Qual Palavra?
Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado Copyright © Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado, Setembro 1994 Copyright © Üdançã Editora, 1994-2004
Este texto é propriedade intelectual do autor, Jorge de Cantenac [heterónimo de Jorge Phyttas-Raposo]. Em qualquer menção deverá constar o título da obra, nome do autor e endereço electrónico de onde se transferiu o texto. Obrigado.
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Colecção Taijasa, Volume 1, Tomo 8 Taijasa — Palavra de origem Indiana que significa «a condição do ser que corresponde ao sonho e ao estado subtil». Deriva de Tejas, o fogo.
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Para Ti... in anima memoriam…
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«É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém.» Maria Gabriela Llansol In «Um falcão no punho»
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PRÓLOGO Depois do banho, quando te despenhas sobre a cama, deito-me sobre ti; sobre as tuas costas e, cheirandote com os dedos, acarinhando-te, vou descobrindo um rasto de pêssego.
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CAPÍTULO UM Escreveste na parede do quarto com o teu sangue sempre a mesma palavra. Nunca lhe soubeste o significado, por isso repetia-la como se assim, multiplicando-a, fragmentando-a, se lhe desprendesse um pouco da sua essência. Da sua verdadeira essência. Repetiste esse ritual sempre que nos encontrámos nesse quarto — onde tu colocavas nas paredes fotografias de pormenores do meu corpo — e fazia-lo sempre nessa loucura espontânea que te invadia quando nos afundávamos um no outro — tu à procura do significado dessa palavra e eu procurando a natureza desse esgar de dor e prazer que te surpreendia sempre mais um pouco. Andavas de um lado para o outro, cirandando, ungindo o teu corpo de sangue e lambuzando-o nas paredes, nos lençóis da cama, nas minhas roupas, nas folhas de papel espalhadas desordenadamente pelo chão, nunca esquecidas porque lhe acrescentavas sempre mais algumas palavras quando te embriagavas, e falavas, e gritavas, e sorrias, e choravas, e te silenciavas sentada nos cantos do quarto, fraca, frágil, como uma menina. Mas logo depois eras mulher, logo após esse estado de embriagues, e falavas com dor, e gritavas de prazer, e sorrias das coisas que dizias, e choravas porque de algumas palavras não sabias o significado, e te silenciavas sentada nos cantos do quarto, forte, ágil, como uma mulher. Sempre forte como uma mulher que queria ser menina que queria ser mulher para poder imaginar que ainda era menina.
Exigias de mim sempre a mesma palavra e eu dizia sempre a mesma. Sempre a mesma. Depois para te recompensar afundava-me no teu corpo e sussurrando-te chamava-te menina para te ver sorrir, e ter prazer, e gritar, e chorar. Fazia-o sempre para te ouvir cantar o Cântico dos Segredos. Sempre o soubeste. Sempre o soubeste mesmo quando te escrevia no corpo o meu desejo e essa palavra que não conhecias o segredo, a essência.
E gritavas, como uma mulher com sonhos, porque não compreendias o porquê do meu esgar e do modo com te possuía, nessa ânsia sôfrega de te compreender a alma, de acarinhá-la com as mãos lambuzadas de sémen, e suor, e sangue, e lágrimas. Era por isso que gritavas como uma mulher. Depois choravas, como uma menina que não sabe o que quer mas que vai fazendo para puder pensar no que fez, porque não sabe o que fazer. E aí, só aí, sonhavas. E eras tu. Essa Niêma das minhas estórias que consumia a alma de quem com ela se partilhava, fundia.
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Disseste, depois, que eras feliz nesses momentos, que era a própria eternidade que te embriagava nesses momentos do tamanho da felicidade. Que sentias a sacralidade abraçando-te o corpo e a alma. Que nunca mudarias. Que eras eterna. Que se iria manter sempre e para sempre. Como uma daquelas coisas que nunca mudam, disseste tu. Quais?, perguntei eu lambuzando-te os lábios. E tu, depois, respondias-me chorando. E choravas. E choravas porque te sentias a mentir — e porque te sentias embriagada — e porque sabias que nenhuma das tuas palavras era mágica. E por isso choravas e rias com a mesma intensidade hipócrita das pessoas que andam à procura fora de si dentro dos outros aquilo que são. Nenhuma das tuas promessas — sempre o soubeste, mesmo quando... — se cumpriria. Nenhuma. NENHUMA. Nenhuma das palavras que dizias conhecias o significado. Usava-las como se bebe água. E para te recompensar empurravas-me para dentro de ti, com a promessa de gritares alto quando o orgasmo de inundasse. E tu, hábil — sempre o foste — gritavas de prazer, cravando os teus dedos na minha carne. Ou tentavas separar-nos quando te abraçava num abraço forte, cruel, impedindo-te de te mexeres. Ou permitindo-te sentir.
Disseste que renascerias de dentro de mim e eu nunca acreditei. Mas já aí eu chorava. O que agora faço é uma repetição para ver se lhe acho a essência.
Quando a minha mão caía sobre o teu seio, resvalando lentamente para o teu ventre, choravas comovida. E eu acompanhava-te nesse cântico. E depois colocava a minha cabeça sobre o teu ventre, procurava cheirar-te a pele, em sentir o odor aconchegante do teu sexo, de sentir o lume das gotas do teu suor. E chorávamos os dois em uníssono, aparentemente envolvidos das mesmas águas. Aparentemente envolvidos pelas mesmas águas.
