumida. O queixo repousava sobre o peito enquanto observava a ascensão de Nessim, espreitando-o por entre as pestanas densas, com uma expressão de crueldade onde se casava uma singular tristeza. Contraía e descontraía os maxilares — um tique que lhe era familiar e que fazia os músculos das têmporas palpitar num ritmo regular, como um pulso. Observava a lenta ascensão do irmão com um ar sombrio e indeciso e nos seus olhos brilhava intermitentemente uma cólera muda. dominada com dificuldade. Quando Nessim alcançou o último degrau, Narouz estremeceu e lançou uma espécie de uivo rouco — um som que seria natural nas goelas de um cão — e, estendeu a mão cabeluda. Nessim parou e ouviu o irmão dizer-lhe: — Senta-te ali, Nessim — com uma voz nova e autoritária, mas sem qualquer nota ameaçadora. Hesitou, debruçou-se para melhor interpretar o gesto formulado por aquela enorme mão estendida, como a ilustrar uma imprecação, os dedos abertos e ligeiramente trémulos.
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- Tu bebeste — disse finalmente num tom calmo mas penetrado de um intenso desgosto. — Narouz, não era teu hábito... A sombra de um sorriso desenhou-se nos lábios torvos do irmão, um sorriso marcado por uma espécie de irónico desprezo. Depois alargouse num esgar que revelava plenamente o lábio leporino e que logo desapareceu, como devorado, absorvido por um pensamento que não conseguia exprimir. Narouz tinha nesse momento um estranho ar de incerta arrogância, de orgulho simultaneamente insípido e esgazeado. — Que me queres? — perguntou grosseiramente. — Despacha-te, Nessim. Bem vês que me estou a treinar. — Vamos para casa, para podermos falar em particular. Narouz sacudiu a cabeça lentamente e, depois de reflectir, disse secamente: — Podes falar aqui. — Narouz — bradou Nessim, irritado pelas respostas inusitadas, e no tom de voz que empregaria para despertar um sonâmbulo —, por favor. O homem, sentado no último degrau da escada, ergueu a cabeça para o outro, o olhar estranhamente incendiado num rosto onde pairava uma expressão de grande tristeza, sacudindo novamente a cabeça, teimou numa voz surda: — Já disse o que tinha a dizer, Nessim. A voz aguda de Nessim repetiu com uma nota de compaixão que se foi quebrar no silêncio do pátio. — Preciso de falar contigo, compreendes? — Mas fala aqui, diz já o que tens para dizer. Eu estou à escuta. Aquele homem envolvido no seu manto era uma personagem nova e inesperada. Nessim sentiu as faces cobrirem-se de cor. Subiu mais dois degraus e a sua voz silvou. — Narouz — disse imperiosamente —, venho da parte deles.
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Em nome de Deus, que lhes tens tu andado a dizer? A Comissão ficou apavorada com as tuas palavras. Suspendeu o discurso e exibiu hesitantemente o memorando que lhe fora entregue por Serapamoun, gritando: — Este.., este papel entregaram-mo eles. Os olhos de Narouz incendiaram-se momentaneamente com um orgulho de ébrio mas de certo modo tornado majestoso pela projecção do queixo e pela postura arrogante dos ombros. — As minhas palavras, Nessim? — gemeu ele, e depois acrescentou sacudindo a cabeça. — E as palavras de Taor. Quando chegar o momento, saberemos o que havemos de fazer. Ninguém tem nada a temer. Não somos sonhadores. — Sonhadores! — bradou Nessim sufocado, agora quase fora de si devido à apreensão e ao desagrado e mortificado também por aquela maneira tão pouco convencional de o irmão se lhe dirigir. — Claro que andais a sonhar! Não tentei tantas vezes explicar-te o que procuramos fazer?... o que tudo isto significa? Um camponês e um idiota, é o que tu és... Mas estas palavras, que outrora teriam produzido no espírito de Narouz o efeito de um aguilhão, deixaram-no indiferente. Apertou os lábios e varreu o ar diante dele com a palma generosamente aberta. — Palavras! irmão.
—
exclamou
teimosamente.
—
Agora
já
te
conheço,
meu
Nessim olhou em redor, desvairado, como para procurar socorro ou qualquer instrumento suficientemente pesado para enterrar a verdade do que tinha a dizer na cabeça daquele homem sentado à sua frente. Sentia uma cólera surda invadi-lo, diante daquele vulto embrutecido pelo álcool, que tão obstinadamente se recusava a obedecer-lhe. Tremia; não tinha certamente previsto nada disto quando saíra de Alexandria, de espírito claro e mente composta. — Onde está Leila? — gritou num tom agudo, como se quisesse invocar o auxílio da mãe.
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Narouz soltou uma gargalhadinha: - Na casa de Verão, bem sabes. Porque não vais procurá-la? - Riu de novo e depois prosseguiu balançando a cabeça com uma expressão absurdamente infantil. — Ela agora está zangada contigo. Desta vez ela está contra ti e não contra mim. Tu fizeste-a chorar, Nessim. O lábio inferior de Narouz tremia. — Bêbado — silvou Nessim sem se poder dominar. Os olhos de Narouz fuzilavam. Lançando a cabeça para trás soltou uma gargalhada que soou asperamente, como uma espécie de uivo breve. Depois, bruscamente, o sorriso apagou-se e a sua expressão tornou-se outra vez triste e desconfiada. Humedeceu os lábios e murmurou: «Ya, Nessim», em voz muito baixa, como se recuperasse o sentido das conveniências. Mas Nessim, lívido de cólera, encontrava-se agora quase fora de si. Subiu os poucos degraus que faltavam para alcançar o topo da escadaria e sacudiu os ombros de Narouz, quase a gritar: — Doido, tu pões-nos a todos em grande risco. Vê isto que Serapamoun me entregou. A Comissão dissolver-se-á se tu não te calares. Compreendes? Tu estás louco, Narouz! Em nome de Deus, Narouz, tenta compreender o que eu te digo. Mas a enorme cabeça do irmão parecia agora perplexa, assaltada por expressões contraditórias, como o garrote de um toiro sujeito a uma dor intolerável. — Narouz, escuta-me. O rosto que se erguia lentamente para Nessim parecia ter-se tornado maior e mais ausente, os olhos mais baços e contudo pejados pela dor de uma nova espécie de conhecimento que pouco devia às estéreis resoluções da razão; pejado de uma espécie de cólera e incompreensão, confusas e perturbadoras, que procuravam exprimir-se. Entreolharam-se os dois irmãos raivosamente. Nessim tinha os lábios exangues e estava ofegante, mas Narouz permanecia sentado, imóvel, o olhar fixo, os lábios arrepanhados sobre os dentes brancos, como hipnotizado.
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— Ouves-me? Estás surdo? Nessim sacudiu-o outra vez, mas o irmão, com um simples gesto das potentes espáduas, libertou-se daquelas mãos importunas, enquanto o sangue lhe afluía ao rosto. Nessim prosseguiu, porém, teimosamente, arrastado pelas preocupações escaldantes que brotavam de dentro dele, envolvidas numa torrente de censuras. — Puseste-nos a todos em perigo, mesmo a Leila, mesmo a ti, mesmo a Mountolive. Que pouca sorte o levou a pronunciar aquele nome fatal? A sua menção actuou sobre Narouz como uma descarga eléctrica, enchendo-o de uma nova e quase triunfante exasperação. — Mountolive — bradou ele num profundo rugido, apertando os dentes numa pancada seca; parecia possesso. Contudo, não se moveu, embora a mão se deslocasse involuntariamente para o cabo do chicote que jazia no seu colo. — Esse suíno inglês! — trovejou numa veemência sufocada, quase cuspindo as palavras. — Porque dizes isso? Então produziu-se outra transformação inesperada e súbita quando todo o corpo de Narouz se descontraiu e cedeu; depois lançou ao outro um olhar matreiro e disse, com uma gargalhadinha, num tom que era quase um murmúrio: — Tu vendeste-lhe a nossa mãe, Nessim. Bem sabes que isso ia causar a morte do nosso pai. Era de mais. Nessim caiu sobre o irmão, flagelando-o com os punhos cerrados e soltando maldições em árabe. Mas os seus murros caíam como algodão sobre aquele enorme corpo. Narouz não se moveu, não fez qualquer tentativa para defender-se ou retribuir a agressão — aqui. Por fim, a primogenitura de Nessim prevaleceu. Narouz não conseguia decidir-se a bater no irmão. Mas ali sentado, dobrado em dois, rindo debaixo da fútil saraivada de socos, repetia incessantemente, numa voz odienta: — Tu vendeste a nossa mãe.
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Nessim continuou a bater até sentir os dedos doloridos e tumefactos. Narouz curvava a cabeça debaixo daquele assalto febril, sustentando-o com o mesmo sorriso triste, amargo e lacrimoso, repetindo a mesma frase num murmúrio apaixonado. — Pára! — gritou Nessim finalmente, desistindo de bater-lhe, caindo contra a balaustrada e descendo sob o peso do seu próprio cansaço até ao primeiro patamar. Sacudiu o punho para o vulto sombrio que continuava sentado e bradou incoerentemente: — Irei eu próprio falar com Serapamoun. Verás quem manda. Narouz soltou uma gargalhadinha de desprezo, mas não respondeu. Pondo em ordem as roupas amarrotadas, Nessim cambaleou pela escada abaixo para o pátio agora completamente nas trevas. No momento em que soltava o cavalo e acabava de montar, trémulo e praguejando, o intendente apareceu para abrir a portada. Narouz tinha-se levantado; a sua silhueta destacava-se agora contra o clarão amarelado da sala. Fulgurações espasmódicas de cólera estriavam ainda o espírito de Nessim, acompanhadas por uma grande irresolução e pelo sentimento de que a missão de que se tinha encarregado redundara num completo fiasco. Hesitava em partir assim e, procurando oferecer ainda àquela personagem silenciosa, que se conservava lá em cima, uma última possibilidade de reconciliação, voltou a montada, atravessou novamente o pátio, parou debaixo do balcão com a cabeça levantada. Narouz agitou-se. — Narouz — disse Nessim docemente. — Disse-te de uma vez por todas. Verás quem é o senhor. Seria mais prudente que tu... Mas o homem lá no alto soltou uma gargalhada espessa e rangente como o relincho de um burro. - Senhor e servo — lançou-lhe com desdém. — Sim, Nessim, havemos de ver. E para já... Debruçou-se sobre a balaustrada e, na sombra, Nessim viu o látego deslizar no soalho ressequido como uma cobra e lamber o ar crepuscular do pátio.
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Depois, uma pancada seca, como uma ratoeira que se fecha, explodiu a poucos centímetros dele, e o maço de papel, que conservava na mão, foi-lhe brutalmente arrebatado e espalhou-se no chão. Narouz soltou então um grande riso histérico. Nessim sentiu o calor da chicotada perto da mão, embora a chibatada não o tivesse atingido. — Vai-te embora! — gritou Narouz, e de novo o látego se veio projectar num desafio à garupa do cavalo. Nessim ergueu-se nos estribos e, agitando o punho para o irmão, bradou: — Veremos! Mas a sua própria voz lhe pareceu débil, como abafada pelas imprecações que ferviam no seu espírito. Cravou as esporas no flanco do cavalo e atravessou o pátio como uma flecha, deitado sobre o pescoço da montada, cujas ferraduras arrancavam chispas nas lajes do caminho. Dirigiu-se para o vau como um louco, o rosto contorcido pela cólera; mas o galope regular do cavalo acalmou-o e depressa se sucedeu um desgosto imenso que lhe corroía lentamente o espírito, como uma serpente venenosa. Depois começaram a submergi-lo ondas de remorso quando compreendeu que as próprias bases do viver familiar tinham ruído. Desautorizado nas suas prerrogativas de primogénito naquele universo feudal que era o deles, sentiu-se de repente como um filho pródigo, quase um órfão. E no fundo da sua própria cólera concentrava também um sentimento de culpa; sentia-se emporcalhado, como se acabasse de cometer uma devassidão naquela luta contra Narouz. Retomou a estrada da cidade com o automóvel em andamento moderado; lágrimas voluptuosas de cansaço e de ternura corriam-lhe pelas faces. Era estranho, inexplicável, que, desde o momento em que Serapamoun lhe tinha discretamente falado do irmão, tivesse previsto e temido aquele rompimento irreparável que anuviava de uma maneira mais angustiosa o espectro dos deveres e das responsabilidades para com a causa que ele próprio iniciara e devia agora servir.
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Num plano ideal devia estar preparado em semelhante crise para afastar Narouz, demiti-lo, e se fosse necessário!... (Travou bruscamente o carro, desligou o motor e ficou ali paralisado, com os lábios a tremer. Tinha censurado aquele pensamento pela centésima vez. Mas a natureza do caso exigia que se enfrentassem as realidades. Jamais compreendera Narouz, pensou. Mas não é preciso compreender-se uma pessoa para amá-la. O seu domínio não fora jamais profundo, criado pela compreensão; derivara das convenções familiares. E agora o laço quebrara-se inesperadamente.) Bateu com as mãos doloridas no volante do carro e gritou: «Nunca lhe farei mal algum». Embraiou o carro repetindo «nunca» e, contudo, reconhecia nesta decisão uma nova fraqueza, porque o seu amor traía o seu próprio ideal do dever. Mas o seu alter ego veio então socorrê-lo com fórmulas apaziguantes: «Afinal, não é assim tão sério. Claro, teremos de dissolver o movimento temporariamente. Mais tarde pedirei a Serapamoun para recomeçar outro, análogo. Poderemos então isolar e afastar este... fanático». Nunca até então compreendera a que ponto amava aquele irmão odiado, cuja mente tinha sido abalada por sonhos, cuja poesia religiosa conferia ao seu Egipto um novo futuro, maravilhoso e ideal. «Devemos esforçar-nos por encarar as formas eternas da natureza, aqui, sobre esta terra, nos nossos corações, neste nosso Egipto». Fora isto o que Narouz dissera, entre muitas outras coisas que compunham a transcrição incompleta que Serapamoun tinha mandado fazer, «devemos lutar nesta terra contra a injustiça secular, e nos nossos corações contra a injustiça de uma divindade que só se ocupa com as lutas do homem para conquistar a sua alma». Seriam estas fórmulas simplesmente copiadas de Taor ou representariam as lucubrações originais de um fanático ignorante? Outras frases, paramentadas com as magnificências da poesia, ocorreram-lhe. «Dirigir é ser dirigido; mas dirigente e dirigido devem ter uma consciência divina do seu papel, na sua participação na herança do Divino.
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A lama do Egipto ergue-se para afogar-nos os pulmões, os pulmões com que suplicamos a Deus o direito de viver». Reviu bruscamente a face contorcida de Narouz, a sua voz balbuciante naquele primeiro dia em que se sentiu possesso invocando o espírito divino para que o visitasse com uma verdade revelada. «Meded! Meded!» Estremeceu. E então apercebeu-se lentamente de que de certa maneira paradoxal Narouz fazia bem procurando despertar a vontade adormecida — porque via o Mundo, não tanto como um tabuleiro de xadrez político mas como um pulso batendo no núcleo de uma vontade superior que só podia ser invocada e promovida pela poesia dos salmos. Capaz de despertar não apenas os impulsos cerebrais com as suas fórmulas limitadas, mas também a beleza adormecida nas camadas profundas — a consciência poética que jaz, comprimida como uma mola, no coração de cada um. Esto pensamento aterrou-o consideravelmente; porque viu que seu irmão podia ser um chefe religioso, mas nunca na: circunstâncias prevalentes de tempo e lugar. Era um prodígio da natureza, mas as suas faculdades desenvolviam-se num terreno estéril, incapaz de alimentá-las e que na verdade havia de sufocá-las para sempre. Ao chegar a casa abandonou o carro no portão e subiu a escadaria a correr, galgando três degraus de cada vez. Assaltara-o um dos seus habituais ataques de diarreia e vómitos que se tinham tornado excessivamente frequentes nas últimas semanas. Passou a correr por Justine, que jazia de olhos abertos sobre a cama, com a lâmpada da cabeceira acesa e a partitura de um concerto para piano aberta sobre o peito. Ela não se moveu mas puxou uma fumaça pensativa, murmurando apenas: — Voltaste tão depressa. Nessim correu para a casa de banho, abrindo todas as torneiras para abafar o ruído dos vómitos. Depois despiu-se, despojando-se com repugnância das roupas, como quem se liberta de ligaduras purulentas, e meteu-se sob o chuveiro para se lavar, debaixo do jacto quente, de todas as indignidades que infestavam os seus pensamentos.
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Sabia que ela estaria a ouvi-lo atentamente, a fumar atentamente, os seus movimentos regulares como um pêndulo, esperando que lhe falasse, estendida ao comprido debaixo da prateleira de livros, diante da máscara que lhe sorria ironicamente da parede. Depois, a água deixou de correr e ela ouviu-o esfregar-se vigorosamente com uma toalha. — Nessim — chamou ela docemente. — Falhou tudo — respondeu ele logo. — Narouz louco, Justine. Não consegui nada. Foi horrível.
está
completamente
Justine continuou a fumar em silêncio, com os olhos presos nas cortinas. O quarto estava impregnado do perfume das pastilhas que ardiam no purificador junto do telefone. — Nessim — disse ela com aquela voz rouca que se lhe tornara tão querida. — Sim. — Estou a pensar. Saiu imediatamente da casa de banho, os cabelos húmidos e em desordem, pés nus, vestindo um roupão de seda amarela, as mãos enterradas nos bolsos, um cigarro aceso num canto da boca. Pôs-se a caminhar lentamente de um lado para o outro, em frente da cama. Depois disse, pesando as palavras: — Tudo isto provém de eu recear fazer-lhe mal. Mas mesmo que corramos perigo por causa dele, não devemos tocar-lhe, nunca. Jurei isso a mim próprio. Considerei o problema a fundo. Isso poderá parecer uma traição aos nossos deveres, mas desejo que fique bem entendido. De outra forma não conseguirei recuperar a minha calma. Estarás a meu lado? Tornou a olhar para ela com ternura, com os olhos da sua imaginação. Estendida, como se flutuasse sobre a colcha de damasco, as mãos e os pés cruzados como uma efígie, Justine conservava os olhos sombrios pousados sobre o marido.
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Uma madeixa de cabelo negro, ondulado, caía-lhe sobre a testa. Jazia no silêncio de um quarto que tinha assistido (se as paredes têm ouvidos) às suas deliberações mais secretas, presididas por uma máscara tibetana com as órbitas iluminadas. Por detrás delas brilhavam as prateleiras com os livros que Justine coleccionara embora não os tivesse lido todos. Utilizava os textos como teclas de cristal, abrindo-os e colocando o dedo ao acaso sobre uma frase (chama-se a esta arte «bibliomancia»). Schopenhauer, Hume, Spengler, e bastante singularmente algumas novelas, incluindo três de Pursewarden. As suas encadernações polidas reflectiam a luz das velas. Pigarreou, apagou o cigarro e disse numa voz calma: — Posso resignar-me a tudo o que disseres. Neste momento a tua fraqueza é um perigo para nós os dois. Além disso a tua saúde preocupa-nos a todos, especialmente a Baltasar. Mesmo pessoas pouco observadoras, como Darley, começam a notar. Isso não é bom. A sua voz era fria e sem timbre. — Justine! — exclamou ele, cheio de admiração. Foi sentar-se ao lado dela, na cama, envolvendo-a num abraço frenético. Os seus olhos radiavam uma nova alegria, uma nova gratidão. — Sou tão fraco — lastimou-se. Estendeu-se ao lado dela, colocou os braços debaixo da cabeça e ficou em silêncio, pensando. Durante muito tempo ficaram assim, silenciosamente, lado a lado. Por fim, ela disse: — Darley veio jantar esta noite e saiu antes de tu chegares. Disse-me que a Embaixada regressa ao Cairo na próxima semana. Mountolive não regressa a Alexandria muito antes do Natal. É também a nossa oportunidade de descansar e recuperar forças. Disse a Selim que íamos para Abu Seir na próxima semana e que nos demorávamos lá um mês. Agora tens que repousar, Nessim. Podemos nadar e cavalgar no deserto e esquecer. Tudo... percebes? Passados uns tempos, convidarei Darley para vir e ficar connosco por algum tempo para que tenhas alguém com quem conversar.
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Sei que gostas dele e a sua companhia fará bem a ambos. De vez em quando poderei vir até cá ver como correm as coisas... Que dizes? Nessim gemeu docemente e voltou a cabeça. - Porquê? — murmurou Justine com suavidade. — Porque fazes isso? Nessim suspirou profundamente e disse: — Não é o que tu pensas. Bem sabes que gosto dele e que nos damos bem. Mas é essa dissimulação, esse papel que é preciso representar mesmo diante dos amigos. Se ao menos não fôssemos obrigados a representar, Justine. Mas percebeu que ela o observava com os grandes olhos muito abertos, com uma expressão que sugeria horror ou desfalecimento. — Ah! — disse ela pensativamente ao fim de um momento, cerrando os olhos. — Ah, Nessim! Sem isso eu não teria sido capaz de me conhecer. Os dois homens estavam sentados na estufa, enfrentando silenciosamente o magnífico tabuleiro de xadrez, numa perfeita camaradagem. O jogo fora um presente que Mountolive recebera da mãe quando fez vinte e um anos. De tempos a tempos, um e outro pensavam em voz alta, o olhar ausente. Não era uma conversa, mas somente a comunicação de dois espíritos que a estratégia grandiosa do xadrez realmente absorvia; um subproduto da amizade que tem as suas raízes nos silêncios fecundos do jogo real. Baltasar falava de Pursewarden. O seu suicídio atormenta-me. Tenho a impressão de tê-lo interpretado mal. Tomei-o por uma manifestação de desprezo do Mundo, de desprezo pela maneira como correm as coisas neste mundo. Mountolive ergueu a cabeça vivamente. - Não, não. É um conflito entre o dever e a afeição. E acrescentou imediatamente: Mas não posso dizer-lhe mais nada a esse respeito.
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Quando a irmã dele chegar talvez ela lhe possa dizer mais alguma coisa. Calaram-se por um momento. Baltasar suspirou e disse: — A verdade nua e impudica. Que maravilhosa expressão! Mas vemo-la sempre como ela se mostra e nunca como ela é. Cada homem tem a sua interpretação pessoal. Outro longo silêncio. Baltasar pôs-se a falar para si, num longo monólogo. — Às vezes uma pessoa julga-se um Deus e acaba por receber uma amarga lição. Houve uma época em que eu detestei profundamente Dmitri Randidi; mas nada tinha contra a sua adorável filha. Simplesmente para humilhá-lo (foi num baile de carnaval e eu tinha-me mascarado de cigana) pus-me a ler a sina à rapariga. Disse-lhe: «Amanhã vai suceder uma coisa que alterará todo o curso da sua vida: encontrará um homem sentado na terra em ruínas de Taposiris. Não lhe dirá nada mas lançar-se-á nos seus braços, de olhos fechados. Deve fazer isso porque é o seu destino, porque está escrito. O seu pronome começa por um L e o nome de família por um J». (Com efeito ela tinha já pensado num jovem particularmente feio, com essas iniciais, e que nessa noite se encontrava no baile dos Cervoni, do outro lado da rua. Perfil de suíno, pestanas sem vida, cabelo cor-de-areia.) Soltei uma risadinha quando ela me acreditou. Tendo-lhe lido a profecia — toda a gente crê nas ciganas e demais com a minha cara morena e o meu nariz aquilino dou uma esplêndida feiticeira — tendo arrumado isto, atravessei a rua, fui procurar L. J. - e disse-lhe que tinha uma mensagem para ele. Sabia que o sujeito era supersticioso e que não me reconheceria. Disse-lhe o que tinha a fazer. Um acto maligno e repugnante, creio eu. Só tinha em vista atormentar Randidi. E tudo correu como eu tinha planeado. A encantadora rapariga obedeceu à cigana e apaixonou-se por aquele sapo ruivo. Não era possível imaginar um consórcio menos conveniente. Mas era essa a minha ideia — enfurecer Radidi! É claro que enfureceu, e eu sentia-me muito ufano do meu ardil.
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Evidentemente, o pai opôs-se ao casamento. Os amantes que eu tinha inventado — foram separados. E então Gaby Randidi, a bonita rapariga, envenenou-se. Pode imaginar como eu me senti. Isto esmagou a saúde do pai e a neurastenia (que foi sempre uma tara familiar) acabou por vencê-lo. No último Outono encontraram-no enforcado debaixo da vinha mais famosa de toda a cidade... No silêncio que se seguiu, ouviram-se estas palavras de Baltasar: — Uma história mais da nossa cidade implacável. Mas, xeque à sua Dama, se não estou em erro...
XIII
Com a queda das primeiras bátegas outonais, Mountolive regressou ao Cairo sem ter tomado nenhuma decisão importante no campo da política; Londres mantinha-se em silêncio no campo das revelações contidas na carta de adeus de Pursewarden e parecia mais disposta a partilhar o desgosto de um embaixador cujos subordinados se revelavam de duvidoso mérito do que a criticá-lo ou a sujeitar toda a matéria a um inquérito aprofundado. Nada exprimia melhor o sentimento geral que a longa e pomposa carta na qual Kenilworth analisava a tragédia e afirmava que toda a gente «no Ministério» tinha ficado penalizada mas não surpreendida. Não tinha Pursewarden sido sempre considerado uma personagem de certo modo outrée? Aparentemente havia muito que se esperava um tal desenlace. «O seu encanto» — escrevia Kenilworth na sua prosa em estilo augusto, reservada para aquilo que ele designava por uma «estimativa equilibrada» — não conseguia cobrir as suas aberrações. Não preciso sequer referir-me ao dossier especial que lhe mostrei. In Pace Requiescat. Mas você tem a nossa simpatia pela boa fé que o levou a reputar estas considerações a fim de lhe dar uma outra oportunidade numa legação que já tinha considerado intoleráveis suas maneiras e erróneas as suas opiniões». Mountolive contorcia-se lendo aquilo; entretanto, à sua contrariedade associava-se um vago e paradoxal alívio porque via, ocultas por detrás destas considerações, as sombras de Nessim e de Justine, os fora-da-lei.
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Se abandonava Alexandria com relutância era simplesmente porque o problema, ainda por resolver, de Leila o atormentava. Temia os novos pensamentos que era forçado a enfrentar a respeito dela e da sua possível parte na conspiração — se alguma havia — e sofria os transes do criminoso cujo crime ainda não foi descoberto. Não seria melhor forçar o encontro — ir um belo dia e sem aviso a Karm Abu Girg arrancar-lhe a verdade? Mas não podia fazer isso. Não tinha coragem. Esforçou-se por não pensar no futuro e começou a fazer as malas, soltando numerosos suspiros, preparando-se para mergulhar outra vez na corrente tépida das actividades sociais que lhe distraíam o espírito. Pela primeira vez os deveres áridos do seu cargo lhe pareciam quase agradáveis e aliciantes. Lançou-se na rotina dos entretenimentos prescritos — para matar o tempo e sossegar a dor — com uma concentração e um ardor que tinham quase um efeito hipnótico. Nunca ele tinha irradiado um encanto tão estudado, nunca tinha concedido a futilidades uma tal atenção que lhes emprestava as proporções de autênticos ornamentos sociais.' Uma verdadeira colónia de maçadores concentrou-se em torno dele. Pouco tardou que as pessoas começassem a perceber como ele tinha bruscamente envelhecido, atribuindo a mudança aos incessantes prazeres a que se entregava com um entusiasmo frenético. Que ironia! A sua popularidade expandia-se em vagas. Mas agora começou a parecer-lhe que muito pouco restava oculto na bela e insolente máscara que ele exibia ao Mundo, salvo um terror e uma incerteza inteiramente novos. Isolado de Leila, sentia-se abandonado, órfão. Tudo o que lhe restava era a poção amarga dos deveres do seu cargo, a que se entregava com o ardor do desespero. Acordando de manhã, quando o criado vinha abrir os cortinados — lenta e respeitosamente como se erguesse o sudário do túmulo de Julieta — pedia os jornais e lia-os com atenção enquanto ia remexendo na bandeja carregada com os requintes a que o seu género de vida o habituara. Mas já esperava impacientemente a pancada na porta anunciando o aparecimento do seu jovem e barbeado terceirosecretário, carregado com a agenda e restante impedimento das suas funções.
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Esperava sempre ardentemente ter o dia bem preenchido e quase se sentia angustiado quando só enfrentava obrigações pouco importantes. Felizmente eram raros esses dias. Recostado nas almofadas, subjugando a impaciência, ouvia Donkin ler-lhe o programa do dia no tom de quem lê o Credo. Por mais insossos que fossem esses encontros oficiais, soavam aos ouvidos de Mountolive como uma promessa de esperança, uma prescrição contra o aborrecimento e a angústia. Escutava como um sibarita inquieto a voz que recitava: — Onze horas, visita a Rashad Pasha para entregar um aide-mémoire respeitante a um investimento britânico. A chancelaria possui os documentos. Depois, almoço com Sir John e Lady Gilliatt. Errol vai recebê-los ao aeroporto. Sim, remetemos flores para o hotel. Vêm assinar o livro, hoje, às onze horas. A filha deles está indisposta, o que perturba um pouco o arranjo da mesa; mas como V. Ex.a a tinha convidado Haida Pasha e o Ministro americano, tomei a liberdade de inscrever Errol e a esposa; assim compõe-se tudo. Não necessitei consultar o protocolo porque •w John vem cá em visita particular — toda a Imprensa o divulgou. "ousando todos os memorandos muito bem dactilografados num belo papel rígido e armoriado, Mountolive suspirou perguntando: — Que tal é o novo chef? Faça o favor de mandá-lo depois ao meu gabinete. Conheço um prato predilecto dos Gilliatt. Donkin aquiesceu respeitosamente e rabiscou uma nota sua agenda antes de prosseguir, numa voz neutra: - Às seis horas há a recepção a Sir John em casa de Haida. V. Ex.a aceitou o convite para jantar na Embaixada da Itália um jantar em honra do signor Maribo. O tempo é um pouco apertado...
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— Visto-me antes — disse Mountolive pensativamente. — Há também um ou dois apontamentos escritos pela mão de V. Ex.a e que eu não consigo decifrar. Um menciona o Bazar dos Perfumes, Lilás da Pérsia. — Sim, claro. Prometi levar lá Lady Gilliatt. Faça o favor, arranjanos transporte e previne-os da nossa visita. Depois do almoço, digamos, às três e meia. — Depois há uma nota sobre «Presentes ao almoço». — Ah, sim — disse Mountolive. — Estou ficando muito oriental. Bem vê, Sir John pode ser-nos muito útil em Londres, no Ministério, portanto decidi tornar a sua visita tão memorável quanto possível, de acordo com os seus gostos. Quer ter a bondade de ir ao Karda, em Soleiman Pasha, comprar um par de miniaturas dessas figurinhas de Tel Al Aktar, das coloridas? Fico-lhe muito grato. São lindíssimas. E faça embrulhá-las com um cartão para colocar ao lado dos talheres de Sir John e Lady Gilliatt. Muito obrigado. Outra vez só, sorveu o seu chá e entregou-se mentalmente ao dia que se apresentava diante dele, rico de distracções que não deixavam lugar para as perguntas angustiosas. Lavou-se e vestiu-se com deliberada lentidão, concentrando a mente na escolha das roupas convenientes para a sua visita oficial da manhã, apertando cuidadosamente a gravata defronte do espelho. «Tenho de mudar de vida radicalmente e sem demora — pensou Mountolive — ou ela tornar-se-á completamente vazia. Que poderei fazer?» Algures, na cadeia da causalidade, encontrou um espaço vazio que se cristalizou na sua mente em torno da palavra «companhia». Repetiu-a em voz alta, ei» frente do espelho. Sim, era ali que estava a falha. «Tenho de comprar um cão», pensou, algo pateticamente, «par" me fazer companhia. Tomarei conta dele. Poderei leva-a passear nas margens do Nilo». O absurdo da cena saltou-lhe aos olhos e ele sorriu.
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Contudo, no decurso do seu habitual giro pelos gabinetes da Embaixada, perguntou muito seriamente a Errol que espécie de cão daria um bom companheiro. Tiveram uma demorada e agradável discussão sobre as várias raças e concluíram que um fox-terrier seria o mais conveniente para um solteirão. Um fox-terrier! Ia repetindo aquele nome quando atravessou o patamar para ir visitar os adidos, sorrindo da sua própria estupidez. «Qual será a próxima?» O seu secretário tinha deixado os papéis convenientemente arrumados nos competentes tabuleiros e colocado a pasta vermelha dos despachos contra a parede; uma única espira do fogão eléctrico mantinha o gabinete numa temperatura tépida adequada para o trabalho rotineiro desse dia. Mountolive lançou-se aos telegramas com exagerada atenção e examinou as respostas rascunhadas pelos seus secretários. Achou-se a alterar frases, a inventar orações aqui e além, a acrescentar notas à margem; isto nele era novo porque nunca tinha manifestado excessivo zelo em matéria de inglês oficial e temia na verdade os portentosos circunlóquios que fora obrigado a introduzir nos seus próprios rascunhos quando era um simples secretário sob as ordens de um Ministro que se julgava um estilista — mas haverá alguma excepção nos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Não. Nunca fora exigente neste capítulo, mas agora a concentração forçada em que vivia e trabalhava tinha começado a produzir os seus frutos, que se traduziam numa série de pedantices que principiavam a irritar Errol e os outros. Embora não ignorasse isto, Mountolive insistia; criticava, comentava e emenda trabalhos que não ignorava estarem bem feitos, servindo-se na sua tarefa do grande Dicionário de Oxford e um Skeat — como um clérigo medieval cortando a meio cabelos teológicos. Acendia um charuto e fumava pensativamente enquanto ia emendando e rasurando sobre o papel-mármore das minutas. Nesse dia, às dez horas, chegou o habitual e bem-vindo tilintar de chávenas e pires e o guarda da Chancelaria apresentou-se algo precariamente com a taça de Bovril e o prato de biscoitos para anunciar o intervalo consagrado à pequena refeição.
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Mountolive estendeu-se numa poltrona por um quarto de hora, enquanto sorvia o líquido quente, com os olhos perdidos na parede branca onde se via um grupo de pinturas japonesas — a decoração padronizada escolhida pelo Ministério das Obras Públicas para os gabinetes dos embaixadores. Dentro de poucos minutos iria ocupar-se da mala da Palestina; já estavam a separá-la no serviço dos arquivos — os pesados sacos de lona espalhados pelo chão, com as bocarras escancaradas, os amanuenses separando rapidamente a correspondência sobre os balcões gradeados, cobertos de repes verdes, os secretários dos diversos serviços esperando pacientemente do lado de lá das grades a sua parte nos despojos... Mountolive sentia nessa manhã uma vaga e inquietante premonição, porque Maskelyne não tinha ainda dado qualquer sinal de vida. Nem sequer acusara a recepção da última carta de Pursewarden. Aquilo intrigava-o. Houve uma pancadinha na porta, e Errol hesitante, trazendo na mão um impressionantemente carregado de selos.
entrou com volumoso
o
— É de Maskelyne, sir — anunciou ele e Mountolive espreguiçando-se com um ar de estudada indolência.
seu passo sobrescrito ergueu-se
— Santo Deus! — exclamou sopesando o sobrescrito antes de devolvê-lo a Errol. — Via aérea, hem? Que será. Parece um romance, não parece? — Sim, senhor. — Bem, abra-o, meu caro. — Percebeu com melancolia que tinha herdado uma série de maneirismos da linguagem de Sir Louis; era forçoso emendar-se antes que fosse demasiado tarde. Errol abriu desajeitadamente o enorme sobrescrito com a faca de papel. Um nédio memorando e um maço de fotocópias vieram cair entre eles, sobre a secretária.
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Mountolive estremeceu reconhecendo a letra radiada do general sobre o papel de carta armoriado da carta anexa. - Que vem a ser isto? — murmurou sentando-se em frente da secretária. «Meu caro Embaixador»; o resto da carta estava impecavelmente dactilografada em caracteres maiúsculos. Errol assobiava em surdina enquanto passava em revista as fotocópias devidamente agrafadas, fixando algumas palavras aqui e além. Mountolive leu:
«Meu caro Embaixador:
Estou convencido de que o interessarão os documentos inclusos, recentemente desenterrados pelos meus homens no decurso de uma série de vastas investigações levadas a cabo aqui na Palestina. Estou em condições de fornecer numerosos exemplares de uma pormenorizada correspondência trocada entre Hosnani, o objecto do meu relatório original suspenso, e a chamada «Organização dos Combatentes Judeus» em Haifa e Jerusalém. Um breve exame dessa correspondência convencerá qualquer pessoa imparcial de que a minha primeira impressão a respeito desse cavalheiro pecava por modéstia. As quantidades de armas e munições discriminadas na lista apensa são suficientes para causar às autoridades do Mandato fortes motivos de alarme. Estamos a fazer tudo para localizar e confiscar esses depósitos, mas sem grande sucesso até agora. Isto levanta uma vez mais, e com maior urgência ainda, o problema das nossas relações com esse cavalheiro. O meu ponto de vista original era, como sabe, que uma palavra oportuna aos egípcios poria termo ao caso. Duvido que o próprio Memlik Paxá se arrisque a prejudicar as relações anglo-egípcias e a recente liberdade do Egipto, recusando-se a agir se lhe solicitarmos. Nem precisamos de nos imiscuir nos meios de que ele se servirá para resolver o problema. As nossas mãos, pelo menos, ficarão limpas.
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Mas é óbvio que as actividades de Hosnani devem encontrar o seu termo e sem demora. Remeto uma cópia desta carta para o Ministério da Guerra e outra para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. A cópia para Londres segue via aérea com uma mensagem pessoal e urgente do Comissário para o secretário dos Negócios Estrangeiros rogando-lhe para agir em conformidade. Sem dúvida receberá notícias de Londres antes do fim da semana. Qualquer comentário à carta de Mr. Pursewarden parece-me nestas condições supérfluo. Os documentos juntos a este memorando constituem explicação suficiente. É evidente que ele não conseguiu enfrentar os seus deveres. Sou, Excelência, o vosso mais obediente servidor Oliver Maskelyne, Brigadeiro.»
Os dois homens suspiraram simultaneamente, encarando-se. — Bem — disse afinal Errol, carregando com um dedo voluptuoso sobre o maço de fotocópias —, temos finalmente a prova positiva. — Estava radiante. Mountolive abanou fracamente a cabeça e acendeu outro charuto. — Limitei-me a dar uma olhadela à correspondência, sir, mas todas as cartas têm a assinatura de Hosnani. Estão escritas à máquina, é claro. Penso que deseja examiná-las com vagar e, portanto, deixo-o até precisar de mim. Esta bem? Mountolive passou um dedo pelo grande maço de sentimento de náusea e concordou com um gesto vago.
papéis
com
um
— Muito bem — disse Errol vivamente, fazendo meia volta. Quando ia a alcançar a porta, Mountolive recuperou a voz, uma voz que aos seus próprios ouvidos parecia fraca e velada.
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- Errol — disse ele —, há mais uma coisa: informe Londres de que recebemos o memorando de Maskelyne e de que estamos au courant. Diga que esperamos instruções. Errol fez um sinal de assentimento e recuou, sorrindo, para a saída. Mountolive lançou então um olhar vago e bilioso para a papelada concentrada sobre a secretária. Leu atentamente uma ou duas das cartas, quase sem compreender, e foi assaltado por uma vertigem. Era como se as paredes do gabinete se fechassem lentamente sobre ele. Respirou profundamente pelo nariz, com os olhos muito apertados. Os seus dedos começaram mecanicamente a tamborilar sobre o mata-borrão, copiando o ritmo sincopado dos tamborins árabes, os ritmos requebrados que à noite descem flutuando sobre as águas do Nilo, vindos de qualquer distante embarcação. Enquanto ali estava, tamborilando mansamente aquele insidioso ritmo de dança, com os olhos cerrados, como um cego, repetia sem cessar esta pergunta: «Que estará para suceder agora?» Mas que diabo podia suceder? «Deve chegar um telegrama esta tarde», murmurou. Para isso é que eram de grande socorro as suas ocupações mundanas. A despeito das suas preocupações íntimas, deixou-se arrastar por aquelas como um cão por uma trela. A manhã foi relativamente sobrecarregada. O seu almoço foi um indiscutível sucesso e a visita de surpresa ao Bazar dos Perfumes confirmou as suas qualidades de brilhante e cuidadoso anfitrião. Acabado aquilo foi estender-se durante meia hora no seu quarto, com as cortinas corridas, saboreando uma chávena de chá e lançando-se no usual debate íntimo que começava sempre pela frase: «Devo preterir ser um cretino ou um manequim — eis o problema?» A própria intensidade do seu autodesespero manteve-lhe o espirito afastado de Nessim até às seis horas, quando a Chancelaria voltou a abrir. Tomou um duche frio e mudou de roupa antes de sair da Residência. Quando entrou no gabinete encontrou o candeeiro aceso e Errol sentado na poltrona, sorrindo benignamente com um telegrama cor-de-rosa entre os dedos.
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— Chegou agora mesmo — disse ele passando-o ao chefe como se fosse um ramo de flores expressamente escolhido. Mountolive pigarreou alto, numa tentativa de clarear também por esse acto o espírito e a atenção. Receava que os dedos lhe tremessem e por conseguinte colocou o telegrama sobre o mata-borrão numa postura favorável, enterrou profundamente as mãos nos bolsos e debruçou-se para lê-lo, registando, assim esperava, pouco mais que uma indolente curiosidade. — É bem claro, sir — disse Errol cheio de esperança, despertar uma centelha de entusiasmo no seu chefe.
tentando
Mas Mountolive leu e releu a coisa antes de tornar a levantar os olhos. E subitamente assaltou-o uma violenta cólica intestinal. — Desculpe-me por um instante — disse com precipitação, arrastando praticamente o jovem secretário para fora da porta — e já volto para discutirmos o assunto. Embora me pareça bastante claro. Terei de agir amanhã. Um minuto, sim? Errol desapareceu com ar de aborrecimento. Mountolive correu para a retrete; os joelhos tremiam-lhe. Contudo, decorrido um quarto de hora, novamente refeito, pôde descer com dignidade a escadaria que conduzia ao gabinete de Errol; entrou com ligeireza, exibindo o telegrama. Errol estava sentado à secretária; acabava de desligar o telefone e sorria. Mountolive estendeu o telegrama cor-de-rosa e deixou-se cair numa poltrona, reparando, com enfado, na confusão de objectos pessoais que cobriam a mesa de Errol — um cinzeiro de porcelana em forma de cão irlandês, uma Bíblia, uma pregadeira de alfinetes, uma dispendiosa caneta permanente cravada num pedestal de mármore verde, um pesapapéis de chumbo sob a forma de uma estatueta de Atena...
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A espécie de coisas que se espera encontrar no cesto de costura de uma velha solteirona. - Bem, sir Estive no amanhã com assunto da
— disse Errol depois de pigarrear e tirando os óculos. — protocolo e disse que V. Ex.a desejava uma entrevista o Ministro dos Negócios Estrangeiros para tratar de um maior urgência. Suponho que leva uniforme.
— Uniforme? — perguntou Mountolive, vago. — Os egípcios impressionam-se com essas coisas. — Percebo. Sim, creio que sim. — Eles avaliam a importância do que se lhes diz pela maneira como nos vestimos para dizê-lo. Donkin insiste constantemente neste ponto e penso que é verdade. — É, sim, meu caro (lá estava outra vez Sir Louis! Raios!) — E penso que deseja apoiar o protesto verbal com um aide-mémoire definitivo. Devo fornecer-lhe todos os elementos necessários para estribar as nossas informações, não acha, sir? Mountolive aquiesceu vivamente. Sentiu-se de súbito invadido por uma vaga de cólera contra Nessim, um acesso tão pouco familiar que o surpreendeu. De novo reconheceu as raízes da sua cólera no facto de ser forçado, pela indiscrição do seu amigo, a tomar semelhantes medidas; forçado a proceder contra ele. Uma sucessão de imagens atravessou-lhe o espírito: Nessim fugindo; Nessim na prisão de Hadra; Nessim acorrentado; Nessim envenenado por um criado... Com os egípcios nunca se sabia o que podia suceder. A sua ignorância era igualada por um excesso de zelo que se podia manifestar da forma mais inesperada. Suspirou. — Claro, levo uniforme. — Vou rascunhar o aide-mémoire. — Perfeitamente. — Dentro de meia hora já lhe poderei fixar a hora da entrevista. — Obrigado. E outra coisa: gostaria de levar comigo o Donkin.
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O seu árabe é muito melhor do que o meu e ele pode tomar notas da entrevista para mandarmos a Londres um relato completo. Mostre-lhe o processo e depois mande-o vir ter comigo. Obrigado. Passou o resto da tarde no seu gabinete a compulsar processos ao acaso, obrigando-se a trabalhar. Finalmente, o jovem secretário barbudo entrou com o aide-mémoire dactilografado e a informação de que a entrevista de Mountolive estava marcada para as nove horas do dia seguinte. A barbicha dava ao rosto magro e nervoso e aos olhos húmidos um ar ainda mais juvenil. Aceitou um cigarro e começou a fumá-lo, expelindo rapidamente o fumo sem engolir, como uma donzela. — Muito bem — disse Mountolive. — Errol já lhe falou?... — Sim, senhor. — Que pensa deste... enérgico protesto profundamente e respondeu num tom grave:
oficial?
Donkin
inspirou
— Duvido que obtenha uma acção imediata, sir. Desde que o rei adoeceu, anda tudo desorganizado no Governo. Estão todos com medo uns dos outros e cada um puxa a brasa à sua sardinha. Tenho a certeza de que Nur esta de acordo, fará pressão sobre Memlik para agir de acordo com o seu protesto... mas... — mordiscou os lábios pensativamente — não sei. Conhece a crónica de Memlik. Ele odeia os britânicos. O espírito de Mountolive despeito de si próprio.
começou
subitamente
a
aligeirar-se,
a
— Santo Deus — disse ele —, não tinha pensado nisso. - Mas eles não podem simplesmente ignorar um protesto nesses termos. Afinal de contas, meu caro, a coisa é praticamente uma ameaça velada. — Bem sei, sir. — Realmente não vejo como podem ignorá-la. — Bem, sir, a vida do rei está suspensa por um cabeio-Pode até morrer hoje mesmo. Há seis meses que não assiste ao divã.
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Todas as rivalidades estão desencadeadas às claras e acintosamente. A sua morte alteraria completamente as coisas, todos o sabem. Nur sobretudo. E a propósito, sir, ouvi dizer que ele não fala com Memlik. Há sérias razões, provocadas pelas luvas que Memlik recebe— E Nur é incorruptível? Donkin sorriu um sorrisozinho sardónico e abanou a cabeça lenta e duvidosamente. — Não sei — disse ele com ar petulante. — Creio que no fundo todos eles são venais. Mas talvez me engane. Contudo, no lugar de Hosnani, eu conseguiria paralisar a acção de Memlik com um presente principesco. A sua venalidade é... quase lendária no Egipto. Mountolive tentou parecer muito irritado com estas revelações. — Espero que se engane — disse ele — porque o Governo de Sua Majestade está decidido a tomar medidas, e eu também. Enfim, aguardamos até ver, não é verdade? Donkin continuava a reflectir gravemente e em silêncio. Deixou-se ficar sentado por um momento, depois levantou-se. — Errol deu a entender que Hosnani sabia que lhe tínhamos descoberto o jogo. Sendo assim, porque não fugiu? Deve calcular qual será a nossa reacção e se não foge é porque se sente capaz de dominar Memlik de uma maneira ou de outra. Desculpe-me, sir, estava a pensar em voz alta. Mountolive observou-o por um momento, com os olhos arregalados. Tentou dissipar um súbito e, pareceu-lhe, quase desleal sentimento de optimismo. — Muito interessante — disse por fim. — Confesso que ao tinha encarado as coisas sobre esse prisma. — Pessoalmente eu não me dirigiria aos egípcios — disse Donkin manhosamente; gostava de irritar o chefe, uma a vez por outra. — Embora não seja qualificado para uma opinião, creio que Maskelyne dispõe de vários meios de arrumar o assunto. Penso preferível pôr de parte as vias diplomáticas e pagar a alguém para que dê um tiro ou envenene esse Hosnani.