Dizias que me sorvias a alma quando me bebias da boca a saliva e as águas que eu roubava do teu corpo, da tua pele, do teu sexo, dos teus olhos, da tua boca.
As tuas palavras estão encardidas com o lado branco da morte.
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CAPÍTULO DOIS Escreveste na parede do quarto com o teu sangue sempre a mesma palavra; naquele desvario pungente que te abria na alma uma vontade impercebível de te maltratares. Já usavas o teu sangue, disseste-me, quando te sugeri que usasses o sangue para pintar a palavra que tanto te atormentava. Aprendera há muito tempo essa forma de exorcização, mas tu já dela sabias.
Às vezes já não sei se é a dor que me dói...
Entraste nua; deste-me a roupa (o vestido azul que usavas para sonhar) e disseste, violentamente «preciso cantar, faz amor comigo». O quarto tornou-se de repente azul-saudade, o teu corpo fogo incandescente e as minhas mãos tornaram-se alvas, trementes. Quando te deitaste, despenhando-te, gritaste. Quando me puxaste para dentro de ti, sorrindo, também gritaste. Depois, sôfrega, cantaste, os dedos cravados no meu corpo, o teu ritmo o meu ritmo, a tua força a minha força, a tua ânsia a minha ânsia. Cantavas, soluçando. Só te silenciaste quando ameacei agarrar-te as ancas e ritmar-te o corpo de acordo com a minha sofreguidão. Demoveu-me a violência dos teus olhos a fecharem-se, o esgar do teu rosto.
Gostava de encovar o teu seio na minha mão; sentir o desprender da pele, da irregularidade da carne do mamilo, duro, altivo. Gostava de lamber-te o ventre construindo um ribeiro que empurrava para o vale entre os teus seios. Quando te mordia o mamilo, entredentes, sorrias.
Sentir-te em cima de mim, ambas as tuas mãos empurrando o meu sexo para dentro de ti, gritavas. Puxavas-me as mãos para cima de ti; agarrando-as com força, obrigando-as a agarrar-te o corpo, as ancas, as pernas. Gostavas quando te agarrava o teu sexo com força, magoando-te.
Várias vezes, quando entrava, estavas tu, deitada de bruços, as nádegas erguidas, os dedos da mão direita — a mesma que escrevia nas paredes as palavras de sangue — acariciando o sexo, latejante, dizias, escorrendo a água mágica, dizias. Lembravas-te de mim nesses momentos mais do que em quaisquer
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outros, dizias. Também não entendias porque chorava eu quando te via assim, roubando a ti própria prazer, dizias.
O banho. O leite da celha de porcelana manchado do sangue das palavras de que não sabias o significado que te escrevia repetidamente no corpo, no ventre, entre as pernas sobre o sexo, no pescoço, na encosta do seio, na tua perna direita. O banho. O leite manchado de sangue.
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CAPÍTULO TRÊS Subias as escadas aflita — dizias depois que te cheirava a velha a madeira dos degraus, como se entrasses sempre num outro local num outro tempo e fosses incapaz de impedir essa violação que tu própria forçavas, e que catapultava para ambientes estranhos, antigos. Só descansavas encostada à ombreira da velha porta — onde tinhas esculpido, com o canivete do teu avô, o teu nome e um símbolo indecifrável que escorria em longas farripas ocupando mais de metade da placa de madeira escura. Depois entravas — não sem antes me pedires, ao rodar a chave, para te obrigar a sonhar se te sentisse relutante, dobando infindáveis hesitações que se emaranhavam sempre umas nas outras: tu sempre assim o disseste. Ao entrar, agachavas-te e fechavas os olhos — murmurando antigos enleios destonados e rudes, que só muito tempo depois me desvendaste o segredo, a estranha polpa que te lambuzava a alma e te desenhava irregulares sentidos. Ao sentires afastar-me, entrando para a sala, pedias-me para esperar — sempre o fizeste, sempre me pediste para esperar, interpretando os meus passos como sinal de impaciência. Só muito tempo depois, na noite da Lua de Fogo, soubeste que o fazia para te perturbar, para te obrigar a falar. A falar, a palavras dizer, a sentimentos exorcizar. Sorrias — quando me sentias quedar à tua frente, tirar a camisa «francesa» como lhe chamavas, acariciar o teu rosto com ela. Sorrias. A minha nudez, que nesse quarto nunca viste apenas sentiste, desassossegava-te, como que te enfurecia. Pedias-me então, num tom que nunca cheguei a compreender, para que te vendasse.
Nesse quarto nunca choraste, sempre sorriste como se assim vedasses o caminho dos sentimentos da alma. Por isso chamei a esses quarto Vedante.
Nunca fizemos amor nesse quarto, dizias — eras sempre demasiado animalesca, violenta, insaciável, incandescente. No outro sim. No quarto Azul faço amor contigo, dizias.
Lamber-te o corpo — a boca, os lábios, os dentes, a língua, a saliva na tua pele...
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(...) Yanassë, Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado Setúbal, Julho / Setembro de 1998
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Deste livro, «Estou deitado, de braços e pernas abertas, nu!» — primeira edição electrónica, disponível em Julho de 2004 no saite Üdançã Editora, sob o projecto gráfico de Jorge Phyttas-Raposo — fez-se uma edição electrónica (em formato pdf) de transferência e distribuição gratuita.
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