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A coisa não chega a custar cem libras. — Bem, muito obrigado — disse Mountolive debilmente, o seu optimismo cedendo de novo a um sombrio turbilhão de emoções semilúcidas, no meio das quais ele parecia condenado a viver para sempre. — Obrigado, Donkin. Donkin, pensou amargamente, parecia-se terrivelmente com Lenine quando falava do punhal ou do veneno. Era fácil, para um terceiro secretário, cometer um homicídio por procuração. De novo sozinho começou a andar de cá para lá sobre a carpeta verde, agitado por emoções contraditórias que tomavam alternadamente a forma da esperança e do desespero. O que se ia seguir era agora irrevogável. Encontrava-se enredado em acções cujas consequências não podiam ser avaliadas em termos humanos. Havia certamente uma resignação filosófica a colher desta certeza. Nessa noite velou até muito tarde, ouvindo discos no enorme gramofone, bebendo um pouco para além do habitual. De vez em quando atravessava o quarto e ia sentar-se na escrivaninha georgiana com a pena pousada sobre uma folha de papel-mármore. «Minha querida Leila: Hoje mais do que nunca parece-me indispensável encontrar-me contigo e peço-te para suplantares os teus...» Mas não ia além disso. Amachucava as cartas e atirava-as para o cesto dos papéis. Suplantar os seus... que. Ia começar agora a odiar Leila também? Algures, numa região ignota da sua consciência, existia o pensamento» quase a certeza, de que fora ela e não Nessim quem iniciara estes temerosos planos. Ela era a causa primeira. Não devia informar Nur, não devia informar o seu Governo dessa suspeita? Não era provável que Narouz, que era na família o homem de acção, estivesse mais profundamente enterrado na conspiração que o próprio Nessim?
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Suspirou. Que esperavam eles lucrar com uma insurreição judaica? Mountolive acreditava com demasiada firmeza na mística inglesa para admitir que alguém pudesse perder a fé nela e na promessa de segurança e estabilidade futura que dela emanava. Não, tudo aquilo lhe parecia simplesmente uma loucura gratuita; um projecto insensato com a finalidade de obter ganhos portentosos. Tipicamente egípcio! Revolveu com desprezo este pensamento como quem remexe a mostarda num vidro. Como tudo aquilo era tipicamente egípcio e portanto tão impróprio de Nessim! Era impossível dormir nessa noite. Envergou um sobretudo ligeiro, mais para se dissimular que por outra coisa, e foi dar um grande passeio ao longo da margem do rio para ordenar os seus pensamentos, lastimando profundamente não ter um cãozinho que o acompanhasse ocupando-lhe os pensamentos. Tinha saído pela porta de serviço e o resplandecente kawass e os dois polícias de guarda ficaram altamente surpreendidos vendo-o regressar a pé (facto impróprio de um embaixador) pela porta principal, cerca das duas horas da madrugada. Desejou--lhes delicadamente boa-noite em árabe e abriu com a sua chave particular a porta da Residência. Pendurou o sobretudo e atravessou o grande vestíbulo iluminado, sempre seguido por um cão imaginário, que deixava as suas pegadas húmidas por toda a parte, sobre os ladrilhos de madeira polida... Subindo para o quarto encontrou o (agora concluído) seu retrato, pintado por Clea, e apoiado contra a parede do primeiro patamar. Praguejou entre dentes porque a coisa lhe tinha esquecido completamente; havia seis semanas que tinha a intenção de enviá-lo à mãe. Insistiria para que seguisse com a mala diplomática no dia seguinte. Talvez apresentassem algumas objecções devido ao tamanho, pensou, mas, de qualquer maneira, insistiria para que fosse dispensada a licença de exportação para as chamadas «obras de arte».
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Não era o caso presente, mas desde que um arqueólogo alemão tinha roubado uma quantidade de estatuária egípcia, vendendo-a aos museus da Europa, o Governo tornara-se muito reticente em deixar sair do país qualquer obra de arte. A obtenção de uma licença levaria meses. Não, a mala diplomática deveria resolver o problema. A sua mãe ficaria tão satisfeita! Pensou nela, com uma rajada de emoção, sentada a ler junto da lareira, naquela paisagem rodeada pela neve. Devia-lhe uma grande carta. Mas não agora. «Depois de tudo ter passado)), disse ele, e sentiu um pequeno arrepio involuntário. Mal se deitou foi envolvido por uma teia de sonhos deprimentes e pouco profundos em que se debateu toda a noite — imagens da grande rede de lagos com os seus bancos de peixes e nuvens de aves, onde, uma vez mais, as figuras jovens, dele e de Leila, se moviam embaladas pelo doce impulso dos remos dentro de água, invadidos pelo crepúsculo lilás, pontuado pelo matraquear surdo de um tamborim árabe; nos confins do sonho movia-se a silhueta de outro barco, com dois vultos a bordo — os irmãos: ambos armados com compridas carabinas. Pouco faltava para o surpreenderem; mas, na quentura do abraço de Leila, tal como António em Actium, nem sentia medo. Eles não falavam, ou, pelo menos, Mountolive não ouvia vozes. Quanto a si, sentia as mensagens trocarem-se com a mulher que tinha nos braços — transmitidas pelo pulsar do sangue. Tinham ultrapassado a fase da palavra — figuras em miniatura de um passado nunca esquecido nem lastimado e agora infinitamente querido por ser irrecuperável. No núcleo do próprio sonho, ele sabia que sonhava e acordou descobrindo, angustiado e surpreendido, lágrimas sobre a almofada. Tomando o pequeno almoço sentiu-se bruscamente como se tivesse febre mas a termómetro negou-se a confirmar a suspeita. Levantou-se contrariado e apresentou-se de ponto em branco, pontualmente, no vestíbulo, onde encontrou Donkin a passear, muito nervoso, com um maço de papéis debaixo do braço.
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- Bem — disse Mountolive indicando com um gesto vago o uniforme —, aqui estou. No carro negro, com o galhardete a flutuar, atravessaram suavemente a cidade, a caminho do Ministério, onde o tímido e simiesco egípcio os aguardava, cheio de apreensões e solicitudes. Estava visivelmente impressionado pelo uniforme e pelo facto de os dois melhores arabistas da Embaixada se terem reunido para o visitar. Sorria, o olhar brilhante, e inclinava-se afastando automaticamente as mãos com uma arte consumada. Era um homenzinho tristonho, que usava botões de punho de estanho e cabelos hirsutos. O seu anseio de aguardar, de acomodar, era tão grande que tomava espontaneamente atitudes de amizade, quase de ternura. Os olhos humedeciam-se facilmente. Obrigou os visitantes a aceitar o café e as guloseimas turcas tradicionais, como se este gesto representasse uma declaração de amor. Estava constantemente a limpar a testa, descobrindo o seu enorme sorriso de pitecantropo. — Ah! Excelência! — disse ele numa voz terna quando os cumprimentos deram lugar aos negócios. — Conhece bem a nossa língua e o nosso país. Confiamos em si. Isto era susceptível de traduzir-se por: «Bem sabe que a nossa venalidade é irremediável, a verdadeira marca de uma antiga cultura; por consequência não nos sentimos embaraçados diante de si». Depois sentou-se e cruzou as mãos sobre o colete cinzento, triste como um feto engarrafado, enquanto Mountolive entregava o vigoroso protesto e o monumento da habilidade de Maskelyne. Nur escutou, abanando a cabeça dubitativamente de vez em quando, os olhos esbugalhados. Quando Mountolive acabou, levantou-se e declarou com ardor: — Naturalmente. Sem demora. Sem demora. — E logo, como se uma dúvida o assaltasse, sentou-se embaraçado e principiou a brincar com os botões de punho.
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Mountolive suspirou quando ele se tornou a levantar. — É um dever desagradável mas necessário. Posso assegurar ao meu Governo que a reclamação será atendida rapidamente? — Rapidamente... rapidamente. O homenzinho inclinou duas vezes a cabeça e humedeceu os lábios, mas dava a impressão de não compreendei muito bem as palavras que empregava. — Irei avistar-me com Memlik hoje mesmo — acrescentou num tom mais baixo. Mas o timbre da sua voz tinha-se alterado. Tossiu e comeu um bolo espanando o açúcar dos dedos com um lenço de seda. — Sim — disse ele. Se estava interessado no maço de documentos que jazia diante dele, era simplesmente (ou parecia a Mountolive) devido ao facto de o intrigarem as fotocópias. Nunca tinha visto essas coisas até então. Pertenciam ao grande mundo estrangeiro da ciência e da ilusão em que vivem os povos ocidentais — mundo de grandes poderes e responsabilidades — de onde eles saíam às vezes, envolvidos em magníficos uniformes, para tornar mais duro do que habitualmente o quinhão dos pobres egípcios. — Sim, sim, sim — repetiu Nur como para dar estabilidade e profundidade à conversa, para dar ao visitante confiança acerca das suas intenções. Mountolive sentia-se insatisfeito; ao conjunto faltava franqueza, determinação. O absurdo optimismo tornou a despertar-lhe no peito e para se punir desse sentimento (e também porque era extremamente consciencioso) deu um passo em frente, fazendo avançar a pressão um pouco mais. — Se quiser, Nur, e se me autorizar expressamente, estou disposto a avistar-me com Memlik Paxá. Diga qualquer coisa. Mas aqui ele estava a irritar a pele recém-nascida «o protocolo e do sentimento nacional. — Querido senhor — disse Nur com um sorriso sup1 cante e o gesto de um mendigo que incomoda um transeunte rico —, isso seria muito incorrecto.
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Trata-se de um assunto interno. Não seria conveniente para mim concordar. E ali estava, reflectia Mountolive regressando à Embaixada, já não podiam dar ordens no Egipto como nos tempos da Alta Comissão. Donkin olhava para os dedos com um sorriso meditativo e brejeiro. O galhardete flutuava alegremente sobre o radiador e recordava a Mountolive o pendão tremulante do grande veleiro de Nessim rasgando as águas do porto... — Que pressagia desta visita, Donkin? — perguntou pousando a mão sobre o cotovelo do seu barbudo secretário. — Francamente, sir, eu desconfio da sua eficácia. — E eu também. — Um assomo elevou-lhe a voz: — Mas terão de agir. Não consentirei que façam ouvidos de mercador. — E pensava: «Londres vai fazer-nos sofrer até obter qualquer satisfação». E sentiu-se submerso por uma vaga de ódio contra uma imagem de Nessim, cujos traços fisionómicos se confundiam, como numa chapa duplamente impressa por erro, com os do taciturno Maskelyne. Atravessando o vestíbulo surpreendeu a sua própria face no grande espelho entre janelas e descobriu que traduzia um vestígio de irritação. Surpreendeu-se nesse dia a ter gestos de impaciência para com o pessoal da missão e os criados da Residência. Começava a sentir-se quase perseguido.
XIV
Se Nessim tinha a temeridade de rir em surdina para si próprio ao ler o convite, se apoiava o cartão florido no tinteiro para estudá-lo melhor, rindo mansamente, vagamente contrariado, era porque estava a pensar para si próprio: «Dizer que um homem não tem escrúpulos implica que esse homem nasceu com escrúpulos e agora decidiu pô-los de parte. Mas pode conceber-se um homem manifestamente nascido sem consciência? Um homem nascido sem as faculdades ordinárias da alma?» (Memlik). É fácil conceber uma criatura coxa, maneta ou cega; mas uma criatura, atingida por uma deficiência de secreção glandular, enferma de uma parte mutilada da alma, ao mesmo tempo que se torna um objecto de admiração pode ser também um objecto de comiseração. (Memlik). Há homens cujos sentimentos se vaporizam em neblina — como se fossem premidos por um vaporizador; aqueles que os congelaram — «agulhas e alfinetes de coração»; outros cresceram sem a noção dos valores, os agora afectados de daltonismo moral. Os muito poderosos são assim frequentemente — homens que caminham no meio da nuvem de os das suas acções, cujo significado não chegam a compreender. Era assim Memlik? Nessim sentia pelo homem a mesma apaixonada curiosidade que um entomologista pode ter por um espécime não classificado.
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Acendeu um cigarro. Levantou-se e pôs-se a percorrer o quarto, parando uma vez por outra para ler o convite e rir novamente à sucapa. Não sabia se devia sentir-se inquieto ou aliviado. Ergueu o telefone e falou a Justine com uma voz tranquila e jovial: «A Montanha foi procurar Maomé». (Cifra para Mountolive e Nur.) «Sim, minha. querida. É um alívio ter a certeza. Toda a minha toxicologia e treinos de tiro! Bem sei que parecem agora idiotas essas precauções. Era justamente isto que eu desejava que sucedesse, mas, é claro, é preciso tomar algumas precauções. Bem, fizeram pressão sobre Maomé e ele pariu um ratinho sob a forma de um convite para um Wird». Ouviu o riso dela, incrédulo. «Por favor, minha querida, escolhe um dos Coroes mais belos da biblioteca e manda-mo para o escritório. Há alguns antigos, com cobertura de marfim, na livraria. Sim, levo-o comigo para o Cairo, na quarta--feira. Ele precisa de receber o seu Corão». (Memlik.) Podiam permitir-se gracejar. A trégua seria apenas temporária; mas, pelo menos de momento, não tinha de recear o veneno nem o encontro furtivo com uma sombra num beco que podia ter... Não. A situação parecia prometer um adiamento futuro. Actualmente, na quinta década do século, a casa de Memlik Paxá tornou-se famosa nas mais remotas capitais do Mundo, principalmente devido à arquitectura muito peculiar dos bancos que usam o nome do seu fundador, e de facto o seu estilo tem todas as curiosas marcas do gosto deste homem misterioso — todos eles parecem saídos do mesmo molde grotesco, espécie de paródia de um túmulo egípcio, adaptado por um discípulo de Corbusier! Seja nas ruas de Roma ou do Rio, uma pessoa fica pasmada diante das suas fachadas sinistras. Os pilares curtos e grosso sugerem um mamute atacado de elefantíase, uma sobrevivência grotesca, ou talvez o renascimento, de algo genuinamente macabro — uma espécie de gótico-otomano-egípcio. Como se a estação de Euston se tivesse multiplicado por fissiparidade binária!
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Mas hoje em dia o poder do homem escoou-se por esses estranhos escoadouros do vasto mundo - todo esse poder condensado e desenvolvido a partir da mesinha de café sobre a qual (às vezes) escrevia, sobre o divã amarelo dilacerado, onde a letargia o mantinha pregado dia após dia. (Para as entrevistas de particular importância usava o turbante e luvas amarelas. Conservava na mão um enxota-moscas de bazar que o seu joalheiro tinha ornamentado com um motivo de pérolas.) Nunca sorria. Um fotógrafo grego, que lhe tinha implorado em nome da arte para sorrir, foi arrastado para o jardim e recebeu vinte chicotadas pela afronta. Talvez a estranha mistura da sua hereditariedade fosse a causa disso: de pai albanês e mãe núbia, vivera a infância no pesadelo das suas querelas. Era filho único. Era talvez por isso que a ferocidade pura e simples se aliava nele a um ar de apatia e que a sua voz, que não passava de um murmúrio, se elevava às vezes num registo hiperagudo sem que o gesto o acompanhasse. Também o seu aspecto físico — os seus compridos cabelos fazendo pensar vagamente numa cerda de seda, o nariz e a boca esculpidos como um baixo relevo na pedra arenosa e morena da Núbia sobre uma cabeça de montanhês perfeitamente esférica — denunciava esse amálgama singular. E se sorrisse mostraria uma semicircunferência de negra alvura sob as narinas achatadas e dilatadas como borracha. A pele estava cheia de sinais escuros e era de uma cor muito apreciada no Egipto — a cor da folha do tabaco. Depilatórios do género da halawa conservavam-lhe o corpo limpo de cabelos, mesmo as mãos e os antebraços. Mas tinha os olhos pequenos e enterrados nas pregas da pele como um par de cabeças de alhos. A sua inquietação revelava-se numa expressão de sonolência perpétua — os brancos descorados dando a impressão de uma ausência de espírito glauca —, como se a alma que habitava o grande corpo estivesse perpetuamente ausente, em férias particulares. Os seus lábios eram muito vermelhos, o inferior, principalmente; e a sua aparência de fruto tocado sugeria a epilepsia.
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Como tinha ascendido tão rapidamente? Degrau a degrau, ocupando lentos e trabalhosos lugares na Comissão (onde aprendera a desprezar os seus senhores) e finalmente por nepotismo. Procedia com método. Quando o Egipto se tornou independente, foi ocupar, num salto aparatoso, o Ministério do Interior, o que surpreendeu toda a gente. Foi somente então que ele se despojou da máscara de mediocridade que usara durante esses anos todos. Soube então espalhar a sua nomeada a estalos de chicote — pois agora usava um. A alma timorata dos egípcios solicita constantemente o látego. «A fraqueza é facilmente explorada por aquele que está habituado a considerar os homens e as mulheres como moscas», diz o provérbio. No espaço de um ano o seu nome tornou-se um objecto de terror; murmurava-se que o próprio rei não era capaz de contrariá-lo abertamente. E a recente independência do seu país tinha-lhe igualmente proporcionado uma liberdade magnífica — pelo menos perante os muçulmanos. Os europeus ainda tinham o direito, nos termos do tratado, de submeter os seus problemas judiciais ou responder às acções que contra eles fossem levantadas nos tribunais mistos, que eram órgãos judiciais europeus com os seus advogados e procuradores europeus (Nota 1). Mas o sistema judicial egípcio (se é lícito empregar tal designação) estava nas mãos dos homens de Memlik, sobrevivência anacrónica de um feudalismo tão terrível como destituído de sentido.
Nota 1 - Para o leitor interessado damos um pequeno esclarecimento: o direito, como sistema de normas jurídicas, pode ter a sua eficácia delimitada por uma circunscrição territorial, aplicando-se a todos aqueles que nela se encontrem domiciliados independentemente de outras considerações de nacionalidade, raça, religião, etc. (sistema da territorialidade do direito), ° então vigora apenas para certas categorias de pessoas, definiu* essas categorias pelos padrões já citados (sistema de personalidade do direito). O primeiro é o mais frequente e o que, dentro o Estado, corresponde a uma plenitude de soberania, que entretanto reconhece limitações (V. G. as normas do direito internacional, público e privado). (N. do T.).
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A era do cadi estava longe de ter passado para eles e Memlik agia como se dispusesse de um firman do sultão. Não havia de facto ninguém que se lhe opusesse. Punia com dureza e frequentemente, sem interrogar a vítima e muitas vezes a partir de simples mexericos ou remotas suspeitas. Pessoas desapareciam silenciosamente e sem apelação — no caso de terem tempo de formular alguma — ou então reapareciam mais tarde estropiadas ou cegas, e sem o menor desejo de contar o que lhes sucedera. («Veremos se lhe apetece cantar?», costumava dizer Memlik, referindo-se ao costume de cegar os canários com um ferro em brasa, operação muito corrente e que tinha o mérito, dizia-se, de lhes melhorar as qualidades canoras.) Indolente e esperto, o seu pessoal era especialmente constituído por gregos e arménios. Era raro ir ao seu gabinete no Ministério deixando os negócios entregues aos favoritos, explicando e lastimando-se de ser constantemente assediado por pedinchões que lhe faziam perder o tempo. (Na realidade temia que o assassinassem, pois o lugar era dos mais vulneráveis. Seria fácil, por exemplo, colocar uma bomba nos armários nunca limpos e onde os ratos proliferavam no meio dos processos amarelados. Fora Hakim Effendi quem lhe metera semelhante ideia na cabeça a fim de ficar com o pulso livre no Ministério. Memlik percebia mas não se importava.) Retirara-se portanto para o velho casarão arruinado, nas margens do Nilo, onde dava as suas audiências. O lugar estava rodeado por um bosquezinho de palmeiras e laranjeiras. O rio sagrado corria diante das janelas e havia sempre qualquer coisa que ver, que fiscalizar: faluas subindo e descendo o rio, iates a motor onde se gozava a vida... E era também demasiado longe para que as pessoas o viessem incomodar por causa de qualquer parente encarcerado. (Hakim, de qualquer maneira, partilhava das «luvas».)
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Memlik só recebia ali personalidades verdadeiramente importantes: erguendo-se com esforço para se sentar no divã amarelo e colocando os sapatos de atacadores cor de pérola sobre uma almofada de damasco, a mão direita no bolso interior do casaco, a esquerda segurando um vulgar enxota-moscas como se fosse um báculo. O seu corpo de funcionários era constituído pelo secretário arménio (Cirilo) e por um italiano abonecado (Rafael, barbeiro e alcoviteiro profissional), que o acompanhavam minorando a monotonia do trabalho oficial, sugerindo prazeres capazes de interessar, pela sua perversidade, um homem que parecia ter perdido o interesse por tudo menos pelo dinheiro. Disse que Memlik nunca sorria, mas, às vezes, quando se encontrava bem humorado, puxava pelos cabelos de Rafael com um ar sonhador e colocava os dedos sobre a boca para sufocar o riso. Isso dava-se quando ele reflectia profundamente antes de levantar o auscultador do velho telefone para chamar a prisão central, por exemplo, só pelo prazer de ouvir o terror manifesto do guarda quando dizia o seu nome. Rafael soltava então cacarejos aduladores, rindo até as lágrimas lhe correrem pelos olhos, enterrando o lenço na boca. Memlik não sorria. Arrepanhava ligeiramente as bochechas e exclamava: «Alá! Tu ris». Tais ocasiões eram poucas e espaçadas. Era realmente tão mau como diziam? Nunca se saberia a verdade. As lendas reúnem-se facilmente em redor de uma tal personagem que pertence mais à lenda que à vida. («Certa vez, ameaçado de impotência, desceu à prisão e ordenou que duas raparigas fossem flageladas até morrer, à sua vista, enquanto uma terceira era forçada» — 1ue pitorescas as imagens poéticas da língua do profeta. -«a reanimar o seu espírito desfalecido». Dizia-se que assistia a todas as execuções, tremendo e cuspindo sem cessar. Acabado o drama pedia um sifão de soda para se desalterar... Mas quem saberá jamais se tudo isto é verdade. Era morbidamente supersticioso e incuravelmente venal — o que lhe começava a trazer uma enorme fortuna; e contudo é difícil conciliar tudo isto com o facto da sua grande religiosidade — um zelo verdadeiramente fanático na observância das práticas que só um egípcio consegue compreender?
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Foi neste ponto que se levantou a sua querela com o piedoso Nur, porque Memlik tinha instituído uma espécie de cerimonial da corte para a recepção das «luvas». A sua colecção de Coroes era famosa. Estavam arrumados numa arruinada galeria do alto da casa. Todos sabiam que a forma conveniente de peitá-lo consistia em encher as páginas do Livro Santo com notas de banco ou outros valores negociáveis e (com uma profunda reverência) oferecer-lhe esta modesta contribuição para a sua soberba biblioteca. Ele aceitava o presente e respondia, agradecendo ao doador, que ia ver se já não possuía um exemplar igual. Quando regressava, o postulante ficava a saber o despacho da sua pretensão, favorável se Memlik lhe agradecia de novo dizendo que arrumara o livro na sua biblioteca, desfavorável se o devolvia (devidamente aliviado do seu conteúdo) dizendo que já possuía o exemplar. Nur dizia que esta pequena cerimónia «lançava o descrédito sobre o Profeta», o que lhe valeu o ódio tenaz de Memlik. A longa galeria em cotovelo, onde ele recebia, era também algo desconcertante. Os quebra-luzes de vitrais coloridos transformavam os visitantes em arlequins, cuspindo verde, escarlate e azul sobre as suas faces e roupas, enquanto atravessavam a enorme sala para cumprimentar 0 anfitrião. Para além das janelas obscuras corria o rio cor de cacau em cuja margem oposta ficava a Embaixada britânica, com os seus elegantes jardins, onde Mountolive costumava espairecer nas noites de solidão. A parede da grande sala de Memlik estava quase totalmente coberta por duas enormes e incongruentes pinturas victorianas de algum mestre esquecido e que, sendo demasiado grandes pesadas para pendurar, repousavam simplesmente no solo dando a impressão de tapeçarias emolduradas. Mas o assunto! Numa viam-se os Israelitas atravessando o Mar Vermelho, que gentilmente se abria para deixá-los passar; na outra, um Moisés hirsuto batia numa rocha com um cajado de pastor.
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De certo modo estes motivos bíblicos condiziam perfeitamente com o mobiliário — com as grandes carpetas, otomanas e as cadeiras de feios espaldares verticais forrados de damasco azul, o enorme candelabro metálico com os seus círculos de lâmpadas eléctricas acesas dia e noite. Ao lado do divã amarelo, um busto em tamanho natural, de Fouché, atraía imediatamente a atenção pela sua incongruência. Um dia Memlik ficara lisonjeado pelo que lhe dissera um diplomata francês: «Vossa Excelência é considerado como o melhor Ministro do Interior da história moderna — na verdade, desde Fouché, nenhum se lhe compara». A observação talvez trouxesse veneno, mas impressionou Memlik que encomendou imediatamente um busto. O ministro cruel dos franceses tinha um ar ligeiramente reprovador no meio daquela sala egípcia, densamente coberta de poeira. O mesmo diplomata descrevia a sala de Memlik como uma galeria de um museu geológico abandonado ou um recanto do velho Palácio de Cristal — o que era duro mas perfeitamente justo. Nessim registou todos estes pormenores com dissimulada ironia enquanto esperava que o anunciassem. Estava encantado por ter sido convidado para participar num Wird (Nota 1) na companhia do terrível Memlik. Estas sessões nada tinham de excepcional, por mais estranhas que parecessem, visto que Memlik organizava frequentemente estas chamadas «Noites de Deus», não sendo esta sua piedade inconsistente com o seu carácter misterioso; escutava a oração atentamente, às vezes até às duas e três horas da madrugada, imóvel como uma serpente adormecida. Sucedia-lhe até às vezes juntar a sua voz aos «Alas» convencionais com que a assistência manifestava a sua satisfação por certas passagens particularmente felizes do Evangelho... Nessim levar frente sentia
atravessou a câmara num passo ligeiro e vivo e, depois de a mão ao peito e aos lábios segundo a praxe, sentou-se em de Memlik para lhe exprimir a sua gratidão e significar que se grandemente honrado.
Nota 1 - Wird: oração rezada em comum. (N. do T.)
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Nessa noite Memlik tinha convidado somente nove ou dez pessoas e Nessim compreendeu que o Ministro limitara a assembleia para poder estudá-lo mais à vontade; provavelmente até para poder falar a sós com ele. Conservava na mão o precioso Corão embrulhado em papel de seda e devidamente lastrado de cheques negociáveis na Suíça. — Oh, Paxá! — proferiu docemente. — Ouvi falar da vossa lendária biblioteca e peço que me dês o prazer de aceitar a modesta contribuição de outro amante dos livros. Pousou o presente na mesinha e aceitou o café e os bolos que lhe serviram. Memlik não respondeu nem alterou a sua posição no divã enquanto Nessim sorvia o café; depois, disse em tom indiferente: — O hóspede foi honrado. Eis os meus amigos. Fez as apresentações, breves e superficiais; os outros visitantes formavam uma estranha assembleia para uma recitação em comum do Corão: Nessim notou que nenhum deles pertencia à «sociedade» do Cairo. Nem de vista conhecia qualquer deles, mas foi delicado com todos. Depois permitiu-se alguns comentários sobre a beleza da sala de recepção e sobre a alta qualidade dos quadros encostados à parede. Memlik gostou e observou com indolência: — É a minha sala de recepção e o meu gabinete de trabalho. É aqui que vivo. - Tinha ouvido descrevê-la muitas vezes — replicou Nessim cortês — àqueles que tiveram a felicidade de visita-lo por necessidade ou por prazer. — O meu trabalho — disse Memlik — faz-se às terças-feiras, apenas. Nos outros dias divirto-me com os meus amigos. A Nessim não escapou a ameaça daquelas palavras; a terça-feira é considerada pelos muçulmanos o dia menos favorável da semana para as empresas humanas, porque crêem que foi nesse dia que Deus criou todas as coisas desagradáveis.
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É o dia escolhido para a execução dos criminosos; ninguém ousa casarse numa terça-feira, porque, diz o provérbio: «Casado na terça-feira, enforcado no sábado». E segundo a palavra do Profeta: «Na terçafeira, o Senhor criou as trevas absolutas». — Felizmente — disse Nessim sorrindo — hoje é segunda-feira, o dia em que Deus criou as árvores. E levou a conversa para as belas palmeiras que cabeceavam lá fora: uma habilidade que quebrou o gelo e lhe valeu a admiração dos outros convivas. O vento tinha mudado e depois de meia hora de conversa inofensiva as portas corrediças da extremidade do salão abriram-se para dar passagem aos convidados para o banquete servido em duas grandes mesas. A sala estava ornamentada com magníficas flores. Aqui, finalmente, diante dos requintados petiscos que cobriam a mesa de Memlik, os convivas animaram-se e perderam um pouco da reserva anterior. Um ou dois deles falaram e o próprio Memlik, embora nada comesse, ia lentamente de um para outro, trocando cumprimentos em voz baixa. Aproximou-se finalmente de Nessim e disse com simplicidade, com um ar quase cândido: - Desejava especialmente vê-lo, Hosnani. — É para mim uma honra, Memlik Paxá. — Tenho-o avistado nas recepções; mas não tínhamos amigos comuns que nos apresentassem. Grande pena. — Grande pena. Memlik suspirou e abanou-se com o enxota-moscas, queixando-se do calor da noite. Depois, disse no tom do homem que debate alguma coisa consigo próprio, quase hesitante: — Senhor, o Profeta diz que o grande inimizades. Eu sei que sois poderoso.
poder
concita
grandes
— O meu poder é insignificante mas, apesar disso, tenho inimigos.
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— Grande pena. — Na verdade. Memlik transferiu o peso do corpo para a perna esquerda e palitou os dentes pensativamente por um momento; depois prosseguiu: — Penso que nos poderemos entender perfeitamente, sem dificuldades. Nessim cumprimentou formalmente e permaneceu calado enquanto o seu anfitrião o considerava especulativamente, respirando lento e compassado por entre os lábios entreabertos. — Quando se querem queixar vêm ter comigo, à própria fonte de todas as queixas. Considero o facto aborrecido mas, às vezes, sou obrigado a agir a favor dos que se queixam. Está a compreender-me? — Perfeitamente. — Em certos momentos, não sou forçado a agir. Mas há outros em que posso ser forçado. Entretanto, Nessim Hosnani, homem prudente, afasta as razões de queixa. Nessim tornou a cumprimentar graciosamente e ainda desta vez permaneceu calado. Era inútil prosseguir a dialéctica das suas respectivas posições enquanto o seu presente não tivesse sido definitivamente aceite. Memlik percebeu provavelmente, porque suspirou e afastou-se para junto de outro grupo. Finalmente o jantar terminou e todos se retiraram de novo paxá o salão de recepção. O pulso de Nessim acelerou-se porque, nesse momento, Memlik pegou no embrulho e desculpou-se dizendo: — Tenho de comparar este livro com os outros da minha colecção. O sheik desta noite - o de Zmbabi — não deve tardar. Estejam à vossa vontade. Não me demoro. Saiu da sala. Começou uma conversa geral em que Nessim tentou tomar parte embora descobrisse que o coração lhe palpitava violentamente e que os dedos lhe tremiam quando levava o cigarro à boca. Pouco depois as Portas abriram-se para dar passagem a um velho sheik cego que tinha vindo presidir a esta «Noite de Deus».
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A assembleia rodeou-o, pegando-lhe nas mãos e saudando-o afectuosamente. Nesse momento Memlik entrou abruptamente e Nessim viu que ele trazia as mãos vazias: então murmurou uma prece entre dentes e enxugou a testa. Não tardou muito tempo que se recompusesse uma vez mais. Conservava-se de pé, um pouco afastado do grupo que rodeava o velho pregador cego, cujo rosto vazio se voltava na direcção de cada voz que lhe falava, com um gesto automático de um mecanismo construído para captar ondas de som; o seu ar de doce confusão sugeria todo o fantasmagórico contentamento de uma fé absoluta em algo que é tanto mais convincente quanto menos é apreensível pela razão. Tinha as mãos cruzadas sobre o peito; aparentava uma timidez de criança, marcada pela beleza transcendente de um ser humano cuja alma se transformou num objecto votivo. O paxá aproximava-se de Nessim, mas por etapas, tão espaçadas entre si e tão circunvagantes que ao último parecia que Memlik jamais o alcançaria. Este progredir lento era ainda prolongado pela distribuição de cumprimentos, com um ar negligente. Mas por fim encontrou-se à ilharga de Nessim com o mata-moscas sempre pendente dos seus dedos longos e expressivos. — O seu presente é efectivamente precioso — numa voz arrastada e ligeiramente melosa. — De resto, cavalheiro, a vossa sabedoria lendários. Mostrar surpresa seria demonstrar desse facto.
disse finalmente Memlik, Absolutamente aceitável. e discernimento são já uma ignorância grosseira
A forma que Memlik utilizava invariavelmente era tao delicada e habilmente expressa em árabe que Nessim não pôde deixar de se mostrar surpreendido e agradado. Só uma pessoa realmente cultivada seria capaz de utiliza semelhante linguagem. Ignorava que Memlik tinha aprendido aquilo de cor para utilizar em circunstâncias análogas. Inclinou a cabeça como quem está a receber um abraço, mas conservouse em silêncio. Memlik abanou-se um momento com o enxota-moscas antes de acrescentar em tom diverso:
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- Claro, há outra coisa ainda. Já lhe falei, caro effendi, das queixas que me são apresentadas. Em todos os casos dessa natureza sou obrigado, cedo ou tarde, a investigar as causas. Grande pena. Nessim voltou para os outros os seus doces olhos negros e, sempre a sorrir, murmurou: — Senhor, quando tiver chegado o Natal europeu, uma questão de meses, já não haverá mais razões de queixa. — Então o tempo é importante — observou Memlik reflexivamente. — O tempo é o ar que respiramos, assim diz o provérbio. O paxá, meio voltado e como se dirigisse agora a toda a assembleia, acrescentou: — A minha colecção tem necessidade da sua muito esclarecida sabedoria. Espero que possa encontrar-me ainda outros tesouros da Santa Palavra. Nessim inclinou-se de novo. — Tantos quantos eu julgo dignos de si, paxá. — Lastimo não nos termos conhecido há mais tempo. Grande pena. — Grande pena. Mas o paxá devia atender também a outros convidados e afastou-se. O largo círculo de desconfortáveis cadeiras de espaldar rígido estava quase todo ocupado pelos outros visitantes. Nessim foi sentar-se numa, vazia, enquanto Memlik se alcandorava lentamente no seu divã amarelo, como um náufrago que se eleva para uma jangada em pleno oceano. Deu um sinal e os criados entraram para retirar as chávenas de café e os doces; trouxeram também uma esguia e elegante cadeira de espaldar direito com obra de talha nos braços e almofadas verdes, que instalaram para o pregador a um dos lados do quarto. Um dos convidados levantou-se e conduziu o cego para a cadeira com murmúrios de respeito.
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Retirando em boa ordem, os criados fecharam e trancaram as portas da entrada da sala. O Wird estava prestes a principiar. Memlik abriu a sessão com uma citação do teólogo Ghazzali — uma inovação surpreendente para alguém, como Nessim, cuja opinião acerca do homem se fundara até agora na lenda. «O único meio», disse Memlik, «de um homem se unir a Deus é pelo constante contacto com Ele». Tendo proferido tais palavras recostou-se e fechou os olhos, como se exausto pelo esforço. Mas a frase teve o efeito de um sinal, porque, enquanto o pregador cego elevava o pescoço descarnado e tomava uma inspiração profunda antes de começar, toda a assistência reagiu unanimemente; apagaram-se imediatamente todos os cigarros, descruzaram-se todas as pernas, apertaram-se os botões do casaco e os corpos tomaram uma postura respeitosa. Depois esperaram todos com emoção que a velha voz, melodiosa e gasta pelo tempo, soltasse as primeiras estrofes do Livro Santo e nada havia de hipócrita na atenção respeitosa daquele círculo de rostos venais. Alguns humedeceram a boca e debruçaram-se energicamente para diante como para recolher as palavras nos lábios; outros baixaram as cabeças e fecharam os olhos como se ouvissem uma música inovadora. O velho pregador, com as mãos de cera descansadas no colo, recitou o primeiro sura repassado do quente colorido de uma compreensão familiar, a voz um pouco hesitante no começo mas ganhando poder e firmeza no silêncio que o envolvia. Os seus olhos estavam agora enormes e baços como os de uma lebre morta. O auditório escutava os versículos que lhe caíam dos lábios com fascinada concentração, procurando gradualmente insinuar-se na corrente da oratória, como um cardume de peixes que segue instintivamente o chefe para as profundezas do mar. O constrangimento de Nessim deu lugar a uma tépida sensação que lhe encheu o peito, porque adorava também os suras, e o velho pregador tinha uma voz magnífica, embora a tonalidade fosse ligeiramente velada e sem inflexão.
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Mas era uma «voz do fundo do coração» — toda a sua pureza espiritual se escoava como um rio de sangue nos versículos magníficos, enchendoos com o seu próprio ardor; e podia sentir-se a audiência vibrar e responder como as velas de um navio ao sopro do vento. «Allah!», suspiravam eles, e estes soluços aumentavam a confiança da velha voz com o seu doce registo alto. «Uma voz cuja melodia é mais doce que a caridade», diz o provérbio. A recitação era dramática e de estilo vário, mudando o pregador de tom para acompanhar a substância das palavras, agora admoestando, logo suplicando, depois ameaçando, outra vez admoestando. Não surpreendia a sua perfeição porque no Egipto a faculdade dos pregadores cegos para decorar é famosa, e demais todo, o Corão não é mais extenso que dois terços do Novo Testamento. Nessim escutava-o com ternura e admiração, os olhos postos no tapete, semiempolgado pela maré de poesia que lhe afastava o espírito das infindáveis especulações sobre o problema de qual seria a resposta que Memlik daria às pressões que Mountolive tinha sido forçado a exercer sobre ele. Entre cada sura havia um breve intervalo de silêncio mas ninguém se movia ou falava, parecendo todos afundados na meditação do que antes fora dito. O pregador afundava o queixo no peito como para recuperar forças e cruzava docemente os dedos. Depois erguia de novo o rosto e declamava, e de novo se sentia também a tensão das palavras atravessar a consciência dos ouvintes. Já passava da meia-noite quando ficou concluída a recitação o Corão e o auditório perdeu, em certa medida, a concentração anterior quando o velho principiou a contar as lendas tradicionais; estas já não eram escutadas como se fossem uma partitura musical, mas seguidas por uma mente activa e educada na tradição dos provérbios: estes presentam a dialéctica da revelação, a sua ética e a sua pragmática. O auditório correspondia à alteração do tom deixando as faces abrirem-se e entregarem-se às múltiplas expressões que traduziam as diversas actividades deste mundo: banqueiros, estudantes ou comerciantes.
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A sessão terminou depois das duas da madrugada e Memlik acompanhou os seus convidados à porta onde os seus carros os esperavam, com as superfícies cromadas cobertas de orvalho-. A Nessim disse numa voz intencional — uma voz que descia ao fundo da sua amizade recente como um fio de chumbo pesadamente lastrado: — Tornarei a convidá-lo, Senhor, enquanto me for possível. Mas reflicta. E tocou ligeiramente no botão da jaqueta do seu convidado como para sublinhar aquela observação. Nessim agradeceu-lhe e encaminhou-se para o carro; o grande alívio que sentia não estava isento de dúvidas. Na melhor das hipóteses, ganhara uma suspensão da acção que não alterava fundamentalmente a inimizade das forças alinhadas contra ele. Mas, mesmo assim, era já bem bom; quanto tempo duraria, porém? Era impossível adivinhar. Justine ainda não se deitara. Encontrava-se sentada no vestíbulo do Shepheards Hotel com um café turco intacto diante dela. Levantou-se vivamente quando o viu atravessar a porta com o seu sorriso habitual, cheio de doçura e afabilidade; não se moveu mas cravou nele os olhos com uma intensidade grave, como se tentasse decifrar o que ele sentia pela interpretação dos seus gestos. Finalmente afrouxou e sorriu, suspirando: — Oh, que alívio! Graças a Deus! Percebi logo pelos teus olhos, quando entraste. Beijaram-se murmurando:
ternamente
e
ele
deixou-se
cair
numa
poltrona,
— Meu Deus, pensava que nunca mais acabava. Passei também parte do tempo em grande ansiedade. Jantas sozinha? — Sim. E vi David. — Mountolive? — Ele veio a qualquer grande banquete. Cumprimentou-me friamente mas não parou para falar.
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A verdade é que vinha acompanhado de algum banqueiro, creio eu. Nessim pediu um café e, enquanto o bebia, ia dando conta do seu encontro com Memlik. — É evidente — disse ele pensativamente — que a pressão dos ingleses se baseia na correspondência que confiscaram na Palestina. A agência de Haifa informou Capodistria desses factos. A coisa foi apresentada assim a Nur para obrigá-lo a agir. — Com a lapiseira desenhou num sobrescrito uma forca com um corpo pendente. — Consegui que Memlik sugerisse a possibilidade de adiar a acção, mas uma pressão dessa natureza não pode ser indefinidamente ignorada; mais tarde ou mais cedo será forçado a satisfazer Nur. Disse-lhe virtualmente que pelo Natal estaria pronto... estaria fora da zona perigosa. As suas investigações não conduzirão então a nada. — Se tudo correr de acordo com os planos. — Tudo correrá de acordo com os planos. — E depois? — E depois! — Nessim espreguiçou-se bocejando e piscou o olho a Justine. — Havemos de tomar novas disposições. Da Capo desaparecerá; tu partirás. Leila irá passar umas grandes férias no Quénia, com Narouz. E é tudo. — E tu? — Ficarei por cá algum tempo para manter as coisas em ordem aqui. A comunidade precisa de mim. Há ainda muito que fazer, politicamente. Depois irei ter contigo e gozaremos uma longa temporada na Europa ou onde quiseres. Ela olhava-o sem sorrir: - Sinto-me nervosa — disse ela por fim com um pequeno arrepio. — Se não te importas gostava que fôssemos passear um pouco junto do Nilo antes de nos irmos deitar. Ele acedeu com prazer, e durante uma hora o carro percorreu docemente os caminhos marginais sob os nobres jacarandás, o motor ronronando enquanto eles falavam intermitentemente em voz baixa.
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— O que me preocupa — disse ela — é que tu tenhas sobre o ombro a mão de Memlik. Quando conseguirás sacudi-la? Se ele tem provas firmes contra ti, vai espremer-te até te deixar seco. — De qualquer maneira — disse Nessim tranquilamente — seria mau para nós. Porque se ele abrisse um inquérito daria ao Governo uma oportunidade de sequestrar as nossas propriedades. Prefiro satisfazer-lhe a cupidez enquanto puder. Depois veremos. O principal é concentrarmo-nos na batalha que se aproxima. Quando ele pronunciou estas palavras iam justamente passando diante dos jardins brilhantemente iluminados da Embaixada inglesa. Justine teve um sobressalto e puxou a manga do marido, pois acabava de avistar um vulto a passear em pijama pelos jardins com um ar de distracção familiar. — Mountolive — disse ela. Nessim lançou um olhar de tristeza para o amigo, subitamente possuído da tentação de parar o carro e entrar nos jardins para surpreendê-lo. Tal gesto teria sido uma coisa natural havia três meses. Como era possível que as coisas tivessem mudado a tal ponto? — Ele vai apanhar frio — disse Justine. — Está descalço. A ler um telegrama. Nessim carregou no acelerador e a viatura entrou na curva da avenida. — Provavelmente não pode dormir; veio refrescar os pés na erva antes de voltar para a cama. Costumávamos fazer isso muitas vezes. Lembraste? — E o telegrama? Realmente não havia grande mistério a respeito telegrama que o insone Embaixador tinha nas mãos e que estudava de tempos a tempos enquanto andava de ca para lá com um charuto na mão. Uma vez por semana fazia uma partida de xadrez com Baltasar, o que lhe proporcionava um grande alívio e a espécie de repouso comparável àquele que os grandes trabalhadores fatigados colhem na solução de problemas de palavras cruzadas.
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Não viu sequer o grande carro em frente dos jardins, a caminho da cidade.
XV
Os actores deviam permanecer assim durante várias semanas, como fixados para sempre em posturas capazes de ilustrar a incalculável diversidade dos caminhos da Providência. Mountolive, mais do que todos os outros, tinha o desanimador sentimento da sua incapacidade profissional, a sua impotência para agir apenas como um instrumento (e não mais como um factor), tão fortemente se sentia aprisionado pela órbita da política. Os impulsos e as decisões particulares não contavam mais. Sentiria Nessim, conjecturava ele, o crescente sabor de estagnação que cobria tudo? Recordava-se amargamente das palavras de Sir Louis penteando-se diante do espelho: «A ilusão de que terá liberdade de agir!» Agora sofria regularmente de dores, de atrozes enxaquecas e de dores de dentes. Convenceu-se de que isto era devido a fumar em excesso e tentou, sem resultado, abandonar o tabaco. O esforço para se desembaraçar do vício do fumo só serviu para torná-lo mais infeliz. Mas se ele próprio se sentia impotente, como não se sentiriam os outros? Tal como as projecções estioladas de uma imaginação doente, sentiam-se desprovidos de significação, vazios como fatos pendurados; eram simples peças tomando posição neste drama incolor de vontades em conflito. Nessim, Justine, Leila — tinham agora um ar substancial, como projecções de um sonho agindo num mundo habitado por inexpressivos bonecos de cera.
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Era difícil conceber que lhes devesse sequer algum amor. O silêncio de Leila sugeria, acima de tudo, e com bastante clareza, a culpa da sua cumplicidade. O Outono aproximava-se do fim sem que Nur obtivesse qualquer prova que lhe permitisse agir. As linhas de comunicação entre a Embaixada e Londres ficaram obstruídas pela troca de telegramas cada vez mais extensos, carregados de frases biliosas oriundas de espíritos que supunham poder influenciar o que não era um simples acaso — Mountolive sabia-o agora — mas na realidade o próprio destino. E, paradoxalmente, esta primeira grande lição que a profissão lhe devia ensinar não era desprovida de interesse: fora do pequeno círculo dos seus terrores e das suas hesitações pessoais, observava o assunto com uma espécie de atenção concentrada que era quase admiração temerosa. Mas sentia-se como uma espécie de múmia enfadada quando de novo procurou Nur, quase envergonhado com o luxo daquele uniforme cujo único fim era impor a sua presença ao ministro. O velhote estava febrilmente desejoso de satisfazê-lo; parecia um macaquinho acorrentado, saltando alegremente. Mas que podia fazer? Tentava exprimir em caretas as suas desculpas. O inquérito iniciado por Memlik ainda não estava terminado. Era essencial conhecer toda a verdade. Havia novas pistas a seguir. E assim por diante. Mountolive, pela primeira vez na sua vida oficial, deu um murro de amigável exasperação na mesa poeirenta que os separava. Tomou um ar de bondade e predisse uma rotura de relações diplomáticas. Chegou mesmo ao ponto de prometer a Nur uma condecoração... descobrindo que este era o último recurso. Mas em vão. A maciça e contemplativa figura de Memlik, espojada no divã, prometia tudo e não fazia nada; inamovível, imperturbável, e apenas ligeiramente malevolente. Agora toda a gente fazia pressão, uns contra os outros, para ale do ponto de polida conciliação: Maskelyne e a Alta Comissão insistiam com Londres para que agisse; Londres, imbuída da sua moralizante grandeza, insistia com Mountolive;
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Mountolive insistia com Nur, esmagando o velho com o sentimento da sua própria impotência, porque ele próprio nenhum poder tinha sobre Memlik sem a ajuda do rei: e o rei estava doente, muito doente. Na base desta pirâmide encontrava-se a figura do ministro do Interior, com a sua inestimável colecção de Coroes fechados em armários poeirentos. Obrigado a manter a pressão diplomática, Mountolive sentia-se agora irritado por um sentimento de futilidade quando (como qualquer jeune premier prematuramente envelhecido) escutava a torrente de desculpas de Nur, sorvendo o café cerimonial e procurando ler naqueles olhos cansados e implorantes. — Mas que mais provas são precisas, Paxá, do que os documentos que eu lhe apresentei? As mãos do ministro afastavam-se num gesto amplo, afagando o espaço como se estivesse a oleá-lo; segregava um aspecto conciliatório e apologético, como um unguento. — Ele está a estudar o assunto — crocitava Nur com um ar desesperado. — Para começar, há mais do que um Hosnani. A sua cabeça enrugada de tartaruga oscilava para trás e para diante, como um pêndulo. Mountolive gemia interiormente pensando naqueles intermináveis telegramas desenrolando-se como uma ténia. Nessim estava agora, por assim dizer, oculto atrás dos seus diversos adversários, Numa posição onde não podia ser hostilizado, pelo menos nesse momento. O jogo estava bloqueado. Só Donkin se divertia ironicamente com estas alterações, tão características do Egipto. A sua própria simpatia pelos muçulmanos ensinara-lhe a ler claramente os eus Motivos, a discernir o jogo de ambições infantis ocultas 0 silencio histriónico de um ministro, sob as suas fáceis Promessas. Mesmo a crescente histeria de Mountolive Perante estes fracassos era uma fonte de divertimento para secretário.
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A tensão permanente transformara o seu chefe num dignitário petulante e irritadiço. Quem o poderia ter previsto? A observação de que existia mais de um Hosnani era bizarra e brotara da imaginação presciente de Rafael certa manhã em que barbeava o seu amo; Memlik dava grande crédito ao discorrer do seu barbeiro — não era ele um europeu? Enquanto o italiano o escanhoava, costumavam discutir a agenda do dia. Rafael estava sempre cheio de ideias e opiniões, mas emitia-as obliquamente, simplificando-as para que se apresentassem de forma imediatamente apreensível. Sabia que Memlik se sentia perturbado com a insistência de Nur, embora não desejasse reconhecê-lo; sabia, demais, que Memlik só agiria se o rei melhorasse o bastante para conceder uma audiência a Nur. Era uma questão de sorte e de tempo; entretanto, porque não havia de continuar a sugar Hosnani? Ele constituía apenas um dos muitos assuntos que se estavam a cobrir de poeira (e a ele de presentes) enquanto o rei continuava doente. Um belo dia os médicos alemães de Sua Majestade haviam de fazê-lo melhorar e então o rei daria novamente audiência. Chamaria Nur. Era assim que tudo se havia de passar. A seguir, o telefone colocado junto do divã amarelo tocaria e a voz do velho (disfarçando a euforia do triunfo) havia de dizer: «Aqui fala Nur, que se encontra junto do próprio rei, em audiência. É sobre o assunto de que falámos, relacionado com a queixa do Governo inglês. Agora é preciso levar as coisas por diante e sem mais delongas. Que Deus seja louvado!» Que Deus seja louvado! E a partir desse ponto Memlik teria as mãos atadas. Mas por enquanto sentia-se livre, livre para exprimir pelo velho ministro o desprezo que a sua inacção traduzia. — Há dois irmãos, Excelência — tinha dito Rafael tomando o tom de quem conta uma história e armando unia expressão de maturidade tenebrosa no seu rosto de boneca.
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— Dois irmãos Hosnani e não apenas um, Excelência... Soltou um suspiro e apoiando os dedos leitosos Memlik começou a manobrar a navalha. Procedia registar uma ideia na mente de um muçulmano é como temos de esperar a secagem da primeira mão de ideia) antes de aplicar a segunda.
na face morena de lentamente porque pintar uma parede: tinta (a primeira
— Um dos dois irmãos é rico em terras, e o outro, o que trouxe o Corão, é rico em dinheiro. Para que servem as terras a Vossa Excelência? Mas aquele cuja bolsa é inesgotável... , O tom da sua voz sugeria todo o desprezo que sente pela terra o homem que nunca a possuiu. — Bem, bem, mas... — disse Memlik com moderada impaciência, sem contudo mover os lábios onde corria a navalha. Sentia-se impaciente por ouvir o desenvolvimento do tema. Rafael sorriu e conservou-se em silêncio por um momento. — Na verdade — disse por fim —, os papéis que recebeu do Embaixador eram assinados por Hosnani, o nome de família. Quem podia dizer qual dos irmãos assinou, qual é o inocente e qual é o culpado? Sacrificaria o homem prudente aquele que tem dinheiro ao que apenas possui terras? Eu por certo não o faria, Excelência. — Que farias então, meu Rafael? — Não é difícil fazer acreditar aos ingleses que o verdadeiro culpado é o pobre. Mas isto é apenas o pensar em voz alta de um homem insignificante que nada percebe dos grandes negócios políticos. Memlik respirou profundamente pela boca, conservando os olhos fechados. Era hábil em nunca revelar surpresa. Mas aquela ideia, agarrando-se preguiçosamente ao seu espírito, enchia-o de um pasmo reflexivo. No último mês a sua livraria enriquecera-se com três novos exemplares que lhe davam uma ideia da enorme fortuna do seu cliente Nessim Hosnani.
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O Natal não tardava. Satisfazer simultaneamente os ingleses e a sua cupidez... Isso seria um golpe genial! Do outro lado das águas acastanhadas do Nilo, a menos de oitocentos metros de Memlik, Mountolive encontrava-se sentado diante da sua papelada. Na secretária, sobre o tampo polido, jazia o convite para um dos acontecimentos sociais mais retumbantes do ano — a caçada aos patos no lago Mareótis, que Nessim promovia anualmente. Colocara o cartão sobre o tinteiro para relê-lo com uma expressão de censura. Mas havia outra comunicação de mais importância ainda. Mesmo depois de tão longo silêncio reconhecera a letra nervosa de Leila no sobrescrito pautado que cheirava a chipre. Dentro encontrou uma folha arrancada de um caderno, cheia de palavras e frases desconexas, rabiscadas precipitadamente. «David, parto para o estrangeiro, não sei se por muito se por pouco tempo, contra a minha vontade. Nessim insiste. Mas preciso ver-te antes de partir. Reunirei toda a minha coragem para me encontrar contigo na véspera da partida. Não faltes. Quero fazer-te algumas perguntas e dar-te algumas informações. Sobre o assunto! Juro-te que de nada soube antes do carnaval; agora só tu poderás salvar...» A carta continuava assim, caótica. Mountolive sentiu uma singular confusão de sentimentos — um incoerente alívio que todavia tremulava nas franjas da indignação. Depois de tanto tempo, ela ia esperá-lo, ao anoitecer, perto do Auberge Blue, num velho fiacre, à margem da estrada, debaixo das palmeiras! Nesse plano havia, pelo menos, um pouco da sua antiga fantasia. Por qualquer razão Nessim devia ignorar este encontro — porquê, santo Deus? Mas a informação de que ela, pelo menos, não se encontrava envolvida nas conspirações do filho enchia-o de alívio e ternura. E durante todo este tempo procurara odiá-la considerando Leila uma espécie de extensão de Nessim!
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«Minha pobre Leila», disse ele em voz alta, levando o sobrescrito às narinas para respirar-lhe o perfume. Ergueu o telefone e chamou Errol: «Penso que toda a Chancelaria foi convidada para a caçada aos patos? Sim? Concordo, o sujeito tem fibra para fazer uma coisa dessas neste momento... Eu, é claro, tenho de declinar o convite, mas agradecia que vocês, rapazes, fossem e me desculpassem. Só para manter as aparências. Conto consigo? Muito obrigado. Uma coisa ainda: sairei na véspera da caçada para tratar de assuntos particulares e só volto no dia seguinte; é provável que nos cruzemos na estrada do deserto. Não, estou satisfeito porque vocês vão. Desejo-vos uma boa caçada». Os dez dias seguintes passaram-se numa espécie de sonho, pontuados simplesmente pelas punhaladas intermitentes de uma realidade que já não era uma droga, uma distracção que lhe estrangulava os nervos; o seu trabalho era um enfadonho tormento. Sentia-se cansado, esgotado, quando contemplava o rosto no espelho, ao barbear-se. O cabelo embranquecera-lhe nas têmporas. Algures, nos alojamentos do pessoal, um rádio emitia uma canção que enchera todo um Verão de Alexandria: «Jamais de la vie». Mountolive odiava-a agora. Esta nova época, um limbo preenchido com os fragmentos dispersos dos hábitos, dos deveres e dos acontecimentos, enchia-o de uma torturante impaciência; percebia que no fundo estava a reunir coragem para o encontro com Leila, há tanto tempo esperado. De certo modo, esse facto determinaria não tanto o significado físico e tangível do seu regresso ao Egipto como o significado psíquico desse regresso em fiação a toda a sua vida interior. Deus! Que maneira tão '«adequada de se exprimir, mas de que outra maneira Poderia fazê-lo? Era uma espécie de barreira íntima que ele devia franquear, uma puberdade do sentimento que Precisava de amadurecer. Lançou-se na estrada do deserto, gozando a surdina potente do motor e o ruído do vento no galhardete e nos pára-brisas.
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Havia muito tempo que ele não se encontrava assim só, no meio do deserto, e isto recordava-lhe dias passados e mais felizes. Voando a cem quilómetros naquela atmosfera ardente e imóvel, ia trauteando em voz baixa a canção detestável:
Jamais de la vie Jamais dans la nuit Quand ton coeur se démange de chagrin...
Há quanto tempo não se surpreendia assim a cantar? Uma eternidade. Não era por felicidade mas pela necessidade irresistível de desoprimir o espírito. Até a odiosa canção o ajudava a recuperar a imagem de uma Alexandria que ele considerara outrora adorável. Poderia jamais tornar a vê-la sob essa luz? Caía já a tarde quando Mountolive alcançou a orla do deserto e principiou a fazer as lentas curvas que o conduziriam aos arrabaldes piolhosos da cidade. O céu estava coberto de nuvens. Uma trovoada rebentava sobre Alexandria. Para oriente, sobre as águas verdes e geladas do lago, caía a chuva — rajadas de agulhas brilhantes perfurando as águas; ouvia confusamente o ruído da chuva dominando o ruído do motor. Descobriu uma cidade de pérolas através do véu de nuvens carregadas, os minaretes recortados contra as colunas de vapor de um poente prematuro; roupa ensopada em sangue. Uma brisa do mar arrepiava os limites do estuário. No alto, passavam ainda os rolos de fumaça, nuvens púrpuras que lançavam estranhos reflexos sobre as ruas e sobre as praças da cidade branca. A chuva era um fenómeno raro e breve em Alexandria. Em poucos minutos levantava-se o vento no mar, mudava de quadrante, varria as nuvens e o céu ficava de novo limpo. A frescura cristalina do céu de Inverno reconquistava o seu fulgor, polindo a cidade que ficava a brilhar contra o deserto como um belo artefacto de quartzo. Mountolive já se não sentia impaciente. O crepúsculo começava a absorver o poente, docemente.
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Aproximando-se da rebarbativa sequência de barracas e armazéns do porto exterior, os pneus começaram a fumegar e a chiar sobre o asfalto húmido. Era o momento de afrouxar... Penetrou lentamente na penumbra da tempestade, maravilhado pela luz de um horizonte recuado como um arco. Bizarros fulgores do poente espalhavam rubis sobre os navios de guerra ancorados no porto (acaçapados debaixo dos canhões como sapos chavelhudos.) Era outra vez a velha cidade; sentia a melancolia penetrante enquanto seguia, debaixo da chuva, o caminho para a Residência de Verão. O brilhante e pouco familiar clarão dos relâmpagos recriavam-na, dando-lhe um ar espectral de conto de fadas — pavimento de papel de estanho quebrado, conchas de caracóis, chifres quebrados e mica; edifícios de tijolo cor de sangue de boi; amantes passeando em Mahommed Ali Square, desorientados pela chuva, desconsolados como instrumentos desafinados; comboios violetas rangendo na linha do litoral entre as copas oscilantes das palmeiras. O inusitado de uma velha cidade em cujas ruas se amalgamava a poeirada húmida do deserto circundante. Mountolive sentiu tudo aquilo de novo, deixando a imagem alongar-se panoramicamente na sua consciência—o gemido de um transatlântico apontando para a barra do poente, ou os comboios que corriam para o interior como um rio de diamantes, as rodas rodopiando nas ravinas pedregosas e no pó dos tempos há muito abandonados e submersos... Mountolive sentia tudo aquilo com um cansaço onde reconhecia os estigmas das experiências que envelhecem 0 homem. O vento lançava as vagas para dentro do porto. Os mastros dançavam e entrechocavam-se como as ramagens de uma árvore gigantesca. O limpa pára-brisas ia e vinha sobre o vidro cheio de lágrimas... Um pequeno período nesta estranha treva confusa, iluminada pelos relâmpagos, e logo viria o vento — o magistral vento norte, desfazer as cristas das vagas em brancas plumagens e espuma, rasgar os véus do pavimento abrindo-o olhos dos homens e das mulheres.
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Tinha ainda muito tempo. Dirigiu-se à Residência de Verão para se assegurar de que o pessoal tinha sido prevenido da sua vinda; tencionava passar a noite ali, voltando no dia seguinte para o Cairo. Entrou com a sua própria chave pela porta principal, tocou a campainha e logo ouviu os passos arrastados de Ali. E enquanto esperava a entrada do velho, o vento norte irrompeu com um rugido, sacudindo as janelas, e a chuva cessou bruscamente. Dispunha ainda de cerca de uma hora antes do encontro; tempo bastante para tomar um banho e mudar de roupa. Com grande surpresa sua, sentia-se agora perfeitamente à vontade, liberto do tormento das dúvidas e dos arroubos da ansiedade. Entregara-se totalmente aos acontecimentos. Comeu uma sanduíche e bebeu dois whiskies duplos antes de deixar rolar o grande carro peia ladeira que conduz à Grande Comiche, a caminho do Auberge Blue, situado nos arredores da cidade, rodeado pela mancha das dunas e coberto pelas copas das palmeiras. O céu estava de novo limpo e as vagas corriam do largo, vindo desfazer-se em bátegas de espuma nos molhes metálicos de Chatby. Na linha do horizonte ainda se viam relâmpagos desmaiados e intermitentes que sugeriam o clarão distante da artilharia numa batalha naval. Mountolive saiu da estrada e penetrou no parque de estacionamento deserto do Auberge, apagando os faróis quando parou. Ficou ainda sentado uns momentos diante do volante para habituar os olhos à penumbra azulada. 0 Auberge estava vazio — ainda era demasiado cedo para os elegantes virem jantar e dançar nos seus elegantes salões. Foi então que o avistou: do outro lado do parque, junto da estrada, onde havia uma praia de areia e algumas palmeiras inclinadas, estava parado um velho fiacre. As suas antigas lanternas de petróleo estavam acesas e palpitavam ligeiramente como pirilampos na noite fresca.
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No assento do cocheiro percebia-se uma vaga silhueta que parecia adormecida. Mountolive atravessou o caminho com um passo ligeiro, ouvindo o cascalho ranger debaixo das rodas, e ao aproximar-se do carro chamou, abafando a voz: — Leila! Viu o vulto do cocheiro voltar-se atento contra o céu; de dentro do fiacre saiu uma voz — a voz de Leila — dizendo: — Ah! David, encontrámo-nos finalmente. Percorri todo este caminho para te dizer... Mountolive inclinou-se para a frente, embaraçado, esforçando os olhos, mas viu apenas o vulto vago de alguém no outro canto do veículo. — Entra — disse ela imperiosamente. — Entra para podermos falar. E foi aqui que Mountolive se sentiu dominado por uma sensação de irrealidade; não compreendia exactamente porquê. Mas era como um homem que caminha no meio de um sonho, sem tocar o solo, ou então que flutua no espaço como uma rolha sobre as águas. Os seus sentidos alertavam-se como antenas na direcção do vulto sombrio, tentando reunir e fixar o sentido daquelas frases e analisar o profundo sentido de desorientação que as impregnava, que vinha enterrado nelas, como um sotaque estrangeiro insinuando-se no meio de uma voz familiar; algures dentro dele, tudo se desmoronava. A verdade era que ele não reconhecia a voz. Ou melhor, podia-a identificar mas não era capaz de crer na evidência dos seus ouvidos. Não era, por assim dizer, a voz preciosa que, na sua imaginação, tinha vivido e habitado a figura recordada de Leila. Ela falava agora com uma espécie de inconsistência voraz onde todas as vibrações Pareciam embotadas. Mountolive atribuiu isso à emoção e sabe Deus a que outros sentimentos? Mas... frases que se interrompiam para recomeçar no meio, frases que caíam esgotadas no esforço de juntar duas ideias?
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Enxugou a testa na obscuridade, procurando analisar o carácter estranhamente irreal, como distraído, dessa voz. Pertencia aquela voz realmente a Leila? Depois, uma mão tomou-lhe o braço e ele pôde observá-la atentamente na doce luminosidade da candeia de petróleo. Era uma mão nédia e pouco cuidada, de unhas rentes, sem verniz, com as peles por cortar. — Leila, és tu realmente? — perguntou ele quase involuntariamente, ainda invadido por este sentimento de irrealidade, de desorientação; como o de dois sonhos sobrepostos, deslocando-se um ao outro. — Entra! — disse a voz de uma Leila invisível. Ele obedeceu, penetrou no velho fiacre e foi imediatamente assaltado pelo estranho amálgama dos seus perfumes — um novo e perturbador desmentido à imagem que há tanto tempo guardava: flor de laranjeira, mentol, água de colónia e sésamo. O odor de uma velhota árabe! Depois ele surpreendeu o triste relento do whisky. Ela também tivera que recorrer ao álcool para enfrentar aquele encontro! A simpatia e a indecisão lutavam dentro dele; a velha imagem de Leila, brilhante e elegante, recusava-se a coincidir com a presente. Precisava de contemplar-lhe o rosto. Como se lhe lesse os pensamentos, ela disse: — Vim finalmente ao teu encontro, sem véu. Subitamente, Mountolive pensou com um sobressalto: «Jesus! tinha pensado até que ponto Leila devia ter envelhecido».
Nunca
Ela fez um pequeno sinal e o velho cocheiro de turbante voltou lentamente o cavalo para a estrada iluminada da Grande Comiche e partiram a passo. As lâmpadas azuis dos candeeiros vieram, uma após outra, lançar uma espreitadela para dentro do fiacre e Mountolive voltou-se para a mulher que o acompanhava. Mal conseguiu reconhecêla. Defrontava-o uma senhora egípcia de idade incerta, cujo rosto lavado e balofo, profundamente lavrado pela varíola e com os olhos grotescamente pintados com antimónio.
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Os olhos eram apagados e tristes como os de uma melancólica figura de desenhos animados: uma figura de animal vestido e agindo como uma criatura humana. Ela fora de facto bastante corajosa para retirar o véu, essa estranha sentada diante dele, olhando-o com aquele olhar pintado, como se vê nos frescos, um ar lastimável e perdido, carregado de uma súplica muda. Perante o amante, ela tinha uma expressão simultaneamente embaraçada e audaciosa, mas os lábios tremiam-lhe e os maxilares chocavam-se a cada solavanco do carro. Olharam-se durante dois segundos de eternidade antes das trevas os cobrirem de novo. Então ela ergueu a mão e pousou-a sobre os lábios de Mountolive. Uma mão que tremia como uma folha. Ao clarão fugidio do candeeiro, Mountolive vira os cabelos desleixados, caídos sobre os ombros, o vestido amarrotado e sem elegância. Toda ela tinha um ar de desenvoltura e improvisação. E a pele escura, cruelmente lavrada e cicatrizada pela varíola, parecia áspera como a pele de um elefante. Ele não a reconhecia em absoluto! Leila — exclamou ele quase num gemido, fingindo reconhecê-la e regozijar-se por encontrar de novo a imagem da amante, agora dissolvida e dispersa para sempre, naquela lastimável caricatura, uma egípcia gorda e excêntrica cujo rosto assinalava a idade. De cada vez que um feixe de luz iluminava o interior do fiacre ele voltava a olhá-la, c também de cada vez tinha a impressão de se encontrar perante um animal caricatural, um elefante, por exemplo. Mal podia prestar atenção às palavras dela, tanto se confundiam no seu espírito as antigas memórias e as impressões recentes. Ela tomou-lhe a mão e de novo o relento complexo de sésamo, mentol e whisky lhe assaltou as narinas. - Eu sabia que nos havíamos de encontrar um dia. Leila começou a falar e ele escutava-a, embaraçado, mas com toda a atenção que se presta a uma língua que não nos é familiar; e de cada vez que a luz dos lampadários batia nos vidros olhava-a avidamente, como se esperasse uma brusca alteração na sua aparência.
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Depois ocorreu-lhe bruscamente outro pensamento: «E se eu tivesse mudado tanto como ela?» Num passado remoto tinham trocado fotografias, como penhores de fidelidade; mas que veria ela agora no seu rosto: os sinais de fraqueza que tinham devastado a sua juventude e arruinado as suas energias? Mountolive tinha agora atingido as fileiras daqueles que aceitam de boa mente o compromisso com a vida. A sua ineficácia, a sua falta de virilidade, devia certamente ler-se no seu rosto frouxo, comicamente afável? Contemplando-a melancolicamente, perguntava sinceramente a si próprio se ela o teria reconhecido. Esquecia-se de que as mulheres jamais perdem a imagem de um ser amado; não, ela ficaria para sempre cega pelo antigo amor, recusando-se a aceitar qualquer alteração. — Tu não mudaste nada — disse aquela desconhecida cujo odor lhe desagradava. —- Meu querido, meu amor, meu anjo. Mountolive corou na escuridão. E a antiga Leila? Descobriu bruscamente que a imagem querida, que tanto tempo guardara no coração, se tinha dissipado para sempre! Enfrentava subitamente o sentido do tempo e do amor. Tinham, ele e ela, perdido a faculdade de fecundar a mente um do outro! Mountolive sentia piedade e repugnância onde devia ter sentido amor! E estes sentimentos eram simplesmente inaceitáveis. Praguejava em silêncio enquanto subiam e desciam a alameda batida pelo mar de Inverno, como inválidos que vêm tomar o ar da noite, as mãos a entrechocarem-se na penumbra do fiacre. Ela agora falava mais depressa, quase saltando de um assunto para o outro, mas tudo aquilo era introdutório para o tema central que ali a trouxera. Devia partir na noite seguinte. — Ordens de Nessim. Justine volta do lago para me vi buscar. Desaparecemos juntas. Em Kantara separamo-nos e eu vou para a propriedade do Quénia. Nessim não diz. ou não sabe, por quanto tempo. Eu tinha de ver-te. Tinha de falar-te. Não por mim, nunca é por mim, meu querido.
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Foi o que eu soube de Nessim, no carnaval passado. encontrar-me contigo, mas o que ele me disse a respeito da arrefeceu-me o sangue. Impossível ver-te nesse estado de Não sabia o que te havia de dizer, como te poderia encarar. sei.
Eu vinha Palestina espírito. Mas agora
Ela falava numa voz precipitada, como se desejasse rapidamente o ponto crucial. Bruscamente, alcançou-o:
atingir
— Os egípcios querem matar Nessim e os ingleses incitam-nos a fazer isso. David, deves usar a tua influência para impedir semelhante coisa. Peço-te que o salves. Tens de escutar-me, tens de ajudar-me. É a primeira vez que eu te peço um favor. As suas faces estriadas de lágrimas azuis davam-lhe um ar ainda mais estranho, mais irreal, ao clarão dos revérberos. Ele começou a balbuciar. Leila gritou: «Imploro-te que me ajudes» e para grande humilhação de Mountolive começou a gemer e a mover-se como uma suplicante árabe. — Leila — gritou ele —, pára com isso! Mas ela prosseguia consigo própria:
naquele
balancear,
repetindo
como
se
falasse
— Só tu o podes salvar agora. E bruscamente fez menção de ajoelhar-se aos pés do antigo amante. Mountolive tremia de cólera, de estupefacção e de desgosto. Estavam a passar pela décima vez diante do Auberee. — Se não acabas imediatamente... — gritou ele exasperado. Mas ela recomeçou a gemer, e sem poder suportar mais, Mountolive saltou para a estrada. Era horrível interromper assim aquela entrevista. O fiacre parou. Ele disse então, sentindo-se ridículo, numa voz que lhe parecia vir de muito longe e ter perdido toda a expressão, à parte uma ligeira e inusitada amargura: — Não posso discutir com uma pessoa particular um assunto oficial.
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Que podia haver de mais absurdo? palavras sentiu uma enorme vergonha.
Mal
tinha
pronunciado
aquelas
— Leila, adeus — acrescentou precipitadamente a meia voz, apertandolhe a mão uma vez mais antes de se voltar. Depois fugiu. Abriu a portinhola do automóvel, deixou-se cair no assento, sufocado e tomado de uma repentina vertigem. Ouviu o fiacre afastar-se na obscuridade. Ficou a vê-lo descrever a longa curva da Comiche até desaparecer. Acendeu então um cigarro e pôs o motor a funcionar. E de repente pareceu-lhe que já não tinha nenhum lugar para onde ir. Todos os impulsos e todos os desejos se tinham dissipado. Depois de um longo momento de hesitação, decidiu-se a partir e voltou à Residência, sempre a resmungar. Todas as janelas se conservavam às escuras e Mountolive entrou com a sua própria chave. Foi de sala em sala, abrindo todas as luzes, sentindo-se atordoado pela sua solidão; não podia acusar os criados de terem abandonado os seus deveres visto que dissera a Ali que jantava na cidade. Pôs-se a percorrer os salões, de mãos nos bolsos. Mas os quartos não eram aquecidos há muito tempo e ele sentiu-se dentro em pouco penetrado pela humidade. A face pálida e como carregada de muda censura do mostrador de um relógio advertiu-o de que ainda não passava das nove horas. Dirigiuse então bruscamente para a cave das bebidas e serviu-se de um grande whisky com dois dedos de soda, que bebeu de um trago, a boca muito aberta como se ingerisse uma poção amarga. O seu espírito vibrava como uma linha de alta tensão. Pensou que precisava sair e ir jantar fora, a qualquer sítio, mas onde? Alexandria e todo o Egipto pareceram-lhe agora insuportáveis, enfadonhos e ocos. Bebeu vários whiskies mais, apreciando o calor doce que se lhe insinuava no sangue. Leila acabava de colocá-lo perante uma realidade que incessantemente pairava sobre a tapeçaria poeirenta dos seus sonhos romanescos. Em certo sentido, ela fora o Egipto, o seu Egipto particular, e bruscamente essa velha imagem aparecia-lhe nua, despojada dos seus ouropéis.
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«Não devo beber mais», pensou. Sim, era isso! Nunca se embriagara, nunca fora natural. Ocultara-se sempre atrás das atitudes de compromisso; e esta falta de naturalidade fizera-lhe perder para sempre a imagem de um Egipto que havia muito nutria nos seus sonhos. Não passaria então tudo aquilo de uma mentira? Mountolive sentia-se como uma barreira interior que estivesse a ponto de quebrar-se, como uma barragem que cede. Veio-lhe então a ideia de ir jantar no bairro árabe, simplesmente, humildemente, como um amanuense ou um pequeno comerciante da cidade. Iria comer pombos com arroz e bolos; a comida acalmar-lhe-ia os nervos e no ambiente encontraria o sentimento de um contacto com a realidade. Não se lembrava de jamais se ter sentido tão embriagado, de ter as pernas tão pesadas como nessa noite. Os seus pensamentos flutuavam numa nuvem de remorsos inarticulados. Agitado por estes desejos incoerentes e semi-inconscientes, foi abrir bruscamente o armário do vestíbulo para retirar o turbante de feltro vermelho que um convidado tinha esquecido num cocktail oferecido no Verão precedente. Acabava de se recordar dele. O objecto encontravase no meio de uma confusão de bastões de golf, esporas e raquetas de ténis. Colocou-o com uma risadinha. Transformava-lhe completamente a aparência. Olhando para a sua imagem incerta no espelho, ficou profundamente surpreendido com a transformação: tinha diante de si, não um distinto estrangeiro, mas — un homme quelconque: um negociante sírio, um corretor de Suez, um agente de aviação em Telavive. Para ser um levantino completo só lhe faltava usar, dentro de portas, óculos escuros, em pleno Inverno. Havia um par na gaveta superior da escrivaninha. Conduziu o carro com cuidado para a praçazinha, junto da estação de Ramleh, absurdamente satisfeito com o seu trajo de fantasia, e foi arrumá-lo no parque de estacionamento do Cecil Hotel;
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depois de fechá-lo afastou-se com o ar de alguém que abandona um hábito de uma vida inteira, encaminhando-se com um novo e delicioso sentimento de autodomínio para o bairro árabe, onde procuraria o desejado jantar. Todavia, ao passar na Comiche, teve um movimento de hesitação e recuo avistando uma silhueta que atravessava a rua e se dirigia para o seu lado. Era impossível não reconhecer aqueles passos arrastados característicos de Baltasar. Mountolive, penalizado, prosseguiu no seu caminho, mas verificou com satisfação que, protegido pela noite, não fora reconhecido pelo amigo. Cruzaram-se rapidamente e Mountolive expeliu o ar dos pulmões, aliviado; era realmente bizarra a anonimidade conferida por aquele vaso vermelho, que alterava as linhas de um rosto humano. E os óculos escuros! Riu tranquilamente ao afastar-se da zona ribeirinha, introduzindo-se no labirinto de vielas que conduzem aos bazares árabes e às casas de pasto do porto. As possibilidades de ser reconhecido eram agora ínfimas porque poucos europeus se arriscariam a penetrar sozinhos nessa parte da cidade. O bairro, que se estendia para além da cintura de lanternas vermelhas, era habitado por pequenos comerciantes, estivadores, traficantes de café, fornecedores de navios e contrabandistas; na rua tinha-se a impressão de que o tempo estava exposto, por assim dizer, como uma pele de boi; o mapa do tempo, que uma pessoa podia ler de uma ponta à outra, escalonando-o com pontos de referência conhecidos. Este universo do tempo muçulmano alcançava Otelo e ainda mais longe — cafés cheios do doce cantar das aves cujas gaiolas estavam cercadas de espelhos para lhes dar a ilusão de companhia. Cantos de amor dedicados pelas aves aos seus companheros imaginários que não passavam dos seus próprios reflexos! Dilacerantes melodias que eram uma ilustração do amor humano! Também ali, na lúgubre e trémula claridade das chamas de nafta, havia velhos eunucos jogando o trictrac e fumando os compridos narguilés, que a cada fumaça soltavam um gorgolejo que lembrava o arrulhar de uma pomba;
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as paredes dos cafés luziam do suor dos turbantes pendurados nos cabides; as suas colecções multicolores de narguilés estavam alinhadas numa espécie de extenso armeiro, como mosquetes, e cada fumador transportava a sua boquilha especial como se fosse um objecto precioso. Aqui também se encontram os adivinhos, os cartomantes e todos aqueles que por meia piastra nos lêem os mais íntimos segredos na palma da mão, depois de enchê-la de tinta. Os ambulantes transportam as suas cargas mágicas dos mais diversos objectos de vertu, desde os macios tapetes de Shiraz e do Baluquistão até aos baralhos de cartas de Marselha; incenso de Hedjaz, contas verdes contra o mau olhado, pentes, sementes, espelhos para gaiolas, especiarias, amuletos e leques de papel... a relação seria infinita; e todos eles, é claro, escondem no seu bolso secreto — como se fossem indulgências medievais — o fruto das grandes pornografias sob a forma de lenços e postais onde se reproduzia, sob as formas mais aberrantes, aquele acto a. que nós, seres humanos, dedicamos a maior parte dos nossos pensamentos e dos nossos temores. Misteriosa e subterrânea, a inesgotável corrente do sexo, infiltrando-se facilmente por entre as fendas das frágeis barreiras erigidas pelas nossas legislações inquietas e os remorsos característicos dos masoquistas... a ampla e poderosa corrente oculta que corre desde Petrónio a Frank Harris. (Os pensamentos de Mountolive baralhavam-se no seu cérebro enevoado, surgindo em belas imagens semiformuladas, que logo se desfaziam como bolinhas de sabão coloridas.) Sentia-se agora perfeitamente à vontade; habituara-se àquela euforia inusitada e já não percebia que estava embriagado; havia nele um sentimento de imensa dignidade que lhe dava um soberbo desembaraço. Caminhava lentamente, solenemente, como uma mulher grávida, e deixava-se penetrar por aquele espectáculo de cores e som. Deixou-se finalmente seduzir por uma pequena taberna, cheia do fumo que se escapava dos fogões ao rubro, e entrou; os odores do tomilho, do pombo assado com arroz deram-lhe bruscamente uma volta ao estômago.
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Só se encontravam no compartimento dois outros comensais, que mal se conseguiam distinguir no meio dos rolos densos da fumaça. Mountolive sentou-se com um ar de homem que faz uma grande concessão à lei da gravidade e pediu um jantar no seu excelente árabe, sem retirar o turbante nem os óculos escuros. Não havia dúvida de que se podia fazer passar por muçulmano com a maior facilidade. O dono do café era um turco, com cara de tártaro, que atendeu o freguês imediatamente e sem comentários. Colocou também um cálice em frente do talher de Mountolive e encheu-o até à borda com uma aguardente incolor extraída do lentisco e chamada mastika. Mountolive engasgou-se e tossicou um pouco, mas sentiu um enorme prazer; havia tanto tempo que não provava uma bebida do Levante que até já se tinha esquecido da sua existência. Tinha esquecido também até que ponto a bebida era forte e, tomado por uma súbita nostalgia, pediu segundo cálice para ajudar a engolir o excelente guisado e o pombo (tão quente do espeto que mal se lhe podia tocar com os dedos.) Ele encontrava-se agora no sétimo céu e perto de tornar a encontrar a imagem confusa de um Egipto que a sua entrevista com Leila tinha comprometido, que ela, por assim dizer, lhe tinha escamoteado. Pouco depois ouviu-se na rua o som de tamborins e a voz de crianças que cantavam uma espécie de litania; iam de longe em longe, aos grupinhos, repetindo incansavelmente a mesma estrofe. À terceira repetição, Mountolive conseguiu aprender a letra.
Senhor da árvore sacudida Da extremidade do homem Conserve as nossas folhinhas Bem presas aos ramos Porque nós somos os teus filhos!
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— Bem, estou arrumado! — exclamou ele engolindo uma golada ardente de mastika e sorrindo quando compreendeu o significado daquela pequena procissão. Diante dele, junto da janela, um velho e venerável sheik fumava um comprido narguilé. Fez um gesto gracioso com a velha mão ressequida, apontando para o tumulto da rua e exclamou: — Alá! O rumor das crianças! Mountolive sorriu-lhe respondendo: — Peço-lhe que me corrija se me enganar, senhor, mas estas crianças cantam esta ladainha para El Sidr, não é verdade? O rosto do velho iluminou-se e aureolado por um bondoso sorriso.
aprovou
com
um
gesto
de
cabeça
— Acertou, senhor. Mountolive sentiu-se muito orgulhoso de si próprio e afectado pela nostalgia desses anos todos semiesquecidos. — Então esta noite deve ser o mi-Shaaban Extremidade é sacudida. Não é assim?
em
que
a
ainda
mais
Árvore
da
Novo gesto de encantada confirmação. — Quem sabe — disse o velho sheik — se os nossos dois nomes não estão inscritos nas folhas que vão cair. Puxou uma fumaça lenta do cachimbo, aspirando beatificamente o fumo e soltando-o em pequenos rolos como se fosse uma locomotiva em miniatura. — Seja feita a vontade de Alá! Segundo a crença, na véspera da mi-Shaaban, a Árvore do Paraíso é sacudida, e as folhas que caem trazem os nomes dos que hão-de morrer nesse ano. Em alguns textos e designada como a Árvore da Extremidade. Mountolive sentia-se tão feliz por ter reconhecido a canção que encomendou um derradeiro cálice de aguardente, bebendo-o de pé enquanto pagava a conta. O velho sheik abandonou o cachimbo e aproximou-se lentamente dele, através do fumo. - Effendi, compreendo revelado por mim.
o
que
pretende.
O
que
procura
ser-lhe-á
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Tinha colocado um par de dedos morenos sobre o pulso de Mountolive, e falava em voz baixa, humildemente, como um homem que tem um segredo a transmitir. O seu rosto revelava toda a candura e pureza de um santo do deserto. Mountolive sentia-se encantado. — Ilustre Sheik — disse ele — dignai-vos expor os vossos pensamentos a um indigno viandante sírio. O velho inclinou-se duas vezes e lançou um olhar circunspecto em redor: — Tende a bondade de seguir-me. Conservava os dedos sobre o pulso de Mountolive, como um cego. Saíram juntos. O coração romântico de Mountolive batia fortemente — iria ser contemplado com o privilégio da visão mística de qualquer mistério religioso? Tinha ouvido contar muitas histórias de homens religiosos de atalaia, aguardando o ensejo de realizar algumas missões secretas inspiradas pelo mundo invisível, transcendente, esse mundo ciosamente guardado pelos doutores do oculto. Avançava numa doce neblina de ignorância, na companhia daquele sheik que titubeava e readquiria o equilíbrio a cada passo, sorrindo numa beatitude incessante. Percorreram assim juntos as vielas sombrias que a noite transformava em extensos e tenebrosos túneis ou indistintas cavernas onde ressoavam os ecos moribundos de uma gaita de foles ou os gritos agrestes de uma disputa abafada pelas paredes espessas e pelas janelas gradeadas. A imaginação de Mountolive inflamava-se perante a beleza e o mistério daquela luminosa cidade de sombras esculpidas aqui e além em formas reconhecíveis por um solitário candeeiro de petróleo ou por uma lâmpada eléctrica suspensa do seu fio frágil e balouçando ao vento. Entraram por fim numa longa rua ornamentada com bandeirolas e penetraram num pátio completamente negro cujo pavimento de terra batida exalava vagos relentos de suor de camelo e jasmim. Uma casa recortava-se vagamente contra o céu, apertada entre espessos muros. Penetraram numa espécie de barraca em ruínas, por uma alta e estreita porta entreaberta, e mergulharam em trevas ainda mais absolutas.
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Ficaram um segundo a respirar fundo. Mountolive sentiu, mais que viu, a escada carunchosa que conduzia ao andar superior, ouviu a rastilhada dos ratos nas galerias desertas, juntamente com algo mais — um som que tinha vagas reminiscências com seres humanos, mas num contexto que ele não conseguia recordar. Avançaram lentamente por um corredor cujo soalho estava tão apodrecido que se ouvia ranger e oscilar debaixo dos passos e finalmente, junto de uma espécie de porta, o velho sheik disse brandamente: — A fim de lhe mostrar que os nossos prazeres não são inferiores aos da vossa pátria, effendi, trouxe-o a este lugar. — E acrescentou num murmúrio: — Faça o favor de esperar um momento por mim. Os dedos do sheik soltaram-lhe o pulso e Mountolive sentiu a porta fechar-se-lhe nas costas. Ficou imóvel por um momento, espiando o silêncio. A obscuridade era tão absoluta que quando a luz surgiu ele teve por um instante a impressão de que era qualquer coisa que estava a suceder muito longe, como se alguém tivesse aberto e fechado a portinhola de uma fornalha no céu. Fora apenas o riscar de um fósforo. Mas aquela luz amarelada e trémula descobriu achar-se numa sala lúgubre, de tecto muito alto e cujas paredes, cheias de escamas, estavam cobertas de grafite e de marcas de mãos — esses sinais que protegem os supersticiosos contra o mau olhado. Não havia móveis, exceptuando o enorme divã esgaçado que ocupava o centro da sala, como um sarcófago. Uma única janela de vidros estilhaçados revelou-lhe lentamente a obscuridade azulada do céu estrelado. O fósforo apagouse-lhe entre os dedos e de novo ouviu o tropel dos ratos e esse outro estranho murmúrio composto de risinhos, vozinhas e de ruído abafado de pés correndo nus sobre o soalho... Aquilo lembrava-lhe um dormitório e raparigas num colégio e, como se este pensamento tivesse o poder de se materializar, uma porta abriu-se e um bando de criaturinhas vestindo camisas brancas, sujíssimas, correu para ele como uma procissão de anjos caídos.
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Bruscamente ele compreendeu, com um sentimento de repugnância e piedade, que se encontrava num bordel de crianças. As suas carinhas estavam cobertas de cosméticos e os cabelos apertados em trança por lacinhos. Usavam todas colares de contas verdes contra o mau olhado. Criaturinhas como as que se encontram gravadas em vasos gregos — saídas dos túmulos e dos ossários, com aquele ar cansado e triste dos malfeitores fugidos à justiça. Era a primeira do grupo que trazia luz — uma torcida ardendo num pires de azeite. Baixou-se para pousar num canto da sala a magra lamparina e imediatamente as sombras dilatadas das crianças se espalharam no tecto como um exército de vontades frustradas. — Não, por Alá! — exclamou Mountolive numa voz rouca, voltando-se para abrir a porta. Mas esta estava fechada por um ferrolho que só se podia manobrar do exterior. Aproximou a face de um buraco aberto num dos batentes, e chamou suavemente: — Ó sheik, vinde cá. As rapariguinhas aproximavam-se agora dele, cercavam-no e murmuravamlhe obscenidades e as palavras meigas da sua especialidade, com vozinhas de anjos infelizes; sentia-lhes os dedinhos começarem a percorrer-lhe os braços, a puxarem-lhe pelas mangas. — Ó sheik — gritou ele numa voz desfalecida —, não era isto que eu procurava. Mas para além da porta estava tudo em silêncio. Mountolive sentia os braços das rapariguinhas envolverem-lhe a cintura como lianas de uma selva tropical e os dedinhos magros percorrerem-lhe os botões do casaco. Com um safanão, desembaraçou-se delas e olhando-as, muito pálido, soltou um som semiarticulado de protesto. Nesse momento, um pontapé inadvertido de alguma delas apagou a lamparina e nas trevas ele sentiu a tensão ansiosa que as lavrava como fogo num matagal. Os seus protestos tinham-lhes feito recear a perda de um cliente lucrativo.
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Nas suas vozes havia ansiedade, cólera e uma certa nota de terror, quando se lhe dirigiam a suplicar e a ameaçar; só Deus sabe que castigos as esperavam se ele conseguisse fugir-lhes! Começaram a lutar, a atacá-lo; sentia o choque dos seus corpitos esfomeados empilhados em torno dele, gemendo, ofegantes e decididas a não o deixar escapar. Os dedos percorriam-no como formigas — na verdade recordava-se agora de ter lido a história de um homem derrubado na areia, junto de um ninho de formigas brancas, que o devoravam até aos ossos. — Não — gritou ele, incoerentemente, uma vez mais; uma absurda inibição impedia-o de distribuir uma série brutal de sopapos, único meio seguro de libertação. (As mais pequenas eram tão pequeninas!) Elas dominavam-lhe agora os braços e trepavam-lhe pelas costas — atravessavam-no memórias absurdas de combates de travesseiros em dormitórios de colégio. Quando ele desatou a bater com os cotovelos na porta, elas redobraram as suas súplicas: — Ó effendi, patrono dos pobres, remédio das nossas aflições... Mountolive gemia e lutava mas sentia-se gradualmente arrastado para o solo; os seus joelhos, enfraquecidos pelo álcool, cediam àquele assalto que adquiria agora um vigor triunfante. — Não — bradou ele. — Sim, sim, por Alá! — respondeu o coro infantil. Cheiravam como um rebanho de cabras correndo sobre ele- Os risinhos, os murmúrios obscenos, as carícias e as maldições subiam-lhe ao cérebro. Sentia-se prestes a desfalecer. E de repente tudo ficou claro - como se tivessem cor corrido uma cortina — e ele viu-se sentado ao lado da mãe, diante do fogo, com um livro aberto sobre os joelhos. Ela lia em voz alta e ele tentava seguir-lhe as palavras, mas a sua atenção era incessantemente distraída pela grande gravura colorida onde se via Gulliver caído no meio de um bando de liliputianos.
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Todos os pormenores estavam desenhados com uma precisão fascinante. O membrudo herói jazia onde tinha tombado, preso por uma verdadeira teia de aranha de cordas que o pregavam ao solo enquanto o povo minúsculo circulava sobre o seu corpo apertando novas cordas capazes de inutilizar todos os esforços do colosso para se levantar. Havia uma espécie de maligna precisão em cada pormenor; pulsos, tornozelos e pescoço completamente imobilizados; pregos de tenda espetados entre os dedos da mão para fixar separadamente cada falange; os cabelos amarrados a uma multidão de lançazinhas cravadas no solo. Ele jazia ali de costas, com o rosto voltado para o céu, numa surpresa inexpressiva, os olhos azuis muito abertos, os lábios apertados. O exército de liliputianos estava muito activo em torno dele, empurrando carrinhos e novelos de corda; os seus gestos sugeriam o labor de formigas em torno de uma presa. E, durante todo esse tempo, Gulliver jazia sobre a relva verde de Lilliput, num vale cheio de flores microscópicas, como um balão cativo... Foi dar consigo (embora sem a menor ideia de como tinha finalmente conseguido escapar-se) apoiado contra o parapeito gelado da Comiche, com o mar a seus pés, rolando entre os pilares de pedra, insinuandose docemente nas condutas. Recordava-se apenas de ter descido a correr, num atordoamento, uma rede de vielas, vindo desembocar por fim na Comiche. Uma aurora pálida e suja deslizava sobre as vagas do largo e a brisa trazia-lhe às narinas o odor do alcatrão e a humidade pegajosa do sal. Sentia-se como um marinheiro mercante abandonado num porto desconhecido e distante. Tinham-lhe voltado os bolsos do avesso como se fossem luvas. Tudo quanto lhe restava sobre o corpo eram as calças e uma camisa rasgada. Os botões de punho, o alfinete da gravata e a carteira tinham desaparecido. Sentia-se mentalmente doente. Mas gradualmente foi descobrindo onde se encontrava quando avistou o minarete da mesquita de Goharri cobrindo-se das primeiras cores do nascente no meio das copas das palmeiras.
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Breve, os muezins cegos sairiam como velhas tartarugas para os louvores matinais ao único Deus vivo. Estava pois a cerca de quinhentos metros do local onde abandonara o carro. Sem óculos e sem turbante, sentia-se agora como se estivesse nu. Arrancou numa corridinha dolorosa ao longo das docas lajeadas, feliz por não haver nos arredores ninguém que o reconhecesse. A praça deserta, em frente do hotel, começava justamente a despertar com a passagem do primeiro eléctrico que se dirigia, vazio, para Mazarita, num chocalhar de ferragens. As chaves do carro tinham desaparecido e ele teve de arrombar o fecho da porta com a ajuda de uma chave de fendas que encontrou no porta-bagagens — num terror que algum polícia o tomasse por algum gatuno e o levasse ao posto para ser interrogado. Sentia uma profunda repugnância contra si próprio e uma dor de cabeça dilacerante. Conseguiu finalmente quebrar o fecho e partiu a toda a velocidade —- felizmente deixara a chave de ignição no estojo do quadro da direcção — atravessando a cidade adormecida a caminho de Rushdi. Sem chaves, foi também obrigado a quebrar um vidro para penetrar em casa. Pensou primeiro passar a manhã na cama, depois de tomar um banho, mas debaixo do chuveiro quente compreendeu que tinha o espírito excessivamente agitado; os seus pensamentos zumbiam como um enxame de abelhas que não o deixava repousar. Então decidiu sair de Alexandria e regressar ao Cairo antes de os criados acordarem. Sentia-se incapaz de enfrentá-los. Vestiu furtivamente roupa limpa, arrumou a maleta e atravessou a cidade para retomar a estrada do deserto como um gatuno vulgar. Acabava de tomar uma decisão. Pediria a sua transferência para outro país. Não queria continuar naquele Egipto enganador e torpe, naquela paisagem pérfida que reduzia todas as emoções e todas as recordações a poeira, que arruinava a amizade e matava o amor. Nem sequer pensava em Leila neste momento; nessa noite ela já teria atravessado a fronteira.
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Era como se ela nunca tivesse existido. Havia no reservatório gasolina suficiente para o regresso. À saída da cidade, nas últimas curvas da estrada, voltou-se com um estremecimento de desgosto para ver ainda a miragem dos minaretes cor de pérola emergindo da neblina do lago. Um comboio silvava ao longe. Abriu o rádio do carro para afogar os seus pensamentos enquanto corria na estrada do deserto a caminho da capital de Inverno. Aqueles surdiam de todos os lados como lebres assustadas. Mountolive compreendia agora que tinha alcançado uma nova fronteira do seu ser; para o futuro seria diferente. Até então vivera numa espécie de servidão; as grilhetas tinham-se quebrado agora. Ouviu de repente a carícia apaziguante das guitarras e a voz familiar da cidade que novamente o assaltava com os seus langores perversos, as suas antigas sabedorias e terrores.
Jamais de la vie Jamais dans son lit Quand ton coeur se démange de chagrin...
Com uma praga, desligou o rádio, sufocou a voz e continuou a guiar, franzindo os olhos sob os raios oblíquos do sol que ia iluminando progressivamente os flancos sombrios das dunas. Quando parou em frente da Embaixada, Errol e Donkin ocupavam-se em carregar o velho carro de turismo do último com todo o impedimento dos caçadores profissionais: caixas de carabinas, cartucheiras, binóculos, garrafas, termos, etc. Aproximou-se deles num passo pesado, com embaraço. Acolheram-no calorosamente. Tencionavam partir ao meio-dia para Alexandria. Donkin não escondia o seu entusiasmo. Os jornais dessa manhã anunciavam as melhoras do rei e o recomeço das audiências no fim da semana. — Verá que Nur vai finalmente poder obrigar Memlik a agir — disse Donkin.
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Mountolive moveu vagamente a cabeça, com um ar ausente, enfadado; a notícia era um simples som que não despertava nele nenhum eco, nenhum presságio. Era-lhe indiferente agora o que pudesse suceder. A sua decisão de pedir a transferência parecia absolvê-lo de todas as responsabilidades pessoais; os seus sentimentos já não pertenciam a este universo. Dirigiu-se lentamente para a Residência e ordenou que lhe servissem o pequeno almoço no salão. Tinha o espírito ausente e os nervos em ebulição. Pediu depois que lhe trouxessem o seu correio pessoal. Nada havia de interesse; uma grande carta de Sir Louis, que se encontrava em Nice, cheia de pequenos mexericos sobre os amigos comuns. E, bem entendido, a inevitável anedota do raconteur emérito para coroar a obra: «Espero, meu caro, que o uniforme lhe fique bem. Pensei em si na semana passada quando estive com Claudel, o poeta francês que foi também embaixador e que me contou uma anedota maravilhosa a propósito do seu uniforme. A coisa sucedeu quando ele estava no Japão. Um dia, em que andava a passear nos arredores da cidade, viu, ao regressar, que a Residência ardia furiosamente; a família encontrava-se com ele, portanto nada tinha a temer pelas vidas dos seus. Mas os seus manuscritos, os seus livros, os seus livros raros, as suas preciosas cartas, tudo isso estava dentro da casa em chamas. Ficou extremamente alarmado. O incêndio era tão violento que se tornava evidente que nada do que se encontrava no edifício tinha qualquer possibilidade de salvar-se. Ao aproximar-se, porém, da cerca do jardim viu encaminharse gravemente para ele o seu criado de quarto japonês. O homenzinho avançava para o embaixador num passo lento e circunspecto, e nos braços estendidos como os de um sonâmbulo carregava o uniforme do poeta. «Não precisa alarmar-se, senhor. Salvei o que tinha verdadeiramente valor», anunciou o orgulhoso camareiro. E o drama inacabado, e os poemas que ardiam dentro de casa?
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Enfim, não sei bem porquê mas esta história fez-me recordar de si» Mountolive suspirou e sorriu tristemente com uma ponta de inveja; quanto não daria neste momento para estar a gozar a sua reforma em Nice! Havia ainda uma carta de sua mãe, algumas facturas dos seus fornecedores de Londres, um postal do seu corretor e uma carta breve da irmã de Pursewarden... Nada de verdadeiramente importante. Bateram à porta e Donkin entrou. Parecia acabrunhado. — Um ofício do gabinete de Nur, sir — anunciou o secretário —, informando-nos de que se avistará com o rei no fim da semana. Mas... Gabr deu a entender que as investigações de Memlik não corroboram as nossas queixas... — Que quer ele dizer com isso? — Bem, ele diz que não acertámos no verdadeiro Hosnani. O verdadeiro culpado seria um irmão de Nessim que vive algures nos arredores de Alexandria. — Narouz? — fez Mountolive surpreendido, incrédulo. — Sim. Pois nervosamente.
bem,
parece
que
nós...
Desataram
ambos
a
rir,
— Verdadeiramente — disse Mountolive dando um soco na palma da mão —, estes egípcios são incríveis. Como diabo chegaram a semelhante conclusão? Isso ultrapassa todo o entendimento. — Como quer que seja, é essa a posição de Memlik. Pensei que desejasse saber. Eu e Errol vamos partir para Alexandria. Deseja mais alguma coisa, sir? Mountolive fez que não com a cabeça e Donkin saiu fechando a porta docemente. «Com que então voltaram-se contra Narouz. Que embrulhada!» Deixou-se afundar na poltrona e esteve um momento a contemplar os dedos antes de se servir de outra chávena de chá. Sentia-se agora incapaz de pensar ou sequer da menor decisão. Escreveria a Kenilworth e ao Secretário dos Estrangeiros pedindo a sua transferência.
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Já o devia ter feito há muito tempo. Suspirou profundamente. Bateram novamente à porta, num toque mais tímido, agora. — Entre! — gritou ele numa voz fatigada. A porta abriu-se e um horroroso cão, em forma de salsicha, penetrou na sala seguido de Ângela Errol, que imediatamente explicou a sua visita, num tom de estridente cordialidade, onde não faltava uma certa vivacidade agressiva. — Peço que me perdoe a intrusão, mas venho em nome das esposas da Embaixada. Pensámos que devia precisar de um pouco de companhia e deliberámos pensar em conjunto no seu caso. O resultado chama-se Fluke. O homem e o cão contemplaram-se um momento em silêncio, surpreendidos e cheios de desconfiança. Mountolive procurava em vão as palavras adequadas. Sempre detestara os bassets que lhe faziam pensar em lagartos arrastando o ventre no solo. Fluke pertencia à espécie. O animal acabou por sentar-se sobre o traseiro como para manifestar, de uma vez por todas, que não lhe restavam quaisquer ilusões sobre a sua condição de cão e, no seguimento desse juízo, urinou sobre o belo tapete de Chirag. — Não é um encanto? — perguntou Ângela. Mountolive teve de fazer um esforço para esboçar um sorriso, para se fingir satisfeitíssimo e para exprimir os agradecimentos apropriados a tal gentileza. Sentiase sufocar. — É encantador — disse por fim com o seu sorriso mais amável. — Ficolhe muito grato, Ângela. Foi um pensamento muito delicado. O cão começou a bocejar de enfado. — Direi então às outras senhoras que o presente foi bem acolhido — fez ela com entusiasmo, dirigindo-se para a porta. — Ficarão encantadas. Não há melhor companheiro que um cão, não é verdade? Mountolive anuiu gravemente com a cabeça.
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— É verdade! Esforçava-se por parecer sincero. Quando a mulher saiu, voltou a sentar-se e levou a chávena de chá aos lábios, olhando fixamente, com um ar de desgosto, o animal de olhos estúpidos. O pêndulo cantou docemente as horas no relógio da chaminé. Tinha de ir andando para o seu gabinete, onde o esperava bastante trabalho. Prometera dar a última demão no relatório económico, a tempo de seguir pelo correio diplomático dessa semana. Havia também que providenciar para que o retrato fosse despachado. Devia... Ficou, contudo, a contemplar o triste animalejo abandonado sobre o tapete e teve de repente a impressão de que se deixara engolir pelo macaréu da insolência humana — tão apropriadamente expressa pelo indesejável presente das suas admiradoras. Estava condenado a ser o garde-malade do basset. Não havia pois outro processo de exorcizar a sua melancolia? Soltou um suspiro e suspirando carregou na campainha.
XVI
O dia da sua morte foi, como qualquer outro dia de Inverno, em Karm Abu Girg; ou simplesmente diferente num pequeno pormenor, cujo significado ele não compreendeu imediatamente: os criados tinham desaparecido todos, deixando-o sozinho em casa. Passara toda a noite num sono perturbado pelas imagens luxuriantes da sua fantasia, densa como uma selva tropical; acordando de vez em quando para ouvir o grito suave dos grous que voavam nas trevas. Estava-se em pleno Inverno e tinham principiado as grandes migrações. As longas extensões polidas do lago principiavam a animar-se com a chegada dos seus visitantes alados, como uma grande estação terminal. Ouvia-se toda a santa noite a aproximação dos bandos — o bater pesado das asas dos marrecos ou o som metálico dos gansos voando alto contra o disco da Lua. No meio dos canaviais, nos lugares onde o frio dera às águas um colorido verde-víbora, ouvia-se o chapinhar dos cisnes. O velho casarão, com as suas paredes de mangra, onde hibernavam os escorpiões e as moscas nos interstícios poeirentos, era agora para ele um deserto, depois da partida de Leila. Percorria-o arrogantemente, fazendo todo o ruído possível com os tacões, gritando aos cães e estalando o chicote no meio do pátio. Os bonecos, com braços de moinho, que se alinhavam nas paredes contra o mau olhado, rodopiavam incessantemente sob os ventos invernais.
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O ruido que as suas delgadas hélices de celulóide produziam era de certo modo reconfortante. Nessim tinha insistido muito com ele para que acompanhasse Leila e Justine, mas ele recusara — na verdade comportara-se como um urso, embora não ignorasse que sem a mãe a solidão da casa seria difícil de sofrer. Fechara-se na incubadora e aos apelos do irmão respondera com o silêncio. Era-lhe impossível enfrentar agora Nessim. Nem mesmo apareceu quando Leila lhe falou através da porta — receando deixar-se convencer por ela. Ficara ali em silêncio, de costas contra a porta, o punho cravado na boca para abafar os soluços — tão pesado era para ele o fardo da desobediência filial! Por fim deixaram-no. Ouviu as ferraduras das montadas no pátio. Estava finalmente só. Decorreu um mês de completo silêncio até ouvir outra vez a voz do irmão, pelo telefone. Narouz passara o dia numa impaciência, fiscalizando os trabalhos agrícolas com uma determinação concentrada, galopando ao longo das margens do rio com os seus pensamentos a persegui-lo; e sempre, enrolado na garupa, o mortífero látego. Sentia-se agora incomensuravelmente velho — e contudo, simultaneamente, tão novo para o Mundo como um feto preso pelo cordão umbilical. A terra, a sua terra, agora castanha e grisalha como a casca da vide velha lavada pela chuva, atraía-o. Era tudo quanto lhe restava para cuidar — árvores queimadas pela geada, areia envenenada pelo sol do deserto, comportas cheias de peixes e de gansos; e o silêncio permanente, apenas quebrado pela mensagem eterna dos moinhos hidráulicos («Alexandre tem orelhas de burro») carregado pelo vento até aos mais recônditos confins, para fertilizar a História com a memória contagiosa do deus-soldado; ou então pelo chapinhar dos búfalos atrelados a azenhas. De noite era o grito incessante dos patos comunicando uns com os outros no meio das trevas — ansiedades ou alegrias que se exprimiam num peculiar código de viandantes. Cortinas de neblina, nuvens baixas no meio quais explodiam auroras e poentes com indomável esplendor, dois extremos de um mundo, uma aguarela em ametista e nácar.
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Normalmente era esta a época que ele preferia, a estação de caça com as suas grandes fogueiras e os cães impacientes; era a altura de ensebar as botas com banha de urso, de afinar as espingardas, de preparar os cartuchos e de pintar as armadilhas... Nesse ano nem mesmo tivera a alegria de participar na caçada aos patos oferecida por Nessim. Sentia-se segregado, num mundo diferente. Tinha a expressão rancorosa do comungante a quem foi recusada a absolvição. Já não lhe bastava um cão e uma caçadeira para exorcizar a sua tristeza; estava agora completamente voltado para Taor e para os sonhos que com ela partilhava — e nos quais reconhecia os seus direitos à posse de toda a terra egípcia... Estes sonhos confusos entrecruzavam-se como afluentes de um grande rio. O próprio amor de Leila era uma ameaça para eles — como uma liana parasita estrangulando o crescimento de uma árvore. Pensava vagamente e sem rancor no seu irmão, vivendo na cidade (só devia deixá-la mais tarde), movendo-se no meio de criaturas tão insubstanciais como bonecos de cera, a sociedade pintada das mulheres de Alexandria. E se pensava ainda no seu amor por Clea era como se esse amor fosse uma moeda de ouro brilhando no bolso de um mendigo... Assim vivia ele, galopando numa exultação selvagem, no meio dos campos e das margens do estuário, com as suas palmeiras apodrecidas balouçadas pelo vento. Na semana anterior, Ali denunciara-lhe a presença de homens desconhecidos nas vizinhanças das terras, mas não dera importância ao caso. Era frequente um beduíno, ou qualquer estrangeiro, a caminho da cidade, cortarem camião atravessando a plantação. Interessou-o muito mais o telefonema de Nessim anunciando-lhe a visita a Karm Abu Girg, na companhia de Baltasar, que estava interessado em estudar as novas espécies de patos que tinham sido vistas no lago. (Do terraço da casa podia-se dominar todo o estuário com um binóculo.)
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Era justamente o que ele estava a fazer neste momento. Árvore por árvore, canavial por canavial, observando minuciosamente a terra através do seu velho óculo. Tudo permanecia misterioso, despovoado e silente na luz débil da madrugada. Tencionava passar todo o dia fora, nas plantações, a fim de evitar, sendo possível, avistar-se com Nessim. Mas a deserção dos criados, um gesto inexplicável, intrigavao. Habitualmente, quando acordava, gritava por Ali que lhe vinha despejar um balde de água quente sobre o corpo enquanto de dentro do velho semicúpio victoriano bufava de satisfação. Mas hoje o pátio conservava-se silencioso e o quarto onde Ali dormia estava fechado à chave. Esta encontrava-se pendurada no seu lugar habitual, segura num prego cravado na porta. Não se avistava ninguém. Em passadas bruscas, subiu ao terraço, onde, com a ajuda do telescópio, podia devassar as propriedades dos Hosnani. Uma demorada e paciente observação não revelou nada de extraordinário. Praguejou e abandonou o óculo. Tinha de olhar por si nesse dia. Desceu do seu poleiro e agarrando na velha bolsa de caça dirigiu-se para a cozinha a fim de enchê-la de comida. Encontrou o café a ferver e as panelas sobre o fogão aceso, mas dos cozinheiros nem sinal. Resmungando, pôsse a trincar um pedaço de pão, enquanto preparava o farnel. Uma ideia ocorreu-lhe então. No pátio, ao seu assobio agudo, os cães de tiro teriam normalmente acorrido para lhe vir farejar as botas, mas hoje, ao seu assobiar furioso, só respondeu o próprio eco devolvido pelo vento. Teria Ali levado os bichos a passear? Não parecia provável. Assobiou de novo, com mais força, os pés afastados, as mãos sobre as ancas. Nenhuma resposta. Dirigiu-se à estrebaria e encontrou o seu cavalo. Ali, pelo menos, tudo parecia normal. Aparelhou-o e levou-o para o pátio. Depois, subiu a casa para ir buscar o chicote. Enquanto o enrolava assaltou-o novo pensamento. Dirigiu-se à sala e retirou revólver da escrivaninha, verificando que estava carregado.
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Entalou-o no cinturão. Então partiu a passo, dirigindo o cavalo lentamente para leste, pois propunha-se, antes de mais nada, ver o que se passava na propriedade antes de se internar nas densas plantações onde tencionava passar o dia. O ar ia-se tornando áspero, à medida que clareava, com a neblina do pântano a dissolver-se rapidamente. Cavalo e cavaleiro atravessavam sem ruído os caminhos familiares. Depois de meia hora alcançou a orla do deserto, não tendo avistado nada, embora os seus olhos hábeis não perdessem um pormenor. A terra macia abafava o ruído das ferraduras. Na parte oriental da plantação parou por dez minutos, percorrendo de novo a paisagem com o óculo. E ainda desta vez nada descobriu. Não desprezou nenhum dos menores sinais capazes de denunciar a presença de desconhecidos, trilhas do deserto, pegadas na terra mole das margens de acesso. O sol erguia-se lentamente mas a terra continuava ainda coberta por uma fina mortalha de névoa. Junto das bombas de água desmontou e esteve por um momento a ouvir deliciado o surdo palpitar dos pistões. Voltou a montar e encaminhou o cavalo para os bosques mais densos da plantação, com as suas queridas oliveiras de Tripoli e as acácias, os zimbros geradores de humo e as espigas rumorosas de milho indiano. Continuava porém de atalaia, fazendo curtos percursos, parando aqui e além para escutar intensamente durante um minuto. Mas só ouvia o marulho distante dos pássaros, o padejar das asas dos flamingos nas águas do lago, o grito melodioso das cercetas ou o trombetear solene e majestoso dos gansos. Tudo familiar, tudo normal. Continuava intrigado mas de forma nenhuma assustado. Dirigiu-se finalmente para a grande árvore melek, orgulhosamente erecta no meio da sua clareira, com os enormes ramos ressumando orvalho. Aqui, havia muito tempo, parara para orar com Mountolive, debaixo dos galhos sapados, carregados com o fruto das oferendas humanas: ex-votos, representados por fragmentos de tecidos coloridos, rosários, algodões estampados...
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Uma gigantesca árvore de Natal! Desmontou para cortar alguns rebentos que embrulhou e guardou cuidadosamente. E, de súbito, ficou hirto, porque tinha ouvido som de movimento no matagal circunvizinho. Sons difíceis de identificar, de isolar — o deslizar de um corpo entre as folhas ou talvez o raspar de uma sela contra um ramo quando cavalo e cavaleiro se preparam cuidadosamente para armar uma emboscada? Narouz ouviu e soltou uma risadinha abafada, como se estivesse recordando para si uma velha anedota. Lastimava aqueles que intentassem molestálo ali, nas suas terras, cujos menores relevos conhecia de cor. Aqui encontrava-se no seu próprio terreno — era ele o senhor. Voltou para o cavalo no seu andar oscilante e silencioso. Montou e afastou-se lentamente da sombra dos grandes ramos a fim de permitir amplo campo de manobras ao comprido chicote e cobrir as duas entradas da plantação. Os seus adversários — se existiam — teriam de se aproximar por um dos dois caminhos. Tinha as costas cobertas pela grande árvore e soltou uma risadinha de satisfação, esperando atento, a cabeça ligeiramente inclinada para um dos lados, como um cão de caça; fez a ponta do chicote mover-se com os lentos e voluptuosos movimentos de uma cobra sobre a terra poeirenta, desenhando círculos, erguendo o capelo... Provavelmente tratava-se de um falso alarme — talvez fosse Ali que vinha desculpar-se... De qualquer maneira, o encontro com o seu senhor havia de aterrá-lo — pois já vira o chicote em acção... Outra vez o rumor. Um rato de água mergulhou no canal e afastou-se a nadar precipitadamente. Entre os canaviais, Narouz avistava agora sinais de movimento. Esperou, imóvel, como uma estátua equestre, a pistola na mão esquerda, o chicote um pouco recuado, o braço na atitude do pescador que se prepara para lançar o anzol. Sorria. A sua paciência era infinita. O som distante de disparar não era raro entre os ruídos familiares do lago; combinava-se com o ruído das gaivotas que vinham do litoral e com o som das outras aves que povoavam os canaviais da lagoa.
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O hábito ensinava as pessoas a distinguir os vários sons das armas — e Nessim passara a infância com uma espingarda nas mãos. Era capaz de diferençar os calibres pelo eco dos disparos. Os dois homens encontravam-se a cavalo junto do embarcadouro quando a coisa veio, uma mera vibração de ar, caindo sobre a membrana do tímpano como pingos de chuva, como o gotejar de uma torneira num velho casarão. Mas eram tiros, com certeza. Baltasar voltou a cabeça, dirigindo o olhar surpreendido para os lados do lago. — Parecem cabeça.
tiros
de
pistola
—
observou.
Nessim
sorriu
abanando
a
— Carabina de pequeno calibre. Algum caçador furtivo atirando aos patos. Mas seguiu-se uma série de tiros superior em número aos cartuchos que se podem alojar no carregador de qualquer tipo de carabina. Montaram os cavalos que lhes tinham sido trazidos, um pouco intrigados, tanto mais que Ali não os esperava. Amarrara as montadas e deixara-as à guarda do encarregado da portagem, desaparecendo na bruma. Cavalgaram vivamente, lado a lado, descendo as margens. O sol erguera-se e agora toda a superfície do lago subia para o céu, como um alçapão de teatro, erguendo-se numa nuvem de vapor; aqui e além intervinham miragens e viam-se fragmentos de paisagem de cabeça para baixo ou então sobrepostos como várias fotografias tiradas na mesma chapa. A primeira indicação de que havia alguma coisa mal foi a visão de um vulto em roupagens brancas fugindo ao correr da cortina de vapor — acção inédita naquela terra tranquila. Quem fugiria de dois cavaleiros na estrada de Karm Abu Girg? Algum vagabundo? Estacaram perplexos. — Creio que ouvi tiros para o lado da casa — disse finalmente Nessim em voz baixa, constrangido, e, como se ambos fossem simultaneamente fustigados pelo mesmo pensamento, lançaram as montadas num galope vivo, a caminho de casa.
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Um cavalo, o cavalo de Narouz, sem cavaleiro, encontrava-se parado, a tremer, em frente das portas escancaradas da mansão. Tinha recebido um tiro nos lábios — um rasgão que lhe emprestava uma espécie de sorriso sangrento. Gemia mansamente quando os homens se aproximaram. Antes de terem tempo de desmontar ouviram-se tiros no pomar e um vulto saiu do meio das árvores curvado para eles. Era Ali. Apontou para a plantação e gritou o nome de Narouz. O nome, tão cheio de presságios para Nessim, tinha já uma curiosa auréola obituária, embora o seu titular ainda não tivesse morrido. — Junto da árvore sagrada —- bradou Ali, e os dois homens, cravando os calcanhares nos cavalos, atravessaram a plantação tão depressa quanto possível. Narouz jazia sobre a relva, debaixo da árvore nubk, com a cabeça e o pescoço apoiados ao tronco, num ângulo que, inclinando-se para a frente, dava a impressão de ele estar a estudar os ferimentos do seu corpo. Só os olhos se moviam, mas não conseguiam subir acima dos joelhos dos dois homens; a dor tinha-lhe alterado a cor azul viva, dando-lhes a tonalidade sombria do chumbo. O chicote enrolara-se em torno do seu corpo, provavelmente quando caíra da sela. Baltasar desmontou e encaminhou-se para ele lenta e deliberadamente, fazendo o pequeno ruído habitual com a boca; embora parecesse compassivo era, na realidade, uma interjeição inarticulada de censura contra a satisfação que uma parte da sua mente profissional sentia na presença da tragédia. Sempre lhe parecera que não tinha o direito de ficar tão entusiasmado. Nessim estava muito pálido e muito calmo mas não se aproximou do vulto do irmão. E, contudo, o quadro possuía uma espécie de tremendo magnetismo — era como se Baltasar estivesse manipulando qualquer explosivo, tremendamente poderoso, capaz de se inflamar matando-os a ambos.
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Mas, em matéria de colaboração, limitava-se a segurar os cavalos. Narouz disse então numa vozinha amuada — a voz de uma pessoa que conta com a sua doença para satisfazer os seus caprichos — uma coisa bastante inesperada: — Quero ver Clea. Aquilo foi pronunciado tão naturalmente como se a frase viesse sendo ensaiada mentalmente há séculos. Humedeceu os lábios e voltou a formular o mesmo desejo. De onde Baltasar se encontrava poderia tomar-se por um sorriso a contracção de dor que lhe arrepanhava os lábios. Pegando no par de tesouras cirúrgicas que trouxera para as suas experiências com os patos, Baltasar começou a cortar, de norte para sul, as roupas de Narouz. Nessim aproximou-se e debruçaram-se sobre aquele tronco poderoso onde as balas se tinham enterrado como nós de madeira. Mas eram muitas, eram demais. Baltasar fez o seu gesto característico de incerteza, o gesto de um chinês que cruza as mãos... Mas, na clareira, havia agora muito mais gente. Começava a pensar-se com mais facilidade. Tinham trazido uma enorme colcha de púrpura a fim de carregar o ferido para casa, que agora, estranhamente, se encontrava cheia de criados. Tinham voltado como a maré. O ar estava sobrecarregado com os seus cuidados. Narouz rangeu os dentes e gemeu quando o levantaram e o carregaram na colcha, como um veado ferido, através da plantação. Quando se aproximavam de casa, pediu, numa voz infantil e clara, «para ver Clea», antes de recair num silêncio febril, interrompido por suspiros trémulos. Os criados murmuravam: — Graças a Deus, o doutor está aqui! Tudo há-de correr bem com ele! Baltasar sentiu os olhos de Nessim procurarem os seus. Sacudiu a cabeça gravemente, sem esperança. Era uma questão de horas, de minutos, de segundos... Entretanto, alcançaram a casa como uma espécie de grotesca procissão religiosa, transportando o corpo do filho mais novo. Gemendo e soluçando baixo, mas esperando um milagre, as mulheres contemplavam o corpo que balouçava na colcha púrpura, enfunando-a como se fosse uma vela.
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Nessim dava instruções: «Cuidado aí»; e «devagarinho, nessa esquina». Assim o foram levando gradualmente para o quarto espartano de onde ele saíra nessa manhã. Entretanto, Baltasar corria para um armário de medicamentos armazenados para acorrer a qualquer acidente no lago e preparava uma injecção de morfina. Agora, da boca de Narouz soltavase uma espécie de estertor. Tinha os olhos fechados. Não podia ouvir o que no outro extremo da casa Nessim dizia a Clea, pelo telefone. — Mas ele está moribundo, Clea. A rapariga soltou um gemido inarticulado de protesto: — Que posso eu fazer, Nessim? representou nada para mim. É tão obrigues a ir, Nessim.
Ele não representa nem nunca desagradável, por favor não me
— Claro que não. Pensei simplesmente, como ele está a morrer... — Mas se pensas que tenho o dever... — Não penso nada. Ele já não viverá muitas horas, Clea. — Pela tua voz, vejo que devo ir. Ó Nessim, que coisa desagradável as pessoas amarem-nos sem lhes termos dado motivo para isso. Mandas o carro ou queres que telefone a Selim? Estou a tremer como varas verdes. — Obrigado, Clea — disse Nessim cortando a conversa e com a cabeça tristemente inclinada; a palavra «desagradável» ferira-o. Regressou lentamente ao quarto e reparou que o pátio estava cheio de gente — além dos criados da casa havia, agora, muitos curiosos. A desgraça atraía as pessoas como as feridas atraem as moscas, pensou Nessim. Narouz caíra em torpor. Sentou-se junto de Baltasar e principiaram a falar quase em segredo. — Então ele tem mesmo de morrer? — perguntou Nessim tristemente. — Sem ver a mãe? — Parecia-lhe que o facto de ter forçado Leila a partir agravava o peso da sua culpa. — Assim... só?
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Baltasar fez uma careta de impaciência. — O que é de surpreender é que ainda esteja vivo — exclamou. — Não há absolutamente nada... E com uma grave lentidão, Baltasar sacudiu inteligente. Nessim levantou-se e exclamou:
a
cabeça
morena
e
— Então terei de avisá-los de que não há nenhuma esperança. Quererão, com certeza, preparar-se para a sua morte. — Faça o que achar melhor. — Tenho de mandar chamar o padre Tobias. Ele deve receber os últimos sacramentos — a Sagrada Eucaristia. O padre dirá a verdade aos criados. — Proceda como entender — disse Baltasar secamente, e a alta figura do amigo deslizou, escadas abaixo, para ir ao pátio dar as suas instruções. Um criado foi despachado a cavalo para ir buscar o padre, que devia vir urgentemente e preparado para ministrar a Narouz os últimos sacramentos. Quando este facto se tornou conhecido houve um grande suspiro de horrível expectativa e os criados ficaram transidos de terror. — E o doutor? — gritavam angustiosamente. — E o doutor? Baltasar sorriu, sentado à cabeceira do moribundo. «E o doutor?» Que parvoíce! Colocou a mão fria sobre a testa de Narouz, com um ar de tristeza e resignação. Uma temperatura elevada, uma dúzia de balas no corpo... «E o doutor...?» Pensando na futilidade dos trabalhos humanos e nos horrorosos acidentes a que está exposta a vida da mais confiante e inocente das criaturas, acendeu um cigarro e dirigiu-se para a varanda. Uma centena de olhares procuraram o seu, implorando-lhe que, por algum secreto poder da sua magia, restituísse a saúde ao doente. Repeliu a súplica franzindo os sobrolhos. Se fosse algum mágico das fábulas egípcias ou do Novo Testamento diria a Narouz que se levantasse. Mas... «E o doutor?» A despeito das hemorragias internas e de sentir o pulsar do sangue martelando-lhe os ouvidos, da febre e da dor, o doente estava simplesmente a guardar — num certo sentido — as suas energias, para quando Clea aparecesse.
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Deixou-se iludir momentaneamente pelo adejar das vozes e pelo rumor de passos na escada que precederam a entrada do padre. As suas pestanas bateram mas tornaram a cair quando começou a ouvir a voz pastosa desse jovem sacerdote de rosto nédio e ar de quem acabava de refastelar-se com um bom almoço. Voltou a isolar-se na sua espera persistente, deixando que Tobias o julgasse inconsciente ou mesmo morto, desde que pudesse conservar uma pequenina parcela do seu espaço moribundo para a loura imagem — intangível e agora mais remota do que nunca no seu espírito — e todavia capaz de corresponder ao apelo do seu sofrimento. Mesmo que fosse apenas por piedade. Sentiase túmido de desejo, tenso como uma mulher grávida. Quando se ama sabe-se que o amor é um pedinte, um pedinte sem amor próprio; e os gostos da simples piedade humana podem consolar na ausência do amor, disfarçando-se numa felicidade imaginária. E, contudo, o dia arrastava-se e ela sem chegar. A ansiedade da casa era tão profunda como a do próprio moribundo. E Baltasar, que adivinhava o que ia no espírito de Narouz, sentiu-se tentado por este pensamento: «Eu podia imitar a voz de Clea — perceberia ele o embuste? Podia acalmá-lo pronunciando algumas palavras com a voz dela». Era um ventríloquo de primeira ordem e um excelente imitador. Mas ao primeiro pensamento outro se opôs: «Não. Ninguém deve interferir com um destino, por mais amargo que seja, socorrendo-se de mentiras. Ele deve morrer na verdade». E a primeira voz retorquiu com azedume: «Se damos ao moribundo o alívio da morfina e os confortos da religião, porque não lhe havemos de proporcionar o consolo de uma voz humana imitada, de um aperto de mão desejado e impossível? Podias fazê-lo sem dificuldade». «Não», disse para si próprio, sacudindo obstinadamente a cabeça, enquanto ouvia a voz desagradável do padre a ler as passagens do Evangelho, lá fora, no terraço, confundindo-se com o murmúrio da pequena multidão reunida no pátio.
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Ler o Evangelho não era o mesmo que imitar a voz de Clea? Beijou lentamente a testa do moribundo, tristemente, enquanto reflectia. Narouz começou a sentir-se arrastado para o outro mundo pelos cinco cães raivosos dos sentidos que puxavam a trela cada vez com mais força. Opôs-se-lhes com todas as forças da sua vontade poderosa, lutando para guardar tempo, esperando a única presença humana que desejava — a voz e o perfume de uma rapariga que os seus sentidos tinham sublimado e entesourado como uma imagem preciosa. Sentia os nervos palpitando em espirais de dor, as bolhas de oxigénio subindo cada vez mais lentamente para explodirem no sangue. Sabia que tinha o seu tempo contado e que este estava a esgotar-se rapidamente. O peso lento da paralisia assentava sobre a sua mente como um narcótico para a dor. Nessim voltou ao telefone. Estava agora pálido, com duas rosetas febris nas faces, e falou com o mesmo tom agudo e docemente histérico da voz de Leila. Clea já tinha partido para Karm Abu Girg, mas constava que uma ponte da estrada se encontrava interrompida pela rotura de um dique. Selim duvidava que ela conseguisse atravessar o canal ainda nessa tarde. Principiou então uma luta terrível no peito de Narouz — uma luta para manter o equilíbrio entre as forças que se debatiam dentro dele. Os músculos contraíam-se e as veias dilatavam-se como cordões de ebonite em consequência do esforço da vontade que não queria ceder. Contraiu os dentes num ímpeto selvagem, como um javali sufocado pelo estilete que o afoga em sangue. E Baltasar, imóvel, uma das mãos sobre a testa de Narouz, a outra dominando-lhe com firmeza as contracções do pulso, Ia murmurando em árabe: «Descansa, meu querido. Está tranquilo, meu amor». A tristeza que sentia conferia-lhe um domínio completo de si próprio, uma calma infinita.
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A verdade é tão amarga que o conhecimento dela confere uma espécie de prazer sensual. A situação manteve-se sem alteração durante alguns minutos. Depois, por fim, da garganta do moribundo, como o rugido cavernoso de um leão ferido de morte, soltou-se o nome de Clea; e naquela única palavra conjugavam-se a dor, a censura do abandono e uma avassaladora tristeza. Aquela palavra tão nua e simples como «Deus» ou «Mãe» soou como se tivesse sido proferida pelos lábios de algum conquistador moribundo, algum rei perdido, consciente da dissolução simultânea do seu corpo e da sua alma. O nome de Clea ecoou por toda a casa, levando a todos os recantos o esplendor da sua angústia, silenciando os murmúrios dos servos e dos visitantes, fazendo baixar as orelhas dos cães que se encolheram submissos, vibrando aos ouvidos de Nessim como uma nova e terrificante amargura, demasiado profunda para provocar lágrimas. E quando o som se foi perdendo no espaço, a noção da morte de Narouz caiu sobre todos os presentes como um fardo esmagador — como uma pedra tumular caindo sobre a última esperança. Imóvel, e sem idade, como a própria dor, a efígie derrotada do médico permanecia sentada ao lado de Narouz. Ao grito enorme sucedeu-se o longo estertor, cujo som áspero foi gradualmente transformado no zumbido de uma mosca presa numa remota feia de aranha. E bruscamente Nessim deixou escapar um simples soluço — um ruído não maior do que o produzido pelo rebento de bambu arrancado da haste — e, como se fosse a abertura de uma grande sinfonia, este soluço ecoou na penumbra do pátio e passou de boca em boca, de coração em coração. E — como velas que se acendem umas às outras — os soluços foram-se desencadeando nas gargantas, numa execução orquestral do tema precioso da tristeza, e um prolongado e trémulo gemido elevou-se para o céu agonizante, num gemido cujo som se confundia com o crepitar da chuva que caía sobre o lago Mareótis.
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A morte de Narouz começava a nascer. recitava para si estes versos, em grego:
Baltasar,
de
cabeça
baixa,
Agora a tristeza da partida do homem que morre Sopra como o vento nas enxárcias de um veleiro Sopradas pelo fantasma da Morte...
Era o sinal para se desencadearem dentro de casa as cenas terríveis do ritual copta, cenas carregadas de um antigo terror e abandono. A morte reconduzia as mulheres para o reino delas e libertava-as das suas reservas de sofrimento. Lançaram-se escadas acima, cada vez mais depressa, a face desfigurada pelo primeiro e horroroso grito. Os dedos eram agora tenazes que laceravam a carne, os seios, as faces, com um abandono erótico, enquanto galgavam os degraus. Soltavam aquele curioso e irritante lamento chamado o zagreet, com as línguas a dedilhar o céu da boca como se esta fosse um bandolim. Um coro de trinados em vários tons e capaz de rasgar os tímpanos de quem não estivesse habituado a ouvi-lo. A velha casa ecoava os gritos destas harpias que iam tomando posse de tudo, invadindo a câmara mortuária para rodear o cadáver, repetindo sempre aquele uivo de morte de gelar o sangue e cheio de um intolerável abandono animal. Iniciaram as danças rituais diante de Nessim e Baltasar. Sentados nas suas cadeiras, cabeças caídas sobre o peito, mãos enclavinhadas, eram bem o símbolo da desgraça humana. Aqueles gritos agudos e trémulos laceravam como estiletes, penetrando-os até ao âmago dos seus próprios seres. Agora só restava submeterem-se ao velho ritual fúnebre; a tristeza era agora um frenesim orgíaco que raiava pela loucura. As mulheres dançavam agora em torno do corpo, flagelando os seios e uivando, mas dançando nos lentos e comedidos compassos de uma dança recolhida nos frisos esquecidos há muito dos túmulos do mundo antigo.
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Balouçavam o corpo, oscilando da cabeça aos pés, e dobravam-se, e voltavam-se, invocando o morto. «Ergue-te, meu desespero! Ergue-te, meu morto! Ergue-te, meu idolatrado, meu morto, meu camelo, meu protector! Ó bem amado corpo, cheio de vida, ergue-te!» Depois os uivos fantasmagóricos rasgavam-lhes de novo as gargantas e lágrimas amargas corriam-lhes pelas faces. Continuavam a rodar, hipnotizadas pelos seus próprios lamentos, contaminando toda a casa com a sua tristeza, enquanto do pátio sombrio se elevavam os soluços mais profundos e sóbrios dos homens que davam as mãos e repetiam uns para os outros, para se consolarem: «Ma-a-lesh! Perdão! Nada pode minorar a nossa tristeza!» A dor multiplicava-se e proliferava. As mulheres acorriam de toda a parte, como moscas. Algumas já traziam vestidos os sujos trapos de algodão azul-escuro, que são o trajo preceituado para o luto ritual. Tinham polvilhado o rosto com anil e coberto os cabelos de cinzas. Acompanhavam agora os gritos das mulheres que se encontravam no primeiro andar, descobrindo os dentes esmaltados, e principiaram a subir as escadas inundando toda a casa como demónios. Quarto após quarto, com uma fúria sistemática, apoderavam-se do velho casarão, parando apenas um pouco para lançar os seus uivos arrepiantes. Camas, armários, sofás, era tudo levado para o terraço e lançado no pátio. A cada estrondo, uma renovada febre de gritos — os longos e borbulhantes zagreet — iniciava-se num grupo para logo contaminar toda a casa. Os espelhos estilhaçavam-se, os quadros eram voltados para as paredes e os tapetes colocados do avesso. Todas as porcelanas e todos os cristais existentes em casa — salvo o serviço de café que se destinava exclusivamente ao ritual fúnebre — estavam reduzidos a cacos. Tudo o que pudesse sugerir a ordem e a continuidade da vida doméstica, pessoal ou social tinha sido destruído ou afastado. Destruía-se até sistematicamente tudo o que pudesse recordar o morto — pratos, quadros, ornamentos... A casa estava agora completamente devastada e o pouco que fora poupado encontrava-se agora coberto por panos pretos.
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Entretanto, armara-se em baixo uma grande tenda colorida onde os visitantes eram recebidos e esgotavam a «velada da Solidão» bebendo café e ouvindo o coro de lamentos que lhes cobria as cabeças e que de vez em quando se atiçava num assomo de gritos, quando não era cortado pela queda de uma mulher que desmaiava ou pelo rebolar de outra que caía em transe. Nada devia omitir-se para que o funeral de Narouz fosse realmente imponente. Chegavam constantemente novos visitantes, tanto pessoais como profissionais, por assim dizer; aqueles que vinham participar no funeral de um amigo passavam a noite debaixo da grande tenda brilhantemente iluminada. Mas havia os outros — as outras, aliás — carpideiras das aldeias vizinhas para quem a morte era uma espécie de competição na poesia do luto; chegavam a pé, em carruagem, em camelos. E à medida que atravessavam o portão lançavam um longo grito dilacerante, como um orgasmo que ia renovar a tristeza das carpideiras presentes, que se incendiava em lamentos por todos os cantos da casa — os gemidos surdos subindo gradualmente até uma nota aguda e vibrante que gelava o sangue e sacudia os nervos. Estas carpideiras profissionais traziam consigo toda a poesia bárbara da sua casta, de memórias carregadas com anos de práticas fúnebres. Às vezes eram novas e belas. Eram cantoras. Traziam com elas os tambores e tamborins rituais com que acompanhavam os passos de dança e que serviam para marcar o compasso dos seus próprios lamentos ou estimular, com soberba e calculada lentidão, uma dança em torno do cadáver, debruçando-se sobre Narouz para lhe recitarem elegias no mais belo e poético árabe que se possa conceber. Louvavam-lhe o carácter, a rectidão, a beleza e a fortuna. Estas estrofes perfeitas eram cadenciadas pelos soluços dos assistentes e, embora invulneráveis à poesia, até os velhos que se encontravam sentados nas duras cadeiras que mobilavam a tenda deixavam escapar um soluço das gargantas apertadas. «Ma-a-lesh».
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Entre os velhos encontrava-se Mahommed Shebab, professor e amigo dos Hosnani. Vestia as suas melhores roupas e trazia um par de pérolas antigas cravadas no turbante vermelho. Recordando-se de outras noites que passara no terraço da velha casa, com Nessim e Narouz, ouvindo música e tagarelando com Leila, enchia-o de uma dor genuína. Aquela tristeza fê-lo pensar na morte do irmão e, soluçando, meteu dinheiro na mão do criado e ordenou-lhe: «Pede a Álamo que faça o favor de cantar outra vez o recitativo da Imagem das Mulheres». E quando o cantor entoou de novo o grande poema, o velho recostou-se na luxúria e na consolação de uma dor que se aniquilava na poesia. Outros pediram também para que lhes cantassem os seus lamentos favoritos, e assim todas as dores da província se renovaram e apaziguaram através da imagem morta de Narouz. As danças duraram até de madrugada, acompanhadas pela cadência dos tamborins e pelos gritos dilacerantes das carpideiras. Algumas foram vencidas pelo cansaço e muitos criados da casa desmaiaram histericamente; mas as profissionais conheciam as suas forças e quando se sentiam desfalecer deixavam-se cair no chão, onde repousavam alguns minutos fumando um cigarro. Depois iam de novo juntar-se ao círculo das dançarinas, completamente restabelecidas. Depois do primeiro assomo de dor profissional, Nessim mandou chamar os padres que viriam acrescentar o murmurar dos seus salmos ao som da água e da esponja com que o corpo de Narouz havia de ser lavado. Chegaram finalmente dois acólitos da Igreja Copta — um par de brutos ignorantes — que tinham a seu cargo lavar o cadáver. E aqui desencadeou-se um chinfrim porque o pagamento daquela macabra tarefa consiste tradicionalmente nas roupas do morto e os acólitos nada encontraram no modesto guarda-roupa de Narouz que lhes parecesse recompensa adequada.
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E como não aceitavam dinheiro — isso desencadearia sobre eles infinitas desgraças — Nessim começou a irritar-se. Mas os outros, obstinados como mulas, recusavam-se a lavar o cadáver antes de receberem o pagamento ritual. Finalmente, Nessim e Baltasar foram forçados a despojarem-se das suas próprias roupas para com elas pagar aos acólitos. Nessim deu depois ordens para que se fizesse uma urna. A cantoria fúnebre era pouco depois cortada ritmicamente pelas marteladas e pelo zumbido da serra que se ouvia na pequena oficina do pátio. Nessim sentia-se exausto e dormitava numa cadeira, para acordar de vez em quando em sobressalto por um acesso de sentimento das carpideiras ou por algum servo que vinha pedir instruções. Sons de cânticos, crepitar de tochas, o afago das esponjas e o raspar da navalha sobre a face do morto. Aquilo agora já nem era doloroso — atordoava apenas. O som dos pingos da água e da esponja esmagando-se docemente sobre o corpo do irmão pareciam agora ser parte de uma trama completamente nova de pensamentos e emoções. Os gemidos dos acólitos quando voltavam o cadáver; o baque do corpo na mesa era como o ruído abafado de uma lebre morta lançada sobre a mesa da cozinha... Estremeceu. Narouz, finalmente lavado, ungido e perfumado com essências de rosa e tomilho, jazia confortavelmente no rude caixão, vestindo o burel branco, lavado na água do Jordão, que todo o copta guarda para lhe servir de mortalha. Não levava para a sepultura nem jóias nem ricas vestimentas, mas Baltasar colocou-lhe o chicote, enrolado debaixo do travesseiro. (No dia seguinte os servos descobriram o cadáver de um homem cuja face fora inteiramente destruída pelas vergastadas daquele látego temível; ao que parece teria fugido, uivando e irreconhecível, através da plantação, para cair num dos canais onde se afogara. O chicote completara a sua obra!) Agora restava apenas esperar que amanhecesse. De novo as carpideiras entraram no quarto onde jazia Narouz, de novo recomeçaram as suas danças, de novo se ouviam os tambores...
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Baltasar resolveu retirar-se então. Os dois homens atravessaram o pátio em silêncio, apoiando-se mutuamente, exaustos. — Se encontrar Nessim.
Clea
na
portagem,
leve-a
para
Alexandria
—
disse
— Esteja descansado. Apertaram as mãos e abraçaram-se demoradamente. Depois, Nessim voltou para casa, bocejando com tremores de frio. Sentou-se numa cadeira, sonolento. Durante três dias ainda a alma de Narouz habitaria a casa e só depois desse prazo é que seria «afastada» pelas práticas rituais dos sacerdotes. Primeiro haveria a dilatada procissão com velas e pendões, ao romper da manhã, antes de se levantar a bruma, as mulheres a puxar os cabelos como fúrias. Os diáconos cantando «Lembra-te de mim, Senhor, quando chegares ao teu reino», em vozes profundas e dilacerantes. Depois, no lajedo frio da Igreja, os torrões da terra caindo sobre a face pálida de Narouz e as vozes recitando «Em pó te tornarás», enquanto os períodos reboantes do Evangelho o vão conduzindo para o Céu. Ranger de parafusos quando a tampa desce. Tudo isto Nessim viu antecipadamente, enquanto cabeceava ao lado do caixão. E de repente sentiu uma grande curiosidade de saber em que estaria sonhando Narouz com o grande chicote enrolado debaixo do travesseiro.
FIM